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REVELADA / P. 2
REVELADA / P. 2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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REVELADA / Parte II

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

 

 

 

 

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 


C O N T I N U A

8
Neferet

Os mortais descreveriam o que Neferet fez como sonho. Eles diriam que estavam tendo pesadelos tão vívidos que, ao acordarem, os sonhos haviam ficado com eles e até parecido reais.

Encolhida na toca da raposa, vestida apenas de sangue e Trevas, Neferet expandiu a sua consciência, examinando diferentes camadas de mundos materiais e imateriais, em uma busca pela sobrevivência.

Não, a imortal não havia sonhado.

Na verdade, a Tsi Sgili estava experimentando novamente a sua vida, um evento após o outro, revivendo os momentos que haviam culminado no nascimento de uma imortal e, desse modo, esperando redescobrir aquilo que a visão no espelho havia despedaçado: o seu objetivo e a sua verdadeira personalidade.

Neferet começou com a noite que foi refletida pelo espelho, no momento em que a sua inocência havia se perdido. Ela mais uma vez se tornou Emily Wheiler, uma garota de dezesseis anos que havia perdido a mãe há apenas seis meses, e ela reviveu a noite em que o seu pai a atacou e a estuprou.

Ela podia sentir o cheiro dele: conhaque, hálito azedo, suor, cigarro e luxúria. Ela sentiu o desgosto de descobrir o que ele pretendia e o terror de saber que não podia escapar dele. Então ela experimentou mais uma vez a dor do seu corpo machucado e rasgado.

Ainda como Emily Wheiler, ela escapou, sangrando e desesperada, para ser rejeitada pelo seu noivo. Mas, no mesmo momento, ela foi salva pelo Rastreador que a Marcou como novata e alterou o seu destino para sempre.

Segura dentro da Morada da Noite de Chicago, o seu corpo se curou sob a supervisão atenta da sua primeira mentora. Mas a mente dela não conseguia se recuperar. Emily precisava se vingar para se curar totalmente. A voz da sua mentora soou tão clara quanto se ela estivesse naquela noite de 1893.

– ... uma necessidade insaciável por vingança se torna um veneno que vai tentar a sua alma e destruir a sua vida...

A mentora de Emily havia lhe explicado que ela precisava encarar a escolha entre esquecer o que o seu pai havia feito para ela e seguir em frente com a sua nova vida de novata, ou afundar em autopiedade e carregar as cicatrizes que aquele monstro tinha causado, sem conseguir perdoar e esquecer.

A novata Emily Wheiler não fez nenhuma dessas duas escolhas.

O corpo da Tsi Sgili se contraiu em espasmos. A sua respiração se acelerou, embora ela não tenha despertado. Ela continuou totalmente inconsciente e em outra época, revivendo o nascimento de Neferet, Rainha da Noite.

Ela voltou para a casa dos Wheiler, o lar de seu pai, como uma vingadora, estrangulando-o até a morte e reivindicando o seu novo nome e a sua nova vida – sem perdão, dúvida nem autopiedade.

A mão de Neferet se contraiu quando o espectro do seu passado segurou o seu colar de pérolas, suave e mortalmente, e reviveu o prazer que ela havia sentido quando acabou com a vida patética de Barry Wheiler.

Neferet reviveu outra coisa também – ela estava de novo preenchida por uma onda de energia causada por aquele primeiro assassinato. Ela não havia provado o sangue dele. Aquela ideia não passara pela sua cabeça, mas ela tinha sentido o poder de acabar com a respiração dele, de fazer o seu coração parar, de saber que ela havia feito o espírito dele fugir daquela casca mortal e quebrada.

A pele perfeita de Neferet se empalideceu com um calafrio, e logo depois se aqueceu levemente.

Ela reviveu a sua fuga de Chicago por trem, acompanhando um pequeno grupo de vampiros que estavam explorando lugares no oeste para novas Moradas da Noite. Na primeira parada do trem, Emily Wheiler enterrou o seu diário. Na terra que iria se tornar Oklahoma, ela sepultou a única lembrança do que havia acontecido a ela. Ela se lembrou de cavar aquela terra com uma pá, abrindo uma ferida vermelha como sangue seco de touro e que tinha o aroma do fim de todas as coisas. Com o enterro daquele triste registro da inocência perdida e do estupro vingado, começou a nova vida de Neferet.

Não foi uma vida fácil.

Mas dentro daquele cometa de renascimento sempre houve um centro sombrio de conforto que nunca abandonou Neferet. A noite era o seu mundo, e as sombras dos seus cantos mais escuros continham consolo e aceitação.

O Conselho da Escola de Chicago decidiu que não era seguro para a novata Neferet voltar para lá, então ela foi transferida para a Morada da Noite de Tower Grove em St. Louis. Lá os dons de Neferet se imprimiram com força dentro dela.

Neferet se encolheu mais, revivendo o momento seguinte que definiu quem ela iria se tornar.

Havia uma pequena gata malhada de pelo curto preto e cinza. Era uma gata comum, sem nenhum atrativo que chamasse a atenção de Neferet, não fosse pela sua inteligência aguçada e pelo polegar extra que ela tinha nas patas dianteiras. Era inverno em St. Louis, estava gelado e nevava, e a jovem Neferet achou que a gatinha malhada parecia estar usando aquelas luvas que cobriam todos os dedos.

A cozinheira mal-humorada da escola havia batizado a gata de Chloe, o mesmo nome de uma ladra humana que havia sido pega tentando invadir a escola, porque ela não conseguia impedir que o felino entrasse na sua cozinha, não importava quantas vezes ela trancasse as janelas e apesar de ela ficar de olho nas ajudantes de cozinha que tinham o hábito de esquecer as portas abertas.

Naquele dia, Chloe havia conseguido abrir a janela, subido em uma viga do teto, saltado na mesa em que os alimentos ficavam resfriando após sair do forno e se fartado com uma torta de miúdos, lambuzando as patas. A vampira tinha acabado de jogar o animal para fora da cozinha quando Neferet apareceu.

– Como ela conseguiu colocar luvas? – a jovem Neferet exclamou ao resgatar a pequena Chloe do monte de neve em que ela havia aterrissado, tirando os flocos brancos úmidos do seu pelo pardo e sorrindo enquanto a gata batia as patas no manto com pele de arminho de Neferet.

A cozinheira riu e zombou de Neferet.

– Eu sei que você é jovem, mas não há motivo para soar como uma tola. Chloe é polidáctila, tem sei dedos. Com certeza você já viu os gatos da nossa Grande Sacerdotisa e do seu companheiro. Todos polidáctilos. Esse animalzinho deve ser parente deles, apesar de eu não ver nenhuma semelhança entre eles, exceto nas patas – a velha vampira se virou e foi embora, ainda gargalhando, balançando a cabeça e murmurando: – Luvas em um gato. A garota é bonita, mas não tem nada na cabeça...

Neferet se lembrou de como ficou vermelha de vergonha e raiva, até que Chloe levantou a cabeça e olhou nos seus olhos.

Então o mundo de Neferet mudou. Ela reviveu aquela excitação de saber o que estava passando pela mente da gata. Ela não ouviu propriamente palavras – gatos não pensam com palavras. Ela ouviu emoções, e emoções contavam histórias. Chloe irradiou travessura. A sua barriga estava cheia e quente e ela estava com sono. Mas, o mais importante, a gata olhou nos olhos de Neferet com amor, lealdade e alegria, e escolheu Neferet como sua para sempre.

Pandeia, há muito tempo a Grande Sacerdotisa em St. Louis, não chamou Neferet de tola nem zombou dela quando a jovem novata foi procurá-la, segurando Chloe adormecida, e descreveu com um espanto esbaforido as imagens de sonho que ela conseguia extrair da mente do felino.

– Grande Sacerdotisa, e eu posso sentir a mente da sua gata também! – Neferet falou rapidamente, apontando para a gata malhada e rechonchuda da vampira, que estava descansando preguiçosamente no batente da janela. – Ela está feliz, muito feliz, pois ela está grávida!

O sorriso da Grande Sacerdotisa quase ofuscou a zombaria da cozinheira.

– Querida Neferet, Nyx concedeu a você uma maravilhosa afinidade, uma ligação especial com os gatos, o animal mais próximo de nossa Deusa. Nyx deve dar muito valor a você para lhe premiar com um dom desses.

Aquele dia glorioso se esvaneceu e a experiência de Neferet mudou. Os meses se passaram tão rápido quanto as batidas do coração da Tsi Sgili.

Ela ainda era uma novata, porém mais velha. O que ela dizia era valorizado. Primeiro por causa da sua conexão com os felinos que perambulavam livremente pela Morada da Noite como companheiros de novatos e vampiros. Depois porque, apesar de a sua afinidade ter começado com os gatos, logo ficou evidente que Neferet era capaz de alcançar a mente das pessoas quase tão facilmente quanto ela fazia com os gatos.

Imagens se levantaram do passado, uma depois da outra, deixando-a tonta por causa da sua velocidade.

– Neferet, seria ótimo se você pudesse vir até a cidade comigo. Preciso saber se a cidade está ficando agitada de novo por causa dos nossos rituais da lua cheia – a sua Grande Sacerdotisa pedira.

Ela havia ido com Pandeia, abrindo-se para a onda de medo, ódio e inveja que os humanos locais dirigiam à Grande Sacerdotisa, apesar de eles sorrirem timidamente e tocarem na aba de seus chapéus para cumprimentá-la ou de desviarem os olhos e fingirem não vê-la.

Neferet começou a odiar ir até a cidade.

– Neferet, o Consorte humano da nossa nova professora está triste. Seria bom se você pudesse me dizer se ele deseja ir embora, mas tenho receio de perguntar – Pandeia lhe pedira em outra ocasião.

Neferet deslizara para dentro da mente do homem. O humano não estava triste. Ele era infiel à sua vampira e estava dando umas escapadas durante o dia, enquanto ela dormia, para jogar e frequentar prostíbulos em barcos no rio.

A professora o mandou embora e se esqueceu rapidamente dele, trocando-o por outro Consorte mais leal depois de duas semanas.

Mas Neferet achou difícil esquecer aquilo que ela havia captado dentro da mente do homem. Luxúria, inveja, ganância e desejo. Isso a envenenou.

Percebendo o quanto a Grande Sacerdotisa valorizava os seus conselhos, mais pessoas vieram procurá-la, sempre buscando respostas escondidas embaixo das máscaras dos outros.

Enquanto Neferet revivia essas experiências, ela sentiu o ressentimento que começou a crescer dentro dela. Todos eram tão carentes! Até a Grande Sacerdotisa.

– Neferet, diga-me se aquele guerreiro Filho de Erebus acha mesmo que eu sou bonita...

– Neferet, eu preciso saber se a minha companheira de quarto está falando a verdade sobre...

– Neferet, conte-me...

– Neferet, eu quero...

– Neferet, por que aquilo...?

A Tsi Sgili estremeceu, mas não acordou, enquanto uma experiência atrás da outra, uma memória atrás da outra, assomavam-se tão rapidamente que elas se fundiam umas às outras, tornando-se uma mistura de necessidade e ganância, de desejo e traição, de mentiras e luxúria.

As Trevas a haviam salvado. Neferet foi atraída para os jardins que desabrochavam à noite no Tower Grove 7 . Os lugares mais sombrios da sua Morada da Noite eram como amigos familiares para ela. Lá ela podia desaparecer, invocando a noite, de modo que os outros olhavam para ela sem nunca vê-la...

Chloe entendia. Ela era inteligente e precoce, e não importava qual pensamento insípido Neferet tivesse escutado, ela sempre encontrava um jeito de fazê-la sorrir. Ela sussurrava para a gata os sentimentos que estava aprendendo a nunca dizer em voz alta, a nunca mostrar para os outros novatos, a nunca, nunca mesmo, revelar a nenhum vampiro.

– Eu detesto quando Pandeia me pede para ouvir a mente de um humano, especialmente um do sexo masculino – Neferet contou ao felino ronronante. – Eles são todos vis. Os pensamentos deles são obcecados pelos nossos corpos, por nos possuir, apesar de o medo deles ser tão forte que tem quase um cheiro próprio: hálito azedo, suor e um desejo insaciável.

Chloe deu um beijo de nariz em Neferet e esfregou o seu rosto contra o dela, enchendo-a de amor incondicional e aceitação.

– Quando eu for Grande Sacerdotisa, só vou usar os meus poderes quando eu quiser. Eu não concordo com Pandeia e os outros. Só porque eu tenho esse dom, isso não significa que eu tenho que estar à disposição deles. Eu recebi esse poder, não eles. Eu deveria fazer com ele o que eu quisesse.

Em vez de se aconchegar a ela como sempre, a gata levantou os ouvidos e ficou empoleirada no colo de Neferet, olhando para os jardins da escola encobertos pela noite.

Na sua toca, a Tsi Sgili gemeu alto, sem querer reviver o que aconteceu em seguida, mas sem ser capaz de escapar das visões do seu passado.

A Morada da Noite de Tower Grove tinha jardins exuberantes que se estendiam por mais de duzentos acres de terra isolados ao redor do campus principal. Os jardins eram meticulosamente bem cuidados, é claro, mas era o começo do século vinte e St. Louis ainda era conhecida como uma porta de entrada para o oeste selvagem. Os jardins hospedavam mais do que cascatas e flores que desabrochavam à noite.

Chloe farejou o ar.

Neferet inspirou profundamente junto com a gata. Quando o animal arquejou as costas, rosnando com ferocidade, Neferet também mostrou os seus dentes. Ambas estavam com raiva por um invasor ter entrado na sua Morada da Noite.

Foi só quando Chloe saltou do seu colo que Neferet caiu em si e conheceu o medo. Ela correu atrás de sua gata.

O lince estava caçando coelhos e havia perseguido um até perto do canto escuro em que Neferet e Chloe estavam. Frustrado por perder a sua presa, o grande macho havia marcado o território em volta da clareira.

Chloe irrompeu no território do macho. Rosnando um aviso, o lince encarou a gatinha. Uivando e salivando, Chloe voou em direção ao macho, com as garras e os dentes para fora.

– Não! – Neferet gritou junto com Chloe quando o lince atacou uma vez, duas vezes, batendo na gatinha como se ela fosse um inseto irritante, rasgando a sua barriga e a dilacerando com destreza.

O grande animal, pelo menos três vezes maior do que Chloe, estava se aproximando do local em que a gatinha estava caída, contorcendo-se e sangrando, quando Neferet chegou à clareira.

O ódio tomou conta da novata, e ela arremeteu contra o animal, berrando a sua raiva sem palavras, com as mãos feito garras e os dentes expostos.

O lince colocou as orelhas para trás, grudando-as no crânio. Os seus olhos amarelos encontraram o intenso olhar esmeralda de Neferet. O que ele viu o fez parar. Tão rapidamente quanto o seu instinto de matar havia surgido, o seu instinto de autopreservação tomou conta dele, fazendo o felino retroceder, desaparecendo nas folhagens.

Neferet correu até a sua gata. Chloe ainda estava viva. O seu coraçãozinho batia rápido e ela estava ofegando de pânico e dor.

– Não! Deusa, não! – Neferet rasgou o seu vestido e tentou colocar as vísceras da gata dentro de sua barriga e estancar aquele terrível fluxo de sangue. – Ajude-a, Nyx! Por favor, se eu sou tão importante para você como todo mundo diz, por favor, eu imploro que você a ajude! – tomada pela dor da gata e pelo seu próprio desespero, Neferet gritou para a noite: – Ajude-a, Deusa! Por favor, ajude!

O ar acima da clareira tremulou com uma luz prateada que faiscava como estrelas descidas a Terra, e uma mulher se materializou ao lado da gata moribunda. O seu cabelo era longo e tão branco quanto a lua cheia. Ela estava usando um vestido da cor do crepúsculo e uma tiara prateada enfeitada com uma fileira de diamantes.

Dentro da toca, a Tsi Sgili parou de contorcer o seu corpo sem parar. A sua respiração ficou superficial. A sua pele nua estava fria e tão pálida que parecia quase transparente na hora em que ela reviveu o seu primeiro encontro com Nyx.

– Minha filha, você é importante para mim – a Deusa disse a ela. – E não apenas porque eu vejo um grande poder dentro de você. Eu amo você, assim como amo todos os meus filhos, por causa da sua verdadeira personalidade: aquela aí no seu interior que é vulnerável e está ferida, mas mesmo assim é corajosa o bastante para continuar a viver, a crescer e a amar.

– Então, Deusa, por favor. Salve Chloe. Ela é a coisa mais importante da minha vida. Eu a amo – Neferet implorou.

Nyx levantou os braços, e a seda que os envolvia tremulou como a luz da lua refletida sobre a água.

– Eu concedo a você um último dom: a habilidade de suavizar a dor com o seu toque. Deixe que isso lhe ensine a compaixão, para contrabalançar o poder que está emergindo dentro de você – Nyx colocou as mãos na altura do seu coração e depois se inclinou para a frente, tocando a cabeça de Neferet.

Dentro da toca fria e escura, Neferet reviveu a sensação de preenchimento daquele toque divino e a sua respiração parou enquanto ela recordava. O toque da Deusa não a havia enchido de poder, mas sim de gentileza.

– Ah, abençoada seja, Nyx!

– É a Deusa! Abençoada seja, Deusa da Noite!

Gritos de júbilo vieram de toda parte ao redor de Neferet quando vampiros e novatos, que haviam escutado os seus pedidos de ajuda, chegaram à clareira.

– Abençoados sejam, meus filhos. Merry meet, merry part and merry meet again 8 – Nyx saudou a todos, sorrindo bondosamente antes de desaparecer em um raio de luz da lua.

Neferet não viu a partida de Nyx. Ela estava concentrada em sua gata com todo o seu ser. Ela colocou as mãos sobre o seu corpo ensanguentado, canalizando o toque mágico da Deusa.

Neferet sentiu a diferença instantaneamente. Chloe parou de ofegar. As batidas do seu coração se tornaram mais vagarosas. Os seus olhos opacos pela dor clarearam, só por um instante, e encontraram os dela. A gatinha irradiou amor, alegria e alívio. Então, completamente feliz e sem dor, a sua gata se aconchegou em suas mãos. Ronronando contente, ela esfregou o focinho em Neferet e morreu.

– Não! Não! Eu deveria ter sido capaz de salvá-la! – Neferet tinha colocado Chloe em seu colo e começado a chorar sobre o seu corpo sem vida quando uma dor explodiu em sua testa. Ainda segurando o corpo de Chloe, Neferet desabou, até que o seu rosto ficou pressionado contra o chão e o sangue e a terra absorveram os seus soluços.

– Neferet, minha filha! Eu estou aqui com você. Tudo vai ficar bem! – foi a Grande Sacerdotisa, Pandeia, quem a levantou. – Ah, Deusa abençoada, obrigada! – Pandeia exclamou quando Neferet ergueu o rosto. – Nyx não apenas concedeu a você o dom da cura, ela também a abençoou com a Transformação esta noite.

Ainda chorando e agarrada ao corpo de Chloe, Neferet estava tonta e confusa.

Pandeia olhou atentamente para as novas Marcas que decoravam o rosto de Neferet e proclamavam ao mundo que agora ela era uma vampira adulta, e depois se voltou para o corpo da gatinha.

– Oh, é Chloe. Eu sinto muito, Neferet – a Grande Sacerdotisa acariciou a cabeça imóvel da gata. – Mas o seu toque curou a dor dela, e Chloe seguiu em frente para o Mundo do Além, onde ela vai brincar com a Deusa.

Dentro da toca, a Tsi Sgili respirou fundo e falou em voz alta, como ela havia feito no passado:

– Eu não a curei. Chloe está morta.

O olhar de Pandeia foi afetuoso e a sua voz, compreensiva.

– Eu sei que foi uma perda terrível, difícil para você suportar agora, mas quando você conseguir pensar com clareza sobre esta noite, vai perceber que a habilidade de tocar o espírito da pequena Chloe e de suavizar a sua morte a curou mais do que se você apenas tivesse reparado as suas feridas físicas. Nyx a abençoou em abundância.

Na sua toca, Neferet sussurrou em voz alta as palavras que ela apenas pensara em silêncio tantas décadas atrás: Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava.

A raiva agitou a Tsi Sgili, fazendo com que ela chegasse perto de recobrar a consciência. A sua respiração se acelerou e ela quase abriu os olhos. Mas, antes de despertar completamente, o tempo se adiantou, levando-a até a próxima experiência definitiva em seu passado. O dia em que ela matou o seu amante e começou a ouvir os sussurros sedutores do imortal alado – o mentiroso e traidor Kalona...


9
Zoey

– Zo, Thanatos me pediu para encontrar você. A conferência com o Conselho Supremo já começou – Aurox disse.

– Ah, que droga! Eu perdi totalmente a noção do tempo.

– Conferência com o Conselho Supremo? Que merda é essa? – Aphrodite perguntou.

– Pois é, que droga, de novo – eu conferi o horário no meu celular: 22 horas. Sim, eu estava dez minutos atrasada. – Desculpem-me, com toda essa coisa de mudança para o porão, eu me esqueci de contar para vocês. Thanatos vai pedir ao Conselho Supremo para interceder junto à polícia de Tulsa, pois ela acha que os humanos estão ultrapassando os seus limites na investigação. Ela quer que eu vá até lá para contar ao Conselho Supremo sobre a aquela materialização totalmente louca de Neferet e sobre como o nosso círculo a chutou para fora daqui, que foi o que detonou o fato de ela ter acabado com o prefeito – fiz uma pausa e dei um olhar de desculpas para Aphrodite. – Sinto muito por ter falado desse jeito.

Ela deu de ombros.

– Você só disse o que aconteceu.

– Bem, ela poderia ter falado de um jeito mais agradável – Stevie Rae franziu os olhos para mim.

– Caipira, eu nunca dei a mínima para jeitos agradáveis. Z. só falou as coisas como elas são.

– Ei, todo mundo sabe que você ficou tão acabada na noite passada que ficou fora do ar na maior parte do dia hoje. Não há razão para fingir que nada pode incomodar você – Stark afirmou. Ele dirigiu o seu comentário para Aphrodite, mas não estava nem olhando para ela. Ele estava encarando Aurox com ar zangado.

– Stark, três palavras: cala a boca – Aphrodite rebateu. – Ah, e mais duas: muito ciúme?

Deusa, eu estava cansada dessas picuinhas.

– Aphrodite, já que você não tem problemas em falar sobre o seu pai, eu quero que você me acompanhe para falar no Skype com o Conselho Supremo – eu falei rápido, antes que Stark pudesse fazer algum comentário irritante que ele já tinha se preparado para fazer, seja para Aphrodite ou Aurox. – Stevie Rae, venha comigo também.

– Ok – ela concordou.

– É melhor a gente ir logo. Thanatos mandou Aurox vir buscá-la, então isso significa que você está atrasada – Stark disse, segurando o meu pulso e soando totalmente babaca.

Levantei as sobrancelhas e puxei o meu braço, desvencilhando-me dele.

– A gente, quero dizer Aphrodite, Stevie Rae e eu, está indo agora. E sim, eu estou atrasada porque tive que ficar apagando um monte de incêndios aqui. Enquanto a gente estiver falando com o Conselho Supremo, eu preciso que você cuide para que os novatos vermelhos terminem de levar todas as suas coisas para o porão, e depois ajude Darius e Damien a reunir todo mundo para ir até o funeral. Eu encontro com você lá.

– Mas eu queria...

– Queria o quê? – eu sabia que estava soando como uma pessoa horrível, mas a minha paciência tinha acabado. Era óbvio que o que ele queria era ficar colado em mim sempre que Aurox estivesse por perto. – Stark, você não viu Neferet se materializar. É sobre isso que o Conselho Supremo quer saber.

– Eu só pensei que você poderia precisar de mim para...

Eu o cortei novamente.

– Eu preciso que você não brigue com Aphrodite nem comigo, e apenas cuide para que o funeral de Erin não acabe virando uma briga idiota de gangues.

Aurox limpou a garganta.

– Eu vou na frente para informar Thanatos que você vai se juntar a ela em alguns instantes.

– Sim, obrigada, Aurox – eu falei distraída quando o garoto foi embora, obviamente satisfeito por escapar da tensão que ele havia causado acidentalmente.

Eu percebi que havia deixado Stark constrangido e provavelmente magoado, mas eu realmente não tinha tempo nem energia para ficar paparicando os sentimentos dele. Então eu não disse nada. Stark não disse nada. Ninguém disse nada. Até que Stark se curvou formalmente para mim, com a mão em punho sobre o coração, e falou:

– Tudo vai ser como ordena, Sacerdotisa. Espero que a sua conferência com o Conselho Supremo corra bem – então ele saiu andando, seguido por Darius e Damien em silêncio.

– Ok, isso foi embaraçoso – Aphrodite afirmou. – Você sabe que o Stark só está sendo possessivo por causa da história do Aurox barra Heath. Não precisa acabar com o garoto na frente do menino-touro.

– Eu não acabei com ele!

– Na verdade, Z., você foi bem maldosa – Stevie Rae comentou.

– Vai me dizer que você é sempre superdoce com Rephaim, mesmo quando ele está te irritando loucamente? – eu perguntei, meio arrependida de ter me descontrolado com Stark, principalmente na frente dos meus amigos, mas também ainda irritada com ele.

– Sim, eu posso dizer que nunca fui maldosa com Rephaim de propósito – Stevie Rae respondeu.

– Isso provavelmente porque ele só é um garoto na metade do tempo. Deve ser difícil ficar brava com um maldito pássaro. Deve ser tipo namorar um cachorro. Aposto que ele fica feliz e abanando a cauda, como se ele tivesse um rabinho, toda vez que ele volta para ver você. Jesus, fico passada só de pensar nisso! – Aphrodite exclamou.

– Já estou acostumada com o fato de você ser detestável, então não vou dizer nada sobre como você foi maldosa – Stevie Rae deu as costas para Aphrodite. – Há algo de errado com você, Z.? Você está nervosa como uma gata em teto de zinco quente.

– Elizabeth Taylor 9 era uma deusa – Aphrodite comentou. – Meio louca, mas uma deusa.

– Do que você está falando? – eu perguntei.

– Do filme. Pergunte à Rainha Damien. Tenho certeza de que ele queria ter sido Elizabeth Taylor.

– Aphrodite, às vezes eu acho que você está falando em outra língua. Enfim, aí vai oficialmente o que há de errado comigo: eu estou cansada dessas briguinhas entre todo mundo. Estou cansada de Stark agindo estranho por causa de Aurox. Estou cansada de não saber como eu devo agir perto de Aurox por causa da coisa do Heath. Estou cansada de pessoas sendo destruídas. Estou cansada de ficar preocupada com o que Neferet vai aprontar da próxima vez. E eu estou supercansada de ficar aqui na Morada da Noite como uma prisioneira.

Aphrodite e Stevie Rae olharam para mim como se tivessem crescido asas nas minhas costas.

– Caramba, Z. Você precisa começar a beber – Aphrodite a aconselhou.

– Será que Xanax funciona com novatas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– Acho que vale a pena tentar – ela respondeu.

– Ei, eu estou bem aqui. Eu não gosto de beber e não quero um Xanax.

– Eu posso triturar um comprimido para você colocar no refrigerante marrom dela – Aphrodite sugeriu.

– Feito – Stevie Rae disse.

Então as duas começaram a rir.

Eu balancei a cabeça.

– Isso não tem graça e nós estamos atrasadas – eu saí andando e me afastei delas. As duas me seguiram, ainda rindo às minhas custas.

Eu fiquei surpresa ao ver Kalona em pé ao lado de Thanatos, com os braços cruzados sobre o seu peito nu e musculoso, parecendo uma estátua de um anjo vingador.

Por que ele nunca usa uma camisa? Esse pensamento passou rapidamente pela minha cabeça. Então Thanatos fez um gesto para que nós nos juntássemos a ela, dizendo:

– Ah, ótimo. Zoey está aqui. Fico feliz de ver que ela está acompanhada da jovem Grande Sacerdotisa Stevie Rae e da nossa Profetisa, Aphrodite.

Kalona deu um passo para trás, para que nós três pudéssemos ser capturadas pela câmera do computador junto com Thanatos. A tela grande mostrou a Câmara do Conselho Supremo no templo da Ilha de São Clemente, na costa de Veneza. Sete tronos de pedra, com adornos esculpidos, estavam em uma espécie de palco. Seis tronos estavam ocupados. Eu sabia que o sétimo pertencia a Thanatos. Eu não sabia o que sentir em relação ao fato de o lugar dela no Conselho Supremo não ter sido preenchido. Eu gostei de saber que Thanatos estava ali conosco, mas ainda tinha poder suficiente para manter o seu assento no Conselho Supremo. Eu não gostei de pensar que isso significava que ela poderia ser arrancada da Morada da Noite a qualquer momento.

Percebi que ninguém estava dizendo nada e que todas as vampiras estavam olhando para mim. O meu rosto ficou quente e vermelho, então eu cruzei minha mão em punho sobre o coração e me curvei rapidamente, dizendo:

– Merry meet, Grande Sacerdotisa. Desculpe o meu atraso. Eu estava, ahn... – fiz uma pausa, esquecendo totalmente a desculpa que eu ia dar.

– Ela está estressada porque nós estamos todos presos aqui – Aphrodite terminou por mim e se curvou apressadamente. – Merry meet. Sou eu, Aphrodite.

– Nós lembramos de quem você é, Profetisa – Duantia falou primeiro. – Seria bem difícil esquecer a nossa primeira Profetisa humana – ela estava sentada no trono mais decorado e, obviamente, estava liderando o Conselho Supremo. Então Duantia voltou os seus olhos escuros na minha direção e eu pude sentir o seu poder mesmo a milhares de quilômetros de distância. – Às vezes, o atraso é inevitável. O estresse também é inevitável. Aprender a evitar o primeiro e a lidar com o segundo é parte de ser uma Grande Sacerdotisa – antes que eu começasse a me desculpar novamente, ela olhou para Stevie Rae. – Merry meet, Stevie Rae. Quando as circunstâncias permitirem, o Conselho e eu gostaríamos de fazer um convite a você e ao seu Conserte incomum, Rephaim, para visitar a Ilha de São Clemente. Estamos intrigadas com vocês dois. É verdade que o garoto alterna a sua forma entre humano e corvo diariamente?

– Merry meet – Stevie Rae disse, curvando-se formalmente. Então ela sorriu um pouco tímida, mas respondeu a pergunta de Duantia sem hesitação ou vergonha. – Sim, senhora, Rephaim é como um garoto normal de noite, mas quando o sol nasce ele se transforma em um corvo.

– Ele não tem nenhuma lembrança de quando é um animal? – outra vampira do Conselho Supremo perguntou.

– Na verdade, não. Ou, se ele tem, não me contou. Rephaim não gosta muito de falar sobre isso.

– Nós conversaremos mais sobre isso quando você e seu Consorte nos visitarem – Duantia afirmou.

– É melhor você arranjar uma daquelas caixas grandes para transportar cachorros em viagem – Aphrodite sussurrou para Stevie Rae.

Eu dei uma cotovelada nela.

– Agora, voltando para o assunto mais urgente – Duantia continuou. – Thanatos resumiu os acontecimentos de ontem à noite. Aphrodite, o Conselho estende as nossas condolências a você. A morte de um pai nunca é fácil.

– Obrigada.

– Zoey, Stevie Rae e Aphrodite, vocês estavam presentes quando houve a aparição no campus . Thanatos disse que vocês acreditam que era Neferet. Vocês três estão de acordo quanto a isso?

– Sim, estamos – eu disse. – Aphrodite e eu vimos as aranhas primeiro. Eu sabia que era Neferet. Ela já se manifestou na forma de aranhas antes aqui na Morada da Noite e, quando ela caiu da varanda, pareceu que o corpo dela se desintegrou todo em um ninho de aranhas.

– Era óbvio desde o começo que as aranhas não eram normais – Aphrodite acrescentou. – E só ficou mais óbvio depois que Z. começou a traçar o círculo.

– Como eu já disse, senti uma mudança na energia da escola antes mesmo de Zoey me ligar para reportar o que estava acontecendo. O meu pensamento inicial era que eu estava sentindo uma aproximação da morte, e a morte realmente visitou o nosso campus ontem à noite, mas pensando melhor acredito que eu também senti a aproximação da Tsi Sgili. O poder dela vem da morte e das Trevas; foi isso o que alimentou a sua imortalidade. Eu concordo com Zoey e o seu círculo. Neferet tentou se manifestar.

– Nós a vimos – eu não estava gostando do fato de as vampiras do Conselho parecerem indecisas. – Definitivamente, foi o corpo de Neferet que quase se formou novamente antes de os elementos a jogarem para fora do campus .

– Mas ela não foi muito longe – Aphrodite completou. – Ela matou meu pai na entrada principal. Provavelmente, foi o máximo que ela conseguiu ir sem drenar alguém.

– Nós também achamos que Neferet pode ser responsável pela rejeição da Transformação da novata ontem – Thanatos disse. – O seu espectro passou pela garota quando ela escapou do círculo, e a novata morreu apenas minutos depois.

– Sim, a garota com afinidade com água – Duantia falou. – É uma pena perder uma novata que recebeu um dom tão especial da Deusa.

– Embora faça sentido que uma imortal que se alimenta de morte e Trevas possa ter causado a morte de uma novata desse modo – outra vampira membro do Conselho disse. – Pode ser que isso tenha dado o poder que ela precisava para se manifestar completamente.

– Neferet matou Erin e o pai de Aphrodite – eu disse firmemente. – Nós até tentamos contar isso aos detetives, mas sem chance de nós conseguirmos contar a eles toda a verdade. Sem chance de eles acreditarem na gente.

– E agora eles estão pedindo para nós começarmos a fazer testes de DNA com os meus professores para comparar com a prova que eles encontraram no corpo do prefeito – Thanatos contou.

Eu ouvi o tom de surpresa na respiração de Aphrodite e lembrei que eu deveria ter avisado a ela sobre esse detalhe. Droga! Eu realmente deveria começar a organizar melhor o meu tempo.

– Humanos querem investigar esse assassinato dentro da sua Morada da Noite – Duantia não formulou a sentença como uma pergunta, mas Thanatos respondeu assim mesmo.

– Sim, o que vai completamente contra nossas tradições. Eu não vou dar permissão para invadirem esta escola. É por isso que eu peço que o Conselho interceda – Thanatos afirmou. – Todas as autoridades humanas precisam entender que a comunidade d os vampiros responsabilizou Neferet pela morte do prefeito e que nós estamos trabalhando incansavelmente para achá-la e trazê-la à Justiça. Eles podem terminar a sua investigação e retirar as restrições da nossa Morada da Noite. Em troca, daremos nossa palavra de que temos certeza de que Neferet irá pagar pelos seus crimes.

– E os humanos locais ainda acreditam que ela própria foi vítima da violência – Duantia disse.

– Porque nós não podíamos explicar para eles que ela usou as Trevas para sequestrar minha avó e que nós tivemos que usar magia para salvá-la! – eu não tinha a intenção de gritar, mas eu estava tão frustrada com toda aquela injustiça!

– Há muitas coisas que não podem ser explicadas para os humanos, Zoey – Duantia falou. – A morte de sua mãe nas mãos de Neferet é outro triste exemplo disso.

Eu concordei com a cabeça, sem poder confiar na minha voz.

– Zoey, se as restrições à Morada da Noite forem retiradas, você e Stevie Rae continuam determinadas a viver fora do campus , separadas da escola? – uma vampira do Conselho, que havia ficado em silêncio até então, perguntou repentinamente.

– Sim – eu respondi. – Os túneis embaixo da estação são mais confortáveis para os vampiros e novatos vermelhos.

– Mas você não é nenhum dos dois.

Eu franzi a testa.

– Bem, eu também não sou uma novata normal – levantei as mãos, com as palmas voltadas para fora, para que a tatuagem entrelaçada que a Deusa havia colocado ali ficasse totalmente visível para a câmera.

– E eu não sou uma Profetisa de Nyx normal – Aphrodite acrescentou. – Então, eu vou com eles.

– Eu sou a primeira Grande Sacerdotisa vermelha – Stevie Rae afirmou. – Isso também não é normal, e eu estou com Zoey e Aphrodite. Nós não queremos causar problemas, mas é assim que as coisas são. Nós vamos ficar todos juntos.

– Eu não entendo por que o fato de a gente morar na estação possa ser um problema. Vocês concordaram com isso antes – eu questionei.

– Sim, isso foi antes de Neferet ser desafiada a ponto de sequestrar a sua avó e de matar uma novata e um humano, trazendo as autoridades locais para a sua Morada da Noite – a mesma vampira falou.

Eu mal podia acreditar no que ela estava dizendo.

– Isso não foi culpa nossa!

– Ninguém está culpando vocês – Duantia interveio rapidamente. – Nós estamos tentando apenas examinar bem todos esses últimos acontecimentos trágicos – de repente, ela alterou o seu foco de atenção. – Kalona, você é o único imortal aqui. Qual é a sua opinião? – a pergunta de Duantia pareceu pegar a todos de surpresa.

Thanatos mudou a posição de sua cadeira e Aphrodite e eu nos afastamos um pouco para o lado, para que Kalona pudesse ficar entre nós e encarar o Conselho Supremo.

Ele se curvou, com a mão em punho sobre o coração, antes de responder:

– Eu não vejo problemas em Zoey e o seu grupo, e isso inclui o meu filho Rephaim, viverem na estação. Eles são protegidos por guerreiros fortes e leais, e os túneis dão segurança a eles. Em relação aos assassinatos, não tenho dúvidas de que aquela criatura, Neferet, manifestou-se e causou as duas mortes. Também não tenho dúvidas de que os humanos não podem fazê-la pagar por esses crimes.

– Kalona, nós o aceitamos como parte da nossa comunidade por causa do seu Juramento a Thanatos, mas todas nós estamos curiosas com a sua resposta a uma pergunta em particular que queremos fazer – Duantia disse.

As asas de Kalona farfalharam e o seu corpo ficou tenso, mas a sua voz permaneceu estável.

– Eu vou responder qualquer pergunta que deseje fazer, Grande Sacerdotisa.

– Apesar de você nunca ter admitido ser Erebus de volta a Terra, foi assim que Neferet o apresentou para nós. Ela disse que você a fez acreditar nisso.

– Eu nunca aleguei ser Erebus, e aqui estou, guerreiro sob Juramento de uma vampira membro do seu Conselho, enquanto Neferet está foragida, assassinando jovens e humanos.

– Sim, é uma reviravolta interessante nos acontecimentos. A nossa pergunta é: quem é você?

Todas, até Thanatos, estavam olhando embasbacadas para Kalona. Será que ele iria contar que era o irmão de Erebus? Caramba!

– Eu já fui muitas coisas: deus, amante, destruidor, salvador. Agora eu sou o guerreiro da Morte – Kalona respondeu. – Também é adequado dizer que eu sou um imortal.

Eu pensei em levantar a voz e contar a todas que ele era o irmão de Erebus, mas será que ele era mesmo ? Eu já tinha chegado atrasada, parecendo irresponsável perante o Conselho, e elas tiveram que saber que eu estava muito irritada. Eu não precisava despejar uma história como essa e depois ver Kalona ficar quieto. Ou pior, negar tudo. Então, para variar, desta vez eu fiquei de boca fechada.

– Kalona, eu orei para Nyx e pedi para ela me falar sobre você e me contar se você representa um perigo para Thanatos ou para a Morada da Noite – Duantia afirmou.

– E o que a Deusa disse? – Kalona perguntou.

– Nyx ficou em silêncio.

– Eu acho que isso já é uma resposta – Thanatos disse.

Eu achei que Thanatos soou irritada. Ela e Duantia ficaram se encarando em silêncio, até que Duantia desviou o olhar e se dirigiu ao Conselho:

– Sacerdotisas, algo que vocês ouviram hoje mudou a sua decisão anterior sobre o pedido de Thanatos para que nós intercedamos junto aos humanos de Tulsa?

As cinco Grandes Sacerdotisas responderam assustadoramente como se fossem uma só:

– Não.

Duantia nos encarou de novo.

– Então está decidido. O que está acontecendo em Tulsa já causou mal-estar entre os vampiros e os humanos, além de entre novatos e vampiros dentro da própria Morada da Noite. Parte de vocês se separou do todo, e para nós ficou claro pelos últimos acontecimentos que esse rompimento não é saudável para a comunidade dos vampiros. Nós já banimos Neferet. Ela não é mais problema nosso. Não é nossa responsabilidade trazê-la à Justiça.

– Mas é Neferet quem está causando os problemas. É ela quem os humanos precisam culpar... é ela quem vocês devem culpar – eu quase me sufoquei tentando não gritar com elas.

– Ela é imortal. Como Kalona disse, ela não pode ser levada à Justiça pelos humanos – Duantia disse.

– Você espera que nós a levemos à Justiça – Kalona falou.

– Sim, nós esperamos – Duantia concordou. – Por tanto, nós não vamos interceder junto aos humanos locais. Nem vamos mais reconhecer a separação de novatos e vampiros da sua Morada da Noite.

– Sgiach é uma Grande Sacerdotisa vampira e ela vive separada de vocês, e há séculos vocês permitem isso – eu tentei argumentar.

– Sgiach não está causando mal-estar com os humanos. Sgiach não está vindo até nós para pedir ajuda – Duantia contra-argumentou.

– Quer saber, agora para mim faz todo o sentido o fato de ela viver em uma ilha cheia de armadilhas e ignorar vocês – eu falei.

– Talvez esteja na hora de Tulsa se tornar uma ilha também – Thanatos soou severa e poderosa. – Eu abdico de minha posição no Conselho Supremo imediatamente.

– Thanatos, você não pode pretender liderar a sua Morada da Noite rompendo com o Conselho Supremo! – Duantia se levantou.

O resto das vampiras do Conselho pareciam superchocadas ou superirritadas.

– Eu pretendo mudar e adaptar. Eu pretendo permanecer aqui como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Eu pretendo apoiar essas duas Grandes Sacerdotisas e essa Profetisa incomuns em seu desejo de ter um lugar próprio para eles. E, o mais importante, eu pretendo levar Neferet à Justiça sem permitir que a minha escola seja invadida.

– Mas isso não é...

– Esse é o meu Juramento. Que assim seja!

Então Thanatos clicou o botão para desconectar. O Skype fez aquele barulhinho engraçado de desligar, e a tela ficou em branco.


10
Aphrodite

– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.

Thanatos ergueu as sobrancelhas.

– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.

– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.

– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.

Kalona e Zoey se olharam.

– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.

– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.

– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.

– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.

Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas (apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.

– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.

– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.

Zoey cruzou os braços e falou:

– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.

– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.

– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.

Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.

– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?

– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.

– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa em nenhum de nós, já que somos inocentes.

– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.

– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.

– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.

– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.

– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.

– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos, mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.

– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. – O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.

– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.

– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.

– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.

– Sim? – Thanatos quis saber.

– Como nós vamos encontrar Neferet?

– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.

– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?

– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.

Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.

– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.

Z. franziu os olhos para ela.

– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.

– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.

– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.

Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no seu pescoço.

– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.

– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude. Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.

– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie Rae acrescentou.

– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre. Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.

– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não estão com a gente.

– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.

– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.

– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.

– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.

Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.

E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga . Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada. Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.

Aphrodite não sabia que merda fazer.

Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada 10 , que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.

Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.

Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.

As três haviam chegado ao meio do campus , à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham formado um semicírculo de breguice atrás dele.

O aceno de Darius chamou a sua atenção.

– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.

Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.

– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.

– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.

Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo unido. O que era totalmente mentira.

Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite se desviou.

Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.

O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que, se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.

Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.

Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto, era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.

Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas. E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.

Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.

Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava gostando do que via.

Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.

Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:

– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.

O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para a noite:

– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim seja!

Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas. Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento a obedecia.

Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...

Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:

– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.

Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.

– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.

Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas. Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.

Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo. Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.

– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...

Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.

Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa na Morada da Noite com ele.

– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!

Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.

– Pshiu! – Aphrodite a chamou.

Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.

– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.

Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.

– Você não pode ficar me dando ordens.

– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.

Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.

– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.

Shaylin voltou imediatamente.

– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.

– Tudo bem. Que seja.

Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:

– Você está nervosa?

– Eu nunca fico nervosa.

– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.

– Eu só joguei o meu cabelo para trás.

– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.

– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx , quer.

– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.

– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.

O sorriso de Shaylin desapareceu.

– Você contou para ela?

– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.

– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?

– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.

– Não me chame de retardada – Shaylin disse.

– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.

Shaylin mordeu o lábio.

– E então? – Aphrodite a pressionou.

– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.

– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato – Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.

– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.

– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?

– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava confusa em relação a alguma coisa.

– E então?

– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.

– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.

– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.

– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?

– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.

– Que diabo isso significa?

– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.

– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?

– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis. Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin balançou a cabeça.

– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.

– Terceira pessoa... assustador.

– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.

– Tipo, na hora?

– Sim, retardada. Na hora.

– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.

– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.

– Você é tão estranha – Shaylin falou.

– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?

– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?

Aphrodite hesitou e então assentiu.

– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.

Shaylin a observou.

– Eu acredito em você. Em vocês duas.


11
Aurox

Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem pudesse conversar depois de tudo?

Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.

Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.

Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?

Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.

Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.

Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.

Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.

Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.

Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.

Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.

E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo, quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo. Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.

Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.

Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.

Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.

Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.

Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar ligada por Juramento a um guerreiro.

Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender tudo aquilo.

Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.

O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.

Onde estava esse Heath?

Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.

Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.

Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.

Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?

Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.

Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.

Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!

Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!

Porque eu sou um produto dessa morte!

Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079 km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.

Então Aurox correu.

Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola. Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.

Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite seria preciso muito mais.

Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.

O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.

Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.

– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.

– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.

Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção, para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.

Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.

– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.

O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.

– Caramba, você está certo, Zack.

Eles pararam de arrastar o barril.

– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.

– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. – Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?

– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.

– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?

– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.

– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.

Totalmente confuso, Aurox perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.

– Vampiras tesudas?

O primeiro garoto suspirou.

– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.

– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.

– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.

Jason deu de ombros.

– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.

– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.

– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem ele.

Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.

– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente, ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa. Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.

Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.

Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.

– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.

– Não – Aurox disse.

– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro copo.

Sem saber o que fazer, Aurox concordou.

– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.

– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.

– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.

– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.

– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.

Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.

Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:

– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?

Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.

– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.

– Como? – Aurox perguntou e bebeu.

– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei que ele estava louco.

– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.

– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.

– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.

– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus . Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas. Cara, elas são gostosas.

– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.

– O que é isso?

– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.

– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?

– Não – Aurox respondeu.

– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.

– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.

– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.

Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.

– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.

– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.

– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.

– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.

– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.

– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.

– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.

– Cara, por que você está rindo?

– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.

Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.

– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.

Zack franziu a testa.

– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.

– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.

– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.

Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.

– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.

– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.

– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.

– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.

– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.

A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:

– Espeeere aí. Pensando.

Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.

– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.

– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.

– Saquei – Jason disse.

Eles encararam Aurox.

Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.

– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.

– Pensando – Aurox balbuciou.

Zack deu de ombros.

– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.

Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.

Mas ele ia ficar com a cerveja deles.

Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.

O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.

Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.

Zack se inclinou para mais perto de Aurox.

– Ei, você está ok?

– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.

Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.

– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.

– Fala sério! – Zack exclamou.

– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.

– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.

– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.

– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso seguir algumas regras. Certo, Heath?

– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack. – Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.

Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.

– Isso foi demais! – Jason disse.

– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.

– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.

Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.

– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.

– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei nnnada!

– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!

– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool e se afastou dele.

– Eca!

– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.

– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios assuntos.

Aurox os observou indo embora e falou:

– Eu não sou aquilo.

Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores, mas não mais bonitos.

– Afe! Você está bêbado!


12
Stark

– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.

Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele, mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:

– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.

Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada. Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.

– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.

Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.

– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!

– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.

– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.

De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.

– Espere aí... Que garotos humanos?

– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.

– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.

– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.

Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e ela ficou manuseando-a nervosamente.

– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar disso.

Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho tão intenso que quase os cegava.

– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto. – Agora, conte-me exatamente o que está rolando.

– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre... – ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa fazê-los ir embora e esquecer.

– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.

Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.

– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.

– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.

– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.

– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?

– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não tentando pular o muro.

– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.

– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!

– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!

Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.

– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.

Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.

Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.

– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.

– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.

Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.

– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.

– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.

Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.

– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.

– Por que ela tem pernas e tetas?

Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.

– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.

Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.

– Eu vou perguntar.

– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo 11 .

Zoey

Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta ridícula: adolescentes bêbados.

– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.

– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.

– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.

– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.

– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.

Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia – caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que ele lidasse com isso.

É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.

– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.

– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.

– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. – Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.

– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.

Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).

– Obrigado – Rephaim sorriu.

– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.

– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.

– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama. E você, bonitão?

– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.

– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.

– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.

– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.

– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.

– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.

– O que você quer dizer? – eu quis saber.

– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.

– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.

– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.

– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.

– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.

Eu olhei para as duas Profetisas.

– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.

– Eu também – Stevie Rae concordou.

– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada em Shaunee?

Eu suspirei.

– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.

– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.

– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.

– Você só está perguntando para ser maldosa?

– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.

Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.

– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.

– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.

– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.

– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.

– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.

– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.

Rephaim sorriu.

– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.

– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.

– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.

– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se eu estivesse pelada na escola!

– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa coisa de pássaro pelado ia me estressar.

– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.

– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.

Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.

– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.

– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.

– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.

Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor. Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.

– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.

– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.

– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.

– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.

Aphrodite rosnou como um gato bravo.

Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.

– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.

A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.

– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.

– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.

Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.

– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.

E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.

– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz. Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.

Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim. Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:

– Por que eu deveria acreditar em você?

– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.

– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.

– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.

Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.

– O que você vê?

– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.

Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:

– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.

– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.

– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.

– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.

Nicole a encarou.

– Eu não quero ter nada a ver com ele.

– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.

– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.

– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.

– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.

Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.

– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.

– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?

– Sim.

– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.

Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.

– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.

– No dormitório? – Nicole perguntou.

– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.

– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!

Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.

– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.

– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.

Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.

– Obrigada, Grande Sacerdotisa.

Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:

– Abençoada seja, Nicole.


13
Shaunee

– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília. Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.

– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.

– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.

– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos erros e com as nossas vitórias.

– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.

– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer. Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.

Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.

– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou ficar bem.

– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.

– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.

– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.

– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.

– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.

– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.

– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar perigoso.

– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas, eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira, controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.

– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.

– Então você não vai me responder?

Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele finalmente respondeu:

– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar. – Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.

– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?

Kalona deu um sorriso infinitamente triste.

– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.

– E ainda impede?

– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.

– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.

– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.

– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.

– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.

– Você acha que não merece o perdão dela, não é?

– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.

Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.

– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.

– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?

A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.

Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.

– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.

– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.

Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:

– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?

– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.

Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.

– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.

A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.

– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela, mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando a sua memória, apesar de ela já ter partido.

Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.

– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.

O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.

– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin iria gostar disso.

– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.

– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.

A risada dele foi sarcástica.

– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.

– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde você ainda está.

– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.

Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.

– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!

Stark

– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto, com um cansaço profundo dentro dele.

– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que ela estava lendo.

– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?

Zoey pareceu incomodada com a pergunta.

– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.

– Você não pensou que deveria estar com ela?

– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.

– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.

– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?

Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!

– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.

– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada que Heath estava falando.

O estômago de Stark se contraiu.

– Você quis dizer Aurox.

– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?

Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano 12 , apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.

– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.

– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.

Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.

– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.

– Bem, isso é ótimo.

Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa, que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.

Aurox era Heath. Zoey amava Heath.

E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.

Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.

Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:

– Por que ele estava lá fora?

Stark suspirou.

– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.

– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.

– Como você sabe?

Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:

– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.

– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.

– Onde ele está agora? – ela quis saber.

– Apagado no porão – Stark contou.

– Eu achei que ele não dormia.

– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.

– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?

– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.

– Stark, eu só estava...

– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.

– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.

– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.

Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.

Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.

Stevie Rae

Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo , ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir segura e amada.

Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.

Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.

Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo. Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.

Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.

“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”

Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.

“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”

“Mas você volta para mim!”

“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”

“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”

“GPS?”

“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”

Ele abriu o sorriso.

“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”

Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.

A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.

Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...

A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente. Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.

Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:

– Shaunee, tem algo errado aqui.

Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.

– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!

– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.

A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.

– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.

Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.

– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.

Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.

– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.

– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza. Agora vai fritar por causa disso!

Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.

A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.

Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.

Então de repente tudo ficou muito louco.

Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.

– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.

O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.

Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.

A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.

– Stevie Rae! O que...

Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.

– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!

O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse brutalmente contra a parede.

Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.

Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.

– Aiminhadeusa ! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.

Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:

– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.

Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.

– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora. Eu o vejo no pôr do sol.

Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.

Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.

– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.

Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.

Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.

Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.

– Quer que eu a ajude a deitar na cama?

– Não. Apenas busque ajuda.

Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.


14
Neferet

Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido, enquanto entrava em contato com o passado.

Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.

Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.

O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.

Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia. Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.

Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse. O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.

Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.

Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.

Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.

Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.

– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?

– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.

Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.

Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo do Além.

É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.

Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite. E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander. Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las sem bocejar.

No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções, a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.

Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.

Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.

Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão, eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.

Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que elas levariam para Valhalla.

Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:

– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.

– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela matança.

Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:

– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!

– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.

Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro sob Juramento deveria saber.

Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa. Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.

Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.

Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho Supremo.

E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente e de fazer cada um se render formalmente a ele.

Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander, cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.

Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.

Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.

A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.

Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.

Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos rapidamente.

Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.

Alexander não podia estar mais errado.

Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada. Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.

Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas em que o sol estava mais brilhante no céu.

A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.

Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.

É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto havia escapado de suas obrigações.

Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa, sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.

Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.

Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:

– Salvatore! Onde você está, garoto?

– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.

Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.

– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?

Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:

– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacer­dotisa. Espero ser saudada como tal.

Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.

– O que posso fazer por você, Neferet?

– Ah, você sabe o meu nome.

– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.

– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.

– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?

Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:

– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.

Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.

– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.

– Neferet, o que você...

– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.

Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.

Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.

Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:

– Obedeça-me!

– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.

Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou a brotar do seu corpo de ébano.

– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.

Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.

– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.

Ela ficou feliz em atender o seu pedido.

Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.

– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!

As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.

Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.

Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.

O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.

Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.

Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.

– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.

– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.

– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.

Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!

Artus ficou em silêncio.

Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.

Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.

Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.

“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”

Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.


15
Zoey

– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.

– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.

Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas – estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.

– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.

– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.

– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.

– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.

– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.

Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.

– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.

Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.

– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.

Rephaim levantou os olhos para o seu pai.

– Ela não está consciente. Ela não está acordando.

– Então você precisa forçá-la a beber.

Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.

Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.

– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.

Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.

– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.

Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso... irresistível...

– Zoey! Ajude-a.

Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.

– Co-como? – eu gaguejei.

Thanatos respondeu por ele.

– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.

– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim! – eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.

Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso, bebendo avidamente.

– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.

Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.

– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.

Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.

– Oh-oh – Stark disse.

Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:

– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.

E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo que ia chorar.

– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!

– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.

De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.

– Você me salvou! Quando você era um corvo!

– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.

Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.

– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?

Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.

– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.

– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.

– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.

– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.

– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.

Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:

– Eu vou com ele.

– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.

– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.

– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.

Thanatos assentiu.

– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.

– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.

Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado o dia todo apagado?

– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.

– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a Transformação.

– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do toque dele.

– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.

– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.

– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção. A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.

– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.

– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.

Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –, mas Thanatos falou primeiro.

– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.

Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa. Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.

– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu – a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro, parecendo exausta e torrada.

– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que eles saibam que você vai se recuperar.

– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes. Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos afirmou.

– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.

– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.

– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.

– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.

Aphrodite grunhiu.

Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.

– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.

– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.

– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.

– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.

A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.

– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.

– Você era como ele – eu afirmei.

– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.

– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.

– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.

Eu olhei para Aphrodite.

– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.

– Ela quem? Shaylin ou Nicole?

– As duas – eu disse.

O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.

– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.

– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível, só estou dizendo as coisas como elas são.

Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.

– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.

– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.

– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.

Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.

– Não. Não, ela não foi.

– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.

Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.

– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.

– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.

Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.

Eu não olhei para ele, mas assenti.

– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.

Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.

– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.

– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?

– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.

– Totalmente – eu respondi.

– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.

Eu sorri para Shaunee.

– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na sua classe quando o sino soar às oito.

Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.

Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e úmida.

– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.

– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.

– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.

– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer ser encontrado.

– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.

– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.

– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com ele – Darius disse.

– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.

Eu suspirei.

– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.

– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.

– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.

– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.

– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.

– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.

– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.

Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.

– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.

Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.

– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.

Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.

– Sim, é claro.

– Acho que lhe devo desculpas.

– Pelo quê?

A testa lisa dele se enrugou.

– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.

– Você acha?

– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.

– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas. Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.

Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.

– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.

Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.

– Como você faz isso?

Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.

– Gostar de cerveja?

– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.

– Eu faço isso?

– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.

Aurox pensou por um instante e então falou:

– Sinto muito se te ofendi.

– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.

– Você também me deixa confuso – ele disse.

– Por quê?

– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.

– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.

– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me detesta.

Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.

– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.

– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.

Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.

– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere, isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar naquilo – concluí rapidamente.

– Naquilo?

Eu franzi os olhos para ele.

– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.

– Sinto muito, Zo.

– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.

– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?

Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.

– Eu sempre vou amar Heath.

Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.

– Isso é bom – ele disse.

– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.

– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?

– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.

– Mesmo assim, você amava os dois.

Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.

– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria se eu tentasse fazer isso de novo.

– Stark foi gentil comigo na noite passada.

– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.

– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.

A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?

– Nós podemos tentar.

– Você pode sugar o meu sangue se quiser.

– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?

Ele balançou a cabeça.

– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.

Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:

– O que é essa coisa?

– O amor dele por você, Zo.

 

 

 

 


C O N T I N U A