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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RIOS DE PRATA / R. A. Salvatore
RIOS DE PRATA / R. A. Salvatore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Sobre um trono escuro, num lugar escuro, empoleirava-se o dragão das sombras. Não era uma serpente muito grande, mas a mais abominável de todas. Sua mera presença, trevas; as garras, espadas desgastadas por milhares de matanças; a bocarra, sempre quente com o sangue das vítimas; o hálito negro, desespero.
Um manto negro e lustroso eram suas escamas experimentadas, tão preciosas em sua negritude que brilhavam em cores distintivas, uma aparência cintilante de beleza para um monstro desarmado. Seus sequazes o denominavam Trêmulo Obscuro e prestavam-lhe todas as honras.
Reunindo sua força no decorrer dos séculos, como fazem os dragões, Trêmulo Obscuro mantinha as asas dobradas para trás e não se movia, exceto para engolir um sacrifício ou punir um subalterno insolente. Fizera sua parte para conquistar aquele lugar, desbaratando o grosso do exército anão que permanecera para confrontar os aliados da serpente.
Como o dragão comera bem naquele dia! As peles dos anões eram rijas e cheias de músculos, mas uma bocarra de dentes afiados como navalhas era perfeita para esse tipo de refeição.
E, agora, os inúmeros escravos do dragão faziam todo o trabalho, trazendo-lhe comida e atendendo-lhe todos os desejos. Chegaria o dia em que precisariam do poder do dragão novamente e Trêmulo Obscuro estaria pronto. A imensa pilha de tesouros roubados sob o dragão era o que nutria sua força e, nesse aspecto, Trêmulo Obscuro era insuperável entre os de sua espécie, pois possuía um tesouro além da imaginação do mais rico dos reis.
E uma hoste de sequazes leais, escravos voluntários do dragão das trevas.
O vento frio que dava ao Vale do Vento Gélido seu nome silvava nos ouvidos deles, o lamento incessante a eliminar a conversa casual de que os quatro amigos geralmente desfrutavam. Iam para o oeste, através da tundra estéril, e o vento, como sempre, vinha do leste, detrás deles, e acelerava o ritmo já forte do grupo.
A postura e o ímpeto determinado dos passos refletiam a ânsia de uma demanda recém iniciada, mas a face de cada aventureiro revelava um ponto de vista diferente em relação à jornada.
O anão, Bruenor Martelo de Batalha - o torso inclinado adiante, as pernas atarracadas a marchar sob o corpo e o nariz agudo a se projetar acima da grenha de barba ruiva e oscilante -, seguia na liderança. Parecia petrificado, separado das pernas e da barba; o machado tantas vezes chanfrado era carregado com firmeza em suas mãos nodosas, sempre à frente; o escudo, ornamentado com o brasão da caneca espumante, vinha amarrado firmemente às costas da mochila abarrotada; e a cabeça, adornada com um elmo de chifres várias vezes amassado, jamais se voltava para os lados. Tampouco seus olhos se desviavam do caminho e raramente piscavam. Bruenor iniciara aquela jornada para encontrar a antiga terra natal do clã Martelo de Batalha e, embora compreendesse inteiramente que os salões argênteos de sua infância estivessem a centenas de quilômetros de distância, ele seguia em frente com passos pesados e o fervor de alguém cuja meta a muito esperada se encontra claramente à vista.
Ao lado de Bruenor, o imenso bárbaro também estava ansioso. Wulfgar acompanhava-o sem dificuldade, os grandes passos das pernas compridas igualavam com facilidade o ritmo forte do anão. Havia algo de urgente em sua figura, como um corcel fogoso sob rédeas curtas. Chamas ávidas pela aventura ardiam em seus olhos claros, tão nitidamente como nos de Bruenor, mas, ao contrário do anão, o olhar de Wulfgar não se fixava na estrada retilínea diante deles. Era um rapaz que deixava o lar pela primeira vez para ver o mundo, e ele olhava continuamente ao redor, absorvendo cada imagem e sensação que a paisagem tinha a oferecer.
Viera junto para ajudar seus amigos naquela aventura, mas viera também para expandir os horizontes de seu próprio mundo. Passara a totalidade de sua juventude dentro dos segregantes limites naturais do Vale do Vento Gélido, restringindo suas experiências às antigas tradições de seus companheiros de tribo e aos povos pioneiros de Dez-Burgos.
Havia mais coisas lá fora, Wulfgar sabia, e estava determinado a aprender tanto quanto pudesse.
Drizzt Do'Urden estava menos interessado; a figura envolta num manto a caminhar rápida e desembaraçadamente ao lado de Wulfgar. O passo desenvolto denunciava sua herança élfica, mas as sombras do capuz baixo sugeriam algo mais. Drizzt era um drow, um elfo negro, habitante do mundo subterrâneo desprovido de luz. Passara vários anos na superfície, negando sua herança, mas descobrira que não conseguia escapar à aversão pelo sol inerente ao seu povo.
E, assim, ele se recolhia à sombra de seu capuz, o passo indiferente, até mesmo resignado, pois aquela viagem era meramente uma continuação de sua existência, mais uma aventura numa série perpétua de aventuras. Renunciando ao seu povo da cidade escura de Menzoberranzan, Drizzt Do'Urden tinha voluntariamente adotado uma vida nômade. Ele sabia que jamais seria verdadeiramente aceito na superfície; seu povo era considerado demasiado vil (e com razão) para que até mesmo as comunidades mais tolerantes o acolhessem. A estrada era seu lar agora; estava sempre viajando para se esquivar à angústia inevitável de ser forçado a sair de um lugar que poderia chegar a amar.
Dez-Burgos havia sido um refúgio temporário. O povoado dos ermos mais remotos abrigava uma grande proporção de ladinos e párias e, embora Drizzt não fosse visivelmente bem-vindo, sua reputação como guardião das fronteiras das vilas, adquirida a duras penas, havia lhe angariado certo grau de respeito e tolerância por parte de muitos dos colonos. Bruenor, porém, tinha-o como um amigo de verdade e Drizzt havia voluntariamente seguido o anão naquela viagem, apesar de temer que o tratamento que receberia assim que deixasse a área de influência de sua reputação não seria nada civilizado.
De vez em quando, Drizzt deixava-se ficar para trás uns dez ou doze metros para ver como se saía o quarto membro do grupo. Bufando, Régis, o halfling, era o último membro da trupe (e não por sua escolha), o ventre demasiado abundante para a estrada e as pernas curtas demais para acompanhar os passos contínuos do anão.
Pagando, agora, pelos meses de luxo de que desfrutara no palacete em Brin Shander, Régis amaldiçoava a reviravolta da sorte que o forçara a pegar a estrada. Seu maior amor era o conforto, e ele se esforçava para aperfeiçoar as artes do comer e do dormir com a mesma diligência com que um rapaz de sonhos heróicos brandia a primeira espada. Seus amigos ficaram verdadeiramente surpresos quando ele se juntou ao grupo, mas também felizes por tê-lo como companhia, e até mesmo Bruenor, tão desesperado para rever sua antiga terra natal, teve o cuidado de não ditar o ritmo muito além da capacidade de Régis em acompanhá-lo.
Sem dúvida, Régis se forçava até os limites de sua resistência, e sem as costumeiras reclamações. Ao contrário de seus companheiros, porém, cujos olhos se dirigiam para a estrada adiante, ele continuava a olhar de relance por sobre o ombro, em direção a Dez-Burgos e ao lar que tão misteriosamente abandonara para tomar parte na jornada.
Era com certa preocupação que Drizzt notava aquilo.
Régis estava fugindo de alguma coisa.
Os companheiros continuaram seguindo para oeste durante vários dias. Ao sul, os picos nevados das montanhas pontiagudas, a Espinha do Mundo, corriam paralelamente a seu trajeto. Aquela cordilheira marcava o limite sul do Vale do Vento Gélido, e os companheiros se mantinham alertas, esperando pelo fim da mesma. Quando os picos mais ocidentais desaparecessem e dessem lugar ao terreno plano, eles se dirigiriam para o sul, descendo o desfiladeiro entre as montanhas e o mar, deixariam totalmente o vale e percorreriam os últimos cento e cinqüenta quilômetros até a cidade costeira de Luskan.
De volta à trilha a cada manhã, antes que o sol nascesse às suas costas, eles prosseguiam até encontrar as últimas linhas róseas do crepúsculo, quando então paravam para acampar na última oportunidade antes de o vento frio se revestir de seu glacial ar noturno.
Então, estavam de volta à estrada mais uma vez, antes da aurora, cada um deles a correr confinado na solidão de suas próprias perspectivas e de seus próprios temores.
Uma jornada silenciosa, a não ser pelo murmúrio incessante do vento leste.

 

 

 



LIVRO UM
BUSCAS

Rezo para que nunca se acabem os dragões do mundo. Digo isso com toda a sinceridade, embora tenha tomado parte na morte de uma das grandes serpentes. Pois
o dragão é o inimigo quintessencial, o maior dos adversários, o epítome inconquistável da devastação. O dragão, acima de todas as outras criaturas - mesmo dos demônios
e diabos -, evoca imagens de esplendor sombrio, da grande fera enrodilhada e adormecida sobre o maior dos tesouros. São o teste supremo do herói e o medo supremo
da criança. São mais velhos que os elfos e mais afeitos à terra que os anões. Os grandes dragões representam a besta sobrenatural, o elemento fundamental da besta,
aquela parte mais sombria de nossa imaginação.
Os magos não lhes conhecem as origens, apesar de acreditarem que um grande mago, um deus dos magos, deve ter desempenhado algum papel na criação dessas feras.
Os elfos, com suas longas fábulas que explicam a criação de cada aspecto do mundo, têm muitas histórias antigas sobre as origens dos dragões, mas admitem, reservadamente,
que não fazem realmente a menor idéia de como os dragões vieram a existir.
Minha própria crença é, de longe, a mais simples e, contudo, a mais complicada. Acredito que os dragões apareceram no mundo imediatamente após a criação da
primeira raça pensante. Não dou crédito a nenhum deus ou mago por essa criação, e sim a mais básica imaginação - urdida a partir de medos invisíveis - desses primeiros
mortais racionais.
Criamos os dragões como criamos os deuses, porque precisamos deles; porque, em algum lugar no fundo de nossos corações, reconhecemos que um mundo sem dragões
é um mundo no qual não vale a pena viver.
Há tantas pessoas na terra que querem uma resposta, uma resposta definitiva; para tudo na vida e mesmo para tudo o que possa haver depois da vida. Estudam
e testam, e porque esses poucos encontram as respostas para algumas perguntas simples, supõem que deve haver respostas para todas as perguntas. Como era o mundo
antes de existirem as pessoas? Será que nada existia a não ser trevas antes do sol e das estrelas? Será que existia alguma coisa? O que éramos nós, cada um de nós,
antes de nascermos? E o que - o mais importante de tudo - seremos após morrermos?
Por compaixão, espero que esses questionadores nunca encontrem o que procuram.
Um autoproclamado profeta se apresentou em Dez-Burgos negando a possibilidade de uma pós-vida, alegando que as pessoas que morreram e foram ressuscitadas
pelos clérigos na verdade jamais haviam morrido e que suas alegações sobre experiências além-túmulo eram um truque elaborado de seus próprios corações, um ardil
para facilitar o caminho em direção ao nada. Pois isso é tudo o que havia, dizia ele, um vazio, um nada.
Jamais em minha vida ouvi falar de alguém que implorasse tão desesperadamente para que provassem que ele estava errado.
Pois o que nos restará se não sobrar nenhum mistério? Que esperança poderemos encontrar se soubermos todas as respostas?
O que é isso dentro de nós, então, que quer negar tão desesperadamente a magia e desvendar o mistério? Medo, eu presumo, baseado nas muitas incertezas da
vida e na incerteza maior ainda da morte. Ponha esses medos de lado, digo eu, e viva livre deles, pois, se dermos apenas um passo para trás e observarmos a verdade
do mundo, descobriremos que, de fato, há magia ao nosso redor, inexplicável por meio de números e fórmulas. O que é, se não mágica, a paixão evocada pelo discurso
arrebatador do comandante antes da batalha desesperada? O que é, se não mágica, a paz que uma criança encontra nos braços da mãe? O que é o amor, se não mágica?
Não, eu não gostaria de viver num mundo sem dragões, assim como não gostaria de viver num mundo sem magia, pois esse é um mundo sem mistério e um mundo sem
fé.
E esse, temo eu, seria o truque mais cruel de todos para qualquer ser consciente e racional.

1. UM PUNHAL NAS COSTAS

Ele trazia o manto fechado e bem junto ao corpo, apesar da pouca luz que entrava pelas janelas acortinadas, pois essa era sua existência, dissimulada e solitária.
A trilha do assassino.
Enquanto outras pessoas se ocupavam das próprias vidas, deleitando-se nos prazeres da luz do sol e na bem-vinda visibilidade de seus vizinhos, Artemis Entreri
ficava nas sombras, as órbitas dilatadas de seus olhos focalizadas na senda estreita que devia tomar para completar sua mais recente missão.
Ele era de fato um profissional, talvez o melhor em todo o território dos reinos em seu ofício atroz, e quando farejava o rastro da presa, a vítima jamais
escapava. Portanto, o assassino não se incomodou com a casa vazia que encontrou em Brin Shander, a cidade principal dos dez povoados nos ermos do Vale do Vento Gélido.
Entreri suspeitara que o halfling havia fugido de Dez-Burgos. Mas não importava; se aquele fosse realmente o mesmo halfling que ele vinha seguindo desde Calimporto,
mais de mil e quinhentos quilômetros ao sul, o progresso que fizera superava suas expectativas. Seu alvo não tinha mais do que duas semanas de vantagem e o rastro
estaria bem fresco.
Entreri percorreu a casa calma e silenciosamente, procurando pistas sobre a vida que o halfling ali levara e que lhe dariam a vantagem quando do confronto
inevitável. A desordem o saudou em cada sala: o halfling partira às pressas, provavelmente ciente de que o assassino estava fechando o cerco.
Entreri considerou aquilo um bom sinal, aumentando ainda mais suas suspeitas de que esse halfling, Régis, era o mesmo Régis que servira ao Paxá Pûk, anos
atrás, na distante cidade do sul.
O assassino sorriu maldosamente ao pensar que o halfling sabia que estava sendo acossado, o que aumentava o desafio da caçada, pois Entreri media sua perícia
de caçador contra a habilidade de se esconder da futura vítima. Mas Entreri sabia que o resultado final era previsível, pois as pessoas assustadas invariavelmente
cometiam um erro fatal.
O assassino encontrou o que procurava numa gaveta de escrivaninha no quarto principal. Fugindo às pressas, Régis negligenciara as precauções para ocultar
sua verdadeira identidade. Entreri segurou o pequeno anel diante de seus olhos brilhantes, estudando a inscrição que claramente identificava Régis como um membro
da guilda de ladrões do Paxá Pûk em Calimporto. Entreri cerrou o punho em volta do sinete e um sorriso maldoso se espalhou por seu rosto.
- Encontrei você, ladrãozinho - ele riu para o vazio da sala. - Seu destino está selado. Não há para onde fugir!
A mudança abrupta em sua expressão revelou seu estado de prontidão assim que o som de uma chave na porta da frente do palacete ecoou pelo corredor da grande
escadaria. Deixou cair o anel em sua escarcela e esgueirou-se, silencioso como a morte, até as sombras dos pilares superiores do pesado corrimão da escada.
As grandes portas duplas se abriram e entraram um homem e uma moça, vindos do pórtico, à frente de dois anões. Entreri conhecia o homem: Cássio, o representante
de Brin Shander. Ali fora sua casa outrora, mas ele havia renunciado a ela vários meses antes em favor de Régis, depois das ações heróicas do halfling na batalha
da vila contra o mago maligno, Akar Kessell, e seus sequazes goblins.
Entreri também vira a outra humana antes, embora ainda não tivesse descoberto a ligação entre ela e Régis. Mulheres bonitas eram uma raridade naquela colônia
remota, e a moça era, de fato, a exceção. Brilhantes cachos castanho-avermelhados dançavam alegremente em torno de seus ombros; a luz intensa dos olhos azul-escuros
era capaz de aprisionar irremediavelmente qualquer homem em suas profundezas.
O nome dela, o assassino descobrira, era Cattiebrie. Ela vivia com os anões no vale ao norte da cidade, mais especificamente com o líder do clã, Bruenor,
que a adotara como sua própria filha uns doze anos antes, quando um ataque-surpresa dos goblins a deixara órfã.
Aquele encontro poderia se mostrar valioso, refletiu Entreri. Junto aos postes do corrimão, prestou atenção para ouvir a discussão lá embaixo.
- Só faz uma semana que ele foi embora! - argumentava Cattiebrie.
- Uma semana sem notícias - devolveu Cássio, obviamente contrariado. - E minha linda casa vazia e desprotegida. Ora, a porta da frente estava destrancada
quando passei por aqui alguns dias atrás!
- 'Cê deu a casa pro Régis - Cattiebrie lembrou o homem.
- Emprestei! - vociferou Cássio, embora, na verdade, a casa tivesse sido de fato um presente. O representante logo se arrependera de entregar a Régis
a chave daquele palácio, a habitação mais grandiosa ao norte de Mirabar. Em retrospectiva, Cássio compreendeu que fora arrebatado pelo ardor da espantosa vitória
sobre os goblins e desconfiava que Régis havia intensificado um pouco mais as emoções, usando os supostos poderes hipnóticos do pingente de rubi. Como outros que
haviam sido tapeados pelo persuasivo halfling, Cássio chegara a um panorama muito diferente dos acontecimentos, um panorama que pintava Régis desfavoravelmente.
- Não importa que nome 'cê dê a isso - cedeu Cattiebrie -, 'cê não devia se afobar tanto prá concluir que Régis abandonou a casa.
O rosto do representante ficou vermelho de fúria.
- Tudo fora ainda hoje! - exigiu ele. - Você tem a minha lista. Quero todos os pertences do halfling fora de minha casa! Tudo o que restar quando eu
voltar amanhã há de se tornar meu por direito adquirido! E vou avisando: haverá pesadas compensações se qualquer parte da minha propriedade estiver faltando ou tiver
sido danificada! - Ele girou sobre os calcanhares e saiu tempestuosamente portas afora.
- 'Tá bem irritado esse aí! - riu Arnês Mallot, um dos anões. - Nunca vi ninguém como Régis prá perder a lealdade dos amigos e ganhar o ódio dos velhos
companheiros.
Cattiebrie assentiu, concordando com a observação de Arnês. Ela sabia que Régis brincava com encantos mágicos e imaginou que os relacionamentos paradoxais
do halfling com os que o cercavam fossem um infeliz efeito colateral de sua própria leviandade.
- Cê acha que ele foi com Drizzt e Bruenor? - perguntou Arnês. Lá em cima, Entreri mudou de posição, ansioso.
- Sem dúvida - respondeu Cattiebrie. - Pediram o inverno inteiro prá ele se juntar à busca pelo Salão de Mitral e, com certeza, o fato de Wulfgar estar
indo junto só fez aumentar a pressão.
- Então, o nanico 'tá a meio caminho de Luskan, se não mais longe - raciocinou Arnês. - E Cássio tem razão em querer a casa de volta.
- Então, vamos começar a empacotar - disse Cattiebrie. - Cássio já tem coisas demais sem precisar juntar também os bens de Régis ao seu tesouro.
Entreri se recostou ao corrimão. O nome do Salão de Mitral lhe era desconhecido, mas ele conhecia bem o caminho para Luskan. Sorriu novamente, imaginando
se conseguiria alcançá-los antes que eles chegassem à cidade portuária.
Primeiro, porém, sabia que ainda poderia haver alguma informação valiosa a ser obtida ali. Cattiebrie e os anões se puseram a reunir os pertences do halfling
e, à medida que passavam de uma sala a outra, a sombra negra de Artemis Entreri, silenciosa como a morte, pairava sobre eles. Jamais suspeitaram de sua presença,
jamais teriam adivinhado que a ondulação suave nas cortinas era mais do que uma corrente de ar entrando pelas frestas da janela, ou que a sombra atrás da cadeira
era desproporcionalmente longa.
Ele conseguiu ficar perto o bastante para ouvir quase toda a conversa, e Cattiebrie e os anões falaram de pouca coisa além dos quatro aventureiros e da viagem
até o Salão de Mitral. Mas os esforços de Entreri de pouco lhe valeram. Já sabia dos afamados companheiros do halfling; todos em Dez-Burgos falavam deles com freqüência:
de Drizzt Do'Urden, o elfo drow renegado, que abandonara sua gente de pele escura nas entranhas dos Reinos e vagava pelas fronteiras de Dez-Burgos como um guardião
solitário contra as intromissões dos ermos do Vale do Vento Gélido; de Bruenor Martelo de Batalha, o líder valente do clã de anões que vivia no vale perto do Sepulcro
de Kelvin; e, principalmente, de Wulfgar, o poderoso bárbaro capturado e criado por Bruenor até a idade adulta, que havia retornado com as tribos selvagens do vale
para defender Dez-Burgos contra o exército de goblins e depois dera início a uma trégua entre todos os povos do Vale do Vento Gélido. Uma barganha que salvara -
e prometera enriquecer - as vidas de todos os envolvidos.
- Parece que você se cercou de aliados formidáveis, halfling - refletiu Entreri, recostando-se ao espaldar de uma grande cadeira enquanto Cattiebrie
e os anões passavam a uma sala contígua. - Serão de pouca ajuda. Você é meu!
Cattiebrie e os anões trabalharam durante quase uma hora, enchendo dois sacos grandes, principalmente com roupas. Cattiebrie estava estarrecida com a quantidade
de bens que Régis havia reunido desde seu suposto ato de heroísmo contra Kessell e os goblins - presentes, em sua maioria, de cidadãos agradecidos. Bem ciente do
amor do halfling pelo conforto, ela não conseguia entender o que dera nele para fugir pela estrada atrás dos demais. Mas o que realmente a espantava era o fato de
Régis não ter contratado carregadores para levar consigo ao menos alguns de seus pertences. E quanto mais tesouros ela descobria ao percorrer o palácio, mais a incomodava
todo aquele cenário de pressa e ímpeto. Não era nada típico de Régis. Tinha de haver algum outro fator, algum elemento perdido, que ela ainda não havia considerado.
- Bem, a gente já tem mais do que pode carregar, e é a maior parte das coisas de qualquer maneira! - declarou Arnês, levando um dos sacos ao ombro
robusto. - Quer saber, deixa o resto pro Cássio separar!
- Não vou dar a Cássio o prazer de reivindicar nenhuma dessas coisas - retorquiu Cattiebrie. - Pode ser que a gente ainda encontre outros objetos de
valor por aí. Vocês dois, levem os sacos de volta prós nossos quartos na estalagem. Vou terminar o trabalho por aqui.
- Ah, 'cê 'tá sendo boazinha com esse Cássio - resmungou Arnês. - Bruenor acertou quando disse que ele era um homem que gosta demais de contar o que
é seu!
- Seja justo, Arnês Mallot - retorquiu Cattiebrie, apesar de o sorriso de concordância desmentir a aspereza de seu tom de voz. - Cássio serviu bem
às vilas na guerra e tem sido um bom líder para o povo de Brin Shander. 'Cê sabe tão bem quanto eu que Régis tem o dom de deixar os gatos com os pêlos eriçados!
Arnês deu uma risadinha, concordando.
- Apesar de todos os jeitinhos que o nanico tem prá conseguir o que quer, ele deixou uma ou duas fileiras de vítimas irritadas! - Ele bateu no ombro
do outro anão, e os dois se dirigiram à porta principal.
- Não se atrase, menina - gritou Arnês para Cattiebrie. - Vamos voltar pras minas. Amanhã, no máximo!
- 'Cê reclama demais, Arnês Mallot - disse Cattiebrie, rindo.
Entreri considerou a última troca de palavras e mais uma vez um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ele conhecia bem o rastro dos encantos mágicos. As "vítimas
irritadas" que Arnês mencionara descreviam exatamente as pessoas que o Paxá Pûk havia tapeado em Calimporto. Pessoas encantadas pelo pingente de rubi.
As portas duplas se fecharam com um estrondo. Cattiebrie ficou sozinha no palacete - ou assim ela pensou.
Ela ainda refletia sobre o atípico desaparecimento de Régis. Suas suspeitas persistentes de que algo estava errado, de que faltava uma peça do quebra-cabeça,
começaram a alimentar dentro dela a sensação de que algo também estava errado ali na casa.
Repentinamente, Cattiebrie passou a notar cada ruído e cada sombra ao seu redor. O "tic-tac" de um relógio de pêndulo. O frufru das cortinas. O ruído de um
camundongo correndo por dentro das paredes de madeira.
Seus olhos dardejaram de volta às cortinas, ainda tremendo ligeiramente devido ao último movimento. Poderia ter sido uma corrente de ar através de uma fresta
na janela, mas a mulher alerta desconfiava de outra coisa. Agachando-se, num reflexo, e tentando alcançar o punhal em seu quadril, ela se lançou em direção à porta
aberta ao lado das cortinas.
Entreri movera-se rapidamente. Desconfiando que ainda havia mais a aprender com Cattiebrie, e nada disposto a deixar passar a oportunidade oferecida pela
saída dos anões, ele havia se esgueirado até a posição mais favorável para um ataque e agora esperava pacientemente no topo do estreito poleiro oferecido pela porta
aberta, equilibrado ali com a mesma facilidade com que um gato caminha sobre o peitoril da janela. Atentou para a aproximação da moça, o punhal a girar casualmente
em sua mão.
Cattiebrie sentiu o perigo assim que alcançou a porta e viu a forma escura caindo ao seu lado. Mas, por mais rápidas que fossem suas reações, seu próprio
punhal não deixara nem a metade da bainha antes que os dedos delgados de uma mão fria tivessem se fechado sobre sua boca, reprimindo um grito, e a lâmina afiada
de um punhal ajaezado houvesse marcado uma linha fina em sua garganta.
Estava atordoada e estarrecida. Nunca vira um homem se mover tão rápido, e a precisão mortífera do ataque de Entreri a amedrontou. Uma súbita tensão nos músculos
dele mostrou que, se ela persistisse em sacar a arma, estaria morta muito antes de poder usá-la. Largando o cabo do punhal, ela não fez nenhum outro gesto de resistência.
A força do assassino também a surpreendeu quando ele a ergueu facilmente até uma cadeira. Era um homem pequeno, esguio como um elfo, mal e mal da mesma altura
que ela, mas cada músculo de sua compleição compacta se achava na melhor forma para o combate. Sua própria presença exsudava uma aura de força e uma confiança inabalável.
Isso também amedrontava Cattiebrie porque não se tratava da arrogância estouvada de um jovem exuberante, mas do ar sereno de superioridade de alguém que presenciara
mil batalhas e nunca fora derrotado.
Os olhos de Cattiebrie jamais se desviaram do rosto de Entreri enquanto ele rapidamente a amarrava à cadeira. Os traços angulosos, os malares notáveis e o
queixo pronunciado eram apenas acentuados pelo corte reto de seu cabelo negro e lustroso. A sombra de barba a lhe escurecer o rosto dava a impressão que, não importando
quantas vezes ele se barbeasse, jamais desapareceria. Longe de ser desmazelado, porém, tudo a respeito daquele homem denotava controle. Cattiebrie poderia até mesmo
tê-lo considerado bonito, não fossem os olhos.
O cinza daqueles olhos não tinha brilho. Sem vida, destituídos de qualquer sinal de compaixão ou humanidade, caracterizavam aquele homem como um instrumento
de morte e nada mais.
- O que 'cê quer de mim? - perguntou Cattiebrie, assim que reuniu a coragem para tanto.
Entreri respondeu com um tapa pungente no rosto.
- O pingente de rubi! - exigiu ele, de repente. - O halfling ainda tem o pingente de rubi?
Cattiebrie lutou para reprimir as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Estava desorientada e surpresa e não conseguiu responder imediatamente à pergunta do
homem.
O punhal ajaezado cintilou diante de seus olhos e lentamente traçou a circunferência de seu rosto.
- Não tenho muito tempo - declarou Entreri categoricamente - Você vai me dizer o que preciso saber. Quanto mais demorar a responder, mais dor sentirá.
Suas palavras foram calmas e pronunciadas com honestidade.
Cattiebrie, transformada numa mulher forte sob a tutela de Bruenor, flagrou-se amedrontada. Ela enfrentara e derrotara goblins antes, até mesmo um horrível
troll certa vez, mas esse assassino imperturbável a aterrorizava. Ela tentou responder, mas o tremor do queixo não deixava as palavras se formarem.
O punhal cintilou novamente.
- No pescoço de Régis! - foi o grito agudo de Cattiebrie, uma lágrima a traçar uma linha solitária pelas suas faces.
Entreri assentiu e sorriu de leve.
- Ele está com o elfo negro, o anão e o bárbaro. - disse, corriqueiramente. - E estão na estrada para Luskan. E de lá para um lugar chamado Salão de
Mitral. Fale-me sobre o Salão de Mitral, minha cara menina. - Ele raspou a lâmina em sua própria face e o fio aguçado removeu um pequeno trecho de barba. - Onde
fica?
Cattiebrie se deu conta que sua incapacidade de responder provavelmente seria seu fim.
- E... eu não sei - ela balbuciou audaciosamente, readquirindo certo grau da disciplina que Bruenor lhe ensinara, apesar de seus olhos jamais abandonarem
o brilho da lâmina letal.
- Pena - respondeu Entreri. - Um rostinho tão bonito...
- Por favor - disse Cattiebrie com toda a calma possível diante do punhal que se movia em sua direção. - Ninguém sabe! Nem mesmo Bruenor! Encontrar
o lugar é a missão dele.
A lâmina se deteve subitamente e Entreri virou a cabeça para o lado, os olhos apertados e todos os músculos tensos, em estado de alerta.
Cattiebrie não ouvira o giro da maçaneta da porta, mas a voz grave de Arnês Mallot ecoando pelo corredor explicou as ações do assassino:
- Hã, cadê você, menina?
Cattiebrie tentou berrar "Fujam!" - e que se danasse a própria vida -, mas o golpe rápido de Entreri com as costas da mão a atordoou e expeliu a palavra como
um grunhido indecifrável.
A cabeça a pender de um lado a outro, ela apenas conseguiu focalizar a visão quando Arnês e Grollo, os machados nas mãos, irromperam sala adentro. Entreri
estava preparado para recebê-los, o punhal ajaezado numa das mãos e um sabre na outra.
Por um instante, Cattiebrie se encheu de entusiasmo. Os anões de Dez-Burgos eram um batalhão ferrenho de guerreiros empedernidos e, entre os membros do clã,
a perícia de Arnês só perdia para a de Bruenor.
Então, ela se lembrou de quem eles enfrentariam e, apesar da aparente vantagem dos anões, suas esperanças foram varridas por uma onda de conclusões irrefutáveis.
Ela testemunhara a indistinção dos movimentos do assassino, a precisão extraordinária de suas cutiladas.
A revulsão a brotar em sua garganta, ela sequer foi capaz de emitir um aviso ofegante para que os anões fugissem.
Mesmo se conhecessem a profundidade do horror no homem diante deles, Arnês e Grollo não teriam se esquivado da luta. A fúria cega o guerreiro anão para qualquer
consideração por sua segurança pessoal e, quando aqueles dois viram sua amada Cattiebrie amarrada à cadeira, a investida contra Entreri veio por instinto.
Estimulados por uma fúria desenfreada, seus primeiros ataques vociferaram com toda a força. Por outro lado, Entreri começou vagarosamente, encontrando seu
ritmo e permitindo que a pura fluidez de seus movimentos alimentasse o próprio impulso. Às vezes, ele mal parecia capaz de aparar ou evitar as pancadas ferozes.
Algumas erravam o alvo por pouco, e esses quase acertos incitavam Arnês e Grollo ainda mais.
Mas, mesmo com seus amigos se impondo no ataque, Cattiebrie compreendeu que estavam em dificuldades. As mãos de Entreri pareciam conversar uma com a outra,
tão perfeito era o complemento dos movimentos de ambas à medida que posicionavam o punhal ajaezado e o sabre. Os movimentos sincrônicos de seus pés mantinham-no
totalmente equilibrado ao longo da escaramuça. Era uma dança de esquivas, paradas e contragolpes.
Era uma dança de morte.
Cattiebrie vira aquilo antes, os métodos que denunciavam o melhor espadachim de todo o Vale do Vento Gélido. A comparação com Drizzt Do'Urden era inevitável;
a graça e os movimentos de ambos eram tão semelhantes e cada parte de seus corpos funcionava em perfeita harmonia.
Mas eles continuavam consideravelmente diferentes, uma polaridade de princípios morais que alterava sutilmente a aura da dança.
O ranger drow em batalha era um instrumento de beleza a se contemplar, um atleta perfeito que se dedicava com fervor incomparável ao caminho da integridade
de que escolhera trilhar. Mas Entreri era meramente aterrorizante, um assassino desapaixonado que se livrava insensivelmente dos obstáculos em seu caminho.
O ímpeto inicial do ataque dos anões agora começava a diminuir e tanto Arnês quanto Grollo traziam estupefação no olhar por ainda não estar o chão rubro com
o sangue do oponente. Mas, enquanto seus ataques perdiam velocidade, o impulso de Entreri continuava a crescer. Suas armas eram uma mancha indistinta e cada estocada
era seguida por duas outras que faziam os anões balançar.
Desembaraçados eram seus movimentos. Infindável era sua energia.
Arnês e Grollo mantinham uma postura exclusivamente defensiva, mas, mesmo com todos os seus esforços dedicados ao bloqueio, todos na sala sabiam que era apenas
uma questão de tempo antes que a lâmina assassina lhes atravessasse a guarda.
Cattiebrie não viu o golpe fatal, mas enxergou vividamente a linha brilhante de sangue que apareceu de um lado a outro da garganta de Grollo. O anão continuou
lutando por alguns instantes, alheio à causa de sua incapacidade de recuperar o fôlego. Então, surpreso, Grollo caiu de joelhos, levou às mãos à garganta e, gorgolejando,
penetrou as trevas da morte.
A fúria incitou Arnês a esquecer a exaustão. Seu machado distribuía talhos e cutiladas desvairadamente, clamando por vingança.
Entreri brincou com ele, chegando a prosseguir com a charada a ponto de golpeá-lo na têmpora com a parte chata do sabre.
Ultrajado, ofendido e completamente ciente de que fora superado, Arnês lançou-se numa última e suicida arremetida, esperando levar o assassino com ele.
Entreri desviou-se da desesperada investida com um passo para o lado e uma gargalhada divertida e pôs fim à luta, enterrou o punhal ajaezado no peito de Arnês
e completou com um golpe poderoso do sabre quando o anão passou cambaleando por ele.
Horrorizada demais para chorar, horrorizada demais para gritar, Cattiebrie observou incapaz de reagir Entreri retirar o punhal do peito de Arnês. Certa de
sua morte iminente, ela fechou os olhos quando o punhal veio em sua direção, sentiu o metal, aquecido pelo sangue do anão, rente à sua garganta.
E, em seguida, o raspar provocador do fio da arma contra sua pele macia e vulnerável quando Entreri lentamente girou a lâmina na mão.
Torturante. A promessa, a dança da morte.
Então, acabou. Cattiebrie abriu os olhos exatamente quando a pequena arma voltou à sua bainha no quadril do assassino. Ele se afastara um passo.
- Veja bem - ofereceu ele, como explicação por sua misericórdia -, eu mato apenas os que se opõem a mim. Talvez, então, três de seus amigos na estrada
para Luskan escapem ao fio da espada. Quero apenas o halfling.
Cattiebrie recusou-se a se render ao terror que ele evocava. Manteve a voz firme e prometeu, com frieza:
- Você os subestima. Lutarão contra você. Com serena confiança, Entreri respondeu:
- Então, eles também vão morrer.
Cattiebrie não poderia vencer uma disputa de fibra com o assassino impassível. Sua única resposta para ele era a rebeldia. Cuspiu nele, sem temer as conseqüências.
Ele retorquiu com um simples e pungente tapa com as costas da mão. Os olhos dela se anuviaram com a dor e as lágrimas que brotavam, e Cattiebrie mergulhou
nas trevas. Mas, ao cair inconsciente, ainda escutou durante alguns segundos a risada fria e cruel, que foi desaparecendo enquanto o assassino deixava a casa.
Torturante. A promessa da morte.

2. A CIDADE DAS VELAS

- B em, lá está ela, rapaz, a Cidade das Velas - disse Bruenor a Wulfgar enquanto os dois olhavam para Luskan, lá embaixo, de um pequeno outeiro alguns quilômetros
ao norte da cidade.
Wulfgar apreciou a vista com um suspiro profundo de admiração. Luskan abrigava mais de quinze mil almas, era pequena se comparada às imensas cidades do sul
e à sua vizinha mais próxima, Águas Profundas, algumas centenas de quilômetros descendo a costa. Mas, para o jovem bárbaro, que passara todos os seus dezoito anos
entre as tribos nômades e as pequenas aldeias de Dez-Burgos, o porto marítimo fortificado parecia realmente grande. Uma muralha encerrava Luskan, com torres de vigia
estrategicamente espaçadas a intervalos variados. Mesmo à distância, Wulfgar distinguia as formas escuras de muitos soldados a percorrer os parapeitos, as pontas
das lanças a brilhar sob a luz do novo dia.
- Não é um convite promissor - notou Wulfgar.
- Luskan não acolhe prontamente os visitantes - disse Drizzt, que aparecera atrás de seus dois amigos. - Podem abrir os portões para mercadores, mas
geralmente negam passagem aos viajantes comuns.
- Nosso primeiro contato está lá - grunhiu Bruenor. - E tenho a intenção de entrar!
Drizzt assentiu e não insistiu mais na discussão. Ele evitara Luskan em sua viagem original até Dez-Burgos. Os habitantes da cidade, em sua maioria humanos,
consideravam rostos diferentes com desdém. Costumavam negar passagem até mesmo aos elfos da superfície e aos anões. Drizzt desconfiava que os guardas fariam mais
a um elfo drow do que simplesmente colocá-lo para fora.
- Acenda a fogueira do desjejum - continuou Bruenor, o tom zangado a refletir sua determinação de que nada o desviaria de seu curso. - A gente vai
levantar acampamento cedo e chegar aos portões antes do meio-dia. Cadê o maldito do Ronca-bucho?
Drizzt olhou por sobre o ombro, na direção do acampamento.
- Dormindo - respondeu, embora a pergunta de Bruenor fosse total mente retórica. Desde que os companheiros haviam partido de Dez-Burgos Régis era o
primeiro a dormir e o último a acordar (e nunca sem auxílio).
- Bom, dá um chute nele! - ordenou Bruenor. Ele se virou na direção do acampamento, mas Drizzt o segurou pelo ombro.
- Deixe o halfling dormir - sugeriu o drow. - Talvez seja melhor chegarmos ao portão de Luskan na luz menos reveladora do crepúsculo.
O pedido de Drizzt deixou Bruenor confuso apenas por um instante até observar mais de perto o rosto taciturno do drow e reconhecer a trepidação naqueles olhos.
Os dois haviam se tornado amigos tão íntimos naqueles anos que Bruenor normalmente esquecia que Drizzt era um pária. Quanto mais se afastassem de Dez-Burgos, onde
Drizzt era conhecido, mais ele seria julgado pela cor de sua pele e pela reputação de seu povo.
- 'Tá, deixa ele dormir - cedeu Bruenor. - Pode ser que um pouco de sono não me fizesse mal também!
Levantaram acampamento ao final da manhã e estabeleceram um ritmo sossegado, apenas para descobrir, mais tarde, que haviam estimado mal a distância até a
cidade. Passava bastante do ocaso e já se iam as primeiras horas de escuridão quando eles finalmente chegaram ao portão norte da cidade.
A estrutura era tão pouco acolhedora quanto a reputação de Luskan: uma única porta ferrada, instalada na muralha de pedra entre duas torres baixas e aprumadas,
encontrava-se hermeticamente cerrada diante deles. Umas doze cabeças cobertas por peles se projetaram do parapeito acima do portão, e os companheiros sentiram outros
olhos - e arcos, provavelmente - assestados sobre eles desde as trevas no alto das torres.
- Quem são vocês que batem aos portões de Luskan? - veio uma voz da muralha.
- Viajantes do norte - respondeu Bruenor. - Um bando cansado vindo da distante Dez-Burgos, no Vale do Vento Gélido!
- O portão foi fechado ao pôr do sol - replicou a voz. - Vão embora!
- Seu filho de um gnoll pelado! - resmungou Bruenor a meia-voz. Ele bateu a acha na palma da mão como se quisesse derrubar a porta a machadadas.
Drizzt pousou a mão apaziguadora sobre o ombro do anão, pois os ouvidos sensíveis haviam reconhecido o estalido claro e distinto de uma manivela de besta.
Então, Régis inesperadamente assumiu o controle da situação. Endireitou as calças, que haviam escorregado sob a barriga protuberante, e enganchou os polegares
no cinto, tentando parecer algo importante. Atirando os ombros para trás, colocou-se à frente de seus companheiros.
- Seu nome, meu bom senhor? - gritou para o soldado sobre a muralha.
- Sou o Guardião da Noite do Portão Norte. Isso é tudo o que você precisa saber! - foi a resposta ríspida. - E quem...
- Régis. Primeiro Cidadão de Brin Shander. Sem dúvida, você já ouviu meu nome ou viu minhas esculturas.
Os companheiros ouviram sussurros lá em cima, depois uma pausa.
- Vimos o artesanato de um halfling de Dez-Burgos. É você?
- Herói da guerra dos goblins e mestre entalhador - declarou Régis, com uma reverência. - Os representantes de Dez-Burgos não ficarão contentes em
saber que fui abandonado ao frio da noite diante do portão de nosso principal parceiro comercial.
De novo ae sussurros, depois um silêncio mais prolongado. Dali a pouco, os quatro ouviram um som áspero atrás da porta - uma grade levadiça sendo erguida,
Régis sabia - e então o estrondo dos ferrolhos sendo atirados ao chão. O halfling olhou por sobre o ombro, para seus amigos surpresos, e deu um sorriso torto.
- Diplomacia, meu mal-humorado amigo anão - riu ele.
A porta se abriu apenas um pouco e dois homens se esgueiraram para fora, desarmados mas cautelosos. Ficou bastante óbvio que estavam bem protegidos desde
a muralha. Soldados de rostos soturnos se acotovelavam ao longo dos parapeitos, monitorando cada movimento dos estrangeiros com as miras das bestas.
- Sou Jierdan - disse o mais atarracado dos dois homens, embora fosse difícil julgar-lhe o tamanho exato devido às muitas camadas de peles que usava.
- E eu sou o Guardião da Noite - disse o outro. - Mostrem-me o que trouxeram para negociar.
- Negociar? - repetiu Bruenor, furioso. - Quem foi que disse algo sobre negociar? - Ele bateu o machado na palma da mão mais uma vez, fazendo os soldados
lá em cima trocarem de pé ansiosamente. - Isto parece a arma de um mercador nojento?
Tanto Régis quanto Drizzt fizeram menção de acalmar o anão, mas Wulfgar, tão tenso quanto Bruenor, permaneceu de lado, os braços descomunais cruzados diante
dele e o olhar austero a transfixar o porteiro insolente.
Os dois soldados recuaram, na defensiva, e o Guardião da Noite falou novamente, dessa vez à beira da fúria.
- Primeiro Cidadão - ele indagou Régis -, por que bate à nossa porta?
Régis colocou-se à frente de Bruenor e equilibrou-se com lisura diante do soldado.

- Hã... uma exploração preliminar da praça do mercado - falou sem pensar, tentando inventar uma história de improviso. - Tenho algumas esculturas
de especial refinamento para o mercado nesta temporada e queria me certificar de que tudo por aqui, inclusive o preço a se pagar pelo artesanato esteja acertado
para a administração da venda.
Os dois soldados trocaram sorrisos perspicazes.
- Você veio de muito longe só para isso - murmurou rudemente o Guardião da Noite. - Não teria sido melhor simplesmente vir com a caravana trazendo
as mercadorias?
Régis demonstrou certo mal-estar, percebendo que aqueles soldados eram experientes demais para caírem em sua manobra. Lutando contra o bom-senso, enfiou a
mão sob a camisa em busca do pingente de rubi, sabendo que seus poderes hipnóticos poderiam convencer o Guardião da Noite a deixá-los passar, mas temendo mostrar
a pedra e expor ainda mais sua trilha ao assassino que ele sabia não estar muito longe.
Mas, de repente, Jierdan Sobressaltou-se ao notar a figura ao lado de Bruenor. O manto de Drizzt Do'Urden havia se deslocado ligeiramente, revelando a pele
negra de seu rosto.
Como se tivessem combinado, o Guardião da Noite também ficou tenso e, seguindo o exemplo de seu companheiro, discerniu rapidamente a causa da repentina reação
de Jierdan. Relutantemente, os quatro aventureiros baixaram as mãos às armas, prontos para um combate que não desejavam.
Mas Jierdan pôs fim à tensão tão rápido quanto a iniciara, esticando o braço por sobre o peito do Guardião da Noite e dirigindo-se ao drow diretamente.
- Drizzt Do'Urden? - perguntou tranqüilamente, procurando confirmação da identidade que já adivinhara.
O drow assentiu, surpreso com o reconhecimento.
- Seu nome também chegou a Luskan com as histórias do Vale do Vento Gélido - explicou Jierdan. - Perdoe nossa surpresa. - Ele fez uma reverência. -
Não vemos muitos da sua raça em nossos portões.
Drizzt assentiu novamente, mas não respondeu, incomodado com aquela atenção incomum. Nunca antes havia um porteiro se incomodado em perguntar-lhe o nome ou
suas intenções. E o drow logo compreendera ser vantajoso evitar inteiramente os portões, esgueirando-se silenciosamente sobre a muralha de uma cidade em meio à escuridão
e procurando o setor mais maltrapilho, onde ao menos teria a chance de passar despercebido nas esquinas escuras com os outros ladinos. Será que seu nome e seus feitos
heróicos tinham lhe angariado certo grau de respeito mesmo tão longe de Dez-Burgos?
Bruenor voltou-se para Drizzt e piscou, a própria raiva dissipada pelo fato de que seu amigo havia finalmente recebido o devido respeito de um estrangeiro.
Mas Drizzt não se convencera. Não se atrevia a esperar por tal coisa: isso o deixava vulnerável demais a sentimentos que se esforçara tanto em ocultar. Preferia
se proteger em suas suspeitas e em sua vigilância tanto quanto no negro capuz de seu manto. Curioso, manteve-se atento enquanto os dois soldados se afastavam para
ter uma conversa particular.
- Não me importa o nome dele - ouviu o Guardião da Noite sussurrar para Jierdan. - Nenhum elfo drow há de passar pelo meu portão!
- Você está cometendo um erro - retorquiu Jierdan. - São os heróis de Dez-Burgos. O halfling é realmente Primeiro Cidadão de Brin Shander; o drow,
um ranger com uma reputação mortal, mas inegavelmente honrada; e o anão - repare no brasão da caneca espumante em seu escudo - é Bruenor Martelo de Batalha, líder
de seu clã no vale.
- E quem é o gigante bárbaro? - perguntou o Guardião da Noite, usando um tom sarcástico numa tentativa de soar resoluto, apesar de estar obviamente
um pouco nervoso. - Que espécie de desgarrado é esse aí?
Jierdan deu de ombros.
- E grande, jovem e tem um certo grau de controle atípico para a idade. Parece-me improvável ele estar aqui, mas pode ser o jovem rei das tribos de
que falaram os contadores de histórias. Não devemos mandar embora esses viajantes; as conseqüências podem ser graves.
- O que Luskan teria a temer daqueles povoados insignificantes no Vale do Vento Gélido? - refugou o Guardião da Noite.
- Existem outros portos comerciais - retorquiu Jierdan. - Nem todas as batalhas são travadas com a espada. A perda do artesanato de Dez-Burgos não
seria bem vista por nossos mercadores, nem pelos navios mercantes que entram no porto a cada temporada.
O Guardião da Noite examinou os quatros estrangeiros novamente. Não confiava nem um pouco neles, apesar das formidáveis alegações de seu companheiro, e não
os queria na cidade. Mas sabia também que, caso suas suspeitas estivessem erradas e ele fizesse algo para comprometer o comércio de artesanato, seu próprio futuro
seria tristonho. Os soldados de Luskan respondiam aos mercadores, que não perdoavam com facilidade os erros que emagreciam suas bolsas.
O Guardião da Noite ergueu os braços, derrotado.
- Entrem, então - disse ele aos companheiros. - Sigam a muralha e dirijam-se às docas. Na última viela fica o Alfanje, e vocês estarão bem aqueci dos
por lá!
Drizzt estudou os passos orgulhosos de seus amigos enquanto marchavam
pela porta e imaginou que eles também haviam ouvido partes da conversa. Bruenor confirmou suas suspeitas quando eles se afastaram das torres de vigia, seguindo
a rua ao longo da muralha.
Olha só, elfo - o anão riu alto, dando uma cotovelada em Drizzt e parecendo obviamente contente. - Então, as histórias deixaram o vale e já conhecem
a gente até mesmo aqui tão pro sul. O que 'cê tem a dizer?
Drizzt deu de ombros novamente e Bruenor riu, presumindo que seu amigo estava meramente constrangido com toda aquela fama. Régis e Wulfgar também partilhavam
da alegria de Bruenor, e o homem imenso deu ao drow um jovial tapa nas costas ao passar à liderança da trupe.
Mas era mais do que constrangimento a fonte do desconforto de Drizzt. Ele percebera, ao passar, o sorriso no rosto de Jierdan, um sorriso que ultrapassava
a admiração. E apesar de não duvidar que as histórias da batalha contra o exército de goblins de Akar Kessell tivessem alcançado a Cidade das Velas, pareceu estranho
a Drizzt que um simples soldado soubesse tanto sobre ele e seus amigos, enquanto o porteiro, responsável exclusivamente por determinar quem entrava na cidade, nada
sabia.
As ruas de Luskan estavam apinhadas com edifícios de dois e três andares, um reflexo do desespero do povo dali em se amontoar na segurança da alta muralha
da cidade, longe dos perigos constantes das selvagens terras do norte. Uma torre ocasional - um posto de guarda, talvez, ou a maneira de um cidadão proeminente ou
de uma guilda mostrar superioridade - brotava dos telhados. Uma cidade circunspecta, Luskan sobrevivia, e até mesmo prosperava, na perigosa fronteira, apegando-se
a uma atitude de prontidão que geralmente chegava à paranóia. Era uma cidade de sombras, e os quatro visitantes sentiam intensamente os olhares curiosos e perigosos
que espiavam através de cada fresta escura enquanto avançavam.
As docas abrigavam o setor mais brutal da cidade, onde abundavam ladrões, foras-da-lei e mendigos em seus becos estreitos e nichos escuros. Uma névoa perpétua
e baixa vinha do mar, transformando as já sombrias alamedas em sendas ainda mais misteriosas.
Assim era a viela na qual os quatro amigos se viram entrando, a última ruela antes dos próprios molhes, uma via particularmente decrépita chamada Rua da Meia-lua.
Régis, Drizzt e Bruenor compreenderam imediatamente que haviam entrado num antro de vagabundos e rufiões, e cada um deles levou uma das mãos à respectiva arma. Wulfgar
caminhava ostensivamente e sem medo, embora também pressentisse a atmosfera ameaçadora. Sem entender que a área era de uma torpeza atípica, estava determinado a
abordar com mente aberta sua primeira experiência com a civilização.
- Aí está o lugar - disse Bruenor, indicando um pequeno grupo, provavelmente de ladrões, reunido diante da porta de uma taverna. A placa acima da porta, já
curtida pelo tempo, nomeava o lugar o Alfanje.
Régis engoliu em seco, pois uma assustadora mistura de emoções brotava dentro dele. Nos seus primeiros anos como ladrão em Calimporto, ele havia freqüentado
muitos lugares como aquele, mas a familiaridade com o ambiente apenas aumentava sua apreensão. Ele sabia que a fascinação proibida dos negócios realizados nas sombras
de uma perigosa taverna podia ser tão mortífera quanto às facas ocultas dos ladinos em cada mesa.
- Vocês querem mesmo entrar aí? - perguntou melindrosamente aos amigos.
- Não quero ouvir uma reclamação sua! - rebateu Bruenor. - 'Cê sabia o que tinha pela frente quando se juntou à gente lá no vale. Não começa a choramingar
agora!
- Você está bem protegido - interpôs Drizzt para reconfortar Régis.
Excessivamente orgulhoso em sua inexperiência, Wulfgar deu ainda mais ênfase à declaração:
- Que motivo eles teriam para nos fazer mal? Sem dúvida não fizemos nada de errado - indagou ele. Então, proclamou em alto e bom som, para desafiar
as sombras - Não tenha medo, amiguinho. Meu martelo há de eliminar quem quer que se levante contra nós!
- O orgulho dos jovens - resmungou Bruenor enquanto ele, Régis e Drizzt trocavam olhares incrédulos.
A atmosfera dentro do Alfanje estava de acordo com a decrepitude e a ralé que caracterizavam o lugar do lado de fora. A parte do edifício ocupada pela taverna
era uma única sala ampla, com um bar comprido posicionado defensivamente no canto da parede dos fundos, diretamente em frente à porta. Uma escadaria se elevava da
lateral do bar até o segundo nível da estrutura, uma escadaria utilizada com mais freqüência por mulheres maquiadas e excessivamente perfumadas e seus mais recentes
companheiros do que pelos hóspedes da estalagem. De fato, os marinheiros mercantes que aportavam em Luskan geralmente vinham à terra apenas para breves períodos
de emoção e divertimento, retornando à segurança de suas naus, se conseguissem fazê-lo, antes que o inevitável sono da embriaguez os deixasse vulneráveis.
Acima de tudo, porém, a taverna do Alfanje era uma sala de sensações, com miríades de sons, imagens e odores. O aroma de álcool, da cerveja forte e do vinho
barato às beberagens mais raras e potentes, permeava cada canto. Uma bruma de fumaça de exóticas ervas-de-fumo, como a névoa lá fora, tornava indistinta a dura realidade
das imagens, transformando-as em sensações mais suaves e oníricas.
Drizzt encaminhou-se para uma mesa desocupada, esquecida ao lado da porta, enquanto Bruenor aproximava-se do bar para acertar a estadia. Wulfgar foi atrás
do anão, mas Drizzt o deteve.
Para a mesa - explicou ele. - Você está muito alvoroçado para esse tipo de negócio; Bruenor pode cuidar disso.
Wulfgar começou a protestar, mas foi interrompido.
Que é isso - ofereceu Régis. - Sente-se comigo e com Drizzt.
Ninguém vai incomodar um velho e forte anão, mas um halfling minúsculo e um elfo magrelo podem parecer boa diversão para os brutamontes daqui. Precisamos
de seu tamanho e de sua força para evitar essa atenção indesejada.
O queixo de Wulfgar firmou-se com o elogio, e ele caminhou intrepidamente até a mesa. Régis lançou a Drizzt uma piscadela perspicaz e virou-se para segui-lo.
- Muitas lições você aprenderá nesta jornada, meu jovem amigo - Drizzt murmurou para Wulfgar, baixinho demais para o bárbaro ouvi-lo. - Tão longe de
seu lar.
Bruenor voltou do bar carregando quatro jarras de hidromel e resmungando a meia voz.
- A gente tem que acabar logo nossos negócios aqui - ele disse a Drizzt - e voltar prá estrada. O preço de um quarto nessa toca de orcs é uma ladroagem
descarada!
- Os quartos não são para se passar a noite toda - casquinou Régis.
Mas a carranca de Bruenor persistiu.
- Beba - ele disse ao drow. - O Beco do Rato não é muito longe daqui, pelo que disse a criada do bar, e pode ser que a gente consiga fazer contato
ainda esta noite.
Drizzt assentiu e bebericou o hidromel, sem querer realmente fazê-lo, mas esperando que uma bebida entre amigos pudesse relaxar o anão. O drow também estava
ansioso para deixar Luskan, temeroso de que sua própria identidade - ele mantinha o capuz ainda mais abaixado sob a luz bruxuleante das tochas da taverna - pudesse
lhes trazer mais problemas. Ele se preocupava ainda mais por Wulfgar, jovem e orgulhoso, e fora de seu elemento natural. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido, apesar
de impiedosos na batalha, eram inegavelmente honrados e baseavam toda a estrutura de sua sociedade em códigos rígidos e inflexíveis. Drizzt temia que Wulfgar fosse
presa fácil para as imagens falsas e a perfídia da cidade. Na estrada, nas terras selvagens, o martelo de Wulfgar o manteria em segurança, mas ali era provável que
ele se encontrasse em situações falazes envolvendo punhais dissimulados, nas quais sua poderosa arma e perícia na batalha seriam de pouca ajuda.
Wulfgar esvaziou sua jarra num único gole, limpou os lábios com zelo e ficou de pé.
- Vamos - disse a Bruenor. - Quem é que estamos procurando?
- Senta aí e cale a boca, garoto - ralhou Bruenor, olhando ao redor para ver se haviam atraído alguma atenção indesejada. - O trabalho desta noite
é prá mim e pro drow. Não tem lugar prum guerreiro grande demais como você! 'Cê fica aqui com Ronca-bucho, de boca fechada e com as costas prá parede!
Wulfgar voltou a afundar na cadeira, humilhado, mas Drizzt estava feliz por ter Bruenor aparentemente chegado às mesmas conclusões sobre o jovem guerreiro.
Mais uma vez, Régis salvou um pouco do orgulho de Wulfgar.
- Você não vai com eles, não! - ele retrucou ao bárbaro. - Eu não tenho a menor vontade de ir, mas não me atreveria a ficar aqui sozinho. Deixe que
Drizzt e Bruenor se divirtam em algum beco frio e fedorento. Ficaremos aqui e vamos aproveitar uma bem-merecida noite de boa diversão!
Drizzt deu um tapinha no joelho de Régis por baixo da mesa como agradecimento e levantou-se para sair. Bruenor bebeu em grandes goles o conteúdo de sua jarra
e saltou da cadeira.
- Vamos indo, então - ele disse ao drow. E depois, para Wulfgar - Tome conta do halfling e cuidado com as mulheres! São perversas como ratos famintos
e a única coisa que desejam morder é a sua bolsa!
Bruenor e Drizzt viraram no primeiro beco vazio depois do Alfanje, o anão, nervoso, montando guarda à entrada enquanto Drizzt seguia em frente alguns passos
e penetrava a escuridão. Convencido de que estava só e em segurança, Drizzt removeu de sua bolsa uma pequena estatueta de ônix, meticulosamente esculpida na forma
de um gato predador, e a colocou no chão diante dele.
- Guenhwyvar - ele chamou baixinho. - Venha, minha sombra.
Seu chamado atravessou os planos até o lar astral da entidade da pantera. O grande felino despertou de seu sono. Muitos meses haviam se passado desde que
seu mestre o chamara, e o gato estava ansioso para servir.
Guenhwyvar saltou através da urdidura dos planos, seguindo um bruxuleio de luz que só podia ser o chamado do drow. A seguir, o gato estava no beco com Drizzt,
imediatamente alerta naquele ambiente desconhecido.
- Vamos entrar numa teia perigosa, temo eu - explicou Drizzt. - Preciso de olhos onde os meus não são capazes de chegar.
Sem delongas e sem emitir um som sequer, Guenhwyvar saltou para uma pilha de escombros, dali para o patamar fragmentado de um pórtico, e dali para o alto
dos telhados. Satisfeito e sentindo-se muito mais seguro agora, Drizzt esgueirou-se de volta à rua onde Bruenor aguardava.
- Bem, cadê a maldita pantera? - perguntou Bruenor, um sinal de alívio em sua voz por Guenhwyvar não estar realmente com o drow. A maioria dos anões
desconfiava da magia, a não ser dos encantamentos mágicos que lançavam sobre suas armas, e Bruenor não gostava da pantera.
- Onde mais precisamos dela - foi a resposta do drow. Ele se pôs a descer a Rua da Meia-lua. - Não tenha medo, poderoso Bruenor. Os olhos de Guenhwyvar
estão sobre nós, mesmo que os nossos não possam retribuir seu olhar protetor!
O anão olhou ao redor, nervoso, gotas de suor visíveis na base de seu elmo de chifres. Ele conhecia Drizzt havia vários anos, mas nunca se acostumara ao gato
mágico.
Drizzt ocultou o sorriso sob o capuz.
Todas as vielas, abarrotadas de pilhas de escombros e refugos, pareceram-lhes iguais à medida que abriam caminho pelas docas. Bruenor fitava cada nicho sombreado
com uma desconfiança vigilante. À noite, sua visão não era tão aguçada quanto a do drow e, se ele enxergasse no escuro tão bem quanto Drizzt, teria apertado ainda
com mais força o cabo do machado.
Mas o anão e o drow não estavam excessivamente preocupados. Estavam muito longe de ser os típicos bêbados que costumavam cambalear por aquelas bandas à noite
e não eram presas fáceis para ladrões. Os inúmeros chanfros no machado de Bruenor e o balanço das duas cimitarras no cinto do drow serviriam para inibir totalmente
a maioria dos rufiões.
No labirinto de ruas e vielas, levaram um bom tempo para encontrar o Beco do Rato. Bem perto dos molhes, corria paralelamente ao mar, aparentemente intransitável
através da densa neblina. Armazéns baixos e compridos se alinhavam de ambos os lados, e caixas e engradados quebrados atravancavam o beco, reduzindo, em muitos lugares,
a passagem já estreita à largura de uma fila indiana.
- Lugarzinho agradável para um passeio numa noite sombria - declarou Bruenor categoricamente.
- Tem certeza de que esta é a tal viela? - perguntou Drizzt, igualmente pouco entusiasmado em relação à área diante dele.
- Pelo que disse o mercador em Dez-Burgos, o único homem vivo capaz de me conseguir o mapa é Sussurro. E o lugar prá encontrar Sussurro é o Beco do
Rato. Sempre no Beco do Rato.
- Então, vamos logo com isso - disse Drizzt. - Negócio excuso é melhor terminar rápido.
Bruenor entrou lentamente no beco, à frente de Drizzt. Os dois mal tinham caminhado uns três metros quando o anão pensou ouvir o estalido de uma besta. Ele
se deteve e olhou para Drizzt.
- 'Tão espreitando a gente - sussurrou.
- Na janela entabuada acima e à direita - explicou Drizzt, pois sua excepcional visão noturna e a admirável audição já haviam discernido a origem
do som. - Uma precaução, espero. Talvez um bom sinal de que seu contato está por perto.
- Nunca chamei uma besta apontada prá minha cabeça de bom sinal! - argumentou o anão. - Mas em frente, então, e esteja preparado. Esse lugar fede a
perigo! - Voltou a abrir caminho por entre os escombros.
Um movimento à esquerda revelou que também daquele lado havia olhos sobre eles. Mas, ainda assim, eles continuaram, compreendendo que não podiam ter esperado
nada diferente quando deixaram o Alfanje. Contornando uma última pilha de tábuas quebradas, viram um vulto esguio recostado a uma das paredes do beco, bem envolto
no manto e protegido contra o frio da névoa noturna.
Drizzt inclinou-se até a altura do ombro de Bruenor.
- Seria aquele ali? - ele murmurou.
O anão deu de ombros e disse:
- E quem mais poderia ser? - Ele deu mais um passo à frente, fincou os pés no chão, com firmeza e bem separados, e dirigiu-se ao vulto. - 'Tô procurando
um homem chamado Sussurro - disse ele. - E você, por acaso?
- Sim e não - foi a resposta. O vulto se virou na direção deles, embora o manto fechado pouco revelasse.
- Que joguinho é esse? - rebateu Bruenor.
- Sou Sussurro - respondeu o vulto, deixando o manto escorregar um pouco para trás. - Mas não um homem, com certeza!
Agora eles podiam ver claramente que o personagem que a eles se dirigia era de fato uma mulher, uma figura sombria e misteriosa com longos cabelos negros,
olhos dardejantes e obstinados que demonstravam experiência e um profundo entendimento da sobrevivência nas ruas.

3. VIDA NOTURNA

A noite ia passando e o Alfanje ficava cada vez mais movimentado. Marinheiros mercantes ali se aglomeravam, vindos dos navios, e os habitantes locais rapidamente
se dispunham a explorá-los. Régis e Wulfgar ficaram na mesa de canto, o bárbaro de olhos arregalados pela curiosidade diante do que via ao seu redor e o halfling
absorto em cautelosa observação.
Régis reconheceu a encrenca caminhando na direção deles na forma de uma mulher. Não era moça e tinha aquela aparência abatida tão familiar na zona do porto,
mas seu vestido, bastante revelador em todos os lugares que o vestido de uma dama não deveria ser, escondia todos os seus defeitos físicos por trás de uma saraivada
de insinuações. A expressão no rosto de Wulfgar - o queixo quase ao mesmo nível da mesa, pensou Régis - confirmou os temores do halfling.
- Bons olhos o vejam, grandalhão - disse a mulher com suavidade, introduzindo-se confortavelmente na cadeira ao lado do bárbaro.
Wulfgar olhou para Régis e quase gargalhou de incredulidade e constrangimento.
- Você não é de Luskan - continuou a mulher. - Nem tem a aparência dos mercadores agora atracados no porto. De onde você é?
- Do norte - gaguejou Wulfgar. - Do vale... Vento Gélido.
Régis não via tamanha ousadia numa mulher desde seus anos em Calimporto e sentiu que devia intervir. Havia algo de depravado naquele tipo de mulher, uma demasiadamente
extraordinária perversão do prazer. O fruto proibido tornado fácil. Régis, de repente, flagrou-se com saudades de Calimporto. Wulfgar não seria páreo para os artifícios
daquela criatura.
- Somos viajantes pobres - explicou Régis, enfatizando o "pobres" num esforço para proteger seu amigo. - Sem dinheiro, mas com muitos quilômetros a
percorrer.
Wulfgar olhou, curioso, para seu companheiro, sem entender muito bem a razão da mentira.
A mulher examinou Wulfgar mais uma vez e estalou os lábios.
- Pena - ela murmurou, e então perguntou a Régis - Nenhum dinheiro?
Régis deu de ombros, impotente.
- É uma pena mesmo - repetiu a mulher e levantou-se para deixar a mesa.
O rosto de Wulfgar corou com um vermelho intenso assim que ele começou a compreender os verdadeiros motivos daquele encontro.
Algo também se agitou dentro de Régis. Um anseio pelos dias de outrora, quando ele percorria a zona de má reputação de Calimporto, incitou seu coração de
tal modo que não conseguiu resistir. Agarrou o cotovelo da mulher assim que ela passou por ele.
- Nenhum dinheiro - explicou-lhe, diante de sua expressão indagativa -, a não ser isto. - Ele sacou o pingente de rubi de sob o casaco e o fez balançar
na ponta da corrente. As cintilações imediatamente atraíram o olhar cúpido da mulher, e a jóia mágica a absorveu em seu transe hipnótico. Ela voltou a se sentar,
dessa vez na cadeira mais próxima a Régis, sem que os olhos jamais abandonassem o maravilhoso rubi rodopiante.
Somente a confusão impediu Wulfgar de irromper num acesso de ultraje diante daquela deslealdade, e a indistinção de pensamentos e emoções em sua mente revelou-se
como um mero olhar de perplexidade.
Régis percebeu a expressão do bárbaro, mas o ignorou com um encolher de ombros e sua típica propensão para descartar emoções negativas, como a culpa. Que
a aurora do dia de amanhã expusesse sua manobra; a conclusão não diminuiria sua competência em desfrutar daquela noite.
- A noite de Luskan traz um vento frio - ele disse à mulher. Ela pousou uma das mãos sobre o braço dele.
- Acharemos para você uma cama quentinha, não tenha medo. O sorriso do halfling quase lhe alcançou as orelhas.
Wulfgar por pouco não caiu da cadeira.


Bruenor readquiriu rapidamente a compostura, não querendo insultar Sussurro nem deixá-la saber que sua surpresa ao encontrar uma mulher dava a ela uma pequena
vantagem. No entanto, ela sabia a verdade e seu sorriso deixou Bruenor ainda mais aturdido.
Vender informações num cenário tão perigoso quanto a zona do porto de Luskan significava uma constante negociação com assassinos e ladrões e, mesmo dentro
da estrutura de uma intricada rede de apoio, era uma função que exigia coragem. Poucos dentre os que procuravam os serviços de Sussurro conseguiam esconder a óbvia
surpresa ao encontrar uma mulher jovem e atraente exercendo tal profissão.
O respeito de Bruenor pela informante, porém, em nada diminuiu, apesar de sua surpresa, pois a reputação de Sussurro chegara até ele através de centenas
de quilômetros. Ela ainda estava viva e somente esse fato já revelava ao anão que se tratava de uma mulher formidável.
Drizzt estava consideravelmente menos perplexo com a descoberta. Nas cidades escuras dos elfos drow, as mulheres normalmente ocupavam posições mais elevadas
que os homens e eram geralmente mais mortíferas. Drizzt compreendia a vantagem que Sussurro tinha sobre os clientes masculinos que tendiam a subestimá-la nas sociedades
dominadas pelos homens das perigosas terras do norte.
Ansioso por terminar os negócios e voltar à estrada, o anão foi direto ao propósito do encontro.
- 'Tô precisando de um mapa - disse ele - e me disseram que eu podia conseguir ele com você.
- Possuo muitos mapas - a mulher respondeu serenamente.
- Um mapa do norte - explicou Bruenor. - Do mar ao deserto e nomeando corretamente os lugares segundo os costumes das raças que vivem por lá!
Sussurro assentiu.
- O preço será alto, meu bom anão - disse ela, os olhos cintilando à mera menção do ouro.
Bruenor atirou-lhe uma pequena bolsa de pedras preciosas.
- Isso deve dar - resmungou ele, sempre desgostoso em gastar dinheiro.
Sussurro esvaziou o conteúdo da bolsa em sua mão e examinou as pedras mal lapidadas. Ao voltar a guardá-las, meneava a cabeça, ciente do considerável valor
das jóias.
- Espera! - protestou Bruenor quando ela começou a prender a bolsa ao cinto. - 'Cê não vai levar as minhas pedras até eu ver o mapa!
- É claro - respondeu a mulher com um sorriso apaziguador. - Espere aqui. Devo retornar em breve com o mapa que deseja. - Ela atirou a bolsa de volta
a Bruenor e girou repentinamente, erguendo o manto com um ruído seco e levantando uma lufada de névoa com o movimento. Um clarão acompanhou a bruma e a mulher desapareceu.
Bruenor saltou para trás e agarrou o punho do machado.
- Que truque de feitiçaria é esse? - gritou.
Drizzt, nada impressionado, levou a mão ao ombro do anão.
- Calma, poderoso anão - disse ele. - Foi apenas um truque insignificante para disfarçar-lhe a fuga em meio à neblina e à luz. - Ele apontou uma pequena
pilha de tábuas. - Ali, naquele escoadouro.
Bruenor acompanhou a linha do braço do drow e relaxou. Mal se podia enxergar a boca de um buraco destampado, a grade encostada à parede do armazém a uma
pequena distância de onde eles se encontravam.
- 'Cê conhece esse tipo de coisa melhor do que eu, elfo - declarou o anão, atarantado com sua falta de experiência em lidar com os ladinos das ruas
de uma cidade. - Ela 'tá querendo negociar limpo ou estamos sentados aqui que nem patinhos esperando os canalhas dos comparsas dela nos roubar?
- Não, e não - respondeu Drizzt. - Sussurro não estaria viva se entregasse os clientes aos ladrões. Mas eu dificilmente esperaria que um acordo com
ela, qualquer que seja, venha a ser um negócio limpo.
Bruenor percebeu que, enquanto falavam, Drizzt retirara sorrateiramente uma de suas cimitarras da bainha.
- Sem armadilhas, hein? - perguntou o anão novamente, indicando a arma preparada.
- Da parte dela, não - replicou Drizzt. - Mas as sombras ocultam muitos outros olhos.

Muitos olhos além dos de Wulfgar recaíam sobre o halfling e a mulher.
Os ousados ladinos da zona do porto de Luskan costumavam se divertir bastante atormentando criaturas de menor estatura física, e os halflings estavam entre
seus alvos favoritos. Naquela noite, em particular, um homem imenso e obeso, com sobrancelhas peludas e cerdas de barba que retinham a espuma da caneca sempre cheia,
dominava a conversa no bar, gabando-se de proezas de força impossíveis e ameaçando todos ao redor dele com uma surra se o fluxo de cerveja diminuísse o mínimo que
fosse.
Todos os homens reunidos em volta dele no bar - homens que o conheciam, ou dele tinham ouvido falar - balançavam as cabeças em entusiástico assentimento a
cada uma de suas palavras, colocando-o sobre um pedestal de elogios para dispersar o medo que eles próprios nutriam por ele. Mas o ego do homem gordo precisava de
mais diversão, uma nova vítima para intimidar, e, percorrendo o perímetro da taverna, seu olhar recaiu naturalmente sobre Régis e o grande - porém evidentemente
jovem - amigo do halfling. O espetáculo de um halfling cortejando a mulher mais cara do Alfanje apresentava uma oportunidade por demais tentadora para o gordo simplesmente
ignorar.
- Olha aqui, moça bonita - babou ele, cuspindo cerveja a cada palavra.
- 'Cê acha que um meio-homem como esse aí vai te dar aquela noitada? - A turba ao redor do bar, ansiosa por se manter na alta conta do gordo, explodiu
numa gargalhada excessivamente ardorosa.
A mulher tratara com aquele homem antes e vira outros caírem dolorosamente diante dele. Ela atirou-lhe um olhar preocupado, mas continuou firmemente presa
à atração do pingente de rubi. Régis, porém, imediatamente desviou os olhos do homem gordo, voltando sua atenção para onde ele desconfiava que a encrenca mais
provavelmente começaria: o outro lado da mesa e Wulfgar.
Descobriu que sua preocupação era justificada. Os nós dos dedos do orgulhoso bárbaro estavam brancos de tanto apertar as bordas da mesa e o olhar inflamado
revelou a Régis que seu amigo estava a ponto de explodir.
- Ignore as provocações - insistiu Régis. - Não vale um segundo do seu tempo!
Wulfgar não relaxou nem um pouco, jamais desprendendo o olhar de seu adversário. Ele poderia ignorar os insultos do gordo, mesmo os que ofendiam Régis e a
mulher. Mas Wulfgar entendia a motivação por trás daqueles insultos. Aproveitando-se dos amigos menos capazes do bárbaro, o valentão desafiava Wulfgar. Ele se perguntou
quantos outros haviam sido vitimados por aquele palerma avantajado. Talvez fosse a hora do gordo aprender um pouco de humildade.
Reconhecendo ali uma possibilidade de confusão, o grotesco fanfarrão se aproximou alguns passos.
- Isso, chega prá lá um pouquinho, meio-homem - exigiu ele, acenando para que Régis se afastasse.
Régis fez um rápido inventário dos fregueses da taverna. Certamente havia muitos ali que poderiam se juntar à sua causa contra o gordo e os camaradas antipáticos
dele. Havia até mesmo um membro da guarda oficial da cidade, um grupo tido em alta conta em todos os setores de Luskan.
Régis interrompeu seu exame atento por um instante e olhou para o soldado. Quão deslocado o homem parecia numa escarradeira infestada de canalhas como o Alfanje.
Mais curioso ainda, Régis reconheceu o homem como Jierdan, o soldado no portão que reconhecera Drizzt e havia arranjado para que eles entrassem na cidade algumas
horas antes.
O gordo deu mais um passo em direção à mesa e Régis não teve tempo para considerar as implicações.
Com as mãos nos quadris, a imensa bolha humana fitou-o de cima para baixo. Régis sentiu o coração batendo, o sangue correndo em suas veias, como sempre acontecia
naquele tipo de confronto nervoso que caracterizara seus dias em Calimporto. E agora, como então, ele tinha toda a intenção de encontrar uma maneira de escapar.
Mas sua confiança desapareceu ao lembrar-se do companheiro. Menos experiente - e Régis rapidamente acrescentaria "menos esperto!" -, Wulfgar não deixaria
o desafio passar sem resposta. Um salto de suas pernas compridas o transportou sem dificuldade por cima da mesa e o colocou diretamente entre o gordo e Régis. Ele
retribuiu o olhar ameaçador do gordo com igual intensidade.
O gordo relanceou o olhar para seus amigos no bar, totalmente ciente de que o distorcido senso de honra de seu jovem e orgulhoso oponente impediria o primeiro
golpe.
- Ora, ora, vejam só isso - ele riu, os lábios retraídos em salivante expectativa -, parece que o moleque tem algo a dizer.
Ele começou lentamente a dar as costas a Wulfgar, depois se lançou de repente para a garganta do bárbaro, esperando que a mudança de velocidade pegasse Wulfgar
de surpresa.
Mas, apesar de inexperiente em relação aos costumes das tavernas, Wulfgar compreendia a batalha. Fora treinado por Drizzt Do'Urden, um guerreiro sempre alerta,
e trazia os músculos em sua melhor forma para o combate. Antes que as mãos do gordo sequer chegassem perto de sua garganta, Wulfgar havia agarrado o rosto do oponente
com uma de suas mãos descomunais e enfiado a outra na virilha do gordo.
O oponente atordoado viu-se erguido em pleno ar.
Por alguns segundos, os espectadores ficaram demasiado atônitos para reagir, exceto Régis, que espalmou a mão contra o próprio rosto incrédulo e deslizou
discretamente para baixo da mesa.
O gordo era mais pesado que três homens medianos, mas o bárbaro o ergueu facilmente sobre a cabeça, dois metros e meio acima do chão, e até mais alto, à máxima
extensão de seus braços.
Berrando de fúria impotente, o gordo ordenou que seus partidários atacassem. Wulfgar esperou pacientemente pelo primeiro gesto contra ele.
A turba inteira pareceu saltar de uma só vez. Mantendo a calma, o guerreiro treinado procurou pela mais densa concentração de oponentes - três homens - e
arremessou o projétil humano, observando-lhes as expressões horrorizadas pouco antes daquela montanha de banha atropelá-los e atirá-los para trás. Então, o impulso
combinado dos quatro arrancou uma seção inteira do bar de seus suportes, derrubando o desafortunado estalajadeiro e atirando-o contra as prateleiras que sustentavam
seus melhores vinhos.
A diversão de Wulfgar durou pouco, pois outros rufiões caíram rapidamente sobre ele. Plantou os calcanhares no chão, determinado a se manter de pé, e atacou
violentamente com seus imensos punhos, atirando para os lados cada um de seus inimigos e estatelando-os nos cantos mais distantes da sala.
A luta irrompeu em toda a taverna. Homens incapazes de erguer um dedo se um assassinato fosse cometido aos seus pés saltaram uns sobre os outros com fúria
desenfreada diante da visão aterrorizante de bebida derramada e de um bar quebrado.
Entretanto, foram poucos os partidários do gordo detidos pela desordem generalizada. Caíam em grandes números sobre Wulfgar, uma leva depois da outra. Ele
até que estava se saindo bem, pois ninguém conseguiu retardá-lo o bastante para que os reforços chegassem. Ainda assim, o bárbaro era atingido com a mesma freqüência
com que acertava os próprios golpes. Recebeu estoicamente os socos, bloqueando a dor com seu orgulho e sua tenacidade combativa, que simplesmente não lhe permitiriam
perder.
Desde seu novo lugar sob a mesa, Régis assistia ao combate e bebericava o hidromel. Até mesmo as criadas haviam se metido na briga, circulando pela taverna
montadas nas costas de algum combatente infeliz, usando as unhas para gravar desenhos intricados nos rostos dos homens. De fato, Régis logo discerniu que a única
outra pessoa na taverna não envolvida na luta, além dos que já estavam inconscientes, era Jierdan. O soldado continuava sentado em sua cadeira, em silêncio, indiferente
à briga e interessado apenas, aparentemente, em observar e avaliar a perícia de Wulfgar.
Aquilo também perturbou o halfling, mas ele descobriu, mais uma vez, que não tinha tempo para contemplar as ações incomuns do soldado. Régis soubera desde
o começo que precisaria tirar seu gigantesco amigo daquela confusão e agora seus olhos vigilantes haviam percebido o previsível cintilar do aço. Um ladino logo atrás
dos últimos oponentes de Wulfgar havia sacado um punhal.
- Maldição! - resmungou Régis, pousando sua bebida no chão e sacando a maça de uma prega em seu manto. Aquele tipo de coisa sempre deixava um gosto ruim em
sua boca.
Wulfgar jogou os dois oponentes para um lado, abrindo uma trilha para o homem com a faca. Ele arremeteu, os olhos erguidos a fitar os do bárbaro alto. Sequer
notou Régis disparar por entre as pernas compridas de Wulfgar, a pequena maça erguida para atacar. A arma atingiu o joelho do homem, estilhaçando-lhe a patela e
fazendo com que caísse de braços abertos - agora exposto o punhal - na direção de Wulfgar.
Wulfgar desviou-se da investida dando um passo para o lado no último segundo e fechou sua mão sobre a do atacante. Rolando com o impulso, o bárbaro derrubou
a mesa e bateu contra a parede. Um apertão esmagou os dedos do atacante contra o cabo da faca ao mesmo tempo que Wulfgar engolfava o rosto do homem com sua mão livre
e o erguia do chão. Clamando por Tempus, o deus das batalhas, o bárbaro, enfurecido com o aparecimento de uma arma, atravessou as tábuas de madeira da parede com
a cabeça do homem e o deixou ali, pendurado, os pés a trinta centímetros do chão.
Uma manobra impressionante, mas custou a Wulfgar tempo precioso. Quando de novo voltou-se para o bar, foi enterrado sob uma rajada de murros e chutes de vários
atacantes.

- Aí vem ela - Bruenor murmurou para Drizzt quando viu Sussurro voltando, embora os sentidos aguçados do drow tivessem lhe revelado a aproximação da mulher
muito antes que o anão o percebesse. Sussurro havia partido coisa de meia hora atrás, mas parecera muito mais tempo para os dois amigos no beco, perigosamente expostos
às miras dos besteiros e outros capangas que eles sabiam estar por perto.
Sussurro caminhou com confiança até eles.
- Aqui está o mapa que deseja - ela disse a Bruenor, erguendo um pergaminho enrolado.
- Deixa eu dar uma olhada, então - o anão exigiu, dando um passo a frente.
A mulher retraiu-se e abaixou o pergaminho.
- O preço agora é maior - declarou categoricamente. - Dez vezes o que você já ofereceu.
O olhar perigoso de Bruenor não a desencorajou.
- Não lhe resta alternativa - ela sibilou. - Não encontrará mais ninguém que possa lhe arranjar isto. Pague o preço e acabe logo com isso!
- Um momento - disse Bruenor, com repentina calma. - Meu amigo tem que opinar sobre isso. - Ele e Drizzt se afastaram um passo.
- Ela descobriu quem somos - explicou o drow, apesar de Bruenor já ter chegado à mesma conclusão. - E quanto podemos pagar.
- É o mapa? - perguntou Bruenor.
Drizzt assentiu.
- Ela não teria razão para acreditar que está em perigo, não aqui. Você tem o dinheiro?
- Sim - disse o anão -, mas nossa estrada ainda é longa e acho que vamos precisar de mais do que eu tenho.
- Está decidido, então - Drizzt respondeu. Bruenor reconheceu o brilho incandescente que se acendeu nos olhos cor de lavanda do drow. - Quando encontramos
esta mulher, fechamos um acordo justo - continuou ele. - Um acordo que devemos honrar.
Bruenor entendeu e aprovou. Sentiu começar o formigamento da expectativa em seu sangue. Voltou-se para a mulher e notou imediatamente que ela agora segurava
um punhal em lugar do pergaminho. Aparentemente, ela compreendia a natureza dos dois aventureiros com quem negociava.
Drizzt, percebendo também o brilho do metal, afastou-se de Bruenor, tentando parecer inofensivo para Sussurro, embora, na realidade, desejasse se colocar
num ângulo mais favorável em relação a algumas fendas suspeitas que ele notara na parede - fendas que poderiam ser as aparas de uma porta secreta.
Bruenor aproximou-se da mulher, as mãos desarmadas e os braços estendidos.
- Se esse é o preço - ele resmungou -, então não temos escolha a não ser pagar. Mas vou ver o mapa primeiro!
Confiante de que poderia enfiar o punhal no olho do anão antes que uma das mãos dele conseguisse alcançar o cinto em busca de uma arma, Sussurro relaxou e
moveu a mão livre para o pergaminho sob seu manto.
Mas ela subestimou seu oponente.
As pernas atarracadas de Bruenor se contraíram, arremessando-o alto o bastante para golpear o rosto da mulher com o elmo, arrancar-lhe sangue do nariz e bater-lhe
a cabeça na parede. Ele pegou o mapa, largando a bolsa original sobre a forma flácida de Sussurro e murmurando:
- Conforme combinado.
Drizzt também agiu rápido. Nem bem o anão se encolheu, o drow invocou a magia inerente à sua raça para conjurar um globo de escuridão em frente à janela que
abrigava os besteiros. Nenhum virote apontou, mas os gritos raivosos dos dois arqueiros ecoaram por todo o beco.
Então, as fendas na parede se abriram, como Drizzt havia antecipado, e a segunda linha de defesa de Sussurro investiu. O drow estava preparado, as cimitarras
já em suas mãos. As espadas cintilaram, apenas os lados embotados, mas com precisão suficiente para desarmar o ladino corpulento que dali saiu. Então, elas se apresentaram
novamente, atingindo o rosto do homem e, no mesmo movimento fluido, Drizzt reverteu o ângulo, dando com um botão, e depois o outro, nas têmporas do homem. Quando
Bruenor se virou com o mapa, o caminho estava livre diante dele.
Bruenor examinou a obra do drow com verdadeira admiração.
Então, um quadrelo de besta bateu na parede a menos de três centímetros de sua cabeça.
- Hora de ir - observou Drizzt.
- A ponta vai estar bloqueada, ou então sou um gnomo de barba - disse Bruenor quando eles se aproximaram da saída do beco. Um rugido no prédio ao lado
deles, seguido de gritos aterrorizados, trouxe-lhes algum consolo.
- Guenhwyvar - declarou Drizzt quando dois homens envoltos em mantos irromperam na rua diante deles e fugiram sem olhar para trás.
- Por certo que eu tinha me esquecido completamente do gato! - gritou Bruenor.
- Que bom que a memória de Guenhwyvar é melhor que a sua - riu Drizzt, e Bruenor, apesar de seus sentimentos pelo gato, gargalhou com ele. Detiveram-se ao
final do beco e inspecionaram a rua. Não havia sinal de problemas, mas a densa neblina proporcionava boa cobertura para uma possível emboscada.
- Vá devagar - sugeriu Bruenor. - Vamos chamar menos atenção.
Drizzt teria concordado mas, então, um segundo quadrelo, disparado de algum lugar lá atrás no beco, bateu numa viga de madeira entre eles.
- Hora de ir! - Drizzt declarou com veemência, apesar de Bruenor não precisar de mais encorajamento, pois suas pequenas pernas já estavam envolvidas num movimento
furioso enquanto disparava neblina adentro.
Abriram caminho por entre as voltas e curvas do labirinto de ratos que era Luskan, Drizzt passando graciosamente por sobre as barreiras de escombros e Bruenor
simplesmente atravessando-as à força. Dali a pouco, confiantes de que não eram seguidos, adotaram um passo mais tranqüilo.
O branco de um sorriso apontava por entre a barba ruiva do anão, que continuava a olhar por sobre o ombro com um ar satisfeito e malicioso no rosto. Mas,
quando ele se virou para ver a rua diante dele, mergulhou de repente para um lado, bracejando para encontrar seu machado.
Dera de cara com o gato mágico.
Drizzt não foi capaz de conter o riso.
- Tira essa coisa daqui! - exigiu Bruenor.
- Olhe os modos, meu bom anão - rebateu o drow. - Lembre-se de que Guenhwyvar abriu nossa rota de fuga.
-Tira ela daqui! - declarou Bruenor novamente, brandindo o machado, pronto para atacar.
Drizzt afagou o pescoço musculoso do poderoso felino.
- Não dê atenção às palavras dele, minha amiga - disse ele ao gato. - É um anão e não consegue apreciar a magia mais refinada!
- Ora! - rosnou Bruenor, apesar de respirar com um pouco mais de facilidade assim que Drizzt dispensou o gato e recolocou a estátua de ônix em sua
bolsa.
Os dois deram com a Rua da Meia-lua pouco depois, detendo-se num último beco para procurar sinais de emboscada. Souberam imediatamente que havia acontecido
alguma coisa, pois vários homens feridos passavam cambaleando ou carregados pela entrada do beco.

Então, viram o Alfanje e duas formas familiares sentadas na rua bem defronte.
- Que é que 'cês 'tão fazendo aí? - perguntou Bruenor quando se aproximaram.
- Parece que nosso amigo grandalhão responde aos insultos com socos - disse Régis, que saíra ileso da refrega.
O rosto de Wulfgar, porém, estava intumescido e machucado, e ele mal conseguia abrir um dos olhos. Sangue seco - um pouco do qual era seu mesmo - empastava-lhe
os punhos e as roupas.
Drizzt e Bruenor olharam um para o outro, não muito surpresos.
- E nossos quartos? - resmungou Bruenor.
Régis chacoalhou a cabeça.
- Duvido muito.
- E meu dinheiro?
De novo o halfling chacoalhou a cabeça.
- Ora! - bufou Bruenor, e ele partiu, pisando duro, em direção à porta do Alfanje.
- Eu não faria... - começou Régis, mas, então, deu de ombros e decidiu deixar Bruenor descobrir por si mesmo.
O choque de Bruenor foi total quando abriu a porta da taverna. Mesas, vidros e fregueses inconscientes jaziam em pedaços por todo o chão. O estalajadeiro
estava caído sobre uma parte do bar despedaçado, uma criada a envolver-lhe a cabeça ensangüentada em ataduras. O homem que Wulfgar implantara na parede ainda pendia
molemente pela nuca, gemendo baixinho, e Bruenor não conseguiu evitar uma risadinha diante da obra do poderoso bárbaro. De vez em quando, uma das criadas, ao passar
pelo homem enquanto limpava o recinto, dava-lhe um empurrãozinho, divertindo-se com seu balançar.
- Desperdício de bom dinheiro - inferiu Bruenor, e voltou a sair pela porta antes que o estalajadeiro o notasse e lançasse as criadas sobre ele.
- Mas que tremenda bagunça! - disse ele a Drizzt quando voltou para junto de seus companheiros. - Todo o mundo entrou na briga?
- Todos menos um - respondeu Régis. - Um soldado.
- Um soldado de Luskan, aqui? - perguntou Drizzt, surpreso pela óbvia inconsistência.
Régis assentiu.
- É ainda mais curioso - continuou ele -, era o mesmo guarda, Jierdan, que nos deixou entrar na cidade.
Drizzt e Bruenor trocaram olhares preocupados.
- Tem assassinos atrás da gente, uma estalagem arrebentada na nossa frente e um soldado dando mais atenção prá gente do que deveria - disse Bruenor.
- Hora de ir - respondeu Drizzt pela terceira vez. Wulfgar olhou para o drow, incrédulo. - Quantos homens você derrubou esta noite? - Drizzt perguntou-lhe,
colocando a suposição lógica de perigo bem diante dele. - E quantos deles não ansiariam pela oportunidade de enfiar um punhal nas suas costas?
- Além disso - acrescentou Régis, antes que Wulfgar pudesse responder -, não tenho o menor desejo de dividir a cama num beco com um bando de ratos!
- Então, para o portão - disse Bruenor Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Não com um guarda tão interessado em nós. Por cima da muralha, e que ninguém note nossa passagem.
Uma hora depois, caminhavam tranqüilamente pela vasta campina, sentindo o vento novamente, passada a barreira da muralha de Luskan. Régis resumiu seus pensamentos,
dizendo:
- Nossa primeira noite em nossa primeira cidade e enganamos assassinos, derrotamos um bando de rufiões e atraímos a atenção da guarda da cidade. Um
começo auspicioso para nossa jornada!
- É, mas temos isto! - gritou Bruenor, positivamente rebentando de expectativa para encontrar sua terra natal agora que o primeiro obstáculo, o mapa,
fora superado.
Pouco sabiam ele ou seus amigos, entretanto, que o mapa que ele apertava nas mãos com tanto amor detalhava várias regiões mortíferas, e que uma delas testaria
os quatro amigos até o limite... E além.

4. A CONJURAÇÃO

Um marco de prodigiosa arquitetura era a grande atração do centro da Cidade das Velas, um estranho edifício que emanava uma poderosa aura mágica. Diferente
de qualquer outra estrutura em todos os Reinos Esquecidos, a Torre das Hostes Arcanas parecia literalmente uma árvore de pedra, ostentando cinco torreões altos,
sendo o central o maior deles, e os outros quatro, igualmente altos, a crescer a partir do tronco principal com a graciosa curvatura de um carvalho. Não se via sinal
de alvenaria; era evidente a qualquer observador instruído que a magia - e não o trabalho físico - produzira aquela obra-de-arte.
Um Arquimago, Mestre inconteste da Torre das Hostes, residia na torre central, enquanto as outras quatro abrigavam os magos no topo da linha de sucessão.
Cada uma dessas torres menores, representando os quatro pontos cardeais, dominava uma face diferente do tronco e seu respectivo mago era responsável por zelar pela
direção que supervisionava e influenciar os acontecimentos daquele lado. Portanto, o mago a oeste do tronco passava seus dias olhando para o mar e para os navios
de mercadores e piratas que resistiam aos temporais no porto de Luskan.
Uma conversa no torreão norte teria interessado aos companheiros de Dez-Burgos naquele dia.
- Fez muito bem, Jierdan - disse Sidnéia, uma feiticeira mais jovem e de menor importância na Torre das Hostes, apesar de demonstrar potencial suficiente
para conquistar um noviciado com um dos mais poderosos magos da guilda. Sem ser bonita, Sidnéia pouco se importava com as aparências físicas, dedicando sua energia
à busca inexorável pelo poder. Ela passara a maior parte dos seus vinte e cinco anos trabalhando em prol de um objetivo - o título de Maga - e sua determinação e
atitude deixavam poucas dúvidas quanto à sua capacidade de consegui-lo.
Jierdan aceitou o elogio com um aceno sagaz da cabeça, entendendo perfeitamente a forma condescendente com que este fora oferecido.
- Agi apenas como fui instruído - ele respondeu, sob uma fachada de humildade, lançando um olhar para o homem de aparência frágil, vestindo túnicas
de um castanho variegado, que fitava o mundo lá fora pela única janela da sala.
- Por que eles viriam aqui? - murmurou o mago consigo mesmo. Ele se voltou para os demais, e eles se encolheram instintivamente diante daquele olhar.
Era Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte, e, apesar de parecer fraco à distância, um exame mais de perto revelava no homem um poder mais pujante que o
de meros músculos protuberantes. E sua merecida reputação de valorizar a busca pelo conhecimento muito mais que a vida intimidava muitos que se colocavam diante
dele.
- Os viajantes apresentaram algum motivo para vir aqui?
- Nenhum no qual eu acreditasse - replicou Jierdan tranqüilamente. - O halfling falou de inspecionar a praça do mercado, mas eu...
- Improvável - interrompeu Dendibar, falando mais consigo mesmo do que para os demais. - Esses quatro têm mais em mente do que uma mera expedição mercantil.
Sidnéia pressionou Jierdan, procurando se manter nas boas graças do Mestre do Torreão Norte.
- Onde estão eles agora? - indagou.
Jierdan não se atreveu a confrontá-la na frente de Dendibar.
- Nas docas... em algum lugar - disse, depois deu de ombros.
- Você não sabe? - sibilou a jovem feiticeira.
- Planejavam se hospedar no Alfanje - retorquiu Jierdan. - Mas a briga os deixou na rua.
- E você devia tê-los seguido! - ralhou Sidnéia, acossando implacavelmente o soldado.
- Seria tolice até mesmo para um soldado da cidade percorrer sozinho os molhes à noite - rebateu Jierdan. - Não importa onde estejam neste momento.
Tenho os portões e o cais sob vigilância. Não podem sair de Luskan sem que eu saiba!
- Quero que os encontre! - ordenou Sidnéia, mas então Dendibar a silenciou.
- Deixe a vigilância como está - ele disse a Jierdan. - Eles não devem partir sem que eu saiba. Está dispensado. Apresente-se novamente quando tiver
algo a relatar.
Jierdan assumiu a posição de sentido e virou-se para partir, lançando, ao passar, um último olhar feroz para sua rival pelas graças do mago variegado. Era
apenas um soldado, não um aprendiz promissor como Sidnéia, mas, em Luskan onde a Torre das Hostes Arcanas era a verdadeira força oculta por trás de todas as estruturas
de poder da cidade, um soldado fazia bem em procurar o favor de um mago. Os capitães da guarda somente conseguiam suas posições e seus privilégios com o consentimento
prévio da Torre das Hostes.
Não podemos permitir que eles perambulem por aí livremente - argumentou Sidnéia quando a porta se fechou atrás do soldado que saía.
Não devem causar problemas por enquanto - replicou Dendibar. - Mesmo se o drow carregar com ele o artefato, levará anos para que compreenda seu potencial.
Paciência, minha amiga, tenho maneiras de descobrir o que precisamos saber. As peças deste quebra-cabeça vão se encaixar direitinho muito em breve.
- Aflige-me pensar que tamanho poder esteja tão ao nosso alcance - suspirou a jovem e impaciente feiticeira. - E nas mãos de um principiante!
- Paciência - repetiu o Mestre do Torreão Norte.
Sidnéia terminou de acender o circuito de velas que demarcava o perímetro do aposento especial e dirigiu-se lentamente para o braseiro solitário que se achava
em seu tripé de ferro, imediatamente fora do círculo mágico inscrito no piso. Desapontava-a saber que, assim que o braseiro também estivesse ardendo, ela seria instruída
a sair. Saboreando cada momento naquela sala raramente franqueada, considerada por muitos a melhor câmara de conjuração em todas as terras do norte, Sidnéia havia
muitas vezes implorado para continuar de serviço.
Mas Dendibar nunca a deixava ficar, explicando que suas inevitáveis perguntas acabariam se revelando uma grande distração. E, quando se lidava com os mundos
inferiores, as distrações geralmente se mostravam fatais.
Dendibar sentou-se de pernas cruzadas no interior do círculo mágico, entoando mantras até entrar num profundo transe meditativo, sem nem mesmo perceber as
ações de Sidnéia, que completava os preparativos. Todos os seus sentidos se voltavam para o interior, vasculhando o próprio ser para garantir que estivesse totalmente
preparado para aquela tarefa. Ele deixara apenas uma janela em sua mente aberta para o exterior, uma fração de sua consciência à espera de uma única deixa: o estalido
do ferrolho da pesada porta sendo recolocado em seu lugar com a saída de Sidnéia.
Suas pálpebras pesadas se abriram de repente, o campo estreito da visão fixado unicamente nas chamas do braseiro. Aquelas labaredas seriam a vida do espírito
invocado e dariam a ele uma forma tangível enquanto Dendibar o mantivesse preso no plano material.
- Ey vesus venerais dimin dou - começou a entoar o mago, a princípio lentamente, depois estabelecendo um ritmo estável.
Arrebatado pela insistente atração da invocação - como se a magia, assim que tivesse recebido um bruxuleio de vida, conduzisse a si própria à conclusão
do encantamento -, Dendibar passou com desenvoltura pelas várias modulações e sílabas arcanas, o suor em seu rosto a refletir ansiedade mais que nervosismo.
O mago variegado se deleitava com as invocações, pois dominava a vontade de seres muito além do mundo mortal por meio da mera persistência de seu considerável
poder mental. Aquela sala representava o ápice de seus estudos, a evidência irrefutável dos vastos limites de seus poderes.
Dessa vez, ele tinha como alvo seu informante favorito, um espírito que verdadeiramente o desprezava, mas não podia recusar seu chamado. Dendibar chegou ao
clímax da invocação, a nomeação.
- Morkai - chamou ele, baixinho.
A chama do braseiro se avivou durante um momento.
- Morkai! - gritou Dendibar, arrancando o espírito de sua prisão no outro mundo. O braseiro formou uma pequena bola. de fogo, depois se extinguiu nas
trevas, as chamas transmutadas na imagem de um homem de pé diante de Dendibar.
Arregaçaram-se os lábios finos do mago. Que ironia, pensou ele, que o homem cujo assassinato ele arranjara acabasse se mostrando sua mais valiosa fonte de
informações.
O espectro de Morkai, o Vermelho, apresentou-se resoluto e orgulhoso, uma imagem digna do poderoso mago que fora outrora. Ele mesmo havia criado aquela sala,
na época em que servira à Torre das Hostes no papel de Mestre do Torreão Norte. Mas, então, Dendibar e seus capangas haviam conspirado contra ele, usando seu aprendiz
de confiança para enfiar um punhal em seu coração e, assim, abrir uma trilha de sucessão para o próprio Dendibar alcançar a cobiçada posição no torreão.
Esse mesmo ato havia colocado uma segunda - e talvez mais significativa - cadeia de eventos em ação, pois foi o mesmo aprendiz, Akar Kessell, que acabou possuindo
a Estilha de Cristal, o poderoso artefato que Dendibar agora acreditava estar nas mãos de Drizzt Do'Urden. As histórias que haviam chegado de Dez-Burgos sobre a
batalha final de Akar Kessell nomeavam o elfo como o guerreiro que o abatera.
Não havia como Dendibar saber que a Estilha de Cristal agora jazia enterrada sob centenas de toneladas de gelo e rocha na montanha do Vale do Vento Gélido,
conhecida como Sepulcro de Kelvin, perdida na avalanche que matara Kessell. Tudo o que sabia da história era que Kessell, o aprendiz insignificante, havia quase
conquistado todo o Vale do Vento Gélido com a Estilha de Cristal e que Drizzt Do'Urden foi o último a ver Kessell com vida.
Dendibar retorcia as mãos ansiosamente sempre que pensava no poder que a relíquia traria a um mago mais instruído.
Saudações, Morkai, o Vermelho - riu Dendibar. - Quanta cortesia aceitar meu convite.
Aceito toda oportunidade de encará-lo, Dendibar, o Assassino - replicou o espectro. - Para que possa reconhecê-lo quando você navegar no barco da
Morte pelo reino tenebroso. Então estaremos em pé de igualdade novamente...
Silêncio! - ordenou Dendibar. Embora não admitisse a verdade, o mago variegado temia imensamente o dia em que teria de enfrentar o poderoso Morkai
mais uma vez. - Eu o trouxe aqui com um propósito - disse ele ao espectro. - Não tenho tempo para suas ameaças vãs.
- Então, diga-me que serviço devo executar - sibilou o espectro -, e deixe-me partir. Sua presença me ofende.
Dendibar se enfureceu, mas não deu prosseguimento à discussão. O tempo agia contra um mago envolvido numa magia de invocação, pois esta o exauria para manter
um espírito no plano material, e cada segundo que passava o enfraquecia um pouco mais. O maior risco naquele tipo de magia era o conjurador tentar manter o controle
durante muito tempo, até que se achasse fraco demais para controlar a entidade que havia invocado.
- Uma resposta simples é tudo o que exijo de você hoje, Morkai - disse Dendibar, escolhendo cuidadosamente cada palavra enquanto prosseguia. Morkai
notou a cautela e desconfiou que Dendibar escondia algo.
- Então, qual é a pergunta? - pressionou o espectro.
Dendibar manteve a cautela, considerando cada palavra antes de pronunciá-la. Ele não queria que Morkai obtivesse uma dica sequer sobre suas razões para procurar
pelo drow, pois o espectro certamente transmitiria a informação através dos planos. Muitos seres poderosos - talvez até mesmo o próprio espírito de Morkai - partiriam
em busca de uma relíquia tão poderosa se fizessem idéia do paradeiro da estilha.
- Quatro viajantes, um deles um elfo drow, chegaram hoje a Luskan vindos do Vale do Vento Gélido - explicou o mago variegado. - O que vieram fazer
na cidade? Por que estão aqui?
Morkai examinou sua nêmese, tentando descobrir o motivo da pergunta.
- Está aí uma boa pergunta para a guarda de sua cidade - ele respondeu.
- Sem dúvida os visitantes declararam a que vieram ao entrar pelo portão.
- Mas foi a você que perguntei! - gritou Dendibar, subitamente explodindo de fúria. Morkai protelava, e cada segundo que passava agora cobrava seu
preço do mago variegado. A essência de Morkai perdera pouco poder na morte, e ele lutava teimosamente contra o encanto aprisionador da magia. Dendibar, com um gesto
rápido, abriu um pergaminho diante dele.
- lenho uma dúzia destes já redigida - avisou ele.
Morkai se encolheu. Compreendeu a natureza da escritura, um rolo de pergaminho que revelava o nome verdadeiro de seu próprio ser. E uma vez lido, despojando-o
do véu de sigilo conferido pelo nome e desnudando a privacidade de sua alma, Dendibar invocaria o poder verdadeiro do pergaminho, usando modulações desafinadas para
destorcer o nome de Morkai e desintegrar a harmonia de seu espírito, supliciando-o, assim, até o cerne de seu ser.
- Por quanto tempo devo procurar suas respostas? - perguntou Morkai.
Dendibar sorriu diante da vitória, embora seu desgaste fosse cada vez maior.
- Duas horas - ele respondeu sem delongas, tendo cuidadosamente decidido a duração da busca antes da invocação, escolhendo um limite de tempo que daria
a Morkai oportunidade suficiente para encontrar algumas respostas, mas não o bastante para permitir que o espírito descobrisse mais do que deveria.
Morkai sorriu, adivinhando os motivos por trás da decisão. Deixou-se arremessar para trás de repente e sumiu numa nuvem de fumaça, as chamas que haviam alimentado
sua forma agora relegadas ao braseiro para aguardar seu retorno.
O alívio de Dendibar foi imediato. Apesar de ainda precisar se concentrar com o intuito de manter o portal para os planos no lugar, a oposição à sua vontade
e o desgaste de seu poder diminuíram consideravelmente quando o espírito se foi. A força de vontade de Morkai quase o havia sujeitado durante a audiência, e Dendibar
sacudiu a cabeça, não querendo acreditar que o velho mestre fosse capaz, mesmo morto, de manifestar-se com tamanha força. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao considerar
se seria sábio tramar contra alguém tão poderoso. Sempre que invocava Morkai, era lembrado de que o dia do ajuste de contas certamente chegaria.
Morkai teve pouco trabalho para descobrir algo sobre os quatro aventureiros. De fato, o espectro já sabia muito sobre eles. Havia se interessado bastante
por Dez-Burgos durante seu reinado como Mestre do Torreão Norte, e a curiosidade não morrera com seu corpo. Mesmo agora, ele geralmente dava uma espiada no que acontecia
no Vale do Vento Gélido, e qualquer um que se preocupasse com Dez-Burgos em meses recentes sabia algo sobre os quatro heróis.
O interesse contínuo de Morkai no mundo que deixara para trás não era uma característica incomum no mundo espiritual. A morte alterava as ambições da alma,
substituindo o amor pelos ganhos materiais e sociais com a eterna avidez por conhecimento. Alguns espíritos observavam os Reinos durante incontáveis séculos, simplesmente
para recolher informações e observar os vivos se ocuparem de suas vidas. Talvez fosse a inveja das sensações físicas que não podiam mais sentir. Mas, não importava
o motivo, a riqueza de conhecimentos num único espírito geralmente era mais relevante que as obras reunidas em todas as bibliotecas do Reino combinadas.
Morkai descobriu muita coisa nas duas horas que Dendibar havia lhe designado. Agora era sua vez de escolher cuidadosamente as palavras. Era obrigado a satisfazer
a solicitação do conjurador, mas tinha a intenção de responder da maneira mais enigmática e ambígua possível.
Os olhos de Dendibar coruscaram ao ver as chamas do braseiro darem início à sua dança denunciadora novamente. Já se teriam passado as duas horas?
perguntou-se, pois seu descanso pareceu muito mais breve e ele sentiu que não tinha se recuperado inteiramente da primeira audiência com o espectro.
Contudo, não poderia rejeitar a dança das chamas. Aprumou-se e trouxe os tornozelos para mais junto do corpo, retesando-se e firmando sua posição meditativa, de
pernas cruzadas.
A bola de fogo fez fumaça no auge de seus estertores e Morkai apareceu diante dele. O espectro se afastou obedientemente, sem fornecer qualquer informação
até que Dendibar pedisse especificamente por ela. A história completa por trás da visita dos quatro amigos a Luskan continuava imprecisa para Morkai, mas ele muito
descobrira sobre a demanda e mais do que desejava que Dendibar viesse a saber. Ele ainda não discernira as verdadeiras intenções por trás das perguntas do mago variegado,
mas sentiu com certeza que não eram boas, não importavam os objetivos de Dendibar.
- Qual é o propósito da visita? - indagou Dendibar, furioso com a tática evasiva de Morkai.
- Foi você mesmo quem me invocou - respondeu Morkai astuciosamente. - Sou obrigado a aparecer.
- Sem joguinhos! - rosnou o mago variegado. Ele fitou o espectro, manuseando o pergaminho de tormento em franca ameaça. Famosos por responder literalmente,
os seres dos outros planos geralmente atarantavam seus conjuradores, destorcendo o sentido conotativo da exata formulação de uma pergunta.
Dendibar sorriu em concessão à lógica simples do espectro e esclareceu a pergunta:
- Qual é o propósito da visita a Luskan dos quatro viajantes do Vale do Vento Gélido?
Razões variadas - replicou Morkai. - Um deles veio em busca da terra natal de seu pai, e do pai de seu pai.
- O drow? - perguntou Dendibar, tentando encontrar alguma maneira de encadear suas suspeitas de que Drizzt planejava retornar ao seu mundo subterrâneo natal
com a Estilha de Cristal. Talvez uma insurreição dos elfos negros, usando o poder da estilha? - É o drow que busca por sua terra natal?
- Não - respondeu o espectro, contente que Dendibar houvesse se desviado por uma tangente, protelando a linha de indagação mais específica e mais
perigosa. Os minutos que se passavam logo começariam a dissipar o domínio de Dendibar sobre o espectro e Morkai esperava poder encontrar uma maneira de se libertar
do mago variegado antes de revelar coisas demais sobre a companhia de Bruenor. - Drizzt Do'Urden renunciou completamente à sua terra natal. Ele nunca mais há de
retornar às entranhas do mundo e certamente não com seus mais caros amigos a reboque!
- Então, quem?
- Um dos outros quatro foge de um perigo que deixou para trás - ofereceu Morkai, deturpando a linha de indagações.
- Quem busca sua terra natal? - indagou Dendibar mais enfaticamente.
- O anão, Bruenor Martelo de Batalha - replicou Morkai, obrigado a obedecer. - Ele procura o local de seu nascimento, o Salão de Mitral, e seus amigos
uniram-se à sua demanda. Por que isso o interessa? Os companheiros não têm ligação com Luskan e não representam uma ameaça à Torre das Hostes.
- Não o chamei aqui para responder às suas perguntas! - ralhou Dendibar. - Agora, diga-me quem está fugindo do perigo. E o que é esse perigo?
- Observe - instruiu o espectro. Com um aceno da mão, Morkai transmitiu à mente do mago variegado uma imagem, um retrato de um cavaleiro de manto negro
arremetendo impetuosamente pela tundra. O freio do cavalo estava branco de espuma, mas o cavaleiro forçava o animal a continuar implacavelmente.
- O halfling foge deste homem - explicou Morkai -, apesar de o propósito do cavaleiro continuar a ser um mistério para mim. - Contar a Dendibar até
mesmo tão pouco enfurecia o espectro, mas Morkai ainda não conseguia resistir às ordens de sua nêmese. No entanto, ele sentia os grilhões da vontade do mago afrouxando-se
e desconfiava que a invocação chegava ao fim.
Dendibar se deteve para considerar as informações.
Nada do que Morkai lhe dissera indicava qualquer ligação direta com a Estilha de Cristal, mas ao menos ele descobrira que os quatro amigos não pretendiam
permanecer em Luskan por muito tempo. E ele descobrira um possível aliado, mais uma fonte de informações. O cavaleiro de manto negro devia ser realmente poderoso
para pôr a formidável trupe do halfling em fuga pela estrada.
Dendibar começava a formular suas próximas manobras quando um repentino e insistente repelão da teimosa resistência de Morkai rompeu sua concentração. Furioso,
lançou ao espectro um olhar ameaçador e começou a desenrolar o pergaminho.
Insolente! - ele resmungou e, embora pudesse ter estendido seu domínio sobre o espectro um pouco mais caso tivesse investido sua energia numa disputa
de vontades, começou a recitar o texto do rolo de pergaminho.
Morkai se encolheu, apesar de ter conscientemente levado Dendibar a esse extremo. O espectro aceitava o suplício, pois este sinalizava o fim da inquisição.
E Morkai se considerava feliz por Dendibar não o ter forçado a revelar os acontecimentos ainda mais distantes de Luskan, no vale logo além das fronteiras de Dez-Burgos.
À medida que as recitações de Dendibar ressoavam de maneira dissonante na harmonia de sua alma, Morkai começou a deslocar o ponto focai de sua concentração
ao longo de centenas de quilômetros, de volta à imagem da caravana mercante que agora se encontrava a um dia de viagem de Bremen, o mais próximo dos Dez-Burgos,
e à imagem da corajosa moça que havia se juntado aos mercadores. O espectro se consolou em saber que ela havia, ao menos por enquanto, escapado às investigações
do mago variegado.
Não que Morkai fosse altruísta; jamais fora acusado de prodigalidade nessa característica. Ele simplesmente encontrava imensa satisfação em atrapalhar como
pudesse o tratante que havia arranjado para que ele fosse assassinado.
Os cachos castanho-avermelhados de Cattiebrie balouçavam em seus ombros. Ela estava sentada no alto da carroça que seguia à frente da caravana mercante que
partira de Dez-Burgos no dia anterior, com destino a Luskan. Sem se incomodar com a brisa gelada, ela mantinha os olhos na estrada adiante, procurando algum sinal
de que o assassino por ali passara. Ela havia transmitido informações sobre Entreri a Cássio, e ele as passaria adiante até que chegassem aos anões. Cattiebrie se
perguntava agora se havia justificativa para sua partida sorrateira com a caravana mercante antes que o Clã Martelo de Batalha pudesse organizar a perseguição por
conta própria.
Mas somente ela vira o assassino em ação. Sabia muito bem que, se os anões partissem atrás dele num ataque frontal, a cautela varrida por seu desejo de vingar
Arnês e Grollo, muitos outros do clã morreriam.
Egoisticamente, talvez, Cattiebrie havia decidido que o assassino era assunto seu. Ele a amedrontara, despojara-a de anos de treinamento e disciplina e reduzira-a
à imagem trêmula de uma criança assustada. Mas ela era uma jovem mulher agora, não mais uma menina. Precisava responder pessoalmente aquela humilhação emocional,
ou as cicatrizes seguiriam com ela até o túmulo, assombrando-a, paralisando-a por todo o sempre ao longo da senda que deveria tomar para descobrir seu verdadeiro
potencial na vida.
Ela encontraria seus amigos em Luskan e os alertaria sobre o perigo às suas costas, e então, juntos, eles dariam conta de Artemis Entreri.
- Vamos indo bem rápido - assegurou-lhe o condutor chefe, solidário com a pressa da moça.
Cattiebrie não se voltou, os olhos fixos no horizonte plano diante dela.
- Meu coração me diz que não é rápido o bastante - lamentou-se.
O condutor olhou-a, curioso, mas sabia que era melhor não forçar a questão. Ela havia deixado claro desde o começo que seu assunto era particular. E, sendo
a filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha e, conforme voz corrente, uma excelente guerreira por mérito próprio, os mercadores haviam se considerado homens de
sorte por tê-la como companhia e respeitado seu desejo de privacidade. Além disso, como argumentara com tanta eloqüência um dos condutores durante uma reunião informal
antes da viagem, "só de pensar em olhar pro traseiro de um boi por quase quinhentos quilômetros faz a idéia de ter essa moça como companhia me parecer muito boa!".
Eles haviam até antecipado a data da partida para acomodá-la.
- Não se preocupe, Cattiebrie - tranqüilizou-a o condutor -, a gente te leva até lá!
Com um balançar da cabeça, Cattiebrie removeu do rosto o cabelo açoitado pelo vento e olhou para o sol que se punha no horizonte diante dela.
- Mas será que vai dar tempo? - ela perguntou baixinho, retoricamente, sabendo que o sussurro se perderia no vento assim que passasse por seus lábios.

4. OS ROCHEDOS

Drizzt assumiu a liderança enquanto os quatro companheiros percorriam as margens do rio Mirar, distanciando-se tanto quanto possível de Luskan. Apesar de
não dormirem havia várias horas, os confrontos na Cidade das Velas tinham liberado um jato de adrenalina em suas veias e nenhum deles se sentia cansado.
Havia algo de mágico no ar daquela noite, uma estática revigorante que teria feito o mais exausto viajante se lamentar por fechar os olhos. O rio, correndo
célere e volumoso devido ao degelo da primavera, cintilava com a claridade da noitinha, as cristas espumosas das ondas a capturar a luz das estrelas, devolvendo-a
na forma de borrifos de gotículas ajaezadas.
Normalmente cautelosos, os amigos não conseguiram evitar baixar a guarda. Não sentiam o perigo a espreitá-los de perto, nada sentiam a não ser a frialdade
penetrante e agradável da noite de primavera e a misteriosa atração do firmamento. Bruenor se perdeu em sonhos com o Salão de Mitral; Régis, nas lembranças de Calimporto;
até mesmo Wulfgar, tão desanimado em relação ao seu malfadado encontro com a civilização, sentiu seu espírito se elevar. Pensava em noites semelhantes na vasta tundra,
quando sonhara com o que jazia além dos horizontes de seu mundo. Agora, Wulfgar descobriu que além daqueles horizontes, faltava apenas um elemento. Para sua surpresa
- e contra os instintos aventureiros que repudiavam esses pensamentos consoladores -, desejou que Cattiebrie, a mulher pela qual se apaixonara, estivesse ali agora
para partilhar com ele a beleza daquela noite.
Se não estivessem tão absortos no prazer individual que a noite lhes proporcionava, os outros teriam percebido uma certa vivacidade adicional também no gracioso
passo de Drizzt Do'Urden. Para o drow, aquelas noites mágicas, quando a abóbada celeste se estendia até abaixo do horizonte, reafirmavam sua confiança na decisão
mais importante e mais difícil que jamais tomara: a escolha de abandonar seu povo e sua terra natal. As estrelas não piscavam sobre Menzoberranzan, a cidade escura
dos elfos negros. Nenhuma fascinação inexplicável dedilhava as cordas da alma partindo da pedra fria do imenso teto sombrio da caverna.
- O quanto minha gente perdeu por caminhar nas trevas - esvaiu-se o murmúrio de Drizzt no ar noturno.
A atração dos mistérios do céu infinito levou a alegria de seu espírito para além dos limites normais e abriu-lhe a mente para as perguntas irrespondíveis
do multiverso. Ele era um elfo e, apesar da pele negra, restava em sua alma um aspecto da alegria harmônica de seus primos da superfície. Ele se perguntou com que
generalidade aqueles sentimentos ocorriam entre sua gente. Será que permaneciam nos corações de todos os drow? Ou séculos de sublimação teriam extinguido as chamas
espirituais? Na opinião de Drizzt, talvez a maior perda sofrida por seu povo ao se retirar para as profundezas do mundo tinha sido a perda da capacidade de filosofar
sobre a espiritualidade da existência simplesmente pelo bem da razão.
A luminosidade cristalina do Mirar foi gradualmente perdendo o brilho à medida que as estrelas eram ofuscadas pela aurora cada vez mais luminosa. Ela chegou
como uma decepção muda para os amigos enquanto estes montavam acampamento num local abrigado perto das margens do rio.
- Fiquem sabendo que são poucas as noites assim - observou Bruenor quando o primeiro raio de luz rastejou sobre o horizonte oriental. Seus olhos cintilavam,
uma insinuação do maravilhoso devaneio de que raramente desfrutava o habitualmente prático anão.
Drizzt percebeu o brilho visionário nos olhos do anão e pensou nas noites que ele e Bruenor haviam passado no alto da Ladeira de Bruenor - seu local de encontro
especial -, lá no vale dos anões, em Dez-Burgos.
- Bem poucas - ele concordou.
Com um suspiro resignado, puseram-se a trabalhar. Drizzt e Wulfgar deram início ao desjejum enquanto Bruenor e Régis examinavam o mapa obtido em Luskan.
Apesar de todos os resmungos e da implicância por causa do halfling, Bruenor o havia pressionado a acompanhá-los por uma razão bem definida - fora a amizade
- e, apesar de ter disfarçado muito bem suas emoções, o anão se encheu verdadeiramente de alegria quando Régis apareceu na estrada, deitando os bofes pela boca e
não muito longe de Dez-Burgos, com seu pedido de última hora para se juntar à demanda.
Régis conhecia as terras ao sul da Espinha do Mundo melhor que qualquer um deles. O próprio Bruenor não saíra do Vale do Vento Gélido em quase dois séculos
e, na época, era apenas uma criança-anã imberbe. Wulfgar jamais deixara o vale e a única jornada de Drizzt pela superfície do mundo havia sido uma aventura noturna,
passando de uma sombra a outra e evitando muitos dos lugares que os companheiros precisariam vasculhar se quisessem encontrar o Salão de Mitral.
Régis correu os dedos pelo mapa, recontando animadamente a Bruenor suas experiências em cada um dos lugares indicados, particularmente Mirabar, a cidade mineira
de grande riqueza, ao norte, e Águas Profundas, fiel ao nome de Cidade dos Esplendores, descendo a costa em direção ao sul.
Bruenor escorregou um dedo pelo mapa, estudando as características físicas do terreno.
Mirabar fica mais ao meu gosto - disse ele, por fim, tamborilando sobre a marca da cidade enfiada nas encostas meridionais da Espinha do Mundo. -
O Salão de Mitral fica nas montanhas, isso pelo menos eu sei, e não para o lado do mar.
Régis considerou as observações do anão apenas por um instante, depois deixou cair o dedo sobre um outro ponto, a mais de cento e cinqüenta quilômetros de
Luskan continente adentro, segundo a escala do mapa.
- Sela Longa - disse ele. - A meio caminho de Lua Argêntea e a meio caminho entre Mirabar e Águas Profundas. Um bom lugar para procurarmos nossa rota.
- Uma cidade? - perguntou Bruenor, pois a marca no mapa não passava de um pequeno ponto negro.
- Uma aldeia - corrigiu Régis. - Não há muita gente por lá, mas uma família de magos, os Harpells, vive ali há muitos anos e conhece as terras do norte
melhor que ninguém. Ficariam contentes em nos ajudar.
Bruenor coçou o queixo e assentiu.
- Uma bela caminhada. O que a gente vai encontrar no caminho?
- Os rochedos - admitiu Régis, um pouco desencorajado ao se lembrar do lugar. - Ermos e cheios de orcs. Queria que houvesse uma outra estrada, mas
Sela Longa ainda parece a melhor opção.
- Todas as estradas do norte são perigosas - lembrou-lhe Bruenor.
Continuaram a examinar o mapa, Régis a recordar cada vez mais detalhes.
Uma série de marcas incomuns e não identificadas - três, em particular, correndo numa linha quase reta exatamente a leste de Luskan e rumo ao complexo de
rios ao sul da Floresta Oculta - chamou a atenção de Bruenor.
- Cemitérios ancestrais - explicou Régis. - Lugares sagrados dos uthgardt.
- Uthgardt?
Bárbaros - respondeu Régis sombriamente. - Como os do vale. Conhecem melhor a civilização, talvez, mas não são menos ferozes. As diferentes tribos estão por
todas as terras do norte, vagando pelos ermos.
Bruenor gemeu, compreendendo o desânimo do halfling, conhecedor também dos modos selvagens e da perícia em combate dos bárbaros. Os orcs se mostrariam adversários
bem menos formidáveis.
Quando os dois terminaram a conversa, Drizzt já estava se deitando à sombra fresca de uma árvore que se debruçava sobre o rio e Wulfgar ainda tinha metade
do seu desjejum no prato que repetira três vezes.
- 'Cê ainda 'tá mastigando! - gritou Bruenor, ao notar as parcas porções deixadas na panela.
- Uma noite cheia de aventuras - Wulfgar respondeu alegremente, e os amigos ficaram contentes em observar que a briga aparentemente não havia deixado
cicatrizes em sua determinação. - Uma boa refeição, um bom sono, e eu devo estar pronto para a estrada mais uma vez!
- Bom, não vai se acomodando ainda não! - ordenou Bruenor. - Um dos três turnos de guarda de hoje é todo seu!
Régis olhou ao redor, perplexo, sempre ligeiro para reconhecer um acréscimo em sua carga de trabalho.
- Três? - ele perguntou. - Por que não quatro?
- Os olhos do elfo são prá de noite - explicou Bruenor. - Deixa ele estar pronto prá encontrar nosso caminho quando o dia tiver corrido.
- E onde fica o nosso caminho? - perguntou Drizzt, em sua cama de musgos. - Vocês chegaram a uma conclusão quanto ao nosso próximo destino?
- Sela Longa - respondeu Régis. -Trezentos e vinte quilômetros a leste e ao sul, contornando a Floresta do Inverno Remoto e através dos rochedos.
- Desconheço o nome - replicou Drizzt.
- Lar dos Harpells - explicou Régis. - Uma família de magos renomada por sua bondosa hospitalidade. Passei algum tempo lá quando estava a caminho de
Dez-Burgos.
Wulfgar refugou diante da idéia. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido desprezavam os magos, pois consideravam as artes negras um poder empregado apenas pelos
covardes.
- Não tenho a menor vontade de ver esse lugar - ele declarou categoricamente.
- Quem te perguntou? - resmungou Bruenor, e Wulfgar flagrou-se voltando atrás em sua determinação, como um filho que se recusa a sustentar um argumento
teimoso em face de uma repreensão do pai.
- Você vai gostar de Sela Longa - Régis o tranqüilizou. - Os Harpells merecem realmente a reputação de hospitaleiros, e os prodígios de Sela Longa
vão lhe mostrar uma faceta da magia que você jamais esperou ver. Eles aceitarão até mesmo... - Flagrou sua mão involuntariamente apontando para Drizzt e, constrangido,
abortou sua afirmação.
Mas o estóico drow apenas sorriu.
- Não tenha medo, meu amigo - ele consolou Régis. - Suas palavras soam verdadeiras, e eu já aceitei minha condição em seu mundo. - Ele se deteve e retribuiu
individualmente cada um dos olhares desconfortáveis que recaíam sobre sua pessoa. - Conheço meus amigos e desfaço-me de meus inimigos - declarou, com uma decisão
que afastou as preocupações deles.
Desfaz sim, com uma espada - acrescentou Bruenor, com uma risadinha baixa, apesar de os ouvidos aguçados de Drizzt captarem o sussurro.
Se for preciso - concordou o drow, sorrindo. Então, ele rolou de lado para dormir um pouco, confiando totalmente nas habilidades de seus amigos para
protegê-lo.
Passaram um dia ocioso à sombra, ao lado do rio. No fim da tarde, Drizzt e Bruenor fizeram uma refeição e discutiram a rota, deixando Wulfgar e Régis profundamente
adormecidos, pelo menos até que tivessem comido à farta.
- Vamos seguir o rio mais uma noite - disse Bruenor. - Depois, para sudeste, atravessando o terreno aberto. Isso vai livrar a gente das matas e abrir
uma trilha reta à nossa frente.
- Talvez seja melhor viajarmos somente à noite durante alguns dias - sugeriu Drizzt. - Não sabemos que olhos nos seguem desde a Cidade das Velas.
- Concordo - respondeu Bruenor. - Vamos embora, então. Uma longa estrada à nossa frente e outra mais longa ainda depois disso!
- Longa demais - murmurou Régis, abrindo um olho cheio de preguiça.
Bruenor lançou-lhe um olhar feroz. Estava ansioso - pela viagem e também por levar seus amigos a uma estrada perigosa - e, numa defesa emocional, tomava como
pessoais todas as reclamações em relação à aventura.
- Para se caminhar, quero dizer - Régis explicou rapidamente. - Há fazendas nesta área e, portanto, deve haver alguns cavalos por aí.
- Cavalos vão custar muito caro por estas bandas - replicou Bruenor.
- Talvez... - disse manhosamente o halfling, e seus amigos logo adivinharam o que ele estava pensando. Os cenhos franzidos de ambos refletiam a desaprovação
geral.
Temos os rochedos à nossa frente! - argumentou Régis. - Os cavalos podem deixar os orcs para trás mas, sem eles, certamente vamos precisar lutar a cada quilômetro
da viagem! Além disso, seria um empréstimo. Poderíamos devolver os animais quando não precisássemos mais deles.
Drizzt e Bruenor não aprovavam a trapaça sugerida pelo halfling, mas não podiam refutar sua lógica. Cavalos certamente seriam de muita ajuda naquele ponto
da jornada.
- Acorda o garoto - resmungou Bruenor.
- E quanto ao meu plano? - perguntou Régis.
- Vamos decidir quando surgir a oportunidade!
Régis ficou satisfeito, confiante de que seus amigos optariam pelos cavalos. Ele comeu até se fartar, depois juntou penosamente os parcos restos da ceia e
foi acordar Wulfgar.
Estavam a caminho novamente logo em seguida e, pouco tempo depois, viram as luzes de um pequeno povoado ao longe.
- Leva a gente até lá - Bruenor disse a Drizzt. - Pode ser que valha a pena tentar o plano do Ronca-bucho.
Wulfgar, tendo perdido a conversa no acampamento, não entendeu, mas não quis discutir nem mesmo questionar o anão. Depois do desastre no Alfanje, ele havia
se resignado a um papel mais passivo na viagem, deixando que os outros três decidissem que trilhas deveriam tomar. Seguia sem reclamar e mantinha o martelo de prontidão
para quando fosse necessário.
Afastaram-se do rio alguns quilômetros, depois encontraram várias chácaras agrupadas no interior de uma robusta cerca de madeira.
- Há cães por aí - observou Drizzt, percebendo-os com sua excepcional audição.
- Então Ronca-bucho entra sozinho - disse Bruenor.
O rosto de Wulfgar se contorceu, confuso, principalmente, já que o olhar do halfling indicava que este não estava nada entusiasmado com a idéia.
- Isso eu não posso permitir - falou pomposamente o bárbaro. - Se há alguém entre nós que precisa de proteção é o pequeno. Não vou me esconder aqui
no escuro enquanto ele caminha sozinho para o perigo!
- Ele entra sozinho - disse Bruenor novamente. - A gente não veio aqui prá brigar, garoto. Ronca-bucho vai conseguir uns cavalos prá gente.
Régis sorriu, impotente, apanhado completamente na armadilha que Bruenor havia claramente preparado para ele. Bruenor o deixaria se apropriar dos cavalos,
como Régis havia insistido, mas a permissão relutante vinha acompanhada de um certo grau de responsabilidade e bravura de sua parte. Era a maneira do anão de se
absolver por seu envolvimento no engodo.
Wulfgar permaneceu firme em sua determinação de ficar ao lado do halfling, mas Régis sabia que o jovem guerreiro poderia inadvertidamente lhe trazer problemas
em negociações tão delicadas.
- Você fica com os outros - ele explicou ao bárbaro. - Posso lidar com isso sozinho.
Reunindo sua coragem, ele puxou o cinto por sobre a barriga volumosa e partiu em direção ao pequeno povoado.
Os rosnados ameaçadores de vários cães o saudaram quando ele se aproximou da porteira. Pensou em voltar - o pingente de rubi provavelmente de nada adiantaria
contra cães ferozes - mas, então, viu o vulto de um homem deixar uma das casas e vir em sua direção.
- O que você quer? - indagou o fazendeiro, colocando-se desafiadoramente do outro lado da porteira e apertando nas mãos uma antiga arma de haste, provavelmente
passada de uma geração a outra em sua família.
Sou apenas um viajante cansado - Régis começou a explicar, tentando parecer tão digno de pena quanto pudesse. Era um conto que o fazendeiro ouvira
com demasiada freqüência.
- Vá embora! - ordenou ele.
- Mas...
- Suma!
Sobre um cômoro a uma pequena distância dali, os três companheiros assistiam à confrontação, apesar de, à luz fraca, somente Drizzt ver a cena com clareza
suficiente para entender o que acontecia. O drow via que o fazendeiro estava tenso pela maneira que segurava a alabarda e podia julgar a profunda determinação das
exigências do homem pela carranca resoluta que este trazia.
Mas, então, Régis puxou algo de sob seu paletó e quase que imediatamente o fazendeiro relaxou a pressão das mãos sobre a arma. Pouco depois, a porteira se
abriu e Régis entrou.
Os amigos esperaram ansiosamente durante várias horas extenuantes, sem qualquer outro sinal de Régis. Pensaram em confrontar os próprios fazendeiros, temendo
que alguma ignóbil perfídia houvesse ocorrido ao halfling. Então, finalmente, com a lua bem além de seu ponto culminante, Régis emergiu pela porteira, conduzindo
dois cavalos e dois pôneis. Os fazendeiros e suas famílias acenavam-lhe em despedida, fazendo-o prometer deter-se ali para uma visita caso algum dia passasse novamente
por aquelas bandas.
- Impressionante - riu Drizzt. Bruenor e Wulfgar só fizeram menear as cabeças, incrédulos.
Pela primeira vez desde que havia entrado no povoado, Régis lembrou que sua demora poderia ter causado alguma angústia aos amigos. O fazendeiro insistira
para que ele ceasse antes que se sentassem para discutir fosse lá qual o negocio que o trouxera ali, e, já que precisava ser cortês (e já que tinha ceado só uma
vez naquele dia), Régis concordou, apesar de abreviar a refeição ao máximo possível e educadamente declinar do convite para repetir o prato uma quarta vez. Conseguir
os cavalos mostrou-se bem fácil depois disso, Precisou apenas prometer deixá-los com os magos em Sela Longa quando ele e seus amigos prosseguissem a partir de lá.
Régis estava certo de que seus amigos não ficariam bravos com ele por muito tempo. Ele os fizera esperar, preocupados, durante metade da noite, mas seu
empenho pouparia a todos muitos dias numa estrada perigosa. Ele sabia que, depois de uma ou duas horas cavalgando com o vento a passar velozmente por eles, os companheiros
esqueceriam toda a raiva. Mesmo que não esquecessem com tanta facilidade, para Régis, uma boa refeição sempre valia algumas inconveniências.
Drizzt propositalmente fez o grupo se deslocar mais para leste que sudeste. Não encontrou nenhuma referência no mapa de Bruenor que lhe permitisse aproximar
a rota direta para Sela Longa. Se tentasse o caminho direto e errasse, mesmo que por pouco, eles topariam com a estrada principal que vinha da cidade nortista de
Mirabar sem saber se deveriam virar para o norte ou para o sul. Seguindo diretamente para leste, o drow tinha certeza de que alcançariam a estrada ao norte de Sela
Longa. A viagem aumentaria em alguns quilômetros, mas talvez isso lhes poupasse vários dias de retrocesso.
Durante todo o dia e a noite seguintes, a cavalgada foi fácil e desimpedida e, depois disso, Bruenor decidiu que estavam longe o suficiente de Luskan para
adotar um plano de viagem mais normal.
- A gente pode seguir de dia agora - ele anunciou no início da tarde de seu segundo dia com os cavalos.
- Prefiro a noite - disse Drizzt. Acabara de acordar e escovava seu garanhão negro, esguio, mas forte.
- Eu, não - argumentou Régis. - As noites foram feitas para se dormir, e os cavalos ficam praticamente cegos aos buracos e às pedras que poderiam estropiá-los.
- Um meio termo, então - ofereceu Wulfgar, espreguiçando-se para livrar seus ossos dos últimos vestígios de sono. - Podemos partir depois do zênite
do sol, mantendo-o às nossas costas pelo bem de Drizzt, e cavalgar até tarde da noite.
- Boa idéia, rapaz - riu Bruenor. - Parece mesmo passar do meio-dia agora. Aos cavalos, então! Hora de partir!
- Você poderia ter ficado de boca fechada até depois da ceia! - Régis resmungou para Wulfgar, levando relutantemente a sela às costas de seu pequeno
pônei branco.
Wulfgar correu a ajudar o amigo atribulado.
- Mas teríamos perdido meio dia de viagem - ele replicou.
- Que pena isso seria - retorquiu Régis.
Naquele dia, o quarto desde que haviam deixado Luskan, os companheiros chegaram aos rochedos, um trecho estreito de outeiros fragmentados e colinas onduladas.
Uma beleza rude e indomada definia o lugar, uma impressão esmagadora de natureza selvagem que dava a cada viajante que passasse por ali uma sensação de conquista,
de que ele poderia ser o primeiro a botar os olhos em cada ponto daquela paisagem. E, como sempre era o caso nos ermos, a emoção da aventura vinha acompanhada por
um certo grau de risco. Mal haviam adentrado o primeiro vale no terreno irregular e Drizzt avistou rastros que conhecia muito bem: a marcha pesada de um bando de
orcs.
- Foram feitos a menos de um dia - disse ele aos seus preocupados companheiros.
Quantos? - perguntou Bruenor.
Drizzt deu de ombros.
Uns dez pelo menos, talvez o dobro.
Vamos continuar no nosso caminho - sugeriu o anão. - Estão na nossa frente e é melhor do que se estivessem atrás da gente.
Quando veio o crepúsculo, marcando o ponto médio da jornada daquele dia os companheiros fizeram uma breve parada e deixaram os cavalos pastarem num pequeno
prado.
A trilha dos orcs ainda estava diante deles, mas Wulfgar, assumindo a retaguarda da trupe, mantinha os olhos voltados para trás.
- Estão nos seguindo - disse ele, diante dos rostos inquisitivos de seus amigos.
- Orcs? - Régis perguntou.
O bárbaro meneou a cabeça:
- Não como os que eu conheço. Pelo que sei, nossos perseguidores são espertos e cautelosos.
- Pode ser que os orcs daqui conheçam melhor que os orcs do vale os hábitos das pessoas de bem - disse Bruenor, mas ele desconfiava que não se tratavam
de orcs e não precisava olhar para Régis para saber que o halfling tinha a mesma preocupação. A primeira marca do mapa que Régis identificara como um cemitério ancestral
não poderia estar muito longe de sua posição atual.
- De volta aos cavalos - sugeriu Drizzt. - Uma cavalgada forçada pode melhorar bastante nossa posição.
Siga até depois da lua se pôr - concordou Bruenor - E pare quando tiver encontrado um lugar onde a gente possa resistir ao ataque. Tenho a impressão que vamos
ter luta antes da aurora pegar a gente de surpresa!
Eles não encontraram nenhum sinal palpável durante a cavalgada que os levou praticamente a atravessar toda a extensão dos rochedos. Até mesmo a trilha dos
orcs desapareceu mais ao norte, deixando o caminho diante deles aparentemente livre. Wulfgar, porém, estava certo de que captara vários sons arás deles e movimentos
na periferia de seu campo visual.
Drizzt teria preferido continuar até que tivessem deixado os rochedos completamente para trás mas, no terreno agreste, os cavalos haviam atingido o limite
de sua resistência. Parou num pequeno bosque de pinheiros no topo de uma pequena elevação, suspeitando, como os demais, de que olhos hostis os observavam de várias
direções.
Drizzt já estava no alto de uma das árvores antes que os outros tivessem sequer desmontado. Amarraram os cavalos bem juntos e posicionaram-se ao redor dos
animais. Nem mesmo Régis conseguiria dormir, pois, apesar de confiar na visão noturna de Drizzt, a expectativa já fazia o sangue circular rápido em suas veias.
Bruenor, um veterano de centenas de batalhas, tinha toda a confiança em sua perícia em combate. Recostou-se tranqüilamente contra uma árvore, o machado chanfrado
sobre o peito, uma das mãos bem firme sobre a empunhadura da arma.
Wulfgar, porém, fez outros preparativos. Começou a reunir paus e galhos quebrados e a afiar suas pontas. A procura de toda e qualquer vantagem, ele os distribuiu
em posições estratégicas ao redor da área para que oferecessem a melhor disposição defensiva possível, usando suas pontas mortíferas para reduzir o número de rotas
de aproximação dos atacantes. Escondeu astuciosamente outros paus em ângulos que fariam com que os orcs tropeçassem e neles se empalassem antes que conseguissem
alcançá-lo.
Régis, o mais nervoso de todos, assistiu a tudo e percebeu as diferenças nas táticas dos seus amigos. Sentiu que pouco poderia fazer a fim de se preparar
para tal luta e procurou apenas manter-se fora do caminho para não atrapalhar as diligências de seus companheiros. Talvez surgisse a oportunidade para desferir um
ataque de surpresa, mas ele sequer considerou essa possibilidade naquele momento. A bravura ocorria espontaneamente ao halfling. Com certeza nunca era algo que ele
planejasse.
Com tantas distrações e preparativos a desviar-lhes a atenção da nervosa expectativa, foi quase um alívio quando, coisa de uma hora depois, a ansiedade se
tornou realidade. Drizzt cochichou para os demais que havia movimento nos campos abaixo do bosque.
- Quantos? - retornou Bruenor.
- Quatro para um contra nós, talvez mais - Drizzt replicou. O anão se voltou para Wulfgar:
- 'Cê 'tá pronto, garoto?
Wulfgar bateu de leve no martelo diante dele.
- Quatro contra um? - ele riu.
Bruenor apreciava a confiança do jovem guerreiro, apesar de saber que a desvantagem poderia de fato mostrar-se maior, já que Régis provavelmente não se envolveria
no combate franco.
- A gente deixa eles vir ou pega eles no campo? - Bruenor perguntou a Drizzt.
- Deixe-os vir - replicou o drow. - O fato de se aproximarem furtiva mente mostra que eles acreditam ter a surpresa como aliada.
- E uma surpresa revertida é, de longe, muito melhor que o primeiro golpe - completou Bruenor. - Faça o que puder com seu arco quando a coisa começar, elfo.
A gente vai estar te esperando!
Wulfgar imaginou as chamas que se acendiam nos olhos cor de lavanda do drow, uma luz mortífera que jamais correspondia à calma exterior de Drizzt antes de
uma batalha. O bárbaro se consolou, pois a sede de batalha do drow sobrepujava a sua, e ele nunca vira as cimitarras sibilantes superadas por nenhum adversário.
Ele bateu de leve no martelo novamente e agachou-se num buraco ao lado das raízes de uma das árvores.
Bruenor se meteu entre os corpos volumosos de dois dos cavalos, enfiando os pés nos estribos de cada um dos animais, e Régis, depois de ter recheado os sacos
de dormir para lhes dar a aparência de corpos adormecidos, fugiu em disparada sob os ramos baixos de uma das árvores.
Os orcs se aproximaram do acampamento em formação circular, obviamente esperando um ataque fácil. Drizzt sorriu, esperançoso, ao notar as falhas no círculo,
os flancos expostos que impediriam o rápido socorro a qualquer grupo isolado. O bando inteiro alcançaria o perímetro do bosque ao mesmo tempo, e Wulfgar, o mais
próximo da orla, muito provavelmente desferiria o primeiro golpe.
Os orcs se aproximaram sorrateiramente, um grupo se esgueirava em direção aos cavalos, um outro em direção aos sacos de dormir. Quatro deles passaram por
Wulfgar, mas ele esperou mais um segundo e permitiu que os demais se aproximassem o suficiente dos cavalos para Bruenor atacar.
Então, passou o momento de se esconder.
Wulfgar saltou de seu esconderijo com Garra de Palas, seu martelo de guerra mágico, já em movimento.
- Tempus! -gritou ele para seu deus das batalhas, e o primeiro golpe atingiu ruidosamente o alvo, levando dois orcs ao chão.
O outro grupo correu a desamarrar os cavalos, a fim de tirá-los do acampamento, esperando dar um fim a todas as rotas de fuga.
Mas foram saudados pelos rosnados do anão e pelo clangor de seu machado!
Os orcs surpreendidos saltaram para as selas, e Bruenor dividiu um deles ao meio e arrancou a cabeça de um segundo antes que os outros dois percebessem que
haviam sido atacados.
Drizzt escolheu como alvos os orcs mais próximos aos grupos sob ataque e atrasou tanto quanto pôde os reforços. A corda de seu arco zuniu uma, duas, três
vezes, e um número igual de orcs caiu ao chão, os olhos fechados e as mãos impotentemente cerradas em torno das hastes das flechas assassinas.
Os ataques de surpresa haviam penetrado profundamente as fileiras de seus inimigos e agora o drow sacava as cimitarras e deixava-se cair de sua posição elevada,
confiante de que ele e seus companheiros conseguiriam liquidar rapidamente o resto do bando. Entretanto, seu sorriso durou pouco, pois, ao descer, ele notou mais
movimentação no campo.
Drizzt caíra no meio de três criaturas, as espadas já em movimento antes mesmo que seus pés tocassem o solo. Os orcs não estavam totalmente surpresos - um
deles vira o drow cair -, mas Drizzt apanhou-os desequilibrados, ainda completando o giro que colocaria suas armas em ação.
Com os golpes rápidos do drow, a menor hesitação significava a morte certa, e Drizzt era o único sob controle em meio àquela confusão de corpos. Suas cimitarras
desferiram talhos e estocadas na carne dos orcs com precisão mortal.
O sucesso de Wulfgar havia sido igualmente auspicioso. Ele encarou duas das criaturas e, apesar de serem guerreiros ferozes, os orcs não se igualavam em força
ao gigantesco bárbaro. Um deles conseguiu erguer a arma tosca a tempo de bloquear o golpe de Wulfgar, mas Garra de Palas atravessou-lhe a defesa, estilhaçando a
arma e depois o crânio do desafortunado orc, sem nem mesmo perder velocidade devido ao esforço.
Bruenor foi o primeiro a ter problemas. Seus ataques iniciais foram perfeitos, o que o deixou com apenas dois oponentes de pé: uma desvantagem que o anão
apreciava. Mas, em meio à comoção, os cavalos empinaram e dispararam, rompendo as amarras que os prendiam aos galhos. Bruenor caiu por terra e, antes que conseguisse
se recuperar, teve a cabeça pinçada pelo casco de seu próprio pônei. Um dos orcs também foi derrubado, mas o último se livrou da confusão e correu para dar cabo
do anão atordoado assim que os cavalos deixaram a área.
Por sorte, um daqueles momentos espontâneos de bravura se apoderou de Régis naquele instante. Ele saiu sorrateiramente de sob a árvore, postando-se silenciosamente
atrás do orc. Era alto para um orc e, mesmo nas pontas dos pés, Régis não gostou do ângulo que se apresentava para um golpe contra a cabeça do monstro. Dando de
ombros, resignado, o halfling reverteu sua estratégia.
Antes que o orc pudesse sequer dar início ao golpe que abateria Bruenor, a maça do halfling subiu por entre seus joelhos, chocando-se contra sua virilha e
erguendo-o do chão. A vítima, aos berros, levou às mãos ao ferimento, revirou os olhos a esmo e foi ao chão sem mais ambições de lutar.

Tudo acontecera apenas num instante, mas a vitória ainda não fora conquistada Outros seis orcs entraram na refrega, dois deles interromperam a tentativa
de Drizzt de chegar até Régis e Bruenor, três outros correram em auxílio do companheiro solitário que enfrentava o gigantesco bárbaro. E um deles rastejando pela
mesma trajetória tomada por Régis, aproximou-se do halfling desavisado.
No mesmo instante em que Régis distinguiu o grito de alerta do drow, uma clava o atingiu entre as omoplatas, arrancando-lhe o ar dos pulmões e atirando-o
ao solo.
Wulfgar agora era acossado pelos quatro lados e, apesar de sua gabolice antes da batalha, descobriu que não gostava nada daquela situação. Concentrou-se em
aparar os golpes, esperando que o drow conseguisse chegar até ele antes que suas defesas sucumbissem.
Ele se encontrava em terrível inferioridade numérica.
Uma espada orc entrou-lhe numa costela, uma outra lhe cortou o braço.
Drizzt sabia que poderia derrotar os dois que agora enfrentava, mas duvidava que conseguisse fazê-lo a tempo de ajudar seu amigo bárbaro ou o halfling. E
havia ainda reforços no campo.
Régis rolou para se postar bem ao lado de Bruenor, e os gemidos do anão deixaram claro que a luta terminara para ambos. Então, o orc estava sobre ele, a clava
erguida acima da cabeça e um sorriso maldoso a se espalhar em sua cara feia. Régis fechou os olhos, sem vontade de assistir à queda do golpe que o mataria.
Então, ouviu o som do impacto... acima dele.
Assustado, ele abriu os olhos. Uma machadinha se achava encravada no peito do seu atacante. O orc olhou para a coisa, atordoado. A clava despencou inofensivamente
atrás do orc e ele também caiu de costas, morto.
Régis não entendeu.
- Wulfgar? -perguntou ele, para ninguém.
Uma forma descomunal, quase tão grande quanto a de Wulfgar, saltou sobre ele e precipitou-se sobre o orc, arrancando ferozmente a machadinha do peito da criatura.
Era humano e vestia as peles de um bárbaro, mas, diferente das tribos do Vale do Vento Gélido, os cabelos daquele homem eram negros. - Ah, não - gemeu Régis, lembrando-se
de seus próprios alertas para Bruenor sobre os bárbaros uthgardt. O homem salvara sua vida, mas, conhecendo a reputação do selvagem, Régis duvidava que uma amizade
se formaria a partir daquele encontro. Ele começou a se sentar, desejando expressar sua sincera gratidão e dispersar quaisquer idéias hostis que o bárbaro pudesse
em relação a ele. Pensou até mesmo em usar o pingente de rubi para evocar alguns sentimentos amistosos.
Mas o grandalhão, percebendo o movimento, girou de repente e deu-lhe um pontapé no rosto.
Régis caiu de costas e tudo ficou escuro.

5. PÔNEIS CELESTES

Bárbaros de cabelos negros, aos gritos, tomados pelo frenesi da batalha, irromperam no bosque. Drizzt percebeu imediatamente que aqueles guerreiros corpulentos
eram as formas que vira no campo, movendo-se por trás das fileiras de orcs, mas ele ainda não tinha certeza se eram aliados ou inimigos.
Não importava de que lado estavam, a chegada dos bárbaros infundiu terror nos orcs remanescentes. Os dois que combatiam Drizzt perderam toda a vontade de
lutar, revelando o desejo de desistir do confronto e fugir com uma súbita alteração de postura. Drizzt lhes fez a vontade, certo de que não iriam muito longe de
qualquer maneira e sentindo que também seria aconselhável sumir de vista.
Os orcs fugiram, mas seus perseguidores logo os envolveram em nova batalha pouco além das árvores. Menos óbvio em sua fuga, Drizzt subiu, sorrateiro e despercebido,
de volta à arvore onde deixara seu arco.
Wulfgar foi incapaz de sublimar com a mesma facilidade sua ânsia de batalhas. Com dois de seus amigos inconscientes, sua sede pelo sangue dos orcs era insaciável,
e o novo grupo de homens que se juntara à luta clamava por Tempus - seu próprio deus das batalhas - com um fervor que o jovem guerreiro não conseguiria ignorar.
Distraído pela repentina marcha dos acontecimentos, o círculo de orcs em volta de Wulfgar se afrouxou por apenas um instante, e ele golpeou com força.
um orc desviou o olhar, e Garra de Palas lacerou-lhe a cara antes que seus olhos retornassem à luta. Wulfgar varou a falha no círculo, empurrando um segundo
orc ao passar. Enquanto a criatura cambaleava, tentando se virar para realinhar a defesa, o poderoso bárbaro a abateu com um só golpe. Os outros dois se viraram
e fugiram, mas Wulfgar seguiu em seus calcanhares.
Arremessou o martelo, arrancou a vida de um deles e saltou sobre o outro, levando-o ao chão sob seu peso e depois esmagou-o até a morte com as Próprias mãos.
Ao terminar, depois de ouvir o derradeiro estalido das vértebras do pescoço, Wulfgar lembrou-se de sua situação e de seus amigos. Ficou de pé num salto
e recuou, de costas para as árvores.
Os bárbaros de cabelos negros guardaram distância, respeitando-lhe a habilidade, e não havia como Wulfgar ter certeza das intenções deles. Olhou ao redor,
procurando pelos amigos. Régis e Bruenor jaziam lado a lado, perto de onde os cavalos haviam sido amarrados; não sabia dizer se estavam vivos ou mortos. Não havia
sinal de Drizzt, mas ainda se combatia além da outra orla do bosque.
Os guerreiros se dispuseram num amplo semicírculo ao redor dele, bloqueando todas as rotas de fuga. Mas interromperam de repente seu posicionamento, pois
Garra de Palas retornara magicamente às mãos de Wulfgar.
Ele não seria capaz de vencer tantos assim, mas a idéia não o intimidava. Morreria lutando, como um verdadeiro guerreiro, e sua morte seria lembrada. Se os
bárbaros de cabelos negros o atacassem, sabia que muitos não retornariam às respectivas famílias. Fincou os calcanhares no solo e apertou firmemente o martelo de
guerra nas mãos.
- Acabemos logo com isso - ele grunhiu para as trevas.
- Espere! - veio de cima um sussurro baixo, mas imperativo. Wulfgar imediatamente reconheceu a voz de Drizzt e relaxou as mãos. - Mantenha sua honra,
mas saiba que mais vidas estão em jogo além da sua!
Wulfgar compreendeu então que Régis e Bruenor provavelmente ainda estavam vivos. Deixou Garra de Palas cair e gritou para os guerreiros:
- Bons olhos os vejam!
Não responderam, mas um deles, quase tão alto e musculoso quanto Wulfgar, deixou as fileiras e aproximou-se para se colocar diante dele. O estranho usava
o cabelo comprido preso numa única trança que lhe descia pelo lado do rosto e por sobre o ombro. As faces se achavam pintadas de branco, à semelhança de asas. A
resistência de sua constituição e a disposição disciplinada de seu rosto refletiam uma vida inteira na imensidão agreste e, não fosse pela cor negra dos cabelos,
Wulfgar o teria julgado um membro das tribos do Vale do Vento Gélido.
O homem moreno também reconheceu Wulfgar; contudo, mais versado nas estruturas universais das sociedades do norte, não ficou tão perplexo com as semelhanças.
- Você é do vale - disse ele numa forma imperfeita da língua geral. - Além das montanhas, onde sopra o vento frio.
Wulfgar assentiu.
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce. Temos os mesmos deuses, pois eu também clamo a Tempus por força e coragem.
O homem moreno olhou ao redor, para os orcs abatidos.
- O deus responde ao seu chamado, guerreiro do vale.
O queixo de Wulfgar se ergueu de orgulho.
- Também temos em comum o ódio pelos orcs - continuou ele -, mas nada sei sobre o seu povo.
- Há de aprender - respondeu o homem moreno.
Ele estendeu a mão e indicou o martelo de guerra. Wulfgar se aprumou, firme sem a menor intenção de se render, não importavam suas chances de sobrevivência.
O homem moreno olhou de lado, atraindo o olhar de Wulfgar. Dois guerreiros haviam apanhado Bruenor e Régis e os carregavam nas costas, enquanto outros haviam já
recapturado os cavalos e os traziam pelas rédeas.
- A arma - exigiu o homem moreno. - Você está em nossas terras sem nossa permissão, Wulfgar, filho de Beornegar. O preço de tal crime é a morte. Vai assistir
à execução da sentença dos seus amiguinhos?
O Wulfgar mais jovem teria atacado naquele instante e provocado a perdição de todos eles num arroubo de fúria gloriosa. Mas Wulfgar muito aprendera com seus
novos amigos, particularmente com Drizzt. Ele sabia que Garra de Palas retornaria ao seu chamado e sabia também que Drizzt não os abandonaria. Não era hora de lutar.
Ele até mesmo deixou que lhe amarrassem as mãos, um ato de desonra que nenhum guerreiro da Tribo do Alce jamais permitiria. Mas Wulfgar tinha fé em Drizzt.
Suas mãos seriam liberadas novamente. Então, seria sua a última palavra.
Quando chegaram ao acampamento dos bárbaros, tanto Régis quanto Bruenor haviam recobrado a consciência e, amarrados, caminhavam ao lado de seu amigo bárbaro.
O sangue seco formava crostas nos cabelos de Bruenor, e ele perdera o elmo, mas sua resistência de anão fizera com que sobrevivesse a mais um confronto mortal.
Galgaram o cimo de uma elevação e chegaram ao perímetro de um círculo de tendas e fogueiras chamejantes. Ao som dos brados em louvor a Tempus, a volta do
bando de guerra despertou o acampamento e cabeças decepadas de orcs foram atiradas dentro do círculo para anunciar a gloriosa chegada dos guerreiros. O fervor no
interior do acampamento logo se igualou ao do bando guerra que chegava, e os três prisioneiros foram os primeiros a entrar, aos empurrões, para serem saudados por
vinte bárbaros aos berros.
- O que é que eles comem? - perguntou Bruenor, mais por sarcasmo que preocupação.
- Seja lá o que for, é bom alimentá-los, e rápido - respondeu Régis, conseguindo do guarda atrás dele um tapa na nuca e um aviso para ficar calado.
Os prisioneiros e os cavalos foram reunidos no centro do acampamento, e a tribo os cercou numa dança de vitória, chutando cabeças de orcs e entoando em
voz alta, numa língua desconhecida pelos companheiros, seu louvor a Tempus e a Uthgar - o herói ancestral - pelo sucesso da noite.
Aquilo continuou durante quase uma hora e, então, acabou de repente, e todos os rostos no círculo se voltaram para a aba fechada de uma tenda grande e ornamentada.
O silêncio se prolongou por um instante antes que a aba se abrisse de repente. Para fora saltou um ancião, esguio como um mastro de tenda, demonstrando, porém,
mais energia do que se esperaria de sua óbvia idade avançada. O rosto pintado com as mesmas marcas dos guerreiros, só que mais elaboradas, ele usava sobre um dos
olhos um tapa-olho com uma imensa gema verde costurada nele. Sua túnica era do mais puro branco, as mangas se revelavam como asas recobertas de penas sempre que
ele agitava os braços. Dançou e rodopiou pelas fileiras de guerreiros, e todos prendiam a respiração e se encolhiam até que ele tivesse passado.
- Chefe? - sussurrou Bruenor.
- Xamã - corrigiu Wulfgar, melhor conhecedor dos costumes da vida tribal. O respeito que os guerreiros mostravam àquele homem advinha de um temor muito
além daquele que um inimigo mortal, ou até mesmo um líder, seria capaz de provocar.
O xamã girou e saltou, pousando bem diante dos três prisioneiros. Olhou para Bruenor e Régis durante apenas um instante, depois voltou toda a sua atenção
para Wulfgar.
- Sou Valric Olhar Alto - berrou ele, de repente. - Sacerdote dos seguidores dos Pôneis Celestes! Os filhos de Uthgar!
- Uthgar! - repetiram os guerreiros, batendo suas machadinhas contra os escudos de madeira.
Wulfgar esperou até que a comoção se extinguisse, depois se apresentou:
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce.
- E eu sou Bruenor... - começou o anão.
- Silêncio! - berrou-lhe Valric, tremendo de raiva. - Não dou a mínima para você!
Bruenor fechou a boca e alimentou sonhos que envolviam seu machado e a cabeça de Valric.
- Não era a nossa intenção lhes fazer mal, nem invadir - começou Wulfgar, mas Valric ergueu a mão e o interrompeu.
- Seu propósito não me interessa - explicou com calma, mas sua agitação ressurgiu imediatamente. -Tempus nos entregou vocês, isso é tudo! Um guerreiro
valoroso?
Ele olhou ao redor, para seus próprios homens, e a resposta deles mostrou impaciência pelo desafio iminente.
_ A quantos você fez jus? - ele perguntou a Wulfgar.
- Sete tombaram diante de mim - respondeu orgulhosamente o jovem bárbaro.
Valric assentiu, com ar aprovador.
- Alto e forte - comentou ele. - Descubramos se Tempus está ao seu lado Julguemos se você é digno de correr com os Pôneis Celestes!
Gritos irromperam imediatamente e dois guerreiros se apressaram a desamarrar Wulfgar. Um terceiro, o líder do bando de guerra que falara a Wulfgar no arvoredo,
lançou ao chão a machadinha e o escudo e adentrou o círculo com impetuosidade.
Drizzt esperou em sua árvore até que o último membro do bando de guerra partisse, após desistir da busca pelo cavaleiro da quarta montaria. Então, o drow
se moveu rapidamente e juntou alguns dos objetos abandonados: o machado do anão e a maça de Régis. Contudo, foi obrigado a estacar e a se controlar ao encontrar
o elmo de Bruenor, manchado de sangue, a ostentar um novo amassado e um dos chifres, quebrado. Teria seu amigo sobrevivido?
Ele enfiou o elmo quebrado em sua mochila e escapuliu-se atrás do grupo, mantendo uma distância cautelosa.
O alívio o inundou ao chegar ao acampamento e avistar seus três amigos, Bruenor tranqüilo entre Wulfgar e Régis. Satisfeito, Drizzt recolheu suas emoções
e todos os pensamentos referentes ao confronto anterior, focalizou sua perspicácia na situação diante dele e formulou um plano de ataque para libertar seus amigos.
O homem moreno ofereceu as palmas abertas a Wulfgar, convidando sua contraparte loura a segurá-las. Wulfgar jamais vira aquele desafio antes, mas não era
tão diferente das provas de força que sua própria gente praticava.
Seus pés não devem se mexer! - instruiu Valric. - Este é o desafio de força! Que Tempus nos mostre seu valor!
A fisionomia determinada de Wulfgar não revelava o menor sinal de sua confiança em poder derrotar qualquer homem numa prova como aquela. Ele nivelou suas
mãos com as do oponente.
O homem agarrou-as furiosamente e rosnou para o imenso forasteiro. Quase imediatamente, antes que Wulfgar tivesse sequer firmado as mãos ou posicionado os
pés, o xamã gritou para que começassem, e o homem moreno impeliu as mãos adiante, fazendo com que as costas de Wulfgar se dobrassem sobre seus pulsos. Os gritos
irromperam em cada canto do acampamento; o homem moreno rugia e empurrava com toda a sua força, mas, passado o momento da surpresa, Wulfgar reagiu.
Os músculos de ferro no pescoço e nos ombros de Wulfgar se retesaram subitamente, e seus braços descomunais se avermelharam com o afluxo forçado de sangue
em suas veias. Tempus realmente o abençoara; restava apenas ao seu pujante oponente ficar embasbacado diante do espetáculo de sua força. Wulfgar fitou-o diretamente
nos olhos e retribuiu o rosnado com um olhar determinado que profetizava a vitória inevitável. Então, o filho de Beornegar se jogou para frente, interrompendo o
impulso inicial do homem moreno e forçando as próprias mãos de volta a um ângulo mais normal em relação a seus pulsos. Readquirida a paridade, Wulfgar percebeu que
um empurrão repentino deixaria seu oponente na mesma desvantagem da qual ele acabara de escapar. Dali em diante, seria improvável que o homem moreno se agüentasse
por muito tempo.
Mas Wulfgar não estava ansioso para pôr fim à peleja. Ele não queria humilhar seu oponente - isso apenas criaria um inimigo - e, mais importante ainda, ele
sabia que Drizzt estava por perto. Quanto mais conseguisse prolongar a peleja - e manter os olhos de cada membro da tribo fixos nele -, mais tempo Drizzt teria para
colocar algum plano em ação.
Os dois homens se agüentaram ali durante vários segundos e Wulfgar não conseguiu evitar um sorriso quando percebeu a forma escura que se esgueirava por entre
os cavalos, atrás dos guardas fascinados, do outro lado do acampamento. Não saberia dizer se era ou não sua imaginação, mas pensou ter visto dois pontos de chama
lilás a fitá-los desde as trevas. Mais alguns segundos, decidiu, apesar de saber que se arriscava por não dar logo fim ao desafio. O xamã poderia declarar um empate
se eles permanecessem imóveis durante muito tempo.
Mas, então, acabou. As veias e os tendões nos braços de Wulfgar saltaram e seus ombros se ergueram ainda mais alto.
-Tempus - vociferou, glorificando o deus por ainda mais uma vitória e, então, com uma repentina e feroz explosão de energia, obrigou o homem moreno a se ajoelhar.
A toda a sua volta, o acampamento se quedou silencioso. Até mesmo o xamã ficou sem palavras diante daquela exibição.
Dois guardas se moveram hesitantemente para flanquear Wulfgar.
O guerreiro derrotado se levantou e ficou ali, a encarar Wulfgar. Nenhum sinal de fúria desfigurava seu rosto, apenas a honesta admiração, pois os Pôneis
Celestes eram um povo honrado.
- Nós poderíamos acolhê-lo - disse Valric. - Você derrotou Torlin, filho de Jerek Caçador do Lobo, Chefe dos Pôneis Celestes. Torlin nunca havia sido superado
antes!
___ E meus amigos? - perguntou Wulfgar.
- Não dou a mínima para eles! - devolveu Valric. - O anão será libertado numa trilha que leva para fora de nossas terras. Não temos desavenças com ele ou
sua gente, nem desejamos ter qualquer negócio com eles!
O xamã olhou dissimuladamente para Wulfgar.
- O outro é um fraco - declarou. - Há de servir para marcar seu ritual de passagem na tribo, seu sacrifício para o cavalo alado.
Wulfgar não respondeu imediatamente. Eles testaram sua força e agora testavam sua lealdade. Os Pôneis Celestes haviam lhe prestado sua mais alta honraria
ao lhe oferecer um lugar na tribo, mas somente sob a condição de que ele demonstrasse lealdade sem sombra de dúvida. Wulfgar pensou em seu próprio povo e no modo
como tinham vivido durante tantos séculos na tundra. Mesmo agora, muitos dos bárbaros do Vale do Vento Gélido teriam aceitado os termos e matado Régis, pois consideravam
a vida de um halfling um pequeno preço por tamanha honra. Essa era a desilusão da existência de Wulfgar com sua gente, a faceta do código moral deles que se mostrara
inaceitável aos seus padrões pessoais.
- Não - ele respondeu a Valric, sem pestanejar.
- É um fraco! - argumentou Valric. - Somente os fortes merecem a vida!
- Não serei eu a decidir o destino dele - respondeu Wulfgar. - E nem você.
Valric fez sinal para os guardas, e eles imediatamente reataram as mãos de Wulfgar.
- Uma perda para o nosso povo - Torlin disse a Wulfgar. - Você teria recebido uma posição de honra entre nós.
Wulfgar não respondeu, sustentando o olhar de Torlin por um longo momento, partilhando o respeito e também a compreensão mútua de que seus códigos eram diferentes
demais para uma associação como aquela. Numa impossível fantasia comum, ambos se imaginaram lutando lado a lado, abatendo orcs às dezenas e inspirando os bardos
a compor uma nova lenda.
Era a vez de Drizzt atacar. O drow se detivera ao lado dos cavalos para ver o resultado da peleja e também para avaliar melhor seus inimigos. Planejou seu
ataque de modo a causar mais efeito que dano, pois desejava encenar um grande espetáculo a fim de intimidar uma tribo de guerreiros destemidos tempo suficiente para
que seus amigos deixassem o círculo.
Sem dúvida, os bárbaros haviam ouvido falar dos elfos negros. E, sem duvida, as histórias que tinham ouvido eram apavorantes.
Em silêncio, Drizzt amarrou os dois pôneis atrás dos cavalos, depois montou os corcéis, um pé no estribo de cada um deles. Erguendo-se entre ambos, sobranceiro,
atirou para trás o capuz do manto. Com o perigoso brilho em seus olhos cor de lavanda a cintilar furiosamente, ele fez as montarias dispararem rumo ao interior do
círculo, o que dispersou os atordoados bárbaros mais próximos.
Gritos de raiva se ergueram dos surpresos homens da tribo e o tom dos brados assumiu um aspecto de terror assim que os bárbaros viram a pele negra. Torlin
e Valric se voltaram para encarar a ameaça que se aproximava, mas nem mesmo eles sabiam lidar com a personificação de uma lenda.
E Drizzt tinha um truque preparado para eles. Com um aceno de sua mão negra, chamas púrpuras e frias irromperam da pele de Torlin e Valric, o que lançou os
dois bárbaros supersticiosos num frenesi de pânico. Torlin caiu de joelhos, agarrando os braços, incrédulo, e o excitável xamã se jogou no chão e começou a rolar
na terra.
Wulfgar aproveitou sua deixa. Um novo afluxo de força em seus braços arrebentou as correias de couro que lhe prendiam os pulsos. Ele deu continuidade ao impulso
das mãos, brandindo-as para cima, e acertou diretamente as faces dos dois guardas ao seu lado, atirando-os de costas ao chão.
Bruenor também compreendeu seu papel. Pisou com todo seu peso no peito do pé do bárbaro solitário entre ele e Régis e, quando o homem se abaixou para levar
as mãos ao pé dolorido, Bruenor deu-lhe uma cabeçada na fronte. O homem tombou tão facilmente quanto Sussurro o fizera no Beco do Rato, em Luskan.
- Ei, também funciona sem o elmo! - admirou-se Bruenor.
- Só se for a cabeça de um anão! - observou Régis enquanto Wulfgar agarrava a ambos pelos colarinhos e erguia-os com facilidade até as selas dos pôneis.
Ele também montou imediatamente, ao lado de Drizzt, e os quatro arremeteram pelo outro lado do acampamento. Tudo acontecera rápido demais para que os bárbaros
preparassem as armas ou dessem forma a algum tipo de defesa.
Drizzt deu a volta com seu cavalo e posicionou-se atrás dos pôneis para proteger a retaguarda.
- Corram! - ele gritou para seus amigos, batendo nas ancas das montarias com a parte chata das cimitarras. Os outros três gritaram vitória como se
a fuga já se houvesse completado, mas Drizzt sabia que aquela havia sido a parte fácil. A aurora se aproximava, célere, e, naquele terreno irregular e des conhecido,
os bárbaros nativos os alcançariam facilmente.
Os companheiros arremeteram pelo silêncio da madrugada e escolheram o caminho mais direto e mais fácil para ganhar tanto terreno quanto possível.
Drizzt ainda mantinha um olho na retaguarda, esperando que os bárbaros bem na cola deles. Mas a comoção no acampamento havia se extinguido quase imediatamente
depois da fuga, e o drow não via sinais de perseguição.
A ora só se ouvia um único brado, o canto ritmado de Valric numa língua nenhum dos viajantes compreendia. O pavor no rosto de Wulfgar fez todos se deterem.
Os poderes de um xamã - explicou o bárbaro.
No acampamento, Valric estava sozinho com Torlin no interior do círculo formado por sua gente, entoando um cântico e dançando o ritual supremo de sua posição,
invocando o poder do Animal Espiritual de sua tribo. O aparecimento do elfo drow havia amedrontado completamente o xamã. Ele interrompeu a perseguição antes que
esta tivesse início e correu para sua tenda em busca do sagrado bornal de couro necessário para o ritual, pois decidira que o espírito do cavalo alado, o Pégaso,
deveria lidar com aqueles invasores.
Valric escolheu Torlin como receptáculo da forma do espírito, e o filho de Jerek aguardava a possessão com estóica dignidade, odiando o ato, pois isso o despojava
de sua identidade, mas resignado à absoluta obediência ao xamã.
Entretanto, a partir do momento em que a coisa começou, Valric compreendeu, em meio à sua agitação, que se havia excedido na urgência da invocação.
Torlin emitiu um grito estridente e foi ao chão, contorcendo-se de agonia. Uma nuvem cinzenta o envolveu, os vapores revoltos se combinaram à sua forma e
remodelaram suas feições. Seu rosto inchou e se contorceu e, de repente, projetou-se para assumir o aspecto da cabeça de um cavalo. Seu torso também se transmutou
em algo inumano. Valric tivera a intenção de apenas emprestar um pouco das forças do espírito do Pégaso a Torlin, mas a própria entidade viera e possuíra o homem
inteiramente, subjugando-lhe o corpo à sua própria imagem.
Torlin foi consumido.
Em seu lugar apareceu a forma espectral do cavalo alado. Todos na tribo caíram de joelhos diante dele, até mesmo Valric, que não conseguia encarar a imagem
do Animal Espiritual. Mas o Pégaso conhecia os pensamentos do xamã e compreendia as necessidades dos seus filhos. As narinas do espírito soltaram fumaça, o animal
se elevou no ar e partiu em perseguição aos invasores que fugiam.
s amigos haviam imposto um passo mais confortável, embora ligeiro, às montarias. livres das amarras, com a aurora rompendo diante deles e nenhuma perseguição
aparente às suas costas, eles tinham se acalmado um pouco. Bruenor remexia o elmo nas mãos, tentando desamassá-lo o suficiente para recolocar a coisa em sua cabeça.
Até mesmo Wulfgar, tão impressionado ao ouvir o cântico do xamã pouco antes, começou a relaxar.
Somente Drizzt, sempre cauteloso, não se convenceu tão facilmente de que haviam escapado. E foi o drow quem primeiro percebeu a aproximação do perigo.
Nas cidades escuras, os elfos negros geralmente lidavam com seres de outro mundo e, no decorrer de muitos séculos, essas criaturas engendraram na raça dos
drow uma sensibilidade às suas emanações mágicas. Drizzt deteve repentinamente o cavalo e fez a volta.
- Que é que 'cê 'tá ouvindo? - perguntou-lhe Bruenor.
- Não ouço nada - respondeu Drizzt, os olhos dardejando em busca de algum sinal. - Mas há algo lá.
Antes que conseguissem responder, a nuvem cinzenta se precipitou do céu e se abateu sobre eles. Os cavalos corcovearam e empinaram, tomados de um pânico incontrolável,
e, na confusão, nenhum dos amigos conseguiu discernir o que acontecia. O Pégaso, então, formou-se bem na frente de Régis e o halfling sentiu um frio mortal a penetrar-lhe
os ossos. Ele gritou e caiu de sua montaria.
Bruenor, cavalgando ao lado de Régis, investiu intrepidamente contra a forma espectral. Mas o arco descendente do machado encontrou apenas uma nuvem de fumaça
onde a aparição estivera. Então, tão repentinamente quanto desaparecera, o espírito retornou, e Bruenor também sentiu o frio gélido de seu toque. Mais forte que
o halfling, ele conseguiu se manter sobre o pônei.
- O que? - ele gritou em vão para Drizzt e Wulfgar.
Garra de Palas passou por ele com um silvo e seguiu em frente até o alvo. Mas o Pégaso era só fumaça novamente, e o martelo de guerra mágico passou sem encontrar
resistência através da nuvem turbilhonante.
Num instante, o espírito estava de volta, precipitando-se sobre Bruenor. O pônei do anão rodopiou e foi ao chão num esforço frenético de escapar da criatura.
- Não vai conseguir atingi-lo! - Drizzt gritou para Wulfgar, que correu em auxílio do anão. - A criatura não existe totalmente neste plano!
As fortes pernas de Wulfgar controlaram o cavalo apavorado e o bárbaro golpeou assim que Garra de Palas retornou às suas mãos. Mas, novamente, encontrou apenas
fumaça.
- Então, como? - ele berrou para Drizzt, os olhos dardejando em busca dos primeiros sinais do espírito a se reformar.
Drizzt vasculhou sua mente em busca das respostas. Régis ainda estava 'lido e imóvel sobre o campo, e Bruenor, embora não tivesse sido ferido tão gravemente
ao cair do pônei, parecia aturdido e tremia devido ao frio sobrenatural. Drizzt agarrou-se a um plano desesperado. Sacou de sua bolsa a estátua de ônix da pantera
e chamou por Guenhwyvar.
O espírito retornou e atacou com fúria renovada. Baixou primeiro sobre Bruenor, envolvendo o anão com suas asas frias.
- Maldito seja daqui até o Abismo! - vociferou Bruenor em corajosa oposição.
Entrando precipitadamente na luta, Wulfgar perdeu o anão completamente de vista, exceto pela cabeça do machado que continuava a irromper inofensivamente através
da fumaça.
Então, a montaria do bárbaro estacou, recusando-se, contra todos os esforços, a se aproximar ainda mais do animal sobrenatural. Wulfgar saltou de sua sela
e investiu, lançando-se diretamente através da nuvem antes que o espírito conseguisse se reformar, e seu impulso fez com que tanto ele quanto Bruenor saíssem do
outro lado do manto fumarento. Rolaram para longe e olharam para trás, apenas para descobrir que o espírito havia desaparecido completamente mais uma vez.
As pálpebras de Bruenor pendiam pesadamente, sua pele apresentava um lívido tom de azul e, pela primeira vez em sua vida, seu espírito indomável não tinha
peito para lutar. Wulfgar também experimentara o toque gélido ao atravessar o espírito, mas ele ainda estava disposto a lutar mais um assalto com a criatura.
- Não podemos lutar contra isto! - disse Bruenor, ofegante e entre dentes. -Aparece prá atacar, mas some quando é a nossa vez!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, desafiador.
Tem de haver uma maneira! - reclamou ele, apesar de obrigado a admitir que o anão estava certo. - Mas meu martelo não é capaz de destruir nuvens!
Guenhwyvar apareceu ao lado de seu mestre e colocou-se rente ao solo, em busca da nêmese que ameaçava o drow. Drizzt compreendeu as intenções do gato.
Não! - ordenou. - Aqui não. - O drow se lembrou de algo que Guenhwyvar fizera vários meses antes. Para salvar Régis das pedras que caíam no desabamento de
uma torre, Guenhwyvar levara o halfling numa jornada -s aos planos da existência. Drizzt agarrou a pelagem espessa da pantera.
- Leve-me à terra do espírito - instruiu ele. - Para o próprio plano dele, onde minhas penetrarão fundo seu ser substancial.
O espírito apareceu novamente ao mesmo tempo em que Drizzt e o gato desapareciam numa outra nuvem.
- Continue golpeando! - Bruenor disse ao seu companheiro. -.
Mantenha a coisa na forma de fumaça prá ela não conseguir te atacar!
- Drizzt e o gato se foram! - gritou Wulfgar.
- Para a terra do espírito - explicou Bruenor.
Drizzt levou um bom tempo para se orientar. Ele adentrara um lugar de realidades diferentes, uma dimensão onde tudo, até mesmo sua própria pele, assumia o
mesmo tom de cinza, sendo os objetos apenas distinguíveis por uma delicada e bruxuleante linha negra que lhes servia de contorno. Sua percepção de profundidade era
inútil, pois não havia sombreados e nenhuma fonte discernível de luz para utilizar como referência. E não achava onde pôr os pés, nada tangível abaixo dele, nem
mesmo conseguia saber que direção era para cima ou para baixo. Esses conceitos não pareciam fazer sentido ali.
Ele distinguiu os contornos cambiantes do Pégaso quando este saltava entre os planos, nunca inteiramente num ou noutro lugar. Tentou se aproximar do animal
e descobriu que a propulsão era um ato da mente e o corpo automaticamente seguia as instruções da vontade. Ele se deteve diante das linhas cambiantes, a cimitarra
mágica erguida para golpear quando o alvo aparecesse inteiramente.
Então, o contorno do Pégaso se completou, e Drizzt enterrou sua espada na bruxuleante linha negra que lhe marcava a forma. A linha se transformou, arqueou-se,
e o contorno da cimitarra também estremeceu, pois ali até mesmo as propriedades da lâmina de aço assumiam uma composição diferente. Mas o aço se mostrou o mais forte,
e a cimitarra retomou seu fio recurvo e perfurou a linha do espírito. Veio então uma súbita titilação no gris, como se a linha do espírito estremecesse num arrepio
de agonia.
Wulfgar viu a nuvem de fumaça se evolar de repente, quase se rematerializando na forma do espírito.
- Drizzt! - gritou para Bruenor. - Ele está enfrentando o espírito em pé de igualdade!
- Prepare-se, então! - Bruenor respondeu ansiosamente, apesar de saber que seu próprio papel na luta havia terminado. - Pode ser que o drow traga a
coisa de volta prá você por tempo suficiente para um golpe! - Bruenor abraçou o próprio corpo, tentando arrancar o frio de seus ossos, e tropeçou na forma imóvel
do halfling.
O espírito se voltou contra Drizzt, mas a cimitarra o golpeou novamente. E Guenhwyvar lançou-se na refrega, as grandes garras do gato a dilacerar o contorno
negro do inimigo. O Pégaso se afastou com um giro sobre as patas compreendendo que não tinha qualquer vantagem contra inimigos u próprio plano. Seu único recurso
era se retirar para o plano material.
Onde Wulfgar aguardava.
Assim que a nuvem retomou sua forma, Garra de Palas a golpeou. Wulfgar sentiu um golpe consistente por apenas um instante e compreendeu que atingira o alvo.
Então, a fumaça foi como que soprada para longe.
O espírito voltou para Drizzt e Guenhwyvar, mais uma vez enfrentando as tocadas e arranhões implacáveis dos dois. Trocou de planos novamente e Wulfgar desferiu
um golpe rápido. Encurralado e sem ter para onde fugir, o espírito recebia golpes em ambos os planos. Toda vez que se materializava diante de Drizzt, o drow percebia
que seu contorno surgia mais fino e menos resistente aos seus golpes. E toda vez que a nuvem se rematerializava diante de Wulfgar, sua densidade diminuía. Os amigos
haviam vencido e Drizzt assistiu satisfeito, à essência do Pégaso livrar-se da forma material e flutuar para longe através do gris.
Leve-me para casa - o cansado drow instruiu Guenhwyvar. Um instante depois, ele estava de volta ao campo, ao lado de Bruenor e Régis.
- Ele vai viver - Bruenor declarou categoricamente em resposta ao olhar interrogativo de Drizzt. - Acho que ele 'tá é desmaiado, não morto.
A uma pequena distância dali, Wulfgar também estava curvado sobre uma forma, prostrada, deturpada e aprisionada numa transformação a meio caminho entre homem
e animal.
- Torlin, filho de Jerek - explicou Wulfgar. Ele ergueu os olhos para o acampamento dos bárbaros. - Valric fez isto. O sangue de Torlin suja-lhe as
mãos!
- Opção de Torlin, talvez? - ofereceu Drizzt.
Nunca! - insistiu Wulfgar. - Quando nos enfrentamos no desafio, meus olhos viram honra. Ele era um guerreiro. Nunca teria permitido isto! - Ele deu um passo
para longe do cadáver, deixando que os restos mutilados enfatizassem o horror da possessão. Na postura paralisada da morte, o rosto de Torlin retivera parte dos
traços de um homem e parte do espírito eqüino.
- Ele era filho do chefe deles - explicou Wulfgar. - Não poderia recusar o pedido do xamã.
- Foi corajoso ao aceitar esse destino - observou Drizzt.
- Filho do chefe deles? - riu Bruenor, desdenhoso. - Parece que a gente colocou mais inimigos ainda na estrada atrás da sente! Eles vão querer ajustar as
contas.
- E eu também! - proclamou Wulfgar. - Você tem nas mãos o sangue dele, Valric, Olhar Alto! - ele berrou para a imensidão, os gritos a ecoar pelos outeiros
dos rochedos. Wulfgar olhou para trás, para seus amigos, e a fúria fervilhava em suas feições ao declarar soturnamente - Hei de vingar a desonra de Torlin.
Com um aceno da cabeça, Bruenor demonstrou sua aprovação à dedicação do bárbaro aos próprios princípios.
- Uma nobre missão - concordou Drizzt, estendendo sua espada para o leste, em direção a Sela Longa, a próxima parada em sua jornada. - Mas para um outro dia.


6. PUNHAL E CAJADO

Entreri estava de pé sobre uma colina a alguns quilômetros da Cidade das Velas, a fogueira do acampamento lucilava logo atrás dele. Régis e companhia haviam
se utilizado daquele mesmo lugar em sua última parada antes de entrar em Luskan e, de fato, a fogueira do assassino ardia na mesmíssima coivara. Mas, não era uma
coincidência. Entreri imitara cada movimento do grupo do halfling desde que lhes encontrara o rastro logo ao sul da Espinha do Mundo. Movia-se com eles, seguindo-lhes
de perto os progressos num esforço para compreender melhor suas ações.
Agora, ao contrário do grupo que perseguia, os olhos de Entreri não repousavam sobre a muralha da cidade, nem mesmo se voltavam em direção a Luskan. Várias
fogueiras haviam surgido no norte, em meio à escuridão, na estrada que levava a Dez-Burgos. Não era a primeira vez que aquelas luzes apareciam às suas costas, e
o assassino sentia que também era seguido. Ele havia desacelerado seu ritmo frenético, imaginando que poderia facilmente recobrar o tempo perdido enquanto os companheiros
cuidavam de seus negócios em Luskan. Desejava proteger a própria retaguarda de todo e qualquer perigo antes de se concentrar em apanhar o halfling. Entreri havia
até mesmo deixado sinais indicadores de sua passagem, atraindo seus perseguidores cada vez mais para perto.
Ele aplacou as brasas da fogueira com a ponta do pé e voltou à sela, pois decidira ser melhor enfrentar uma espada pela frente do que um punhal pelas costas.
Cavalgou noite a dentro, confiante na escuridão. Era seu ambiente, onde cada sombra aumentava a vantagem de alguém que vivia nas sombras.
Ele amarrou a montaria antes da meia-noite, perto o bastante das fogueiras para completar a jornada a pé. Percebia agora que se tratava de uma caravana mercante,
algo nada incomum na estrada para Luskan naquela época do ano. Mas sua noção do perigo o incomodava. Os muitos anos de experiência haviam aguçado seus instintos
de sobrevivência, e ele sabia que não devia ignorá-los.
Insinuou-se no interior do acampamento, à procura do caminho mais fácil até o círculo de carroças. Os mercadores sempre dispunham muitas sentinelas ao redor
do perímetro de seus acampamentos e até mesmo os cavalos representavam um problema, pois os mantinham amarrados bem ao lado dos respectivos arreios.
Ainda assim, o assassino não desperdiçaria a viagem. Viera de muito longe e tinha a intenção de descobrir o propósito daqueles que o seguiam. Deslizando sobre
o ventre, abriu caminho até o perímetro e começou a rodear o acampamento por sob o círculo defensivo. Silencioso demais para ser percebido até mesmo pelos ouvidos
mais atentos, ele passou por dois guardas que jogavam dados. Então, passou por sob e entre os cavalos, os animais a abaixar as orelhas de medo, embora não emitissem
nenhum som.
Depois de percorrer metade do círculo, ele quase se convenceu de que se tratava de uma caravana mercante comum e estava prestes a esgueirar-se de volta às
trevas quando ouviu uma familiar voz feminina:
- 'Cê disse que viu um ponto de luz ao longe. Entreri se deteve, pois reconheceu quem falava.
- É, logo ali - um homem respondeu.
Entreri se esgueirou entre as duas carroças seguintes e espiou. Os interlocutores estavam a uma pequena distância dele, atrás da carroça seguinte, perscrutando
a noite na direção de seu acampamento. Ambos estavam vestidos para a batalha, e a mulher carregava comodamente sua espada.
- Subestimei você - sussurrou Entreri para si mesmo ao ver Cattiebrie. O punhal ajaezado já estava em sua mão. - Um erro que não repetirei - acrescentou,
depois se abaixou e procurou uma trilha que o levasse até o alvo.
- 'Cês foram bons prá mim, me trazendo tão rápido - disse Cattiebrie. - 'Tô te devendo, assim como Régis e os outros.
- Então, diga-me - o homem insistiu. - Para que a pressa?
Cattiebrie lutou com a lembrança do assassino. Ela ainda não se conformara com o pavor que sentira naquele dia, na casa do halfling, e sabia que não o faria
até que tivesse vingado as mortes dos dois amigos anões e resolvido sua própria humilhação. Seus lábios se apertaram e ela não respondeu.
- Como queira - cedeu o homem. - Seus motivos justificam a pressa, não temos dúvida. Se parecemos nos intrometer, isso apenas demonstra nosso desejo
de ajudar você como pudermos.
Cattiebrie se voltou para ele com um sorriso de sincero apreço no rosto. Já se dissera o bastante, e os dois ficaram ali, fitando em silêncio o horizonte
inane.
Silenciosa também foi a aproximação da morte.
Entreri se esgueirou por baixo da carroça e ergueu-se subitamente entre os dois, uma das mãos estendida para cada um deles. Agarrou o pescoço de Cattiebrie
com força suficiente para impedir que ela gritasse e silenciou o homem para todo o sempre com seu punhal.
Olhando por sobre os ombros de Entreri, Cattiebrie viu a horrenda expressão petrificada no rosto de seu companheiro, mas não conseguiu entender porque ele
não gritara, pois sua boca não estava coberta.
Entreri alterou ligeiramente sua posição e ela compreendeu. Apenas o abo do punhal ajaezado era visível, a cruzeta rente ao lado inferior do queixo do homem.
A lâmina delgada encontrara o cérebro do mercador antes que ele sequer percebesse o perigo. Entreri usou o punho da arma para conduzir sua vítima silenciosamente
até o chão, depois a arrancou.
Mais uma vez, a mulher se viu paralisada diante do horror de Entreri. Sentiu que deveria se livrar dele e alertar o acampamento, muito embora ele certamente
a matasse. Ou sacar sua espada e ao menos tentar resistir. Mas ela apenas observou, impotente, enquanto Entreri lhe retirava o próprio punhal do cinto e, trazendo-a
consigo, abaixava-se para inserir a arma no ferimento fatal.
Então, ele tirou-lhe a espada e a empurrou para baixo da carroça e dali para longe do perímetro do acampamento.
Por que não consigo gritar? - ela se perguntou repetidas vezes, pois o assassino, confiante no nível de terror que inspirava, nem mesmo a segurava enquanto
os dois se esgueiravam noite adentro. Ele sabia, e Cattiebrie tinha de admitir para si mesma, que ela não entregaria a própria vida com tanta facilidade.
Por fim, quando já estavam a uma distância segura do acampamento, ele a fez girar para encará-lo, e também ao punhal.
- Seguir-me? - perguntou, rindo dela. - O que você ganharia com isso?
Ela não respondeu, mas descobriu que sua força retornava. Entreri também o sentiu.
- Se você gritar, vou matá-la. - declarou categoricamente. - E então, juro, hei de retornar aos mercadores e matá-los a todos também!
Ela acreditou.
- Eu geralmente viajo com os mercadores - mentiu, controlando o tremor em sua voz. -É um dos deveres de meu posto como soldado de Dez-
Burgos.
Entreri riu da moça novamente. Depois, desviou o olhar em direção ao nada, e suas feições assumiram um ar introspectivo.
- Talvez isto me seja vantajoso - disse ele retoricamente, pois o início de um plano tomava forma em sua mente.
Cattiebrie o estudou, preocupada com a possibilidade de que ele tivesse descoberto algum modo de transformar sua expedição em algo danoso para seus amigos.
- Não vou matar você, ainda não - disse ele. - Quando encontrarmos o halfling, os amigos dele não o defenderão. Por sua causa.
- Não vou fazer nada prá te ajudar! - foi a resposta veemente de Cattiebrie. - Nada!
- Precisamente - sibilou Entreri. - Você não há de fazer nada. Não com uma faca no seu pescoço - levou a arma à garganta dela numa mórbida provocação
-, arranhando sua pele macia. Quando meus negócios estiverem acabados, moça corajosa, seguirei em frente e você há de ficar com a sua vergonha e a sua culpa. E as
suas explicações aos mercadores, que acreditam que você assassinou o companheiro deles! - Na verdade, Entreri não acreditou por um instante sequer que seu truque
com o punhal de Cattiebrie enganaria os mercadores. Era meramente uma arma psicológica endereçada à moça, destinada a instilar ainda mais uma dúvida e outra preocupação
em sua confusão de emoções.
Cattiebrie não respondeu às declarações do assassino com o menor sinal de emoção. Não, ela disse para si mesma, não vai ser desse jeito!
Mas, no fundo, ela imaginava se sua determinação apenas disfarçava o medo, sua própria crença de que seria contida novamente pelo horror da presença de Entreri
e de que a cena se desenrolaria exatamente como ele havia previsto.
Jierdan encontrou o acampamento sem muita dificuldade. Dendibar usara sua mágica para rastrear o misterioso cavaleiro por todo o caminho desde as montanhas
e havia enviado o soldado na direção correta.
Tenso, a espada desembainhada, Jierdan entrou no acampamento. O lugar estava deserto, mas não havia muito tempo. Mesmo a alguns metros de distância, o soldado
de Luskan sentia o calor agonizante da fogueira. Agachando-se para disfarçar sua silhueta contra a linha do horizonte, rastejou em direção a uma mochila e um cobertor
bem ao lado do fogo.
Entreri conduziu lentamente sua montaria de volta ao acampamento, esperando que o que deixara para trás pudesse ter atraído alguns visitantes. Cattiebrie
vinha sentada diante dele, amarrada e amordaçada com toda segurança, embora ela acreditasse inteiramente, para seu desagrado, que seu próprio terror tornava desnecessárias
as amarras.
O cauteloso assassino percebeu que alguém entrara no acampamento antes mesmo de se aproximar do local. Escorregou de sua sela, levando a prisioneira consigo.
- Um corcel nervoso - explicou, obviamente deleitando-se com o aviso soturno enquanto amarrava Cattiebrie às patas traseiras do cavalo. - Se você se
debater, ele vai escoiceá-la até a morte.
Então, Entreri desapareceu, misturando-se à escuridão como se ele próprio fosse uma extensão das trevas.
Jierdan deixou a mochila cair de volta ao chão, frustrado, pois o conteúdo da mesma nada mais era que o equipamento comum de viagem e nada revelava sobre
o dono. O soldado era um veterano de muitas campanhas e derrotara tanto homens quanto orcs centenas de vezes, mas agora estava nervoso, sentindo algo de incomum
e mortífero a respeito daquele cavaleiro. Um homem com a coragem de cavalgar sozinho pelo trajeto selvagem desde o Vale do Vento Gélido até Luskan não era um guerreiro
inexperiente.
Jierdan se sobressaltou, mas não ficou demasiado surpreso, quando a ponta de um punhal veio descansar subitamente na cavidade vulnerável em sua nuca, logo
abaixo da base do crânio. Ele não se moveu e nada disse, esperando que o cavaleiro pedisse alguma explicação antes de fazer uso da arma.
Entreri viu que sua mochila fora vasculhada, mas reconheceu o uniforme forrado de peles e sabia que aquele homem não era um ladrão.
- Estamos fora das fronteiras de sua cidade - disse ele, segurando a faca com firmeza. - O que você quer no meu acampamento, soldado de Luskan?
- Sou Jierdan do portão norte - ele respondeu. - Vim encontrar um cavaleiro proveniente do Vale do Vento Gélido.
- Que cavaleiro?
- Você.
Entreri se sentiu perplexo e incomodado com a resposta do soldado. Quem enviara aquele homem e como soubera onde procurar? Os primeiros pensamentos do assassino
se concentraram no grupo de Régis. Talvez o halfling tivesse conseguido alguma ajuda da guarda da cidade. Entreri devolveu a faca à sua bainha, certo de que poderia
recuperá-la a tempo de repelir qualquer ataque.
Jierdan também compreendeu a serena confiança do ato e toda idéia que pudesse ter de atacar aquele homem desapareceu.
- Meu mestre deseja uma audiência - disse ele, pensando ser aconselhável se explicar melhor. - Uma reunião para benefício de ambos.
- Seu mestre? - perguntou Entreri.
- Um cidadão de grande prestígio - explicou Jierdan. - Ele ficou sabendo de sua chegada e acredita que possa ajudá-lo em sua busca.
- O que ele sabe sobre os meus negócios? - rebateu Entreri, irritado por alguém ter se atrevido a espioná-lo. Mas também se sentiu aliviado, pois o
envolvimento de alguma outra estrutura de poder na cidade explicava muita coisa e eliminava, talvez, a suposição lógica de que o halfling estivesse por trás daquele
encontro.
Jierdan deu de ombros.
- Sou apenas o mensageiro. Mas eu também posso ser de ajuda para você. No portão.
- Dane-se o portão - rosnou Entreri. - Eu passaria pelas muralhas com facilidade. E uma rota mais direta até os lugares que procuro.
- Mesmo assim, conheço esses lugares e as pessoas que os controlam.
A faca saltou da bainha, intervindo e detendo-se pouco antes da garganta de Jierdan.
- Você sabe demais, mas explica pouco. É um joguinho perigoso, solda do de Luskan.
Jierdan não piscou.
- Quatro heróis, vindos de Dez-Burgos, chegaram a Luskan cinco dias atrás: um anão, um halfling, um bárbaro e um elfo negro. - Nem mesmo Artemis Entreri
conseguiu esconder um sinal de agitação diante da confirmação de suas suspeitas, e Jierdan o notou. - Desconheço-lhes a exata localização, mas conheço a área onde
estão se escondendo. Está interessado?
A faca retornou mais uma vez à sua bainha.
- Espere aqui - instruiu Entreri. - Tenho uma companheira que via jará conosco.
- Meu mestre disse que você cavalgava sozinho - questionou Jierdan.
O sorriso vil de Entreri fez um calafrio percorrer a espinha do soldado.
- Eu a adquiri - explicou ele. - Ela é minha e é tudo o que você precisa saber.
Jierdan não forçou a questão. Seu suspiro de alívio foi audível quando Entreri desapareceu de vista.
Cattiebrie cavalgou até Luskan desamarrada e sem a mordaça, mas o domínio de Entreri sobre ela não era menos aprisionador. O aviso que lhe dera ao buscá-la
no campo fora sucinto e inquestionável.
- Um gesto insensato - ele dissera - e você morre. E morre sabendo que o anão, Bruenor, há de sofrer por sua insolência.
O assassino nada mais dissera a Jierdan sobre ela, e o soldado não perguntou, embora a mulher o intrigasse, e bastante. Jierdan sabia que Dendibar obteria
as respostas.
Entraram na cidade ao fim daquela manhã, sob o olhar suspeito do Guardião do Dia do Portão Norte. O suborno custara a Jierdan uma semana de soldo, e ele sabia
que sua dívida seria ainda maior quando retornasse naquela noite, pois o acordo original com o Guardião do Dia permitia a passagem de forasteiro; nada fora dito
sobre a mulher. Mas, se as ações de Jierdan lhe trouxessem o favor de Dendibar, então os dois valeriam o preço.
De acordo com o código da cidade, os três deixaram seus cavalos no estábulo logo depois da muralha, e Jierdan conduziu Entreri e Cattiebrie pelas da Cidade
das Velas, passando pelos mercadores e mascates de olhos sonolentos que já haviam deixado suas casas desde antes do amanhecer, rumo ao próprio coração da cidade.
O assassino não se surpreendeu, uma hora depois, ao chegarem a um extenso bosque de densos pinheiros. Ele desconfiara que Jierdan estava de algum modo ligado
àquele lugar. Passaram por uma abertura na linha e viram-se diante da mais alta estrutura da Cidade, a Torre das Hostes Arcanas.
Quem é seu mestre? - Entreri perguntou bruscamente.
Jierdan casquinou, a coragem alentada pela visão da torre de Dendibar.
- Você vai conhecê-lo em breve.
- Hei de saber agora - grunhiu Entreri. - Ou nossa reunião está terminada. Estou dentro da cidade, soldado, e não mais necessito de sua assistência.
- Eu poderia fazer com que os guardas o expulsassem - devolveu Jierdan. - Ou coisa pior!
Mas Entreri deu a última palavra.
- Eles nunca encontrariam os restos do seu corpo - prometeu, e a fria certeza de seu tom de voz fez empalidecer as faces de Jierdan.
Cattiebrie percebeu a troca de ameaças com mais do que uma ligeira preocupação pelo soldado, imaginando se logo chegaria o momento em que poderia explorar
a natureza desconfiada de seus captores e disso extrair alguma vantagem.
- Sirvo a Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte - declarou Jierdan, encontrando forças na menção do nome de seu poderoso mestre.
Entreri ouvira o nome antes. A Torre das Hostes era um lugar-comum nos bochichos por toda a Luskan e a região circundante, e o nome de Dendibar, o Variegado,
surgia com freqüência em meio às conversas, que o descreviam como um mago ambicioso e ávido de poder, e insinuavam que o homem tinha um lado sombrio e sinistro que
lhe permitia conseguir o que desejava. Era perigoso, mas potencialmente um aliado poderoso. Entreri ficou satisfeito.
- Leve-me a ele agora - disse a Jierdan. - Vamos descobrir se temos ou não negócios a tratar.
Sidnéia esperava para escoltá-los a partir do vestíbulo da Torre das Hostes. Sem oferecer nem pedir apresentações, ela os conduziu através das passagens
serpeantes e portas secretas até o salão de audiências de Dendibar, o Variegado. O mago lá aguardava, em grande estilo, envergando suas mais finas vestes e tendo
diante dele um almoço fabuloso.
- Saudações, cavaleiro - disse Dendibar, depois dos necessários, apesar de incômodos, momentos de silêncio enquanto os dois lados mediam um ao outro.
- Sou Dendibar, o Variegado, como você já deve saber. Você e sua adorável companheira partilhariam de minha mesa?
A voz estridente do mago irritou os nervos de Cattiebrie e, apesar de não ter comido nada desde a ceia do dia anterior, ela não ansiava pela hospitalidade
daquele homem.
Entreri a empurrou.
- Coma - ordenou.
Ela sabia que Entreri a testava tanto quanto aos magos. Mas também chegara a hora de ela testar Entreri.
- Não - respondeu, fitando-o diretamente nos olhos.
Com as costas da mão, ele a arremessou ao chão. Jierdan e Sidnéia se sobressaltaram involuntariamente, mas, vendo que Dendibar não se dispunha a ajudar, rapidamente
se detiveram e voltaram a assistir à cena. Cattiebrie se afastou do assassino e permaneceu encolhida, na defensiva.
Dendibar sorriu para o assassino.
- Você respondeu algumas das minhas perguntas sobre a garota - disse ele, com um sorriso divertido. - A que propósito ela serve?
- Tenho minhas razões - foi tudo o que Entreri respondeu.
- E claro. E posso saber seu nome?
A expressão de Entreri não se alterou.
- Você procura os quatro companheiros de Dez-Burgos, eu sei - continuou Dendibar, sem desejar uma discussão. - Eu também os procuro, mas por razões
diferentes, estou certo.
- Você nada sabe sobre minhas razões - replicou Entreri.
- E nem me importo em sabê-las - riu o mago. - Podemos ajudar um ao outro a atingir nossos distintos objetivos. Isso é tudo o que me interessa.
- Não estou pedindo ajuda. Dendibar riu novamente.
- Eles são uma força poderosa, cavaleiro. Você os subestima.
- Talvez - respondeu Entreri. - Você perguntou pelo meu propósito, mas não ofereceu o seu. Que negócios a Torre das Hostes tem com os viajantes de
Dez-Burgos?
- É justo - respondeu Dendibar. - Mas devo esperar até que tenhamos formalizado um acordo antes de apresentar a resposta.
_ Então nem vou dormir direito de tanta preocupação - foi a réplica veemente de Entreri.
Mais uma vez, o mago gargalhou. - Pode ser que você mude de idéia antes do fim desta audiência - disse e de. - Por enquanto, ofereço um sinal de boa fé.
Os companheiros estão na cidade. No porto. Deveriam hospedar-se no Alfanje. Conhece? Entreri assentiu, agora muito interessado nas palavras do mago.
- Mas nós os perdemos nas vielas da parte oeste da cidade - explicou Dendibar, lançando um olhar feroz para Jierdan, o que fez o soldado trocar de pé apreensivamente.
- E qual é o preço dessa informação? - perguntou Entreri.
Nada - respondeu o mago. - Contar-lhe isso promove minha causa.
Você obterá o que quer; o que eu desejo, guardo para mim.
Entreri sorriu, compreendendo que Dendibar tinha a intenção de usá-lo como um cão de caça para farejar a presa.
- Minha aprendiza vai lhe indicar a saída - disse Dendibar, fazendo sinal para Sidnéia.
Entreri se virou para sair, detendo-se para confrontar o olhar de Jierdan.
- Fique longe do meu caminho, soldado - avisou o assassino. - Depois de banquetear-se o leão, é a vez dos abutres!
- Quando ele tiver me levado ao drow, vou arrancar-lhe a cabeça - grunhiu Jierdan quando os três se foram.
- E melhor ficar longe desse aí - instruiu Dendibar. Jierdan fitou o mago, confuso.
- Sem dúvida você o quer sob vigilância.
- Certamente - concordou Dendibar. - Mas é uma tarefa para Sidnéia, não para você. Guarde sua raiva - Dendibar disse a ele, notando-lhe a carranca
de ultraje. - Preservo sua vida. Seu orgulho é imenso, e você fez jus a esse direito. Mas esse aí está além de suas habilidades, meu amigo. Ele o teria apunhalado
antes mesmo que você lhe notasse a presença.
Do lado de fora, Entreri conduziu Cattiebrie para longe da Torre das Hostes sem uma palavra, repetindo e revisando silenciosamente a reunião, Pois sabia que
aquela não seria a última vez em que veria Dendibar e seus colegas.
Cattiebrie também ficou feliz com o silêncio, absorta em suas próprias contemplações. Por que um mago da Torre das Hostes estaria à procura de Bruenor e
dos demais? Vingança em nome de Akar Kessell, o mago ensandecido que seus amigos haviam ajudado a derrotar antes do último inverno? Ela olhou para trás, para a estrutura
em forma de árvore, e para o assassino ao lado dela, atônita e horrorizada com a atenção que seus amigos haviam atraído.
Então, ela perscrutou seu próprio coração, reavivando seu espírito e sua coragem. Drizzt, Bruenor, Wulfgar e Régis iriam precisar de sua ajuda antes do fim
de tudo aquilo. Ela não podia decepcioná-los.


CONTINUA

Sobre um trono escuro, num lugar escuro, empoleirava-se o dragão das sombras. Não era uma serpente muito grande, mas a mais abominável de todas. Sua mera presença, trevas; as garras, espadas desgastadas por milhares de matanças; a bocarra, sempre quente com o sangue das vítimas; o hálito negro, desespero.
Um manto negro e lustroso eram suas escamas experimentadas, tão preciosas em sua negritude que brilhavam em cores distintivas, uma aparência cintilante de beleza para um monstro desarmado. Seus sequazes o denominavam Trêmulo Obscuro e prestavam-lhe todas as honras.
Reunindo sua força no decorrer dos séculos, como fazem os dragões, Trêmulo Obscuro mantinha as asas dobradas para trás e não se movia, exceto para engolir um sacrifício ou punir um subalterno insolente. Fizera sua parte para conquistar aquele lugar, desbaratando o grosso do exército anão que permanecera para confrontar os aliados da serpente.
Como o dragão comera bem naquele dia! As peles dos anões eram rijas e cheias de músculos, mas uma bocarra de dentes afiados como navalhas era perfeita para esse tipo de refeição.
E, agora, os inúmeros escravos do dragão faziam todo o trabalho, trazendo-lhe comida e atendendo-lhe todos os desejos. Chegaria o dia em que precisariam do poder do dragão novamente e Trêmulo Obscuro estaria pronto. A imensa pilha de tesouros roubados sob o dragão era o que nutria sua força e, nesse aspecto, Trêmulo Obscuro era insuperável entre os de sua espécie, pois possuía um tesouro além da imaginação do mais rico dos reis.
E uma hoste de sequazes leais, escravos voluntários do dragão das trevas.
O vento frio que dava ao Vale do Vento Gélido seu nome silvava nos ouvidos deles, o lamento incessante a eliminar a conversa casual de que os quatro amigos geralmente desfrutavam. Iam para o oeste, através da tundra estéril, e o vento, como sempre, vinha do leste, detrás deles, e acelerava o ritmo já forte do grupo.
A postura e o ímpeto determinado dos passos refletiam a ânsia de uma demanda recém iniciada, mas a face de cada aventureiro revelava um ponto de vista diferente em relação à jornada.
O anão, Bruenor Martelo de Batalha - o torso inclinado adiante, as pernas atarracadas a marchar sob o corpo e o nariz agudo a se projetar acima da grenha de barba ruiva e oscilante -, seguia na liderança. Parecia petrificado, separado das pernas e da barba; o machado tantas vezes chanfrado era carregado com firmeza em suas mãos nodosas, sempre à frente; o escudo, ornamentado com o brasão da caneca espumante, vinha amarrado firmemente às costas da mochila abarrotada; e a cabeça, adornada com um elmo de chifres várias vezes amassado, jamais se voltava para os lados. Tampouco seus olhos se desviavam do caminho e raramente piscavam. Bruenor iniciara aquela jornada para encontrar a antiga terra natal do clã Martelo de Batalha e, embora compreendesse inteiramente que os salões argênteos de sua infância estivessem a centenas de quilômetros de distância, ele seguia em frente com passos pesados e o fervor de alguém cuja meta a muito esperada se encontra claramente à vista.
Ao lado de Bruenor, o imenso bárbaro também estava ansioso. Wulfgar acompanhava-o sem dificuldade, os grandes passos das pernas compridas igualavam com facilidade o ritmo forte do anão. Havia algo de urgente em sua figura, como um corcel fogoso sob rédeas curtas. Chamas ávidas pela aventura ardiam em seus olhos claros, tão nitidamente como nos de Bruenor, mas, ao contrário do anão, o olhar de Wulfgar não se fixava na estrada retilínea diante deles. Era um rapaz que deixava o lar pela primeira vez para ver o mundo, e ele olhava continuamente ao redor, absorvendo cada imagem e sensação que a paisagem tinha a oferecer.
Viera junto para ajudar seus amigos naquela aventura, mas viera também para expandir os horizontes de seu próprio mundo. Passara a totalidade de sua juventude dentro dos segregantes limites naturais do Vale do Vento Gélido, restringindo suas experiências às antigas tradições de seus companheiros de tribo e aos povos pioneiros de Dez-Burgos.
Havia mais coisas lá fora, Wulfgar sabia, e estava determinado a aprender tanto quanto pudesse.
Drizzt Do'Urden estava menos interessado; a figura envolta num manto a caminhar rápida e desembaraçadamente ao lado de Wulfgar. O passo desenvolto denunciava sua herança élfica, mas as sombras do capuz baixo sugeriam algo mais. Drizzt era um drow, um elfo negro, habitante do mundo subterrâneo desprovido de luz. Passara vários anos na superfície, negando sua herança, mas descobrira que não conseguia escapar à aversão pelo sol inerente ao seu povo.
E, assim, ele se recolhia à sombra de seu capuz, o passo indiferente, até mesmo resignado, pois aquela viagem era meramente uma continuação de sua existência, mais uma aventura numa série perpétua de aventuras. Renunciando ao seu povo da cidade escura de Menzoberranzan, Drizzt Do'Urden tinha voluntariamente adotado uma vida nômade. Ele sabia que jamais seria verdadeiramente aceito na superfície; seu povo era considerado demasiado vil (e com razão) para que até mesmo as comunidades mais tolerantes o acolhessem. A estrada era seu lar agora; estava sempre viajando para se esquivar à angústia inevitável de ser forçado a sair de um lugar que poderia chegar a amar.
Dez-Burgos havia sido um refúgio temporário. O povoado dos ermos mais remotos abrigava uma grande proporção de ladinos e párias e, embora Drizzt não fosse visivelmente bem-vindo, sua reputação como guardião das fronteiras das vilas, adquirida a duras penas, havia lhe angariado certo grau de respeito e tolerância por parte de muitos dos colonos. Bruenor, porém, tinha-o como um amigo de verdade e Drizzt havia voluntariamente seguido o anão naquela viagem, apesar de temer que o tratamento que receberia assim que deixasse a área de influência de sua reputação não seria nada civilizado.
De vez em quando, Drizzt deixava-se ficar para trás uns dez ou doze metros para ver como se saía o quarto membro do grupo. Bufando, Régis, o halfling, era o último membro da trupe (e não por sua escolha), o ventre demasiado abundante para a estrada e as pernas curtas demais para acompanhar os passos contínuos do anão.
Pagando, agora, pelos meses de luxo de que desfrutara no palacete em Brin Shander, Régis amaldiçoava a reviravolta da sorte que o forçara a pegar a estrada. Seu maior amor era o conforto, e ele se esforçava para aperfeiçoar as artes do comer e do dormir com a mesma diligência com que um rapaz de sonhos heróicos brandia a primeira espada. Seus amigos ficaram verdadeiramente surpresos quando ele se juntou ao grupo, mas também felizes por tê-lo como companhia, e até mesmo Bruenor, tão desesperado para rever sua antiga terra natal, teve o cuidado de não ditar o ritmo muito além da capacidade de Régis em acompanhá-lo.
Sem dúvida, Régis se forçava até os limites de sua resistência, e sem as costumeiras reclamações. Ao contrário de seus companheiros, porém, cujos olhos se dirigiam para a estrada adiante, ele continuava a olhar de relance por sobre o ombro, em direção a Dez-Burgos e ao lar que tão misteriosamente abandonara para tomar parte na jornada.
Era com certa preocupação que Drizzt notava aquilo.
Régis estava fugindo de alguma coisa.
Os companheiros continuaram seguindo para oeste durante vários dias. Ao sul, os picos nevados das montanhas pontiagudas, a Espinha do Mundo, corriam paralelamente a seu trajeto. Aquela cordilheira marcava o limite sul do Vale do Vento Gélido, e os companheiros se mantinham alertas, esperando pelo fim da mesma. Quando os picos mais ocidentais desaparecessem e dessem lugar ao terreno plano, eles se dirigiriam para o sul, descendo o desfiladeiro entre as montanhas e o mar, deixariam totalmente o vale e percorreriam os últimos cento e cinqüenta quilômetros até a cidade costeira de Luskan.
De volta à trilha a cada manhã, antes que o sol nascesse às suas costas, eles prosseguiam até encontrar as últimas linhas róseas do crepúsculo, quando então paravam para acampar na última oportunidade antes de o vento frio se revestir de seu glacial ar noturno.
Então, estavam de volta à estrada mais uma vez, antes da aurora, cada um deles a correr confinado na solidão de suas próprias perspectivas e de seus próprios temores.
Uma jornada silenciosa, a não ser pelo murmúrio incessante do vento leste.

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LIVRO UM
BUSCAS

Rezo para que nunca se acabem os dragões do mundo. Digo isso com toda a sinceridade, embora tenha tomado parte na morte de uma das grandes serpentes. Pois
o dragão é o inimigo quintessencial, o maior dos adversários, o epítome inconquistável da devastação. O dragão, acima de todas as outras criaturas - mesmo dos demônios
e diabos -, evoca imagens de esplendor sombrio, da grande fera enrodilhada e adormecida sobre o maior dos tesouros. São o teste supremo do herói e o medo supremo
da criança. São mais velhos que os elfos e mais afeitos à terra que os anões. Os grandes dragões representam a besta sobrenatural, o elemento fundamental da besta,
aquela parte mais sombria de nossa imaginação.
Os magos não lhes conhecem as origens, apesar de acreditarem que um grande mago, um deus dos magos, deve ter desempenhado algum papel na criação dessas feras.
Os elfos, com suas longas fábulas que explicam a criação de cada aspecto do mundo, têm muitas histórias antigas sobre as origens dos dragões, mas admitem, reservadamente,
que não fazem realmente a menor idéia de como os dragões vieram a existir.
Minha própria crença é, de longe, a mais simples e, contudo, a mais complicada. Acredito que os dragões apareceram no mundo imediatamente após a criação da
primeira raça pensante. Não dou crédito a nenhum deus ou mago por essa criação, e sim a mais básica imaginação - urdida a partir de medos invisíveis - desses primeiros
mortais racionais.
Criamos os dragões como criamos os deuses, porque precisamos deles; porque, em algum lugar no fundo de nossos corações, reconhecemos que um mundo sem dragões
é um mundo no qual não vale a pena viver.
Há tantas pessoas na terra que querem uma resposta, uma resposta definitiva; para tudo na vida e mesmo para tudo o que possa haver depois da vida. Estudam
e testam, e porque esses poucos encontram as respostas para algumas perguntas simples, supõem que deve haver respostas para todas as perguntas. Como era o mundo
antes de existirem as pessoas? Será que nada existia a não ser trevas antes do sol e das estrelas? Será que existia alguma coisa? O que éramos nós, cada um de nós,
antes de nascermos? E o que - o mais importante de tudo - seremos após morrermos?
Por compaixão, espero que esses questionadores nunca encontrem o que procuram.
Um autoproclamado profeta se apresentou em Dez-Burgos negando a possibilidade de uma pós-vida, alegando que as pessoas que morreram e foram ressuscitadas
pelos clérigos na verdade jamais haviam morrido e que suas alegações sobre experiências além-túmulo eram um truque elaborado de seus próprios corações, um ardil
para facilitar o caminho em direção ao nada. Pois isso é tudo o que havia, dizia ele, um vazio, um nada.
Jamais em minha vida ouvi falar de alguém que implorasse tão desesperadamente para que provassem que ele estava errado.
Pois o que nos restará se não sobrar nenhum mistério? Que esperança poderemos encontrar se soubermos todas as respostas?
O que é isso dentro de nós, então, que quer negar tão desesperadamente a magia e desvendar o mistério? Medo, eu presumo, baseado nas muitas incertezas da
vida e na incerteza maior ainda da morte. Ponha esses medos de lado, digo eu, e viva livre deles, pois, se dermos apenas um passo para trás e observarmos a verdade
do mundo, descobriremos que, de fato, há magia ao nosso redor, inexplicável por meio de números e fórmulas. O que é, se não mágica, a paixão evocada pelo discurso
arrebatador do comandante antes da batalha desesperada? O que é, se não mágica, a paz que uma criança encontra nos braços da mãe? O que é o amor, se não mágica?
Não, eu não gostaria de viver num mundo sem dragões, assim como não gostaria de viver num mundo sem magia, pois esse é um mundo sem mistério e um mundo sem
fé.
E esse, temo eu, seria o truque mais cruel de todos para qualquer ser consciente e racional.

1. UM PUNHAL NAS COSTAS

Ele trazia o manto fechado e bem junto ao corpo, apesar da pouca luz que entrava pelas janelas acortinadas, pois essa era sua existência, dissimulada e solitária.
A trilha do assassino.
Enquanto outras pessoas se ocupavam das próprias vidas, deleitando-se nos prazeres da luz do sol e na bem-vinda visibilidade de seus vizinhos, Artemis Entreri
ficava nas sombras, as órbitas dilatadas de seus olhos focalizadas na senda estreita que devia tomar para completar sua mais recente missão.
Ele era de fato um profissional, talvez o melhor em todo o território dos reinos em seu ofício atroz, e quando farejava o rastro da presa, a vítima jamais
escapava. Portanto, o assassino não se incomodou com a casa vazia que encontrou em Brin Shander, a cidade principal dos dez povoados nos ermos do Vale do Vento Gélido.
Entreri suspeitara que o halfling havia fugido de Dez-Burgos. Mas não importava; se aquele fosse realmente o mesmo halfling que ele vinha seguindo desde Calimporto,
mais de mil e quinhentos quilômetros ao sul, o progresso que fizera superava suas expectativas. Seu alvo não tinha mais do que duas semanas de vantagem e o rastro
estaria bem fresco.
Entreri percorreu a casa calma e silenciosamente, procurando pistas sobre a vida que o halfling ali levara e que lhe dariam a vantagem quando do confronto
inevitável. A desordem o saudou em cada sala: o halfling partira às pressas, provavelmente ciente de que o assassino estava fechando o cerco.
Entreri considerou aquilo um bom sinal, aumentando ainda mais suas suspeitas de que esse halfling, Régis, era o mesmo Régis que servira ao Paxá Pûk, anos
atrás, na distante cidade do sul.
O assassino sorriu maldosamente ao pensar que o halfling sabia que estava sendo acossado, o que aumentava o desafio da caçada, pois Entreri media sua perícia
de caçador contra a habilidade de se esconder da futura vítima. Mas Entreri sabia que o resultado final era previsível, pois as pessoas assustadas invariavelmente
cometiam um erro fatal.
O assassino encontrou o que procurava numa gaveta de escrivaninha no quarto principal. Fugindo às pressas, Régis negligenciara as precauções para ocultar
sua verdadeira identidade. Entreri segurou o pequeno anel diante de seus olhos brilhantes, estudando a inscrição que claramente identificava Régis como um membro
da guilda de ladrões do Paxá Pûk em Calimporto. Entreri cerrou o punho em volta do sinete e um sorriso maldoso se espalhou por seu rosto.
- Encontrei você, ladrãozinho - ele riu para o vazio da sala. - Seu destino está selado. Não há para onde fugir!
A mudança abrupta em sua expressão revelou seu estado de prontidão assim que o som de uma chave na porta da frente do palacete ecoou pelo corredor da grande
escadaria. Deixou cair o anel em sua escarcela e esgueirou-se, silencioso como a morte, até as sombras dos pilares superiores do pesado corrimão da escada.
As grandes portas duplas se abriram e entraram um homem e uma moça, vindos do pórtico, à frente de dois anões. Entreri conhecia o homem: Cássio, o representante
de Brin Shander. Ali fora sua casa outrora, mas ele havia renunciado a ela vários meses antes em favor de Régis, depois das ações heróicas do halfling na batalha
da vila contra o mago maligno, Akar Kessell, e seus sequazes goblins.
Entreri também vira a outra humana antes, embora ainda não tivesse descoberto a ligação entre ela e Régis. Mulheres bonitas eram uma raridade naquela colônia
remota, e a moça era, de fato, a exceção. Brilhantes cachos castanho-avermelhados dançavam alegremente em torno de seus ombros; a luz intensa dos olhos azul-escuros
era capaz de aprisionar irremediavelmente qualquer homem em suas profundezas.
O nome dela, o assassino descobrira, era Cattiebrie. Ela vivia com os anões no vale ao norte da cidade, mais especificamente com o líder do clã, Bruenor,
que a adotara como sua própria filha uns doze anos antes, quando um ataque-surpresa dos goblins a deixara órfã.
Aquele encontro poderia se mostrar valioso, refletiu Entreri. Junto aos postes do corrimão, prestou atenção para ouvir a discussão lá embaixo.
- Só faz uma semana que ele foi embora! - argumentava Cattiebrie.
- Uma semana sem notícias - devolveu Cássio, obviamente contrariado. - E minha linda casa vazia e desprotegida. Ora, a porta da frente estava destrancada
quando passei por aqui alguns dias atrás!
- 'Cê deu a casa pro Régis - Cattiebrie lembrou o homem.
- Emprestei! - vociferou Cássio, embora, na verdade, a casa tivesse sido de fato um presente. O representante logo se arrependera de entregar a Régis
a chave daquele palácio, a habitação mais grandiosa ao norte de Mirabar. Em retrospectiva, Cássio compreendeu que fora arrebatado pelo ardor da espantosa vitória
sobre os goblins e desconfiava que Régis havia intensificado um pouco mais as emoções, usando os supostos poderes hipnóticos do pingente de rubi. Como outros que
haviam sido tapeados pelo persuasivo halfling, Cássio chegara a um panorama muito diferente dos acontecimentos, um panorama que pintava Régis desfavoravelmente.
- Não importa que nome 'cê dê a isso - cedeu Cattiebrie -, 'cê não devia se afobar tanto prá concluir que Régis abandonou a casa.
O rosto do representante ficou vermelho de fúria.
- Tudo fora ainda hoje! - exigiu ele. - Você tem a minha lista. Quero todos os pertences do halfling fora de minha casa! Tudo o que restar quando eu
voltar amanhã há de se tornar meu por direito adquirido! E vou avisando: haverá pesadas compensações se qualquer parte da minha propriedade estiver faltando ou tiver
sido danificada! - Ele girou sobre os calcanhares e saiu tempestuosamente portas afora.
- 'Tá bem irritado esse aí! - riu Arnês Mallot, um dos anões. - Nunca vi ninguém como Régis prá perder a lealdade dos amigos e ganhar o ódio dos velhos
companheiros.
Cattiebrie assentiu, concordando com a observação de Arnês. Ela sabia que Régis brincava com encantos mágicos e imaginou que os relacionamentos paradoxais
do halfling com os que o cercavam fossem um infeliz efeito colateral de sua própria leviandade.
- Cê acha que ele foi com Drizzt e Bruenor? - perguntou Arnês. Lá em cima, Entreri mudou de posição, ansioso.
- Sem dúvida - respondeu Cattiebrie. - Pediram o inverno inteiro prá ele se juntar à busca pelo Salão de Mitral e, com certeza, o fato de Wulfgar estar
indo junto só fez aumentar a pressão.
- Então, o nanico 'tá a meio caminho de Luskan, se não mais longe - raciocinou Arnês. - E Cássio tem razão em querer a casa de volta.
- Então, vamos começar a empacotar - disse Cattiebrie. - Cássio já tem coisas demais sem precisar juntar também os bens de Régis ao seu tesouro.
Entreri se recostou ao corrimão. O nome do Salão de Mitral lhe era desconhecido, mas ele conhecia bem o caminho para Luskan. Sorriu novamente, imaginando
se conseguiria alcançá-los antes que eles chegassem à cidade portuária.
Primeiro, porém, sabia que ainda poderia haver alguma informação valiosa a ser obtida ali. Cattiebrie e os anões se puseram a reunir os pertences do halfling
e, à medida que passavam de uma sala a outra, a sombra negra de Artemis Entreri, silenciosa como a morte, pairava sobre eles. Jamais suspeitaram de sua presença,
jamais teriam adivinhado que a ondulação suave nas cortinas era mais do que uma corrente de ar entrando pelas frestas da janela, ou que a sombra atrás da cadeira
era desproporcionalmente longa.
Ele conseguiu ficar perto o bastante para ouvir quase toda a conversa, e Cattiebrie e os anões falaram de pouca coisa além dos quatro aventureiros e da viagem
até o Salão de Mitral. Mas os esforços de Entreri de pouco lhe valeram. Já sabia dos afamados companheiros do halfling; todos em Dez-Burgos falavam deles com freqüência:
de Drizzt Do'Urden, o elfo drow renegado, que abandonara sua gente de pele escura nas entranhas dos Reinos e vagava pelas fronteiras de Dez-Burgos como um guardião
solitário contra as intromissões dos ermos do Vale do Vento Gélido; de Bruenor Martelo de Batalha, o líder valente do clã de anões que vivia no vale perto do Sepulcro
de Kelvin; e, principalmente, de Wulfgar, o poderoso bárbaro capturado e criado por Bruenor até a idade adulta, que havia retornado com as tribos selvagens do vale
para defender Dez-Burgos contra o exército de goblins e depois dera início a uma trégua entre todos os povos do Vale do Vento Gélido. Uma barganha que salvara -
e prometera enriquecer - as vidas de todos os envolvidos.
- Parece que você se cercou de aliados formidáveis, halfling - refletiu Entreri, recostando-se ao espaldar de uma grande cadeira enquanto Cattiebrie
e os anões passavam a uma sala contígua. - Serão de pouca ajuda. Você é meu!
Cattiebrie e os anões trabalharam durante quase uma hora, enchendo dois sacos grandes, principalmente com roupas. Cattiebrie estava estarrecida com a quantidade
de bens que Régis havia reunido desde seu suposto ato de heroísmo contra Kessell e os goblins - presentes, em sua maioria, de cidadãos agradecidos. Bem ciente do
amor do halfling pelo conforto, ela não conseguia entender o que dera nele para fugir pela estrada atrás dos demais. Mas o que realmente a espantava era o fato de
Régis não ter contratado carregadores para levar consigo ao menos alguns de seus pertences. E quanto mais tesouros ela descobria ao percorrer o palácio, mais a incomodava
todo aquele cenário de pressa e ímpeto. Não era nada típico de Régis. Tinha de haver algum outro fator, algum elemento perdido, que ela ainda não havia considerado.
- Bem, a gente já tem mais do que pode carregar, e é a maior parte das coisas de qualquer maneira! - declarou Arnês, levando um dos sacos ao ombro
robusto. - Quer saber, deixa o resto pro Cássio separar!
- Não vou dar a Cássio o prazer de reivindicar nenhuma dessas coisas - retorquiu Cattiebrie. - Pode ser que a gente ainda encontre outros objetos de
valor por aí. Vocês dois, levem os sacos de volta prós nossos quartos na estalagem. Vou terminar o trabalho por aqui.
- Ah, 'cê 'tá sendo boazinha com esse Cássio - resmungou Arnês. - Bruenor acertou quando disse que ele era um homem que gosta demais de contar o que
é seu!
- Seja justo, Arnês Mallot - retorquiu Cattiebrie, apesar de o sorriso de concordância desmentir a aspereza de seu tom de voz. - Cássio serviu bem
às vilas na guerra e tem sido um bom líder para o povo de Brin Shander. 'Cê sabe tão bem quanto eu que Régis tem o dom de deixar os gatos com os pêlos eriçados!
Arnês deu uma risadinha, concordando.
- Apesar de todos os jeitinhos que o nanico tem prá conseguir o que quer, ele deixou uma ou duas fileiras de vítimas irritadas! - Ele bateu no ombro
do outro anão, e os dois se dirigiram à porta principal.
- Não se atrase, menina - gritou Arnês para Cattiebrie. - Vamos voltar pras minas. Amanhã, no máximo!
- 'Cê reclama demais, Arnês Mallot - disse Cattiebrie, rindo.
Entreri considerou a última troca de palavras e mais uma vez um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ele conhecia bem o rastro dos encantos mágicos. As "vítimas
irritadas" que Arnês mencionara descreviam exatamente as pessoas que o Paxá Pûk havia tapeado em Calimporto. Pessoas encantadas pelo pingente de rubi.
As portas duplas se fecharam com um estrondo. Cattiebrie ficou sozinha no palacete - ou assim ela pensou.
Ela ainda refletia sobre o atípico desaparecimento de Régis. Suas suspeitas persistentes de que algo estava errado, de que faltava uma peça do quebra-cabeça,
começaram a alimentar dentro dela a sensação de que algo também estava errado ali na casa.
Repentinamente, Cattiebrie passou a notar cada ruído e cada sombra ao seu redor. O "tic-tac" de um relógio de pêndulo. O frufru das cortinas. O ruído de um
camundongo correndo por dentro das paredes de madeira.
Seus olhos dardejaram de volta às cortinas, ainda tremendo ligeiramente devido ao último movimento. Poderia ter sido uma corrente de ar através de uma fresta
na janela, mas a mulher alerta desconfiava de outra coisa. Agachando-se, num reflexo, e tentando alcançar o punhal em seu quadril, ela se lançou em direção à porta
aberta ao lado das cortinas.
Entreri movera-se rapidamente. Desconfiando que ainda havia mais a aprender com Cattiebrie, e nada disposto a deixar passar a oportunidade oferecida pela
saída dos anões, ele havia se esgueirado até a posição mais favorável para um ataque e agora esperava pacientemente no topo do estreito poleiro oferecido pela porta
aberta, equilibrado ali com a mesma facilidade com que um gato caminha sobre o peitoril da janela. Atentou para a aproximação da moça, o punhal a girar casualmente
em sua mão.
Cattiebrie sentiu o perigo assim que alcançou a porta e viu a forma escura caindo ao seu lado. Mas, por mais rápidas que fossem suas reações, seu próprio
punhal não deixara nem a metade da bainha antes que os dedos delgados de uma mão fria tivessem se fechado sobre sua boca, reprimindo um grito, e a lâmina afiada
de um punhal ajaezado houvesse marcado uma linha fina em sua garganta.
Estava atordoada e estarrecida. Nunca vira um homem se mover tão rápido, e a precisão mortífera do ataque de Entreri a amedrontou. Uma súbita tensão nos músculos
dele mostrou que, se ela persistisse em sacar a arma, estaria morta muito antes de poder usá-la. Largando o cabo do punhal, ela não fez nenhum outro gesto de resistência.
A força do assassino também a surpreendeu quando ele a ergueu facilmente até uma cadeira. Era um homem pequeno, esguio como um elfo, mal e mal da mesma altura
que ela, mas cada músculo de sua compleição compacta se achava na melhor forma para o combate. Sua própria presença exsudava uma aura de força e uma confiança inabalável.
Isso também amedrontava Cattiebrie porque não se tratava da arrogância estouvada de um jovem exuberante, mas do ar sereno de superioridade de alguém que presenciara
mil batalhas e nunca fora derrotado.
Os olhos de Cattiebrie jamais se desviaram do rosto de Entreri enquanto ele rapidamente a amarrava à cadeira. Os traços angulosos, os malares notáveis e o
queixo pronunciado eram apenas acentuados pelo corte reto de seu cabelo negro e lustroso. A sombra de barba a lhe escurecer o rosto dava a impressão que, não importando
quantas vezes ele se barbeasse, jamais desapareceria. Longe de ser desmazelado, porém, tudo a respeito daquele homem denotava controle. Cattiebrie poderia até mesmo
tê-lo considerado bonito, não fossem os olhos.
O cinza daqueles olhos não tinha brilho. Sem vida, destituídos de qualquer sinal de compaixão ou humanidade, caracterizavam aquele homem como um instrumento
de morte e nada mais.
- O que 'cê quer de mim? - perguntou Cattiebrie, assim que reuniu a coragem para tanto.
Entreri respondeu com um tapa pungente no rosto.
- O pingente de rubi! - exigiu ele, de repente. - O halfling ainda tem o pingente de rubi?
Cattiebrie lutou para reprimir as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Estava desorientada e surpresa e não conseguiu responder imediatamente à pergunta do
homem.
O punhal ajaezado cintilou diante de seus olhos e lentamente traçou a circunferência de seu rosto.
- Não tenho muito tempo - declarou Entreri categoricamente - Você vai me dizer o que preciso saber. Quanto mais demorar a responder, mais dor sentirá.
Suas palavras foram calmas e pronunciadas com honestidade.
Cattiebrie, transformada numa mulher forte sob a tutela de Bruenor, flagrou-se amedrontada. Ela enfrentara e derrotara goblins antes, até mesmo um horrível
troll certa vez, mas esse assassino imperturbável a aterrorizava. Ela tentou responder, mas o tremor do queixo não deixava as palavras se formarem.
O punhal cintilou novamente.
- No pescoço de Régis! - foi o grito agudo de Cattiebrie, uma lágrima a traçar uma linha solitária pelas suas faces.
Entreri assentiu e sorriu de leve.
- Ele está com o elfo negro, o anão e o bárbaro. - disse, corriqueiramente. - E estão na estrada para Luskan. E de lá para um lugar chamado Salão de
Mitral. Fale-me sobre o Salão de Mitral, minha cara menina. - Ele raspou a lâmina em sua própria face e o fio aguçado removeu um pequeno trecho de barba. - Onde
fica?
Cattiebrie se deu conta que sua incapacidade de responder provavelmente seria seu fim.
- E... eu não sei - ela balbuciou audaciosamente, readquirindo certo grau da disciplina que Bruenor lhe ensinara, apesar de seus olhos jamais abandonarem
o brilho da lâmina letal.
- Pena - respondeu Entreri. - Um rostinho tão bonito...
- Por favor - disse Cattiebrie com toda a calma possível diante do punhal que se movia em sua direção. - Ninguém sabe! Nem mesmo Bruenor! Encontrar
o lugar é a missão dele.
A lâmina se deteve subitamente e Entreri virou a cabeça para o lado, os olhos apertados e todos os músculos tensos, em estado de alerta.
Cattiebrie não ouvira o giro da maçaneta da porta, mas a voz grave de Arnês Mallot ecoando pelo corredor explicou as ações do assassino:
- Hã, cadê você, menina?
Cattiebrie tentou berrar "Fujam!" - e que se danasse a própria vida -, mas o golpe rápido de Entreri com as costas da mão a atordoou e expeliu a palavra como
um grunhido indecifrável.
A cabeça a pender de um lado a outro, ela apenas conseguiu focalizar a visão quando Arnês e Grollo, os machados nas mãos, irromperam sala adentro. Entreri
estava preparado para recebê-los, o punhal ajaezado numa das mãos e um sabre na outra.
Por um instante, Cattiebrie se encheu de entusiasmo. Os anões de Dez-Burgos eram um batalhão ferrenho de guerreiros empedernidos e, entre os membros do clã,
a perícia de Arnês só perdia para a de Bruenor.
Então, ela se lembrou de quem eles enfrentariam e, apesar da aparente vantagem dos anões, suas esperanças foram varridas por uma onda de conclusões irrefutáveis.
Ela testemunhara a indistinção dos movimentos do assassino, a precisão extraordinária de suas cutiladas.
A revulsão a brotar em sua garganta, ela sequer foi capaz de emitir um aviso ofegante para que os anões fugissem.
Mesmo se conhecessem a profundidade do horror no homem diante deles, Arnês e Grollo não teriam se esquivado da luta. A fúria cega o guerreiro anão para qualquer
consideração por sua segurança pessoal e, quando aqueles dois viram sua amada Cattiebrie amarrada à cadeira, a investida contra Entreri veio por instinto.
Estimulados por uma fúria desenfreada, seus primeiros ataques vociferaram com toda a força. Por outro lado, Entreri começou vagarosamente, encontrando seu
ritmo e permitindo que a pura fluidez de seus movimentos alimentasse o próprio impulso. Às vezes, ele mal parecia capaz de aparar ou evitar as pancadas ferozes.
Algumas erravam o alvo por pouco, e esses quase acertos incitavam Arnês e Grollo ainda mais.
Mas, mesmo com seus amigos se impondo no ataque, Cattiebrie compreendeu que estavam em dificuldades. As mãos de Entreri pareciam conversar uma com a outra,
tão perfeito era o complemento dos movimentos de ambas à medida que posicionavam o punhal ajaezado e o sabre. Os movimentos sincrônicos de seus pés mantinham-no
totalmente equilibrado ao longo da escaramuça. Era uma dança de esquivas, paradas e contragolpes.
Era uma dança de morte.
Cattiebrie vira aquilo antes, os métodos que denunciavam o melhor espadachim de todo o Vale do Vento Gélido. A comparação com Drizzt Do'Urden era inevitável;
a graça e os movimentos de ambos eram tão semelhantes e cada parte de seus corpos funcionava em perfeita harmonia.
Mas eles continuavam consideravelmente diferentes, uma polaridade de princípios morais que alterava sutilmente a aura da dança.
O ranger drow em batalha era um instrumento de beleza a se contemplar, um atleta perfeito que se dedicava com fervor incomparável ao caminho da integridade
de que escolhera trilhar. Mas Entreri era meramente aterrorizante, um assassino desapaixonado que se livrava insensivelmente dos obstáculos em seu caminho.
O ímpeto inicial do ataque dos anões agora começava a diminuir e tanto Arnês quanto Grollo traziam estupefação no olhar por ainda não estar o chão rubro com
o sangue do oponente. Mas, enquanto seus ataques perdiam velocidade, o impulso de Entreri continuava a crescer. Suas armas eram uma mancha indistinta e cada estocada
era seguida por duas outras que faziam os anões balançar.
Desembaraçados eram seus movimentos. Infindável era sua energia.
Arnês e Grollo mantinham uma postura exclusivamente defensiva, mas, mesmo com todos os seus esforços dedicados ao bloqueio, todos na sala sabiam que era apenas
uma questão de tempo antes que a lâmina assassina lhes atravessasse a guarda.
Cattiebrie não viu o golpe fatal, mas enxergou vividamente a linha brilhante de sangue que apareceu de um lado a outro da garganta de Grollo. O anão continuou
lutando por alguns instantes, alheio à causa de sua incapacidade de recuperar o fôlego. Então, surpreso, Grollo caiu de joelhos, levou às mãos à garganta e, gorgolejando,
penetrou as trevas da morte.
A fúria incitou Arnês a esquecer a exaustão. Seu machado distribuía talhos e cutiladas desvairadamente, clamando por vingança.
Entreri brincou com ele, chegando a prosseguir com a charada a ponto de golpeá-lo na têmpora com a parte chata do sabre.
Ultrajado, ofendido e completamente ciente de que fora superado, Arnês lançou-se numa última e suicida arremetida, esperando levar o assassino com ele.
Entreri desviou-se da desesperada investida com um passo para o lado e uma gargalhada divertida e pôs fim à luta, enterrou o punhal ajaezado no peito de Arnês
e completou com um golpe poderoso do sabre quando o anão passou cambaleando por ele.
Horrorizada demais para chorar, horrorizada demais para gritar, Cattiebrie observou incapaz de reagir Entreri retirar o punhal do peito de Arnês. Certa de
sua morte iminente, ela fechou os olhos quando o punhal veio em sua direção, sentiu o metal, aquecido pelo sangue do anão, rente à sua garganta.
E, em seguida, o raspar provocador do fio da arma contra sua pele macia e vulnerável quando Entreri lentamente girou a lâmina na mão.
Torturante. A promessa, a dança da morte.
Então, acabou. Cattiebrie abriu os olhos exatamente quando a pequena arma voltou à sua bainha no quadril do assassino. Ele se afastara um passo.
- Veja bem - ofereceu ele, como explicação por sua misericórdia -, eu mato apenas os que se opõem a mim. Talvez, então, três de seus amigos na estrada
para Luskan escapem ao fio da espada. Quero apenas o halfling.
Cattiebrie recusou-se a se render ao terror que ele evocava. Manteve a voz firme e prometeu, com frieza:
- Você os subestima. Lutarão contra você. Com serena confiança, Entreri respondeu:
- Então, eles também vão morrer.
Cattiebrie não poderia vencer uma disputa de fibra com o assassino impassível. Sua única resposta para ele era a rebeldia. Cuspiu nele, sem temer as conseqüências.
Ele retorquiu com um simples e pungente tapa com as costas da mão. Os olhos dela se anuviaram com a dor e as lágrimas que brotavam, e Cattiebrie mergulhou
nas trevas. Mas, ao cair inconsciente, ainda escutou durante alguns segundos a risada fria e cruel, que foi desaparecendo enquanto o assassino deixava a casa.
Torturante. A promessa da morte.

2. A CIDADE DAS VELAS

- B em, lá está ela, rapaz, a Cidade das Velas - disse Bruenor a Wulfgar enquanto os dois olhavam para Luskan, lá embaixo, de um pequeno outeiro alguns quilômetros
ao norte da cidade.
Wulfgar apreciou a vista com um suspiro profundo de admiração. Luskan abrigava mais de quinze mil almas, era pequena se comparada às imensas cidades do sul
e à sua vizinha mais próxima, Águas Profundas, algumas centenas de quilômetros descendo a costa. Mas, para o jovem bárbaro, que passara todos os seus dezoito anos
entre as tribos nômades e as pequenas aldeias de Dez-Burgos, o porto marítimo fortificado parecia realmente grande. Uma muralha encerrava Luskan, com torres de vigia
estrategicamente espaçadas a intervalos variados. Mesmo à distância, Wulfgar distinguia as formas escuras de muitos soldados a percorrer os parapeitos, as pontas
das lanças a brilhar sob a luz do novo dia.
- Não é um convite promissor - notou Wulfgar.
- Luskan não acolhe prontamente os visitantes - disse Drizzt, que aparecera atrás de seus dois amigos. - Podem abrir os portões para mercadores, mas
geralmente negam passagem aos viajantes comuns.
- Nosso primeiro contato está lá - grunhiu Bruenor. - E tenho a intenção de entrar!
Drizzt assentiu e não insistiu mais na discussão. Ele evitara Luskan em sua viagem original até Dez-Burgos. Os habitantes da cidade, em sua maioria humanos,
consideravam rostos diferentes com desdém. Costumavam negar passagem até mesmo aos elfos da superfície e aos anões. Drizzt desconfiava que os guardas fariam mais
a um elfo drow do que simplesmente colocá-lo para fora.
- Acenda a fogueira do desjejum - continuou Bruenor, o tom zangado a refletir sua determinação de que nada o desviaria de seu curso. - A gente vai
levantar acampamento cedo e chegar aos portões antes do meio-dia. Cadê o maldito do Ronca-bucho?
Drizzt olhou por sobre o ombro, na direção do acampamento.
- Dormindo - respondeu, embora a pergunta de Bruenor fosse total mente retórica. Desde que os companheiros haviam partido de Dez-Burgos Régis era o
primeiro a dormir e o último a acordar (e nunca sem auxílio).
- Bom, dá um chute nele! - ordenou Bruenor. Ele se virou na direção do acampamento, mas Drizzt o segurou pelo ombro.
- Deixe o halfling dormir - sugeriu o drow. - Talvez seja melhor chegarmos ao portão de Luskan na luz menos reveladora do crepúsculo.
O pedido de Drizzt deixou Bruenor confuso apenas por um instante até observar mais de perto o rosto taciturno do drow e reconhecer a trepidação naqueles olhos.
Os dois haviam se tornado amigos tão íntimos naqueles anos que Bruenor normalmente esquecia que Drizzt era um pária. Quanto mais se afastassem de Dez-Burgos, onde
Drizzt era conhecido, mais ele seria julgado pela cor de sua pele e pela reputação de seu povo.
- 'Tá, deixa ele dormir - cedeu Bruenor. - Pode ser que um pouco de sono não me fizesse mal também!
Levantaram acampamento ao final da manhã e estabeleceram um ritmo sossegado, apenas para descobrir, mais tarde, que haviam estimado mal a distância até a
cidade. Passava bastante do ocaso e já se iam as primeiras horas de escuridão quando eles finalmente chegaram ao portão norte da cidade.
A estrutura era tão pouco acolhedora quanto a reputação de Luskan: uma única porta ferrada, instalada na muralha de pedra entre duas torres baixas e aprumadas,
encontrava-se hermeticamente cerrada diante deles. Umas doze cabeças cobertas por peles se projetaram do parapeito acima do portão, e os companheiros sentiram outros
olhos - e arcos, provavelmente - assestados sobre eles desde as trevas no alto das torres.
- Quem são vocês que batem aos portões de Luskan? - veio uma voz da muralha.
- Viajantes do norte - respondeu Bruenor. - Um bando cansado vindo da distante Dez-Burgos, no Vale do Vento Gélido!
- O portão foi fechado ao pôr do sol - replicou a voz. - Vão embora!
- Seu filho de um gnoll pelado! - resmungou Bruenor a meia-voz. Ele bateu a acha na palma da mão como se quisesse derrubar a porta a machadadas.
Drizzt pousou a mão apaziguadora sobre o ombro do anão, pois os ouvidos sensíveis haviam reconhecido o estalido claro e distinto de uma manivela de besta.
Então, Régis inesperadamente assumiu o controle da situação. Endireitou as calças, que haviam escorregado sob a barriga protuberante, e enganchou os polegares
no cinto, tentando parecer algo importante. Atirando os ombros para trás, colocou-se à frente de seus companheiros.
- Seu nome, meu bom senhor? - gritou para o soldado sobre a muralha.
- Sou o Guardião da Noite do Portão Norte. Isso é tudo o que você precisa saber! - foi a resposta ríspida. - E quem...
- Régis. Primeiro Cidadão de Brin Shander. Sem dúvida, você já ouviu meu nome ou viu minhas esculturas.
Os companheiros ouviram sussurros lá em cima, depois uma pausa.
- Vimos o artesanato de um halfling de Dez-Burgos. É você?
- Herói da guerra dos goblins e mestre entalhador - declarou Régis, com uma reverência. - Os representantes de Dez-Burgos não ficarão contentes em
saber que fui abandonado ao frio da noite diante do portão de nosso principal parceiro comercial.
De novo ae sussurros, depois um silêncio mais prolongado. Dali a pouco, os quatro ouviram um som áspero atrás da porta - uma grade levadiça sendo erguida,
Régis sabia - e então o estrondo dos ferrolhos sendo atirados ao chão. O halfling olhou por sobre o ombro, para seus amigos surpresos, e deu um sorriso torto.
- Diplomacia, meu mal-humorado amigo anão - riu ele.
A porta se abriu apenas um pouco e dois homens se esgueiraram para fora, desarmados mas cautelosos. Ficou bastante óbvio que estavam bem protegidos desde
a muralha. Soldados de rostos soturnos se acotovelavam ao longo dos parapeitos, monitorando cada movimento dos estrangeiros com as miras das bestas.
- Sou Jierdan - disse o mais atarracado dos dois homens, embora fosse difícil julgar-lhe o tamanho exato devido às muitas camadas de peles que usava.
- E eu sou o Guardião da Noite - disse o outro. - Mostrem-me o que trouxeram para negociar.
- Negociar? - repetiu Bruenor, furioso. - Quem foi que disse algo sobre negociar? - Ele bateu o machado na palma da mão mais uma vez, fazendo os soldados
lá em cima trocarem de pé ansiosamente. - Isto parece a arma de um mercador nojento?
Tanto Régis quanto Drizzt fizeram menção de acalmar o anão, mas Wulfgar, tão tenso quanto Bruenor, permaneceu de lado, os braços descomunais cruzados diante
dele e o olhar austero a transfixar o porteiro insolente.
Os dois soldados recuaram, na defensiva, e o Guardião da Noite falou novamente, dessa vez à beira da fúria.
- Primeiro Cidadão - ele indagou Régis -, por que bate à nossa porta?
Régis colocou-se à frente de Bruenor e equilibrou-se com lisura diante do soldado.

- Hã... uma exploração preliminar da praça do mercado - falou sem pensar, tentando inventar uma história de improviso. - Tenho algumas esculturas
de especial refinamento para o mercado nesta temporada e queria me certificar de que tudo por aqui, inclusive o preço a se pagar pelo artesanato esteja acertado
para a administração da venda.
Os dois soldados trocaram sorrisos perspicazes.
- Você veio de muito longe só para isso - murmurou rudemente o Guardião da Noite. - Não teria sido melhor simplesmente vir com a caravana trazendo
as mercadorias?
Régis demonstrou certo mal-estar, percebendo que aqueles soldados eram experientes demais para caírem em sua manobra. Lutando contra o bom-senso, enfiou a
mão sob a camisa em busca do pingente de rubi, sabendo que seus poderes hipnóticos poderiam convencer o Guardião da Noite a deixá-los passar, mas temendo mostrar
a pedra e expor ainda mais sua trilha ao assassino que ele sabia não estar muito longe.
Mas, de repente, Jierdan Sobressaltou-se ao notar a figura ao lado de Bruenor. O manto de Drizzt Do'Urden havia se deslocado ligeiramente, revelando a pele
negra de seu rosto.
Como se tivessem combinado, o Guardião da Noite também ficou tenso e, seguindo o exemplo de seu companheiro, discerniu rapidamente a causa da repentina reação
de Jierdan. Relutantemente, os quatro aventureiros baixaram as mãos às armas, prontos para um combate que não desejavam.
Mas Jierdan pôs fim à tensão tão rápido quanto a iniciara, esticando o braço por sobre o peito do Guardião da Noite e dirigindo-se ao drow diretamente.
- Drizzt Do'Urden? - perguntou tranqüilamente, procurando confirmação da identidade que já adivinhara.
O drow assentiu, surpreso com o reconhecimento.
- Seu nome também chegou a Luskan com as histórias do Vale do Vento Gélido - explicou Jierdan. - Perdoe nossa surpresa. - Ele fez uma reverência. -
Não vemos muitos da sua raça em nossos portões.
Drizzt assentiu novamente, mas não respondeu, incomodado com aquela atenção incomum. Nunca antes havia um porteiro se incomodado em perguntar-lhe o nome ou
suas intenções. E o drow logo compreendera ser vantajoso evitar inteiramente os portões, esgueirando-se silenciosamente sobre a muralha de uma cidade em meio à escuridão
e procurando o setor mais maltrapilho, onde ao menos teria a chance de passar despercebido nas esquinas escuras com os outros ladinos. Será que seu nome e seus feitos
heróicos tinham lhe angariado certo grau de respeito mesmo tão longe de Dez-Burgos?
Bruenor voltou-se para Drizzt e piscou, a própria raiva dissipada pelo fato de que seu amigo havia finalmente recebido o devido respeito de um estrangeiro.
Mas Drizzt não se convencera. Não se atrevia a esperar por tal coisa: isso o deixava vulnerável demais a sentimentos que se esforçara tanto em ocultar. Preferia
se proteger em suas suspeitas e em sua vigilância tanto quanto no negro capuz de seu manto. Curioso, manteve-se atento enquanto os dois soldados se afastavam para
ter uma conversa particular.
- Não me importa o nome dele - ouviu o Guardião da Noite sussurrar para Jierdan. - Nenhum elfo drow há de passar pelo meu portão!
- Você está cometendo um erro - retorquiu Jierdan. - São os heróis de Dez-Burgos. O halfling é realmente Primeiro Cidadão de Brin Shander; o drow,
um ranger com uma reputação mortal, mas inegavelmente honrada; e o anão - repare no brasão da caneca espumante em seu escudo - é Bruenor Martelo de Batalha, líder
de seu clã no vale.
- E quem é o gigante bárbaro? - perguntou o Guardião da Noite, usando um tom sarcástico numa tentativa de soar resoluto, apesar de estar obviamente
um pouco nervoso. - Que espécie de desgarrado é esse aí?
Jierdan deu de ombros.
- E grande, jovem e tem um certo grau de controle atípico para a idade. Parece-me improvável ele estar aqui, mas pode ser o jovem rei das tribos de
que falaram os contadores de histórias. Não devemos mandar embora esses viajantes; as conseqüências podem ser graves.
- O que Luskan teria a temer daqueles povoados insignificantes no Vale do Vento Gélido? - refugou o Guardião da Noite.
- Existem outros portos comerciais - retorquiu Jierdan. - Nem todas as batalhas são travadas com a espada. A perda do artesanato de Dez-Burgos não
seria bem vista por nossos mercadores, nem pelos navios mercantes que entram no porto a cada temporada.
O Guardião da Noite examinou os quatros estrangeiros novamente. Não confiava nem um pouco neles, apesar das formidáveis alegações de seu companheiro, e não
os queria na cidade. Mas sabia também que, caso suas suspeitas estivessem erradas e ele fizesse algo para comprometer o comércio de artesanato, seu próprio futuro
seria tristonho. Os soldados de Luskan respondiam aos mercadores, que não perdoavam com facilidade os erros que emagreciam suas bolsas.
O Guardião da Noite ergueu os braços, derrotado.
- Entrem, então - disse ele aos companheiros. - Sigam a muralha e dirijam-se às docas. Na última viela fica o Alfanje, e vocês estarão bem aqueci dos
por lá!
Drizzt estudou os passos orgulhosos de seus amigos enquanto marchavam
pela porta e imaginou que eles também haviam ouvido partes da conversa. Bruenor confirmou suas suspeitas quando eles se afastaram das torres de vigia, seguindo
a rua ao longo da muralha.
Olha só, elfo - o anão riu alto, dando uma cotovelada em Drizzt e parecendo obviamente contente. - Então, as histórias deixaram o vale e já conhecem
a gente até mesmo aqui tão pro sul. O que 'cê tem a dizer?
Drizzt deu de ombros novamente e Bruenor riu, presumindo que seu amigo estava meramente constrangido com toda aquela fama. Régis e Wulfgar também partilhavam
da alegria de Bruenor, e o homem imenso deu ao drow um jovial tapa nas costas ao passar à liderança da trupe.
Mas era mais do que constrangimento a fonte do desconforto de Drizzt. Ele percebera, ao passar, o sorriso no rosto de Jierdan, um sorriso que ultrapassava
a admiração. E apesar de não duvidar que as histórias da batalha contra o exército de goblins de Akar Kessell tivessem alcançado a Cidade das Velas, pareceu estranho
a Drizzt que um simples soldado soubesse tanto sobre ele e seus amigos, enquanto o porteiro, responsável exclusivamente por determinar quem entrava na cidade, nada
sabia.
As ruas de Luskan estavam apinhadas com edifícios de dois e três andares, um reflexo do desespero do povo dali em se amontoar na segurança da alta muralha
da cidade, longe dos perigos constantes das selvagens terras do norte. Uma torre ocasional - um posto de guarda, talvez, ou a maneira de um cidadão proeminente ou
de uma guilda mostrar superioridade - brotava dos telhados. Uma cidade circunspecta, Luskan sobrevivia, e até mesmo prosperava, na perigosa fronteira, apegando-se
a uma atitude de prontidão que geralmente chegava à paranóia. Era uma cidade de sombras, e os quatro visitantes sentiam intensamente os olhares curiosos e perigosos
que espiavam através de cada fresta escura enquanto avançavam.
As docas abrigavam o setor mais brutal da cidade, onde abundavam ladrões, foras-da-lei e mendigos em seus becos estreitos e nichos escuros. Uma névoa perpétua
e baixa vinha do mar, transformando as já sombrias alamedas em sendas ainda mais misteriosas.
Assim era a viela na qual os quatro amigos se viram entrando, a última ruela antes dos próprios molhes, uma via particularmente decrépita chamada Rua da Meia-lua.
Régis, Drizzt e Bruenor compreenderam imediatamente que haviam entrado num antro de vagabundos e rufiões, e cada um deles levou uma das mãos à respectiva arma. Wulfgar
caminhava ostensivamente e sem medo, embora também pressentisse a atmosfera ameaçadora. Sem entender que a área era de uma torpeza atípica, estava determinado a
abordar com mente aberta sua primeira experiência com a civilização.
- Aí está o lugar - disse Bruenor, indicando um pequeno grupo, provavelmente de ladrões, reunido diante da porta de uma taverna. A placa acima da porta, já
curtida pelo tempo, nomeava o lugar o Alfanje.
Régis engoliu em seco, pois uma assustadora mistura de emoções brotava dentro dele. Nos seus primeiros anos como ladrão em Calimporto, ele havia freqüentado
muitos lugares como aquele, mas a familiaridade com o ambiente apenas aumentava sua apreensão. Ele sabia que a fascinação proibida dos negócios realizados nas sombras
de uma perigosa taverna podia ser tão mortífera quanto às facas ocultas dos ladinos em cada mesa.
- Vocês querem mesmo entrar aí? - perguntou melindrosamente aos amigos.
- Não quero ouvir uma reclamação sua! - rebateu Bruenor. - 'Cê sabia o que tinha pela frente quando se juntou à gente lá no vale. Não começa a choramingar
agora!
- Você está bem protegido - interpôs Drizzt para reconfortar Régis.
Excessivamente orgulhoso em sua inexperiência, Wulfgar deu ainda mais ênfase à declaração:
- Que motivo eles teriam para nos fazer mal? Sem dúvida não fizemos nada de errado - indagou ele. Então, proclamou em alto e bom som, para desafiar
as sombras - Não tenha medo, amiguinho. Meu martelo há de eliminar quem quer que se levante contra nós!
- O orgulho dos jovens - resmungou Bruenor enquanto ele, Régis e Drizzt trocavam olhares incrédulos.
A atmosfera dentro do Alfanje estava de acordo com a decrepitude e a ralé que caracterizavam o lugar do lado de fora. A parte do edifício ocupada pela taverna
era uma única sala ampla, com um bar comprido posicionado defensivamente no canto da parede dos fundos, diretamente em frente à porta. Uma escadaria se elevava da
lateral do bar até o segundo nível da estrutura, uma escadaria utilizada com mais freqüência por mulheres maquiadas e excessivamente perfumadas e seus mais recentes
companheiros do que pelos hóspedes da estalagem. De fato, os marinheiros mercantes que aportavam em Luskan geralmente vinham à terra apenas para breves períodos
de emoção e divertimento, retornando à segurança de suas naus, se conseguissem fazê-lo, antes que o inevitável sono da embriaguez os deixasse vulneráveis.
Acima de tudo, porém, a taverna do Alfanje era uma sala de sensações, com miríades de sons, imagens e odores. O aroma de álcool, da cerveja forte e do vinho
barato às beberagens mais raras e potentes, permeava cada canto. Uma bruma de fumaça de exóticas ervas-de-fumo, como a névoa lá fora, tornava indistinta a dura realidade
das imagens, transformando-as em sensações mais suaves e oníricas.
Drizzt encaminhou-se para uma mesa desocupada, esquecida ao lado da porta, enquanto Bruenor aproximava-se do bar para acertar a estadia. Wulfgar foi atrás
do anão, mas Drizzt o deteve.
Para a mesa - explicou ele. - Você está muito alvoroçado para esse tipo de negócio; Bruenor pode cuidar disso.
Wulfgar começou a protestar, mas foi interrompido.
Que é isso - ofereceu Régis. - Sente-se comigo e com Drizzt.
Ninguém vai incomodar um velho e forte anão, mas um halfling minúsculo e um elfo magrelo podem parecer boa diversão para os brutamontes daqui. Precisamos
de seu tamanho e de sua força para evitar essa atenção indesejada.
O queixo de Wulfgar firmou-se com o elogio, e ele caminhou intrepidamente até a mesa. Régis lançou a Drizzt uma piscadela perspicaz e virou-se para segui-lo.
- Muitas lições você aprenderá nesta jornada, meu jovem amigo - Drizzt murmurou para Wulfgar, baixinho demais para o bárbaro ouvi-lo. - Tão longe de
seu lar.
Bruenor voltou do bar carregando quatro jarras de hidromel e resmungando a meia voz.
- A gente tem que acabar logo nossos negócios aqui - ele disse a Drizzt - e voltar prá estrada. O preço de um quarto nessa toca de orcs é uma ladroagem
descarada!
- Os quartos não são para se passar a noite toda - casquinou Régis.
Mas a carranca de Bruenor persistiu.
- Beba - ele disse ao drow. - O Beco do Rato não é muito longe daqui, pelo que disse a criada do bar, e pode ser que a gente consiga fazer contato
ainda esta noite.
Drizzt assentiu e bebericou o hidromel, sem querer realmente fazê-lo, mas esperando que uma bebida entre amigos pudesse relaxar o anão. O drow também estava
ansioso para deixar Luskan, temeroso de que sua própria identidade - ele mantinha o capuz ainda mais abaixado sob a luz bruxuleante das tochas da taverna - pudesse
lhes trazer mais problemas. Ele se preocupava ainda mais por Wulfgar, jovem e orgulhoso, e fora de seu elemento natural. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido, apesar
de impiedosos na batalha, eram inegavelmente honrados e baseavam toda a estrutura de sua sociedade em códigos rígidos e inflexíveis. Drizzt temia que Wulfgar fosse
presa fácil para as imagens falsas e a perfídia da cidade. Na estrada, nas terras selvagens, o martelo de Wulfgar o manteria em segurança, mas ali era provável que
ele se encontrasse em situações falazes envolvendo punhais dissimulados, nas quais sua poderosa arma e perícia na batalha seriam de pouca ajuda.
Wulfgar esvaziou sua jarra num único gole, limpou os lábios com zelo e ficou de pé.
- Vamos - disse a Bruenor. - Quem é que estamos procurando?
- Senta aí e cale a boca, garoto - ralhou Bruenor, olhando ao redor para ver se haviam atraído alguma atenção indesejada. - O trabalho desta noite
é prá mim e pro drow. Não tem lugar prum guerreiro grande demais como você! 'Cê fica aqui com Ronca-bucho, de boca fechada e com as costas prá parede!
Wulfgar voltou a afundar na cadeira, humilhado, mas Drizzt estava feliz por ter Bruenor aparentemente chegado às mesmas conclusões sobre o jovem guerreiro.
Mais uma vez, Régis salvou um pouco do orgulho de Wulfgar.
- Você não vai com eles, não! - ele retrucou ao bárbaro. - Eu não tenho a menor vontade de ir, mas não me atreveria a ficar aqui sozinho. Deixe que
Drizzt e Bruenor se divirtam em algum beco frio e fedorento. Ficaremos aqui e vamos aproveitar uma bem-merecida noite de boa diversão!
Drizzt deu um tapinha no joelho de Régis por baixo da mesa como agradecimento e levantou-se para sair. Bruenor bebeu em grandes goles o conteúdo de sua jarra
e saltou da cadeira.
- Vamos indo, então - ele disse ao drow. E depois, para Wulfgar - Tome conta do halfling e cuidado com as mulheres! São perversas como ratos famintos
e a única coisa que desejam morder é a sua bolsa!
Bruenor e Drizzt viraram no primeiro beco vazio depois do Alfanje, o anão, nervoso, montando guarda à entrada enquanto Drizzt seguia em frente alguns passos
e penetrava a escuridão. Convencido de que estava só e em segurança, Drizzt removeu de sua bolsa uma pequena estatueta de ônix, meticulosamente esculpida na forma
de um gato predador, e a colocou no chão diante dele.
- Guenhwyvar - ele chamou baixinho. - Venha, minha sombra.
Seu chamado atravessou os planos até o lar astral da entidade da pantera. O grande felino despertou de seu sono. Muitos meses haviam se passado desde que
seu mestre o chamara, e o gato estava ansioso para servir.
Guenhwyvar saltou através da urdidura dos planos, seguindo um bruxuleio de luz que só podia ser o chamado do drow. A seguir, o gato estava no beco com Drizzt,
imediatamente alerta naquele ambiente desconhecido.
- Vamos entrar numa teia perigosa, temo eu - explicou Drizzt. - Preciso de olhos onde os meus não são capazes de chegar.
Sem delongas e sem emitir um som sequer, Guenhwyvar saltou para uma pilha de escombros, dali para o patamar fragmentado de um pórtico, e dali para o alto
dos telhados. Satisfeito e sentindo-se muito mais seguro agora, Drizzt esgueirou-se de volta à rua onde Bruenor aguardava.
- Bem, cadê a maldita pantera? - perguntou Bruenor, um sinal de alívio em sua voz por Guenhwyvar não estar realmente com o drow. A maioria dos anões
desconfiava da magia, a não ser dos encantamentos mágicos que lançavam sobre suas armas, e Bruenor não gostava da pantera.
- Onde mais precisamos dela - foi a resposta do drow. Ele se pôs a descer a Rua da Meia-lua. - Não tenha medo, poderoso Bruenor. Os olhos de Guenhwyvar
estão sobre nós, mesmo que os nossos não possam retribuir seu olhar protetor!
O anão olhou ao redor, nervoso, gotas de suor visíveis na base de seu elmo de chifres. Ele conhecia Drizzt havia vários anos, mas nunca se acostumara ao gato
mágico.
Drizzt ocultou o sorriso sob o capuz.
Todas as vielas, abarrotadas de pilhas de escombros e refugos, pareceram-lhes iguais à medida que abriam caminho pelas docas. Bruenor fitava cada nicho sombreado
com uma desconfiança vigilante. À noite, sua visão não era tão aguçada quanto a do drow e, se ele enxergasse no escuro tão bem quanto Drizzt, teria apertado ainda
com mais força o cabo do machado.
Mas o anão e o drow não estavam excessivamente preocupados. Estavam muito longe de ser os típicos bêbados que costumavam cambalear por aquelas bandas à noite
e não eram presas fáceis para ladrões. Os inúmeros chanfros no machado de Bruenor e o balanço das duas cimitarras no cinto do drow serviriam para inibir totalmente
a maioria dos rufiões.
No labirinto de ruas e vielas, levaram um bom tempo para encontrar o Beco do Rato. Bem perto dos molhes, corria paralelamente ao mar, aparentemente intransitável
através da densa neblina. Armazéns baixos e compridos se alinhavam de ambos os lados, e caixas e engradados quebrados atravancavam o beco, reduzindo, em muitos lugares,
a passagem já estreita à largura de uma fila indiana.
- Lugarzinho agradável para um passeio numa noite sombria - declarou Bruenor categoricamente.
- Tem certeza de que esta é a tal viela? - perguntou Drizzt, igualmente pouco entusiasmado em relação à área diante dele.
- Pelo que disse o mercador em Dez-Burgos, o único homem vivo capaz de me conseguir o mapa é Sussurro. E o lugar prá encontrar Sussurro é o Beco do
Rato. Sempre no Beco do Rato.
- Então, vamos logo com isso - disse Drizzt. - Negócio excuso é melhor terminar rápido.
Bruenor entrou lentamente no beco, à frente de Drizzt. Os dois mal tinham caminhado uns três metros quando o anão pensou ouvir o estalido de uma besta. Ele
se deteve e olhou para Drizzt.
- 'Tão espreitando a gente - sussurrou.
- Na janela entabuada acima e à direita - explicou Drizzt, pois sua excepcional visão noturna e a admirável audição já haviam discernido a origem
do som. - Uma precaução, espero. Talvez um bom sinal de que seu contato está por perto.
- Nunca chamei uma besta apontada prá minha cabeça de bom sinal! - argumentou o anão. - Mas em frente, então, e esteja preparado. Esse lugar fede a
perigo! - Voltou a abrir caminho por entre os escombros.
Um movimento à esquerda revelou que também daquele lado havia olhos sobre eles. Mas, ainda assim, eles continuaram, compreendendo que não podiam ter esperado
nada diferente quando deixaram o Alfanje. Contornando uma última pilha de tábuas quebradas, viram um vulto esguio recostado a uma das paredes do beco, bem envolto
no manto e protegido contra o frio da névoa noturna.
Drizzt inclinou-se até a altura do ombro de Bruenor.
- Seria aquele ali? - ele murmurou.
O anão deu de ombros e disse:
- E quem mais poderia ser? - Ele deu mais um passo à frente, fincou os pés no chão, com firmeza e bem separados, e dirigiu-se ao vulto. - 'Tô procurando
um homem chamado Sussurro - disse ele. - E você, por acaso?
- Sim e não - foi a resposta. O vulto se virou na direção deles, embora o manto fechado pouco revelasse.
- Que joguinho é esse? - rebateu Bruenor.
- Sou Sussurro - respondeu o vulto, deixando o manto escorregar um pouco para trás. - Mas não um homem, com certeza!
Agora eles podiam ver claramente que o personagem que a eles se dirigia era de fato uma mulher, uma figura sombria e misteriosa com longos cabelos negros,
olhos dardejantes e obstinados que demonstravam experiência e um profundo entendimento da sobrevivência nas ruas.

3. VIDA NOTURNA

A noite ia passando e o Alfanje ficava cada vez mais movimentado. Marinheiros mercantes ali se aglomeravam, vindos dos navios, e os habitantes locais rapidamente
se dispunham a explorá-los. Régis e Wulfgar ficaram na mesa de canto, o bárbaro de olhos arregalados pela curiosidade diante do que via ao seu redor e o halfling
absorto em cautelosa observação.
Régis reconheceu a encrenca caminhando na direção deles na forma de uma mulher. Não era moça e tinha aquela aparência abatida tão familiar na zona do porto,
mas seu vestido, bastante revelador em todos os lugares que o vestido de uma dama não deveria ser, escondia todos os seus defeitos físicos por trás de uma saraivada
de insinuações. A expressão no rosto de Wulfgar - o queixo quase ao mesmo nível da mesa, pensou Régis - confirmou os temores do halfling.
- Bons olhos o vejam, grandalhão - disse a mulher com suavidade, introduzindo-se confortavelmente na cadeira ao lado do bárbaro.
Wulfgar olhou para Régis e quase gargalhou de incredulidade e constrangimento.
- Você não é de Luskan - continuou a mulher. - Nem tem a aparência dos mercadores agora atracados no porto. De onde você é?
- Do norte - gaguejou Wulfgar. - Do vale... Vento Gélido.
Régis não via tamanha ousadia numa mulher desde seus anos em Calimporto e sentiu que devia intervir. Havia algo de depravado naquele tipo de mulher, uma demasiadamente
extraordinária perversão do prazer. O fruto proibido tornado fácil. Régis, de repente, flagrou-se com saudades de Calimporto. Wulfgar não seria páreo para os artifícios
daquela criatura.
- Somos viajantes pobres - explicou Régis, enfatizando o "pobres" num esforço para proteger seu amigo. - Sem dinheiro, mas com muitos quilômetros a
percorrer.
Wulfgar olhou, curioso, para seu companheiro, sem entender muito bem a razão da mentira.
A mulher examinou Wulfgar mais uma vez e estalou os lábios.
- Pena - ela murmurou, e então perguntou a Régis - Nenhum dinheiro?
Régis deu de ombros, impotente.
- É uma pena mesmo - repetiu a mulher e levantou-se para deixar a mesa.
O rosto de Wulfgar corou com um vermelho intenso assim que ele começou a compreender os verdadeiros motivos daquele encontro.
Algo também se agitou dentro de Régis. Um anseio pelos dias de outrora, quando ele percorria a zona de má reputação de Calimporto, incitou seu coração de
tal modo que não conseguiu resistir. Agarrou o cotovelo da mulher assim que ela passou por ele.
- Nenhum dinheiro - explicou-lhe, diante de sua expressão indagativa -, a não ser isto. - Ele sacou o pingente de rubi de sob o casaco e o fez balançar
na ponta da corrente. As cintilações imediatamente atraíram o olhar cúpido da mulher, e a jóia mágica a absorveu em seu transe hipnótico. Ela voltou a se sentar,
dessa vez na cadeira mais próxima a Régis, sem que os olhos jamais abandonassem o maravilhoso rubi rodopiante.
Somente a confusão impediu Wulfgar de irromper num acesso de ultraje diante daquela deslealdade, e a indistinção de pensamentos e emoções em sua mente revelou-se
como um mero olhar de perplexidade.
Régis percebeu a expressão do bárbaro, mas o ignorou com um encolher de ombros e sua típica propensão para descartar emoções negativas, como a culpa. Que
a aurora do dia de amanhã expusesse sua manobra; a conclusão não diminuiria sua competência em desfrutar daquela noite.
- A noite de Luskan traz um vento frio - ele disse à mulher. Ela pousou uma das mãos sobre o braço dele.
- Acharemos para você uma cama quentinha, não tenha medo. O sorriso do halfling quase lhe alcançou as orelhas.
Wulfgar por pouco não caiu da cadeira.


Bruenor readquiriu rapidamente a compostura, não querendo insultar Sussurro nem deixá-la saber que sua surpresa ao encontrar uma mulher dava a ela uma pequena
vantagem. No entanto, ela sabia a verdade e seu sorriso deixou Bruenor ainda mais aturdido.
Vender informações num cenário tão perigoso quanto a zona do porto de Luskan significava uma constante negociação com assassinos e ladrões e, mesmo dentro
da estrutura de uma intricada rede de apoio, era uma função que exigia coragem. Poucos dentre os que procuravam os serviços de Sussurro conseguiam esconder a óbvia
surpresa ao encontrar uma mulher jovem e atraente exercendo tal profissão.
O respeito de Bruenor pela informante, porém, em nada diminuiu, apesar de sua surpresa, pois a reputação de Sussurro chegara até ele através de centenas
de quilômetros. Ela ainda estava viva e somente esse fato já revelava ao anão que se tratava de uma mulher formidável.
Drizzt estava consideravelmente menos perplexo com a descoberta. Nas cidades escuras dos elfos drow, as mulheres normalmente ocupavam posições mais elevadas
que os homens e eram geralmente mais mortíferas. Drizzt compreendia a vantagem que Sussurro tinha sobre os clientes masculinos que tendiam a subestimá-la nas sociedades
dominadas pelos homens das perigosas terras do norte.
Ansioso por terminar os negócios e voltar à estrada, o anão foi direto ao propósito do encontro.
- 'Tô precisando de um mapa - disse ele - e me disseram que eu podia conseguir ele com você.
- Possuo muitos mapas - a mulher respondeu serenamente.
- Um mapa do norte - explicou Bruenor. - Do mar ao deserto e nomeando corretamente os lugares segundo os costumes das raças que vivem por lá!
Sussurro assentiu.
- O preço será alto, meu bom anão - disse ela, os olhos cintilando à mera menção do ouro.
Bruenor atirou-lhe uma pequena bolsa de pedras preciosas.
- Isso deve dar - resmungou ele, sempre desgostoso em gastar dinheiro.
Sussurro esvaziou o conteúdo da bolsa em sua mão e examinou as pedras mal lapidadas. Ao voltar a guardá-las, meneava a cabeça, ciente do considerável valor
das jóias.
- Espera! - protestou Bruenor quando ela começou a prender a bolsa ao cinto. - 'Cê não vai levar as minhas pedras até eu ver o mapa!
- É claro - respondeu a mulher com um sorriso apaziguador. - Espere aqui. Devo retornar em breve com o mapa que deseja. - Ela atirou a bolsa de volta
a Bruenor e girou repentinamente, erguendo o manto com um ruído seco e levantando uma lufada de névoa com o movimento. Um clarão acompanhou a bruma e a mulher desapareceu.
Bruenor saltou para trás e agarrou o punho do machado.
- Que truque de feitiçaria é esse? - gritou.
Drizzt, nada impressionado, levou a mão ao ombro do anão.
- Calma, poderoso anão - disse ele. - Foi apenas um truque insignificante para disfarçar-lhe a fuga em meio à neblina e à luz. - Ele apontou uma pequena
pilha de tábuas. - Ali, naquele escoadouro.
Bruenor acompanhou a linha do braço do drow e relaxou. Mal se podia enxergar a boca de um buraco destampado, a grade encostada à parede do armazém a uma
pequena distância de onde eles se encontravam.
- 'Cê conhece esse tipo de coisa melhor do que eu, elfo - declarou o anão, atarantado com sua falta de experiência em lidar com os ladinos das ruas
de uma cidade. - Ela 'tá querendo negociar limpo ou estamos sentados aqui que nem patinhos esperando os canalhas dos comparsas dela nos roubar?
- Não, e não - respondeu Drizzt. - Sussurro não estaria viva se entregasse os clientes aos ladrões. Mas eu dificilmente esperaria que um acordo com
ela, qualquer que seja, venha a ser um negócio limpo.
Bruenor percebeu que, enquanto falavam, Drizzt retirara sorrateiramente uma de suas cimitarras da bainha.
- Sem armadilhas, hein? - perguntou o anão novamente, indicando a arma preparada.
- Da parte dela, não - replicou Drizzt. - Mas as sombras ocultam muitos outros olhos.

Muitos olhos além dos de Wulfgar recaíam sobre o halfling e a mulher.
Os ousados ladinos da zona do porto de Luskan costumavam se divertir bastante atormentando criaturas de menor estatura física, e os halflings estavam entre
seus alvos favoritos. Naquela noite, em particular, um homem imenso e obeso, com sobrancelhas peludas e cerdas de barba que retinham a espuma da caneca sempre cheia,
dominava a conversa no bar, gabando-se de proezas de força impossíveis e ameaçando todos ao redor dele com uma surra se o fluxo de cerveja diminuísse o mínimo que
fosse.
Todos os homens reunidos em volta dele no bar - homens que o conheciam, ou dele tinham ouvido falar - balançavam as cabeças em entusiástico assentimento a
cada uma de suas palavras, colocando-o sobre um pedestal de elogios para dispersar o medo que eles próprios nutriam por ele. Mas o ego do homem gordo precisava de
mais diversão, uma nova vítima para intimidar, e, percorrendo o perímetro da taverna, seu olhar recaiu naturalmente sobre Régis e o grande - porém evidentemente
jovem - amigo do halfling. O espetáculo de um halfling cortejando a mulher mais cara do Alfanje apresentava uma oportunidade por demais tentadora para o gordo simplesmente
ignorar.
- Olha aqui, moça bonita - babou ele, cuspindo cerveja a cada palavra.
- 'Cê acha que um meio-homem como esse aí vai te dar aquela noitada? - A turba ao redor do bar, ansiosa por se manter na alta conta do gordo, explodiu
numa gargalhada excessivamente ardorosa.
A mulher tratara com aquele homem antes e vira outros caírem dolorosamente diante dele. Ela atirou-lhe um olhar preocupado, mas continuou firmemente presa
à atração do pingente de rubi. Régis, porém, imediatamente desviou os olhos do homem gordo, voltando sua atenção para onde ele desconfiava que a encrenca mais
provavelmente começaria: o outro lado da mesa e Wulfgar.
Descobriu que sua preocupação era justificada. Os nós dos dedos do orgulhoso bárbaro estavam brancos de tanto apertar as bordas da mesa e o olhar inflamado
revelou a Régis que seu amigo estava a ponto de explodir.
- Ignore as provocações - insistiu Régis. - Não vale um segundo do seu tempo!
Wulfgar não relaxou nem um pouco, jamais desprendendo o olhar de seu adversário. Ele poderia ignorar os insultos do gordo, mesmo os que ofendiam Régis e a
mulher. Mas Wulfgar entendia a motivação por trás daqueles insultos. Aproveitando-se dos amigos menos capazes do bárbaro, o valentão desafiava Wulfgar. Ele se perguntou
quantos outros haviam sido vitimados por aquele palerma avantajado. Talvez fosse a hora do gordo aprender um pouco de humildade.
Reconhecendo ali uma possibilidade de confusão, o grotesco fanfarrão se aproximou alguns passos.
- Isso, chega prá lá um pouquinho, meio-homem - exigiu ele, acenando para que Régis se afastasse.
Régis fez um rápido inventário dos fregueses da taverna. Certamente havia muitos ali que poderiam se juntar à sua causa contra o gordo e os camaradas antipáticos
dele. Havia até mesmo um membro da guarda oficial da cidade, um grupo tido em alta conta em todos os setores de Luskan.
Régis interrompeu seu exame atento por um instante e olhou para o soldado. Quão deslocado o homem parecia numa escarradeira infestada de canalhas como o Alfanje.
Mais curioso ainda, Régis reconheceu o homem como Jierdan, o soldado no portão que reconhecera Drizzt e havia arranjado para que eles entrassem na cidade algumas
horas antes.
O gordo deu mais um passo em direção à mesa e Régis não teve tempo para considerar as implicações.
Com as mãos nos quadris, a imensa bolha humana fitou-o de cima para baixo. Régis sentiu o coração batendo, o sangue correndo em suas veias, como sempre acontecia
naquele tipo de confronto nervoso que caracterizara seus dias em Calimporto. E agora, como então, ele tinha toda a intenção de encontrar uma maneira de escapar.
Mas sua confiança desapareceu ao lembrar-se do companheiro. Menos experiente - e Régis rapidamente acrescentaria "menos esperto!" -, Wulfgar não deixaria
o desafio passar sem resposta. Um salto de suas pernas compridas o transportou sem dificuldade por cima da mesa e o colocou diretamente entre o gordo e Régis. Ele
retribuiu o olhar ameaçador do gordo com igual intensidade.
O gordo relanceou o olhar para seus amigos no bar, totalmente ciente de que o distorcido senso de honra de seu jovem e orgulhoso oponente impediria o primeiro
golpe.
- Ora, ora, vejam só isso - ele riu, os lábios retraídos em salivante expectativa -, parece que o moleque tem algo a dizer.
Ele começou lentamente a dar as costas a Wulfgar, depois se lançou de repente para a garganta do bárbaro, esperando que a mudança de velocidade pegasse Wulfgar
de surpresa.
Mas, apesar de inexperiente em relação aos costumes das tavernas, Wulfgar compreendia a batalha. Fora treinado por Drizzt Do'Urden, um guerreiro sempre alerta,
e trazia os músculos em sua melhor forma para o combate. Antes que as mãos do gordo sequer chegassem perto de sua garganta, Wulfgar havia agarrado o rosto do oponente
com uma de suas mãos descomunais e enfiado a outra na virilha do gordo.
O oponente atordoado viu-se erguido em pleno ar.
Por alguns segundos, os espectadores ficaram demasiado atônitos para reagir, exceto Régis, que espalmou a mão contra o próprio rosto incrédulo e deslizou
discretamente para baixo da mesa.
O gordo era mais pesado que três homens medianos, mas o bárbaro o ergueu facilmente sobre a cabeça, dois metros e meio acima do chão, e até mais alto, à máxima
extensão de seus braços.
Berrando de fúria impotente, o gordo ordenou que seus partidários atacassem. Wulfgar esperou pacientemente pelo primeiro gesto contra ele.
A turba inteira pareceu saltar de uma só vez. Mantendo a calma, o guerreiro treinado procurou pela mais densa concentração de oponentes - três homens - e
arremessou o projétil humano, observando-lhes as expressões horrorizadas pouco antes daquela montanha de banha atropelá-los e atirá-los para trás. Então, o impulso
combinado dos quatro arrancou uma seção inteira do bar de seus suportes, derrubando o desafortunado estalajadeiro e atirando-o contra as prateleiras que sustentavam
seus melhores vinhos.
A diversão de Wulfgar durou pouco, pois outros rufiões caíram rapidamente sobre ele. Plantou os calcanhares no chão, determinado a se manter de pé, e atacou
violentamente com seus imensos punhos, atirando para os lados cada um de seus inimigos e estatelando-os nos cantos mais distantes da sala.
A luta irrompeu em toda a taverna. Homens incapazes de erguer um dedo se um assassinato fosse cometido aos seus pés saltaram uns sobre os outros com fúria
desenfreada diante da visão aterrorizante de bebida derramada e de um bar quebrado.
Entretanto, foram poucos os partidários do gordo detidos pela desordem generalizada. Caíam em grandes números sobre Wulfgar, uma leva depois da outra. Ele
até que estava se saindo bem, pois ninguém conseguiu retardá-lo o bastante para que os reforços chegassem. Ainda assim, o bárbaro era atingido com a mesma freqüência
com que acertava os próprios golpes. Recebeu estoicamente os socos, bloqueando a dor com seu orgulho e sua tenacidade combativa, que simplesmente não lhe permitiriam
perder.
Desde seu novo lugar sob a mesa, Régis assistia ao combate e bebericava o hidromel. Até mesmo as criadas haviam se metido na briga, circulando pela taverna
montadas nas costas de algum combatente infeliz, usando as unhas para gravar desenhos intricados nos rostos dos homens. De fato, Régis logo discerniu que a única
outra pessoa na taverna não envolvida na luta, além dos que já estavam inconscientes, era Jierdan. O soldado continuava sentado em sua cadeira, em silêncio, indiferente
à briga e interessado apenas, aparentemente, em observar e avaliar a perícia de Wulfgar.
Aquilo também perturbou o halfling, mas ele descobriu, mais uma vez, que não tinha tempo para contemplar as ações incomuns do soldado. Régis soubera desde
o começo que precisaria tirar seu gigantesco amigo daquela confusão e agora seus olhos vigilantes haviam percebido o previsível cintilar do aço. Um ladino logo atrás
dos últimos oponentes de Wulfgar havia sacado um punhal.
- Maldição! - resmungou Régis, pousando sua bebida no chão e sacando a maça de uma prega em seu manto. Aquele tipo de coisa sempre deixava um gosto ruim em
sua boca.
Wulfgar jogou os dois oponentes para um lado, abrindo uma trilha para o homem com a faca. Ele arremeteu, os olhos erguidos a fitar os do bárbaro alto. Sequer
notou Régis disparar por entre as pernas compridas de Wulfgar, a pequena maça erguida para atacar. A arma atingiu o joelho do homem, estilhaçando-lhe a patela e
fazendo com que caísse de braços abertos - agora exposto o punhal - na direção de Wulfgar.
Wulfgar desviou-se da investida dando um passo para o lado no último segundo e fechou sua mão sobre a do atacante. Rolando com o impulso, o bárbaro derrubou
a mesa e bateu contra a parede. Um apertão esmagou os dedos do atacante contra o cabo da faca ao mesmo tempo que Wulfgar engolfava o rosto do homem com sua mão livre
e o erguia do chão. Clamando por Tempus, o deus das batalhas, o bárbaro, enfurecido com o aparecimento de uma arma, atravessou as tábuas de madeira da parede com
a cabeça do homem e o deixou ali, pendurado, os pés a trinta centímetros do chão.
Uma manobra impressionante, mas custou a Wulfgar tempo precioso. Quando de novo voltou-se para o bar, foi enterrado sob uma rajada de murros e chutes de vários
atacantes.

- Aí vem ela - Bruenor murmurou para Drizzt quando viu Sussurro voltando, embora os sentidos aguçados do drow tivessem lhe revelado a aproximação da mulher
muito antes que o anão o percebesse. Sussurro havia partido coisa de meia hora atrás, mas parecera muito mais tempo para os dois amigos no beco, perigosamente expostos
às miras dos besteiros e outros capangas que eles sabiam estar por perto.
Sussurro caminhou com confiança até eles.
- Aqui está o mapa que deseja - ela disse a Bruenor, erguendo um pergaminho enrolado.
- Deixa eu dar uma olhada, então - o anão exigiu, dando um passo a frente.
A mulher retraiu-se e abaixou o pergaminho.
- O preço agora é maior - declarou categoricamente. - Dez vezes o que você já ofereceu.
O olhar perigoso de Bruenor não a desencorajou.
- Não lhe resta alternativa - ela sibilou. - Não encontrará mais ninguém que possa lhe arranjar isto. Pague o preço e acabe logo com isso!
- Um momento - disse Bruenor, com repentina calma. - Meu amigo tem que opinar sobre isso. - Ele e Drizzt se afastaram um passo.
- Ela descobriu quem somos - explicou o drow, apesar de Bruenor já ter chegado à mesma conclusão. - E quanto podemos pagar.
- É o mapa? - perguntou Bruenor.
Drizzt assentiu.
- Ela não teria razão para acreditar que está em perigo, não aqui. Você tem o dinheiro?
- Sim - disse o anão -, mas nossa estrada ainda é longa e acho que vamos precisar de mais do que eu tenho.
- Está decidido, então - Drizzt respondeu. Bruenor reconheceu o brilho incandescente que se acendeu nos olhos cor de lavanda do drow. - Quando encontramos
esta mulher, fechamos um acordo justo - continuou ele. - Um acordo que devemos honrar.
Bruenor entendeu e aprovou. Sentiu começar o formigamento da expectativa em seu sangue. Voltou-se para a mulher e notou imediatamente que ela agora segurava
um punhal em lugar do pergaminho. Aparentemente, ela compreendia a natureza dos dois aventureiros com quem negociava.
Drizzt, percebendo também o brilho do metal, afastou-se de Bruenor, tentando parecer inofensivo para Sussurro, embora, na realidade, desejasse se colocar
num ângulo mais favorável em relação a algumas fendas suspeitas que ele notara na parede - fendas que poderiam ser as aparas de uma porta secreta.
Bruenor aproximou-se da mulher, as mãos desarmadas e os braços estendidos.
- Se esse é o preço - ele resmungou -, então não temos escolha a não ser pagar. Mas vou ver o mapa primeiro!
Confiante de que poderia enfiar o punhal no olho do anão antes que uma das mãos dele conseguisse alcançar o cinto em busca de uma arma, Sussurro relaxou e
moveu a mão livre para o pergaminho sob seu manto.
Mas ela subestimou seu oponente.
As pernas atarracadas de Bruenor se contraíram, arremessando-o alto o bastante para golpear o rosto da mulher com o elmo, arrancar-lhe sangue do nariz e bater-lhe
a cabeça na parede. Ele pegou o mapa, largando a bolsa original sobre a forma flácida de Sussurro e murmurando:
- Conforme combinado.
Drizzt também agiu rápido. Nem bem o anão se encolheu, o drow invocou a magia inerente à sua raça para conjurar um globo de escuridão em frente à janela que
abrigava os besteiros. Nenhum virote apontou, mas os gritos raivosos dos dois arqueiros ecoaram por todo o beco.
Então, as fendas na parede se abriram, como Drizzt havia antecipado, e a segunda linha de defesa de Sussurro investiu. O drow estava preparado, as cimitarras
já em suas mãos. As espadas cintilaram, apenas os lados embotados, mas com precisão suficiente para desarmar o ladino corpulento que dali saiu. Então, elas se apresentaram
novamente, atingindo o rosto do homem e, no mesmo movimento fluido, Drizzt reverteu o ângulo, dando com um botão, e depois o outro, nas têmporas do homem. Quando
Bruenor se virou com o mapa, o caminho estava livre diante dele.
Bruenor examinou a obra do drow com verdadeira admiração.
Então, um quadrelo de besta bateu na parede a menos de três centímetros de sua cabeça.
- Hora de ir - observou Drizzt.
- A ponta vai estar bloqueada, ou então sou um gnomo de barba - disse Bruenor quando eles se aproximaram da saída do beco. Um rugido no prédio ao lado
deles, seguido de gritos aterrorizados, trouxe-lhes algum consolo.
- Guenhwyvar - declarou Drizzt quando dois homens envoltos em mantos irromperam na rua diante deles e fugiram sem olhar para trás.
- Por certo que eu tinha me esquecido completamente do gato! - gritou Bruenor.
- Que bom que a memória de Guenhwyvar é melhor que a sua - riu Drizzt, e Bruenor, apesar de seus sentimentos pelo gato, gargalhou com ele. Detiveram-se ao
final do beco e inspecionaram a rua. Não havia sinal de problemas, mas a densa neblina proporcionava boa cobertura para uma possível emboscada.
- Vá devagar - sugeriu Bruenor. - Vamos chamar menos atenção.
Drizzt teria concordado mas, então, um segundo quadrelo, disparado de algum lugar lá atrás no beco, bateu numa viga de madeira entre eles.
- Hora de ir! - Drizzt declarou com veemência, apesar de Bruenor não precisar de mais encorajamento, pois suas pequenas pernas já estavam envolvidas num movimento
furioso enquanto disparava neblina adentro.
Abriram caminho por entre as voltas e curvas do labirinto de ratos que era Luskan, Drizzt passando graciosamente por sobre as barreiras de escombros e Bruenor
simplesmente atravessando-as à força. Dali a pouco, confiantes de que não eram seguidos, adotaram um passo mais tranqüilo.
O branco de um sorriso apontava por entre a barba ruiva do anão, que continuava a olhar por sobre o ombro com um ar satisfeito e malicioso no rosto. Mas,
quando ele se virou para ver a rua diante dele, mergulhou de repente para um lado, bracejando para encontrar seu machado.
Dera de cara com o gato mágico.
Drizzt não foi capaz de conter o riso.
- Tira essa coisa daqui! - exigiu Bruenor.
- Olhe os modos, meu bom anão - rebateu o drow. - Lembre-se de que Guenhwyvar abriu nossa rota de fuga.
-Tira ela daqui! - declarou Bruenor novamente, brandindo o machado, pronto para atacar.
Drizzt afagou o pescoço musculoso do poderoso felino.
- Não dê atenção às palavras dele, minha amiga - disse ele ao gato. - É um anão e não consegue apreciar a magia mais refinada!
- Ora! - rosnou Bruenor, apesar de respirar com um pouco mais de facilidade assim que Drizzt dispensou o gato e recolocou a estátua de ônix em sua
bolsa.
Os dois deram com a Rua da Meia-lua pouco depois, detendo-se num último beco para procurar sinais de emboscada. Souberam imediatamente que havia acontecido
alguma coisa, pois vários homens feridos passavam cambaleando ou carregados pela entrada do beco.

Então, viram o Alfanje e duas formas familiares sentadas na rua bem defronte.
- Que é que 'cês 'tão fazendo aí? - perguntou Bruenor quando se aproximaram.
- Parece que nosso amigo grandalhão responde aos insultos com socos - disse Régis, que saíra ileso da refrega.
O rosto de Wulfgar, porém, estava intumescido e machucado, e ele mal conseguia abrir um dos olhos. Sangue seco - um pouco do qual era seu mesmo - empastava-lhe
os punhos e as roupas.
Drizzt e Bruenor olharam um para o outro, não muito surpresos.
- E nossos quartos? - resmungou Bruenor.
Régis chacoalhou a cabeça.
- Duvido muito.
- E meu dinheiro?
De novo o halfling chacoalhou a cabeça.
- Ora! - bufou Bruenor, e ele partiu, pisando duro, em direção à porta do Alfanje.
- Eu não faria... - começou Régis, mas, então, deu de ombros e decidiu deixar Bruenor descobrir por si mesmo.
O choque de Bruenor foi total quando abriu a porta da taverna. Mesas, vidros e fregueses inconscientes jaziam em pedaços por todo o chão. O estalajadeiro
estava caído sobre uma parte do bar despedaçado, uma criada a envolver-lhe a cabeça ensangüentada em ataduras. O homem que Wulfgar implantara na parede ainda pendia
molemente pela nuca, gemendo baixinho, e Bruenor não conseguiu evitar uma risadinha diante da obra do poderoso bárbaro. De vez em quando, uma das criadas, ao passar
pelo homem enquanto limpava o recinto, dava-lhe um empurrãozinho, divertindo-se com seu balançar.
- Desperdício de bom dinheiro - inferiu Bruenor, e voltou a sair pela porta antes que o estalajadeiro o notasse e lançasse as criadas sobre ele.
- Mas que tremenda bagunça! - disse ele a Drizzt quando voltou para junto de seus companheiros. - Todo o mundo entrou na briga?
- Todos menos um - respondeu Régis. - Um soldado.
- Um soldado de Luskan, aqui? - perguntou Drizzt, surpreso pela óbvia inconsistência.
Régis assentiu.
- É ainda mais curioso - continuou ele -, era o mesmo guarda, Jierdan, que nos deixou entrar na cidade.
Drizzt e Bruenor trocaram olhares preocupados.
- Tem assassinos atrás da gente, uma estalagem arrebentada na nossa frente e um soldado dando mais atenção prá gente do que deveria - disse Bruenor.
- Hora de ir - respondeu Drizzt pela terceira vez. Wulfgar olhou para o drow, incrédulo. - Quantos homens você derrubou esta noite? - Drizzt perguntou-lhe,
colocando a suposição lógica de perigo bem diante dele. - E quantos deles não ansiariam pela oportunidade de enfiar um punhal nas suas costas?
- Além disso - acrescentou Régis, antes que Wulfgar pudesse responder -, não tenho o menor desejo de dividir a cama num beco com um bando de ratos!
- Então, para o portão - disse Bruenor Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Não com um guarda tão interessado em nós. Por cima da muralha, e que ninguém note nossa passagem.
Uma hora depois, caminhavam tranqüilamente pela vasta campina, sentindo o vento novamente, passada a barreira da muralha de Luskan. Régis resumiu seus pensamentos,
dizendo:
- Nossa primeira noite em nossa primeira cidade e enganamos assassinos, derrotamos um bando de rufiões e atraímos a atenção da guarda da cidade. Um
começo auspicioso para nossa jornada!
- É, mas temos isto! - gritou Bruenor, positivamente rebentando de expectativa para encontrar sua terra natal agora que o primeiro obstáculo, o mapa,
fora superado.
Pouco sabiam ele ou seus amigos, entretanto, que o mapa que ele apertava nas mãos com tanto amor detalhava várias regiões mortíferas, e que uma delas testaria
os quatro amigos até o limite... E além.

4. A CONJURAÇÃO

Um marco de prodigiosa arquitetura era a grande atração do centro da Cidade das Velas, um estranho edifício que emanava uma poderosa aura mágica. Diferente
de qualquer outra estrutura em todos os Reinos Esquecidos, a Torre das Hostes Arcanas parecia literalmente uma árvore de pedra, ostentando cinco torreões altos,
sendo o central o maior deles, e os outros quatro, igualmente altos, a crescer a partir do tronco principal com a graciosa curvatura de um carvalho. Não se via sinal
de alvenaria; era evidente a qualquer observador instruído que a magia - e não o trabalho físico - produzira aquela obra-de-arte.
Um Arquimago, Mestre inconteste da Torre das Hostes, residia na torre central, enquanto as outras quatro abrigavam os magos no topo da linha de sucessão.
Cada uma dessas torres menores, representando os quatro pontos cardeais, dominava uma face diferente do tronco e seu respectivo mago era responsável por zelar pela
direção que supervisionava e influenciar os acontecimentos daquele lado. Portanto, o mago a oeste do tronco passava seus dias olhando para o mar e para os navios
de mercadores e piratas que resistiam aos temporais no porto de Luskan.
Uma conversa no torreão norte teria interessado aos companheiros de Dez-Burgos naquele dia.
- Fez muito bem, Jierdan - disse Sidnéia, uma feiticeira mais jovem e de menor importância na Torre das Hostes, apesar de demonstrar potencial suficiente
para conquistar um noviciado com um dos mais poderosos magos da guilda. Sem ser bonita, Sidnéia pouco se importava com as aparências físicas, dedicando sua energia
à busca inexorável pelo poder. Ela passara a maior parte dos seus vinte e cinco anos trabalhando em prol de um objetivo - o título de Maga - e sua determinação e
atitude deixavam poucas dúvidas quanto à sua capacidade de consegui-lo.
Jierdan aceitou o elogio com um aceno sagaz da cabeça, entendendo perfeitamente a forma condescendente com que este fora oferecido.
- Agi apenas como fui instruído - ele respondeu, sob uma fachada de humildade, lançando um olhar para o homem de aparência frágil, vestindo túnicas
de um castanho variegado, que fitava o mundo lá fora pela única janela da sala.
- Por que eles viriam aqui? - murmurou o mago consigo mesmo. Ele se voltou para os demais, e eles se encolheram instintivamente diante daquele olhar.
Era Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte, e, apesar de parecer fraco à distância, um exame mais de perto revelava no homem um poder mais pujante que o
de meros músculos protuberantes. E sua merecida reputação de valorizar a busca pelo conhecimento muito mais que a vida intimidava muitos que se colocavam diante
dele.
- Os viajantes apresentaram algum motivo para vir aqui?
- Nenhum no qual eu acreditasse - replicou Jierdan tranqüilamente. - O halfling falou de inspecionar a praça do mercado, mas eu...
- Improvável - interrompeu Dendibar, falando mais consigo mesmo do que para os demais. - Esses quatro têm mais em mente do que uma mera expedição mercantil.
Sidnéia pressionou Jierdan, procurando se manter nas boas graças do Mestre do Torreão Norte.
- Onde estão eles agora? - indagou.
Jierdan não se atreveu a confrontá-la na frente de Dendibar.
- Nas docas... em algum lugar - disse, depois deu de ombros.
- Você não sabe? - sibilou a jovem feiticeira.
- Planejavam se hospedar no Alfanje - retorquiu Jierdan. - Mas a briga os deixou na rua.
- E você devia tê-los seguido! - ralhou Sidnéia, acossando implacavelmente o soldado.
- Seria tolice até mesmo para um soldado da cidade percorrer sozinho os molhes à noite - rebateu Jierdan. - Não importa onde estejam neste momento.
Tenho os portões e o cais sob vigilância. Não podem sair de Luskan sem que eu saiba!
- Quero que os encontre! - ordenou Sidnéia, mas então Dendibar a silenciou.
- Deixe a vigilância como está - ele disse a Jierdan. - Eles não devem partir sem que eu saiba. Está dispensado. Apresente-se novamente quando tiver
algo a relatar.
Jierdan assumiu a posição de sentido e virou-se para partir, lançando, ao passar, um último olhar feroz para sua rival pelas graças do mago variegado. Era
apenas um soldado, não um aprendiz promissor como Sidnéia, mas, em Luskan onde a Torre das Hostes Arcanas era a verdadeira força oculta por trás de todas as estruturas
de poder da cidade, um soldado fazia bem em procurar o favor de um mago. Os capitães da guarda somente conseguiam suas posições e seus privilégios com o consentimento
prévio da Torre das Hostes.
Não podemos permitir que eles perambulem por aí livremente - argumentou Sidnéia quando a porta se fechou atrás do soldado que saía.
Não devem causar problemas por enquanto - replicou Dendibar. - Mesmo se o drow carregar com ele o artefato, levará anos para que compreenda seu potencial.
Paciência, minha amiga, tenho maneiras de descobrir o que precisamos saber. As peças deste quebra-cabeça vão se encaixar direitinho muito em breve.
- Aflige-me pensar que tamanho poder esteja tão ao nosso alcance - suspirou a jovem e impaciente feiticeira. - E nas mãos de um principiante!
- Paciência - repetiu o Mestre do Torreão Norte.
Sidnéia terminou de acender o circuito de velas que demarcava o perímetro do aposento especial e dirigiu-se lentamente para o braseiro solitário que se achava
em seu tripé de ferro, imediatamente fora do círculo mágico inscrito no piso. Desapontava-a saber que, assim que o braseiro também estivesse ardendo, ela seria instruída
a sair. Saboreando cada momento naquela sala raramente franqueada, considerada por muitos a melhor câmara de conjuração em todas as terras do norte, Sidnéia havia
muitas vezes implorado para continuar de serviço.
Mas Dendibar nunca a deixava ficar, explicando que suas inevitáveis perguntas acabariam se revelando uma grande distração. E, quando se lidava com os mundos
inferiores, as distrações geralmente se mostravam fatais.
Dendibar sentou-se de pernas cruzadas no interior do círculo mágico, entoando mantras até entrar num profundo transe meditativo, sem nem mesmo perceber as
ações de Sidnéia, que completava os preparativos. Todos os seus sentidos se voltavam para o interior, vasculhando o próprio ser para garantir que estivesse totalmente
preparado para aquela tarefa. Ele deixara apenas uma janela em sua mente aberta para o exterior, uma fração de sua consciência à espera de uma única deixa: o estalido
do ferrolho da pesada porta sendo recolocado em seu lugar com a saída de Sidnéia.
Suas pálpebras pesadas se abriram de repente, o campo estreito da visão fixado unicamente nas chamas do braseiro. Aquelas labaredas seriam a vida do espírito
invocado e dariam a ele uma forma tangível enquanto Dendibar o mantivesse preso no plano material.
- Ey vesus venerais dimin dou - começou a entoar o mago, a princípio lentamente, depois estabelecendo um ritmo estável.
Arrebatado pela insistente atração da invocação - como se a magia, assim que tivesse recebido um bruxuleio de vida, conduzisse a si própria à conclusão
do encantamento -, Dendibar passou com desenvoltura pelas várias modulações e sílabas arcanas, o suor em seu rosto a refletir ansiedade mais que nervosismo.
O mago variegado se deleitava com as invocações, pois dominava a vontade de seres muito além do mundo mortal por meio da mera persistência de seu considerável
poder mental. Aquela sala representava o ápice de seus estudos, a evidência irrefutável dos vastos limites de seus poderes.
Dessa vez, ele tinha como alvo seu informante favorito, um espírito que verdadeiramente o desprezava, mas não podia recusar seu chamado. Dendibar chegou ao
clímax da invocação, a nomeação.
- Morkai - chamou ele, baixinho.
A chama do braseiro se avivou durante um momento.
- Morkai! - gritou Dendibar, arrancando o espírito de sua prisão no outro mundo. O braseiro formou uma pequena bola. de fogo, depois se extinguiu nas
trevas, as chamas transmutadas na imagem de um homem de pé diante de Dendibar.
Arregaçaram-se os lábios finos do mago. Que ironia, pensou ele, que o homem cujo assassinato ele arranjara acabasse se mostrando sua mais valiosa fonte de
informações.
O espectro de Morkai, o Vermelho, apresentou-se resoluto e orgulhoso, uma imagem digna do poderoso mago que fora outrora. Ele mesmo havia criado aquela sala,
na época em que servira à Torre das Hostes no papel de Mestre do Torreão Norte. Mas, então, Dendibar e seus capangas haviam conspirado contra ele, usando seu aprendiz
de confiança para enfiar um punhal em seu coração e, assim, abrir uma trilha de sucessão para o próprio Dendibar alcançar a cobiçada posição no torreão.
Esse mesmo ato havia colocado uma segunda - e talvez mais significativa - cadeia de eventos em ação, pois foi o mesmo aprendiz, Akar Kessell, que acabou possuindo
a Estilha de Cristal, o poderoso artefato que Dendibar agora acreditava estar nas mãos de Drizzt Do'Urden. As histórias que haviam chegado de Dez-Burgos sobre a
batalha final de Akar Kessell nomeavam o elfo como o guerreiro que o abatera.
Não havia como Dendibar saber que a Estilha de Cristal agora jazia enterrada sob centenas de toneladas de gelo e rocha na montanha do Vale do Vento Gélido,
conhecida como Sepulcro de Kelvin, perdida na avalanche que matara Kessell. Tudo o que sabia da história era que Kessell, o aprendiz insignificante, havia quase
conquistado todo o Vale do Vento Gélido com a Estilha de Cristal e que Drizzt Do'Urden foi o último a ver Kessell com vida.
Dendibar retorcia as mãos ansiosamente sempre que pensava no poder que a relíquia traria a um mago mais instruído.
Saudações, Morkai, o Vermelho - riu Dendibar. - Quanta cortesia aceitar meu convite.
Aceito toda oportunidade de encará-lo, Dendibar, o Assassino - replicou o espectro. - Para que possa reconhecê-lo quando você navegar no barco da
Morte pelo reino tenebroso. Então estaremos em pé de igualdade novamente...
Silêncio! - ordenou Dendibar. Embora não admitisse a verdade, o mago variegado temia imensamente o dia em que teria de enfrentar o poderoso Morkai
mais uma vez. - Eu o trouxe aqui com um propósito - disse ele ao espectro. - Não tenho tempo para suas ameaças vãs.
- Então, diga-me que serviço devo executar - sibilou o espectro -, e deixe-me partir. Sua presença me ofende.
Dendibar se enfureceu, mas não deu prosseguimento à discussão. O tempo agia contra um mago envolvido numa magia de invocação, pois esta o exauria para manter
um espírito no plano material, e cada segundo que passava o enfraquecia um pouco mais. O maior risco naquele tipo de magia era o conjurador tentar manter o controle
durante muito tempo, até que se achasse fraco demais para controlar a entidade que havia invocado.
- Uma resposta simples é tudo o que exijo de você hoje, Morkai - disse Dendibar, escolhendo cuidadosamente cada palavra enquanto prosseguia. Morkai
notou a cautela e desconfiou que Dendibar escondia algo.
- Então, qual é a pergunta? - pressionou o espectro.
Dendibar manteve a cautela, considerando cada palavra antes de pronunciá-la. Ele não queria que Morkai obtivesse uma dica sequer sobre suas razões para procurar
pelo drow, pois o espectro certamente transmitiria a informação através dos planos. Muitos seres poderosos - talvez até mesmo o próprio espírito de Morkai - partiriam
em busca de uma relíquia tão poderosa se fizessem idéia do paradeiro da estilha.
- Quatro viajantes, um deles um elfo drow, chegaram hoje a Luskan vindos do Vale do Vento Gélido - explicou o mago variegado. - O que vieram fazer
na cidade? Por que estão aqui?
Morkai examinou sua nêmese, tentando descobrir o motivo da pergunta.
- Está aí uma boa pergunta para a guarda de sua cidade - ele respondeu.
- Sem dúvida os visitantes declararam a que vieram ao entrar pelo portão.
- Mas foi a você que perguntei! - gritou Dendibar, subitamente explodindo de fúria. Morkai protelava, e cada segundo que passava agora cobrava seu
preço do mago variegado. A essência de Morkai perdera pouco poder na morte, e ele lutava teimosamente contra o encanto aprisionador da magia. Dendibar, com um gesto
rápido, abriu um pergaminho diante dele.
- lenho uma dúzia destes já redigida - avisou ele.
Morkai se encolheu. Compreendeu a natureza da escritura, um rolo de pergaminho que revelava o nome verdadeiro de seu próprio ser. E uma vez lido, despojando-o
do véu de sigilo conferido pelo nome e desnudando a privacidade de sua alma, Dendibar invocaria o poder verdadeiro do pergaminho, usando modulações desafinadas para
destorcer o nome de Morkai e desintegrar a harmonia de seu espírito, supliciando-o, assim, até o cerne de seu ser.
- Por quanto tempo devo procurar suas respostas? - perguntou Morkai.
Dendibar sorriu diante da vitória, embora seu desgaste fosse cada vez maior.
- Duas horas - ele respondeu sem delongas, tendo cuidadosamente decidido a duração da busca antes da invocação, escolhendo um limite de tempo que daria
a Morkai oportunidade suficiente para encontrar algumas respostas, mas não o bastante para permitir que o espírito descobrisse mais do que deveria.
Morkai sorriu, adivinhando os motivos por trás da decisão. Deixou-se arremessar para trás de repente e sumiu numa nuvem de fumaça, as chamas que haviam alimentado
sua forma agora relegadas ao braseiro para aguardar seu retorno.
O alívio de Dendibar foi imediato. Apesar de ainda precisar se concentrar com o intuito de manter o portal para os planos no lugar, a oposição à sua vontade
e o desgaste de seu poder diminuíram consideravelmente quando o espírito se foi. A força de vontade de Morkai quase o havia sujeitado durante a audiência, e Dendibar
sacudiu a cabeça, não querendo acreditar que o velho mestre fosse capaz, mesmo morto, de manifestar-se com tamanha força. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao considerar
se seria sábio tramar contra alguém tão poderoso. Sempre que invocava Morkai, era lembrado de que o dia do ajuste de contas certamente chegaria.
Morkai teve pouco trabalho para descobrir algo sobre os quatro aventureiros. De fato, o espectro já sabia muito sobre eles. Havia se interessado bastante
por Dez-Burgos durante seu reinado como Mestre do Torreão Norte, e a curiosidade não morrera com seu corpo. Mesmo agora, ele geralmente dava uma espiada no que acontecia
no Vale do Vento Gélido, e qualquer um que se preocupasse com Dez-Burgos em meses recentes sabia algo sobre os quatro heróis.
O interesse contínuo de Morkai no mundo que deixara para trás não era uma característica incomum no mundo espiritual. A morte alterava as ambições da alma,
substituindo o amor pelos ganhos materiais e sociais com a eterna avidez por conhecimento. Alguns espíritos observavam os Reinos durante incontáveis séculos, simplesmente
para recolher informações e observar os vivos se ocuparem de suas vidas. Talvez fosse a inveja das sensações físicas que não podiam mais sentir. Mas, não importava
o motivo, a riqueza de conhecimentos num único espírito geralmente era mais relevante que as obras reunidas em todas as bibliotecas do Reino combinadas.
Morkai descobriu muita coisa nas duas horas que Dendibar havia lhe designado. Agora era sua vez de escolher cuidadosamente as palavras. Era obrigado a satisfazer
a solicitação do conjurador, mas tinha a intenção de responder da maneira mais enigmática e ambígua possível.
Os olhos de Dendibar coruscaram ao ver as chamas do braseiro darem início à sua dança denunciadora novamente. Já se teriam passado as duas horas?
perguntou-se, pois seu descanso pareceu muito mais breve e ele sentiu que não tinha se recuperado inteiramente da primeira audiência com o espectro.
Contudo, não poderia rejeitar a dança das chamas. Aprumou-se e trouxe os tornozelos para mais junto do corpo, retesando-se e firmando sua posição meditativa, de
pernas cruzadas.
A bola de fogo fez fumaça no auge de seus estertores e Morkai apareceu diante dele. O espectro se afastou obedientemente, sem fornecer qualquer informação
até que Dendibar pedisse especificamente por ela. A história completa por trás da visita dos quatro amigos a Luskan continuava imprecisa para Morkai, mas ele muito
descobrira sobre a demanda e mais do que desejava que Dendibar viesse a saber. Ele ainda não discernira as verdadeiras intenções por trás das perguntas do mago variegado,
mas sentiu com certeza que não eram boas, não importavam os objetivos de Dendibar.
- Qual é o propósito da visita? - indagou Dendibar, furioso com a tática evasiva de Morkai.
- Foi você mesmo quem me invocou - respondeu Morkai astuciosamente. - Sou obrigado a aparecer.
- Sem joguinhos! - rosnou o mago variegado. Ele fitou o espectro, manuseando o pergaminho de tormento em franca ameaça. Famosos por responder literalmente,
os seres dos outros planos geralmente atarantavam seus conjuradores, destorcendo o sentido conotativo da exata formulação de uma pergunta.
Dendibar sorriu em concessão à lógica simples do espectro e esclareceu a pergunta:
- Qual é o propósito da visita a Luskan dos quatro viajantes do Vale do Vento Gélido?
Razões variadas - replicou Morkai. - Um deles veio em busca da terra natal de seu pai, e do pai de seu pai.
- O drow? - perguntou Dendibar, tentando encontrar alguma maneira de encadear suas suspeitas de que Drizzt planejava retornar ao seu mundo subterrâneo natal
com a Estilha de Cristal. Talvez uma insurreição dos elfos negros, usando o poder da estilha? - É o drow que busca por sua terra natal?
- Não - respondeu o espectro, contente que Dendibar houvesse se desviado por uma tangente, protelando a linha de indagação mais específica e mais
perigosa. Os minutos que se passavam logo começariam a dissipar o domínio de Dendibar sobre o espectro e Morkai esperava poder encontrar uma maneira de se libertar
do mago variegado antes de revelar coisas demais sobre a companhia de Bruenor. - Drizzt Do'Urden renunciou completamente à sua terra natal. Ele nunca mais há de
retornar às entranhas do mundo e certamente não com seus mais caros amigos a reboque!
- Então, quem?
- Um dos outros quatro foge de um perigo que deixou para trás - ofereceu Morkai, deturpando a linha de indagações.
- Quem busca sua terra natal? - indagou Dendibar mais enfaticamente.
- O anão, Bruenor Martelo de Batalha - replicou Morkai, obrigado a obedecer. - Ele procura o local de seu nascimento, o Salão de Mitral, e seus amigos
uniram-se à sua demanda. Por que isso o interessa? Os companheiros não têm ligação com Luskan e não representam uma ameaça à Torre das Hostes.
- Não o chamei aqui para responder às suas perguntas! - ralhou Dendibar. - Agora, diga-me quem está fugindo do perigo. E o que é esse perigo?
- Observe - instruiu o espectro. Com um aceno da mão, Morkai transmitiu à mente do mago variegado uma imagem, um retrato de um cavaleiro de manto negro
arremetendo impetuosamente pela tundra. O freio do cavalo estava branco de espuma, mas o cavaleiro forçava o animal a continuar implacavelmente.
- O halfling foge deste homem - explicou Morkai -, apesar de o propósito do cavaleiro continuar a ser um mistério para mim. - Contar a Dendibar até
mesmo tão pouco enfurecia o espectro, mas Morkai ainda não conseguia resistir às ordens de sua nêmese. No entanto, ele sentia os grilhões da vontade do mago afrouxando-se
e desconfiava que a invocação chegava ao fim.
Dendibar se deteve para considerar as informações.
Nada do que Morkai lhe dissera indicava qualquer ligação direta com a Estilha de Cristal, mas ao menos ele descobrira que os quatro amigos não pretendiam
permanecer em Luskan por muito tempo. E ele descobrira um possível aliado, mais uma fonte de informações. O cavaleiro de manto negro devia ser realmente poderoso
para pôr a formidável trupe do halfling em fuga pela estrada.
Dendibar começava a formular suas próximas manobras quando um repentino e insistente repelão da teimosa resistência de Morkai rompeu sua concentração. Furioso,
lançou ao espectro um olhar ameaçador e começou a desenrolar o pergaminho.
Insolente! - ele resmungou e, embora pudesse ter estendido seu domínio sobre o espectro um pouco mais caso tivesse investido sua energia numa disputa
de vontades, começou a recitar o texto do rolo de pergaminho.
Morkai se encolheu, apesar de ter conscientemente levado Dendibar a esse extremo. O espectro aceitava o suplício, pois este sinalizava o fim da inquisição.
E Morkai se considerava feliz por Dendibar não o ter forçado a revelar os acontecimentos ainda mais distantes de Luskan, no vale logo além das fronteiras de Dez-Burgos.
À medida que as recitações de Dendibar ressoavam de maneira dissonante na harmonia de sua alma, Morkai começou a deslocar o ponto focai de sua concentração
ao longo de centenas de quilômetros, de volta à imagem da caravana mercante que agora se encontrava a um dia de viagem de Bremen, o mais próximo dos Dez-Burgos,
e à imagem da corajosa moça que havia se juntado aos mercadores. O espectro se consolou em saber que ela havia, ao menos por enquanto, escapado às investigações
do mago variegado.
Não que Morkai fosse altruísta; jamais fora acusado de prodigalidade nessa característica. Ele simplesmente encontrava imensa satisfação em atrapalhar como
pudesse o tratante que havia arranjado para que ele fosse assassinado.
Os cachos castanho-avermelhados de Cattiebrie balouçavam em seus ombros. Ela estava sentada no alto da carroça que seguia à frente da caravana mercante que
partira de Dez-Burgos no dia anterior, com destino a Luskan. Sem se incomodar com a brisa gelada, ela mantinha os olhos na estrada adiante, procurando algum sinal
de que o assassino por ali passara. Ela havia transmitido informações sobre Entreri a Cássio, e ele as passaria adiante até que chegassem aos anões. Cattiebrie se
perguntava agora se havia justificativa para sua partida sorrateira com a caravana mercante antes que o Clã Martelo de Batalha pudesse organizar a perseguição por
conta própria.
Mas somente ela vira o assassino em ação. Sabia muito bem que, se os anões partissem atrás dele num ataque frontal, a cautela varrida por seu desejo de vingar
Arnês e Grollo, muitos outros do clã morreriam.
Egoisticamente, talvez, Cattiebrie havia decidido que o assassino era assunto seu. Ele a amedrontara, despojara-a de anos de treinamento e disciplina e reduzira-a
à imagem trêmula de uma criança assustada. Mas ela era uma jovem mulher agora, não mais uma menina. Precisava responder pessoalmente aquela humilhação emocional,
ou as cicatrizes seguiriam com ela até o túmulo, assombrando-a, paralisando-a por todo o sempre ao longo da senda que deveria tomar para descobrir seu verdadeiro
potencial na vida.
Ela encontraria seus amigos em Luskan e os alertaria sobre o perigo às suas costas, e então, juntos, eles dariam conta de Artemis Entreri.
- Vamos indo bem rápido - assegurou-lhe o condutor chefe, solidário com a pressa da moça.
Cattiebrie não se voltou, os olhos fixos no horizonte plano diante dela.
- Meu coração me diz que não é rápido o bastante - lamentou-se.
O condutor olhou-a, curioso, mas sabia que era melhor não forçar a questão. Ela havia deixado claro desde o começo que seu assunto era particular. E, sendo
a filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha e, conforme voz corrente, uma excelente guerreira por mérito próprio, os mercadores haviam se considerado homens de
sorte por tê-la como companhia e respeitado seu desejo de privacidade. Além disso, como argumentara com tanta eloqüência um dos condutores durante uma reunião informal
antes da viagem, "só de pensar em olhar pro traseiro de um boi por quase quinhentos quilômetros faz a idéia de ter essa moça como companhia me parecer muito boa!".
Eles haviam até antecipado a data da partida para acomodá-la.
- Não se preocupe, Cattiebrie - tranqüilizou-a o condutor -, a gente te leva até lá!
Com um balançar da cabeça, Cattiebrie removeu do rosto o cabelo açoitado pelo vento e olhou para o sol que se punha no horizonte diante dela.
- Mas será que vai dar tempo? - ela perguntou baixinho, retoricamente, sabendo que o sussurro se perderia no vento assim que passasse por seus lábios.

4. OS ROCHEDOS

Drizzt assumiu a liderança enquanto os quatro companheiros percorriam as margens do rio Mirar, distanciando-se tanto quanto possível de Luskan. Apesar de
não dormirem havia várias horas, os confrontos na Cidade das Velas tinham liberado um jato de adrenalina em suas veias e nenhum deles se sentia cansado.
Havia algo de mágico no ar daquela noite, uma estática revigorante que teria feito o mais exausto viajante se lamentar por fechar os olhos. O rio, correndo
célere e volumoso devido ao degelo da primavera, cintilava com a claridade da noitinha, as cristas espumosas das ondas a capturar a luz das estrelas, devolvendo-a
na forma de borrifos de gotículas ajaezadas.
Normalmente cautelosos, os amigos não conseguiram evitar baixar a guarda. Não sentiam o perigo a espreitá-los de perto, nada sentiam a não ser a frialdade
penetrante e agradável da noite de primavera e a misteriosa atração do firmamento. Bruenor se perdeu em sonhos com o Salão de Mitral; Régis, nas lembranças de Calimporto;
até mesmo Wulfgar, tão desanimado em relação ao seu malfadado encontro com a civilização, sentiu seu espírito se elevar. Pensava em noites semelhantes na vasta tundra,
quando sonhara com o que jazia além dos horizontes de seu mundo. Agora, Wulfgar descobriu que além daqueles horizontes, faltava apenas um elemento. Para sua surpresa
- e contra os instintos aventureiros que repudiavam esses pensamentos consoladores -, desejou que Cattiebrie, a mulher pela qual se apaixonara, estivesse ali agora
para partilhar com ele a beleza daquela noite.
Se não estivessem tão absortos no prazer individual que a noite lhes proporcionava, os outros teriam percebido uma certa vivacidade adicional também no gracioso
passo de Drizzt Do'Urden. Para o drow, aquelas noites mágicas, quando a abóbada celeste se estendia até abaixo do horizonte, reafirmavam sua confiança na decisão
mais importante e mais difícil que jamais tomara: a escolha de abandonar seu povo e sua terra natal. As estrelas não piscavam sobre Menzoberranzan, a cidade escura
dos elfos negros. Nenhuma fascinação inexplicável dedilhava as cordas da alma partindo da pedra fria do imenso teto sombrio da caverna.
- O quanto minha gente perdeu por caminhar nas trevas - esvaiu-se o murmúrio de Drizzt no ar noturno.
A atração dos mistérios do céu infinito levou a alegria de seu espírito para além dos limites normais e abriu-lhe a mente para as perguntas irrespondíveis
do multiverso. Ele era um elfo e, apesar da pele negra, restava em sua alma um aspecto da alegria harmônica de seus primos da superfície. Ele se perguntou com que
generalidade aqueles sentimentos ocorriam entre sua gente. Será que permaneciam nos corações de todos os drow? Ou séculos de sublimação teriam extinguido as chamas
espirituais? Na opinião de Drizzt, talvez a maior perda sofrida por seu povo ao se retirar para as profundezas do mundo tinha sido a perda da capacidade de filosofar
sobre a espiritualidade da existência simplesmente pelo bem da razão.
A luminosidade cristalina do Mirar foi gradualmente perdendo o brilho à medida que as estrelas eram ofuscadas pela aurora cada vez mais luminosa. Ela chegou
como uma decepção muda para os amigos enquanto estes montavam acampamento num local abrigado perto das margens do rio.
- Fiquem sabendo que são poucas as noites assim - observou Bruenor quando o primeiro raio de luz rastejou sobre o horizonte oriental. Seus olhos cintilavam,
uma insinuação do maravilhoso devaneio de que raramente desfrutava o habitualmente prático anão.
Drizzt percebeu o brilho visionário nos olhos do anão e pensou nas noites que ele e Bruenor haviam passado no alto da Ladeira de Bruenor - seu local de encontro
especial -, lá no vale dos anões, em Dez-Burgos.
- Bem poucas - ele concordou.
Com um suspiro resignado, puseram-se a trabalhar. Drizzt e Wulfgar deram início ao desjejum enquanto Bruenor e Régis examinavam o mapa obtido em Luskan.
Apesar de todos os resmungos e da implicância por causa do halfling, Bruenor o havia pressionado a acompanhá-los por uma razão bem definida - fora a amizade
- e, apesar de ter disfarçado muito bem suas emoções, o anão se encheu verdadeiramente de alegria quando Régis apareceu na estrada, deitando os bofes pela boca e
não muito longe de Dez-Burgos, com seu pedido de última hora para se juntar à demanda.
Régis conhecia as terras ao sul da Espinha do Mundo melhor que qualquer um deles. O próprio Bruenor não saíra do Vale do Vento Gélido em quase dois séculos
e, na época, era apenas uma criança-anã imberbe. Wulfgar jamais deixara o vale e a única jornada de Drizzt pela superfície do mundo havia sido uma aventura noturna,
passando de uma sombra a outra e evitando muitos dos lugares que os companheiros precisariam vasculhar se quisessem encontrar o Salão de Mitral.
Régis correu os dedos pelo mapa, recontando animadamente a Bruenor suas experiências em cada um dos lugares indicados, particularmente Mirabar, a cidade mineira
de grande riqueza, ao norte, e Águas Profundas, fiel ao nome de Cidade dos Esplendores, descendo a costa em direção ao sul.
Bruenor escorregou um dedo pelo mapa, estudando as características físicas do terreno.
Mirabar fica mais ao meu gosto - disse ele, por fim, tamborilando sobre a marca da cidade enfiada nas encostas meridionais da Espinha do Mundo. -
O Salão de Mitral fica nas montanhas, isso pelo menos eu sei, e não para o lado do mar.
Régis considerou as observações do anão apenas por um instante, depois deixou cair o dedo sobre um outro ponto, a mais de cento e cinqüenta quilômetros de
Luskan continente adentro, segundo a escala do mapa.
- Sela Longa - disse ele. - A meio caminho de Lua Argêntea e a meio caminho entre Mirabar e Águas Profundas. Um bom lugar para procurarmos nossa rota.
- Uma cidade? - perguntou Bruenor, pois a marca no mapa não passava de um pequeno ponto negro.
- Uma aldeia - corrigiu Régis. - Não há muita gente por lá, mas uma família de magos, os Harpells, vive ali há muitos anos e conhece as terras do norte
melhor que ninguém. Ficariam contentes em nos ajudar.
Bruenor coçou o queixo e assentiu.
- Uma bela caminhada. O que a gente vai encontrar no caminho?
- Os rochedos - admitiu Régis, um pouco desencorajado ao se lembrar do lugar. - Ermos e cheios de orcs. Queria que houvesse uma outra estrada, mas
Sela Longa ainda parece a melhor opção.
- Todas as estradas do norte são perigosas - lembrou-lhe Bruenor.
Continuaram a examinar o mapa, Régis a recordar cada vez mais detalhes.
Uma série de marcas incomuns e não identificadas - três, em particular, correndo numa linha quase reta exatamente a leste de Luskan e rumo ao complexo de
rios ao sul da Floresta Oculta - chamou a atenção de Bruenor.
- Cemitérios ancestrais - explicou Régis. - Lugares sagrados dos uthgardt.
- Uthgardt?
Bárbaros - respondeu Régis sombriamente. - Como os do vale. Conhecem melhor a civilização, talvez, mas não são menos ferozes. As diferentes tribos estão por
todas as terras do norte, vagando pelos ermos.
Bruenor gemeu, compreendendo o desânimo do halfling, conhecedor também dos modos selvagens e da perícia em combate dos bárbaros. Os orcs se mostrariam adversários
bem menos formidáveis.
Quando os dois terminaram a conversa, Drizzt já estava se deitando à sombra fresca de uma árvore que se debruçava sobre o rio e Wulfgar ainda tinha metade
do seu desjejum no prato que repetira três vezes.
- 'Cê ainda 'tá mastigando! - gritou Bruenor, ao notar as parcas porções deixadas na panela.
- Uma noite cheia de aventuras - Wulfgar respondeu alegremente, e os amigos ficaram contentes em observar que a briga aparentemente não havia deixado
cicatrizes em sua determinação. - Uma boa refeição, um bom sono, e eu devo estar pronto para a estrada mais uma vez!
- Bom, não vai se acomodando ainda não! - ordenou Bruenor. - Um dos três turnos de guarda de hoje é todo seu!
Régis olhou ao redor, perplexo, sempre ligeiro para reconhecer um acréscimo em sua carga de trabalho.
- Três? - ele perguntou. - Por que não quatro?
- Os olhos do elfo são prá de noite - explicou Bruenor. - Deixa ele estar pronto prá encontrar nosso caminho quando o dia tiver corrido.
- E onde fica o nosso caminho? - perguntou Drizzt, em sua cama de musgos. - Vocês chegaram a uma conclusão quanto ao nosso próximo destino?
- Sela Longa - respondeu Régis. -Trezentos e vinte quilômetros a leste e ao sul, contornando a Floresta do Inverno Remoto e através dos rochedos.
- Desconheço o nome - replicou Drizzt.
- Lar dos Harpells - explicou Régis. - Uma família de magos renomada por sua bondosa hospitalidade. Passei algum tempo lá quando estava a caminho de
Dez-Burgos.
Wulfgar refugou diante da idéia. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido desprezavam os magos, pois consideravam as artes negras um poder empregado apenas pelos
covardes.
- Não tenho a menor vontade de ver esse lugar - ele declarou categoricamente.
- Quem te perguntou? - resmungou Bruenor, e Wulfgar flagrou-se voltando atrás em sua determinação, como um filho que se recusa a sustentar um argumento
teimoso em face de uma repreensão do pai.
- Você vai gostar de Sela Longa - Régis o tranqüilizou. - Os Harpells merecem realmente a reputação de hospitaleiros, e os prodígios de Sela Longa
vão lhe mostrar uma faceta da magia que você jamais esperou ver. Eles aceitarão até mesmo... - Flagrou sua mão involuntariamente apontando para Drizzt e, constrangido,
abortou sua afirmação.
Mas o estóico drow apenas sorriu.
- Não tenha medo, meu amigo - ele consolou Régis. - Suas palavras soam verdadeiras, e eu já aceitei minha condição em seu mundo. - Ele se deteve e retribuiu
individualmente cada um dos olhares desconfortáveis que recaíam sobre sua pessoa. - Conheço meus amigos e desfaço-me de meus inimigos - declarou, com uma decisão
que afastou as preocupações deles.
Desfaz sim, com uma espada - acrescentou Bruenor, com uma risadinha baixa, apesar de os ouvidos aguçados de Drizzt captarem o sussurro.
Se for preciso - concordou o drow, sorrindo. Então, ele rolou de lado para dormir um pouco, confiando totalmente nas habilidades de seus amigos para
protegê-lo.
Passaram um dia ocioso à sombra, ao lado do rio. No fim da tarde, Drizzt e Bruenor fizeram uma refeição e discutiram a rota, deixando Wulfgar e Régis profundamente
adormecidos, pelo menos até que tivessem comido à farta.
- Vamos seguir o rio mais uma noite - disse Bruenor. - Depois, para sudeste, atravessando o terreno aberto. Isso vai livrar a gente das matas e abrir
uma trilha reta à nossa frente.
- Talvez seja melhor viajarmos somente à noite durante alguns dias - sugeriu Drizzt. - Não sabemos que olhos nos seguem desde a Cidade das Velas.
- Concordo - respondeu Bruenor. - Vamos embora, então. Uma longa estrada à nossa frente e outra mais longa ainda depois disso!
- Longa demais - murmurou Régis, abrindo um olho cheio de preguiça.
Bruenor lançou-lhe um olhar feroz. Estava ansioso - pela viagem e também por levar seus amigos a uma estrada perigosa - e, numa defesa emocional, tomava como
pessoais todas as reclamações em relação à aventura.
- Para se caminhar, quero dizer - Régis explicou rapidamente. - Há fazendas nesta área e, portanto, deve haver alguns cavalos por aí.
- Cavalos vão custar muito caro por estas bandas - replicou Bruenor.
- Talvez... - disse manhosamente o halfling, e seus amigos logo adivinharam o que ele estava pensando. Os cenhos franzidos de ambos refletiam a desaprovação
geral.
Temos os rochedos à nossa frente! - argumentou Régis. - Os cavalos podem deixar os orcs para trás mas, sem eles, certamente vamos precisar lutar a cada quilômetro
da viagem! Além disso, seria um empréstimo. Poderíamos devolver os animais quando não precisássemos mais deles.
Drizzt e Bruenor não aprovavam a trapaça sugerida pelo halfling, mas não podiam refutar sua lógica. Cavalos certamente seriam de muita ajuda naquele ponto
da jornada.
- Acorda o garoto - resmungou Bruenor.
- E quanto ao meu plano? - perguntou Régis.
- Vamos decidir quando surgir a oportunidade!
Régis ficou satisfeito, confiante de que seus amigos optariam pelos cavalos. Ele comeu até se fartar, depois juntou penosamente os parcos restos da ceia e
foi acordar Wulfgar.
Estavam a caminho novamente logo em seguida e, pouco tempo depois, viram as luzes de um pequeno povoado ao longe.
- Leva a gente até lá - Bruenor disse a Drizzt. - Pode ser que valha a pena tentar o plano do Ronca-bucho.
Wulfgar, tendo perdido a conversa no acampamento, não entendeu, mas não quis discutir nem mesmo questionar o anão. Depois do desastre no Alfanje, ele havia
se resignado a um papel mais passivo na viagem, deixando que os outros três decidissem que trilhas deveriam tomar. Seguia sem reclamar e mantinha o martelo de prontidão
para quando fosse necessário.
Afastaram-se do rio alguns quilômetros, depois encontraram várias chácaras agrupadas no interior de uma robusta cerca de madeira.
- Há cães por aí - observou Drizzt, percebendo-os com sua excepcional audição.
- Então Ronca-bucho entra sozinho - disse Bruenor.
O rosto de Wulfgar se contorceu, confuso, principalmente, já que o olhar do halfling indicava que este não estava nada entusiasmado com a idéia.
- Isso eu não posso permitir - falou pomposamente o bárbaro. - Se há alguém entre nós que precisa de proteção é o pequeno. Não vou me esconder aqui
no escuro enquanto ele caminha sozinho para o perigo!
- Ele entra sozinho - disse Bruenor novamente. - A gente não veio aqui prá brigar, garoto. Ronca-bucho vai conseguir uns cavalos prá gente.
Régis sorriu, impotente, apanhado completamente na armadilha que Bruenor havia claramente preparado para ele. Bruenor o deixaria se apropriar dos cavalos,
como Régis havia insistido, mas a permissão relutante vinha acompanhada de um certo grau de responsabilidade e bravura de sua parte. Era a maneira do anão de se
absolver por seu envolvimento no engodo.
Wulfgar permaneceu firme em sua determinação de ficar ao lado do halfling, mas Régis sabia que o jovem guerreiro poderia inadvertidamente lhe trazer problemas
em negociações tão delicadas.
- Você fica com os outros - ele explicou ao bárbaro. - Posso lidar com isso sozinho.
Reunindo sua coragem, ele puxou o cinto por sobre a barriga volumosa e partiu em direção ao pequeno povoado.
Os rosnados ameaçadores de vários cães o saudaram quando ele se aproximou da porteira. Pensou em voltar - o pingente de rubi provavelmente de nada adiantaria
contra cães ferozes - mas, então, viu o vulto de um homem deixar uma das casas e vir em sua direção.
- O que você quer? - indagou o fazendeiro, colocando-se desafiadoramente do outro lado da porteira e apertando nas mãos uma antiga arma de haste, provavelmente
passada de uma geração a outra em sua família.
Sou apenas um viajante cansado - Régis começou a explicar, tentando parecer tão digno de pena quanto pudesse. Era um conto que o fazendeiro ouvira
com demasiada freqüência.
- Vá embora! - ordenou ele.
- Mas...
- Suma!
Sobre um cômoro a uma pequena distância dali, os três companheiros assistiam à confrontação, apesar de, à luz fraca, somente Drizzt ver a cena com clareza
suficiente para entender o que acontecia. O drow via que o fazendeiro estava tenso pela maneira que segurava a alabarda e podia julgar a profunda determinação das
exigências do homem pela carranca resoluta que este trazia.
Mas, então, Régis puxou algo de sob seu paletó e quase que imediatamente o fazendeiro relaxou a pressão das mãos sobre a arma. Pouco depois, a porteira se
abriu e Régis entrou.
Os amigos esperaram ansiosamente durante várias horas extenuantes, sem qualquer outro sinal de Régis. Pensaram em confrontar os próprios fazendeiros, temendo
que alguma ignóbil perfídia houvesse ocorrido ao halfling. Então, finalmente, com a lua bem além de seu ponto culminante, Régis emergiu pela porteira, conduzindo
dois cavalos e dois pôneis. Os fazendeiros e suas famílias acenavam-lhe em despedida, fazendo-o prometer deter-se ali para uma visita caso algum dia passasse novamente
por aquelas bandas.
- Impressionante - riu Drizzt. Bruenor e Wulfgar só fizeram menear as cabeças, incrédulos.
Pela primeira vez desde que havia entrado no povoado, Régis lembrou que sua demora poderia ter causado alguma angústia aos amigos. O fazendeiro insistira
para que ele ceasse antes que se sentassem para discutir fosse lá qual o negocio que o trouxera ali, e, já que precisava ser cortês (e já que tinha ceado só uma
vez naquele dia), Régis concordou, apesar de abreviar a refeição ao máximo possível e educadamente declinar do convite para repetir o prato uma quarta vez. Conseguir
os cavalos mostrou-se bem fácil depois disso, Precisou apenas prometer deixá-los com os magos em Sela Longa quando ele e seus amigos prosseguissem a partir de lá.
Régis estava certo de que seus amigos não ficariam bravos com ele por muito tempo. Ele os fizera esperar, preocupados, durante metade da noite, mas seu
empenho pouparia a todos muitos dias numa estrada perigosa. Ele sabia que, depois de uma ou duas horas cavalgando com o vento a passar velozmente por eles, os companheiros
esqueceriam toda a raiva. Mesmo que não esquecessem com tanta facilidade, para Régis, uma boa refeição sempre valia algumas inconveniências.
Drizzt propositalmente fez o grupo se deslocar mais para leste que sudeste. Não encontrou nenhuma referência no mapa de Bruenor que lhe permitisse aproximar
a rota direta para Sela Longa. Se tentasse o caminho direto e errasse, mesmo que por pouco, eles topariam com a estrada principal que vinha da cidade nortista de
Mirabar sem saber se deveriam virar para o norte ou para o sul. Seguindo diretamente para leste, o drow tinha certeza de que alcançariam a estrada ao norte de Sela
Longa. A viagem aumentaria em alguns quilômetros, mas talvez isso lhes poupasse vários dias de retrocesso.
Durante todo o dia e a noite seguintes, a cavalgada foi fácil e desimpedida e, depois disso, Bruenor decidiu que estavam longe o suficiente de Luskan para
adotar um plano de viagem mais normal.
- A gente pode seguir de dia agora - ele anunciou no início da tarde de seu segundo dia com os cavalos.
- Prefiro a noite - disse Drizzt. Acabara de acordar e escovava seu garanhão negro, esguio, mas forte.
- Eu, não - argumentou Régis. - As noites foram feitas para se dormir, e os cavalos ficam praticamente cegos aos buracos e às pedras que poderiam estropiá-los.
- Um meio termo, então - ofereceu Wulfgar, espreguiçando-se para livrar seus ossos dos últimos vestígios de sono. - Podemos partir depois do zênite
do sol, mantendo-o às nossas costas pelo bem de Drizzt, e cavalgar até tarde da noite.
- Boa idéia, rapaz - riu Bruenor. - Parece mesmo passar do meio-dia agora. Aos cavalos, então! Hora de partir!
- Você poderia ter ficado de boca fechada até depois da ceia! - Régis resmungou para Wulfgar, levando relutantemente a sela às costas de seu pequeno
pônei branco.
Wulfgar correu a ajudar o amigo atribulado.
- Mas teríamos perdido meio dia de viagem - ele replicou.
- Que pena isso seria - retorquiu Régis.
Naquele dia, o quarto desde que haviam deixado Luskan, os companheiros chegaram aos rochedos, um trecho estreito de outeiros fragmentados e colinas onduladas.
Uma beleza rude e indomada definia o lugar, uma impressão esmagadora de natureza selvagem que dava a cada viajante que passasse por ali uma sensação de conquista,
de que ele poderia ser o primeiro a botar os olhos em cada ponto daquela paisagem. E, como sempre era o caso nos ermos, a emoção da aventura vinha acompanhada por
um certo grau de risco. Mal haviam adentrado o primeiro vale no terreno irregular e Drizzt avistou rastros que conhecia muito bem: a marcha pesada de um bando de
orcs.
- Foram feitos a menos de um dia - disse ele aos seus preocupados companheiros.
Quantos? - perguntou Bruenor.
Drizzt deu de ombros.
Uns dez pelo menos, talvez o dobro.
Vamos continuar no nosso caminho - sugeriu o anão. - Estão na nossa frente e é melhor do que se estivessem atrás da gente.
Quando veio o crepúsculo, marcando o ponto médio da jornada daquele dia os companheiros fizeram uma breve parada e deixaram os cavalos pastarem num pequeno
prado.
A trilha dos orcs ainda estava diante deles, mas Wulfgar, assumindo a retaguarda da trupe, mantinha os olhos voltados para trás.
- Estão nos seguindo - disse ele, diante dos rostos inquisitivos de seus amigos.
- Orcs? - Régis perguntou.
O bárbaro meneou a cabeça:
- Não como os que eu conheço. Pelo que sei, nossos perseguidores são espertos e cautelosos.
- Pode ser que os orcs daqui conheçam melhor que os orcs do vale os hábitos das pessoas de bem - disse Bruenor, mas ele desconfiava que não se tratavam
de orcs e não precisava olhar para Régis para saber que o halfling tinha a mesma preocupação. A primeira marca do mapa que Régis identificara como um cemitério ancestral
não poderia estar muito longe de sua posição atual.
- De volta aos cavalos - sugeriu Drizzt. - Uma cavalgada forçada pode melhorar bastante nossa posição.
Siga até depois da lua se pôr - concordou Bruenor - E pare quando tiver encontrado um lugar onde a gente possa resistir ao ataque. Tenho a impressão que vamos
ter luta antes da aurora pegar a gente de surpresa!
Eles não encontraram nenhum sinal palpável durante a cavalgada que os levou praticamente a atravessar toda a extensão dos rochedos. Até mesmo a trilha dos
orcs desapareceu mais ao norte, deixando o caminho diante deles aparentemente livre. Wulfgar, porém, estava certo de que captara vários sons arás deles e movimentos
na periferia de seu campo visual.
Drizzt teria preferido continuar até que tivessem deixado os rochedos completamente para trás mas, no terreno agreste, os cavalos haviam atingido o limite
de sua resistência. Parou num pequeno bosque de pinheiros no topo de uma pequena elevação, suspeitando, como os demais, de que olhos hostis os observavam de várias
direções.
Drizzt já estava no alto de uma das árvores antes que os outros tivessem sequer desmontado. Amarraram os cavalos bem juntos e posicionaram-se ao redor dos
animais. Nem mesmo Régis conseguiria dormir, pois, apesar de confiar na visão noturna de Drizzt, a expectativa já fazia o sangue circular rápido em suas veias.
Bruenor, um veterano de centenas de batalhas, tinha toda a confiança em sua perícia em combate. Recostou-se tranqüilamente contra uma árvore, o machado chanfrado
sobre o peito, uma das mãos bem firme sobre a empunhadura da arma.
Wulfgar, porém, fez outros preparativos. Começou a reunir paus e galhos quebrados e a afiar suas pontas. A procura de toda e qualquer vantagem, ele os distribuiu
em posições estratégicas ao redor da área para que oferecessem a melhor disposição defensiva possível, usando suas pontas mortíferas para reduzir o número de rotas
de aproximação dos atacantes. Escondeu astuciosamente outros paus em ângulos que fariam com que os orcs tropeçassem e neles se empalassem antes que conseguissem
alcançá-lo.
Régis, o mais nervoso de todos, assistiu a tudo e percebeu as diferenças nas táticas dos seus amigos. Sentiu que pouco poderia fazer a fim de se preparar
para tal luta e procurou apenas manter-se fora do caminho para não atrapalhar as diligências de seus companheiros. Talvez surgisse a oportunidade para desferir um
ataque de surpresa, mas ele sequer considerou essa possibilidade naquele momento. A bravura ocorria espontaneamente ao halfling. Com certeza nunca era algo que ele
planejasse.
Com tantas distrações e preparativos a desviar-lhes a atenção da nervosa expectativa, foi quase um alívio quando, coisa de uma hora depois, a ansiedade se
tornou realidade. Drizzt cochichou para os demais que havia movimento nos campos abaixo do bosque.
- Quantos? - retornou Bruenor.
- Quatro para um contra nós, talvez mais - Drizzt replicou. O anão se voltou para Wulfgar:
- 'Cê 'tá pronto, garoto?
Wulfgar bateu de leve no martelo diante dele.
- Quatro contra um? - ele riu.
Bruenor apreciava a confiança do jovem guerreiro, apesar de saber que a desvantagem poderia de fato mostrar-se maior, já que Régis provavelmente não se envolveria
no combate franco.
- A gente deixa eles vir ou pega eles no campo? - Bruenor perguntou a Drizzt.
- Deixe-os vir - replicou o drow. - O fato de se aproximarem furtiva mente mostra que eles acreditam ter a surpresa como aliada.
- E uma surpresa revertida é, de longe, muito melhor que o primeiro golpe - completou Bruenor. - Faça o que puder com seu arco quando a coisa começar, elfo.
A gente vai estar te esperando!
Wulfgar imaginou as chamas que se acendiam nos olhos cor de lavanda do drow, uma luz mortífera que jamais correspondia à calma exterior de Drizzt antes de
uma batalha. O bárbaro se consolou, pois a sede de batalha do drow sobrepujava a sua, e ele nunca vira as cimitarras sibilantes superadas por nenhum adversário.
Ele bateu de leve no martelo novamente e agachou-se num buraco ao lado das raízes de uma das árvores.
Bruenor se meteu entre os corpos volumosos de dois dos cavalos, enfiando os pés nos estribos de cada um dos animais, e Régis, depois de ter recheado os sacos
de dormir para lhes dar a aparência de corpos adormecidos, fugiu em disparada sob os ramos baixos de uma das árvores.
Os orcs se aproximaram do acampamento em formação circular, obviamente esperando um ataque fácil. Drizzt sorriu, esperançoso, ao notar as falhas no círculo,
os flancos expostos que impediriam o rápido socorro a qualquer grupo isolado. O bando inteiro alcançaria o perímetro do bosque ao mesmo tempo, e Wulfgar, o mais
próximo da orla, muito provavelmente desferiria o primeiro golpe.
Os orcs se aproximaram sorrateiramente, um grupo se esgueirava em direção aos cavalos, um outro em direção aos sacos de dormir. Quatro deles passaram por
Wulfgar, mas ele esperou mais um segundo e permitiu que os demais se aproximassem o suficiente dos cavalos para Bruenor atacar.
Então, passou o momento de se esconder.
Wulfgar saltou de seu esconderijo com Garra de Palas, seu martelo de guerra mágico, já em movimento.
- Tempus! -gritou ele para seu deus das batalhas, e o primeiro golpe atingiu ruidosamente o alvo, levando dois orcs ao chão.
O outro grupo correu a desamarrar os cavalos, a fim de tirá-los do acampamento, esperando dar um fim a todas as rotas de fuga.
Mas foram saudados pelos rosnados do anão e pelo clangor de seu machado!
Os orcs surpreendidos saltaram para as selas, e Bruenor dividiu um deles ao meio e arrancou a cabeça de um segundo antes que os outros dois percebessem que
haviam sido atacados.
Drizzt escolheu como alvos os orcs mais próximos aos grupos sob ataque e atrasou tanto quanto pôde os reforços. A corda de seu arco zuniu uma, duas, três
vezes, e um número igual de orcs caiu ao chão, os olhos fechados e as mãos impotentemente cerradas em torno das hastes das flechas assassinas.
Os ataques de surpresa haviam penetrado profundamente as fileiras de seus inimigos e agora o drow sacava as cimitarras e deixava-se cair de sua posição elevada,
confiante de que ele e seus companheiros conseguiriam liquidar rapidamente o resto do bando. Entretanto, seu sorriso durou pouco, pois, ao descer, ele notou mais
movimentação no campo.
Drizzt caíra no meio de três criaturas, as espadas já em movimento antes mesmo que seus pés tocassem o solo. Os orcs não estavam totalmente surpresos - um
deles vira o drow cair -, mas Drizzt apanhou-os desequilibrados, ainda completando o giro que colocaria suas armas em ação.
Com os golpes rápidos do drow, a menor hesitação significava a morte certa, e Drizzt era o único sob controle em meio àquela confusão de corpos. Suas cimitarras
desferiram talhos e estocadas na carne dos orcs com precisão mortal.
O sucesso de Wulfgar havia sido igualmente auspicioso. Ele encarou duas das criaturas e, apesar de serem guerreiros ferozes, os orcs não se igualavam em força
ao gigantesco bárbaro. Um deles conseguiu erguer a arma tosca a tempo de bloquear o golpe de Wulfgar, mas Garra de Palas atravessou-lhe a defesa, estilhaçando a
arma e depois o crânio do desafortunado orc, sem nem mesmo perder velocidade devido ao esforço.
Bruenor foi o primeiro a ter problemas. Seus ataques iniciais foram perfeitos, o que o deixou com apenas dois oponentes de pé: uma desvantagem que o anão
apreciava. Mas, em meio à comoção, os cavalos empinaram e dispararam, rompendo as amarras que os prendiam aos galhos. Bruenor caiu por terra e, antes que conseguisse
se recuperar, teve a cabeça pinçada pelo casco de seu próprio pônei. Um dos orcs também foi derrubado, mas o último se livrou da confusão e correu para dar cabo
do anão atordoado assim que os cavalos deixaram a área.
Por sorte, um daqueles momentos espontâneos de bravura se apoderou de Régis naquele instante. Ele saiu sorrateiramente de sob a árvore, postando-se silenciosamente
atrás do orc. Era alto para um orc e, mesmo nas pontas dos pés, Régis não gostou do ângulo que se apresentava para um golpe contra a cabeça do monstro. Dando de
ombros, resignado, o halfling reverteu sua estratégia.
Antes que o orc pudesse sequer dar início ao golpe que abateria Bruenor, a maça do halfling subiu por entre seus joelhos, chocando-se contra sua virilha e
erguendo-o do chão. A vítima, aos berros, levou às mãos ao ferimento, revirou os olhos a esmo e foi ao chão sem mais ambições de lutar.

Tudo acontecera apenas num instante, mas a vitória ainda não fora conquistada Outros seis orcs entraram na refrega, dois deles interromperam a tentativa
de Drizzt de chegar até Régis e Bruenor, três outros correram em auxílio do companheiro solitário que enfrentava o gigantesco bárbaro. E um deles rastejando pela
mesma trajetória tomada por Régis, aproximou-se do halfling desavisado.
No mesmo instante em que Régis distinguiu o grito de alerta do drow, uma clava o atingiu entre as omoplatas, arrancando-lhe o ar dos pulmões e atirando-o
ao solo.
Wulfgar agora era acossado pelos quatro lados e, apesar de sua gabolice antes da batalha, descobriu que não gostava nada daquela situação. Concentrou-se em
aparar os golpes, esperando que o drow conseguisse chegar até ele antes que suas defesas sucumbissem.
Ele se encontrava em terrível inferioridade numérica.
Uma espada orc entrou-lhe numa costela, uma outra lhe cortou o braço.
Drizzt sabia que poderia derrotar os dois que agora enfrentava, mas duvidava que conseguisse fazê-lo a tempo de ajudar seu amigo bárbaro ou o halfling. E
havia ainda reforços no campo.
Régis rolou para se postar bem ao lado de Bruenor, e os gemidos do anão deixaram claro que a luta terminara para ambos. Então, o orc estava sobre ele, a clava
erguida acima da cabeça e um sorriso maldoso a se espalhar em sua cara feia. Régis fechou os olhos, sem vontade de assistir à queda do golpe que o mataria.
Então, ouviu o som do impacto... acima dele.
Assustado, ele abriu os olhos. Uma machadinha se achava encravada no peito do seu atacante. O orc olhou para a coisa, atordoado. A clava despencou inofensivamente
atrás do orc e ele também caiu de costas, morto.
Régis não entendeu.
- Wulfgar? -perguntou ele, para ninguém.
Uma forma descomunal, quase tão grande quanto a de Wulfgar, saltou sobre ele e precipitou-se sobre o orc, arrancando ferozmente a machadinha do peito da criatura.
Era humano e vestia as peles de um bárbaro, mas, diferente das tribos do Vale do Vento Gélido, os cabelos daquele homem eram negros. - Ah, não - gemeu Régis, lembrando-se
de seus próprios alertas para Bruenor sobre os bárbaros uthgardt. O homem salvara sua vida, mas, conhecendo a reputação do selvagem, Régis duvidava que uma amizade
se formaria a partir daquele encontro. Ele começou a se sentar, desejando expressar sua sincera gratidão e dispersar quaisquer idéias hostis que o bárbaro pudesse
em relação a ele. Pensou até mesmo em usar o pingente de rubi para evocar alguns sentimentos amistosos.
Mas o grandalhão, percebendo o movimento, girou de repente e deu-lhe um pontapé no rosto.
Régis caiu de costas e tudo ficou escuro.

5. PÔNEIS CELESTES

Bárbaros de cabelos negros, aos gritos, tomados pelo frenesi da batalha, irromperam no bosque. Drizzt percebeu imediatamente que aqueles guerreiros corpulentos
eram as formas que vira no campo, movendo-se por trás das fileiras de orcs, mas ele ainda não tinha certeza se eram aliados ou inimigos.
Não importava de que lado estavam, a chegada dos bárbaros infundiu terror nos orcs remanescentes. Os dois que combatiam Drizzt perderam toda a vontade de
lutar, revelando o desejo de desistir do confronto e fugir com uma súbita alteração de postura. Drizzt lhes fez a vontade, certo de que não iriam muito longe de
qualquer maneira e sentindo que também seria aconselhável sumir de vista.
Os orcs fugiram, mas seus perseguidores logo os envolveram em nova batalha pouco além das árvores. Menos óbvio em sua fuga, Drizzt subiu, sorrateiro e despercebido,
de volta à arvore onde deixara seu arco.
Wulfgar foi incapaz de sublimar com a mesma facilidade sua ânsia de batalhas. Com dois de seus amigos inconscientes, sua sede pelo sangue dos orcs era insaciável,
e o novo grupo de homens que se juntara à luta clamava por Tempus - seu próprio deus das batalhas - com um fervor que o jovem guerreiro não conseguiria ignorar.
Distraído pela repentina marcha dos acontecimentos, o círculo de orcs em volta de Wulfgar se afrouxou por apenas um instante, e ele golpeou com força.
um orc desviou o olhar, e Garra de Palas lacerou-lhe a cara antes que seus olhos retornassem à luta. Wulfgar varou a falha no círculo, empurrando um segundo
orc ao passar. Enquanto a criatura cambaleava, tentando se virar para realinhar a defesa, o poderoso bárbaro a abateu com um só golpe. Os outros dois se viraram
e fugiram, mas Wulfgar seguiu em seus calcanhares.
Arremessou o martelo, arrancou a vida de um deles e saltou sobre o outro, levando-o ao chão sob seu peso e depois esmagou-o até a morte com as Próprias mãos.
Ao terminar, depois de ouvir o derradeiro estalido das vértebras do pescoço, Wulfgar lembrou-se de sua situação e de seus amigos. Ficou de pé num salto
e recuou, de costas para as árvores.
Os bárbaros de cabelos negros guardaram distância, respeitando-lhe a habilidade, e não havia como Wulfgar ter certeza das intenções deles. Olhou ao redor,
procurando pelos amigos. Régis e Bruenor jaziam lado a lado, perto de onde os cavalos haviam sido amarrados; não sabia dizer se estavam vivos ou mortos. Não havia
sinal de Drizzt, mas ainda se combatia além da outra orla do bosque.
Os guerreiros se dispuseram num amplo semicírculo ao redor dele, bloqueando todas as rotas de fuga. Mas interromperam de repente seu posicionamento, pois
Garra de Palas retornara magicamente às mãos de Wulfgar.
Ele não seria capaz de vencer tantos assim, mas a idéia não o intimidava. Morreria lutando, como um verdadeiro guerreiro, e sua morte seria lembrada. Se os
bárbaros de cabelos negros o atacassem, sabia que muitos não retornariam às respectivas famílias. Fincou os calcanhares no solo e apertou firmemente o martelo de
guerra nas mãos.
- Acabemos logo com isso - ele grunhiu para as trevas.
- Espere! - veio de cima um sussurro baixo, mas imperativo. Wulfgar imediatamente reconheceu a voz de Drizzt e relaxou as mãos. - Mantenha sua honra,
mas saiba que mais vidas estão em jogo além da sua!
Wulfgar compreendeu então que Régis e Bruenor provavelmente ainda estavam vivos. Deixou Garra de Palas cair e gritou para os guerreiros:
- Bons olhos os vejam!
Não responderam, mas um deles, quase tão alto e musculoso quanto Wulfgar, deixou as fileiras e aproximou-se para se colocar diante dele. O estranho usava
o cabelo comprido preso numa única trança que lhe descia pelo lado do rosto e por sobre o ombro. As faces se achavam pintadas de branco, à semelhança de asas. A
resistência de sua constituição e a disposição disciplinada de seu rosto refletiam uma vida inteira na imensidão agreste e, não fosse pela cor negra dos cabelos,
Wulfgar o teria julgado um membro das tribos do Vale do Vento Gélido.
O homem moreno também reconheceu Wulfgar; contudo, mais versado nas estruturas universais das sociedades do norte, não ficou tão perplexo com as semelhanças.
- Você é do vale - disse ele numa forma imperfeita da língua geral. - Além das montanhas, onde sopra o vento frio.
Wulfgar assentiu.
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce. Temos os mesmos deuses, pois eu também clamo a Tempus por força e coragem.
O homem moreno olhou ao redor, para os orcs abatidos.
- O deus responde ao seu chamado, guerreiro do vale.
O queixo de Wulfgar se ergueu de orgulho.
- Também temos em comum o ódio pelos orcs - continuou ele -, mas nada sei sobre o seu povo.
- Há de aprender - respondeu o homem moreno.
Ele estendeu a mão e indicou o martelo de guerra. Wulfgar se aprumou, firme sem a menor intenção de se render, não importavam suas chances de sobrevivência.
O homem moreno olhou de lado, atraindo o olhar de Wulfgar. Dois guerreiros haviam apanhado Bruenor e Régis e os carregavam nas costas, enquanto outros haviam já
recapturado os cavalos e os traziam pelas rédeas.
- A arma - exigiu o homem moreno. - Você está em nossas terras sem nossa permissão, Wulfgar, filho de Beornegar. O preço de tal crime é a morte. Vai assistir
à execução da sentença dos seus amiguinhos?
O Wulfgar mais jovem teria atacado naquele instante e provocado a perdição de todos eles num arroubo de fúria gloriosa. Mas Wulfgar muito aprendera com seus
novos amigos, particularmente com Drizzt. Ele sabia que Garra de Palas retornaria ao seu chamado e sabia também que Drizzt não os abandonaria. Não era hora de lutar.
Ele até mesmo deixou que lhe amarrassem as mãos, um ato de desonra que nenhum guerreiro da Tribo do Alce jamais permitiria. Mas Wulfgar tinha fé em Drizzt.
Suas mãos seriam liberadas novamente. Então, seria sua a última palavra.
Quando chegaram ao acampamento dos bárbaros, tanto Régis quanto Bruenor haviam recobrado a consciência e, amarrados, caminhavam ao lado de seu amigo bárbaro.
O sangue seco formava crostas nos cabelos de Bruenor, e ele perdera o elmo, mas sua resistência de anão fizera com que sobrevivesse a mais um confronto mortal.
Galgaram o cimo de uma elevação e chegaram ao perímetro de um círculo de tendas e fogueiras chamejantes. Ao som dos brados em louvor a Tempus, a volta do
bando de guerra despertou o acampamento e cabeças decepadas de orcs foram atiradas dentro do círculo para anunciar a gloriosa chegada dos guerreiros. O fervor no
interior do acampamento logo se igualou ao do bando guerra que chegava, e os três prisioneiros foram os primeiros a entrar, aos empurrões, para serem saudados por
vinte bárbaros aos berros.
- O que é que eles comem? - perguntou Bruenor, mais por sarcasmo que preocupação.
- Seja lá o que for, é bom alimentá-los, e rápido - respondeu Régis, conseguindo do guarda atrás dele um tapa na nuca e um aviso para ficar calado.
Os prisioneiros e os cavalos foram reunidos no centro do acampamento, e a tribo os cercou numa dança de vitória, chutando cabeças de orcs e entoando em
voz alta, numa língua desconhecida pelos companheiros, seu louvor a Tempus e a Uthgar - o herói ancestral - pelo sucesso da noite.
Aquilo continuou durante quase uma hora e, então, acabou de repente, e todos os rostos no círculo se voltaram para a aba fechada de uma tenda grande e ornamentada.
O silêncio se prolongou por um instante antes que a aba se abrisse de repente. Para fora saltou um ancião, esguio como um mastro de tenda, demonstrando, porém,
mais energia do que se esperaria de sua óbvia idade avançada. O rosto pintado com as mesmas marcas dos guerreiros, só que mais elaboradas, ele usava sobre um dos
olhos um tapa-olho com uma imensa gema verde costurada nele. Sua túnica era do mais puro branco, as mangas se revelavam como asas recobertas de penas sempre que
ele agitava os braços. Dançou e rodopiou pelas fileiras de guerreiros, e todos prendiam a respiração e se encolhiam até que ele tivesse passado.
- Chefe? - sussurrou Bruenor.
- Xamã - corrigiu Wulfgar, melhor conhecedor dos costumes da vida tribal. O respeito que os guerreiros mostravam àquele homem advinha de um temor muito
além daquele que um inimigo mortal, ou até mesmo um líder, seria capaz de provocar.
O xamã girou e saltou, pousando bem diante dos três prisioneiros. Olhou para Bruenor e Régis durante apenas um instante, depois voltou toda a sua atenção
para Wulfgar.
- Sou Valric Olhar Alto - berrou ele, de repente. - Sacerdote dos seguidores dos Pôneis Celestes! Os filhos de Uthgar!
- Uthgar! - repetiram os guerreiros, batendo suas machadinhas contra os escudos de madeira.
Wulfgar esperou até que a comoção se extinguisse, depois se apresentou:
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce.
- E eu sou Bruenor... - começou o anão.
- Silêncio! - berrou-lhe Valric, tremendo de raiva. - Não dou a mínima para você!
Bruenor fechou a boca e alimentou sonhos que envolviam seu machado e a cabeça de Valric.
- Não era a nossa intenção lhes fazer mal, nem invadir - começou Wulfgar, mas Valric ergueu a mão e o interrompeu.
- Seu propósito não me interessa - explicou com calma, mas sua agitação ressurgiu imediatamente. -Tempus nos entregou vocês, isso é tudo! Um guerreiro
valoroso?
Ele olhou ao redor, para seus próprios homens, e a resposta deles mostrou impaciência pelo desafio iminente.
_ A quantos você fez jus? - ele perguntou a Wulfgar.
- Sete tombaram diante de mim - respondeu orgulhosamente o jovem bárbaro.
Valric assentiu, com ar aprovador.
- Alto e forte - comentou ele. - Descubramos se Tempus está ao seu lado Julguemos se você é digno de correr com os Pôneis Celestes!
Gritos irromperam imediatamente e dois guerreiros se apressaram a desamarrar Wulfgar. Um terceiro, o líder do bando de guerra que falara a Wulfgar no arvoredo,
lançou ao chão a machadinha e o escudo e adentrou o círculo com impetuosidade.
Drizzt esperou em sua árvore até que o último membro do bando de guerra partisse, após desistir da busca pelo cavaleiro da quarta montaria. Então, o drow
se moveu rapidamente e juntou alguns dos objetos abandonados: o machado do anão e a maça de Régis. Contudo, foi obrigado a estacar e a se controlar ao encontrar
o elmo de Bruenor, manchado de sangue, a ostentar um novo amassado e um dos chifres, quebrado. Teria seu amigo sobrevivido?
Ele enfiou o elmo quebrado em sua mochila e escapuliu-se atrás do grupo, mantendo uma distância cautelosa.
O alívio o inundou ao chegar ao acampamento e avistar seus três amigos, Bruenor tranqüilo entre Wulfgar e Régis. Satisfeito, Drizzt recolheu suas emoções
e todos os pensamentos referentes ao confronto anterior, focalizou sua perspicácia na situação diante dele e formulou um plano de ataque para libertar seus amigos.
O homem moreno ofereceu as palmas abertas a Wulfgar, convidando sua contraparte loura a segurá-las. Wulfgar jamais vira aquele desafio antes, mas não era
tão diferente das provas de força que sua própria gente praticava.
Seus pés não devem se mexer! - instruiu Valric. - Este é o desafio de força! Que Tempus nos mostre seu valor!
A fisionomia determinada de Wulfgar não revelava o menor sinal de sua confiança em poder derrotar qualquer homem numa prova como aquela. Ele nivelou suas
mãos com as do oponente.
O homem agarrou-as furiosamente e rosnou para o imenso forasteiro. Quase imediatamente, antes que Wulfgar tivesse sequer firmado as mãos ou posicionado os
pés, o xamã gritou para que começassem, e o homem moreno impeliu as mãos adiante, fazendo com que as costas de Wulfgar se dobrassem sobre seus pulsos. Os gritos
irromperam em cada canto do acampamento; o homem moreno rugia e empurrava com toda a sua força, mas, passado o momento da surpresa, Wulfgar reagiu.
Os músculos de ferro no pescoço e nos ombros de Wulfgar se retesaram subitamente, e seus braços descomunais se avermelharam com o afluxo forçado de sangue
em suas veias. Tempus realmente o abençoara; restava apenas ao seu pujante oponente ficar embasbacado diante do espetáculo de sua força. Wulfgar fitou-o diretamente
nos olhos e retribuiu o rosnado com um olhar determinado que profetizava a vitória inevitável. Então, o filho de Beornegar se jogou para frente, interrompendo o
impulso inicial do homem moreno e forçando as próprias mãos de volta a um ângulo mais normal em relação a seus pulsos. Readquirida a paridade, Wulfgar percebeu que
um empurrão repentino deixaria seu oponente na mesma desvantagem da qual ele acabara de escapar. Dali em diante, seria improvável que o homem moreno se agüentasse
por muito tempo.
Mas Wulfgar não estava ansioso para pôr fim à peleja. Ele não queria humilhar seu oponente - isso apenas criaria um inimigo - e, mais importante ainda, ele
sabia que Drizzt estava por perto. Quanto mais conseguisse prolongar a peleja - e manter os olhos de cada membro da tribo fixos nele -, mais tempo Drizzt teria para
colocar algum plano em ação.
Os dois homens se agüentaram ali durante vários segundos e Wulfgar não conseguiu evitar um sorriso quando percebeu a forma escura que se esgueirava por entre
os cavalos, atrás dos guardas fascinados, do outro lado do acampamento. Não saberia dizer se era ou não sua imaginação, mas pensou ter visto dois pontos de chama
lilás a fitá-los desde as trevas. Mais alguns segundos, decidiu, apesar de saber que se arriscava por não dar logo fim ao desafio. O xamã poderia declarar um empate
se eles permanecessem imóveis durante muito tempo.
Mas, então, acabou. As veias e os tendões nos braços de Wulfgar saltaram e seus ombros se ergueram ainda mais alto.
-Tempus - vociferou, glorificando o deus por ainda mais uma vitória e, então, com uma repentina e feroz explosão de energia, obrigou o homem moreno a se ajoelhar.
A toda a sua volta, o acampamento se quedou silencioso. Até mesmo o xamã ficou sem palavras diante daquela exibição.
Dois guardas se moveram hesitantemente para flanquear Wulfgar.
O guerreiro derrotado se levantou e ficou ali, a encarar Wulfgar. Nenhum sinal de fúria desfigurava seu rosto, apenas a honesta admiração, pois os Pôneis
Celestes eram um povo honrado.
- Nós poderíamos acolhê-lo - disse Valric. - Você derrotou Torlin, filho de Jerek Caçador do Lobo, Chefe dos Pôneis Celestes. Torlin nunca havia sido superado
antes!
___ E meus amigos? - perguntou Wulfgar.
- Não dou a mínima para eles! - devolveu Valric. - O anão será libertado numa trilha que leva para fora de nossas terras. Não temos desavenças com ele ou
sua gente, nem desejamos ter qualquer negócio com eles!
O xamã olhou dissimuladamente para Wulfgar.
- O outro é um fraco - declarou. - Há de servir para marcar seu ritual de passagem na tribo, seu sacrifício para o cavalo alado.
Wulfgar não respondeu imediatamente. Eles testaram sua força e agora testavam sua lealdade. Os Pôneis Celestes haviam lhe prestado sua mais alta honraria
ao lhe oferecer um lugar na tribo, mas somente sob a condição de que ele demonstrasse lealdade sem sombra de dúvida. Wulfgar pensou em seu próprio povo e no modo
como tinham vivido durante tantos séculos na tundra. Mesmo agora, muitos dos bárbaros do Vale do Vento Gélido teriam aceitado os termos e matado Régis, pois consideravam
a vida de um halfling um pequeno preço por tamanha honra. Essa era a desilusão da existência de Wulfgar com sua gente, a faceta do código moral deles que se mostrara
inaceitável aos seus padrões pessoais.
- Não - ele respondeu a Valric, sem pestanejar.
- É um fraco! - argumentou Valric. - Somente os fortes merecem a vida!
- Não serei eu a decidir o destino dele - respondeu Wulfgar. - E nem você.
Valric fez sinal para os guardas, e eles imediatamente reataram as mãos de Wulfgar.
- Uma perda para o nosso povo - Torlin disse a Wulfgar. - Você teria recebido uma posição de honra entre nós.
Wulfgar não respondeu, sustentando o olhar de Torlin por um longo momento, partilhando o respeito e também a compreensão mútua de que seus códigos eram diferentes
demais para uma associação como aquela. Numa impossível fantasia comum, ambos se imaginaram lutando lado a lado, abatendo orcs às dezenas e inspirando os bardos
a compor uma nova lenda.
Era a vez de Drizzt atacar. O drow se detivera ao lado dos cavalos para ver o resultado da peleja e também para avaliar melhor seus inimigos. Planejou seu
ataque de modo a causar mais efeito que dano, pois desejava encenar um grande espetáculo a fim de intimidar uma tribo de guerreiros destemidos tempo suficiente para
que seus amigos deixassem o círculo.
Sem dúvida, os bárbaros haviam ouvido falar dos elfos negros. E, sem duvida, as histórias que tinham ouvido eram apavorantes.
Em silêncio, Drizzt amarrou os dois pôneis atrás dos cavalos, depois montou os corcéis, um pé no estribo de cada um deles. Erguendo-se entre ambos, sobranceiro,
atirou para trás o capuz do manto. Com o perigoso brilho em seus olhos cor de lavanda a cintilar furiosamente, ele fez as montarias dispararem rumo ao interior do
círculo, o que dispersou os atordoados bárbaros mais próximos.
Gritos de raiva se ergueram dos surpresos homens da tribo e o tom dos brados assumiu um aspecto de terror assim que os bárbaros viram a pele negra. Torlin
e Valric se voltaram para encarar a ameaça que se aproximava, mas nem mesmo eles sabiam lidar com a personificação de uma lenda.
E Drizzt tinha um truque preparado para eles. Com um aceno de sua mão negra, chamas púrpuras e frias irromperam da pele de Torlin e Valric, o que lançou os
dois bárbaros supersticiosos num frenesi de pânico. Torlin caiu de joelhos, agarrando os braços, incrédulo, e o excitável xamã se jogou no chão e começou a rolar
na terra.
Wulfgar aproveitou sua deixa. Um novo afluxo de força em seus braços arrebentou as correias de couro que lhe prendiam os pulsos. Ele deu continuidade ao impulso
das mãos, brandindo-as para cima, e acertou diretamente as faces dos dois guardas ao seu lado, atirando-os de costas ao chão.
Bruenor também compreendeu seu papel. Pisou com todo seu peso no peito do pé do bárbaro solitário entre ele e Régis e, quando o homem se abaixou para levar
as mãos ao pé dolorido, Bruenor deu-lhe uma cabeçada na fronte. O homem tombou tão facilmente quanto Sussurro o fizera no Beco do Rato, em Luskan.
- Ei, também funciona sem o elmo! - admirou-se Bruenor.
- Só se for a cabeça de um anão! - observou Régis enquanto Wulfgar agarrava a ambos pelos colarinhos e erguia-os com facilidade até as selas dos pôneis.
Ele também montou imediatamente, ao lado de Drizzt, e os quatro arremeteram pelo outro lado do acampamento. Tudo acontecera rápido demais para que os bárbaros
preparassem as armas ou dessem forma a algum tipo de defesa.
Drizzt deu a volta com seu cavalo e posicionou-se atrás dos pôneis para proteger a retaguarda.
- Corram! - ele gritou para seus amigos, batendo nas ancas das montarias com a parte chata das cimitarras. Os outros três gritaram vitória como se
a fuga já se houvesse completado, mas Drizzt sabia que aquela havia sido a parte fácil. A aurora se aproximava, célere, e, naquele terreno irregular e des conhecido,
os bárbaros nativos os alcançariam facilmente.
Os companheiros arremeteram pelo silêncio da madrugada e escolheram o caminho mais direto e mais fácil para ganhar tanto terreno quanto possível.
Drizzt ainda mantinha um olho na retaguarda, esperando que os bárbaros bem na cola deles. Mas a comoção no acampamento havia se extinguido quase imediatamente
depois da fuga, e o drow não via sinais de perseguição.
A ora só se ouvia um único brado, o canto ritmado de Valric numa língua nenhum dos viajantes compreendia. O pavor no rosto de Wulfgar fez todos se deterem.
Os poderes de um xamã - explicou o bárbaro.
No acampamento, Valric estava sozinho com Torlin no interior do círculo formado por sua gente, entoando um cântico e dançando o ritual supremo de sua posição,
invocando o poder do Animal Espiritual de sua tribo. O aparecimento do elfo drow havia amedrontado completamente o xamã. Ele interrompeu a perseguição antes que
esta tivesse início e correu para sua tenda em busca do sagrado bornal de couro necessário para o ritual, pois decidira que o espírito do cavalo alado, o Pégaso,
deveria lidar com aqueles invasores.
Valric escolheu Torlin como receptáculo da forma do espírito, e o filho de Jerek aguardava a possessão com estóica dignidade, odiando o ato, pois isso o despojava
de sua identidade, mas resignado à absoluta obediência ao xamã.
Entretanto, a partir do momento em que a coisa começou, Valric compreendeu, em meio à sua agitação, que se havia excedido na urgência da invocação.
Torlin emitiu um grito estridente e foi ao chão, contorcendo-se de agonia. Uma nuvem cinzenta o envolveu, os vapores revoltos se combinaram à sua forma e
remodelaram suas feições. Seu rosto inchou e se contorceu e, de repente, projetou-se para assumir o aspecto da cabeça de um cavalo. Seu torso também se transmutou
em algo inumano. Valric tivera a intenção de apenas emprestar um pouco das forças do espírito do Pégaso a Torlin, mas a própria entidade viera e possuíra o homem
inteiramente, subjugando-lhe o corpo à sua própria imagem.
Torlin foi consumido.
Em seu lugar apareceu a forma espectral do cavalo alado. Todos na tribo caíram de joelhos diante dele, até mesmo Valric, que não conseguia encarar a imagem
do Animal Espiritual. Mas o Pégaso conhecia os pensamentos do xamã e compreendia as necessidades dos seus filhos. As narinas do espírito soltaram fumaça, o animal
se elevou no ar e partiu em perseguição aos invasores que fugiam.
s amigos haviam imposto um passo mais confortável, embora ligeiro, às montarias. livres das amarras, com a aurora rompendo diante deles e nenhuma perseguição
aparente às suas costas, eles tinham se acalmado um pouco. Bruenor remexia o elmo nas mãos, tentando desamassá-lo o suficiente para recolocar a coisa em sua cabeça.
Até mesmo Wulfgar, tão impressionado ao ouvir o cântico do xamã pouco antes, começou a relaxar.
Somente Drizzt, sempre cauteloso, não se convenceu tão facilmente de que haviam escapado. E foi o drow quem primeiro percebeu a aproximação do perigo.
Nas cidades escuras, os elfos negros geralmente lidavam com seres de outro mundo e, no decorrer de muitos séculos, essas criaturas engendraram na raça dos
drow uma sensibilidade às suas emanações mágicas. Drizzt deteve repentinamente o cavalo e fez a volta.
- Que é que 'cê 'tá ouvindo? - perguntou-lhe Bruenor.
- Não ouço nada - respondeu Drizzt, os olhos dardejando em busca de algum sinal. - Mas há algo lá.
Antes que conseguissem responder, a nuvem cinzenta se precipitou do céu e se abateu sobre eles. Os cavalos corcovearam e empinaram, tomados de um pânico incontrolável,
e, na confusão, nenhum dos amigos conseguiu discernir o que acontecia. O Pégaso, então, formou-se bem na frente de Régis e o halfling sentiu um frio mortal a penetrar-lhe
os ossos. Ele gritou e caiu de sua montaria.
Bruenor, cavalgando ao lado de Régis, investiu intrepidamente contra a forma espectral. Mas o arco descendente do machado encontrou apenas uma nuvem de fumaça
onde a aparição estivera. Então, tão repentinamente quanto desaparecera, o espírito retornou, e Bruenor também sentiu o frio gélido de seu toque. Mais forte que
o halfling, ele conseguiu se manter sobre o pônei.
- O que? - ele gritou em vão para Drizzt e Wulfgar.
Garra de Palas passou por ele com um silvo e seguiu em frente até o alvo. Mas o Pégaso era só fumaça novamente, e o martelo de guerra mágico passou sem encontrar
resistência através da nuvem turbilhonante.
Num instante, o espírito estava de volta, precipitando-se sobre Bruenor. O pônei do anão rodopiou e foi ao chão num esforço frenético de escapar da criatura.
- Não vai conseguir atingi-lo! - Drizzt gritou para Wulfgar, que correu em auxílio do anão. - A criatura não existe totalmente neste plano!
As fortes pernas de Wulfgar controlaram o cavalo apavorado e o bárbaro golpeou assim que Garra de Palas retornou às suas mãos. Mas, novamente, encontrou apenas
fumaça.
- Então, como? - ele berrou para Drizzt, os olhos dardejando em busca dos primeiros sinais do espírito a se reformar.
Drizzt vasculhou sua mente em busca das respostas. Régis ainda estava 'lido e imóvel sobre o campo, e Bruenor, embora não tivesse sido ferido tão gravemente
ao cair do pônei, parecia aturdido e tremia devido ao frio sobrenatural. Drizzt agarrou-se a um plano desesperado. Sacou de sua bolsa a estátua de ônix da pantera
e chamou por Guenhwyvar.
O espírito retornou e atacou com fúria renovada. Baixou primeiro sobre Bruenor, envolvendo o anão com suas asas frias.
- Maldito seja daqui até o Abismo! - vociferou Bruenor em corajosa oposição.
Entrando precipitadamente na luta, Wulfgar perdeu o anão completamente de vista, exceto pela cabeça do machado que continuava a irromper inofensivamente através
da fumaça.
Então, a montaria do bárbaro estacou, recusando-se, contra todos os esforços, a se aproximar ainda mais do animal sobrenatural. Wulfgar saltou de sua sela
e investiu, lançando-se diretamente através da nuvem antes que o espírito conseguisse se reformar, e seu impulso fez com que tanto ele quanto Bruenor saíssem do
outro lado do manto fumarento. Rolaram para longe e olharam para trás, apenas para descobrir que o espírito havia desaparecido completamente mais uma vez.
As pálpebras de Bruenor pendiam pesadamente, sua pele apresentava um lívido tom de azul e, pela primeira vez em sua vida, seu espírito indomável não tinha
peito para lutar. Wulfgar também experimentara o toque gélido ao atravessar o espírito, mas ele ainda estava disposto a lutar mais um assalto com a criatura.
- Não podemos lutar contra isto! - disse Bruenor, ofegante e entre dentes. -Aparece prá atacar, mas some quando é a nossa vez!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, desafiador.
Tem de haver uma maneira! - reclamou ele, apesar de obrigado a admitir que o anão estava certo. - Mas meu martelo não é capaz de destruir nuvens!
Guenhwyvar apareceu ao lado de seu mestre e colocou-se rente ao solo, em busca da nêmese que ameaçava o drow. Drizzt compreendeu as intenções do gato.
Não! - ordenou. - Aqui não. - O drow se lembrou de algo que Guenhwyvar fizera vários meses antes. Para salvar Régis das pedras que caíam no desabamento de
uma torre, Guenhwyvar levara o halfling numa jornada -s aos planos da existência. Drizzt agarrou a pelagem espessa da pantera.
- Leve-me à terra do espírito - instruiu ele. - Para o próprio plano dele, onde minhas penetrarão fundo seu ser substancial.
O espírito apareceu novamente ao mesmo tempo em que Drizzt e o gato desapareciam numa outra nuvem.
- Continue golpeando! - Bruenor disse ao seu companheiro. -.
Mantenha a coisa na forma de fumaça prá ela não conseguir te atacar!
- Drizzt e o gato se foram! - gritou Wulfgar.
- Para a terra do espírito - explicou Bruenor.
Drizzt levou um bom tempo para se orientar. Ele adentrara um lugar de realidades diferentes, uma dimensão onde tudo, até mesmo sua própria pele, assumia o
mesmo tom de cinza, sendo os objetos apenas distinguíveis por uma delicada e bruxuleante linha negra que lhes servia de contorno. Sua percepção de profundidade era
inútil, pois não havia sombreados e nenhuma fonte discernível de luz para utilizar como referência. E não achava onde pôr os pés, nada tangível abaixo dele, nem
mesmo conseguia saber que direção era para cima ou para baixo. Esses conceitos não pareciam fazer sentido ali.
Ele distinguiu os contornos cambiantes do Pégaso quando este saltava entre os planos, nunca inteiramente num ou noutro lugar. Tentou se aproximar do animal
e descobriu que a propulsão era um ato da mente e o corpo automaticamente seguia as instruções da vontade. Ele se deteve diante das linhas cambiantes, a cimitarra
mágica erguida para golpear quando o alvo aparecesse inteiramente.
Então, o contorno do Pégaso se completou, e Drizzt enterrou sua espada na bruxuleante linha negra que lhe marcava a forma. A linha se transformou, arqueou-se,
e o contorno da cimitarra também estremeceu, pois ali até mesmo as propriedades da lâmina de aço assumiam uma composição diferente. Mas o aço se mostrou o mais forte,
e a cimitarra retomou seu fio recurvo e perfurou a linha do espírito. Veio então uma súbita titilação no gris, como se a linha do espírito estremecesse num arrepio
de agonia.
Wulfgar viu a nuvem de fumaça se evolar de repente, quase se rematerializando na forma do espírito.
- Drizzt! - gritou para Bruenor. - Ele está enfrentando o espírito em pé de igualdade!
- Prepare-se, então! - Bruenor respondeu ansiosamente, apesar de saber que seu próprio papel na luta havia terminado. - Pode ser que o drow traga a
coisa de volta prá você por tempo suficiente para um golpe! - Bruenor abraçou o próprio corpo, tentando arrancar o frio de seus ossos, e tropeçou na forma imóvel
do halfling.
O espírito se voltou contra Drizzt, mas a cimitarra o golpeou novamente. E Guenhwyvar lançou-se na refrega, as grandes garras do gato a dilacerar o contorno
negro do inimigo. O Pégaso se afastou com um giro sobre as patas compreendendo que não tinha qualquer vantagem contra inimigos u próprio plano. Seu único recurso
era se retirar para o plano material.
Onde Wulfgar aguardava.
Assim que a nuvem retomou sua forma, Garra de Palas a golpeou. Wulfgar sentiu um golpe consistente por apenas um instante e compreendeu que atingira o alvo.
Então, a fumaça foi como que soprada para longe.
O espírito voltou para Drizzt e Guenhwyvar, mais uma vez enfrentando as tocadas e arranhões implacáveis dos dois. Trocou de planos novamente e Wulfgar desferiu
um golpe rápido. Encurralado e sem ter para onde fugir, o espírito recebia golpes em ambos os planos. Toda vez que se materializava diante de Drizzt, o drow percebia
que seu contorno surgia mais fino e menos resistente aos seus golpes. E toda vez que a nuvem se rematerializava diante de Wulfgar, sua densidade diminuía. Os amigos
haviam vencido e Drizzt assistiu satisfeito, à essência do Pégaso livrar-se da forma material e flutuar para longe através do gris.
Leve-me para casa - o cansado drow instruiu Guenhwyvar. Um instante depois, ele estava de volta ao campo, ao lado de Bruenor e Régis.
- Ele vai viver - Bruenor declarou categoricamente em resposta ao olhar interrogativo de Drizzt. - Acho que ele 'tá é desmaiado, não morto.
A uma pequena distância dali, Wulfgar também estava curvado sobre uma forma, prostrada, deturpada e aprisionada numa transformação a meio caminho entre homem
e animal.
- Torlin, filho de Jerek - explicou Wulfgar. Ele ergueu os olhos para o acampamento dos bárbaros. - Valric fez isto. O sangue de Torlin suja-lhe as
mãos!
- Opção de Torlin, talvez? - ofereceu Drizzt.
Nunca! - insistiu Wulfgar. - Quando nos enfrentamos no desafio, meus olhos viram honra. Ele era um guerreiro. Nunca teria permitido isto! - Ele deu um passo
para longe do cadáver, deixando que os restos mutilados enfatizassem o horror da possessão. Na postura paralisada da morte, o rosto de Torlin retivera parte dos
traços de um homem e parte do espírito eqüino.
- Ele era filho do chefe deles - explicou Wulfgar. - Não poderia recusar o pedido do xamã.
- Foi corajoso ao aceitar esse destino - observou Drizzt.
- Filho do chefe deles? - riu Bruenor, desdenhoso. - Parece que a gente colocou mais inimigos ainda na estrada atrás da sente! Eles vão querer ajustar as
contas.
- E eu também! - proclamou Wulfgar. - Você tem nas mãos o sangue dele, Valric, Olhar Alto! - ele berrou para a imensidão, os gritos a ecoar pelos outeiros
dos rochedos. Wulfgar olhou para trás, para seus amigos, e a fúria fervilhava em suas feições ao declarar soturnamente - Hei de vingar a desonra de Torlin.
Com um aceno da cabeça, Bruenor demonstrou sua aprovação à dedicação do bárbaro aos próprios princípios.
- Uma nobre missão - concordou Drizzt, estendendo sua espada para o leste, em direção a Sela Longa, a próxima parada em sua jornada. - Mas para um outro dia.


6. PUNHAL E CAJADO

Entreri estava de pé sobre uma colina a alguns quilômetros da Cidade das Velas, a fogueira do acampamento lucilava logo atrás dele. Régis e companhia haviam
se utilizado daquele mesmo lugar em sua última parada antes de entrar em Luskan e, de fato, a fogueira do assassino ardia na mesmíssima coivara. Mas, não era uma
coincidência. Entreri imitara cada movimento do grupo do halfling desde que lhes encontrara o rastro logo ao sul da Espinha do Mundo. Movia-se com eles, seguindo-lhes
de perto os progressos num esforço para compreender melhor suas ações.
Agora, ao contrário do grupo que perseguia, os olhos de Entreri não repousavam sobre a muralha da cidade, nem mesmo se voltavam em direção a Luskan. Várias
fogueiras haviam surgido no norte, em meio à escuridão, na estrada que levava a Dez-Burgos. Não era a primeira vez que aquelas luzes apareciam às suas costas, e
o assassino sentia que também era seguido. Ele havia desacelerado seu ritmo frenético, imaginando que poderia facilmente recobrar o tempo perdido enquanto os companheiros
cuidavam de seus negócios em Luskan. Desejava proteger a própria retaguarda de todo e qualquer perigo antes de se concentrar em apanhar o halfling. Entreri havia
até mesmo deixado sinais indicadores de sua passagem, atraindo seus perseguidores cada vez mais para perto.
Ele aplacou as brasas da fogueira com a ponta do pé e voltou à sela, pois decidira ser melhor enfrentar uma espada pela frente do que um punhal pelas costas.
Cavalgou noite a dentro, confiante na escuridão. Era seu ambiente, onde cada sombra aumentava a vantagem de alguém que vivia nas sombras.
Ele amarrou a montaria antes da meia-noite, perto o bastante das fogueiras para completar a jornada a pé. Percebia agora que se tratava de uma caravana mercante,
algo nada incomum na estrada para Luskan naquela época do ano. Mas sua noção do perigo o incomodava. Os muitos anos de experiência haviam aguçado seus instintos
de sobrevivência, e ele sabia que não devia ignorá-los.
Insinuou-se no interior do acampamento, à procura do caminho mais fácil até o círculo de carroças. Os mercadores sempre dispunham muitas sentinelas ao redor
do perímetro de seus acampamentos e até mesmo os cavalos representavam um problema, pois os mantinham amarrados bem ao lado dos respectivos arreios.
Ainda assim, o assassino não desperdiçaria a viagem. Viera de muito longe e tinha a intenção de descobrir o propósito daqueles que o seguiam. Deslizando sobre
o ventre, abriu caminho até o perímetro e começou a rodear o acampamento por sob o círculo defensivo. Silencioso demais para ser percebido até mesmo pelos ouvidos
mais atentos, ele passou por dois guardas que jogavam dados. Então, passou por sob e entre os cavalos, os animais a abaixar as orelhas de medo, embora não emitissem
nenhum som.
Depois de percorrer metade do círculo, ele quase se convenceu de que se tratava de uma caravana mercante comum e estava prestes a esgueirar-se de volta às
trevas quando ouviu uma familiar voz feminina:
- 'Cê disse que viu um ponto de luz ao longe. Entreri se deteve, pois reconheceu quem falava.
- É, logo ali - um homem respondeu.
Entreri se esgueirou entre as duas carroças seguintes e espiou. Os interlocutores estavam a uma pequena distância dele, atrás da carroça seguinte, perscrutando
a noite na direção de seu acampamento. Ambos estavam vestidos para a batalha, e a mulher carregava comodamente sua espada.
- Subestimei você - sussurrou Entreri para si mesmo ao ver Cattiebrie. O punhal ajaezado já estava em sua mão. - Um erro que não repetirei - acrescentou,
depois se abaixou e procurou uma trilha que o levasse até o alvo.
- 'Cês foram bons prá mim, me trazendo tão rápido - disse Cattiebrie. - 'Tô te devendo, assim como Régis e os outros.
- Então, diga-me - o homem insistiu. - Para que a pressa?
Cattiebrie lutou com a lembrança do assassino. Ela ainda não se conformara com o pavor que sentira naquele dia, na casa do halfling, e sabia que não o faria
até que tivesse vingado as mortes dos dois amigos anões e resolvido sua própria humilhação. Seus lábios se apertaram e ela não respondeu.
- Como queira - cedeu o homem. - Seus motivos justificam a pressa, não temos dúvida. Se parecemos nos intrometer, isso apenas demonstra nosso desejo
de ajudar você como pudermos.
Cattiebrie se voltou para ele com um sorriso de sincero apreço no rosto. Já se dissera o bastante, e os dois ficaram ali, fitando em silêncio o horizonte
inane.
Silenciosa também foi a aproximação da morte.
Entreri se esgueirou por baixo da carroça e ergueu-se subitamente entre os dois, uma das mãos estendida para cada um deles. Agarrou o pescoço de Cattiebrie
com força suficiente para impedir que ela gritasse e silenciou o homem para todo o sempre com seu punhal.
Olhando por sobre os ombros de Entreri, Cattiebrie viu a horrenda expressão petrificada no rosto de seu companheiro, mas não conseguiu entender porque ele
não gritara, pois sua boca não estava coberta.
Entreri alterou ligeiramente sua posição e ela compreendeu. Apenas o abo do punhal ajaezado era visível, a cruzeta rente ao lado inferior do queixo do homem.
A lâmina delgada encontrara o cérebro do mercador antes que ele sequer percebesse o perigo. Entreri usou o punho da arma para conduzir sua vítima silenciosamente
até o chão, depois a arrancou.
Mais uma vez, a mulher se viu paralisada diante do horror de Entreri. Sentiu que deveria se livrar dele e alertar o acampamento, muito embora ele certamente
a matasse. Ou sacar sua espada e ao menos tentar resistir. Mas ela apenas observou, impotente, enquanto Entreri lhe retirava o próprio punhal do cinto e, trazendo-a
consigo, abaixava-se para inserir a arma no ferimento fatal.
Então, ele tirou-lhe a espada e a empurrou para baixo da carroça e dali para longe do perímetro do acampamento.
Por que não consigo gritar? - ela se perguntou repetidas vezes, pois o assassino, confiante no nível de terror que inspirava, nem mesmo a segurava enquanto
os dois se esgueiravam noite adentro. Ele sabia, e Cattiebrie tinha de admitir para si mesma, que ela não entregaria a própria vida com tanta facilidade.
Por fim, quando já estavam a uma distância segura do acampamento, ele a fez girar para encará-lo, e também ao punhal.
- Seguir-me? - perguntou, rindo dela. - O que você ganharia com isso?
Ela não respondeu, mas descobriu que sua força retornava. Entreri também o sentiu.
- Se você gritar, vou matá-la. - declarou categoricamente. - E então, juro, hei de retornar aos mercadores e matá-los a todos também!
Ela acreditou.
- Eu geralmente viajo com os mercadores - mentiu, controlando o tremor em sua voz. -É um dos deveres de meu posto como soldado de Dez-
Burgos.
Entreri riu da moça novamente. Depois, desviou o olhar em direção ao nada, e suas feições assumiram um ar introspectivo.
- Talvez isto me seja vantajoso - disse ele retoricamente, pois o início de um plano tomava forma em sua mente.
Cattiebrie o estudou, preocupada com a possibilidade de que ele tivesse descoberto algum modo de transformar sua expedição em algo danoso para seus amigos.
- Não vou matar você, ainda não - disse ele. - Quando encontrarmos o halfling, os amigos dele não o defenderão. Por sua causa.
- Não vou fazer nada prá te ajudar! - foi a resposta veemente de Cattiebrie. - Nada!
- Precisamente - sibilou Entreri. - Você não há de fazer nada. Não com uma faca no seu pescoço - levou a arma à garganta dela numa mórbida provocação
-, arranhando sua pele macia. Quando meus negócios estiverem acabados, moça corajosa, seguirei em frente e você há de ficar com a sua vergonha e a sua culpa. E as
suas explicações aos mercadores, que acreditam que você assassinou o companheiro deles! - Na verdade, Entreri não acreditou por um instante sequer que seu truque
com o punhal de Cattiebrie enganaria os mercadores. Era meramente uma arma psicológica endereçada à moça, destinada a instilar ainda mais uma dúvida e outra preocupação
em sua confusão de emoções.
Cattiebrie não respondeu às declarações do assassino com o menor sinal de emoção. Não, ela disse para si mesma, não vai ser desse jeito!
Mas, no fundo, ela imaginava se sua determinação apenas disfarçava o medo, sua própria crença de que seria contida novamente pelo horror da presença de Entreri
e de que a cena se desenrolaria exatamente como ele havia previsto.
Jierdan encontrou o acampamento sem muita dificuldade. Dendibar usara sua mágica para rastrear o misterioso cavaleiro por todo o caminho desde as montanhas
e havia enviado o soldado na direção correta.
Tenso, a espada desembainhada, Jierdan entrou no acampamento. O lugar estava deserto, mas não havia muito tempo. Mesmo a alguns metros de distância, o soldado
de Luskan sentia o calor agonizante da fogueira. Agachando-se para disfarçar sua silhueta contra a linha do horizonte, rastejou em direção a uma mochila e um cobertor
bem ao lado do fogo.
Entreri conduziu lentamente sua montaria de volta ao acampamento, esperando que o que deixara para trás pudesse ter atraído alguns visitantes. Cattiebrie
vinha sentada diante dele, amarrada e amordaçada com toda segurança, embora ela acreditasse inteiramente, para seu desagrado, que seu próprio terror tornava desnecessárias
as amarras.
O cauteloso assassino percebeu que alguém entrara no acampamento antes mesmo de se aproximar do local. Escorregou de sua sela, levando a prisioneira consigo.
- Um corcel nervoso - explicou, obviamente deleitando-se com o aviso soturno enquanto amarrava Cattiebrie às patas traseiras do cavalo. - Se você se
debater, ele vai escoiceá-la até a morte.
Então, Entreri desapareceu, misturando-se à escuridão como se ele próprio fosse uma extensão das trevas.
Jierdan deixou a mochila cair de volta ao chão, frustrado, pois o conteúdo da mesma nada mais era que o equipamento comum de viagem e nada revelava sobre
o dono. O soldado era um veterano de muitas campanhas e derrotara tanto homens quanto orcs centenas de vezes, mas agora estava nervoso, sentindo algo de incomum
e mortífero a respeito daquele cavaleiro. Um homem com a coragem de cavalgar sozinho pelo trajeto selvagem desde o Vale do Vento Gélido até Luskan não era um guerreiro
inexperiente.
Jierdan se sobressaltou, mas não ficou demasiado surpreso, quando a ponta de um punhal veio descansar subitamente na cavidade vulnerável em sua nuca, logo
abaixo da base do crânio. Ele não se moveu e nada disse, esperando que o cavaleiro pedisse alguma explicação antes de fazer uso da arma.
Entreri viu que sua mochila fora vasculhada, mas reconheceu o uniforme forrado de peles e sabia que aquele homem não era um ladrão.
- Estamos fora das fronteiras de sua cidade - disse ele, segurando a faca com firmeza. - O que você quer no meu acampamento, soldado de Luskan?
- Sou Jierdan do portão norte - ele respondeu. - Vim encontrar um cavaleiro proveniente do Vale do Vento Gélido.
- Que cavaleiro?
- Você.
Entreri se sentiu perplexo e incomodado com a resposta do soldado. Quem enviara aquele homem e como soubera onde procurar? Os primeiros pensamentos do assassino
se concentraram no grupo de Régis. Talvez o halfling tivesse conseguido alguma ajuda da guarda da cidade. Entreri devolveu a faca à sua bainha, certo de que poderia
recuperá-la a tempo de repelir qualquer ataque.
Jierdan também compreendeu a serena confiança do ato e toda idéia que pudesse ter de atacar aquele homem desapareceu.
- Meu mestre deseja uma audiência - disse ele, pensando ser aconselhável se explicar melhor. - Uma reunião para benefício de ambos.
- Seu mestre? - perguntou Entreri.
- Um cidadão de grande prestígio - explicou Jierdan. - Ele ficou sabendo de sua chegada e acredita que possa ajudá-lo em sua busca.
- O que ele sabe sobre os meus negócios? - rebateu Entreri, irritado por alguém ter se atrevido a espioná-lo. Mas também se sentiu aliviado, pois o
envolvimento de alguma outra estrutura de poder na cidade explicava muita coisa e eliminava, talvez, a suposição lógica de que o halfling estivesse por trás daquele
encontro.
Jierdan deu de ombros.
- Sou apenas o mensageiro. Mas eu também posso ser de ajuda para você. No portão.
- Dane-se o portão - rosnou Entreri. - Eu passaria pelas muralhas com facilidade. E uma rota mais direta até os lugares que procuro.
- Mesmo assim, conheço esses lugares e as pessoas que os controlam.
A faca saltou da bainha, intervindo e detendo-se pouco antes da garganta de Jierdan.
- Você sabe demais, mas explica pouco. É um joguinho perigoso, solda do de Luskan.
Jierdan não piscou.
- Quatro heróis, vindos de Dez-Burgos, chegaram a Luskan cinco dias atrás: um anão, um halfling, um bárbaro e um elfo negro. - Nem mesmo Artemis Entreri
conseguiu esconder um sinal de agitação diante da confirmação de suas suspeitas, e Jierdan o notou. - Desconheço-lhes a exata localização, mas conheço a área onde
estão se escondendo. Está interessado?
A faca retornou mais uma vez à sua bainha.
- Espere aqui - instruiu Entreri. - Tenho uma companheira que via jará conosco.
- Meu mestre disse que você cavalgava sozinho - questionou Jierdan.
O sorriso vil de Entreri fez um calafrio percorrer a espinha do soldado.
- Eu a adquiri - explicou ele. - Ela é minha e é tudo o que você precisa saber.
Jierdan não forçou a questão. Seu suspiro de alívio foi audível quando Entreri desapareceu de vista.
Cattiebrie cavalgou até Luskan desamarrada e sem a mordaça, mas o domínio de Entreri sobre ela não era menos aprisionador. O aviso que lhe dera ao buscá-la
no campo fora sucinto e inquestionável.
- Um gesto insensato - ele dissera - e você morre. E morre sabendo que o anão, Bruenor, há de sofrer por sua insolência.
O assassino nada mais dissera a Jierdan sobre ela, e o soldado não perguntou, embora a mulher o intrigasse, e bastante. Jierdan sabia que Dendibar obteria
as respostas.
Entraram na cidade ao fim daquela manhã, sob o olhar suspeito do Guardião do Dia do Portão Norte. O suborno custara a Jierdan uma semana de soldo, e ele sabia
que sua dívida seria ainda maior quando retornasse naquela noite, pois o acordo original com o Guardião do Dia permitia a passagem de forasteiro; nada fora dito
sobre a mulher. Mas, se as ações de Jierdan lhe trouxessem o favor de Dendibar, então os dois valeriam o preço.
De acordo com o código da cidade, os três deixaram seus cavalos no estábulo logo depois da muralha, e Jierdan conduziu Entreri e Cattiebrie pelas da Cidade
das Velas, passando pelos mercadores e mascates de olhos sonolentos que já haviam deixado suas casas desde antes do amanhecer, rumo ao próprio coração da cidade.
O assassino não se surpreendeu, uma hora depois, ao chegarem a um extenso bosque de densos pinheiros. Ele desconfiara que Jierdan estava de algum modo ligado
àquele lugar. Passaram por uma abertura na linha e viram-se diante da mais alta estrutura da Cidade, a Torre das Hostes Arcanas.
Quem é seu mestre? - Entreri perguntou bruscamente.
Jierdan casquinou, a coragem alentada pela visão da torre de Dendibar.
- Você vai conhecê-lo em breve.
- Hei de saber agora - grunhiu Entreri. - Ou nossa reunião está terminada. Estou dentro da cidade, soldado, e não mais necessito de sua assistência.
- Eu poderia fazer com que os guardas o expulsassem - devolveu Jierdan. - Ou coisa pior!
Mas Entreri deu a última palavra.
- Eles nunca encontrariam os restos do seu corpo - prometeu, e a fria certeza de seu tom de voz fez empalidecer as faces de Jierdan.
Cattiebrie percebeu a troca de ameaças com mais do que uma ligeira preocupação pelo soldado, imaginando se logo chegaria o momento em que poderia explorar
a natureza desconfiada de seus captores e disso extrair alguma vantagem.
- Sirvo a Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte - declarou Jierdan, encontrando forças na menção do nome de seu poderoso mestre.
Entreri ouvira o nome antes. A Torre das Hostes era um lugar-comum nos bochichos por toda a Luskan e a região circundante, e o nome de Dendibar, o Variegado,
surgia com freqüência em meio às conversas, que o descreviam como um mago ambicioso e ávido de poder, e insinuavam que o homem tinha um lado sombrio e sinistro que
lhe permitia conseguir o que desejava. Era perigoso, mas potencialmente um aliado poderoso. Entreri ficou satisfeito.
- Leve-me a ele agora - disse a Jierdan. - Vamos descobrir se temos ou não negócios a tratar.
Sidnéia esperava para escoltá-los a partir do vestíbulo da Torre das Hostes. Sem oferecer nem pedir apresentações, ela os conduziu através das passagens
serpeantes e portas secretas até o salão de audiências de Dendibar, o Variegado. O mago lá aguardava, em grande estilo, envergando suas mais finas vestes e tendo
diante dele um almoço fabuloso.
- Saudações, cavaleiro - disse Dendibar, depois dos necessários, apesar de incômodos, momentos de silêncio enquanto os dois lados mediam um ao outro.
- Sou Dendibar, o Variegado, como você já deve saber. Você e sua adorável companheira partilhariam de minha mesa?
A voz estridente do mago irritou os nervos de Cattiebrie e, apesar de não ter comido nada desde a ceia do dia anterior, ela não ansiava pela hospitalidade
daquele homem.
Entreri a empurrou.
- Coma - ordenou.
Ela sabia que Entreri a testava tanto quanto aos magos. Mas também chegara a hora de ela testar Entreri.
- Não - respondeu, fitando-o diretamente nos olhos.
Com as costas da mão, ele a arremessou ao chão. Jierdan e Sidnéia se sobressaltaram involuntariamente, mas, vendo que Dendibar não se dispunha a ajudar, rapidamente
se detiveram e voltaram a assistir à cena. Cattiebrie se afastou do assassino e permaneceu encolhida, na defensiva.
Dendibar sorriu para o assassino.
- Você respondeu algumas das minhas perguntas sobre a garota - disse ele, com um sorriso divertido. - A que propósito ela serve?
- Tenho minhas razões - foi tudo o que Entreri respondeu.
- E claro. E posso saber seu nome?
A expressão de Entreri não se alterou.
- Você procura os quatro companheiros de Dez-Burgos, eu sei - continuou Dendibar, sem desejar uma discussão. - Eu também os procuro, mas por razões
diferentes, estou certo.
- Você nada sabe sobre minhas razões - replicou Entreri.
- E nem me importo em sabê-las - riu o mago. - Podemos ajudar um ao outro a atingir nossos distintos objetivos. Isso é tudo o que me interessa.
- Não estou pedindo ajuda. Dendibar riu novamente.
- Eles são uma força poderosa, cavaleiro. Você os subestima.
- Talvez - respondeu Entreri. - Você perguntou pelo meu propósito, mas não ofereceu o seu. Que negócios a Torre das Hostes tem com os viajantes de
Dez-Burgos?
- É justo - respondeu Dendibar. - Mas devo esperar até que tenhamos formalizado um acordo antes de apresentar a resposta.
_ Então nem vou dormir direito de tanta preocupação - foi a réplica veemente de Entreri.
Mais uma vez, o mago gargalhou. - Pode ser que você mude de idéia antes do fim desta audiência - disse e de. - Por enquanto, ofereço um sinal de boa fé.
Os companheiros estão na cidade. No porto. Deveriam hospedar-se no Alfanje. Conhece? Entreri assentiu, agora muito interessado nas palavras do mago.
- Mas nós os perdemos nas vielas da parte oeste da cidade - explicou Dendibar, lançando um olhar feroz para Jierdan, o que fez o soldado trocar de pé apreensivamente.
- E qual é o preço dessa informação? - perguntou Entreri.
Nada - respondeu o mago. - Contar-lhe isso promove minha causa.
Você obterá o que quer; o que eu desejo, guardo para mim.
Entreri sorriu, compreendendo que Dendibar tinha a intenção de usá-lo como um cão de caça para farejar a presa.
- Minha aprendiza vai lhe indicar a saída - disse Dendibar, fazendo sinal para Sidnéia.
Entreri se virou para sair, detendo-se para confrontar o olhar de Jierdan.
- Fique longe do meu caminho, soldado - avisou o assassino. - Depois de banquetear-se o leão, é a vez dos abutres!
- Quando ele tiver me levado ao drow, vou arrancar-lhe a cabeça - grunhiu Jierdan quando os três se foram.
- E melhor ficar longe desse aí - instruiu Dendibar. Jierdan fitou o mago, confuso.
- Sem dúvida você o quer sob vigilância.
- Certamente - concordou Dendibar. - Mas é uma tarefa para Sidnéia, não para você. Guarde sua raiva - Dendibar disse a ele, notando-lhe a carranca
de ultraje. - Preservo sua vida. Seu orgulho é imenso, e você fez jus a esse direito. Mas esse aí está além de suas habilidades, meu amigo. Ele o teria apunhalado
antes mesmo que você lhe notasse a presença.
Do lado de fora, Entreri conduziu Cattiebrie para longe da Torre das Hostes sem uma palavra, repetindo e revisando silenciosamente a reunião, Pois sabia que
aquela não seria a última vez em que veria Dendibar e seus colegas.
Cattiebrie também ficou feliz com o silêncio, absorta em suas próprias contemplações. Por que um mago da Torre das Hostes estaria à procura de Bruenor e
dos demais? Vingança em nome de Akar Kessell, o mago ensandecido que seus amigos haviam ajudado a derrotar antes do último inverno? Ela olhou para trás, para a estrutura
em forma de árvore, e para o assassino ao lado dela, atônita e horrorizada com a atenção que seus amigos haviam atraído.
Então, ela perscrutou seu próprio coração, reavivando seu espírito e sua coragem. Drizzt, Bruenor, Wulfgar e Régis iriam precisar de sua ajuda antes do fim
de tudo aquilo. Ela não podia decepcioná-los.


CONTINUA

Sobre um trono escuro, num lugar escuro, empoleirava-se o dragão das sombras. Não era uma serpente muito grande, mas a mais abominável de todas. Sua mera presença, trevas; as garras, espadas desgastadas por milhares de matanças; a bocarra, sempre quente com o sangue das vítimas; o hálito negro, desespero.
Um manto negro e lustroso eram suas escamas experimentadas, tão preciosas em sua negritude que brilhavam em cores distintivas, uma aparência cintilante de beleza para um monstro desarmado. Seus sequazes o denominavam Trêmulo Obscuro e prestavam-lhe todas as honras.
Reunindo sua força no decorrer dos séculos, como fazem os dragões, Trêmulo Obscuro mantinha as asas dobradas para trás e não se movia, exceto para engolir um sacrifício ou punir um subalterno insolente. Fizera sua parte para conquistar aquele lugar, desbaratando o grosso do exército anão que permanecera para confrontar os aliados da serpente.
Como o dragão comera bem naquele dia! As peles dos anões eram rijas e cheias de músculos, mas uma bocarra de dentes afiados como navalhas era perfeita para esse tipo de refeição.
E, agora, os inúmeros escravos do dragão faziam todo o trabalho, trazendo-lhe comida e atendendo-lhe todos os desejos. Chegaria o dia em que precisariam do poder do dragão novamente e Trêmulo Obscuro estaria pronto. A imensa pilha de tesouros roubados sob o dragão era o que nutria sua força e, nesse aspecto, Trêmulo Obscuro era insuperável entre os de sua espécie, pois possuía um tesouro além da imaginação do mais rico dos reis.
E uma hoste de sequazes leais, escravos voluntários do dragão das trevas.
O vento frio que dava ao Vale do Vento Gélido seu nome silvava nos ouvidos deles, o lamento incessante a eliminar a conversa casual de que os quatro amigos geralmente desfrutavam. Iam para o oeste, através da tundra estéril, e o vento, como sempre, vinha do leste, detrás deles, e acelerava o ritmo já forte do grupo.
A postura e o ímpeto determinado dos passos refletiam a ânsia de uma demanda recém iniciada, mas a face de cada aventureiro revelava um ponto de vista diferente em relação à jornada.
O anão, Bruenor Martelo de Batalha - o torso inclinado adiante, as pernas atarracadas a marchar sob o corpo e o nariz agudo a se projetar acima da grenha de barba ruiva e oscilante -, seguia na liderança. Parecia petrificado, separado das pernas e da barba; o machado tantas vezes chanfrado era carregado com firmeza em suas mãos nodosas, sempre à frente; o escudo, ornamentado com o brasão da caneca espumante, vinha amarrado firmemente às costas da mochila abarrotada; e a cabeça, adornada com um elmo de chifres várias vezes amassado, jamais se voltava para os lados. Tampouco seus olhos se desviavam do caminho e raramente piscavam. Bruenor iniciara aquela jornada para encontrar a antiga terra natal do clã Martelo de Batalha e, embora compreendesse inteiramente que os salões argênteos de sua infância estivessem a centenas de quilômetros de distância, ele seguia em frente com passos pesados e o fervor de alguém cuja meta a muito esperada se encontra claramente à vista.
Ao lado de Bruenor, o imenso bárbaro também estava ansioso. Wulfgar acompanhava-o sem dificuldade, os grandes passos das pernas compridas igualavam com facilidade o ritmo forte do anão. Havia algo de urgente em sua figura, como um corcel fogoso sob rédeas curtas. Chamas ávidas pela aventura ardiam em seus olhos claros, tão nitidamente como nos de Bruenor, mas, ao contrário do anão, o olhar de Wulfgar não se fixava na estrada retilínea diante deles. Era um rapaz que deixava o lar pela primeira vez para ver o mundo, e ele olhava continuamente ao redor, absorvendo cada imagem e sensação que a paisagem tinha a oferecer.
Viera junto para ajudar seus amigos naquela aventura, mas viera também para expandir os horizontes de seu próprio mundo. Passara a totalidade de sua juventude dentro dos segregantes limites naturais do Vale do Vento Gélido, restringindo suas experiências às antigas tradições de seus companheiros de tribo e aos povos pioneiros de Dez-Burgos.
Havia mais coisas lá fora, Wulfgar sabia, e estava determinado a aprender tanto quanto pudesse.
Drizzt Do'Urden estava menos interessado; a figura envolta num manto a caminhar rápida e desembaraçadamente ao lado de Wulfgar. O passo desenvolto denunciava sua herança élfica, mas as sombras do capuz baixo sugeriam algo mais. Drizzt era um drow, um elfo negro, habitante do mundo subterrâneo desprovido de luz. Passara vários anos na superfície, negando sua herança, mas descobrira que não conseguia escapar à aversão pelo sol inerente ao seu povo.
E, assim, ele se recolhia à sombra de seu capuz, o passo indiferente, até mesmo resignado, pois aquela viagem era meramente uma continuação de sua existência, mais uma aventura numa série perpétua de aventuras. Renunciando ao seu povo da cidade escura de Menzoberranzan, Drizzt Do'Urden tinha voluntariamente adotado uma vida nômade. Ele sabia que jamais seria verdadeiramente aceito na superfície; seu povo era considerado demasiado vil (e com razão) para que até mesmo as comunidades mais tolerantes o acolhessem. A estrada era seu lar agora; estava sempre viajando para se esquivar à angústia inevitável de ser forçado a sair de um lugar que poderia chegar a amar.
Dez-Burgos havia sido um refúgio temporário. O povoado dos ermos mais remotos abrigava uma grande proporção de ladinos e párias e, embora Drizzt não fosse visivelmente bem-vindo, sua reputação como guardião das fronteiras das vilas, adquirida a duras penas, havia lhe angariado certo grau de respeito e tolerância por parte de muitos dos colonos. Bruenor, porém, tinha-o como um amigo de verdade e Drizzt havia voluntariamente seguido o anão naquela viagem, apesar de temer que o tratamento que receberia assim que deixasse a área de influência de sua reputação não seria nada civilizado.
De vez em quando, Drizzt deixava-se ficar para trás uns dez ou doze metros para ver como se saía o quarto membro do grupo. Bufando, Régis, o halfling, era o último membro da trupe (e não por sua escolha), o ventre demasiado abundante para a estrada e as pernas curtas demais para acompanhar os passos contínuos do anão.
Pagando, agora, pelos meses de luxo de que desfrutara no palacete em Brin Shander, Régis amaldiçoava a reviravolta da sorte que o forçara a pegar a estrada. Seu maior amor era o conforto, e ele se esforçava para aperfeiçoar as artes do comer e do dormir com a mesma diligência com que um rapaz de sonhos heróicos brandia a primeira espada. Seus amigos ficaram verdadeiramente surpresos quando ele se juntou ao grupo, mas também felizes por tê-lo como companhia, e até mesmo Bruenor, tão desesperado para rever sua antiga terra natal, teve o cuidado de não ditar o ritmo muito além da capacidade de Régis em acompanhá-lo.
Sem dúvida, Régis se forçava até os limites de sua resistência, e sem as costumeiras reclamações. Ao contrário de seus companheiros, porém, cujos olhos se dirigiam para a estrada adiante, ele continuava a olhar de relance por sobre o ombro, em direção a Dez-Burgos e ao lar que tão misteriosamente abandonara para tomar parte na jornada.
Era com certa preocupação que Drizzt notava aquilo.
Régis estava fugindo de alguma coisa.
Os companheiros continuaram seguindo para oeste durante vários dias. Ao sul, os picos nevados das montanhas pontiagudas, a Espinha do Mundo, corriam paralelamente a seu trajeto. Aquela cordilheira marcava o limite sul do Vale do Vento Gélido, e os companheiros se mantinham alertas, esperando pelo fim da mesma. Quando os picos mais ocidentais desaparecessem e dessem lugar ao terreno plano, eles se dirigiriam para o sul, descendo o desfiladeiro entre as montanhas e o mar, deixariam totalmente o vale e percorreriam os últimos cento e cinqüenta quilômetros até a cidade costeira de Luskan.
De volta à trilha a cada manhã, antes que o sol nascesse às suas costas, eles prosseguiam até encontrar as últimas linhas róseas do crepúsculo, quando então paravam para acampar na última oportunidade antes de o vento frio se revestir de seu glacial ar noturno.
Então, estavam de volta à estrada mais uma vez, antes da aurora, cada um deles a correr confinado na solidão de suas próprias perspectivas e de seus próprios temores.
Uma jornada silenciosa, a não ser pelo murmúrio incessante do vento leste.

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LIVRO UM
BUSCAS

Rezo para que nunca se acabem os dragões do mundo. Digo isso com toda a sinceridade, embora tenha tomado parte na morte de uma das grandes serpentes. Pois
o dragão é o inimigo quintessencial, o maior dos adversários, o epítome inconquistável da devastação. O dragão, acima de todas as outras criaturas - mesmo dos demônios
e diabos -, evoca imagens de esplendor sombrio, da grande fera enrodilhada e adormecida sobre o maior dos tesouros. São o teste supremo do herói e o medo supremo
da criança. São mais velhos que os elfos e mais afeitos à terra que os anões. Os grandes dragões representam a besta sobrenatural, o elemento fundamental da besta,
aquela parte mais sombria de nossa imaginação.
Os magos não lhes conhecem as origens, apesar de acreditarem que um grande mago, um deus dos magos, deve ter desempenhado algum papel na criação dessas feras.
Os elfos, com suas longas fábulas que explicam a criação de cada aspecto do mundo, têm muitas histórias antigas sobre as origens dos dragões, mas admitem, reservadamente,
que não fazem realmente a menor idéia de como os dragões vieram a existir.
Minha própria crença é, de longe, a mais simples e, contudo, a mais complicada. Acredito que os dragões apareceram no mundo imediatamente após a criação da
primeira raça pensante. Não dou crédito a nenhum deus ou mago por essa criação, e sim a mais básica imaginação - urdida a partir de medos invisíveis - desses primeiros
mortais racionais.
Criamos os dragões como criamos os deuses, porque precisamos deles; porque, em algum lugar no fundo de nossos corações, reconhecemos que um mundo sem dragões
é um mundo no qual não vale a pena viver.
Há tantas pessoas na terra que querem uma resposta, uma resposta definitiva; para tudo na vida e mesmo para tudo o que possa haver depois da vida. Estudam
e testam, e porque esses poucos encontram as respostas para algumas perguntas simples, supõem que deve haver respostas para todas as perguntas. Como era o mundo
antes de existirem as pessoas? Será que nada existia a não ser trevas antes do sol e das estrelas? Será que existia alguma coisa? O que éramos nós, cada um de nós,
antes de nascermos? E o que - o mais importante de tudo - seremos após morrermos?
Por compaixão, espero que esses questionadores nunca encontrem o que procuram.
Um autoproclamado profeta se apresentou em Dez-Burgos negando a possibilidade de uma pós-vida, alegando que as pessoas que morreram e foram ressuscitadas
pelos clérigos na verdade jamais haviam morrido e que suas alegações sobre experiências além-túmulo eram um truque elaborado de seus próprios corações, um ardil
para facilitar o caminho em direção ao nada. Pois isso é tudo o que havia, dizia ele, um vazio, um nada.
Jamais em minha vida ouvi falar de alguém que implorasse tão desesperadamente para que provassem que ele estava errado.
Pois o que nos restará se não sobrar nenhum mistério? Que esperança poderemos encontrar se soubermos todas as respostas?
O que é isso dentro de nós, então, que quer negar tão desesperadamente a magia e desvendar o mistério? Medo, eu presumo, baseado nas muitas incertezas da
vida e na incerteza maior ainda da morte. Ponha esses medos de lado, digo eu, e viva livre deles, pois, se dermos apenas um passo para trás e observarmos a verdade
do mundo, descobriremos que, de fato, há magia ao nosso redor, inexplicável por meio de números e fórmulas. O que é, se não mágica, a paixão evocada pelo discurso
arrebatador do comandante antes da batalha desesperada? O que é, se não mágica, a paz que uma criança encontra nos braços da mãe? O que é o amor, se não mágica?
Não, eu não gostaria de viver num mundo sem dragões, assim como não gostaria de viver num mundo sem magia, pois esse é um mundo sem mistério e um mundo sem
fé.
E esse, temo eu, seria o truque mais cruel de todos para qualquer ser consciente e racional.

1. UM PUNHAL NAS COSTAS

Ele trazia o manto fechado e bem junto ao corpo, apesar da pouca luz que entrava pelas janelas acortinadas, pois essa era sua existência, dissimulada e solitária.
A trilha do assassino.
Enquanto outras pessoas se ocupavam das próprias vidas, deleitando-se nos prazeres da luz do sol e na bem-vinda visibilidade de seus vizinhos, Artemis Entreri
ficava nas sombras, as órbitas dilatadas de seus olhos focalizadas na senda estreita que devia tomar para completar sua mais recente missão.
Ele era de fato um profissional, talvez o melhor em todo o território dos reinos em seu ofício atroz, e quando farejava o rastro da presa, a vítima jamais
escapava. Portanto, o assassino não se incomodou com a casa vazia que encontrou em Brin Shander, a cidade principal dos dez povoados nos ermos do Vale do Vento Gélido.
Entreri suspeitara que o halfling havia fugido de Dez-Burgos. Mas não importava; se aquele fosse realmente o mesmo halfling que ele vinha seguindo desde Calimporto,
mais de mil e quinhentos quilômetros ao sul, o progresso que fizera superava suas expectativas. Seu alvo não tinha mais do que duas semanas de vantagem e o rastro
estaria bem fresco.
Entreri percorreu a casa calma e silenciosamente, procurando pistas sobre a vida que o halfling ali levara e que lhe dariam a vantagem quando do confronto
inevitável. A desordem o saudou em cada sala: o halfling partira às pressas, provavelmente ciente de que o assassino estava fechando o cerco.
Entreri considerou aquilo um bom sinal, aumentando ainda mais suas suspeitas de que esse halfling, Régis, era o mesmo Régis que servira ao Paxá Pûk, anos
atrás, na distante cidade do sul.
O assassino sorriu maldosamente ao pensar que o halfling sabia que estava sendo acossado, o que aumentava o desafio da caçada, pois Entreri media sua perícia
de caçador contra a habilidade de se esconder da futura vítima. Mas Entreri sabia que o resultado final era previsível, pois as pessoas assustadas invariavelmente
cometiam um erro fatal.
O assassino encontrou o que procurava numa gaveta de escrivaninha no quarto principal. Fugindo às pressas, Régis negligenciara as precauções para ocultar
sua verdadeira identidade. Entreri segurou o pequeno anel diante de seus olhos brilhantes, estudando a inscrição que claramente identificava Régis como um membro
da guilda de ladrões do Paxá Pûk em Calimporto. Entreri cerrou o punho em volta do sinete e um sorriso maldoso se espalhou por seu rosto.
- Encontrei você, ladrãozinho - ele riu para o vazio da sala. - Seu destino está selado. Não há para onde fugir!
A mudança abrupta em sua expressão revelou seu estado de prontidão assim que o som de uma chave na porta da frente do palacete ecoou pelo corredor da grande
escadaria. Deixou cair o anel em sua escarcela e esgueirou-se, silencioso como a morte, até as sombras dos pilares superiores do pesado corrimão da escada.
As grandes portas duplas se abriram e entraram um homem e uma moça, vindos do pórtico, à frente de dois anões. Entreri conhecia o homem: Cássio, o representante
de Brin Shander. Ali fora sua casa outrora, mas ele havia renunciado a ela vários meses antes em favor de Régis, depois das ações heróicas do halfling na batalha
da vila contra o mago maligno, Akar Kessell, e seus sequazes goblins.
Entreri também vira a outra humana antes, embora ainda não tivesse descoberto a ligação entre ela e Régis. Mulheres bonitas eram uma raridade naquela colônia
remota, e a moça era, de fato, a exceção. Brilhantes cachos castanho-avermelhados dançavam alegremente em torno de seus ombros; a luz intensa dos olhos azul-escuros
era capaz de aprisionar irremediavelmente qualquer homem em suas profundezas.
O nome dela, o assassino descobrira, era Cattiebrie. Ela vivia com os anões no vale ao norte da cidade, mais especificamente com o líder do clã, Bruenor,
que a adotara como sua própria filha uns doze anos antes, quando um ataque-surpresa dos goblins a deixara órfã.
Aquele encontro poderia se mostrar valioso, refletiu Entreri. Junto aos postes do corrimão, prestou atenção para ouvir a discussão lá embaixo.
- Só faz uma semana que ele foi embora! - argumentava Cattiebrie.
- Uma semana sem notícias - devolveu Cássio, obviamente contrariado. - E minha linda casa vazia e desprotegida. Ora, a porta da frente estava destrancada
quando passei por aqui alguns dias atrás!
- 'Cê deu a casa pro Régis - Cattiebrie lembrou o homem.
- Emprestei! - vociferou Cássio, embora, na verdade, a casa tivesse sido de fato um presente. O representante logo se arrependera de entregar a Régis
a chave daquele palácio, a habitação mais grandiosa ao norte de Mirabar. Em retrospectiva, Cássio compreendeu que fora arrebatado pelo ardor da espantosa vitória
sobre os goblins e desconfiava que Régis havia intensificado um pouco mais as emoções, usando os supostos poderes hipnóticos do pingente de rubi. Como outros que
haviam sido tapeados pelo persuasivo halfling, Cássio chegara a um panorama muito diferente dos acontecimentos, um panorama que pintava Régis desfavoravelmente.
- Não importa que nome 'cê dê a isso - cedeu Cattiebrie -, 'cê não devia se afobar tanto prá concluir que Régis abandonou a casa.
O rosto do representante ficou vermelho de fúria.
- Tudo fora ainda hoje! - exigiu ele. - Você tem a minha lista. Quero todos os pertences do halfling fora de minha casa! Tudo o que restar quando eu
voltar amanhã há de se tornar meu por direito adquirido! E vou avisando: haverá pesadas compensações se qualquer parte da minha propriedade estiver faltando ou tiver
sido danificada! - Ele girou sobre os calcanhares e saiu tempestuosamente portas afora.
- 'Tá bem irritado esse aí! - riu Arnês Mallot, um dos anões. - Nunca vi ninguém como Régis prá perder a lealdade dos amigos e ganhar o ódio dos velhos
companheiros.
Cattiebrie assentiu, concordando com a observação de Arnês. Ela sabia que Régis brincava com encantos mágicos e imaginou que os relacionamentos paradoxais
do halfling com os que o cercavam fossem um infeliz efeito colateral de sua própria leviandade.
- Cê acha que ele foi com Drizzt e Bruenor? - perguntou Arnês. Lá em cima, Entreri mudou de posição, ansioso.
- Sem dúvida - respondeu Cattiebrie. - Pediram o inverno inteiro prá ele se juntar à busca pelo Salão de Mitral e, com certeza, o fato de Wulfgar estar
indo junto só fez aumentar a pressão.
- Então, o nanico 'tá a meio caminho de Luskan, se não mais longe - raciocinou Arnês. - E Cássio tem razão em querer a casa de volta.
- Então, vamos começar a empacotar - disse Cattiebrie. - Cássio já tem coisas demais sem precisar juntar também os bens de Régis ao seu tesouro.
Entreri se recostou ao corrimão. O nome do Salão de Mitral lhe era desconhecido, mas ele conhecia bem o caminho para Luskan. Sorriu novamente, imaginando
se conseguiria alcançá-los antes que eles chegassem à cidade portuária.
Primeiro, porém, sabia que ainda poderia haver alguma informação valiosa a ser obtida ali. Cattiebrie e os anões se puseram a reunir os pertences do halfling
e, à medida que passavam de uma sala a outra, a sombra negra de Artemis Entreri, silenciosa como a morte, pairava sobre eles. Jamais suspeitaram de sua presença,
jamais teriam adivinhado que a ondulação suave nas cortinas era mais do que uma corrente de ar entrando pelas frestas da janela, ou que a sombra atrás da cadeira
era desproporcionalmente longa.
Ele conseguiu ficar perto o bastante para ouvir quase toda a conversa, e Cattiebrie e os anões falaram de pouca coisa além dos quatro aventureiros e da viagem
até o Salão de Mitral. Mas os esforços de Entreri de pouco lhe valeram. Já sabia dos afamados companheiros do halfling; todos em Dez-Burgos falavam deles com freqüência:
de Drizzt Do'Urden, o elfo drow renegado, que abandonara sua gente de pele escura nas entranhas dos Reinos e vagava pelas fronteiras de Dez-Burgos como um guardião
solitário contra as intromissões dos ermos do Vale do Vento Gélido; de Bruenor Martelo de Batalha, o líder valente do clã de anões que vivia no vale perto do Sepulcro
de Kelvin; e, principalmente, de Wulfgar, o poderoso bárbaro capturado e criado por Bruenor até a idade adulta, que havia retornado com as tribos selvagens do vale
para defender Dez-Burgos contra o exército de goblins e depois dera início a uma trégua entre todos os povos do Vale do Vento Gélido. Uma barganha que salvara -
e prometera enriquecer - as vidas de todos os envolvidos.
- Parece que você se cercou de aliados formidáveis, halfling - refletiu Entreri, recostando-se ao espaldar de uma grande cadeira enquanto Cattiebrie
e os anões passavam a uma sala contígua. - Serão de pouca ajuda. Você é meu!
Cattiebrie e os anões trabalharam durante quase uma hora, enchendo dois sacos grandes, principalmente com roupas. Cattiebrie estava estarrecida com a quantidade
de bens que Régis havia reunido desde seu suposto ato de heroísmo contra Kessell e os goblins - presentes, em sua maioria, de cidadãos agradecidos. Bem ciente do
amor do halfling pelo conforto, ela não conseguia entender o que dera nele para fugir pela estrada atrás dos demais. Mas o que realmente a espantava era o fato de
Régis não ter contratado carregadores para levar consigo ao menos alguns de seus pertences. E quanto mais tesouros ela descobria ao percorrer o palácio, mais a incomodava
todo aquele cenário de pressa e ímpeto. Não era nada típico de Régis. Tinha de haver algum outro fator, algum elemento perdido, que ela ainda não havia considerado.
- Bem, a gente já tem mais do que pode carregar, e é a maior parte das coisas de qualquer maneira! - declarou Arnês, levando um dos sacos ao ombro
robusto. - Quer saber, deixa o resto pro Cássio separar!
- Não vou dar a Cássio o prazer de reivindicar nenhuma dessas coisas - retorquiu Cattiebrie. - Pode ser que a gente ainda encontre outros objetos de
valor por aí. Vocês dois, levem os sacos de volta prós nossos quartos na estalagem. Vou terminar o trabalho por aqui.
- Ah, 'cê 'tá sendo boazinha com esse Cássio - resmungou Arnês. - Bruenor acertou quando disse que ele era um homem que gosta demais de contar o que
é seu!
- Seja justo, Arnês Mallot - retorquiu Cattiebrie, apesar de o sorriso de concordância desmentir a aspereza de seu tom de voz. - Cássio serviu bem
às vilas na guerra e tem sido um bom líder para o povo de Brin Shander. 'Cê sabe tão bem quanto eu que Régis tem o dom de deixar os gatos com os pêlos eriçados!
Arnês deu uma risadinha, concordando.
- Apesar de todos os jeitinhos que o nanico tem prá conseguir o que quer, ele deixou uma ou duas fileiras de vítimas irritadas! - Ele bateu no ombro
do outro anão, e os dois se dirigiram à porta principal.
- Não se atrase, menina - gritou Arnês para Cattiebrie. - Vamos voltar pras minas. Amanhã, no máximo!
- 'Cê reclama demais, Arnês Mallot - disse Cattiebrie, rindo.
Entreri considerou a última troca de palavras e mais uma vez um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ele conhecia bem o rastro dos encantos mágicos. As "vítimas
irritadas" que Arnês mencionara descreviam exatamente as pessoas que o Paxá Pûk havia tapeado em Calimporto. Pessoas encantadas pelo pingente de rubi.
As portas duplas se fecharam com um estrondo. Cattiebrie ficou sozinha no palacete - ou assim ela pensou.
Ela ainda refletia sobre o atípico desaparecimento de Régis. Suas suspeitas persistentes de que algo estava errado, de que faltava uma peça do quebra-cabeça,
começaram a alimentar dentro dela a sensação de que algo também estava errado ali na casa.
Repentinamente, Cattiebrie passou a notar cada ruído e cada sombra ao seu redor. O "tic-tac" de um relógio de pêndulo. O frufru das cortinas. O ruído de um
camundongo correndo por dentro das paredes de madeira.
Seus olhos dardejaram de volta às cortinas, ainda tremendo ligeiramente devido ao último movimento. Poderia ter sido uma corrente de ar através de uma fresta
na janela, mas a mulher alerta desconfiava de outra coisa. Agachando-se, num reflexo, e tentando alcançar o punhal em seu quadril, ela se lançou em direção à porta
aberta ao lado das cortinas.
Entreri movera-se rapidamente. Desconfiando que ainda havia mais a aprender com Cattiebrie, e nada disposto a deixar passar a oportunidade oferecida pela
saída dos anões, ele havia se esgueirado até a posição mais favorável para um ataque e agora esperava pacientemente no topo do estreito poleiro oferecido pela porta
aberta, equilibrado ali com a mesma facilidade com que um gato caminha sobre o peitoril da janela. Atentou para a aproximação da moça, o punhal a girar casualmente
em sua mão.
Cattiebrie sentiu o perigo assim que alcançou a porta e viu a forma escura caindo ao seu lado. Mas, por mais rápidas que fossem suas reações, seu próprio
punhal não deixara nem a metade da bainha antes que os dedos delgados de uma mão fria tivessem se fechado sobre sua boca, reprimindo um grito, e a lâmina afiada
de um punhal ajaezado houvesse marcado uma linha fina em sua garganta.
Estava atordoada e estarrecida. Nunca vira um homem se mover tão rápido, e a precisão mortífera do ataque de Entreri a amedrontou. Uma súbita tensão nos músculos
dele mostrou que, se ela persistisse em sacar a arma, estaria morta muito antes de poder usá-la. Largando o cabo do punhal, ela não fez nenhum outro gesto de resistência.
A força do assassino também a surpreendeu quando ele a ergueu facilmente até uma cadeira. Era um homem pequeno, esguio como um elfo, mal e mal da mesma altura
que ela, mas cada músculo de sua compleição compacta se achava na melhor forma para o combate. Sua própria presença exsudava uma aura de força e uma confiança inabalável.
Isso também amedrontava Cattiebrie porque não se tratava da arrogância estouvada de um jovem exuberante, mas do ar sereno de superioridade de alguém que presenciara
mil batalhas e nunca fora derrotado.
Os olhos de Cattiebrie jamais se desviaram do rosto de Entreri enquanto ele rapidamente a amarrava à cadeira. Os traços angulosos, os malares notáveis e o
queixo pronunciado eram apenas acentuados pelo corte reto de seu cabelo negro e lustroso. A sombra de barba a lhe escurecer o rosto dava a impressão que, não importando
quantas vezes ele se barbeasse, jamais desapareceria. Longe de ser desmazelado, porém, tudo a respeito daquele homem denotava controle. Cattiebrie poderia até mesmo
tê-lo considerado bonito, não fossem os olhos.
O cinza daqueles olhos não tinha brilho. Sem vida, destituídos de qualquer sinal de compaixão ou humanidade, caracterizavam aquele homem como um instrumento
de morte e nada mais.
- O que 'cê quer de mim? - perguntou Cattiebrie, assim que reuniu a coragem para tanto.
Entreri respondeu com um tapa pungente no rosto.
- O pingente de rubi! - exigiu ele, de repente. - O halfling ainda tem o pingente de rubi?
Cattiebrie lutou para reprimir as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Estava desorientada e surpresa e não conseguiu responder imediatamente à pergunta do
homem.
O punhal ajaezado cintilou diante de seus olhos e lentamente traçou a circunferência de seu rosto.
- Não tenho muito tempo - declarou Entreri categoricamente - Você vai me dizer o que preciso saber. Quanto mais demorar a responder, mais dor sentirá.
Suas palavras foram calmas e pronunciadas com honestidade.
Cattiebrie, transformada numa mulher forte sob a tutela de Bruenor, flagrou-se amedrontada. Ela enfrentara e derrotara goblins antes, até mesmo um horrível
troll certa vez, mas esse assassino imperturbável a aterrorizava. Ela tentou responder, mas o tremor do queixo não deixava as palavras se formarem.
O punhal cintilou novamente.
- No pescoço de Régis! - foi o grito agudo de Cattiebrie, uma lágrima a traçar uma linha solitária pelas suas faces.
Entreri assentiu e sorriu de leve.
- Ele está com o elfo negro, o anão e o bárbaro. - disse, corriqueiramente. - E estão na estrada para Luskan. E de lá para um lugar chamado Salão de
Mitral. Fale-me sobre o Salão de Mitral, minha cara menina. - Ele raspou a lâmina em sua própria face e o fio aguçado removeu um pequeno trecho de barba. - Onde
fica?
Cattiebrie se deu conta que sua incapacidade de responder provavelmente seria seu fim.
- E... eu não sei - ela balbuciou audaciosamente, readquirindo certo grau da disciplina que Bruenor lhe ensinara, apesar de seus olhos jamais abandonarem
o brilho da lâmina letal.
- Pena - respondeu Entreri. - Um rostinho tão bonito...
- Por favor - disse Cattiebrie com toda a calma possível diante do punhal que se movia em sua direção. - Ninguém sabe! Nem mesmo Bruenor! Encontrar
o lugar é a missão dele.
A lâmina se deteve subitamente e Entreri virou a cabeça para o lado, os olhos apertados e todos os músculos tensos, em estado de alerta.
Cattiebrie não ouvira o giro da maçaneta da porta, mas a voz grave de Arnês Mallot ecoando pelo corredor explicou as ações do assassino:
- Hã, cadê você, menina?
Cattiebrie tentou berrar "Fujam!" - e que se danasse a própria vida -, mas o golpe rápido de Entreri com as costas da mão a atordoou e expeliu a palavra como
um grunhido indecifrável.
A cabeça a pender de um lado a outro, ela apenas conseguiu focalizar a visão quando Arnês e Grollo, os machados nas mãos, irromperam sala adentro. Entreri
estava preparado para recebê-los, o punhal ajaezado numa das mãos e um sabre na outra.
Por um instante, Cattiebrie se encheu de entusiasmo. Os anões de Dez-Burgos eram um batalhão ferrenho de guerreiros empedernidos e, entre os membros do clã,
a perícia de Arnês só perdia para a de Bruenor.
Então, ela se lembrou de quem eles enfrentariam e, apesar da aparente vantagem dos anões, suas esperanças foram varridas por uma onda de conclusões irrefutáveis.
Ela testemunhara a indistinção dos movimentos do assassino, a precisão extraordinária de suas cutiladas.
A revulsão a brotar em sua garganta, ela sequer foi capaz de emitir um aviso ofegante para que os anões fugissem.
Mesmo se conhecessem a profundidade do horror no homem diante deles, Arnês e Grollo não teriam se esquivado da luta. A fúria cega o guerreiro anão para qualquer
consideração por sua segurança pessoal e, quando aqueles dois viram sua amada Cattiebrie amarrada à cadeira, a investida contra Entreri veio por instinto.
Estimulados por uma fúria desenfreada, seus primeiros ataques vociferaram com toda a força. Por outro lado, Entreri começou vagarosamente, encontrando seu
ritmo e permitindo que a pura fluidez de seus movimentos alimentasse o próprio impulso. Às vezes, ele mal parecia capaz de aparar ou evitar as pancadas ferozes.
Algumas erravam o alvo por pouco, e esses quase acertos incitavam Arnês e Grollo ainda mais.
Mas, mesmo com seus amigos se impondo no ataque, Cattiebrie compreendeu que estavam em dificuldades. As mãos de Entreri pareciam conversar uma com a outra,
tão perfeito era o complemento dos movimentos de ambas à medida que posicionavam o punhal ajaezado e o sabre. Os movimentos sincrônicos de seus pés mantinham-no
totalmente equilibrado ao longo da escaramuça. Era uma dança de esquivas, paradas e contragolpes.
Era uma dança de morte.
Cattiebrie vira aquilo antes, os métodos que denunciavam o melhor espadachim de todo o Vale do Vento Gélido. A comparação com Drizzt Do'Urden era inevitável;
a graça e os movimentos de ambos eram tão semelhantes e cada parte de seus corpos funcionava em perfeita harmonia.
Mas eles continuavam consideravelmente diferentes, uma polaridade de princípios morais que alterava sutilmente a aura da dança.
O ranger drow em batalha era um instrumento de beleza a se contemplar, um atleta perfeito que se dedicava com fervor incomparável ao caminho da integridade
de que escolhera trilhar. Mas Entreri era meramente aterrorizante, um assassino desapaixonado que se livrava insensivelmente dos obstáculos em seu caminho.
O ímpeto inicial do ataque dos anões agora começava a diminuir e tanto Arnês quanto Grollo traziam estupefação no olhar por ainda não estar o chão rubro com
o sangue do oponente. Mas, enquanto seus ataques perdiam velocidade, o impulso de Entreri continuava a crescer. Suas armas eram uma mancha indistinta e cada estocada
era seguida por duas outras que faziam os anões balançar.
Desembaraçados eram seus movimentos. Infindável era sua energia.
Arnês e Grollo mantinham uma postura exclusivamente defensiva, mas, mesmo com todos os seus esforços dedicados ao bloqueio, todos na sala sabiam que era apenas
uma questão de tempo antes que a lâmina assassina lhes atravessasse a guarda.
Cattiebrie não viu o golpe fatal, mas enxergou vividamente a linha brilhante de sangue que apareceu de um lado a outro da garganta de Grollo. O anão continuou
lutando por alguns instantes, alheio à causa de sua incapacidade de recuperar o fôlego. Então, surpreso, Grollo caiu de joelhos, levou às mãos à garganta e, gorgolejando,
penetrou as trevas da morte.
A fúria incitou Arnês a esquecer a exaustão. Seu machado distribuía talhos e cutiladas desvairadamente, clamando por vingança.
Entreri brincou com ele, chegando a prosseguir com a charada a ponto de golpeá-lo na têmpora com a parte chata do sabre.
Ultrajado, ofendido e completamente ciente de que fora superado, Arnês lançou-se numa última e suicida arremetida, esperando levar o assassino com ele.
Entreri desviou-se da desesperada investida com um passo para o lado e uma gargalhada divertida e pôs fim à luta, enterrou o punhal ajaezado no peito de Arnês
e completou com um golpe poderoso do sabre quando o anão passou cambaleando por ele.
Horrorizada demais para chorar, horrorizada demais para gritar, Cattiebrie observou incapaz de reagir Entreri retirar o punhal do peito de Arnês. Certa de
sua morte iminente, ela fechou os olhos quando o punhal veio em sua direção, sentiu o metal, aquecido pelo sangue do anão, rente à sua garganta.
E, em seguida, o raspar provocador do fio da arma contra sua pele macia e vulnerável quando Entreri lentamente girou a lâmina na mão.
Torturante. A promessa, a dança da morte.
Então, acabou. Cattiebrie abriu os olhos exatamente quando a pequena arma voltou à sua bainha no quadril do assassino. Ele se afastara um passo.
- Veja bem - ofereceu ele, como explicação por sua misericórdia -, eu mato apenas os que se opõem a mim. Talvez, então, três de seus amigos na estrada
para Luskan escapem ao fio da espada. Quero apenas o halfling.
Cattiebrie recusou-se a se render ao terror que ele evocava. Manteve a voz firme e prometeu, com frieza:
- Você os subestima. Lutarão contra você. Com serena confiança, Entreri respondeu:
- Então, eles também vão morrer.
Cattiebrie não poderia vencer uma disputa de fibra com o assassino impassível. Sua única resposta para ele era a rebeldia. Cuspiu nele, sem temer as conseqüências.
Ele retorquiu com um simples e pungente tapa com as costas da mão. Os olhos dela se anuviaram com a dor e as lágrimas que brotavam, e Cattiebrie mergulhou
nas trevas. Mas, ao cair inconsciente, ainda escutou durante alguns segundos a risada fria e cruel, que foi desaparecendo enquanto o assassino deixava a casa.
Torturante. A promessa da morte.

2. A CIDADE DAS VELAS

- B em, lá está ela, rapaz, a Cidade das Velas - disse Bruenor a Wulfgar enquanto os dois olhavam para Luskan, lá embaixo, de um pequeno outeiro alguns quilômetros
ao norte da cidade.
Wulfgar apreciou a vista com um suspiro profundo de admiração. Luskan abrigava mais de quinze mil almas, era pequena se comparada às imensas cidades do sul
e à sua vizinha mais próxima, Águas Profundas, algumas centenas de quilômetros descendo a costa. Mas, para o jovem bárbaro, que passara todos os seus dezoito anos
entre as tribos nômades e as pequenas aldeias de Dez-Burgos, o porto marítimo fortificado parecia realmente grande. Uma muralha encerrava Luskan, com torres de vigia
estrategicamente espaçadas a intervalos variados. Mesmo à distância, Wulfgar distinguia as formas escuras de muitos soldados a percorrer os parapeitos, as pontas
das lanças a brilhar sob a luz do novo dia.
- Não é um convite promissor - notou Wulfgar.
- Luskan não acolhe prontamente os visitantes - disse Drizzt, que aparecera atrás de seus dois amigos. - Podem abrir os portões para mercadores, mas
geralmente negam passagem aos viajantes comuns.
- Nosso primeiro contato está lá - grunhiu Bruenor. - E tenho a intenção de entrar!
Drizzt assentiu e não insistiu mais na discussão. Ele evitara Luskan em sua viagem original até Dez-Burgos. Os habitantes da cidade, em sua maioria humanos,
consideravam rostos diferentes com desdém. Costumavam negar passagem até mesmo aos elfos da superfície e aos anões. Drizzt desconfiava que os guardas fariam mais
a um elfo drow do que simplesmente colocá-lo para fora.
- Acenda a fogueira do desjejum - continuou Bruenor, o tom zangado a refletir sua determinação de que nada o desviaria de seu curso. - A gente vai
levantar acampamento cedo e chegar aos portões antes do meio-dia. Cadê o maldito do Ronca-bucho?
Drizzt olhou por sobre o ombro, na direção do acampamento.
- Dormindo - respondeu, embora a pergunta de Bruenor fosse total mente retórica. Desde que os companheiros haviam partido de Dez-Burgos Régis era o
primeiro a dormir e o último a acordar (e nunca sem auxílio).
- Bom, dá um chute nele! - ordenou Bruenor. Ele se virou na direção do acampamento, mas Drizzt o segurou pelo ombro.
- Deixe o halfling dormir - sugeriu o drow. - Talvez seja melhor chegarmos ao portão de Luskan na luz menos reveladora do crepúsculo.
O pedido de Drizzt deixou Bruenor confuso apenas por um instante até observar mais de perto o rosto taciturno do drow e reconhecer a trepidação naqueles olhos.
Os dois haviam se tornado amigos tão íntimos naqueles anos que Bruenor normalmente esquecia que Drizzt era um pária. Quanto mais se afastassem de Dez-Burgos, onde
Drizzt era conhecido, mais ele seria julgado pela cor de sua pele e pela reputação de seu povo.
- 'Tá, deixa ele dormir - cedeu Bruenor. - Pode ser que um pouco de sono não me fizesse mal também!
Levantaram acampamento ao final da manhã e estabeleceram um ritmo sossegado, apenas para descobrir, mais tarde, que haviam estimado mal a distância até a
cidade. Passava bastante do ocaso e já se iam as primeiras horas de escuridão quando eles finalmente chegaram ao portão norte da cidade.
A estrutura era tão pouco acolhedora quanto a reputação de Luskan: uma única porta ferrada, instalada na muralha de pedra entre duas torres baixas e aprumadas,
encontrava-se hermeticamente cerrada diante deles. Umas doze cabeças cobertas por peles se projetaram do parapeito acima do portão, e os companheiros sentiram outros
olhos - e arcos, provavelmente - assestados sobre eles desde as trevas no alto das torres.
- Quem são vocês que batem aos portões de Luskan? - veio uma voz da muralha.
- Viajantes do norte - respondeu Bruenor. - Um bando cansado vindo da distante Dez-Burgos, no Vale do Vento Gélido!
- O portão foi fechado ao pôr do sol - replicou a voz. - Vão embora!
- Seu filho de um gnoll pelado! - resmungou Bruenor a meia-voz. Ele bateu a acha na palma da mão como se quisesse derrubar a porta a machadadas.
Drizzt pousou a mão apaziguadora sobre o ombro do anão, pois os ouvidos sensíveis haviam reconhecido o estalido claro e distinto de uma manivela de besta.
Então, Régis inesperadamente assumiu o controle da situação. Endireitou as calças, que haviam escorregado sob a barriga protuberante, e enganchou os polegares
no cinto, tentando parecer algo importante. Atirando os ombros para trás, colocou-se à frente de seus companheiros.
- Seu nome, meu bom senhor? - gritou para o soldado sobre a muralha.
- Sou o Guardião da Noite do Portão Norte. Isso é tudo o que você precisa saber! - foi a resposta ríspida. - E quem...
- Régis. Primeiro Cidadão de Brin Shander. Sem dúvida, você já ouviu meu nome ou viu minhas esculturas.
Os companheiros ouviram sussurros lá em cima, depois uma pausa.
- Vimos o artesanato de um halfling de Dez-Burgos. É você?
- Herói da guerra dos goblins e mestre entalhador - declarou Régis, com uma reverência. - Os representantes de Dez-Burgos não ficarão contentes em
saber que fui abandonado ao frio da noite diante do portão de nosso principal parceiro comercial.
De novo ae sussurros, depois um silêncio mais prolongado. Dali a pouco, os quatro ouviram um som áspero atrás da porta - uma grade levadiça sendo erguida,
Régis sabia - e então o estrondo dos ferrolhos sendo atirados ao chão. O halfling olhou por sobre o ombro, para seus amigos surpresos, e deu um sorriso torto.
- Diplomacia, meu mal-humorado amigo anão - riu ele.
A porta se abriu apenas um pouco e dois homens se esgueiraram para fora, desarmados mas cautelosos. Ficou bastante óbvio que estavam bem protegidos desde
a muralha. Soldados de rostos soturnos se acotovelavam ao longo dos parapeitos, monitorando cada movimento dos estrangeiros com as miras das bestas.
- Sou Jierdan - disse o mais atarracado dos dois homens, embora fosse difícil julgar-lhe o tamanho exato devido às muitas camadas de peles que usava.
- E eu sou o Guardião da Noite - disse o outro. - Mostrem-me o que trouxeram para negociar.
- Negociar? - repetiu Bruenor, furioso. - Quem foi que disse algo sobre negociar? - Ele bateu o machado na palma da mão mais uma vez, fazendo os soldados
lá em cima trocarem de pé ansiosamente. - Isto parece a arma de um mercador nojento?
Tanto Régis quanto Drizzt fizeram menção de acalmar o anão, mas Wulfgar, tão tenso quanto Bruenor, permaneceu de lado, os braços descomunais cruzados diante
dele e o olhar austero a transfixar o porteiro insolente.
Os dois soldados recuaram, na defensiva, e o Guardião da Noite falou novamente, dessa vez à beira da fúria.
- Primeiro Cidadão - ele indagou Régis -, por que bate à nossa porta?
Régis colocou-se à frente de Bruenor e equilibrou-se com lisura diante do soldado.

- Hã... uma exploração preliminar da praça do mercado - falou sem pensar, tentando inventar uma história de improviso. - Tenho algumas esculturas
de especial refinamento para o mercado nesta temporada e queria me certificar de que tudo por aqui, inclusive o preço a se pagar pelo artesanato esteja acertado
para a administração da venda.
Os dois soldados trocaram sorrisos perspicazes.
- Você veio de muito longe só para isso - murmurou rudemente o Guardião da Noite. - Não teria sido melhor simplesmente vir com a caravana trazendo
as mercadorias?
Régis demonstrou certo mal-estar, percebendo que aqueles soldados eram experientes demais para caírem em sua manobra. Lutando contra o bom-senso, enfiou a
mão sob a camisa em busca do pingente de rubi, sabendo que seus poderes hipnóticos poderiam convencer o Guardião da Noite a deixá-los passar, mas temendo mostrar
a pedra e expor ainda mais sua trilha ao assassino que ele sabia não estar muito longe.
Mas, de repente, Jierdan Sobressaltou-se ao notar a figura ao lado de Bruenor. O manto de Drizzt Do'Urden havia se deslocado ligeiramente, revelando a pele
negra de seu rosto.
Como se tivessem combinado, o Guardião da Noite também ficou tenso e, seguindo o exemplo de seu companheiro, discerniu rapidamente a causa da repentina reação
de Jierdan. Relutantemente, os quatro aventureiros baixaram as mãos às armas, prontos para um combate que não desejavam.
Mas Jierdan pôs fim à tensão tão rápido quanto a iniciara, esticando o braço por sobre o peito do Guardião da Noite e dirigindo-se ao drow diretamente.
- Drizzt Do'Urden? - perguntou tranqüilamente, procurando confirmação da identidade que já adivinhara.
O drow assentiu, surpreso com o reconhecimento.
- Seu nome também chegou a Luskan com as histórias do Vale do Vento Gélido - explicou Jierdan. - Perdoe nossa surpresa. - Ele fez uma reverência. -
Não vemos muitos da sua raça em nossos portões.
Drizzt assentiu novamente, mas não respondeu, incomodado com aquela atenção incomum. Nunca antes havia um porteiro se incomodado em perguntar-lhe o nome ou
suas intenções. E o drow logo compreendera ser vantajoso evitar inteiramente os portões, esgueirando-se silenciosamente sobre a muralha de uma cidade em meio à escuridão
e procurando o setor mais maltrapilho, onde ao menos teria a chance de passar despercebido nas esquinas escuras com os outros ladinos. Será que seu nome e seus feitos
heróicos tinham lhe angariado certo grau de respeito mesmo tão longe de Dez-Burgos?
Bruenor voltou-se para Drizzt e piscou, a própria raiva dissipada pelo fato de que seu amigo havia finalmente recebido o devido respeito de um estrangeiro.
Mas Drizzt não se convencera. Não se atrevia a esperar por tal coisa: isso o deixava vulnerável demais a sentimentos que se esforçara tanto em ocultar. Preferia
se proteger em suas suspeitas e em sua vigilância tanto quanto no negro capuz de seu manto. Curioso, manteve-se atento enquanto os dois soldados se afastavam para
ter uma conversa particular.
- Não me importa o nome dele - ouviu o Guardião da Noite sussurrar para Jierdan. - Nenhum elfo drow há de passar pelo meu portão!
- Você está cometendo um erro - retorquiu Jierdan. - São os heróis de Dez-Burgos. O halfling é realmente Primeiro Cidadão de Brin Shander; o drow,
um ranger com uma reputação mortal, mas inegavelmente honrada; e o anão - repare no brasão da caneca espumante em seu escudo - é Bruenor Martelo de Batalha, líder
de seu clã no vale.
- E quem é o gigante bárbaro? - perguntou o Guardião da Noite, usando um tom sarcástico numa tentativa de soar resoluto, apesar de estar obviamente
um pouco nervoso. - Que espécie de desgarrado é esse aí?
Jierdan deu de ombros.
- E grande, jovem e tem um certo grau de controle atípico para a idade. Parece-me improvável ele estar aqui, mas pode ser o jovem rei das tribos de
que falaram os contadores de histórias. Não devemos mandar embora esses viajantes; as conseqüências podem ser graves.
- O que Luskan teria a temer daqueles povoados insignificantes no Vale do Vento Gélido? - refugou o Guardião da Noite.
- Existem outros portos comerciais - retorquiu Jierdan. - Nem todas as batalhas são travadas com a espada. A perda do artesanato de Dez-Burgos não
seria bem vista por nossos mercadores, nem pelos navios mercantes que entram no porto a cada temporada.
O Guardião da Noite examinou os quatros estrangeiros novamente. Não confiava nem um pouco neles, apesar das formidáveis alegações de seu companheiro, e não
os queria na cidade. Mas sabia também que, caso suas suspeitas estivessem erradas e ele fizesse algo para comprometer o comércio de artesanato, seu próprio futuro
seria tristonho. Os soldados de Luskan respondiam aos mercadores, que não perdoavam com facilidade os erros que emagreciam suas bolsas.
O Guardião da Noite ergueu os braços, derrotado.
- Entrem, então - disse ele aos companheiros. - Sigam a muralha e dirijam-se às docas. Na última viela fica o Alfanje, e vocês estarão bem aqueci dos
por lá!
Drizzt estudou os passos orgulhosos de seus amigos enquanto marchavam
pela porta e imaginou que eles também haviam ouvido partes da conversa. Bruenor confirmou suas suspeitas quando eles se afastaram das torres de vigia, seguindo
a rua ao longo da muralha.
Olha só, elfo - o anão riu alto, dando uma cotovelada em Drizzt e parecendo obviamente contente. - Então, as histórias deixaram o vale e já conhecem
a gente até mesmo aqui tão pro sul. O que 'cê tem a dizer?
Drizzt deu de ombros novamente e Bruenor riu, presumindo que seu amigo estava meramente constrangido com toda aquela fama. Régis e Wulfgar também partilhavam
da alegria de Bruenor, e o homem imenso deu ao drow um jovial tapa nas costas ao passar à liderança da trupe.
Mas era mais do que constrangimento a fonte do desconforto de Drizzt. Ele percebera, ao passar, o sorriso no rosto de Jierdan, um sorriso que ultrapassava
a admiração. E apesar de não duvidar que as histórias da batalha contra o exército de goblins de Akar Kessell tivessem alcançado a Cidade das Velas, pareceu estranho
a Drizzt que um simples soldado soubesse tanto sobre ele e seus amigos, enquanto o porteiro, responsável exclusivamente por determinar quem entrava na cidade, nada
sabia.
As ruas de Luskan estavam apinhadas com edifícios de dois e três andares, um reflexo do desespero do povo dali em se amontoar na segurança da alta muralha
da cidade, longe dos perigos constantes das selvagens terras do norte. Uma torre ocasional - um posto de guarda, talvez, ou a maneira de um cidadão proeminente ou
de uma guilda mostrar superioridade - brotava dos telhados. Uma cidade circunspecta, Luskan sobrevivia, e até mesmo prosperava, na perigosa fronteira, apegando-se
a uma atitude de prontidão que geralmente chegava à paranóia. Era uma cidade de sombras, e os quatro visitantes sentiam intensamente os olhares curiosos e perigosos
que espiavam através de cada fresta escura enquanto avançavam.
As docas abrigavam o setor mais brutal da cidade, onde abundavam ladrões, foras-da-lei e mendigos em seus becos estreitos e nichos escuros. Uma névoa perpétua
e baixa vinha do mar, transformando as já sombrias alamedas em sendas ainda mais misteriosas.
Assim era a viela na qual os quatro amigos se viram entrando, a última ruela antes dos próprios molhes, uma via particularmente decrépita chamada Rua da Meia-lua.
Régis, Drizzt e Bruenor compreenderam imediatamente que haviam entrado num antro de vagabundos e rufiões, e cada um deles levou uma das mãos à respectiva arma. Wulfgar
caminhava ostensivamente e sem medo, embora também pressentisse a atmosfera ameaçadora. Sem entender que a área era de uma torpeza atípica, estava determinado a
abordar com mente aberta sua primeira experiência com a civilização.
- Aí está o lugar - disse Bruenor, indicando um pequeno grupo, provavelmente de ladrões, reunido diante da porta de uma taverna. A placa acima da porta, já
curtida pelo tempo, nomeava o lugar o Alfanje.
Régis engoliu em seco, pois uma assustadora mistura de emoções brotava dentro dele. Nos seus primeiros anos como ladrão em Calimporto, ele havia freqüentado
muitos lugares como aquele, mas a familiaridade com o ambiente apenas aumentava sua apreensão. Ele sabia que a fascinação proibida dos negócios realizados nas sombras
de uma perigosa taverna podia ser tão mortífera quanto às facas ocultas dos ladinos em cada mesa.
- Vocês querem mesmo entrar aí? - perguntou melindrosamente aos amigos.
- Não quero ouvir uma reclamação sua! - rebateu Bruenor. - 'Cê sabia o que tinha pela frente quando se juntou à gente lá no vale. Não começa a choramingar
agora!
- Você está bem protegido - interpôs Drizzt para reconfortar Régis.
Excessivamente orgulhoso em sua inexperiência, Wulfgar deu ainda mais ênfase à declaração:
- Que motivo eles teriam para nos fazer mal? Sem dúvida não fizemos nada de errado - indagou ele. Então, proclamou em alto e bom som, para desafiar
as sombras - Não tenha medo, amiguinho. Meu martelo há de eliminar quem quer que se levante contra nós!
- O orgulho dos jovens - resmungou Bruenor enquanto ele, Régis e Drizzt trocavam olhares incrédulos.
A atmosfera dentro do Alfanje estava de acordo com a decrepitude e a ralé que caracterizavam o lugar do lado de fora. A parte do edifício ocupada pela taverna
era uma única sala ampla, com um bar comprido posicionado defensivamente no canto da parede dos fundos, diretamente em frente à porta. Uma escadaria se elevava da
lateral do bar até o segundo nível da estrutura, uma escadaria utilizada com mais freqüência por mulheres maquiadas e excessivamente perfumadas e seus mais recentes
companheiros do que pelos hóspedes da estalagem. De fato, os marinheiros mercantes que aportavam em Luskan geralmente vinham à terra apenas para breves períodos
de emoção e divertimento, retornando à segurança de suas naus, se conseguissem fazê-lo, antes que o inevitável sono da embriaguez os deixasse vulneráveis.
Acima de tudo, porém, a taverna do Alfanje era uma sala de sensações, com miríades de sons, imagens e odores. O aroma de álcool, da cerveja forte e do vinho
barato às beberagens mais raras e potentes, permeava cada canto. Uma bruma de fumaça de exóticas ervas-de-fumo, como a névoa lá fora, tornava indistinta a dura realidade
das imagens, transformando-as em sensações mais suaves e oníricas.
Drizzt encaminhou-se para uma mesa desocupada, esquecida ao lado da porta, enquanto Bruenor aproximava-se do bar para acertar a estadia. Wulfgar foi atrás
do anão, mas Drizzt o deteve.
Para a mesa - explicou ele. - Você está muito alvoroçado para esse tipo de negócio; Bruenor pode cuidar disso.
Wulfgar começou a protestar, mas foi interrompido.
Que é isso - ofereceu Régis. - Sente-se comigo e com Drizzt.
Ninguém vai incomodar um velho e forte anão, mas um halfling minúsculo e um elfo magrelo podem parecer boa diversão para os brutamontes daqui. Precisamos
de seu tamanho e de sua força para evitar essa atenção indesejada.
O queixo de Wulfgar firmou-se com o elogio, e ele caminhou intrepidamente até a mesa. Régis lançou a Drizzt uma piscadela perspicaz e virou-se para segui-lo.
- Muitas lições você aprenderá nesta jornada, meu jovem amigo - Drizzt murmurou para Wulfgar, baixinho demais para o bárbaro ouvi-lo. - Tão longe de
seu lar.
Bruenor voltou do bar carregando quatro jarras de hidromel e resmungando a meia voz.
- A gente tem que acabar logo nossos negócios aqui - ele disse a Drizzt - e voltar prá estrada. O preço de um quarto nessa toca de orcs é uma ladroagem
descarada!
- Os quartos não são para se passar a noite toda - casquinou Régis.
Mas a carranca de Bruenor persistiu.
- Beba - ele disse ao drow. - O Beco do Rato não é muito longe daqui, pelo que disse a criada do bar, e pode ser que a gente consiga fazer contato
ainda esta noite.
Drizzt assentiu e bebericou o hidromel, sem querer realmente fazê-lo, mas esperando que uma bebida entre amigos pudesse relaxar o anão. O drow também estava
ansioso para deixar Luskan, temeroso de que sua própria identidade - ele mantinha o capuz ainda mais abaixado sob a luz bruxuleante das tochas da taverna - pudesse
lhes trazer mais problemas. Ele se preocupava ainda mais por Wulfgar, jovem e orgulhoso, e fora de seu elemento natural. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido, apesar
de impiedosos na batalha, eram inegavelmente honrados e baseavam toda a estrutura de sua sociedade em códigos rígidos e inflexíveis. Drizzt temia que Wulfgar fosse
presa fácil para as imagens falsas e a perfídia da cidade. Na estrada, nas terras selvagens, o martelo de Wulfgar o manteria em segurança, mas ali era provável que
ele se encontrasse em situações falazes envolvendo punhais dissimulados, nas quais sua poderosa arma e perícia na batalha seriam de pouca ajuda.
Wulfgar esvaziou sua jarra num único gole, limpou os lábios com zelo e ficou de pé.
- Vamos - disse a Bruenor. - Quem é que estamos procurando?
- Senta aí e cale a boca, garoto - ralhou Bruenor, olhando ao redor para ver se haviam atraído alguma atenção indesejada. - O trabalho desta noite
é prá mim e pro drow. Não tem lugar prum guerreiro grande demais como você! 'Cê fica aqui com Ronca-bucho, de boca fechada e com as costas prá parede!
Wulfgar voltou a afundar na cadeira, humilhado, mas Drizzt estava feliz por ter Bruenor aparentemente chegado às mesmas conclusões sobre o jovem guerreiro.
Mais uma vez, Régis salvou um pouco do orgulho de Wulfgar.
- Você não vai com eles, não! - ele retrucou ao bárbaro. - Eu não tenho a menor vontade de ir, mas não me atreveria a ficar aqui sozinho. Deixe que
Drizzt e Bruenor se divirtam em algum beco frio e fedorento. Ficaremos aqui e vamos aproveitar uma bem-merecida noite de boa diversão!
Drizzt deu um tapinha no joelho de Régis por baixo da mesa como agradecimento e levantou-se para sair. Bruenor bebeu em grandes goles o conteúdo de sua jarra
e saltou da cadeira.
- Vamos indo, então - ele disse ao drow. E depois, para Wulfgar - Tome conta do halfling e cuidado com as mulheres! São perversas como ratos famintos
e a única coisa que desejam morder é a sua bolsa!
Bruenor e Drizzt viraram no primeiro beco vazio depois do Alfanje, o anão, nervoso, montando guarda à entrada enquanto Drizzt seguia em frente alguns passos
e penetrava a escuridão. Convencido de que estava só e em segurança, Drizzt removeu de sua bolsa uma pequena estatueta de ônix, meticulosamente esculpida na forma
de um gato predador, e a colocou no chão diante dele.
- Guenhwyvar - ele chamou baixinho. - Venha, minha sombra.
Seu chamado atravessou os planos até o lar astral da entidade da pantera. O grande felino despertou de seu sono. Muitos meses haviam se passado desde que
seu mestre o chamara, e o gato estava ansioso para servir.
Guenhwyvar saltou através da urdidura dos planos, seguindo um bruxuleio de luz que só podia ser o chamado do drow. A seguir, o gato estava no beco com Drizzt,
imediatamente alerta naquele ambiente desconhecido.
- Vamos entrar numa teia perigosa, temo eu - explicou Drizzt. - Preciso de olhos onde os meus não são capazes de chegar.
Sem delongas e sem emitir um som sequer, Guenhwyvar saltou para uma pilha de escombros, dali para o patamar fragmentado de um pórtico, e dali para o alto
dos telhados. Satisfeito e sentindo-se muito mais seguro agora, Drizzt esgueirou-se de volta à rua onde Bruenor aguardava.
- Bem, cadê a maldita pantera? - perguntou Bruenor, um sinal de alívio em sua voz por Guenhwyvar não estar realmente com o drow. A maioria dos anões
desconfiava da magia, a não ser dos encantamentos mágicos que lançavam sobre suas armas, e Bruenor não gostava da pantera.
- Onde mais precisamos dela - foi a resposta do drow. Ele se pôs a descer a Rua da Meia-lua. - Não tenha medo, poderoso Bruenor. Os olhos de Guenhwyvar
estão sobre nós, mesmo que os nossos não possam retribuir seu olhar protetor!
O anão olhou ao redor, nervoso, gotas de suor visíveis na base de seu elmo de chifres. Ele conhecia Drizzt havia vários anos, mas nunca se acostumara ao gato
mágico.
Drizzt ocultou o sorriso sob o capuz.
Todas as vielas, abarrotadas de pilhas de escombros e refugos, pareceram-lhes iguais à medida que abriam caminho pelas docas. Bruenor fitava cada nicho sombreado
com uma desconfiança vigilante. À noite, sua visão não era tão aguçada quanto a do drow e, se ele enxergasse no escuro tão bem quanto Drizzt, teria apertado ainda
com mais força o cabo do machado.
Mas o anão e o drow não estavam excessivamente preocupados. Estavam muito longe de ser os típicos bêbados que costumavam cambalear por aquelas bandas à noite
e não eram presas fáceis para ladrões. Os inúmeros chanfros no machado de Bruenor e o balanço das duas cimitarras no cinto do drow serviriam para inibir totalmente
a maioria dos rufiões.
No labirinto de ruas e vielas, levaram um bom tempo para encontrar o Beco do Rato. Bem perto dos molhes, corria paralelamente ao mar, aparentemente intransitável
através da densa neblina. Armazéns baixos e compridos se alinhavam de ambos os lados, e caixas e engradados quebrados atravancavam o beco, reduzindo, em muitos lugares,
a passagem já estreita à largura de uma fila indiana.
- Lugarzinho agradável para um passeio numa noite sombria - declarou Bruenor categoricamente.
- Tem certeza de que esta é a tal viela? - perguntou Drizzt, igualmente pouco entusiasmado em relação à área diante dele.
- Pelo que disse o mercador em Dez-Burgos, o único homem vivo capaz de me conseguir o mapa é Sussurro. E o lugar prá encontrar Sussurro é o Beco do
Rato. Sempre no Beco do Rato.
- Então, vamos logo com isso - disse Drizzt. - Negócio excuso é melhor terminar rápido.
Bruenor entrou lentamente no beco, à frente de Drizzt. Os dois mal tinham caminhado uns três metros quando o anão pensou ouvir o estalido de uma besta. Ele
se deteve e olhou para Drizzt.
- 'Tão espreitando a gente - sussurrou.
- Na janela entabuada acima e à direita - explicou Drizzt, pois sua excepcional visão noturna e a admirável audição já haviam discernido a origem
do som. - Uma precaução, espero. Talvez um bom sinal de que seu contato está por perto.
- Nunca chamei uma besta apontada prá minha cabeça de bom sinal! - argumentou o anão. - Mas em frente, então, e esteja preparado. Esse lugar fede a
perigo! - Voltou a abrir caminho por entre os escombros.
Um movimento à esquerda revelou que também daquele lado havia olhos sobre eles. Mas, ainda assim, eles continuaram, compreendendo que não podiam ter esperado
nada diferente quando deixaram o Alfanje. Contornando uma última pilha de tábuas quebradas, viram um vulto esguio recostado a uma das paredes do beco, bem envolto
no manto e protegido contra o frio da névoa noturna.
Drizzt inclinou-se até a altura do ombro de Bruenor.
- Seria aquele ali? - ele murmurou.
O anão deu de ombros e disse:
- E quem mais poderia ser? - Ele deu mais um passo à frente, fincou os pés no chão, com firmeza e bem separados, e dirigiu-se ao vulto. - 'Tô procurando
um homem chamado Sussurro - disse ele. - E você, por acaso?
- Sim e não - foi a resposta. O vulto se virou na direção deles, embora o manto fechado pouco revelasse.
- Que joguinho é esse? - rebateu Bruenor.
- Sou Sussurro - respondeu o vulto, deixando o manto escorregar um pouco para trás. - Mas não um homem, com certeza!
Agora eles podiam ver claramente que o personagem que a eles se dirigia era de fato uma mulher, uma figura sombria e misteriosa com longos cabelos negros,
olhos dardejantes e obstinados que demonstravam experiência e um profundo entendimento da sobrevivência nas ruas.

3. VIDA NOTURNA

A noite ia passando e o Alfanje ficava cada vez mais movimentado. Marinheiros mercantes ali se aglomeravam, vindos dos navios, e os habitantes locais rapidamente
se dispunham a explorá-los. Régis e Wulfgar ficaram na mesa de canto, o bárbaro de olhos arregalados pela curiosidade diante do que via ao seu redor e o halfling
absorto em cautelosa observação.
Régis reconheceu a encrenca caminhando na direção deles na forma de uma mulher. Não era moça e tinha aquela aparência abatida tão familiar na zona do porto,
mas seu vestido, bastante revelador em todos os lugares que o vestido de uma dama não deveria ser, escondia todos os seus defeitos físicos por trás de uma saraivada
de insinuações. A expressão no rosto de Wulfgar - o queixo quase ao mesmo nível da mesa, pensou Régis - confirmou os temores do halfling.
- Bons olhos o vejam, grandalhão - disse a mulher com suavidade, introduzindo-se confortavelmente na cadeira ao lado do bárbaro.
Wulfgar olhou para Régis e quase gargalhou de incredulidade e constrangimento.
- Você não é de Luskan - continuou a mulher. - Nem tem a aparência dos mercadores agora atracados no porto. De onde você é?
- Do norte - gaguejou Wulfgar. - Do vale... Vento Gélido.
Régis não via tamanha ousadia numa mulher desde seus anos em Calimporto e sentiu que devia intervir. Havia algo de depravado naquele tipo de mulher, uma demasiadamente
extraordinária perversão do prazer. O fruto proibido tornado fácil. Régis, de repente, flagrou-se com saudades de Calimporto. Wulfgar não seria páreo para os artifícios
daquela criatura.
- Somos viajantes pobres - explicou Régis, enfatizando o "pobres" num esforço para proteger seu amigo. - Sem dinheiro, mas com muitos quilômetros a
percorrer.
Wulfgar olhou, curioso, para seu companheiro, sem entender muito bem a razão da mentira.
A mulher examinou Wulfgar mais uma vez e estalou os lábios.
- Pena - ela murmurou, e então perguntou a Régis - Nenhum dinheiro?
Régis deu de ombros, impotente.
- É uma pena mesmo - repetiu a mulher e levantou-se para deixar a mesa.
O rosto de Wulfgar corou com um vermelho intenso assim que ele começou a compreender os verdadeiros motivos daquele encontro.
Algo também se agitou dentro de Régis. Um anseio pelos dias de outrora, quando ele percorria a zona de má reputação de Calimporto, incitou seu coração de
tal modo que não conseguiu resistir. Agarrou o cotovelo da mulher assim que ela passou por ele.
- Nenhum dinheiro - explicou-lhe, diante de sua expressão indagativa -, a não ser isto. - Ele sacou o pingente de rubi de sob o casaco e o fez balançar
na ponta da corrente. As cintilações imediatamente atraíram o olhar cúpido da mulher, e a jóia mágica a absorveu em seu transe hipnótico. Ela voltou a se sentar,
dessa vez na cadeira mais próxima a Régis, sem que os olhos jamais abandonassem o maravilhoso rubi rodopiante.
Somente a confusão impediu Wulfgar de irromper num acesso de ultraje diante daquela deslealdade, e a indistinção de pensamentos e emoções em sua mente revelou-se
como um mero olhar de perplexidade.
Régis percebeu a expressão do bárbaro, mas o ignorou com um encolher de ombros e sua típica propensão para descartar emoções negativas, como a culpa. Que
a aurora do dia de amanhã expusesse sua manobra; a conclusão não diminuiria sua competência em desfrutar daquela noite.
- A noite de Luskan traz um vento frio - ele disse à mulher. Ela pousou uma das mãos sobre o braço dele.
- Acharemos para você uma cama quentinha, não tenha medo. O sorriso do halfling quase lhe alcançou as orelhas.
Wulfgar por pouco não caiu da cadeira.


Bruenor readquiriu rapidamente a compostura, não querendo insultar Sussurro nem deixá-la saber que sua surpresa ao encontrar uma mulher dava a ela uma pequena
vantagem. No entanto, ela sabia a verdade e seu sorriso deixou Bruenor ainda mais aturdido.
Vender informações num cenário tão perigoso quanto a zona do porto de Luskan significava uma constante negociação com assassinos e ladrões e, mesmo dentro
da estrutura de uma intricada rede de apoio, era uma função que exigia coragem. Poucos dentre os que procuravam os serviços de Sussurro conseguiam esconder a óbvia
surpresa ao encontrar uma mulher jovem e atraente exercendo tal profissão.
O respeito de Bruenor pela informante, porém, em nada diminuiu, apesar de sua surpresa, pois a reputação de Sussurro chegara até ele através de centenas
de quilômetros. Ela ainda estava viva e somente esse fato já revelava ao anão que se tratava de uma mulher formidável.
Drizzt estava consideravelmente menos perplexo com a descoberta. Nas cidades escuras dos elfos drow, as mulheres normalmente ocupavam posições mais elevadas
que os homens e eram geralmente mais mortíferas. Drizzt compreendia a vantagem que Sussurro tinha sobre os clientes masculinos que tendiam a subestimá-la nas sociedades
dominadas pelos homens das perigosas terras do norte.
Ansioso por terminar os negócios e voltar à estrada, o anão foi direto ao propósito do encontro.
- 'Tô precisando de um mapa - disse ele - e me disseram que eu podia conseguir ele com você.
- Possuo muitos mapas - a mulher respondeu serenamente.
- Um mapa do norte - explicou Bruenor. - Do mar ao deserto e nomeando corretamente os lugares segundo os costumes das raças que vivem por lá!
Sussurro assentiu.
- O preço será alto, meu bom anão - disse ela, os olhos cintilando à mera menção do ouro.
Bruenor atirou-lhe uma pequena bolsa de pedras preciosas.
- Isso deve dar - resmungou ele, sempre desgostoso em gastar dinheiro.
Sussurro esvaziou o conteúdo da bolsa em sua mão e examinou as pedras mal lapidadas. Ao voltar a guardá-las, meneava a cabeça, ciente do considerável valor
das jóias.
- Espera! - protestou Bruenor quando ela começou a prender a bolsa ao cinto. - 'Cê não vai levar as minhas pedras até eu ver o mapa!
- É claro - respondeu a mulher com um sorriso apaziguador. - Espere aqui. Devo retornar em breve com o mapa que deseja. - Ela atirou a bolsa de volta
a Bruenor e girou repentinamente, erguendo o manto com um ruído seco e levantando uma lufada de névoa com o movimento. Um clarão acompanhou a bruma e a mulher desapareceu.
Bruenor saltou para trás e agarrou o punho do machado.
- Que truque de feitiçaria é esse? - gritou.
Drizzt, nada impressionado, levou a mão ao ombro do anão.
- Calma, poderoso anão - disse ele. - Foi apenas um truque insignificante para disfarçar-lhe a fuga em meio à neblina e à luz. - Ele apontou uma pequena
pilha de tábuas. - Ali, naquele escoadouro.
Bruenor acompanhou a linha do braço do drow e relaxou. Mal se podia enxergar a boca de um buraco destampado, a grade encostada à parede do armazém a uma
pequena distância de onde eles se encontravam.
- 'Cê conhece esse tipo de coisa melhor do que eu, elfo - declarou o anão, atarantado com sua falta de experiência em lidar com os ladinos das ruas
de uma cidade. - Ela 'tá querendo negociar limpo ou estamos sentados aqui que nem patinhos esperando os canalhas dos comparsas dela nos roubar?
- Não, e não - respondeu Drizzt. - Sussurro não estaria viva se entregasse os clientes aos ladrões. Mas eu dificilmente esperaria que um acordo com
ela, qualquer que seja, venha a ser um negócio limpo.
Bruenor percebeu que, enquanto falavam, Drizzt retirara sorrateiramente uma de suas cimitarras da bainha.
- Sem armadilhas, hein? - perguntou o anão novamente, indicando a arma preparada.
- Da parte dela, não - replicou Drizzt. - Mas as sombras ocultam muitos outros olhos.

Muitos olhos além dos de Wulfgar recaíam sobre o halfling e a mulher.
Os ousados ladinos da zona do porto de Luskan costumavam se divertir bastante atormentando criaturas de menor estatura física, e os halflings estavam entre
seus alvos favoritos. Naquela noite, em particular, um homem imenso e obeso, com sobrancelhas peludas e cerdas de barba que retinham a espuma da caneca sempre cheia,
dominava a conversa no bar, gabando-se de proezas de força impossíveis e ameaçando todos ao redor dele com uma surra se o fluxo de cerveja diminuísse o mínimo que
fosse.
Todos os homens reunidos em volta dele no bar - homens que o conheciam, ou dele tinham ouvido falar - balançavam as cabeças em entusiástico assentimento a
cada uma de suas palavras, colocando-o sobre um pedestal de elogios para dispersar o medo que eles próprios nutriam por ele. Mas o ego do homem gordo precisava de
mais diversão, uma nova vítima para intimidar, e, percorrendo o perímetro da taverna, seu olhar recaiu naturalmente sobre Régis e o grande - porém evidentemente
jovem - amigo do halfling. O espetáculo de um halfling cortejando a mulher mais cara do Alfanje apresentava uma oportunidade por demais tentadora para o gordo simplesmente
ignorar.
- Olha aqui, moça bonita - babou ele, cuspindo cerveja a cada palavra.
- 'Cê acha que um meio-homem como esse aí vai te dar aquela noitada? - A turba ao redor do bar, ansiosa por se manter na alta conta do gordo, explodiu
numa gargalhada excessivamente ardorosa.
A mulher tratara com aquele homem antes e vira outros caírem dolorosamente diante dele. Ela atirou-lhe um olhar preocupado, mas continuou firmemente presa
à atração do pingente de rubi. Régis, porém, imediatamente desviou os olhos do homem gordo, voltando sua atenção para onde ele desconfiava que a encrenca mais
provavelmente começaria: o outro lado da mesa e Wulfgar.
Descobriu que sua preocupação era justificada. Os nós dos dedos do orgulhoso bárbaro estavam brancos de tanto apertar as bordas da mesa e o olhar inflamado
revelou a Régis que seu amigo estava a ponto de explodir.
- Ignore as provocações - insistiu Régis. - Não vale um segundo do seu tempo!
Wulfgar não relaxou nem um pouco, jamais desprendendo o olhar de seu adversário. Ele poderia ignorar os insultos do gordo, mesmo os que ofendiam Régis e a
mulher. Mas Wulfgar entendia a motivação por trás daqueles insultos. Aproveitando-se dos amigos menos capazes do bárbaro, o valentão desafiava Wulfgar. Ele se perguntou
quantos outros haviam sido vitimados por aquele palerma avantajado. Talvez fosse a hora do gordo aprender um pouco de humildade.
Reconhecendo ali uma possibilidade de confusão, o grotesco fanfarrão se aproximou alguns passos.
- Isso, chega prá lá um pouquinho, meio-homem - exigiu ele, acenando para que Régis se afastasse.
Régis fez um rápido inventário dos fregueses da taverna. Certamente havia muitos ali que poderiam se juntar à sua causa contra o gordo e os camaradas antipáticos
dele. Havia até mesmo um membro da guarda oficial da cidade, um grupo tido em alta conta em todos os setores de Luskan.
Régis interrompeu seu exame atento por um instante e olhou para o soldado. Quão deslocado o homem parecia numa escarradeira infestada de canalhas como o Alfanje.
Mais curioso ainda, Régis reconheceu o homem como Jierdan, o soldado no portão que reconhecera Drizzt e havia arranjado para que eles entrassem na cidade algumas
horas antes.
O gordo deu mais um passo em direção à mesa e Régis não teve tempo para considerar as implicações.
Com as mãos nos quadris, a imensa bolha humana fitou-o de cima para baixo. Régis sentiu o coração batendo, o sangue correndo em suas veias, como sempre acontecia
naquele tipo de confronto nervoso que caracterizara seus dias em Calimporto. E agora, como então, ele tinha toda a intenção de encontrar uma maneira de escapar.
Mas sua confiança desapareceu ao lembrar-se do companheiro. Menos experiente - e Régis rapidamente acrescentaria "menos esperto!" -, Wulfgar não deixaria
o desafio passar sem resposta. Um salto de suas pernas compridas o transportou sem dificuldade por cima da mesa e o colocou diretamente entre o gordo e Régis. Ele
retribuiu o olhar ameaçador do gordo com igual intensidade.
O gordo relanceou o olhar para seus amigos no bar, totalmente ciente de que o distorcido senso de honra de seu jovem e orgulhoso oponente impediria o primeiro
golpe.
- Ora, ora, vejam só isso - ele riu, os lábios retraídos em salivante expectativa -, parece que o moleque tem algo a dizer.
Ele começou lentamente a dar as costas a Wulfgar, depois se lançou de repente para a garganta do bárbaro, esperando que a mudança de velocidade pegasse Wulfgar
de surpresa.
Mas, apesar de inexperiente em relação aos costumes das tavernas, Wulfgar compreendia a batalha. Fora treinado por Drizzt Do'Urden, um guerreiro sempre alerta,
e trazia os músculos em sua melhor forma para o combate. Antes que as mãos do gordo sequer chegassem perto de sua garganta, Wulfgar havia agarrado o rosto do oponente
com uma de suas mãos descomunais e enfiado a outra na virilha do gordo.
O oponente atordoado viu-se erguido em pleno ar.
Por alguns segundos, os espectadores ficaram demasiado atônitos para reagir, exceto Régis, que espalmou a mão contra o próprio rosto incrédulo e deslizou
discretamente para baixo da mesa.
O gordo era mais pesado que três homens medianos, mas o bárbaro o ergueu facilmente sobre a cabeça, dois metros e meio acima do chão, e até mais alto, à máxima
extensão de seus braços.
Berrando de fúria impotente, o gordo ordenou que seus partidários atacassem. Wulfgar esperou pacientemente pelo primeiro gesto contra ele.
A turba inteira pareceu saltar de uma só vez. Mantendo a calma, o guerreiro treinado procurou pela mais densa concentração de oponentes - três homens - e
arremessou o projétil humano, observando-lhes as expressões horrorizadas pouco antes daquela montanha de banha atropelá-los e atirá-los para trás. Então, o impulso
combinado dos quatro arrancou uma seção inteira do bar de seus suportes, derrubando o desafortunado estalajadeiro e atirando-o contra as prateleiras que sustentavam
seus melhores vinhos.
A diversão de Wulfgar durou pouco, pois outros rufiões caíram rapidamente sobre ele. Plantou os calcanhares no chão, determinado a se manter de pé, e atacou
violentamente com seus imensos punhos, atirando para os lados cada um de seus inimigos e estatelando-os nos cantos mais distantes da sala.
A luta irrompeu em toda a taverna. Homens incapazes de erguer um dedo se um assassinato fosse cometido aos seus pés saltaram uns sobre os outros com fúria
desenfreada diante da visão aterrorizante de bebida derramada e de um bar quebrado.
Entretanto, foram poucos os partidários do gordo detidos pela desordem generalizada. Caíam em grandes números sobre Wulfgar, uma leva depois da outra. Ele
até que estava se saindo bem, pois ninguém conseguiu retardá-lo o bastante para que os reforços chegassem. Ainda assim, o bárbaro era atingido com a mesma freqüência
com que acertava os próprios golpes. Recebeu estoicamente os socos, bloqueando a dor com seu orgulho e sua tenacidade combativa, que simplesmente não lhe permitiriam
perder.
Desde seu novo lugar sob a mesa, Régis assistia ao combate e bebericava o hidromel. Até mesmo as criadas haviam se metido na briga, circulando pela taverna
montadas nas costas de algum combatente infeliz, usando as unhas para gravar desenhos intricados nos rostos dos homens. De fato, Régis logo discerniu que a única
outra pessoa na taverna não envolvida na luta, além dos que já estavam inconscientes, era Jierdan. O soldado continuava sentado em sua cadeira, em silêncio, indiferente
à briga e interessado apenas, aparentemente, em observar e avaliar a perícia de Wulfgar.
Aquilo também perturbou o halfling, mas ele descobriu, mais uma vez, que não tinha tempo para contemplar as ações incomuns do soldado. Régis soubera desde
o começo que precisaria tirar seu gigantesco amigo daquela confusão e agora seus olhos vigilantes haviam percebido o previsível cintilar do aço. Um ladino logo atrás
dos últimos oponentes de Wulfgar havia sacado um punhal.
- Maldição! - resmungou Régis, pousando sua bebida no chão e sacando a maça de uma prega em seu manto. Aquele tipo de coisa sempre deixava um gosto ruim em
sua boca.
Wulfgar jogou os dois oponentes para um lado, abrindo uma trilha para o homem com a faca. Ele arremeteu, os olhos erguidos a fitar os do bárbaro alto. Sequer
notou Régis disparar por entre as pernas compridas de Wulfgar, a pequena maça erguida para atacar. A arma atingiu o joelho do homem, estilhaçando-lhe a patela e
fazendo com que caísse de braços abertos - agora exposto o punhal - na direção de Wulfgar.
Wulfgar desviou-se da investida dando um passo para o lado no último segundo e fechou sua mão sobre a do atacante. Rolando com o impulso, o bárbaro derrubou
a mesa e bateu contra a parede. Um apertão esmagou os dedos do atacante contra o cabo da faca ao mesmo tempo que Wulfgar engolfava o rosto do homem com sua mão livre
e o erguia do chão. Clamando por Tempus, o deus das batalhas, o bárbaro, enfurecido com o aparecimento de uma arma, atravessou as tábuas de madeira da parede com
a cabeça do homem e o deixou ali, pendurado, os pés a trinta centímetros do chão.
Uma manobra impressionante, mas custou a Wulfgar tempo precioso. Quando de novo voltou-se para o bar, foi enterrado sob uma rajada de murros e chutes de vários
atacantes.

- Aí vem ela - Bruenor murmurou para Drizzt quando viu Sussurro voltando, embora os sentidos aguçados do drow tivessem lhe revelado a aproximação da mulher
muito antes que o anão o percebesse. Sussurro havia partido coisa de meia hora atrás, mas parecera muito mais tempo para os dois amigos no beco, perigosamente expostos
às miras dos besteiros e outros capangas que eles sabiam estar por perto.
Sussurro caminhou com confiança até eles.
- Aqui está o mapa que deseja - ela disse a Bruenor, erguendo um pergaminho enrolado.
- Deixa eu dar uma olhada, então - o anão exigiu, dando um passo a frente.
A mulher retraiu-se e abaixou o pergaminho.
- O preço agora é maior - declarou categoricamente. - Dez vezes o que você já ofereceu.
O olhar perigoso de Bruenor não a desencorajou.
- Não lhe resta alternativa - ela sibilou. - Não encontrará mais ninguém que possa lhe arranjar isto. Pague o preço e acabe logo com isso!
- Um momento - disse Bruenor, com repentina calma. - Meu amigo tem que opinar sobre isso. - Ele e Drizzt se afastaram um passo.
- Ela descobriu quem somos - explicou o drow, apesar de Bruenor já ter chegado à mesma conclusão. - E quanto podemos pagar.
- É o mapa? - perguntou Bruenor.
Drizzt assentiu.
- Ela não teria razão para acreditar que está em perigo, não aqui. Você tem o dinheiro?
- Sim - disse o anão -, mas nossa estrada ainda é longa e acho que vamos precisar de mais do que eu tenho.
- Está decidido, então - Drizzt respondeu. Bruenor reconheceu o brilho incandescente que se acendeu nos olhos cor de lavanda do drow. - Quando encontramos
esta mulher, fechamos um acordo justo - continuou ele. - Um acordo que devemos honrar.
Bruenor entendeu e aprovou. Sentiu começar o formigamento da expectativa em seu sangue. Voltou-se para a mulher e notou imediatamente que ela agora segurava
um punhal em lugar do pergaminho. Aparentemente, ela compreendia a natureza dos dois aventureiros com quem negociava.
Drizzt, percebendo também o brilho do metal, afastou-se de Bruenor, tentando parecer inofensivo para Sussurro, embora, na realidade, desejasse se colocar
num ângulo mais favorável em relação a algumas fendas suspeitas que ele notara na parede - fendas que poderiam ser as aparas de uma porta secreta.
Bruenor aproximou-se da mulher, as mãos desarmadas e os braços estendidos.
- Se esse é o preço - ele resmungou -, então não temos escolha a não ser pagar. Mas vou ver o mapa primeiro!
Confiante de que poderia enfiar o punhal no olho do anão antes que uma das mãos dele conseguisse alcançar o cinto em busca de uma arma, Sussurro relaxou e
moveu a mão livre para o pergaminho sob seu manto.
Mas ela subestimou seu oponente.
As pernas atarracadas de Bruenor se contraíram, arremessando-o alto o bastante para golpear o rosto da mulher com o elmo, arrancar-lhe sangue do nariz e bater-lhe
a cabeça na parede. Ele pegou o mapa, largando a bolsa original sobre a forma flácida de Sussurro e murmurando:
- Conforme combinado.
Drizzt também agiu rápido. Nem bem o anão se encolheu, o drow invocou a magia inerente à sua raça para conjurar um globo de escuridão em frente à janela que
abrigava os besteiros. Nenhum virote apontou, mas os gritos raivosos dos dois arqueiros ecoaram por todo o beco.
Então, as fendas na parede se abriram, como Drizzt havia antecipado, e a segunda linha de defesa de Sussurro investiu. O drow estava preparado, as cimitarras
já em suas mãos. As espadas cintilaram, apenas os lados embotados, mas com precisão suficiente para desarmar o ladino corpulento que dali saiu. Então, elas se apresentaram
novamente, atingindo o rosto do homem e, no mesmo movimento fluido, Drizzt reverteu o ângulo, dando com um botão, e depois o outro, nas têmporas do homem. Quando
Bruenor se virou com o mapa, o caminho estava livre diante dele.
Bruenor examinou a obra do drow com verdadeira admiração.
Então, um quadrelo de besta bateu na parede a menos de três centímetros de sua cabeça.
- Hora de ir - observou Drizzt.
- A ponta vai estar bloqueada, ou então sou um gnomo de barba - disse Bruenor quando eles se aproximaram da saída do beco. Um rugido no prédio ao lado
deles, seguido de gritos aterrorizados, trouxe-lhes algum consolo.
- Guenhwyvar - declarou Drizzt quando dois homens envoltos em mantos irromperam na rua diante deles e fugiram sem olhar para trás.
- Por certo que eu tinha me esquecido completamente do gato! - gritou Bruenor.
- Que bom que a memória de Guenhwyvar é melhor que a sua - riu Drizzt, e Bruenor, apesar de seus sentimentos pelo gato, gargalhou com ele. Detiveram-se ao
final do beco e inspecionaram a rua. Não havia sinal de problemas, mas a densa neblina proporcionava boa cobertura para uma possível emboscada.
- Vá devagar - sugeriu Bruenor. - Vamos chamar menos atenção.
Drizzt teria concordado mas, então, um segundo quadrelo, disparado de algum lugar lá atrás no beco, bateu numa viga de madeira entre eles.
- Hora de ir! - Drizzt declarou com veemência, apesar de Bruenor não precisar de mais encorajamento, pois suas pequenas pernas já estavam envolvidas num movimento
furioso enquanto disparava neblina adentro.
Abriram caminho por entre as voltas e curvas do labirinto de ratos que era Luskan, Drizzt passando graciosamente por sobre as barreiras de escombros e Bruenor
simplesmente atravessando-as à força. Dali a pouco, confiantes de que não eram seguidos, adotaram um passo mais tranqüilo.
O branco de um sorriso apontava por entre a barba ruiva do anão, que continuava a olhar por sobre o ombro com um ar satisfeito e malicioso no rosto. Mas,
quando ele se virou para ver a rua diante dele, mergulhou de repente para um lado, bracejando para encontrar seu machado.
Dera de cara com o gato mágico.
Drizzt não foi capaz de conter o riso.
- Tira essa coisa daqui! - exigiu Bruenor.
- Olhe os modos, meu bom anão - rebateu o drow. - Lembre-se de que Guenhwyvar abriu nossa rota de fuga.
-Tira ela daqui! - declarou Bruenor novamente, brandindo o machado, pronto para atacar.
Drizzt afagou o pescoço musculoso do poderoso felino.
- Não dê atenção às palavras dele, minha amiga - disse ele ao gato. - É um anão e não consegue apreciar a magia mais refinada!
- Ora! - rosnou Bruenor, apesar de respirar com um pouco mais de facilidade assim que Drizzt dispensou o gato e recolocou a estátua de ônix em sua
bolsa.
Os dois deram com a Rua da Meia-lua pouco depois, detendo-se num último beco para procurar sinais de emboscada. Souberam imediatamente que havia acontecido
alguma coisa, pois vários homens feridos passavam cambaleando ou carregados pela entrada do beco.

Então, viram o Alfanje e duas formas familiares sentadas na rua bem defronte.
- Que é que 'cês 'tão fazendo aí? - perguntou Bruenor quando se aproximaram.
- Parece que nosso amigo grandalhão responde aos insultos com socos - disse Régis, que saíra ileso da refrega.
O rosto de Wulfgar, porém, estava intumescido e machucado, e ele mal conseguia abrir um dos olhos. Sangue seco - um pouco do qual era seu mesmo - empastava-lhe
os punhos e as roupas.
Drizzt e Bruenor olharam um para o outro, não muito surpresos.
- E nossos quartos? - resmungou Bruenor.
Régis chacoalhou a cabeça.
- Duvido muito.
- E meu dinheiro?
De novo o halfling chacoalhou a cabeça.
- Ora! - bufou Bruenor, e ele partiu, pisando duro, em direção à porta do Alfanje.
- Eu não faria... - começou Régis, mas, então, deu de ombros e decidiu deixar Bruenor descobrir por si mesmo.
O choque de Bruenor foi total quando abriu a porta da taverna. Mesas, vidros e fregueses inconscientes jaziam em pedaços por todo o chão. O estalajadeiro
estava caído sobre uma parte do bar despedaçado, uma criada a envolver-lhe a cabeça ensangüentada em ataduras. O homem que Wulfgar implantara na parede ainda pendia
molemente pela nuca, gemendo baixinho, e Bruenor não conseguiu evitar uma risadinha diante da obra do poderoso bárbaro. De vez em quando, uma das criadas, ao passar
pelo homem enquanto limpava o recinto, dava-lhe um empurrãozinho, divertindo-se com seu balançar.
- Desperdício de bom dinheiro - inferiu Bruenor, e voltou a sair pela porta antes que o estalajadeiro o notasse e lançasse as criadas sobre ele.
- Mas que tremenda bagunça! - disse ele a Drizzt quando voltou para junto de seus companheiros. - Todo o mundo entrou na briga?
- Todos menos um - respondeu Régis. - Um soldado.
- Um soldado de Luskan, aqui? - perguntou Drizzt, surpreso pela óbvia inconsistência.
Régis assentiu.
- É ainda mais curioso - continuou ele -, era o mesmo guarda, Jierdan, que nos deixou entrar na cidade.
Drizzt e Bruenor trocaram olhares preocupados.
- Tem assassinos atrás da gente, uma estalagem arrebentada na nossa frente e um soldado dando mais atenção prá gente do que deveria - disse Bruenor.
- Hora de ir - respondeu Drizzt pela terceira vez. Wulfgar olhou para o drow, incrédulo. - Quantos homens você derrubou esta noite? - Drizzt perguntou-lhe,
colocando a suposição lógica de perigo bem diante dele. - E quantos deles não ansiariam pela oportunidade de enfiar um punhal nas suas costas?
- Além disso - acrescentou Régis, antes que Wulfgar pudesse responder -, não tenho o menor desejo de dividir a cama num beco com um bando de ratos!
- Então, para o portão - disse Bruenor Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Não com um guarda tão interessado em nós. Por cima da muralha, e que ninguém note nossa passagem.
Uma hora depois, caminhavam tranqüilamente pela vasta campina, sentindo o vento novamente, passada a barreira da muralha de Luskan. Régis resumiu seus pensamentos,
dizendo:
- Nossa primeira noite em nossa primeira cidade e enganamos assassinos, derrotamos um bando de rufiões e atraímos a atenção da guarda da cidade. Um
começo auspicioso para nossa jornada!
- É, mas temos isto! - gritou Bruenor, positivamente rebentando de expectativa para encontrar sua terra natal agora que o primeiro obstáculo, o mapa,
fora superado.
Pouco sabiam ele ou seus amigos, entretanto, que o mapa que ele apertava nas mãos com tanto amor detalhava várias regiões mortíferas, e que uma delas testaria
os quatro amigos até o limite... E além.

4. A CONJURAÇÃO

Um marco de prodigiosa arquitetura era a grande atração do centro da Cidade das Velas, um estranho edifício que emanava uma poderosa aura mágica. Diferente
de qualquer outra estrutura em todos os Reinos Esquecidos, a Torre das Hostes Arcanas parecia literalmente uma árvore de pedra, ostentando cinco torreões altos,
sendo o central o maior deles, e os outros quatro, igualmente altos, a crescer a partir do tronco principal com a graciosa curvatura de um carvalho. Não se via sinal
de alvenaria; era evidente a qualquer observador instruído que a magia - e não o trabalho físico - produzira aquela obra-de-arte.
Um Arquimago, Mestre inconteste da Torre das Hostes, residia na torre central, enquanto as outras quatro abrigavam os magos no topo da linha de sucessão.
Cada uma dessas torres menores, representando os quatro pontos cardeais, dominava uma face diferente do tronco e seu respectivo mago era responsável por zelar pela
direção que supervisionava e influenciar os acontecimentos daquele lado. Portanto, o mago a oeste do tronco passava seus dias olhando para o mar e para os navios
de mercadores e piratas que resistiam aos temporais no porto de Luskan.
Uma conversa no torreão norte teria interessado aos companheiros de Dez-Burgos naquele dia.
- Fez muito bem, Jierdan - disse Sidnéia, uma feiticeira mais jovem e de menor importância na Torre das Hostes, apesar de demonstrar potencial suficiente
para conquistar um noviciado com um dos mais poderosos magos da guilda. Sem ser bonita, Sidnéia pouco se importava com as aparências físicas, dedicando sua energia
à busca inexorável pelo poder. Ela passara a maior parte dos seus vinte e cinco anos trabalhando em prol de um objetivo - o título de Maga - e sua determinação e
atitude deixavam poucas dúvidas quanto à sua capacidade de consegui-lo.
Jierdan aceitou o elogio com um aceno sagaz da cabeça, entendendo perfeitamente a forma condescendente com que este fora oferecido.
- Agi apenas como fui instruído - ele respondeu, sob uma fachada de humildade, lançando um olhar para o homem de aparência frágil, vestindo túnicas
de um castanho variegado, que fitava o mundo lá fora pela única janela da sala.
- Por que eles viriam aqui? - murmurou o mago consigo mesmo. Ele se voltou para os demais, e eles se encolheram instintivamente diante daquele olhar.
Era Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte, e, apesar de parecer fraco à distância, um exame mais de perto revelava no homem um poder mais pujante que o
de meros músculos protuberantes. E sua merecida reputação de valorizar a busca pelo conhecimento muito mais que a vida intimidava muitos que se colocavam diante
dele.
- Os viajantes apresentaram algum motivo para vir aqui?
- Nenhum no qual eu acreditasse - replicou Jierdan tranqüilamente. - O halfling falou de inspecionar a praça do mercado, mas eu...
- Improvável - interrompeu Dendibar, falando mais consigo mesmo do que para os demais. - Esses quatro têm mais em mente do que uma mera expedição mercantil.
Sidnéia pressionou Jierdan, procurando se manter nas boas graças do Mestre do Torreão Norte.
- Onde estão eles agora? - indagou.
Jierdan não se atreveu a confrontá-la na frente de Dendibar.
- Nas docas... em algum lugar - disse, depois deu de ombros.
- Você não sabe? - sibilou a jovem feiticeira.
- Planejavam se hospedar no Alfanje - retorquiu Jierdan. - Mas a briga os deixou na rua.
- E você devia tê-los seguido! - ralhou Sidnéia, acossando implacavelmente o soldado.
- Seria tolice até mesmo para um soldado da cidade percorrer sozinho os molhes à noite - rebateu Jierdan. - Não importa onde estejam neste momento.
Tenho os portões e o cais sob vigilância. Não podem sair de Luskan sem que eu saiba!
- Quero que os encontre! - ordenou Sidnéia, mas então Dendibar a silenciou.
- Deixe a vigilância como está - ele disse a Jierdan. - Eles não devem partir sem que eu saiba. Está dispensado. Apresente-se novamente quando tiver
algo a relatar.
Jierdan assumiu a posição de sentido e virou-se para partir, lançando, ao passar, um último olhar feroz para sua rival pelas graças do mago variegado. Era
apenas um soldado, não um aprendiz promissor como Sidnéia, mas, em Luskan onde a Torre das Hostes Arcanas era a verdadeira força oculta por trás de todas as estruturas
de poder da cidade, um soldado fazia bem em procurar o favor de um mago. Os capitães da guarda somente conseguiam suas posições e seus privilégios com o consentimento
prévio da Torre das Hostes.
Não podemos permitir que eles perambulem por aí livremente - argumentou Sidnéia quando a porta se fechou atrás do soldado que saía.
Não devem causar problemas por enquanto - replicou Dendibar. - Mesmo se o drow carregar com ele o artefato, levará anos para que compreenda seu potencial.
Paciência, minha amiga, tenho maneiras de descobrir o que precisamos saber. As peças deste quebra-cabeça vão se encaixar direitinho muito em breve.
- Aflige-me pensar que tamanho poder esteja tão ao nosso alcance - suspirou a jovem e impaciente feiticeira. - E nas mãos de um principiante!
- Paciência - repetiu o Mestre do Torreão Norte.
Sidnéia terminou de acender o circuito de velas que demarcava o perímetro do aposento especial e dirigiu-se lentamente para o braseiro solitário que se achava
em seu tripé de ferro, imediatamente fora do círculo mágico inscrito no piso. Desapontava-a saber que, assim que o braseiro também estivesse ardendo, ela seria instruída
a sair. Saboreando cada momento naquela sala raramente franqueada, considerada por muitos a melhor câmara de conjuração em todas as terras do norte, Sidnéia havia
muitas vezes implorado para continuar de serviço.
Mas Dendibar nunca a deixava ficar, explicando que suas inevitáveis perguntas acabariam se revelando uma grande distração. E, quando se lidava com os mundos
inferiores, as distrações geralmente se mostravam fatais.
Dendibar sentou-se de pernas cruzadas no interior do círculo mágico, entoando mantras até entrar num profundo transe meditativo, sem nem mesmo perceber as
ações de Sidnéia, que completava os preparativos. Todos os seus sentidos se voltavam para o interior, vasculhando o próprio ser para garantir que estivesse totalmente
preparado para aquela tarefa. Ele deixara apenas uma janela em sua mente aberta para o exterior, uma fração de sua consciência à espera de uma única deixa: o estalido
do ferrolho da pesada porta sendo recolocado em seu lugar com a saída de Sidnéia.
Suas pálpebras pesadas se abriram de repente, o campo estreito da visão fixado unicamente nas chamas do braseiro. Aquelas labaredas seriam a vida do espírito
invocado e dariam a ele uma forma tangível enquanto Dendibar o mantivesse preso no plano material.
- Ey vesus venerais dimin dou - começou a entoar o mago, a princípio lentamente, depois estabelecendo um ritmo estável.
Arrebatado pela insistente atração da invocação - como se a magia, assim que tivesse recebido um bruxuleio de vida, conduzisse a si própria à conclusão
do encantamento -, Dendibar passou com desenvoltura pelas várias modulações e sílabas arcanas, o suor em seu rosto a refletir ansiedade mais que nervosismo.
O mago variegado se deleitava com as invocações, pois dominava a vontade de seres muito além do mundo mortal por meio da mera persistência de seu considerável
poder mental. Aquela sala representava o ápice de seus estudos, a evidência irrefutável dos vastos limites de seus poderes.
Dessa vez, ele tinha como alvo seu informante favorito, um espírito que verdadeiramente o desprezava, mas não podia recusar seu chamado. Dendibar chegou ao
clímax da invocação, a nomeação.
- Morkai - chamou ele, baixinho.
A chama do braseiro se avivou durante um momento.
- Morkai! - gritou Dendibar, arrancando o espírito de sua prisão no outro mundo. O braseiro formou uma pequena bola. de fogo, depois se extinguiu nas
trevas, as chamas transmutadas na imagem de um homem de pé diante de Dendibar.
Arregaçaram-se os lábios finos do mago. Que ironia, pensou ele, que o homem cujo assassinato ele arranjara acabasse se mostrando sua mais valiosa fonte de
informações.
O espectro de Morkai, o Vermelho, apresentou-se resoluto e orgulhoso, uma imagem digna do poderoso mago que fora outrora. Ele mesmo havia criado aquela sala,
na época em que servira à Torre das Hostes no papel de Mestre do Torreão Norte. Mas, então, Dendibar e seus capangas haviam conspirado contra ele, usando seu aprendiz
de confiança para enfiar um punhal em seu coração e, assim, abrir uma trilha de sucessão para o próprio Dendibar alcançar a cobiçada posição no torreão.
Esse mesmo ato havia colocado uma segunda - e talvez mais significativa - cadeia de eventos em ação, pois foi o mesmo aprendiz, Akar Kessell, que acabou possuindo
a Estilha de Cristal, o poderoso artefato que Dendibar agora acreditava estar nas mãos de Drizzt Do'Urden. As histórias que haviam chegado de Dez-Burgos sobre a
batalha final de Akar Kessell nomeavam o elfo como o guerreiro que o abatera.
Não havia como Dendibar saber que a Estilha de Cristal agora jazia enterrada sob centenas de toneladas de gelo e rocha na montanha do Vale do Vento Gélido,
conhecida como Sepulcro de Kelvin, perdida na avalanche que matara Kessell. Tudo o que sabia da história era que Kessell, o aprendiz insignificante, havia quase
conquistado todo o Vale do Vento Gélido com a Estilha de Cristal e que Drizzt Do'Urden foi o último a ver Kessell com vida.
Dendibar retorcia as mãos ansiosamente sempre que pensava no poder que a relíquia traria a um mago mais instruído.
Saudações, Morkai, o Vermelho - riu Dendibar. - Quanta cortesia aceitar meu convite.
Aceito toda oportunidade de encará-lo, Dendibar, o Assassino - replicou o espectro. - Para que possa reconhecê-lo quando você navegar no barco da
Morte pelo reino tenebroso. Então estaremos em pé de igualdade novamente...
Silêncio! - ordenou Dendibar. Embora não admitisse a verdade, o mago variegado temia imensamente o dia em que teria de enfrentar o poderoso Morkai
mais uma vez. - Eu o trouxe aqui com um propósito - disse ele ao espectro. - Não tenho tempo para suas ameaças vãs.
- Então, diga-me que serviço devo executar - sibilou o espectro -, e deixe-me partir. Sua presença me ofende.
Dendibar se enfureceu, mas não deu prosseguimento à discussão. O tempo agia contra um mago envolvido numa magia de invocação, pois esta o exauria para manter
um espírito no plano material, e cada segundo que passava o enfraquecia um pouco mais. O maior risco naquele tipo de magia era o conjurador tentar manter o controle
durante muito tempo, até que se achasse fraco demais para controlar a entidade que havia invocado.
- Uma resposta simples é tudo o que exijo de você hoje, Morkai - disse Dendibar, escolhendo cuidadosamente cada palavra enquanto prosseguia. Morkai
notou a cautela e desconfiou que Dendibar escondia algo.
- Então, qual é a pergunta? - pressionou o espectro.
Dendibar manteve a cautela, considerando cada palavra antes de pronunciá-la. Ele não queria que Morkai obtivesse uma dica sequer sobre suas razões para procurar
pelo drow, pois o espectro certamente transmitiria a informação através dos planos. Muitos seres poderosos - talvez até mesmo o próprio espírito de Morkai - partiriam
em busca de uma relíquia tão poderosa se fizessem idéia do paradeiro da estilha.
- Quatro viajantes, um deles um elfo drow, chegaram hoje a Luskan vindos do Vale do Vento Gélido - explicou o mago variegado. - O que vieram fazer
na cidade? Por que estão aqui?
Morkai examinou sua nêmese, tentando descobrir o motivo da pergunta.
- Está aí uma boa pergunta para a guarda de sua cidade - ele respondeu.
- Sem dúvida os visitantes declararam a que vieram ao entrar pelo portão.
- Mas foi a você que perguntei! - gritou Dendibar, subitamente explodindo de fúria. Morkai protelava, e cada segundo que passava agora cobrava seu
preço do mago variegado. A essência de Morkai perdera pouco poder na morte, e ele lutava teimosamente contra o encanto aprisionador da magia. Dendibar, com um gesto
rápido, abriu um pergaminho diante dele.
- lenho uma dúzia destes já redigida - avisou ele.
Morkai se encolheu. Compreendeu a natureza da escritura, um rolo de pergaminho que revelava o nome verdadeiro de seu próprio ser. E uma vez lido, despojando-o
do véu de sigilo conferido pelo nome e desnudando a privacidade de sua alma, Dendibar invocaria o poder verdadeiro do pergaminho, usando modulações desafinadas para
destorcer o nome de Morkai e desintegrar a harmonia de seu espírito, supliciando-o, assim, até o cerne de seu ser.
- Por quanto tempo devo procurar suas respostas? - perguntou Morkai.
Dendibar sorriu diante da vitória, embora seu desgaste fosse cada vez maior.
- Duas horas - ele respondeu sem delongas, tendo cuidadosamente decidido a duração da busca antes da invocação, escolhendo um limite de tempo que daria
a Morkai oportunidade suficiente para encontrar algumas respostas, mas não o bastante para permitir que o espírito descobrisse mais do que deveria.
Morkai sorriu, adivinhando os motivos por trás da decisão. Deixou-se arremessar para trás de repente e sumiu numa nuvem de fumaça, as chamas que haviam alimentado
sua forma agora relegadas ao braseiro para aguardar seu retorno.
O alívio de Dendibar foi imediato. Apesar de ainda precisar se concentrar com o intuito de manter o portal para os planos no lugar, a oposição à sua vontade
e o desgaste de seu poder diminuíram consideravelmente quando o espírito se foi. A força de vontade de Morkai quase o havia sujeitado durante a audiência, e Dendibar
sacudiu a cabeça, não querendo acreditar que o velho mestre fosse capaz, mesmo morto, de manifestar-se com tamanha força. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao considerar
se seria sábio tramar contra alguém tão poderoso. Sempre que invocava Morkai, era lembrado de que o dia do ajuste de contas certamente chegaria.
Morkai teve pouco trabalho para descobrir algo sobre os quatro aventureiros. De fato, o espectro já sabia muito sobre eles. Havia se interessado bastante
por Dez-Burgos durante seu reinado como Mestre do Torreão Norte, e a curiosidade não morrera com seu corpo. Mesmo agora, ele geralmente dava uma espiada no que acontecia
no Vale do Vento Gélido, e qualquer um que se preocupasse com Dez-Burgos em meses recentes sabia algo sobre os quatro heróis.
O interesse contínuo de Morkai no mundo que deixara para trás não era uma característica incomum no mundo espiritual. A morte alterava as ambições da alma,
substituindo o amor pelos ganhos materiais e sociais com a eterna avidez por conhecimento. Alguns espíritos observavam os Reinos durante incontáveis séculos, simplesmente
para recolher informações e observar os vivos se ocuparem de suas vidas. Talvez fosse a inveja das sensações físicas que não podiam mais sentir. Mas, não importava
o motivo, a riqueza de conhecimentos num único espírito geralmente era mais relevante que as obras reunidas em todas as bibliotecas do Reino combinadas.
Morkai descobriu muita coisa nas duas horas que Dendibar havia lhe designado. Agora era sua vez de escolher cuidadosamente as palavras. Era obrigado a satisfazer
a solicitação do conjurador, mas tinha a intenção de responder da maneira mais enigmática e ambígua possível.
Os olhos de Dendibar coruscaram ao ver as chamas do braseiro darem início à sua dança denunciadora novamente. Já se teriam passado as duas horas?
perguntou-se, pois seu descanso pareceu muito mais breve e ele sentiu que não tinha se recuperado inteiramente da primeira audiência com o espectro.
Contudo, não poderia rejeitar a dança das chamas. Aprumou-se e trouxe os tornozelos para mais junto do corpo, retesando-se e firmando sua posição meditativa, de
pernas cruzadas.
A bola de fogo fez fumaça no auge de seus estertores e Morkai apareceu diante dele. O espectro se afastou obedientemente, sem fornecer qualquer informação
até que Dendibar pedisse especificamente por ela. A história completa por trás da visita dos quatro amigos a Luskan continuava imprecisa para Morkai, mas ele muito
descobrira sobre a demanda e mais do que desejava que Dendibar viesse a saber. Ele ainda não discernira as verdadeiras intenções por trás das perguntas do mago variegado,
mas sentiu com certeza que não eram boas, não importavam os objetivos de Dendibar.
- Qual é o propósito da visita? - indagou Dendibar, furioso com a tática evasiva de Morkai.
- Foi você mesmo quem me invocou - respondeu Morkai astuciosamente. - Sou obrigado a aparecer.
- Sem joguinhos! - rosnou o mago variegado. Ele fitou o espectro, manuseando o pergaminho de tormento em franca ameaça. Famosos por responder literalmente,
os seres dos outros planos geralmente atarantavam seus conjuradores, destorcendo o sentido conotativo da exata formulação de uma pergunta.
Dendibar sorriu em concessão à lógica simples do espectro e esclareceu a pergunta:
- Qual é o propósito da visita a Luskan dos quatro viajantes do Vale do Vento Gélido?
Razões variadas - replicou Morkai. - Um deles veio em busca da terra natal de seu pai, e do pai de seu pai.
- O drow? - perguntou Dendibar, tentando encontrar alguma maneira de encadear suas suspeitas de que Drizzt planejava retornar ao seu mundo subterrâneo natal
com a Estilha de Cristal. Talvez uma insurreição dos elfos negros, usando o poder da estilha? - É o drow que busca por sua terra natal?
- Não - respondeu o espectro, contente que Dendibar houvesse se desviado por uma tangente, protelando a linha de indagação mais específica e mais
perigosa. Os minutos que se passavam logo começariam a dissipar o domínio de Dendibar sobre o espectro e Morkai esperava poder encontrar uma maneira de se libertar
do mago variegado antes de revelar coisas demais sobre a companhia de Bruenor. - Drizzt Do'Urden renunciou completamente à sua terra natal. Ele nunca mais há de
retornar às entranhas do mundo e certamente não com seus mais caros amigos a reboque!
- Então, quem?
- Um dos outros quatro foge de um perigo que deixou para trás - ofereceu Morkai, deturpando a linha de indagações.
- Quem busca sua terra natal? - indagou Dendibar mais enfaticamente.
- O anão, Bruenor Martelo de Batalha - replicou Morkai, obrigado a obedecer. - Ele procura o local de seu nascimento, o Salão de Mitral, e seus amigos
uniram-se à sua demanda. Por que isso o interessa? Os companheiros não têm ligação com Luskan e não representam uma ameaça à Torre das Hostes.
- Não o chamei aqui para responder às suas perguntas! - ralhou Dendibar. - Agora, diga-me quem está fugindo do perigo. E o que é esse perigo?
- Observe - instruiu o espectro. Com um aceno da mão, Morkai transmitiu à mente do mago variegado uma imagem, um retrato de um cavaleiro de manto negro
arremetendo impetuosamente pela tundra. O freio do cavalo estava branco de espuma, mas o cavaleiro forçava o animal a continuar implacavelmente.
- O halfling foge deste homem - explicou Morkai -, apesar de o propósito do cavaleiro continuar a ser um mistério para mim. - Contar a Dendibar até
mesmo tão pouco enfurecia o espectro, mas Morkai ainda não conseguia resistir às ordens de sua nêmese. No entanto, ele sentia os grilhões da vontade do mago afrouxando-se
e desconfiava que a invocação chegava ao fim.
Dendibar se deteve para considerar as informações.
Nada do que Morkai lhe dissera indicava qualquer ligação direta com a Estilha de Cristal, mas ao menos ele descobrira que os quatro amigos não pretendiam
permanecer em Luskan por muito tempo. E ele descobrira um possível aliado, mais uma fonte de informações. O cavaleiro de manto negro devia ser realmente poderoso
para pôr a formidável trupe do halfling em fuga pela estrada.
Dendibar começava a formular suas próximas manobras quando um repentino e insistente repelão da teimosa resistência de Morkai rompeu sua concentração. Furioso,
lançou ao espectro um olhar ameaçador e começou a desenrolar o pergaminho.
Insolente! - ele resmungou e, embora pudesse ter estendido seu domínio sobre o espectro um pouco mais caso tivesse investido sua energia numa disputa
de vontades, começou a recitar o texto do rolo de pergaminho.
Morkai se encolheu, apesar de ter conscientemente levado Dendibar a esse extremo. O espectro aceitava o suplício, pois este sinalizava o fim da inquisição.
E Morkai se considerava feliz por Dendibar não o ter forçado a revelar os acontecimentos ainda mais distantes de Luskan, no vale logo além das fronteiras de Dez-Burgos.
À medida que as recitações de Dendibar ressoavam de maneira dissonante na harmonia de sua alma, Morkai começou a deslocar o ponto focai de sua concentração
ao longo de centenas de quilômetros, de volta à imagem da caravana mercante que agora se encontrava a um dia de viagem de Bremen, o mais próximo dos Dez-Burgos,
e à imagem da corajosa moça que havia se juntado aos mercadores. O espectro se consolou em saber que ela havia, ao menos por enquanto, escapado às investigações
do mago variegado.
Não que Morkai fosse altruísta; jamais fora acusado de prodigalidade nessa característica. Ele simplesmente encontrava imensa satisfação em atrapalhar como
pudesse o tratante que havia arranjado para que ele fosse assassinado.
Os cachos castanho-avermelhados de Cattiebrie balouçavam em seus ombros. Ela estava sentada no alto da carroça que seguia à frente da caravana mercante que
partira de Dez-Burgos no dia anterior, com destino a Luskan. Sem se incomodar com a brisa gelada, ela mantinha os olhos na estrada adiante, procurando algum sinal
de que o assassino por ali passara. Ela havia transmitido informações sobre Entreri a Cássio, e ele as passaria adiante até que chegassem aos anões. Cattiebrie se
perguntava agora se havia justificativa para sua partida sorrateira com a caravana mercante antes que o Clã Martelo de Batalha pudesse organizar a perseguição por
conta própria.
Mas somente ela vira o assassino em ação. Sabia muito bem que, se os anões partissem atrás dele num ataque frontal, a cautela varrida por seu desejo de vingar
Arnês e Grollo, muitos outros do clã morreriam.
Egoisticamente, talvez, Cattiebrie havia decidido que o assassino era assunto seu. Ele a amedrontara, despojara-a de anos de treinamento e disciplina e reduzira-a
à imagem trêmula de uma criança assustada. Mas ela era uma jovem mulher agora, não mais uma menina. Precisava responder pessoalmente aquela humilhação emocional,
ou as cicatrizes seguiriam com ela até o túmulo, assombrando-a, paralisando-a por todo o sempre ao longo da senda que deveria tomar para descobrir seu verdadeiro
potencial na vida.
Ela encontraria seus amigos em Luskan e os alertaria sobre o perigo às suas costas, e então, juntos, eles dariam conta de Artemis Entreri.
- Vamos indo bem rápido - assegurou-lhe o condutor chefe, solidário com a pressa da moça.
Cattiebrie não se voltou, os olhos fixos no horizonte plano diante dela.
- Meu coração me diz que não é rápido o bastante - lamentou-se.
O condutor olhou-a, curioso, mas sabia que era melhor não forçar a questão. Ela havia deixado claro desde o começo que seu assunto era particular. E, sendo
a filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha e, conforme voz corrente, uma excelente guerreira por mérito próprio, os mercadores haviam se considerado homens de
sorte por tê-la como companhia e respeitado seu desejo de privacidade. Além disso, como argumentara com tanta eloqüência um dos condutores durante uma reunião informal
antes da viagem, "só de pensar em olhar pro traseiro de um boi por quase quinhentos quilômetros faz a idéia de ter essa moça como companhia me parecer muito boa!".
Eles haviam até antecipado a data da partida para acomodá-la.
- Não se preocupe, Cattiebrie - tranqüilizou-a o condutor -, a gente te leva até lá!
Com um balançar da cabeça, Cattiebrie removeu do rosto o cabelo açoitado pelo vento e olhou para o sol que se punha no horizonte diante dela.
- Mas será que vai dar tempo? - ela perguntou baixinho, retoricamente, sabendo que o sussurro se perderia no vento assim que passasse por seus lábios.

4. OS ROCHEDOS

Drizzt assumiu a liderança enquanto os quatro companheiros percorriam as margens do rio Mirar, distanciando-se tanto quanto possível de Luskan. Apesar de
não dormirem havia várias horas, os confrontos na Cidade das Velas tinham liberado um jato de adrenalina em suas veias e nenhum deles se sentia cansado.
Havia algo de mágico no ar daquela noite, uma estática revigorante que teria feito o mais exausto viajante se lamentar por fechar os olhos. O rio, correndo
célere e volumoso devido ao degelo da primavera, cintilava com a claridade da noitinha, as cristas espumosas das ondas a capturar a luz das estrelas, devolvendo-a
na forma de borrifos de gotículas ajaezadas.
Normalmente cautelosos, os amigos não conseguiram evitar baixar a guarda. Não sentiam o perigo a espreitá-los de perto, nada sentiam a não ser a frialdade
penetrante e agradável da noite de primavera e a misteriosa atração do firmamento. Bruenor se perdeu em sonhos com o Salão de Mitral; Régis, nas lembranças de Calimporto;
até mesmo Wulfgar, tão desanimado em relação ao seu malfadado encontro com a civilização, sentiu seu espírito se elevar. Pensava em noites semelhantes na vasta tundra,
quando sonhara com o que jazia além dos horizontes de seu mundo. Agora, Wulfgar descobriu que além daqueles horizontes, faltava apenas um elemento. Para sua surpresa
- e contra os instintos aventureiros que repudiavam esses pensamentos consoladores -, desejou que Cattiebrie, a mulher pela qual se apaixonara, estivesse ali agora
para partilhar com ele a beleza daquela noite.
Se não estivessem tão absortos no prazer individual que a noite lhes proporcionava, os outros teriam percebido uma certa vivacidade adicional também no gracioso
passo de Drizzt Do'Urden. Para o drow, aquelas noites mágicas, quando a abóbada celeste se estendia até abaixo do horizonte, reafirmavam sua confiança na decisão
mais importante e mais difícil que jamais tomara: a escolha de abandonar seu povo e sua terra natal. As estrelas não piscavam sobre Menzoberranzan, a cidade escura
dos elfos negros. Nenhuma fascinação inexplicável dedilhava as cordas da alma partindo da pedra fria do imenso teto sombrio da caverna.
- O quanto minha gente perdeu por caminhar nas trevas - esvaiu-se o murmúrio de Drizzt no ar noturno.
A atração dos mistérios do céu infinito levou a alegria de seu espírito para além dos limites normais e abriu-lhe a mente para as perguntas irrespondíveis
do multiverso. Ele era um elfo e, apesar da pele negra, restava em sua alma um aspecto da alegria harmônica de seus primos da superfície. Ele se perguntou com que
generalidade aqueles sentimentos ocorriam entre sua gente. Será que permaneciam nos corações de todos os drow? Ou séculos de sublimação teriam extinguido as chamas
espirituais? Na opinião de Drizzt, talvez a maior perda sofrida por seu povo ao se retirar para as profundezas do mundo tinha sido a perda da capacidade de filosofar
sobre a espiritualidade da existência simplesmente pelo bem da razão.
A luminosidade cristalina do Mirar foi gradualmente perdendo o brilho à medida que as estrelas eram ofuscadas pela aurora cada vez mais luminosa. Ela chegou
como uma decepção muda para os amigos enquanto estes montavam acampamento num local abrigado perto das margens do rio.
- Fiquem sabendo que são poucas as noites assim - observou Bruenor quando o primeiro raio de luz rastejou sobre o horizonte oriental. Seus olhos cintilavam,
uma insinuação do maravilhoso devaneio de que raramente desfrutava o habitualmente prático anão.
Drizzt percebeu o brilho visionário nos olhos do anão e pensou nas noites que ele e Bruenor haviam passado no alto da Ladeira de Bruenor - seu local de encontro
especial -, lá no vale dos anões, em Dez-Burgos.
- Bem poucas - ele concordou.
Com um suspiro resignado, puseram-se a trabalhar. Drizzt e Wulfgar deram início ao desjejum enquanto Bruenor e Régis examinavam o mapa obtido em Luskan.
Apesar de todos os resmungos e da implicância por causa do halfling, Bruenor o havia pressionado a acompanhá-los por uma razão bem definida - fora a amizade
- e, apesar de ter disfarçado muito bem suas emoções, o anão se encheu verdadeiramente de alegria quando Régis apareceu na estrada, deitando os bofes pela boca e
não muito longe de Dez-Burgos, com seu pedido de última hora para se juntar à demanda.
Régis conhecia as terras ao sul da Espinha do Mundo melhor que qualquer um deles. O próprio Bruenor não saíra do Vale do Vento Gélido em quase dois séculos
e, na época, era apenas uma criança-anã imberbe. Wulfgar jamais deixara o vale e a única jornada de Drizzt pela superfície do mundo havia sido uma aventura noturna,
passando de uma sombra a outra e evitando muitos dos lugares que os companheiros precisariam vasculhar se quisessem encontrar o Salão de Mitral.
Régis correu os dedos pelo mapa, recontando animadamente a Bruenor suas experiências em cada um dos lugares indicados, particularmente Mirabar, a cidade mineira
de grande riqueza, ao norte, e Águas Profundas, fiel ao nome de Cidade dos Esplendores, descendo a costa em direção ao sul.
Bruenor escorregou um dedo pelo mapa, estudando as características físicas do terreno.
Mirabar fica mais ao meu gosto - disse ele, por fim, tamborilando sobre a marca da cidade enfiada nas encostas meridionais da Espinha do Mundo. -
O Salão de Mitral fica nas montanhas, isso pelo menos eu sei, e não para o lado do mar.
Régis considerou as observações do anão apenas por um instante, depois deixou cair o dedo sobre um outro ponto, a mais de cento e cinqüenta quilômetros de
Luskan continente adentro, segundo a escala do mapa.
- Sela Longa - disse ele. - A meio caminho de Lua Argêntea e a meio caminho entre Mirabar e Águas Profundas. Um bom lugar para procurarmos nossa rota.
- Uma cidade? - perguntou Bruenor, pois a marca no mapa não passava de um pequeno ponto negro.
- Uma aldeia - corrigiu Régis. - Não há muita gente por lá, mas uma família de magos, os Harpells, vive ali há muitos anos e conhece as terras do norte
melhor que ninguém. Ficariam contentes em nos ajudar.
Bruenor coçou o queixo e assentiu.
- Uma bela caminhada. O que a gente vai encontrar no caminho?
- Os rochedos - admitiu Régis, um pouco desencorajado ao se lembrar do lugar. - Ermos e cheios de orcs. Queria que houvesse uma outra estrada, mas
Sela Longa ainda parece a melhor opção.
- Todas as estradas do norte são perigosas - lembrou-lhe Bruenor.
Continuaram a examinar o mapa, Régis a recordar cada vez mais detalhes.
Uma série de marcas incomuns e não identificadas - três, em particular, correndo numa linha quase reta exatamente a leste de Luskan e rumo ao complexo de
rios ao sul da Floresta Oculta - chamou a atenção de Bruenor.
- Cemitérios ancestrais - explicou Régis. - Lugares sagrados dos uthgardt.
- Uthgardt?
Bárbaros - respondeu Régis sombriamente. - Como os do vale. Conhecem melhor a civilização, talvez, mas não são menos ferozes. As diferentes tribos estão por
todas as terras do norte, vagando pelos ermos.
Bruenor gemeu, compreendendo o desânimo do halfling, conhecedor também dos modos selvagens e da perícia em combate dos bárbaros. Os orcs se mostrariam adversários
bem menos formidáveis.
Quando os dois terminaram a conversa, Drizzt já estava se deitando à sombra fresca de uma árvore que se debruçava sobre o rio e Wulfgar ainda tinha metade
do seu desjejum no prato que repetira três vezes.
- 'Cê ainda 'tá mastigando! - gritou Bruenor, ao notar as parcas porções deixadas na panela.
- Uma noite cheia de aventuras - Wulfgar respondeu alegremente, e os amigos ficaram contentes em observar que a briga aparentemente não havia deixado
cicatrizes em sua determinação. - Uma boa refeição, um bom sono, e eu devo estar pronto para a estrada mais uma vez!
- Bom, não vai se acomodando ainda não! - ordenou Bruenor. - Um dos três turnos de guarda de hoje é todo seu!
Régis olhou ao redor, perplexo, sempre ligeiro para reconhecer um acréscimo em sua carga de trabalho.
- Três? - ele perguntou. - Por que não quatro?
- Os olhos do elfo são prá de noite - explicou Bruenor. - Deixa ele estar pronto prá encontrar nosso caminho quando o dia tiver corrido.
- E onde fica o nosso caminho? - perguntou Drizzt, em sua cama de musgos. - Vocês chegaram a uma conclusão quanto ao nosso próximo destino?
- Sela Longa - respondeu Régis. -Trezentos e vinte quilômetros a leste e ao sul, contornando a Floresta do Inverno Remoto e através dos rochedos.
- Desconheço o nome - replicou Drizzt.
- Lar dos Harpells - explicou Régis. - Uma família de magos renomada por sua bondosa hospitalidade. Passei algum tempo lá quando estava a caminho de
Dez-Burgos.
Wulfgar refugou diante da idéia. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido desprezavam os magos, pois consideravam as artes negras um poder empregado apenas pelos
covardes.
- Não tenho a menor vontade de ver esse lugar - ele declarou categoricamente.
- Quem te perguntou? - resmungou Bruenor, e Wulfgar flagrou-se voltando atrás em sua determinação, como um filho que se recusa a sustentar um argumento
teimoso em face de uma repreensão do pai.
- Você vai gostar de Sela Longa - Régis o tranqüilizou. - Os Harpells merecem realmente a reputação de hospitaleiros, e os prodígios de Sela Longa
vão lhe mostrar uma faceta da magia que você jamais esperou ver. Eles aceitarão até mesmo... - Flagrou sua mão involuntariamente apontando para Drizzt e, constrangido,
abortou sua afirmação.
Mas o estóico drow apenas sorriu.
- Não tenha medo, meu amigo - ele consolou Régis. - Suas palavras soam verdadeiras, e eu já aceitei minha condição em seu mundo. - Ele se deteve e retribuiu
individualmente cada um dos olhares desconfortáveis que recaíam sobre sua pessoa. - Conheço meus amigos e desfaço-me de meus inimigos - declarou, com uma decisão
que afastou as preocupações deles.
Desfaz sim, com uma espada - acrescentou Bruenor, com uma risadinha baixa, apesar de os ouvidos aguçados de Drizzt captarem o sussurro.
Se for preciso - concordou o drow, sorrindo. Então, ele rolou de lado para dormir um pouco, confiando totalmente nas habilidades de seus amigos para
protegê-lo.
Passaram um dia ocioso à sombra, ao lado do rio. No fim da tarde, Drizzt e Bruenor fizeram uma refeição e discutiram a rota, deixando Wulfgar e Régis profundamente
adormecidos, pelo menos até que tivessem comido à farta.
- Vamos seguir o rio mais uma noite - disse Bruenor. - Depois, para sudeste, atravessando o terreno aberto. Isso vai livrar a gente das matas e abrir
uma trilha reta à nossa frente.
- Talvez seja melhor viajarmos somente à noite durante alguns dias - sugeriu Drizzt. - Não sabemos que olhos nos seguem desde a Cidade das Velas.
- Concordo - respondeu Bruenor. - Vamos embora, então. Uma longa estrada à nossa frente e outra mais longa ainda depois disso!
- Longa demais - murmurou Régis, abrindo um olho cheio de preguiça.
Bruenor lançou-lhe um olhar feroz. Estava ansioso - pela viagem e também por levar seus amigos a uma estrada perigosa - e, numa defesa emocional, tomava como
pessoais todas as reclamações em relação à aventura.
- Para se caminhar, quero dizer - Régis explicou rapidamente. - Há fazendas nesta área e, portanto, deve haver alguns cavalos por aí.
- Cavalos vão custar muito caro por estas bandas - replicou Bruenor.
- Talvez... - disse manhosamente o halfling, e seus amigos logo adivinharam o que ele estava pensando. Os cenhos franzidos de ambos refletiam a desaprovação
geral.
Temos os rochedos à nossa frente! - argumentou Régis. - Os cavalos podem deixar os orcs para trás mas, sem eles, certamente vamos precisar lutar a cada quilômetro
da viagem! Além disso, seria um empréstimo. Poderíamos devolver os animais quando não precisássemos mais deles.
Drizzt e Bruenor não aprovavam a trapaça sugerida pelo halfling, mas não podiam refutar sua lógica. Cavalos certamente seriam de muita ajuda naquele ponto
da jornada.
- Acorda o garoto - resmungou Bruenor.
- E quanto ao meu plano? - perguntou Régis.
- Vamos decidir quando surgir a oportunidade!
Régis ficou satisfeito, confiante de que seus amigos optariam pelos cavalos. Ele comeu até se fartar, depois juntou penosamente os parcos restos da ceia e
foi acordar Wulfgar.
Estavam a caminho novamente logo em seguida e, pouco tempo depois, viram as luzes de um pequeno povoado ao longe.
- Leva a gente até lá - Bruenor disse a Drizzt. - Pode ser que valha a pena tentar o plano do Ronca-bucho.
Wulfgar, tendo perdido a conversa no acampamento, não entendeu, mas não quis discutir nem mesmo questionar o anão. Depois do desastre no Alfanje, ele havia
se resignado a um papel mais passivo na viagem, deixando que os outros três decidissem que trilhas deveriam tomar. Seguia sem reclamar e mantinha o martelo de prontidão
para quando fosse necessário.
Afastaram-se do rio alguns quilômetros, depois encontraram várias chácaras agrupadas no interior de uma robusta cerca de madeira.
- Há cães por aí - observou Drizzt, percebendo-os com sua excepcional audição.
- Então Ronca-bucho entra sozinho - disse Bruenor.
O rosto de Wulfgar se contorceu, confuso, principalmente, já que o olhar do halfling indicava que este não estava nada entusiasmado com a idéia.
- Isso eu não posso permitir - falou pomposamente o bárbaro. - Se há alguém entre nós que precisa de proteção é o pequeno. Não vou me esconder aqui
no escuro enquanto ele caminha sozinho para o perigo!
- Ele entra sozinho - disse Bruenor novamente. - A gente não veio aqui prá brigar, garoto. Ronca-bucho vai conseguir uns cavalos prá gente.
Régis sorriu, impotente, apanhado completamente na armadilha que Bruenor havia claramente preparado para ele. Bruenor o deixaria se apropriar dos cavalos,
como Régis havia insistido, mas a permissão relutante vinha acompanhada de um certo grau de responsabilidade e bravura de sua parte. Era a maneira do anão de se
absolver por seu envolvimento no engodo.
Wulfgar permaneceu firme em sua determinação de ficar ao lado do halfling, mas Régis sabia que o jovem guerreiro poderia inadvertidamente lhe trazer problemas
em negociações tão delicadas.
- Você fica com os outros - ele explicou ao bárbaro. - Posso lidar com isso sozinho.
Reunindo sua coragem, ele puxou o cinto por sobre a barriga volumosa e partiu em direção ao pequeno povoado.
Os rosnados ameaçadores de vários cães o saudaram quando ele se aproximou da porteira. Pensou em voltar - o pingente de rubi provavelmente de nada adiantaria
contra cães ferozes - mas, então, viu o vulto de um homem deixar uma das casas e vir em sua direção.
- O que você quer? - indagou o fazendeiro, colocando-se desafiadoramente do outro lado da porteira e apertando nas mãos uma antiga arma de haste, provavelmente
passada de uma geração a outra em sua família.
Sou apenas um viajante cansado - Régis começou a explicar, tentando parecer tão digno de pena quanto pudesse. Era um conto que o fazendeiro ouvira
com demasiada freqüência.
- Vá embora! - ordenou ele.
- Mas...
- Suma!
Sobre um cômoro a uma pequena distância dali, os três companheiros assistiam à confrontação, apesar de, à luz fraca, somente Drizzt ver a cena com clareza
suficiente para entender o que acontecia. O drow via que o fazendeiro estava tenso pela maneira que segurava a alabarda e podia julgar a profunda determinação das
exigências do homem pela carranca resoluta que este trazia.
Mas, então, Régis puxou algo de sob seu paletó e quase que imediatamente o fazendeiro relaxou a pressão das mãos sobre a arma. Pouco depois, a porteira se
abriu e Régis entrou.
Os amigos esperaram ansiosamente durante várias horas extenuantes, sem qualquer outro sinal de Régis. Pensaram em confrontar os próprios fazendeiros, temendo
que alguma ignóbil perfídia houvesse ocorrido ao halfling. Então, finalmente, com a lua bem além de seu ponto culminante, Régis emergiu pela porteira, conduzindo
dois cavalos e dois pôneis. Os fazendeiros e suas famílias acenavam-lhe em despedida, fazendo-o prometer deter-se ali para uma visita caso algum dia passasse novamente
por aquelas bandas.
- Impressionante - riu Drizzt. Bruenor e Wulfgar só fizeram menear as cabeças, incrédulos.
Pela primeira vez desde que havia entrado no povoado, Régis lembrou que sua demora poderia ter causado alguma angústia aos amigos. O fazendeiro insistira
para que ele ceasse antes que se sentassem para discutir fosse lá qual o negocio que o trouxera ali, e, já que precisava ser cortês (e já que tinha ceado só uma
vez naquele dia), Régis concordou, apesar de abreviar a refeição ao máximo possível e educadamente declinar do convite para repetir o prato uma quarta vez. Conseguir
os cavalos mostrou-se bem fácil depois disso, Precisou apenas prometer deixá-los com os magos em Sela Longa quando ele e seus amigos prosseguissem a partir de lá.
Régis estava certo de que seus amigos não ficariam bravos com ele por muito tempo. Ele os fizera esperar, preocupados, durante metade da noite, mas seu
empenho pouparia a todos muitos dias numa estrada perigosa. Ele sabia que, depois de uma ou duas horas cavalgando com o vento a passar velozmente por eles, os companheiros
esqueceriam toda a raiva. Mesmo que não esquecessem com tanta facilidade, para Régis, uma boa refeição sempre valia algumas inconveniências.
Drizzt propositalmente fez o grupo se deslocar mais para leste que sudeste. Não encontrou nenhuma referência no mapa de Bruenor que lhe permitisse aproximar
a rota direta para Sela Longa. Se tentasse o caminho direto e errasse, mesmo que por pouco, eles topariam com a estrada principal que vinha da cidade nortista de
Mirabar sem saber se deveriam virar para o norte ou para o sul. Seguindo diretamente para leste, o drow tinha certeza de que alcançariam a estrada ao norte de Sela
Longa. A viagem aumentaria em alguns quilômetros, mas talvez isso lhes poupasse vários dias de retrocesso.
Durante todo o dia e a noite seguintes, a cavalgada foi fácil e desimpedida e, depois disso, Bruenor decidiu que estavam longe o suficiente de Luskan para
adotar um plano de viagem mais normal.
- A gente pode seguir de dia agora - ele anunciou no início da tarde de seu segundo dia com os cavalos.
- Prefiro a noite - disse Drizzt. Acabara de acordar e escovava seu garanhão negro, esguio, mas forte.
- Eu, não - argumentou Régis. - As noites foram feitas para se dormir, e os cavalos ficam praticamente cegos aos buracos e às pedras que poderiam estropiá-los.
- Um meio termo, então - ofereceu Wulfgar, espreguiçando-se para livrar seus ossos dos últimos vestígios de sono. - Podemos partir depois do zênite
do sol, mantendo-o às nossas costas pelo bem de Drizzt, e cavalgar até tarde da noite.
- Boa idéia, rapaz - riu Bruenor. - Parece mesmo passar do meio-dia agora. Aos cavalos, então! Hora de partir!
- Você poderia ter ficado de boca fechada até depois da ceia! - Régis resmungou para Wulfgar, levando relutantemente a sela às costas de seu pequeno
pônei branco.
Wulfgar correu a ajudar o amigo atribulado.
- Mas teríamos perdido meio dia de viagem - ele replicou.
- Que pena isso seria - retorquiu Régis.
Naquele dia, o quarto desde que haviam deixado Luskan, os companheiros chegaram aos rochedos, um trecho estreito de outeiros fragmentados e colinas onduladas.
Uma beleza rude e indomada definia o lugar, uma impressão esmagadora de natureza selvagem que dava a cada viajante que passasse por ali uma sensação de conquista,
de que ele poderia ser o primeiro a botar os olhos em cada ponto daquela paisagem. E, como sempre era o caso nos ermos, a emoção da aventura vinha acompanhada por
um certo grau de risco. Mal haviam adentrado o primeiro vale no terreno irregular e Drizzt avistou rastros que conhecia muito bem: a marcha pesada de um bando de
orcs.
- Foram feitos a menos de um dia - disse ele aos seus preocupados companheiros.
Quantos? - perguntou Bruenor.
Drizzt deu de ombros.
Uns dez pelo menos, talvez o dobro.
Vamos continuar no nosso caminho - sugeriu o anão. - Estão na nossa frente e é melhor do que se estivessem atrás da gente.
Quando veio o crepúsculo, marcando o ponto médio da jornada daquele dia os companheiros fizeram uma breve parada e deixaram os cavalos pastarem num pequeno
prado.
A trilha dos orcs ainda estava diante deles, mas Wulfgar, assumindo a retaguarda da trupe, mantinha os olhos voltados para trás.
- Estão nos seguindo - disse ele, diante dos rostos inquisitivos de seus amigos.
- Orcs? - Régis perguntou.
O bárbaro meneou a cabeça:
- Não como os que eu conheço. Pelo que sei, nossos perseguidores são espertos e cautelosos.
- Pode ser que os orcs daqui conheçam melhor que os orcs do vale os hábitos das pessoas de bem - disse Bruenor, mas ele desconfiava que não se tratavam
de orcs e não precisava olhar para Régis para saber que o halfling tinha a mesma preocupação. A primeira marca do mapa que Régis identificara como um cemitério ancestral
não poderia estar muito longe de sua posição atual.
- De volta aos cavalos - sugeriu Drizzt. - Uma cavalgada forçada pode melhorar bastante nossa posição.
Siga até depois da lua se pôr - concordou Bruenor - E pare quando tiver encontrado um lugar onde a gente possa resistir ao ataque. Tenho a impressão que vamos
ter luta antes da aurora pegar a gente de surpresa!
Eles não encontraram nenhum sinal palpável durante a cavalgada que os levou praticamente a atravessar toda a extensão dos rochedos. Até mesmo a trilha dos
orcs desapareceu mais ao norte, deixando o caminho diante deles aparentemente livre. Wulfgar, porém, estava certo de que captara vários sons arás deles e movimentos
na periferia de seu campo visual.
Drizzt teria preferido continuar até que tivessem deixado os rochedos completamente para trás mas, no terreno agreste, os cavalos haviam atingido o limite
de sua resistência. Parou num pequeno bosque de pinheiros no topo de uma pequena elevação, suspeitando, como os demais, de que olhos hostis os observavam de várias
direções.
Drizzt já estava no alto de uma das árvores antes que os outros tivessem sequer desmontado. Amarraram os cavalos bem juntos e posicionaram-se ao redor dos
animais. Nem mesmo Régis conseguiria dormir, pois, apesar de confiar na visão noturna de Drizzt, a expectativa já fazia o sangue circular rápido em suas veias.
Bruenor, um veterano de centenas de batalhas, tinha toda a confiança em sua perícia em combate. Recostou-se tranqüilamente contra uma árvore, o machado chanfrado
sobre o peito, uma das mãos bem firme sobre a empunhadura da arma.
Wulfgar, porém, fez outros preparativos. Começou a reunir paus e galhos quebrados e a afiar suas pontas. A procura de toda e qualquer vantagem, ele os distribuiu
em posições estratégicas ao redor da área para que oferecessem a melhor disposição defensiva possível, usando suas pontas mortíferas para reduzir o número de rotas
de aproximação dos atacantes. Escondeu astuciosamente outros paus em ângulos que fariam com que os orcs tropeçassem e neles se empalassem antes que conseguissem
alcançá-lo.
Régis, o mais nervoso de todos, assistiu a tudo e percebeu as diferenças nas táticas dos seus amigos. Sentiu que pouco poderia fazer a fim de se preparar
para tal luta e procurou apenas manter-se fora do caminho para não atrapalhar as diligências de seus companheiros. Talvez surgisse a oportunidade para desferir um
ataque de surpresa, mas ele sequer considerou essa possibilidade naquele momento. A bravura ocorria espontaneamente ao halfling. Com certeza nunca era algo que ele
planejasse.
Com tantas distrações e preparativos a desviar-lhes a atenção da nervosa expectativa, foi quase um alívio quando, coisa de uma hora depois, a ansiedade se
tornou realidade. Drizzt cochichou para os demais que havia movimento nos campos abaixo do bosque.
- Quantos? - retornou Bruenor.
- Quatro para um contra nós, talvez mais - Drizzt replicou. O anão se voltou para Wulfgar:
- 'Cê 'tá pronto, garoto?
Wulfgar bateu de leve no martelo diante dele.
- Quatro contra um? - ele riu.
Bruenor apreciava a confiança do jovem guerreiro, apesar de saber que a desvantagem poderia de fato mostrar-se maior, já que Régis provavelmente não se envolveria
no combate franco.
- A gente deixa eles vir ou pega eles no campo? - Bruenor perguntou a Drizzt.
- Deixe-os vir - replicou o drow. - O fato de se aproximarem furtiva mente mostra que eles acreditam ter a surpresa como aliada.
- E uma surpresa revertida é, de longe, muito melhor que o primeiro golpe - completou Bruenor. - Faça o que puder com seu arco quando a coisa começar, elfo.
A gente vai estar te esperando!
Wulfgar imaginou as chamas que se acendiam nos olhos cor de lavanda do drow, uma luz mortífera que jamais correspondia à calma exterior de Drizzt antes de
uma batalha. O bárbaro se consolou, pois a sede de batalha do drow sobrepujava a sua, e ele nunca vira as cimitarras sibilantes superadas por nenhum adversário.
Ele bateu de leve no martelo novamente e agachou-se num buraco ao lado das raízes de uma das árvores.
Bruenor se meteu entre os corpos volumosos de dois dos cavalos, enfiando os pés nos estribos de cada um dos animais, e Régis, depois de ter recheado os sacos
de dormir para lhes dar a aparência de corpos adormecidos, fugiu em disparada sob os ramos baixos de uma das árvores.
Os orcs se aproximaram do acampamento em formação circular, obviamente esperando um ataque fácil. Drizzt sorriu, esperançoso, ao notar as falhas no círculo,
os flancos expostos que impediriam o rápido socorro a qualquer grupo isolado. O bando inteiro alcançaria o perímetro do bosque ao mesmo tempo, e Wulfgar, o mais
próximo da orla, muito provavelmente desferiria o primeiro golpe.
Os orcs se aproximaram sorrateiramente, um grupo se esgueirava em direção aos cavalos, um outro em direção aos sacos de dormir. Quatro deles passaram por
Wulfgar, mas ele esperou mais um segundo e permitiu que os demais se aproximassem o suficiente dos cavalos para Bruenor atacar.
Então, passou o momento de se esconder.
Wulfgar saltou de seu esconderijo com Garra de Palas, seu martelo de guerra mágico, já em movimento.
- Tempus! -gritou ele para seu deus das batalhas, e o primeiro golpe atingiu ruidosamente o alvo, levando dois orcs ao chão.
O outro grupo correu a desamarrar os cavalos, a fim de tirá-los do acampamento, esperando dar um fim a todas as rotas de fuga.
Mas foram saudados pelos rosnados do anão e pelo clangor de seu machado!
Os orcs surpreendidos saltaram para as selas, e Bruenor dividiu um deles ao meio e arrancou a cabeça de um segundo antes que os outros dois percebessem que
haviam sido atacados.
Drizzt escolheu como alvos os orcs mais próximos aos grupos sob ataque e atrasou tanto quanto pôde os reforços. A corda de seu arco zuniu uma, duas, três
vezes, e um número igual de orcs caiu ao chão, os olhos fechados e as mãos impotentemente cerradas em torno das hastes das flechas assassinas.
Os ataques de surpresa haviam penetrado profundamente as fileiras de seus inimigos e agora o drow sacava as cimitarras e deixava-se cair de sua posição elevada,
confiante de que ele e seus companheiros conseguiriam liquidar rapidamente o resto do bando. Entretanto, seu sorriso durou pouco, pois, ao descer, ele notou mais
movimentação no campo.
Drizzt caíra no meio de três criaturas, as espadas já em movimento antes mesmo que seus pés tocassem o solo. Os orcs não estavam totalmente surpresos - um
deles vira o drow cair -, mas Drizzt apanhou-os desequilibrados, ainda completando o giro que colocaria suas armas em ação.
Com os golpes rápidos do drow, a menor hesitação significava a morte certa, e Drizzt era o único sob controle em meio àquela confusão de corpos. Suas cimitarras
desferiram talhos e estocadas na carne dos orcs com precisão mortal.
O sucesso de Wulfgar havia sido igualmente auspicioso. Ele encarou duas das criaturas e, apesar de serem guerreiros ferozes, os orcs não se igualavam em força
ao gigantesco bárbaro. Um deles conseguiu erguer a arma tosca a tempo de bloquear o golpe de Wulfgar, mas Garra de Palas atravessou-lhe a defesa, estilhaçando a
arma e depois o crânio do desafortunado orc, sem nem mesmo perder velocidade devido ao esforço.
Bruenor foi o primeiro a ter problemas. Seus ataques iniciais foram perfeitos, o que o deixou com apenas dois oponentes de pé: uma desvantagem que o anão
apreciava. Mas, em meio à comoção, os cavalos empinaram e dispararam, rompendo as amarras que os prendiam aos galhos. Bruenor caiu por terra e, antes que conseguisse
se recuperar, teve a cabeça pinçada pelo casco de seu próprio pônei. Um dos orcs também foi derrubado, mas o último se livrou da confusão e correu para dar cabo
do anão atordoado assim que os cavalos deixaram a área.
Por sorte, um daqueles momentos espontâneos de bravura se apoderou de Régis naquele instante. Ele saiu sorrateiramente de sob a árvore, postando-se silenciosamente
atrás do orc. Era alto para um orc e, mesmo nas pontas dos pés, Régis não gostou do ângulo que se apresentava para um golpe contra a cabeça do monstro. Dando de
ombros, resignado, o halfling reverteu sua estratégia.
Antes que o orc pudesse sequer dar início ao golpe que abateria Bruenor, a maça do halfling subiu por entre seus joelhos, chocando-se contra sua virilha e
erguendo-o do chão. A vítima, aos berros, levou às mãos ao ferimento, revirou os olhos a esmo e foi ao chão sem mais ambições de lutar.

Tudo acontecera apenas num instante, mas a vitória ainda não fora conquistada Outros seis orcs entraram na refrega, dois deles interromperam a tentativa
de Drizzt de chegar até Régis e Bruenor, três outros correram em auxílio do companheiro solitário que enfrentava o gigantesco bárbaro. E um deles rastejando pela
mesma trajetória tomada por Régis, aproximou-se do halfling desavisado.
No mesmo instante em que Régis distinguiu o grito de alerta do drow, uma clava o atingiu entre as omoplatas, arrancando-lhe o ar dos pulmões e atirando-o
ao solo.
Wulfgar agora era acossado pelos quatro lados e, apesar de sua gabolice antes da batalha, descobriu que não gostava nada daquela situação. Concentrou-se em
aparar os golpes, esperando que o drow conseguisse chegar até ele antes que suas defesas sucumbissem.
Ele se encontrava em terrível inferioridade numérica.
Uma espada orc entrou-lhe numa costela, uma outra lhe cortou o braço.
Drizzt sabia que poderia derrotar os dois que agora enfrentava, mas duvidava que conseguisse fazê-lo a tempo de ajudar seu amigo bárbaro ou o halfling. E
havia ainda reforços no campo.
Régis rolou para se postar bem ao lado de Bruenor, e os gemidos do anão deixaram claro que a luta terminara para ambos. Então, o orc estava sobre ele, a clava
erguida acima da cabeça e um sorriso maldoso a se espalhar em sua cara feia. Régis fechou os olhos, sem vontade de assistir à queda do golpe que o mataria.
Então, ouviu o som do impacto... acima dele.
Assustado, ele abriu os olhos. Uma machadinha se achava encravada no peito do seu atacante. O orc olhou para a coisa, atordoado. A clava despencou inofensivamente
atrás do orc e ele também caiu de costas, morto.
Régis não entendeu.
- Wulfgar? -perguntou ele, para ninguém.
Uma forma descomunal, quase tão grande quanto a de Wulfgar, saltou sobre ele e precipitou-se sobre o orc, arrancando ferozmente a machadinha do peito da criatura.
Era humano e vestia as peles de um bárbaro, mas, diferente das tribos do Vale do Vento Gélido, os cabelos daquele homem eram negros. - Ah, não - gemeu Régis, lembrando-se
de seus próprios alertas para Bruenor sobre os bárbaros uthgardt. O homem salvara sua vida, mas, conhecendo a reputação do selvagem, Régis duvidava que uma amizade
se formaria a partir daquele encontro. Ele começou a se sentar, desejando expressar sua sincera gratidão e dispersar quaisquer idéias hostis que o bárbaro pudesse
em relação a ele. Pensou até mesmo em usar o pingente de rubi para evocar alguns sentimentos amistosos.
Mas o grandalhão, percebendo o movimento, girou de repente e deu-lhe um pontapé no rosto.
Régis caiu de costas e tudo ficou escuro.

5. PÔNEIS CELESTES

Bárbaros de cabelos negros, aos gritos, tomados pelo frenesi da batalha, irromperam no bosque. Drizzt percebeu imediatamente que aqueles guerreiros corpulentos
eram as formas que vira no campo, movendo-se por trás das fileiras de orcs, mas ele ainda não tinha certeza se eram aliados ou inimigos.
Não importava de que lado estavam, a chegada dos bárbaros infundiu terror nos orcs remanescentes. Os dois que combatiam Drizzt perderam toda a vontade de
lutar, revelando o desejo de desistir do confronto e fugir com uma súbita alteração de postura. Drizzt lhes fez a vontade, certo de que não iriam muito longe de
qualquer maneira e sentindo que também seria aconselhável sumir de vista.
Os orcs fugiram, mas seus perseguidores logo os envolveram em nova batalha pouco além das árvores. Menos óbvio em sua fuga, Drizzt subiu, sorrateiro e despercebido,
de volta à arvore onde deixara seu arco.
Wulfgar foi incapaz de sublimar com a mesma facilidade sua ânsia de batalhas. Com dois de seus amigos inconscientes, sua sede pelo sangue dos orcs era insaciável,
e o novo grupo de homens que se juntara à luta clamava por Tempus - seu próprio deus das batalhas - com um fervor que o jovem guerreiro não conseguiria ignorar.
Distraído pela repentina marcha dos acontecimentos, o círculo de orcs em volta de Wulfgar se afrouxou por apenas um instante, e ele golpeou com força.
um orc desviou o olhar, e Garra de Palas lacerou-lhe a cara antes que seus olhos retornassem à luta. Wulfgar varou a falha no círculo, empurrando um segundo
orc ao passar. Enquanto a criatura cambaleava, tentando se virar para realinhar a defesa, o poderoso bárbaro a abateu com um só golpe. Os outros dois se viraram
e fugiram, mas Wulfgar seguiu em seus calcanhares.
Arremessou o martelo, arrancou a vida de um deles e saltou sobre o outro, levando-o ao chão sob seu peso e depois esmagou-o até a morte com as Próprias mãos.
Ao terminar, depois de ouvir o derradeiro estalido das vértebras do pescoço, Wulfgar lembrou-se de sua situação e de seus amigos. Ficou de pé num salto
e recuou, de costas para as árvores.
Os bárbaros de cabelos negros guardaram distância, respeitando-lhe a habilidade, e não havia como Wulfgar ter certeza das intenções deles. Olhou ao redor,
procurando pelos amigos. Régis e Bruenor jaziam lado a lado, perto de onde os cavalos haviam sido amarrados; não sabia dizer se estavam vivos ou mortos. Não havia
sinal de Drizzt, mas ainda se combatia além da outra orla do bosque.
Os guerreiros se dispuseram num amplo semicírculo ao redor dele, bloqueando todas as rotas de fuga. Mas interromperam de repente seu posicionamento, pois
Garra de Palas retornara magicamente às mãos de Wulfgar.
Ele não seria capaz de vencer tantos assim, mas a idéia não o intimidava. Morreria lutando, como um verdadeiro guerreiro, e sua morte seria lembrada. Se os
bárbaros de cabelos negros o atacassem, sabia que muitos não retornariam às respectivas famílias. Fincou os calcanhares no solo e apertou firmemente o martelo de
guerra nas mãos.
- Acabemos logo com isso - ele grunhiu para as trevas.
- Espere! - veio de cima um sussurro baixo, mas imperativo. Wulfgar imediatamente reconheceu a voz de Drizzt e relaxou as mãos. - Mantenha sua honra,
mas saiba que mais vidas estão em jogo além da sua!
Wulfgar compreendeu então que Régis e Bruenor provavelmente ainda estavam vivos. Deixou Garra de Palas cair e gritou para os guerreiros:
- Bons olhos os vejam!
Não responderam, mas um deles, quase tão alto e musculoso quanto Wulfgar, deixou as fileiras e aproximou-se para se colocar diante dele. O estranho usava
o cabelo comprido preso numa única trança que lhe descia pelo lado do rosto e por sobre o ombro. As faces se achavam pintadas de branco, à semelhança de asas. A
resistência de sua constituição e a disposição disciplinada de seu rosto refletiam uma vida inteira na imensidão agreste e, não fosse pela cor negra dos cabelos,
Wulfgar o teria julgado um membro das tribos do Vale do Vento Gélido.
O homem moreno também reconheceu Wulfgar; contudo, mais versado nas estruturas universais das sociedades do norte, não ficou tão perplexo com as semelhanças.
- Você é do vale - disse ele numa forma imperfeita da língua geral. - Além das montanhas, onde sopra o vento frio.
Wulfgar assentiu.
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce. Temos os mesmos deuses, pois eu também clamo a Tempus por força e coragem.
O homem moreno olhou ao redor, para os orcs abatidos.
- O deus responde ao seu chamado, guerreiro do vale.
O queixo de Wulfgar se ergueu de orgulho.
- Também temos em comum o ódio pelos orcs - continuou ele -, mas nada sei sobre o seu povo.
- Há de aprender - respondeu o homem moreno.
Ele estendeu a mão e indicou o martelo de guerra. Wulfgar se aprumou, firme sem a menor intenção de se render, não importavam suas chances de sobrevivência.
O homem moreno olhou de lado, atraindo o olhar de Wulfgar. Dois guerreiros haviam apanhado Bruenor e Régis e os carregavam nas costas, enquanto outros haviam já
recapturado os cavalos e os traziam pelas rédeas.
- A arma - exigiu o homem moreno. - Você está em nossas terras sem nossa permissão, Wulfgar, filho de Beornegar. O preço de tal crime é a morte. Vai assistir
à execução da sentença dos seus amiguinhos?
O Wulfgar mais jovem teria atacado naquele instante e provocado a perdição de todos eles num arroubo de fúria gloriosa. Mas Wulfgar muito aprendera com seus
novos amigos, particularmente com Drizzt. Ele sabia que Garra de Palas retornaria ao seu chamado e sabia também que Drizzt não os abandonaria. Não era hora de lutar.
Ele até mesmo deixou que lhe amarrassem as mãos, um ato de desonra que nenhum guerreiro da Tribo do Alce jamais permitiria. Mas Wulfgar tinha fé em Drizzt.
Suas mãos seriam liberadas novamente. Então, seria sua a última palavra.
Quando chegaram ao acampamento dos bárbaros, tanto Régis quanto Bruenor haviam recobrado a consciência e, amarrados, caminhavam ao lado de seu amigo bárbaro.
O sangue seco formava crostas nos cabelos de Bruenor, e ele perdera o elmo, mas sua resistência de anão fizera com que sobrevivesse a mais um confronto mortal.
Galgaram o cimo de uma elevação e chegaram ao perímetro de um círculo de tendas e fogueiras chamejantes. Ao som dos brados em louvor a Tempus, a volta do
bando de guerra despertou o acampamento e cabeças decepadas de orcs foram atiradas dentro do círculo para anunciar a gloriosa chegada dos guerreiros. O fervor no
interior do acampamento logo se igualou ao do bando guerra que chegava, e os três prisioneiros foram os primeiros a entrar, aos empurrões, para serem saudados por
vinte bárbaros aos berros.
- O que é que eles comem? - perguntou Bruenor, mais por sarcasmo que preocupação.
- Seja lá o que for, é bom alimentá-los, e rápido - respondeu Régis, conseguindo do guarda atrás dele um tapa na nuca e um aviso para ficar calado.
Os prisioneiros e os cavalos foram reunidos no centro do acampamento, e a tribo os cercou numa dança de vitória, chutando cabeças de orcs e entoando em
voz alta, numa língua desconhecida pelos companheiros, seu louvor a Tempus e a Uthgar - o herói ancestral - pelo sucesso da noite.
Aquilo continuou durante quase uma hora e, então, acabou de repente, e todos os rostos no círculo se voltaram para a aba fechada de uma tenda grande e ornamentada.
O silêncio se prolongou por um instante antes que a aba se abrisse de repente. Para fora saltou um ancião, esguio como um mastro de tenda, demonstrando, porém,
mais energia do que se esperaria de sua óbvia idade avançada. O rosto pintado com as mesmas marcas dos guerreiros, só que mais elaboradas, ele usava sobre um dos
olhos um tapa-olho com uma imensa gema verde costurada nele. Sua túnica era do mais puro branco, as mangas se revelavam como asas recobertas de penas sempre que
ele agitava os braços. Dançou e rodopiou pelas fileiras de guerreiros, e todos prendiam a respiração e se encolhiam até que ele tivesse passado.
- Chefe? - sussurrou Bruenor.
- Xamã - corrigiu Wulfgar, melhor conhecedor dos costumes da vida tribal. O respeito que os guerreiros mostravam àquele homem advinha de um temor muito
além daquele que um inimigo mortal, ou até mesmo um líder, seria capaz de provocar.
O xamã girou e saltou, pousando bem diante dos três prisioneiros. Olhou para Bruenor e Régis durante apenas um instante, depois voltou toda a sua atenção
para Wulfgar.
- Sou Valric Olhar Alto - berrou ele, de repente. - Sacerdote dos seguidores dos Pôneis Celestes! Os filhos de Uthgar!
- Uthgar! - repetiram os guerreiros, batendo suas machadinhas contra os escudos de madeira.
Wulfgar esperou até que a comoção se extinguisse, depois se apresentou:
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce.
- E eu sou Bruenor... - começou o anão.
- Silêncio! - berrou-lhe Valric, tremendo de raiva. - Não dou a mínima para você!
Bruenor fechou a boca e alimentou sonhos que envolviam seu machado e a cabeça de Valric.
- Não era a nossa intenção lhes fazer mal, nem invadir - começou Wulfgar, mas Valric ergueu a mão e o interrompeu.
- Seu propósito não me interessa - explicou com calma, mas sua agitação ressurgiu imediatamente. -Tempus nos entregou vocês, isso é tudo! Um guerreiro
valoroso?
Ele olhou ao redor, para seus próprios homens, e a resposta deles mostrou impaciência pelo desafio iminente.
_ A quantos você fez jus? - ele perguntou a Wulfgar.
- Sete tombaram diante de mim - respondeu orgulhosamente o jovem bárbaro.
Valric assentiu, com ar aprovador.
- Alto e forte - comentou ele. - Descubramos se Tempus está ao seu lado Julguemos se você é digno de correr com os Pôneis Celestes!
Gritos irromperam imediatamente e dois guerreiros se apressaram a desamarrar Wulfgar. Um terceiro, o líder do bando de guerra que falara a Wulfgar no arvoredo,
lançou ao chão a machadinha e o escudo e adentrou o círculo com impetuosidade.
Drizzt esperou em sua árvore até que o último membro do bando de guerra partisse, após desistir da busca pelo cavaleiro da quarta montaria. Então, o drow
se moveu rapidamente e juntou alguns dos objetos abandonados: o machado do anão e a maça de Régis. Contudo, foi obrigado a estacar e a se controlar ao encontrar
o elmo de Bruenor, manchado de sangue, a ostentar um novo amassado e um dos chifres, quebrado. Teria seu amigo sobrevivido?
Ele enfiou o elmo quebrado em sua mochila e escapuliu-se atrás do grupo, mantendo uma distância cautelosa.
O alívio o inundou ao chegar ao acampamento e avistar seus três amigos, Bruenor tranqüilo entre Wulfgar e Régis. Satisfeito, Drizzt recolheu suas emoções
e todos os pensamentos referentes ao confronto anterior, focalizou sua perspicácia na situação diante dele e formulou um plano de ataque para libertar seus amigos.
O homem moreno ofereceu as palmas abertas a Wulfgar, convidando sua contraparte loura a segurá-las. Wulfgar jamais vira aquele desafio antes, mas não era
tão diferente das provas de força que sua própria gente praticava.
Seus pés não devem se mexer! - instruiu Valric. - Este é o desafio de força! Que Tempus nos mostre seu valor!
A fisionomia determinada de Wulfgar não revelava o menor sinal de sua confiança em poder derrotar qualquer homem numa prova como aquela. Ele nivelou suas
mãos com as do oponente.
O homem agarrou-as furiosamente e rosnou para o imenso forasteiro. Quase imediatamente, antes que Wulfgar tivesse sequer firmado as mãos ou posicionado os
pés, o xamã gritou para que começassem, e o homem moreno impeliu as mãos adiante, fazendo com que as costas de Wulfgar se dobrassem sobre seus pulsos. Os gritos
irromperam em cada canto do acampamento; o homem moreno rugia e empurrava com toda a sua força, mas, passado o momento da surpresa, Wulfgar reagiu.
Os músculos de ferro no pescoço e nos ombros de Wulfgar se retesaram subitamente, e seus braços descomunais se avermelharam com o afluxo forçado de sangue
em suas veias. Tempus realmente o abençoara; restava apenas ao seu pujante oponente ficar embasbacado diante do espetáculo de sua força. Wulfgar fitou-o diretamente
nos olhos e retribuiu o rosnado com um olhar determinado que profetizava a vitória inevitável. Então, o filho de Beornegar se jogou para frente, interrompendo o
impulso inicial do homem moreno e forçando as próprias mãos de volta a um ângulo mais normal em relação a seus pulsos. Readquirida a paridade, Wulfgar percebeu que
um empurrão repentino deixaria seu oponente na mesma desvantagem da qual ele acabara de escapar. Dali em diante, seria improvável que o homem moreno se agüentasse
por muito tempo.
Mas Wulfgar não estava ansioso para pôr fim à peleja. Ele não queria humilhar seu oponente - isso apenas criaria um inimigo - e, mais importante ainda, ele
sabia que Drizzt estava por perto. Quanto mais conseguisse prolongar a peleja - e manter os olhos de cada membro da tribo fixos nele -, mais tempo Drizzt teria para
colocar algum plano em ação.
Os dois homens se agüentaram ali durante vários segundos e Wulfgar não conseguiu evitar um sorriso quando percebeu a forma escura que se esgueirava por entre
os cavalos, atrás dos guardas fascinados, do outro lado do acampamento. Não saberia dizer se era ou não sua imaginação, mas pensou ter visto dois pontos de chama
lilás a fitá-los desde as trevas. Mais alguns segundos, decidiu, apesar de saber que se arriscava por não dar logo fim ao desafio. O xamã poderia declarar um empate
se eles permanecessem imóveis durante muito tempo.
Mas, então, acabou. As veias e os tendões nos braços de Wulfgar saltaram e seus ombros se ergueram ainda mais alto.
-Tempus - vociferou, glorificando o deus por ainda mais uma vitória e, então, com uma repentina e feroz explosão de energia, obrigou o homem moreno a se ajoelhar.
A toda a sua volta, o acampamento se quedou silencioso. Até mesmo o xamã ficou sem palavras diante daquela exibição.
Dois guardas se moveram hesitantemente para flanquear Wulfgar.
O guerreiro derrotado se levantou e ficou ali, a encarar Wulfgar. Nenhum sinal de fúria desfigurava seu rosto, apenas a honesta admiração, pois os Pôneis
Celestes eram um povo honrado.
- Nós poderíamos acolhê-lo - disse Valric. - Você derrotou Torlin, filho de Jerek Caçador do Lobo, Chefe dos Pôneis Celestes. Torlin nunca havia sido superado
antes!
___ E meus amigos? - perguntou Wulfgar.
- Não dou a mínima para eles! - devolveu Valric. - O anão será libertado numa trilha que leva para fora de nossas terras. Não temos desavenças com ele ou
sua gente, nem desejamos ter qualquer negócio com eles!
O xamã olhou dissimuladamente para Wulfgar.
- O outro é um fraco - declarou. - Há de servir para marcar seu ritual de passagem na tribo, seu sacrifício para o cavalo alado.
Wulfgar não respondeu imediatamente. Eles testaram sua força e agora testavam sua lealdade. Os Pôneis Celestes haviam lhe prestado sua mais alta honraria
ao lhe oferecer um lugar na tribo, mas somente sob a condição de que ele demonstrasse lealdade sem sombra de dúvida. Wulfgar pensou em seu próprio povo e no modo
como tinham vivido durante tantos séculos na tundra. Mesmo agora, muitos dos bárbaros do Vale do Vento Gélido teriam aceitado os termos e matado Régis, pois consideravam
a vida de um halfling um pequeno preço por tamanha honra. Essa era a desilusão da existência de Wulfgar com sua gente, a faceta do código moral deles que se mostrara
inaceitável aos seus padrões pessoais.
- Não - ele respondeu a Valric, sem pestanejar.
- É um fraco! - argumentou Valric. - Somente os fortes merecem a vida!
- Não serei eu a decidir o destino dele - respondeu Wulfgar. - E nem você.
Valric fez sinal para os guardas, e eles imediatamente reataram as mãos de Wulfgar.
- Uma perda para o nosso povo - Torlin disse a Wulfgar. - Você teria recebido uma posição de honra entre nós.
Wulfgar não respondeu, sustentando o olhar de Torlin por um longo momento, partilhando o respeito e também a compreensão mútua de que seus códigos eram diferentes
demais para uma associação como aquela. Numa impossível fantasia comum, ambos se imaginaram lutando lado a lado, abatendo orcs às dezenas e inspirando os bardos
a compor uma nova lenda.
Era a vez de Drizzt atacar. O drow se detivera ao lado dos cavalos para ver o resultado da peleja e também para avaliar melhor seus inimigos. Planejou seu
ataque de modo a causar mais efeito que dano, pois desejava encenar um grande espetáculo a fim de intimidar uma tribo de guerreiros destemidos tempo suficiente para
que seus amigos deixassem o círculo.
Sem dúvida, os bárbaros haviam ouvido falar dos elfos negros. E, sem duvida, as histórias que tinham ouvido eram apavorantes.
Em silêncio, Drizzt amarrou os dois pôneis atrás dos cavalos, depois montou os corcéis, um pé no estribo de cada um deles. Erguendo-se entre ambos, sobranceiro,
atirou para trás o capuz do manto. Com o perigoso brilho em seus olhos cor de lavanda a cintilar furiosamente, ele fez as montarias dispararem rumo ao interior do
círculo, o que dispersou os atordoados bárbaros mais próximos.
Gritos de raiva se ergueram dos surpresos homens da tribo e o tom dos brados assumiu um aspecto de terror assim que os bárbaros viram a pele negra. Torlin
e Valric se voltaram para encarar a ameaça que se aproximava, mas nem mesmo eles sabiam lidar com a personificação de uma lenda.
E Drizzt tinha um truque preparado para eles. Com um aceno de sua mão negra, chamas púrpuras e frias irromperam da pele de Torlin e Valric, o que lançou os
dois bárbaros supersticiosos num frenesi de pânico. Torlin caiu de joelhos, agarrando os braços, incrédulo, e o excitável xamã se jogou no chão e começou a rolar
na terra.
Wulfgar aproveitou sua deixa. Um novo afluxo de força em seus braços arrebentou as correias de couro que lhe prendiam os pulsos. Ele deu continuidade ao impulso
das mãos, brandindo-as para cima, e acertou diretamente as faces dos dois guardas ao seu lado, atirando-os de costas ao chão.
Bruenor também compreendeu seu papel. Pisou com todo seu peso no peito do pé do bárbaro solitário entre ele e Régis e, quando o homem se abaixou para levar
as mãos ao pé dolorido, Bruenor deu-lhe uma cabeçada na fronte. O homem tombou tão facilmente quanto Sussurro o fizera no Beco do Rato, em Luskan.
- Ei, também funciona sem o elmo! - admirou-se Bruenor.
- Só se for a cabeça de um anão! - observou Régis enquanto Wulfgar agarrava a ambos pelos colarinhos e erguia-os com facilidade até as selas dos pôneis.
Ele também montou imediatamente, ao lado de Drizzt, e os quatro arremeteram pelo outro lado do acampamento. Tudo acontecera rápido demais para que os bárbaros
preparassem as armas ou dessem forma a algum tipo de defesa.
Drizzt deu a volta com seu cavalo e posicionou-se atrás dos pôneis para proteger a retaguarda.
- Corram! - ele gritou para seus amigos, batendo nas ancas das montarias com a parte chata das cimitarras. Os outros três gritaram vitória como se
a fuga já se houvesse completado, mas Drizzt sabia que aquela havia sido a parte fácil. A aurora se aproximava, célere, e, naquele terreno irregular e des conhecido,
os bárbaros nativos os alcançariam facilmente.
Os companheiros arremeteram pelo silêncio da madrugada e escolheram o caminho mais direto e mais fácil para ganhar tanto terreno quanto possível.
Drizzt ainda mantinha um olho na retaguarda, esperando que os bárbaros bem na cola deles. Mas a comoção no acampamento havia se extinguido quase imediatamente
depois da fuga, e o drow não via sinais de perseguição.
A ora só se ouvia um único brado, o canto ritmado de Valric numa língua nenhum dos viajantes compreendia. O pavor no rosto de Wulfgar fez todos se deterem.
Os poderes de um xamã - explicou o bárbaro.
No acampamento, Valric estava sozinho com Torlin no interior do círculo formado por sua gente, entoando um cântico e dançando o ritual supremo de sua posição,
invocando o poder do Animal Espiritual de sua tribo. O aparecimento do elfo drow havia amedrontado completamente o xamã. Ele interrompeu a perseguição antes que
esta tivesse início e correu para sua tenda em busca do sagrado bornal de couro necessário para o ritual, pois decidira que o espírito do cavalo alado, o Pégaso,
deveria lidar com aqueles invasores.
Valric escolheu Torlin como receptáculo da forma do espírito, e o filho de Jerek aguardava a possessão com estóica dignidade, odiando o ato, pois isso o despojava
de sua identidade, mas resignado à absoluta obediência ao xamã.
Entretanto, a partir do momento em que a coisa começou, Valric compreendeu, em meio à sua agitação, que se havia excedido na urgência da invocação.
Torlin emitiu um grito estridente e foi ao chão, contorcendo-se de agonia. Uma nuvem cinzenta o envolveu, os vapores revoltos se combinaram à sua forma e
remodelaram suas feições. Seu rosto inchou e se contorceu e, de repente, projetou-se para assumir o aspecto da cabeça de um cavalo. Seu torso também se transmutou
em algo inumano. Valric tivera a intenção de apenas emprestar um pouco das forças do espírito do Pégaso a Torlin, mas a própria entidade viera e possuíra o homem
inteiramente, subjugando-lhe o corpo à sua própria imagem.
Torlin foi consumido.
Em seu lugar apareceu a forma espectral do cavalo alado. Todos na tribo caíram de joelhos diante dele, até mesmo Valric, que não conseguia encarar a imagem
do Animal Espiritual. Mas o Pégaso conhecia os pensamentos do xamã e compreendia as necessidades dos seus filhos. As narinas do espírito soltaram fumaça, o animal
se elevou no ar e partiu em perseguição aos invasores que fugiam.
s amigos haviam imposto um passo mais confortável, embora ligeiro, às montarias. livres das amarras, com a aurora rompendo diante deles e nenhuma perseguição
aparente às suas costas, eles tinham se acalmado um pouco. Bruenor remexia o elmo nas mãos, tentando desamassá-lo o suficiente para recolocar a coisa em sua cabeça.
Até mesmo Wulfgar, tão impressionado ao ouvir o cântico do xamã pouco antes, começou a relaxar.
Somente Drizzt, sempre cauteloso, não se convenceu tão facilmente de que haviam escapado. E foi o drow quem primeiro percebeu a aproximação do perigo.
Nas cidades escuras, os elfos negros geralmente lidavam com seres de outro mundo e, no decorrer de muitos séculos, essas criaturas engendraram na raça dos
drow uma sensibilidade às suas emanações mágicas. Drizzt deteve repentinamente o cavalo e fez a volta.
- Que é que 'cê 'tá ouvindo? - perguntou-lhe Bruenor.
- Não ouço nada - respondeu Drizzt, os olhos dardejando em busca de algum sinal. - Mas há algo lá.
Antes que conseguissem responder, a nuvem cinzenta se precipitou do céu e se abateu sobre eles. Os cavalos corcovearam e empinaram, tomados de um pânico incontrolável,
e, na confusão, nenhum dos amigos conseguiu discernir o que acontecia. O Pégaso, então, formou-se bem na frente de Régis e o halfling sentiu um frio mortal a penetrar-lhe
os ossos. Ele gritou e caiu de sua montaria.
Bruenor, cavalgando ao lado de Régis, investiu intrepidamente contra a forma espectral. Mas o arco descendente do machado encontrou apenas uma nuvem de fumaça
onde a aparição estivera. Então, tão repentinamente quanto desaparecera, o espírito retornou, e Bruenor também sentiu o frio gélido de seu toque. Mais forte que
o halfling, ele conseguiu se manter sobre o pônei.
- O que? - ele gritou em vão para Drizzt e Wulfgar.
Garra de Palas passou por ele com um silvo e seguiu em frente até o alvo. Mas o Pégaso era só fumaça novamente, e o martelo de guerra mágico passou sem encontrar
resistência através da nuvem turbilhonante.
Num instante, o espírito estava de volta, precipitando-se sobre Bruenor. O pônei do anão rodopiou e foi ao chão num esforço frenético de escapar da criatura.
- Não vai conseguir atingi-lo! - Drizzt gritou para Wulfgar, que correu em auxílio do anão. - A criatura não existe totalmente neste plano!
As fortes pernas de Wulfgar controlaram o cavalo apavorado e o bárbaro golpeou assim que Garra de Palas retornou às suas mãos. Mas, novamente, encontrou apenas
fumaça.
- Então, como? - ele berrou para Drizzt, os olhos dardejando em busca dos primeiros sinais do espírito a se reformar.
Drizzt vasculhou sua mente em busca das respostas. Régis ainda estava 'lido e imóvel sobre o campo, e Bruenor, embora não tivesse sido ferido tão gravemente
ao cair do pônei, parecia aturdido e tremia devido ao frio sobrenatural. Drizzt agarrou-se a um plano desesperado. Sacou de sua bolsa a estátua de ônix da pantera
e chamou por Guenhwyvar.
O espírito retornou e atacou com fúria renovada. Baixou primeiro sobre Bruenor, envolvendo o anão com suas asas frias.
- Maldito seja daqui até o Abismo! - vociferou Bruenor em corajosa oposição.
Entrando precipitadamente na luta, Wulfgar perdeu o anão completamente de vista, exceto pela cabeça do machado que continuava a irromper inofensivamente através
da fumaça.
Então, a montaria do bárbaro estacou, recusando-se, contra todos os esforços, a se aproximar ainda mais do animal sobrenatural. Wulfgar saltou de sua sela
e investiu, lançando-se diretamente através da nuvem antes que o espírito conseguisse se reformar, e seu impulso fez com que tanto ele quanto Bruenor saíssem do
outro lado do manto fumarento. Rolaram para longe e olharam para trás, apenas para descobrir que o espírito havia desaparecido completamente mais uma vez.
As pálpebras de Bruenor pendiam pesadamente, sua pele apresentava um lívido tom de azul e, pela primeira vez em sua vida, seu espírito indomável não tinha
peito para lutar. Wulfgar também experimentara o toque gélido ao atravessar o espírito, mas ele ainda estava disposto a lutar mais um assalto com a criatura.
- Não podemos lutar contra isto! - disse Bruenor, ofegante e entre dentes. -Aparece prá atacar, mas some quando é a nossa vez!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, desafiador.
Tem de haver uma maneira! - reclamou ele, apesar de obrigado a admitir que o anão estava certo. - Mas meu martelo não é capaz de destruir nuvens!
Guenhwyvar apareceu ao lado de seu mestre e colocou-se rente ao solo, em busca da nêmese que ameaçava o drow. Drizzt compreendeu as intenções do gato.
Não! - ordenou. - Aqui não. - O drow se lembrou de algo que Guenhwyvar fizera vários meses antes. Para salvar Régis das pedras que caíam no desabamento de
uma torre, Guenhwyvar levara o halfling numa jornada -s aos planos da existência. Drizzt agarrou a pelagem espessa da pantera.
- Leve-me à terra do espírito - instruiu ele. - Para o próprio plano dele, onde minhas penetrarão fundo seu ser substancial.
O espírito apareceu novamente ao mesmo tempo em que Drizzt e o gato desapareciam numa outra nuvem.
- Continue golpeando! - Bruenor disse ao seu companheiro. -.
Mantenha a coisa na forma de fumaça prá ela não conseguir te atacar!
- Drizzt e o gato se foram! - gritou Wulfgar.
- Para a terra do espírito - explicou Bruenor.
Drizzt levou um bom tempo para se orientar. Ele adentrara um lugar de realidades diferentes, uma dimensão onde tudo, até mesmo sua própria pele, assumia o
mesmo tom de cinza, sendo os objetos apenas distinguíveis por uma delicada e bruxuleante linha negra que lhes servia de contorno. Sua percepção de profundidade era
inútil, pois não havia sombreados e nenhuma fonte discernível de luz para utilizar como referência. E não achava onde pôr os pés, nada tangível abaixo dele, nem
mesmo conseguia saber que direção era para cima ou para baixo. Esses conceitos não pareciam fazer sentido ali.
Ele distinguiu os contornos cambiantes do Pégaso quando este saltava entre os planos, nunca inteiramente num ou noutro lugar. Tentou se aproximar do animal
e descobriu que a propulsão era um ato da mente e o corpo automaticamente seguia as instruções da vontade. Ele se deteve diante das linhas cambiantes, a cimitarra
mágica erguida para golpear quando o alvo aparecesse inteiramente.
Então, o contorno do Pégaso se completou, e Drizzt enterrou sua espada na bruxuleante linha negra que lhe marcava a forma. A linha se transformou, arqueou-se,
e o contorno da cimitarra também estremeceu, pois ali até mesmo as propriedades da lâmina de aço assumiam uma composição diferente. Mas o aço se mostrou o mais forte,
e a cimitarra retomou seu fio recurvo e perfurou a linha do espírito. Veio então uma súbita titilação no gris, como se a linha do espírito estremecesse num arrepio
de agonia.
Wulfgar viu a nuvem de fumaça se evolar de repente, quase se rematerializando na forma do espírito.
- Drizzt! - gritou para Bruenor. - Ele está enfrentando o espírito em pé de igualdade!
- Prepare-se, então! - Bruenor respondeu ansiosamente, apesar de saber que seu próprio papel na luta havia terminado. - Pode ser que o drow traga a
coisa de volta prá você por tempo suficiente para um golpe! - Bruenor abraçou o próprio corpo, tentando arrancar o frio de seus ossos, e tropeçou na forma imóvel
do halfling.
O espírito se voltou contra Drizzt, mas a cimitarra o golpeou novamente. E Guenhwyvar lançou-se na refrega, as grandes garras do gato a dilacerar o contorno
negro do inimigo. O Pégaso se afastou com um giro sobre as patas compreendendo que não tinha qualquer vantagem contra inimigos u próprio plano. Seu único recurso
era se retirar para o plano material.
Onde Wulfgar aguardava.
Assim que a nuvem retomou sua forma, Garra de Palas a golpeou. Wulfgar sentiu um golpe consistente por apenas um instante e compreendeu que atingira o alvo.
Então, a fumaça foi como que soprada para longe.
O espírito voltou para Drizzt e Guenhwyvar, mais uma vez enfrentando as tocadas e arranhões implacáveis dos dois. Trocou de planos novamente e Wulfgar desferiu
um golpe rápido. Encurralado e sem ter para onde fugir, o espírito recebia golpes em ambos os planos. Toda vez que se materializava diante de Drizzt, o drow percebia
que seu contorno surgia mais fino e menos resistente aos seus golpes. E toda vez que a nuvem se rematerializava diante de Wulfgar, sua densidade diminuía. Os amigos
haviam vencido e Drizzt assistiu satisfeito, à essência do Pégaso livrar-se da forma material e flutuar para longe através do gris.
Leve-me para casa - o cansado drow instruiu Guenhwyvar. Um instante depois, ele estava de volta ao campo, ao lado de Bruenor e Régis.
- Ele vai viver - Bruenor declarou categoricamente em resposta ao olhar interrogativo de Drizzt. - Acho que ele 'tá é desmaiado, não morto.
A uma pequena distância dali, Wulfgar também estava curvado sobre uma forma, prostrada, deturpada e aprisionada numa transformação a meio caminho entre homem
e animal.
- Torlin, filho de Jerek - explicou Wulfgar. Ele ergueu os olhos para o acampamento dos bárbaros. - Valric fez isto. O sangue de Torlin suja-lhe as
mãos!
- Opção de Torlin, talvez? - ofereceu Drizzt.
Nunca! - insistiu Wulfgar. - Quando nos enfrentamos no desafio, meus olhos viram honra. Ele era um guerreiro. Nunca teria permitido isto! - Ele deu um passo
para longe do cadáver, deixando que os restos mutilados enfatizassem o horror da possessão. Na postura paralisada da morte, o rosto de Torlin retivera parte dos
traços de um homem e parte do espírito eqüino.
- Ele era filho do chefe deles - explicou Wulfgar. - Não poderia recusar o pedido do xamã.
- Foi corajoso ao aceitar esse destino - observou Drizzt.
- Filho do chefe deles? - riu Bruenor, desdenhoso. - Parece que a gente colocou mais inimigos ainda na estrada atrás da sente! Eles vão querer ajustar as
contas.
- E eu também! - proclamou Wulfgar. - Você tem nas mãos o sangue dele, Valric, Olhar Alto! - ele berrou para a imensidão, os gritos a ecoar pelos outeiros
dos rochedos. Wulfgar olhou para trás, para seus amigos, e a fúria fervilhava em suas feições ao declarar soturnamente - Hei de vingar a desonra de Torlin.
Com um aceno da cabeça, Bruenor demonstrou sua aprovação à dedicação do bárbaro aos próprios princípios.
- Uma nobre missão - concordou Drizzt, estendendo sua espada para o leste, em direção a Sela Longa, a próxima parada em sua jornada. - Mas para um outro dia.


6. PUNHAL E CAJADO

Entreri estava de pé sobre uma colina a alguns quilômetros da Cidade das Velas, a fogueira do acampamento lucilava logo atrás dele. Régis e companhia haviam
se utilizado daquele mesmo lugar em sua última parada antes de entrar em Luskan e, de fato, a fogueira do assassino ardia na mesmíssima coivara. Mas, não era uma
coincidência. Entreri imitara cada movimento do grupo do halfling desde que lhes encontrara o rastro logo ao sul da Espinha do Mundo. Movia-se com eles, seguindo-lhes
de perto os progressos num esforço para compreender melhor suas ações.
Agora, ao contrário do grupo que perseguia, os olhos de Entreri não repousavam sobre a muralha da cidade, nem mesmo se voltavam em direção a Luskan. Várias
fogueiras haviam surgido no norte, em meio à escuridão, na estrada que levava a Dez-Burgos. Não era a primeira vez que aquelas luzes apareciam às suas costas, e
o assassino sentia que também era seguido. Ele havia desacelerado seu ritmo frenético, imaginando que poderia facilmente recobrar o tempo perdido enquanto os companheiros
cuidavam de seus negócios em Luskan. Desejava proteger a própria retaguarda de todo e qualquer perigo antes de se concentrar em apanhar o halfling. Entreri havia
até mesmo deixado sinais indicadores de sua passagem, atraindo seus perseguidores cada vez mais para perto.
Ele aplacou as brasas da fogueira com a ponta do pé e voltou à sela, pois decidira ser melhor enfrentar uma espada pela frente do que um punhal pelas costas.
Cavalgou noite a dentro, confiante na escuridão. Era seu ambiente, onde cada sombra aumentava a vantagem de alguém que vivia nas sombras.
Ele amarrou a montaria antes da meia-noite, perto o bastante das fogueiras para completar a jornada a pé. Percebia agora que se tratava de uma caravana mercante,
algo nada incomum na estrada para Luskan naquela época do ano. Mas sua noção do perigo o incomodava. Os muitos anos de experiência haviam aguçado seus instintos
de sobrevivência, e ele sabia que não devia ignorá-los.
Insinuou-se no interior do acampamento, à procura do caminho mais fácil até o círculo de carroças. Os mercadores sempre dispunham muitas sentinelas ao redor
do perímetro de seus acampamentos e até mesmo os cavalos representavam um problema, pois os mantinham amarrados bem ao lado dos respectivos arreios.
Ainda assim, o assassino não desperdiçaria a viagem. Viera de muito longe e tinha a intenção de descobrir o propósito daqueles que o seguiam. Deslizando sobre
o ventre, abriu caminho até o perímetro e começou a rodear o acampamento por sob o círculo defensivo. Silencioso demais para ser percebido até mesmo pelos ouvidos
mais atentos, ele passou por dois guardas que jogavam dados. Então, passou por sob e entre os cavalos, os animais a abaixar as orelhas de medo, embora não emitissem
nenhum som.
Depois de percorrer metade do círculo, ele quase se convenceu de que se tratava de uma caravana mercante comum e estava prestes a esgueirar-se de volta às
trevas quando ouviu uma familiar voz feminina:
- 'Cê disse que viu um ponto de luz ao longe. Entreri se deteve, pois reconheceu quem falava.
- É, logo ali - um homem respondeu.
Entreri se esgueirou entre as duas carroças seguintes e espiou. Os interlocutores estavam a uma pequena distância dele, atrás da carroça seguinte, perscrutando
a noite na direção de seu acampamento. Ambos estavam vestidos para a batalha, e a mulher carregava comodamente sua espada.
- Subestimei você - sussurrou Entreri para si mesmo ao ver Cattiebrie. O punhal ajaezado já estava em sua mão. - Um erro que não repetirei - acrescentou,
depois se abaixou e procurou uma trilha que o levasse até o alvo.
- 'Cês foram bons prá mim, me trazendo tão rápido - disse Cattiebrie. - 'Tô te devendo, assim como Régis e os outros.
- Então, diga-me - o homem insistiu. - Para que a pressa?
Cattiebrie lutou com a lembrança do assassino. Ela ainda não se conformara com o pavor que sentira naquele dia, na casa do halfling, e sabia que não o faria
até que tivesse vingado as mortes dos dois amigos anões e resolvido sua própria humilhação. Seus lábios se apertaram e ela não respondeu.
- Como queira - cedeu o homem. - Seus motivos justificam a pressa, não temos dúvida. Se parecemos nos intrometer, isso apenas demonstra nosso desejo
de ajudar você como pudermos.
Cattiebrie se voltou para ele com um sorriso de sincero apreço no rosto. Já se dissera o bastante, e os dois ficaram ali, fitando em silêncio o horizonte
inane.
Silenciosa também foi a aproximação da morte.
Entreri se esgueirou por baixo da carroça e ergueu-se subitamente entre os dois, uma das mãos estendida para cada um deles. Agarrou o pescoço de Cattiebrie
com força suficiente para impedir que ela gritasse e silenciou o homem para todo o sempre com seu punhal.
Olhando por sobre os ombros de Entreri, Cattiebrie viu a horrenda expressão petrificada no rosto de seu companheiro, mas não conseguiu entender porque ele
não gritara, pois sua boca não estava coberta.
Entreri alterou ligeiramente sua posição e ela compreendeu. Apenas o abo do punhal ajaezado era visível, a cruzeta rente ao lado inferior do queixo do homem.
A lâmina delgada encontrara o cérebro do mercador antes que ele sequer percebesse o perigo. Entreri usou o punho da arma para conduzir sua vítima silenciosamente
até o chão, depois a arrancou.
Mais uma vez, a mulher se viu paralisada diante do horror de Entreri. Sentiu que deveria se livrar dele e alertar o acampamento, muito embora ele certamente
a matasse. Ou sacar sua espada e ao menos tentar resistir. Mas ela apenas observou, impotente, enquanto Entreri lhe retirava o próprio punhal do cinto e, trazendo-a
consigo, abaixava-se para inserir a arma no ferimento fatal.
Então, ele tirou-lhe a espada e a empurrou para baixo da carroça e dali para longe do perímetro do acampamento.
Por que não consigo gritar? - ela se perguntou repetidas vezes, pois o assassino, confiante no nível de terror que inspirava, nem mesmo a segurava enquanto
os dois se esgueiravam noite adentro. Ele sabia, e Cattiebrie tinha de admitir para si mesma, que ela não entregaria a própria vida com tanta facilidade.
Por fim, quando já estavam a uma distância segura do acampamento, ele a fez girar para encará-lo, e também ao punhal.
- Seguir-me? - perguntou, rindo dela. - O que você ganharia com isso?
Ela não respondeu, mas descobriu que sua força retornava. Entreri também o sentiu.
- Se você gritar, vou matá-la. - declarou categoricamente. - E então, juro, hei de retornar aos mercadores e matá-los a todos também!
Ela acreditou.
- Eu geralmente viajo com os mercadores - mentiu, controlando o tremor em sua voz. -É um dos deveres de meu posto como soldado de Dez-
Burgos.
Entreri riu da moça novamente. Depois, desviou o olhar em direção ao nada, e suas feições assumiram um ar introspectivo.
- Talvez isto me seja vantajoso - disse ele retoricamente, pois o início de um plano tomava forma em sua mente.
Cattiebrie o estudou, preocupada com a possibilidade de que ele tivesse descoberto algum modo de transformar sua expedição em algo danoso para seus amigos.
- Não vou matar você, ainda não - disse ele. - Quando encontrarmos o halfling, os amigos dele não o defenderão. Por sua causa.
- Não vou fazer nada prá te ajudar! - foi a resposta veemente de Cattiebrie. - Nada!
- Precisamente - sibilou Entreri. - Você não há de fazer nada. Não com uma faca no seu pescoço - levou a arma à garganta dela numa mórbida provocação
-, arranhando sua pele macia. Quando meus negócios estiverem acabados, moça corajosa, seguirei em frente e você há de ficar com a sua vergonha e a sua culpa. E as
suas explicações aos mercadores, que acreditam que você assassinou o companheiro deles! - Na verdade, Entreri não acreditou por um instante sequer que seu truque
com o punhal de Cattiebrie enganaria os mercadores. Era meramente uma arma psicológica endereçada à moça, destinada a instilar ainda mais uma dúvida e outra preocupação
em sua confusão de emoções.
Cattiebrie não respondeu às declarações do assassino com o menor sinal de emoção. Não, ela disse para si mesma, não vai ser desse jeito!
Mas, no fundo, ela imaginava se sua determinação apenas disfarçava o medo, sua própria crença de que seria contida novamente pelo horror da presença de Entreri
e de que a cena se desenrolaria exatamente como ele havia previsto.
Jierdan encontrou o acampamento sem muita dificuldade. Dendibar usara sua mágica para rastrear o misterioso cavaleiro por todo o caminho desde as montanhas
e havia enviado o soldado na direção correta.
Tenso, a espada desembainhada, Jierdan entrou no acampamento. O lugar estava deserto, mas não havia muito tempo. Mesmo a alguns metros de distância, o soldado
de Luskan sentia o calor agonizante da fogueira. Agachando-se para disfarçar sua silhueta contra a linha do horizonte, rastejou em direção a uma mochila e um cobertor
bem ao lado do fogo.
Entreri conduziu lentamente sua montaria de volta ao acampamento, esperando que o que deixara para trás pudesse ter atraído alguns visitantes. Cattiebrie
vinha sentada diante dele, amarrada e amordaçada com toda segurança, embora ela acreditasse inteiramente, para seu desagrado, que seu próprio terror tornava desnecessárias
as amarras.
O cauteloso assassino percebeu que alguém entrara no acampamento antes mesmo de se aproximar do local. Escorregou de sua sela, levando a prisioneira consigo.
- Um corcel nervoso - explicou, obviamente deleitando-se com o aviso soturno enquanto amarrava Cattiebrie às patas traseiras do cavalo. - Se você se
debater, ele vai escoiceá-la até a morte.
Então, Entreri desapareceu, misturando-se à escuridão como se ele próprio fosse uma extensão das trevas.
Jierdan deixou a mochila cair de volta ao chão, frustrado, pois o conteúdo da mesma nada mais era que o equipamento comum de viagem e nada revelava sobre
o dono. O soldado era um veterano de muitas campanhas e derrotara tanto homens quanto orcs centenas de vezes, mas agora estava nervoso, sentindo algo de incomum
e mortífero a respeito daquele cavaleiro. Um homem com a coragem de cavalgar sozinho pelo trajeto selvagem desde o Vale do Vento Gélido até Luskan não era um guerreiro
inexperiente.
Jierdan se sobressaltou, mas não ficou demasiado surpreso, quando a ponta de um punhal veio descansar subitamente na cavidade vulnerável em sua nuca, logo
abaixo da base do crânio. Ele não se moveu e nada disse, esperando que o cavaleiro pedisse alguma explicação antes de fazer uso da arma.
Entreri viu que sua mochila fora vasculhada, mas reconheceu o uniforme forrado de peles e sabia que aquele homem não era um ladrão.
- Estamos fora das fronteiras de sua cidade - disse ele, segurando a faca com firmeza. - O que você quer no meu acampamento, soldado de Luskan?
- Sou Jierdan do portão norte - ele respondeu. - Vim encontrar um cavaleiro proveniente do Vale do Vento Gélido.
- Que cavaleiro?
- Você.
Entreri se sentiu perplexo e incomodado com a resposta do soldado. Quem enviara aquele homem e como soubera onde procurar? Os primeiros pensamentos do assassino
se concentraram no grupo de Régis. Talvez o halfling tivesse conseguido alguma ajuda da guarda da cidade. Entreri devolveu a faca à sua bainha, certo de que poderia
recuperá-la a tempo de repelir qualquer ataque.
Jierdan também compreendeu a serena confiança do ato e toda idéia que pudesse ter de atacar aquele homem desapareceu.
- Meu mestre deseja uma audiência - disse ele, pensando ser aconselhável se explicar melhor. - Uma reunião para benefício de ambos.
- Seu mestre? - perguntou Entreri.
- Um cidadão de grande prestígio - explicou Jierdan. - Ele ficou sabendo de sua chegada e acredita que possa ajudá-lo em sua busca.
- O que ele sabe sobre os meus negócios? - rebateu Entreri, irritado por alguém ter se atrevido a espioná-lo. Mas também se sentiu aliviado, pois o
envolvimento de alguma outra estrutura de poder na cidade explicava muita coisa e eliminava, talvez, a suposição lógica de que o halfling estivesse por trás daquele
encontro.
Jierdan deu de ombros.
- Sou apenas o mensageiro. Mas eu também posso ser de ajuda para você. No portão.
- Dane-se o portão - rosnou Entreri. - Eu passaria pelas muralhas com facilidade. E uma rota mais direta até os lugares que procuro.
- Mesmo assim, conheço esses lugares e as pessoas que os controlam.
A faca saltou da bainha, intervindo e detendo-se pouco antes da garganta de Jierdan.
- Você sabe demais, mas explica pouco. É um joguinho perigoso, solda do de Luskan.
Jierdan não piscou.
- Quatro heróis, vindos de Dez-Burgos, chegaram a Luskan cinco dias atrás: um anão, um halfling, um bárbaro e um elfo negro. - Nem mesmo Artemis Entreri
conseguiu esconder um sinal de agitação diante da confirmação de suas suspeitas, e Jierdan o notou. - Desconheço-lhes a exata localização, mas conheço a área onde
estão se escondendo. Está interessado?
A faca retornou mais uma vez à sua bainha.
- Espere aqui - instruiu Entreri. - Tenho uma companheira que via jará conosco.
- Meu mestre disse que você cavalgava sozinho - questionou Jierdan.
O sorriso vil de Entreri fez um calafrio percorrer a espinha do soldado.
- Eu a adquiri - explicou ele. - Ela é minha e é tudo o que você precisa saber.
Jierdan não forçou a questão. Seu suspiro de alívio foi audível quando Entreri desapareceu de vista.
Cattiebrie cavalgou até Luskan desamarrada e sem a mordaça, mas o domínio de Entreri sobre ela não era menos aprisionador. O aviso que lhe dera ao buscá-la
no campo fora sucinto e inquestionável.
- Um gesto insensato - ele dissera - e você morre. E morre sabendo que o anão, Bruenor, há de sofrer por sua insolência.
O assassino nada mais dissera a Jierdan sobre ela, e o soldado não perguntou, embora a mulher o intrigasse, e bastante. Jierdan sabia que Dendibar obteria
as respostas.
Entraram na cidade ao fim daquela manhã, sob o olhar suspeito do Guardião do Dia do Portão Norte. O suborno custara a Jierdan uma semana de soldo, e ele sabia
que sua dívida seria ainda maior quando retornasse naquela noite, pois o acordo original com o Guardião do Dia permitia a passagem de forasteiro; nada fora dito
sobre a mulher. Mas, se as ações de Jierdan lhe trouxessem o favor de Dendibar, então os dois valeriam o preço.
De acordo com o código da cidade, os três deixaram seus cavalos no estábulo logo depois da muralha, e Jierdan conduziu Entreri e Cattiebrie pelas da Cidade
das Velas, passando pelos mercadores e mascates de olhos sonolentos que já haviam deixado suas casas desde antes do amanhecer, rumo ao próprio coração da cidade.
O assassino não se surpreendeu, uma hora depois, ao chegarem a um extenso bosque de densos pinheiros. Ele desconfiara que Jierdan estava de algum modo ligado
àquele lugar. Passaram por uma abertura na linha e viram-se diante da mais alta estrutura da Cidade, a Torre das Hostes Arcanas.
Quem é seu mestre? - Entreri perguntou bruscamente.
Jierdan casquinou, a coragem alentada pela visão da torre de Dendibar.
- Você vai conhecê-lo em breve.
- Hei de saber agora - grunhiu Entreri. - Ou nossa reunião está terminada. Estou dentro da cidade, soldado, e não mais necessito de sua assistência.
- Eu poderia fazer com que os guardas o expulsassem - devolveu Jierdan. - Ou coisa pior!
Mas Entreri deu a última palavra.
- Eles nunca encontrariam os restos do seu corpo - prometeu, e a fria certeza de seu tom de voz fez empalidecer as faces de Jierdan.
Cattiebrie percebeu a troca de ameaças com mais do que uma ligeira preocupação pelo soldado, imaginando se logo chegaria o momento em que poderia explorar
a natureza desconfiada de seus captores e disso extrair alguma vantagem.
- Sirvo a Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte - declarou Jierdan, encontrando forças na menção do nome de seu poderoso mestre.
Entreri ouvira o nome antes. A Torre das Hostes era um lugar-comum nos bochichos por toda a Luskan e a região circundante, e o nome de Dendibar, o Variegado,
surgia com freqüência em meio às conversas, que o descreviam como um mago ambicioso e ávido de poder, e insinuavam que o homem tinha um lado sombrio e sinistro que
lhe permitia conseguir o que desejava. Era perigoso, mas potencialmente um aliado poderoso. Entreri ficou satisfeito.
- Leve-me a ele agora - disse a Jierdan. - Vamos descobrir se temos ou não negócios a tratar.
Sidnéia esperava para escoltá-los a partir do vestíbulo da Torre das Hostes. Sem oferecer nem pedir apresentações, ela os conduziu através das passagens
serpeantes e portas secretas até o salão de audiências de Dendibar, o Variegado. O mago lá aguardava, em grande estilo, envergando suas mais finas vestes e tendo
diante dele um almoço fabuloso.
- Saudações, cavaleiro - disse Dendibar, depois dos necessários, apesar de incômodos, momentos de silêncio enquanto os dois lados mediam um ao outro.
- Sou Dendibar, o Variegado, como você já deve saber. Você e sua adorável companheira partilhariam de minha mesa?
A voz estridente do mago irritou os nervos de Cattiebrie e, apesar de não ter comido nada desde a ceia do dia anterior, ela não ansiava pela hospitalidade
daquele homem.
Entreri a empurrou.
- Coma - ordenou.
Ela sabia que Entreri a testava tanto quanto aos magos. Mas também chegara a hora de ela testar Entreri.
- Não - respondeu, fitando-o diretamente nos olhos.
Com as costas da mão, ele a arremessou ao chão. Jierdan e Sidnéia se sobressaltaram involuntariamente, mas, vendo que Dendibar não se dispunha a ajudar, rapidamente
se detiveram e voltaram a assistir à cena. Cattiebrie se afastou do assassino e permaneceu encolhida, na defensiva.
Dendibar sorriu para o assassino.
- Você respondeu algumas das minhas perguntas sobre a garota - disse ele, com um sorriso divertido. - A que propósito ela serve?
- Tenho minhas razões - foi tudo o que Entreri respondeu.
- E claro. E posso saber seu nome?
A expressão de Entreri não se alterou.
- Você procura os quatro companheiros de Dez-Burgos, eu sei - continuou Dendibar, sem desejar uma discussão. - Eu também os procuro, mas por razões
diferentes, estou certo.
- Você nada sabe sobre minhas razões - replicou Entreri.
- E nem me importo em sabê-las - riu o mago. - Podemos ajudar um ao outro a atingir nossos distintos objetivos. Isso é tudo o que me interessa.
- Não estou pedindo ajuda. Dendibar riu novamente.
- Eles são uma força poderosa, cavaleiro. Você os subestima.
- Talvez - respondeu Entreri. - Você perguntou pelo meu propósito, mas não ofereceu o seu. Que negócios a Torre das Hostes tem com os viajantes de
Dez-Burgos?
- É justo - respondeu Dendibar. - Mas devo esperar até que tenhamos formalizado um acordo antes de apresentar a resposta.
_ Então nem vou dormir direito de tanta preocupação - foi a réplica veemente de Entreri.
Mais uma vez, o mago gargalhou. - Pode ser que você mude de idéia antes do fim desta audiência - disse e de. - Por enquanto, ofereço um sinal de boa fé.
Os companheiros estão na cidade. No porto. Deveriam hospedar-se no Alfanje. Conhece? Entreri assentiu, agora muito interessado nas palavras do mago.
- Mas nós os perdemos nas vielas da parte oeste da cidade - explicou Dendibar, lançando um olhar feroz para Jierdan, o que fez o soldado trocar de pé apreensivamente.
- E qual é o preço dessa informação? - perguntou Entreri.
Nada - respondeu o mago. - Contar-lhe isso promove minha causa.
Você obterá o que quer; o que eu desejo, guardo para mim.
Entreri sorriu, compreendendo que Dendibar tinha a intenção de usá-lo como um cão de caça para farejar a presa.
- Minha aprendiza vai lhe indicar a saída - disse Dendibar, fazendo sinal para Sidnéia.
Entreri se virou para sair, detendo-se para confrontar o olhar de Jierdan.
- Fique longe do meu caminho, soldado - avisou o assassino. - Depois de banquetear-se o leão, é a vez dos abutres!
- Quando ele tiver me levado ao drow, vou arrancar-lhe a cabeça - grunhiu Jierdan quando os três se foram.
- E melhor ficar longe desse aí - instruiu Dendibar. Jierdan fitou o mago, confuso.
- Sem dúvida você o quer sob vigilância.
- Certamente - concordou Dendibar. - Mas é uma tarefa para Sidnéia, não para você. Guarde sua raiva - Dendibar disse a ele, notando-lhe a carranca
de ultraje. - Preservo sua vida. Seu orgulho é imenso, e você fez jus a esse direito. Mas esse aí está além de suas habilidades, meu amigo. Ele o teria apunhalado
antes mesmo que você lhe notasse a presença.
Do lado de fora, Entreri conduziu Cattiebrie para longe da Torre das Hostes sem uma palavra, repetindo e revisando silenciosamente a reunião, Pois sabia que
aquela não seria a última vez em que veria Dendibar e seus colegas.
Cattiebrie também ficou feliz com o silêncio, absorta em suas próprias contemplações. Por que um mago da Torre das Hostes estaria à procura de Bruenor e
dos demais? Vingança em nome de Akar Kessell, o mago ensandecido que seus amigos haviam ajudado a derrotar antes do último inverno? Ela olhou para trás, para a estrutura
em forma de árvore, e para o assassino ao lado dela, atônita e horrorizada com a atenção que seus amigos haviam atraído.
Então, ela perscrutou seu próprio coração, reavivando seu espírito e sua coragem. Drizzt, Bruenor, Wulfgar e Régis iriam precisar de sua ajuda antes do fim
de tudo aquilo. Ela não podia decepcioná-los.


CONTINUA

Sobre um trono escuro, num lugar escuro, empoleirava-se o dragão das sombras. Não era uma serpente muito grande, mas a mais abominável de todas. Sua mera presença, trevas; as garras, espadas desgastadas por milhares de matanças; a bocarra, sempre quente com o sangue das vítimas; o hálito negro, desespero.
Um manto negro e lustroso eram suas escamas experimentadas, tão preciosas em sua negritude que brilhavam em cores distintivas, uma aparência cintilante de beleza para um monstro desarmado. Seus sequazes o denominavam Trêmulo Obscuro e prestavam-lhe todas as honras.
Reunindo sua força no decorrer dos séculos, como fazem os dragões, Trêmulo Obscuro mantinha as asas dobradas para trás e não se movia, exceto para engolir um sacrifício ou punir um subalterno insolente. Fizera sua parte para conquistar aquele lugar, desbaratando o grosso do exército anão que permanecera para confrontar os aliados da serpente.
Como o dragão comera bem naquele dia! As peles dos anões eram rijas e cheias de músculos, mas uma bocarra de dentes afiados como navalhas era perfeita para esse tipo de refeição.
E, agora, os inúmeros escravos do dragão faziam todo o trabalho, trazendo-lhe comida e atendendo-lhe todos os desejos. Chegaria o dia em que precisariam do poder do dragão novamente e Trêmulo Obscuro estaria pronto. A imensa pilha de tesouros roubados sob o dragão era o que nutria sua força e, nesse aspecto, Trêmulo Obscuro era insuperável entre os de sua espécie, pois possuía um tesouro além da imaginação do mais rico dos reis.
E uma hoste de sequazes leais, escravos voluntários do dragão das trevas.
O vento frio que dava ao Vale do Vento Gélido seu nome silvava nos ouvidos deles, o lamento incessante a eliminar a conversa casual de que os quatro amigos geralmente desfrutavam. Iam para o oeste, através da tundra estéril, e o vento, como sempre, vinha do leste, detrás deles, e acelerava o ritmo já forte do grupo.
A postura e o ímpeto determinado dos passos refletiam a ânsia de uma demanda recém iniciada, mas a face de cada aventureiro revelava um ponto de vista diferente em relação à jornada.
O anão, Bruenor Martelo de Batalha - o torso inclinado adiante, as pernas atarracadas a marchar sob o corpo e o nariz agudo a se projetar acima da grenha de barba ruiva e oscilante -, seguia na liderança. Parecia petrificado, separado das pernas e da barba; o machado tantas vezes chanfrado era carregado com firmeza em suas mãos nodosas, sempre à frente; o escudo, ornamentado com o brasão da caneca espumante, vinha amarrado firmemente às costas da mochila abarrotada; e a cabeça, adornada com um elmo de chifres várias vezes amassado, jamais se voltava para os lados. Tampouco seus olhos se desviavam do caminho e raramente piscavam. Bruenor iniciara aquela jornada para encontrar a antiga terra natal do clã Martelo de Batalha e, embora compreendesse inteiramente que os salões argênteos de sua infância estivessem a centenas de quilômetros de distância, ele seguia em frente com passos pesados e o fervor de alguém cuja meta a muito esperada se encontra claramente à vista.
Ao lado de Bruenor, o imenso bárbaro também estava ansioso. Wulfgar acompanhava-o sem dificuldade, os grandes passos das pernas compridas igualavam com facilidade o ritmo forte do anão. Havia algo de urgente em sua figura, como um corcel fogoso sob rédeas curtas. Chamas ávidas pela aventura ardiam em seus olhos claros, tão nitidamente como nos de Bruenor, mas, ao contrário do anão, o olhar de Wulfgar não se fixava na estrada retilínea diante deles. Era um rapaz que deixava o lar pela primeira vez para ver o mundo, e ele olhava continuamente ao redor, absorvendo cada imagem e sensação que a paisagem tinha a oferecer.
Viera junto para ajudar seus amigos naquela aventura, mas viera também para expandir os horizontes de seu próprio mundo. Passara a totalidade de sua juventude dentro dos segregantes limites naturais do Vale do Vento Gélido, restringindo suas experiências às antigas tradições de seus companheiros de tribo e aos povos pioneiros de Dez-Burgos.
Havia mais coisas lá fora, Wulfgar sabia, e estava determinado a aprender tanto quanto pudesse.
Drizzt Do'Urden estava menos interessado; a figura envolta num manto a caminhar rápida e desembaraçadamente ao lado de Wulfgar. O passo desenvolto denunciava sua herança élfica, mas as sombras do capuz baixo sugeriam algo mais. Drizzt era um drow, um elfo negro, habitante do mundo subterrâneo desprovido de luz. Passara vários anos na superfície, negando sua herança, mas descobrira que não conseguia escapar à aversão pelo sol inerente ao seu povo.
E, assim, ele se recolhia à sombra de seu capuz, o passo indiferente, até mesmo resignado, pois aquela viagem era meramente uma continuação de sua existência, mais uma aventura numa série perpétua de aventuras. Renunciando ao seu povo da cidade escura de Menzoberranzan, Drizzt Do'Urden tinha voluntariamente adotado uma vida nômade. Ele sabia que jamais seria verdadeiramente aceito na superfície; seu povo era considerado demasiado vil (e com razão) para que até mesmo as comunidades mais tolerantes o acolhessem. A estrada era seu lar agora; estava sempre viajando para se esquivar à angústia inevitável de ser forçado a sair de um lugar que poderia chegar a amar.
Dez-Burgos havia sido um refúgio temporário. O povoado dos ermos mais remotos abrigava uma grande proporção de ladinos e párias e, embora Drizzt não fosse visivelmente bem-vindo, sua reputação como guardião das fronteiras das vilas, adquirida a duras penas, havia lhe angariado certo grau de respeito e tolerância por parte de muitos dos colonos. Bruenor, porém, tinha-o como um amigo de verdade e Drizzt havia voluntariamente seguido o anão naquela viagem, apesar de temer que o tratamento que receberia assim que deixasse a área de influência de sua reputação não seria nada civilizado.
De vez em quando, Drizzt deixava-se ficar para trás uns dez ou doze metros para ver como se saía o quarto membro do grupo. Bufando, Régis, o halfling, era o último membro da trupe (e não por sua escolha), o ventre demasiado abundante para a estrada e as pernas curtas demais para acompanhar os passos contínuos do anão.
Pagando, agora, pelos meses de luxo de que desfrutara no palacete em Brin Shander, Régis amaldiçoava a reviravolta da sorte que o forçara a pegar a estrada. Seu maior amor era o conforto, e ele se esforçava para aperfeiçoar as artes do comer e do dormir com a mesma diligência com que um rapaz de sonhos heróicos brandia a primeira espada. Seus amigos ficaram verdadeiramente surpresos quando ele se juntou ao grupo, mas também felizes por tê-lo como companhia, e até mesmo Bruenor, tão desesperado para rever sua antiga terra natal, teve o cuidado de não ditar o ritmo muito além da capacidade de Régis em acompanhá-lo.
Sem dúvida, Régis se forçava até os limites de sua resistência, e sem as costumeiras reclamações. Ao contrário de seus companheiros, porém, cujos olhos se dirigiam para a estrada adiante, ele continuava a olhar de relance por sobre o ombro, em direção a Dez-Burgos e ao lar que tão misteriosamente abandonara para tomar parte na jornada.
Era com certa preocupação que Drizzt notava aquilo.
Régis estava fugindo de alguma coisa.
Os companheiros continuaram seguindo para oeste durante vários dias. Ao sul, os picos nevados das montanhas pontiagudas, a Espinha do Mundo, corriam paralelamente a seu trajeto. Aquela cordilheira marcava o limite sul do Vale do Vento Gélido, e os companheiros se mantinham alertas, esperando pelo fim da mesma. Quando os picos mais ocidentais desaparecessem e dessem lugar ao terreno plano, eles se dirigiriam para o sul, descendo o desfiladeiro entre as montanhas e o mar, deixariam totalmente o vale e percorreriam os últimos cento e cinqüenta quilômetros até a cidade costeira de Luskan.
De volta à trilha a cada manhã, antes que o sol nascesse às suas costas, eles prosseguiam até encontrar as últimas linhas róseas do crepúsculo, quando então paravam para acampar na última oportunidade antes de o vento frio se revestir de seu glacial ar noturno.
Então, estavam de volta à estrada mais uma vez, antes da aurora, cada um deles a correr confinado na solidão de suas próprias perspectivas e de seus próprios temores.
Uma jornada silenciosa, a não ser pelo murmúrio incessante do vento leste.

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LIVRO UM
BUSCAS

Rezo para que nunca se acabem os dragões do mundo. Digo isso com toda a sinceridade, embora tenha tomado parte na morte de uma das grandes serpentes. Pois
o dragão é o inimigo quintessencial, o maior dos adversários, o epítome inconquistável da devastação. O dragão, acima de todas as outras criaturas - mesmo dos demônios
e diabos -, evoca imagens de esplendor sombrio, da grande fera enrodilhada e adormecida sobre o maior dos tesouros. São o teste supremo do herói e o medo supremo
da criança. São mais velhos que os elfos e mais afeitos à terra que os anões. Os grandes dragões representam a besta sobrenatural, o elemento fundamental da besta,
aquela parte mais sombria de nossa imaginação.
Os magos não lhes conhecem as origens, apesar de acreditarem que um grande mago, um deus dos magos, deve ter desempenhado algum papel na criação dessas feras.
Os elfos, com suas longas fábulas que explicam a criação de cada aspecto do mundo, têm muitas histórias antigas sobre as origens dos dragões, mas admitem, reservadamente,
que não fazem realmente a menor idéia de como os dragões vieram a existir.
Minha própria crença é, de longe, a mais simples e, contudo, a mais complicada. Acredito que os dragões apareceram no mundo imediatamente após a criação da
primeira raça pensante. Não dou crédito a nenhum deus ou mago por essa criação, e sim a mais básica imaginação - urdida a partir de medos invisíveis - desses primeiros
mortais racionais.
Criamos os dragões como criamos os deuses, porque precisamos deles; porque, em algum lugar no fundo de nossos corações, reconhecemos que um mundo sem dragões
é um mundo no qual não vale a pena viver.
Há tantas pessoas na terra que querem uma resposta, uma resposta definitiva; para tudo na vida e mesmo para tudo o que possa haver depois da vida. Estudam
e testam, e porque esses poucos encontram as respostas para algumas perguntas simples, supõem que deve haver respostas para todas as perguntas. Como era o mundo
antes de existirem as pessoas? Será que nada existia a não ser trevas antes do sol e das estrelas? Será que existia alguma coisa? O que éramos nós, cada um de nós,
antes de nascermos? E o que - o mais importante de tudo - seremos após morrermos?
Por compaixão, espero que esses questionadores nunca encontrem o que procuram.
Um autoproclamado profeta se apresentou em Dez-Burgos negando a possibilidade de uma pós-vida, alegando que as pessoas que morreram e foram ressuscitadas
pelos clérigos na verdade jamais haviam morrido e que suas alegações sobre experiências além-túmulo eram um truque elaborado de seus próprios corações, um ardil
para facilitar o caminho em direção ao nada. Pois isso é tudo o que havia, dizia ele, um vazio, um nada.
Jamais em minha vida ouvi falar de alguém que implorasse tão desesperadamente para que provassem que ele estava errado.
Pois o que nos restará se não sobrar nenhum mistério? Que esperança poderemos encontrar se soubermos todas as respostas?
O que é isso dentro de nós, então, que quer negar tão desesperadamente a magia e desvendar o mistério? Medo, eu presumo, baseado nas muitas incertezas da
vida e na incerteza maior ainda da morte. Ponha esses medos de lado, digo eu, e viva livre deles, pois, se dermos apenas um passo para trás e observarmos a verdade
do mundo, descobriremos que, de fato, há magia ao nosso redor, inexplicável por meio de números e fórmulas. O que é, se não mágica, a paixão evocada pelo discurso
arrebatador do comandante antes da batalha desesperada? O que é, se não mágica, a paz que uma criança encontra nos braços da mãe? O que é o amor, se não mágica?
Não, eu não gostaria de viver num mundo sem dragões, assim como não gostaria de viver num mundo sem magia, pois esse é um mundo sem mistério e um mundo sem
fé.
E esse, temo eu, seria o truque mais cruel de todos para qualquer ser consciente e racional.

1. UM PUNHAL NAS COSTAS

Ele trazia o manto fechado e bem junto ao corpo, apesar da pouca luz que entrava pelas janelas acortinadas, pois essa era sua existência, dissimulada e solitária.
A trilha do assassino.
Enquanto outras pessoas se ocupavam das próprias vidas, deleitando-se nos prazeres da luz do sol e na bem-vinda visibilidade de seus vizinhos, Artemis Entreri
ficava nas sombras, as órbitas dilatadas de seus olhos focalizadas na senda estreita que devia tomar para completar sua mais recente missão.
Ele era de fato um profissional, talvez o melhor em todo o território dos reinos em seu ofício atroz, e quando farejava o rastro da presa, a vítima jamais
escapava. Portanto, o assassino não se incomodou com a casa vazia que encontrou em Brin Shander, a cidade principal dos dez povoados nos ermos do Vale do Vento Gélido.
Entreri suspeitara que o halfling havia fugido de Dez-Burgos. Mas não importava; se aquele fosse realmente o mesmo halfling que ele vinha seguindo desde Calimporto,
mais de mil e quinhentos quilômetros ao sul, o progresso que fizera superava suas expectativas. Seu alvo não tinha mais do que duas semanas de vantagem e o rastro
estaria bem fresco.
Entreri percorreu a casa calma e silenciosamente, procurando pistas sobre a vida que o halfling ali levara e que lhe dariam a vantagem quando do confronto
inevitável. A desordem o saudou em cada sala: o halfling partira às pressas, provavelmente ciente de que o assassino estava fechando o cerco.
Entreri considerou aquilo um bom sinal, aumentando ainda mais suas suspeitas de que esse halfling, Régis, era o mesmo Régis que servira ao Paxá Pûk, anos
atrás, na distante cidade do sul.
O assassino sorriu maldosamente ao pensar que o halfling sabia que estava sendo acossado, o que aumentava o desafio da caçada, pois Entreri media sua perícia
de caçador contra a habilidade de se esconder da futura vítima. Mas Entreri sabia que o resultado final era previsível, pois as pessoas assustadas invariavelmente
cometiam um erro fatal.
O assassino encontrou o que procurava numa gaveta de escrivaninha no quarto principal. Fugindo às pressas, Régis negligenciara as precauções para ocultar
sua verdadeira identidade. Entreri segurou o pequeno anel diante de seus olhos brilhantes, estudando a inscrição que claramente identificava Régis como um membro
da guilda de ladrões do Paxá Pûk em Calimporto. Entreri cerrou o punho em volta do sinete e um sorriso maldoso se espalhou por seu rosto.
- Encontrei você, ladrãozinho - ele riu para o vazio da sala. - Seu destino está selado. Não há para onde fugir!
A mudança abrupta em sua expressão revelou seu estado de prontidão assim que o som de uma chave na porta da frente do palacete ecoou pelo corredor da grande
escadaria. Deixou cair o anel em sua escarcela e esgueirou-se, silencioso como a morte, até as sombras dos pilares superiores do pesado corrimão da escada.
As grandes portas duplas se abriram e entraram um homem e uma moça, vindos do pórtico, à frente de dois anões. Entreri conhecia o homem: Cássio, o representante
de Brin Shander. Ali fora sua casa outrora, mas ele havia renunciado a ela vários meses antes em favor de Régis, depois das ações heróicas do halfling na batalha
da vila contra o mago maligno, Akar Kessell, e seus sequazes goblins.
Entreri também vira a outra humana antes, embora ainda não tivesse descoberto a ligação entre ela e Régis. Mulheres bonitas eram uma raridade naquela colônia
remota, e a moça era, de fato, a exceção. Brilhantes cachos castanho-avermelhados dançavam alegremente em torno de seus ombros; a luz intensa dos olhos azul-escuros
era capaz de aprisionar irremediavelmente qualquer homem em suas profundezas.
O nome dela, o assassino descobrira, era Cattiebrie. Ela vivia com os anões no vale ao norte da cidade, mais especificamente com o líder do clã, Bruenor,
que a adotara como sua própria filha uns doze anos antes, quando um ataque-surpresa dos goblins a deixara órfã.
Aquele encontro poderia se mostrar valioso, refletiu Entreri. Junto aos postes do corrimão, prestou atenção para ouvir a discussão lá embaixo.
- Só faz uma semana que ele foi embora! - argumentava Cattiebrie.
- Uma semana sem notícias - devolveu Cássio, obviamente contrariado. - E minha linda casa vazia e desprotegida. Ora, a porta da frente estava destrancada
quando passei por aqui alguns dias atrás!
- 'Cê deu a casa pro Régis - Cattiebrie lembrou o homem.
- Emprestei! - vociferou Cássio, embora, na verdade, a casa tivesse sido de fato um presente. O representante logo se arrependera de entregar a Régis
a chave daquele palácio, a habitação mais grandiosa ao norte de Mirabar. Em retrospectiva, Cássio compreendeu que fora arrebatado pelo ardor da espantosa vitória
sobre os goblins e desconfiava que Régis havia intensificado um pouco mais as emoções, usando os supostos poderes hipnóticos do pingente de rubi. Como outros que
haviam sido tapeados pelo persuasivo halfling, Cássio chegara a um panorama muito diferente dos acontecimentos, um panorama que pintava Régis desfavoravelmente.
- Não importa que nome 'cê dê a isso - cedeu Cattiebrie -, 'cê não devia se afobar tanto prá concluir que Régis abandonou a casa.
O rosto do representante ficou vermelho de fúria.
- Tudo fora ainda hoje! - exigiu ele. - Você tem a minha lista. Quero todos os pertences do halfling fora de minha casa! Tudo o que restar quando eu
voltar amanhã há de se tornar meu por direito adquirido! E vou avisando: haverá pesadas compensações se qualquer parte da minha propriedade estiver faltando ou tiver
sido danificada! - Ele girou sobre os calcanhares e saiu tempestuosamente portas afora.
- 'Tá bem irritado esse aí! - riu Arnês Mallot, um dos anões. - Nunca vi ninguém como Régis prá perder a lealdade dos amigos e ganhar o ódio dos velhos
companheiros.
Cattiebrie assentiu, concordando com a observação de Arnês. Ela sabia que Régis brincava com encantos mágicos e imaginou que os relacionamentos paradoxais
do halfling com os que o cercavam fossem um infeliz efeito colateral de sua própria leviandade.
- Cê acha que ele foi com Drizzt e Bruenor? - perguntou Arnês. Lá em cima, Entreri mudou de posição, ansioso.
- Sem dúvida - respondeu Cattiebrie. - Pediram o inverno inteiro prá ele se juntar à busca pelo Salão de Mitral e, com certeza, o fato de Wulfgar estar
indo junto só fez aumentar a pressão.
- Então, o nanico 'tá a meio caminho de Luskan, se não mais longe - raciocinou Arnês. - E Cássio tem razão em querer a casa de volta.
- Então, vamos começar a empacotar - disse Cattiebrie. - Cássio já tem coisas demais sem precisar juntar também os bens de Régis ao seu tesouro.
Entreri se recostou ao corrimão. O nome do Salão de Mitral lhe era desconhecido, mas ele conhecia bem o caminho para Luskan. Sorriu novamente, imaginando
se conseguiria alcançá-los antes que eles chegassem à cidade portuária.
Primeiro, porém, sabia que ainda poderia haver alguma informação valiosa a ser obtida ali. Cattiebrie e os anões se puseram a reunir os pertences do halfling
e, à medida que passavam de uma sala a outra, a sombra negra de Artemis Entreri, silenciosa como a morte, pairava sobre eles. Jamais suspeitaram de sua presença,
jamais teriam adivinhado que a ondulação suave nas cortinas era mais do que uma corrente de ar entrando pelas frestas da janela, ou que a sombra atrás da cadeira
era desproporcionalmente longa.
Ele conseguiu ficar perto o bastante para ouvir quase toda a conversa, e Cattiebrie e os anões falaram de pouca coisa além dos quatro aventureiros e da viagem
até o Salão de Mitral. Mas os esforços de Entreri de pouco lhe valeram. Já sabia dos afamados companheiros do halfling; todos em Dez-Burgos falavam deles com freqüência:
de Drizzt Do'Urden, o elfo drow renegado, que abandonara sua gente de pele escura nas entranhas dos Reinos e vagava pelas fronteiras de Dez-Burgos como um guardião
solitário contra as intromissões dos ermos do Vale do Vento Gélido; de Bruenor Martelo de Batalha, o líder valente do clã de anões que vivia no vale perto do Sepulcro
de Kelvin; e, principalmente, de Wulfgar, o poderoso bárbaro capturado e criado por Bruenor até a idade adulta, que havia retornado com as tribos selvagens do vale
para defender Dez-Burgos contra o exército de goblins e depois dera início a uma trégua entre todos os povos do Vale do Vento Gélido. Uma barganha que salvara -
e prometera enriquecer - as vidas de todos os envolvidos.
- Parece que você se cercou de aliados formidáveis, halfling - refletiu Entreri, recostando-se ao espaldar de uma grande cadeira enquanto Cattiebrie
e os anões passavam a uma sala contígua. - Serão de pouca ajuda. Você é meu!
Cattiebrie e os anões trabalharam durante quase uma hora, enchendo dois sacos grandes, principalmente com roupas. Cattiebrie estava estarrecida com a quantidade
de bens que Régis havia reunido desde seu suposto ato de heroísmo contra Kessell e os goblins - presentes, em sua maioria, de cidadãos agradecidos. Bem ciente do
amor do halfling pelo conforto, ela não conseguia entender o que dera nele para fugir pela estrada atrás dos demais. Mas o que realmente a espantava era o fato de
Régis não ter contratado carregadores para levar consigo ao menos alguns de seus pertences. E quanto mais tesouros ela descobria ao percorrer o palácio, mais a incomodava
todo aquele cenário de pressa e ímpeto. Não era nada típico de Régis. Tinha de haver algum outro fator, algum elemento perdido, que ela ainda não havia considerado.
- Bem, a gente já tem mais do que pode carregar, e é a maior parte das coisas de qualquer maneira! - declarou Arnês, levando um dos sacos ao ombro
robusto. - Quer saber, deixa o resto pro Cássio separar!
- Não vou dar a Cássio o prazer de reivindicar nenhuma dessas coisas - retorquiu Cattiebrie. - Pode ser que a gente ainda encontre outros objetos de
valor por aí. Vocês dois, levem os sacos de volta prós nossos quartos na estalagem. Vou terminar o trabalho por aqui.
- Ah, 'cê 'tá sendo boazinha com esse Cássio - resmungou Arnês. - Bruenor acertou quando disse que ele era um homem que gosta demais de contar o que
é seu!
- Seja justo, Arnês Mallot - retorquiu Cattiebrie, apesar de o sorriso de concordância desmentir a aspereza de seu tom de voz. - Cássio serviu bem
às vilas na guerra e tem sido um bom líder para o povo de Brin Shander. 'Cê sabe tão bem quanto eu que Régis tem o dom de deixar os gatos com os pêlos eriçados!
Arnês deu uma risadinha, concordando.
- Apesar de todos os jeitinhos que o nanico tem prá conseguir o que quer, ele deixou uma ou duas fileiras de vítimas irritadas! - Ele bateu no ombro
do outro anão, e os dois se dirigiram à porta principal.
- Não se atrase, menina - gritou Arnês para Cattiebrie. - Vamos voltar pras minas. Amanhã, no máximo!
- 'Cê reclama demais, Arnês Mallot - disse Cattiebrie, rindo.
Entreri considerou a última troca de palavras e mais uma vez um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ele conhecia bem o rastro dos encantos mágicos. As "vítimas
irritadas" que Arnês mencionara descreviam exatamente as pessoas que o Paxá Pûk havia tapeado em Calimporto. Pessoas encantadas pelo pingente de rubi.
As portas duplas se fecharam com um estrondo. Cattiebrie ficou sozinha no palacete - ou assim ela pensou.
Ela ainda refletia sobre o atípico desaparecimento de Régis. Suas suspeitas persistentes de que algo estava errado, de que faltava uma peça do quebra-cabeça,
começaram a alimentar dentro dela a sensação de que algo também estava errado ali na casa.
Repentinamente, Cattiebrie passou a notar cada ruído e cada sombra ao seu redor. O "tic-tac" de um relógio de pêndulo. O frufru das cortinas. O ruído de um
camundongo correndo por dentro das paredes de madeira.
Seus olhos dardejaram de volta às cortinas, ainda tremendo ligeiramente devido ao último movimento. Poderia ter sido uma corrente de ar através de uma fresta
na janela, mas a mulher alerta desconfiava de outra coisa. Agachando-se, num reflexo, e tentando alcançar o punhal em seu quadril, ela se lançou em direção à porta
aberta ao lado das cortinas.
Entreri movera-se rapidamente. Desconfiando que ainda havia mais a aprender com Cattiebrie, e nada disposto a deixar passar a oportunidade oferecida pela
saída dos anões, ele havia se esgueirado até a posição mais favorável para um ataque e agora esperava pacientemente no topo do estreito poleiro oferecido pela porta
aberta, equilibrado ali com a mesma facilidade com que um gato caminha sobre o peitoril da janela. Atentou para a aproximação da moça, o punhal a girar casualmente
em sua mão.
Cattiebrie sentiu o perigo assim que alcançou a porta e viu a forma escura caindo ao seu lado. Mas, por mais rápidas que fossem suas reações, seu próprio
punhal não deixara nem a metade da bainha antes que os dedos delgados de uma mão fria tivessem se fechado sobre sua boca, reprimindo um grito, e a lâmina afiada
de um punhal ajaezado houvesse marcado uma linha fina em sua garganta.
Estava atordoada e estarrecida. Nunca vira um homem se mover tão rápido, e a precisão mortífera do ataque de Entreri a amedrontou. Uma súbita tensão nos músculos
dele mostrou que, se ela persistisse em sacar a arma, estaria morta muito antes de poder usá-la. Largando o cabo do punhal, ela não fez nenhum outro gesto de resistência.
A força do assassino também a surpreendeu quando ele a ergueu facilmente até uma cadeira. Era um homem pequeno, esguio como um elfo, mal e mal da mesma altura
que ela, mas cada músculo de sua compleição compacta se achava na melhor forma para o combate. Sua própria presença exsudava uma aura de força e uma confiança inabalável.
Isso também amedrontava Cattiebrie porque não se tratava da arrogância estouvada de um jovem exuberante, mas do ar sereno de superioridade de alguém que presenciara
mil batalhas e nunca fora derrotado.
Os olhos de Cattiebrie jamais se desviaram do rosto de Entreri enquanto ele rapidamente a amarrava à cadeira. Os traços angulosos, os malares notáveis e o
queixo pronunciado eram apenas acentuados pelo corte reto de seu cabelo negro e lustroso. A sombra de barba a lhe escurecer o rosto dava a impressão que, não importando
quantas vezes ele se barbeasse, jamais desapareceria. Longe de ser desmazelado, porém, tudo a respeito daquele homem denotava controle. Cattiebrie poderia até mesmo
tê-lo considerado bonito, não fossem os olhos.
O cinza daqueles olhos não tinha brilho. Sem vida, destituídos de qualquer sinal de compaixão ou humanidade, caracterizavam aquele homem como um instrumento
de morte e nada mais.
- O que 'cê quer de mim? - perguntou Cattiebrie, assim que reuniu a coragem para tanto.
Entreri respondeu com um tapa pungente no rosto.
- O pingente de rubi! - exigiu ele, de repente. - O halfling ainda tem o pingente de rubi?
Cattiebrie lutou para reprimir as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Estava desorientada e surpresa e não conseguiu responder imediatamente à pergunta do
homem.
O punhal ajaezado cintilou diante de seus olhos e lentamente traçou a circunferência de seu rosto.
- Não tenho muito tempo - declarou Entreri categoricamente - Você vai me dizer o que preciso saber. Quanto mais demorar a responder, mais dor sentirá.
Suas palavras foram calmas e pronunciadas com honestidade.
Cattiebrie, transformada numa mulher forte sob a tutela de Bruenor, flagrou-se amedrontada. Ela enfrentara e derrotara goblins antes, até mesmo um horrível
troll certa vez, mas esse assassino imperturbável a aterrorizava. Ela tentou responder, mas o tremor do queixo não deixava as palavras se formarem.
O punhal cintilou novamente.
- No pescoço de Régis! - foi o grito agudo de Cattiebrie, uma lágrima a traçar uma linha solitária pelas suas faces.
Entreri assentiu e sorriu de leve.
- Ele está com o elfo negro, o anão e o bárbaro. - disse, corriqueiramente. - E estão na estrada para Luskan. E de lá para um lugar chamado Salão de
Mitral. Fale-me sobre o Salão de Mitral, minha cara menina. - Ele raspou a lâmina em sua própria face e o fio aguçado removeu um pequeno trecho de barba. - Onde
fica?
Cattiebrie se deu conta que sua incapacidade de responder provavelmente seria seu fim.
- E... eu não sei - ela balbuciou audaciosamente, readquirindo certo grau da disciplina que Bruenor lhe ensinara, apesar de seus olhos jamais abandonarem
o brilho da lâmina letal.
- Pena - respondeu Entreri. - Um rostinho tão bonito...
- Por favor - disse Cattiebrie com toda a calma possível diante do punhal que se movia em sua direção. - Ninguém sabe! Nem mesmo Bruenor! Encontrar
o lugar é a missão dele.
A lâmina se deteve subitamente e Entreri virou a cabeça para o lado, os olhos apertados e todos os músculos tensos, em estado de alerta.
Cattiebrie não ouvira o giro da maçaneta da porta, mas a voz grave de Arnês Mallot ecoando pelo corredor explicou as ações do assassino:
- Hã, cadê você, menina?
Cattiebrie tentou berrar "Fujam!" - e que se danasse a própria vida -, mas o golpe rápido de Entreri com as costas da mão a atordoou e expeliu a palavra como
um grunhido indecifrável.
A cabeça a pender de um lado a outro, ela apenas conseguiu focalizar a visão quando Arnês e Grollo, os machados nas mãos, irromperam sala adentro. Entreri
estava preparado para recebê-los, o punhal ajaezado numa das mãos e um sabre na outra.
Por um instante, Cattiebrie se encheu de entusiasmo. Os anões de Dez-Burgos eram um batalhão ferrenho de guerreiros empedernidos e, entre os membros do clã,
a perícia de Arnês só perdia para a de Bruenor.
Então, ela se lembrou de quem eles enfrentariam e, apesar da aparente vantagem dos anões, suas esperanças foram varridas por uma onda de conclusões irrefutáveis.
Ela testemunhara a indistinção dos movimentos do assassino, a precisão extraordinária de suas cutiladas.
A revulsão a brotar em sua garganta, ela sequer foi capaz de emitir um aviso ofegante para que os anões fugissem.
Mesmo se conhecessem a profundidade do horror no homem diante deles, Arnês e Grollo não teriam se esquivado da luta. A fúria cega o guerreiro anão para qualquer
consideração por sua segurança pessoal e, quando aqueles dois viram sua amada Cattiebrie amarrada à cadeira, a investida contra Entreri veio por instinto.
Estimulados por uma fúria desenfreada, seus primeiros ataques vociferaram com toda a força. Por outro lado, Entreri começou vagarosamente, encontrando seu
ritmo e permitindo que a pura fluidez de seus movimentos alimentasse o próprio impulso. Às vezes, ele mal parecia capaz de aparar ou evitar as pancadas ferozes.
Algumas erravam o alvo por pouco, e esses quase acertos incitavam Arnês e Grollo ainda mais.
Mas, mesmo com seus amigos se impondo no ataque, Cattiebrie compreendeu que estavam em dificuldades. As mãos de Entreri pareciam conversar uma com a outra,
tão perfeito era o complemento dos movimentos de ambas à medida que posicionavam o punhal ajaezado e o sabre. Os movimentos sincrônicos de seus pés mantinham-no
totalmente equilibrado ao longo da escaramuça. Era uma dança de esquivas, paradas e contragolpes.
Era uma dança de morte.
Cattiebrie vira aquilo antes, os métodos que denunciavam o melhor espadachim de todo o Vale do Vento Gélido. A comparação com Drizzt Do'Urden era inevitável;
a graça e os movimentos de ambos eram tão semelhantes e cada parte de seus corpos funcionava em perfeita harmonia.
Mas eles continuavam consideravelmente diferentes, uma polaridade de princípios morais que alterava sutilmente a aura da dança.
O ranger drow em batalha era um instrumento de beleza a se contemplar, um atleta perfeito que se dedicava com fervor incomparável ao caminho da integridade
de que escolhera trilhar. Mas Entreri era meramente aterrorizante, um assassino desapaixonado que se livrava insensivelmente dos obstáculos em seu caminho.
O ímpeto inicial do ataque dos anões agora começava a diminuir e tanto Arnês quanto Grollo traziam estupefação no olhar por ainda não estar o chão rubro com
o sangue do oponente. Mas, enquanto seus ataques perdiam velocidade, o impulso de Entreri continuava a crescer. Suas armas eram uma mancha indistinta e cada estocada
era seguida por duas outras que faziam os anões balançar.
Desembaraçados eram seus movimentos. Infindável era sua energia.
Arnês e Grollo mantinham uma postura exclusivamente defensiva, mas, mesmo com todos os seus esforços dedicados ao bloqueio, todos na sala sabiam que era apenas
uma questão de tempo antes que a lâmina assassina lhes atravessasse a guarda.
Cattiebrie não viu o golpe fatal, mas enxergou vividamente a linha brilhante de sangue que apareceu de um lado a outro da garganta de Grollo. O anão continuou
lutando por alguns instantes, alheio à causa de sua incapacidade de recuperar o fôlego. Então, surpreso, Grollo caiu de joelhos, levou às mãos à garganta e, gorgolejando,
penetrou as trevas da morte.
A fúria incitou Arnês a esquecer a exaustão. Seu machado distribuía talhos e cutiladas desvairadamente, clamando por vingança.
Entreri brincou com ele, chegando a prosseguir com a charada a ponto de golpeá-lo na têmpora com a parte chata do sabre.
Ultrajado, ofendido e completamente ciente de que fora superado, Arnês lançou-se numa última e suicida arremetida, esperando levar o assassino com ele.
Entreri desviou-se da desesperada investida com um passo para o lado e uma gargalhada divertida e pôs fim à luta, enterrou o punhal ajaezado no peito de Arnês
e completou com um golpe poderoso do sabre quando o anão passou cambaleando por ele.
Horrorizada demais para chorar, horrorizada demais para gritar, Cattiebrie observou incapaz de reagir Entreri retirar o punhal do peito de Arnês. Certa de
sua morte iminente, ela fechou os olhos quando o punhal veio em sua direção, sentiu o metal, aquecido pelo sangue do anão, rente à sua garganta.
E, em seguida, o raspar provocador do fio da arma contra sua pele macia e vulnerável quando Entreri lentamente girou a lâmina na mão.
Torturante. A promessa, a dança da morte.
Então, acabou. Cattiebrie abriu os olhos exatamente quando a pequena arma voltou à sua bainha no quadril do assassino. Ele se afastara um passo.
- Veja bem - ofereceu ele, como explicação por sua misericórdia -, eu mato apenas os que se opõem a mim. Talvez, então, três de seus amigos na estrada
para Luskan escapem ao fio da espada. Quero apenas o halfling.
Cattiebrie recusou-se a se render ao terror que ele evocava. Manteve a voz firme e prometeu, com frieza:
- Você os subestima. Lutarão contra você. Com serena confiança, Entreri respondeu:
- Então, eles também vão morrer.
Cattiebrie não poderia vencer uma disputa de fibra com o assassino impassível. Sua única resposta para ele era a rebeldia. Cuspiu nele, sem temer as conseqüências.
Ele retorquiu com um simples e pungente tapa com as costas da mão. Os olhos dela se anuviaram com a dor e as lágrimas que brotavam, e Cattiebrie mergulhou
nas trevas. Mas, ao cair inconsciente, ainda escutou durante alguns segundos a risada fria e cruel, que foi desaparecendo enquanto o assassino deixava a casa.
Torturante. A promessa da morte.

2. A CIDADE DAS VELAS

- B em, lá está ela, rapaz, a Cidade das Velas - disse Bruenor a Wulfgar enquanto os dois olhavam para Luskan, lá embaixo, de um pequeno outeiro alguns quilômetros
ao norte da cidade.
Wulfgar apreciou a vista com um suspiro profundo de admiração. Luskan abrigava mais de quinze mil almas, era pequena se comparada às imensas cidades do sul
e à sua vizinha mais próxima, Águas Profundas, algumas centenas de quilômetros descendo a costa. Mas, para o jovem bárbaro, que passara todos os seus dezoito anos
entre as tribos nômades e as pequenas aldeias de Dez-Burgos, o porto marítimo fortificado parecia realmente grande. Uma muralha encerrava Luskan, com torres de vigia
estrategicamente espaçadas a intervalos variados. Mesmo à distância, Wulfgar distinguia as formas escuras de muitos soldados a percorrer os parapeitos, as pontas
das lanças a brilhar sob a luz do novo dia.
- Não é um convite promissor - notou Wulfgar.
- Luskan não acolhe prontamente os visitantes - disse Drizzt, que aparecera atrás de seus dois amigos. - Podem abrir os portões para mercadores, mas
geralmente negam passagem aos viajantes comuns.
- Nosso primeiro contato está lá - grunhiu Bruenor. - E tenho a intenção de entrar!
Drizzt assentiu e não insistiu mais na discussão. Ele evitara Luskan em sua viagem original até Dez-Burgos. Os habitantes da cidade, em sua maioria humanos,
consideravam rostos diferentes com desdém. Costumavam negar passagem até mesmo aos elfos da superfície e aos anões. Drizzt desconfiava que os guardas fariam mais
a um elfo drow do que simplesmente colocá-lo para fora.
- Acenda a fogueira do desjejum - continuou Bruenor, o tom zangado a refletir sua determinação de que nada o desviaria de seu curso. - A gente vai
levantar acampamento cedo e chegar aos portões antes do meio-dia. Cadê o maldito do Ronca-bucho?
Drizzt olhou por sobre o ombro, na direção do acampamento.
- Dormindo - respondeu, embora a pergunta de Bruenor fosse total mente retórica. Desde que os companheiros haviam partido de Dez-Burgos Régis era o
primeiro a dormir e o último a acordar (e nunca sem auxílio).
- Bom, dá um chute nele! - ordenou Bruenor. Ele se virou na direção do acampamento, mas Drizzt o segurou pelo ombro.
- Deixe o halfling dormir - sugeriu o drow. - Talvez seja melhor chegarmos ao portão de Luskan na luz menos reveladora do crepúsculo.
O pedido de Drizzt deixou Bruenor confuso apenas por um instante até observar mais de perto o rosto taciturno do drow e reconhecer a trepidação naqueles olhos.
Os dois haviam se tornado amigos tão íntimos naqueles anos que Bruenor normalmente esquecia que Drizzt era um pária. Quanto mais se afastassem de Dez-Burgos, onde
Drizzt era conhecido, mais ele seria julgado pela cor de sua pele e pela reputação de seu povo.
- 'Tá, deixa ele dormir - cedeu Bruenor. - Pode ser que um pouco de sono não me fizesse mal também!
Levantaram acampamento ao final da manhã e estabeleceram um ritmo sossegado, apenas para descobrir, mais tarde, que haviam estimado mal a distância até a
cidade. Passava bastante do ocaso e já se iam as primeiras horas de escuridão quando eles finalmente chegaram ao portão norte da cidade.
A estrutura era tão pouco acolhedora quanto a reputação de Luskan: uma única porta ferrada, instalada na muralha de pedra entre duas torres baixas e aprumadas,
encontrava-se hermeticamente cerrada diante deles. Umas doze cabeças cobertas por peles se projetaram do parapeito acima do portão, e os companheiros sentiram outros
olhos - e arcos, provavelmente - assestados sobre eles desde as trevas no alto das torres.
- Quem são vocês que batem aos portões de Luskan? - veio uma voz da muralha.
- Viajantes do norte - respondeu Bruenor. - Um bando cansado vindo da distante Dez-Burgos, no Vale do Vento Gélido!
- O portão foi fechado ao pôr do sol - replicou a voz. - Vão embora!
- Seu filho de um gnoll pelado! - resmungou Bruenor a meia-voz. Ele bateu a acha na palma da mão como se quisesse derrubar a porta a machadadas.
Drizzt pousou a mão apaziguadora sobre o ombro do anão, pois os ouvidos sensíveis haviam reconhecido o estalido claro e distinto de uma manivela de besta.
Então, Régis inesperadamente assumiu o controle da situação. Endireitou as calças, que haviam escorregado sob a barriga protuberante, e enganchou os polegares
no cinto, tentando parecer algo importante. Atirando os ombros para trás, colocou-se à frente de seus companheiros.
- Seu nome, meu bom senhor? - gritou para o soldado sobre a muralha.
- Sou o Guardião da Noite do Portão Norte. Isso é tudo o que você precisa saber! - foi a resposta ríspida. - E quem...
- Régis. Primeiro Cidadão de Brin Shander. Sem dúvida, você já ouviu meu nome ou viu minhas esculturas.
Os companheiros ouviram sussurros lá em cima, depois uma pausa.
- Vimos o artesanato de um halfling de Dez-Burgos. É você?
- Herói da guerra dos goblins e mestre entalhador - declarou Régis, com uma reverência. - Os representantes de Dez-Burgos não ficarão contentes em
saber que fui abandonado ao frio da noite diante do portão de nosso principal parceiro comercial.
De novo ae sussurros, depois um silêncio mais prolongado. Dali a pouco, os quatro ouviram um som áspero atrás da porta - uma grade levadiça sendo erguida,
Régis sabia - e então o estrondo dos ferrolhos sendo atirados ao chão. O halfling olhou por sobre o ombro, para seus amigos surpresos, e deu um sorriso torto.
- Diplomacia, meu mal-humorado amigo anão - riu ele.
A porta se abriu apenas um pouco e dois homens se esgueiraram para fora, desarmados mas cautelosos. Ficou bastante óbvio que estavam bem protegidos desde
a muralha. Soldados de rostos soturnos se acotovelavam ao longo dos parapeitos, monitorando cada movimento dos estrangeiros com as miras das bestas.
- Sou Jierdan - disse o mais atarracado dos dois homens, embora fosse difícil julgar-lhe o tamanho exato devido às muitas camadas de peles que usava.
- E eu sou o Guardião da Noite - disse o outro. - Mostrem-me o que trouxeram para negociar.
- Negociar? - repetiu Bruenor, furioso. - Quem foi que disse algo sobre negociar? - Ele bateu o machado na palma da mão mais uma vez, fazendo os soldados
lá em cima trocarem de pé ansiosamente. - Isto parece a arma de um mercador nojento?
Tanto Régis quanto Drizzt fizeram menção de acalmar o anão, mas Wulfgar, tão tenso quanto Bruenor, permaneceu de lado, os braços descomunais cruzados diante
dele e o olhar austero a transfixar o porteiro insolente.
Os dois soldados recuaram, na defensiva, e o Guardião da Noite falou novamente, dessa vez à beira da fúria.
- Primeiro Cidadão - ele indagou Régis -, por que bate à nossa porta?
Régis colocou-se à frente de Bruenor e equilibrou-se com lisura diante do soldado.

- Hã... uma exploração preliminar da praça do mercado - falou sem pensar, tentando inventar uma história de improviso. - Tenho algumas esculturas
de especial refinamento para o mercado nesta temporada e queria me certificar de que tudo por aqui, inclusive o preço a se pagar pelo artesanato esteja acertado
para a administração da venda.
Os dois soldados trocaram sorrisos perspicazes.
- Você veio de muito longe só para isso - murmurou rudemente o Guardião da Noite. - Não teria sido melhor simplesmente vir com a caravana trazendo
as mercadorias?
Régis demonstrou certo mal-estar, percebendo que aqueles soldados eram experientes demais para caírem em sua manobra. Lutando contra o bom-senso, enfiou a
mão sob a camisa em busca do pingente de rubi, sabendo que seus poderes hipnóticos poderiam convencer o Guardião da Noite a deixá-los passar, mas temendo mostrar
a pedra e expor ainda mais sua trilha ao assassino que ele sabia não estar muito longe.
Mas, de repente, Jierdan Sobressaltou-se ao notar a figura ao lado de Bruenor. O manto de Drizzt Do'Urden havia se deslocado ligeiramente, revelando a pele
negra de seu rosto.
Como se tivessem combinado, o Guardião da Noite também ficou tenso e, seguindo o exemplo de seu companheiro, discerniu rapidamente a causa da repentina reação
de Jierdan. Relutantemente, os quatro aventureiros baixaram as mãos às armas, prontos para um combate que não desejavam.
Mas Jierdan pôs fim à tensão tão rápido quanto a iniciara, esticando o braço por sobre o peito do Guardião da Noite e dirigindo-se ao drow diretamente.
- Drizzt Do'Urden? - perguntou tranqüilamente, procurando confirmação da identidade que já adivinhara.
O drow assentiu, surpreso com o reconhecimento.
- Seu nome também chegou a Luskan com as histórias do Vale do Vento Gélido - explicou Jierdan. - Perdoe nossa surpresa. - Ele fez uma reverência. -
Não vemos muitos da sua raça em nossos portões.
Drizzt assentiu novamente, mas não respondeu, incomodado com aquela atenção incomum. Nunca antes havia um porteiro se incomodado em perguntar-lhe o nome ou
suas intenções. E o drow logo compreendera ser vantajoso evitar inteiramente os portões, esgueirando-se silenciosamente sobre a muralha de uma cidade em meio à escuridão
e procurando o setor mais maltrapilho, onde ao menos teria a chance de passar despercebido nas esquinas escuras com os outros ladinos. Será que seu nome e seus feitos
heróicos tinham lhe angariado certo grau de respeito mesmo tão longe de Dez-Burgos?
Bruenor voltou-se para Drizzt e piscou, a própria raiva dissipada pelo fato de que seu amigo havia finalmente recebido o devido respeito de um estrangeiro.
Mas Drizzt não se convencera. Não se atrevia a esperar por tal coisa: isso o deixava vulnerável demais a sentimentos que se esforçara tanto em ocultar. Preferia
se proteger em suas suspeitas e em sua vigilância tanto quanto no negro capuz de seu manto. Curioso, manteve-se atento enquanto os dois soldados se afastavam para
ter uma conversa particular.
- Não me importa o nome dele - ouviu o Guardião da Noite sussurrar para Jierdan. - Nenhum elfo drow há de passar pelo meu portão!
- Você está cometendo um erro - retorquiu Jierdan. - São os heróis de Dez-Burgos. O halfling é realmente Primeiro Cidadão de Brin Shander; o drow,
um ranger com uma reputação mortal, mas inegavelmente honrada; e o anão - repare no brasão da caneca espumante em seu escudo - é Bruenor Martelo de Batalha, líder
de seu clã no vale.
- E quem é o gigante bárbaro? - perguntou o Guardião da Noite, usando um tom sarcástico numa tentativa de soar resoluto, apesar de estar obviamente
um pouco nervoso. - Que espécie de desgarrado é esse aí?
Jierdan deu de ombros.
- E grande, jovem e tem um certo grau de controle atípico para a idade. Parece-me improvável ele estar aqui, mas pode ser o jovem rei das tribos de
que falaram os contadores de histórias. Não devemos mandar embora esses viajantes; as conseqüências podem ser graves.
- O que Luskan teria a temer daqueles povoados insignificantes no Vale do Vento Gélido? - refugou o Guardião da Noite.
- Existem outros portos comerciais - retorquiu Jierdan. - Nem todas as batalhas são travadas com a espada. A perda do artesanato de Dez-Burgos não
seria bem vista por nossos mercadores, nem pelos navios mercantes que entram no porto a cada temporada.
O Guardião da Noite examinou os quatros estrangeiros novamente. Não confiava nem um pouco neles, apesar das formidáveis alegações de seu companheiro, e não
os queria na cidade. Mas sabia também que, caso suas suspeitas estivessem erradas e ele fizesse algo para comprometer o comércio de artesanato, seu próprio futuro
seria tristonho. Os soldados de Luskan respondiam aos mercadores, que não perdoavam com facilidade os erros que emagreciam suas bolsas.
O Guardião da Noite ergueu os braços, derrotado.
- Entrem, então - disse ele aos companheiros. - Sigam a muralha e dirijam-se às docas. Na última viela fica o Alfanje, e vocês estarão bem aqueci dos
por lá!
Drizzt estudou os passos orgulhosos de seus amigos enquanto marchavam
pela porta e imaginou que eles também haviam ouvido partes da conversa. Bruenor confirmou suas suspeitas quando eles se afastaram das torres de vigia, seguindo
a rua ao longo da muralha.
Olha só, elfo - o anão riu alto, dando uma cotovelada em Drizzt e parecendo obviamente contente. - Então, as histórias deixaram o vale e já conhecem
a gente até mesmo aqui tão pro sul. O que 'cê tem a dizer?
Drizzt deu de ombros novamente e Bruenor riu, presumindo que seu amigo estava meramente constrangido com toda aquela fama. Régis e Wulfgar também partilhavam
da alegria de Bruenor, e o homem imenso deu ao drow um jovial tapa nas costas ao passar à liderança da trupe.
Mas era mais do que constrangimento a fonte do desconforto de Drizzt. Ele percebera, ao passar, o sorriso no rosto de Jierdan, um sorriso que ultrapassava
a admiração. E apesar de não duvidar que as histórias da batalha contra o exército de goblins de Akar Kessell tivessem alcançado a Cidade das Velas, pareceu estranho
a Drizzt que um simples soldado soubesse tanto sobre ele e seus amigos, enquanto o porteiro, responsável exclusivamente por determinar quem entrava na cidade, nada
sabia.
As ruas de Luskan estavam apinhadas com edifícios de dois e três andares, um reflexo do desespero do povo dali em se amontoar na segurança da alta muralha
da cidade, longe dos perigos constantes das selvagens terras do norte. Uma torre ocasional - um posto de guarda, talvez, ou a maneira de um cidadão proeminente ou
de uma guilda mostrar superioridade - brotava dos telhados. Uma cidade circunspecta, Luskan sobrevivia, e até mesmo prosperava, na perigosa fronteira, apegando-se
a uma atitude de prontidão que geralmente chegava à paranóia. Era uma cidade de sombras, e os quatro visitantes sentiam intensamente os olhares curiosos e perigosos
que espiavam através de cada fresta escura enquanto avançavam.
As docas abrigavam o setor mais brutal da cidade, onde abundavam ladrões, foras-da-lei e mendigos em seus becos estreitos e nichos escuros. Uma névoa perpétua
e baixa vinha do mar, transformando as já sombrias alamedas em sendas ainda mais misteriosas.
Assim era a viela na qual os quatro amigos se viram entrando, a última ruela antes dos próprios molhes, uma via particularmente decrépita chamada Rua da Meia-lua.
Régis, Drizzt e Bruenor compreenderam imediatamente que haviam entrado num antro de vagabundos e rufiões, e cada um deles levou uma das mãos à respectiva arma. Wulfgar
caminhava ostensivamente e sem medo, embora também pressentisse a atmosfera ameaçadora. Sem entender que a área era de uma torpeza atípica, estava determinado a
abordar com mente aberta sua primeira experiência com a civilização.
- Aí está o lugar - disse Bruenor, indicando um pequeno grupo, provavelmente de ladrões, reunido diante da porta de uma taverna. A placa acima da porta, já
curtida pelo tempo, nomeava o lugar o Alfanje.
Régis engoliu em seco, pois uma assustadora mistura de emoções brotava dentro dele. Nos seus primeiros anos como ladrão em Calimporto, ele havia freqüentado
muitos lugares como aquele, mas a familiaridade com o ambiente apenas aumentava sua apreensão. Ele sabia que a fascinação proibida dos negócios realizados nas sombras
de uma perigosa taverna podia ser tão mortífera quanto às facas ocultas dos ladinos em cada mesa.
- Vocês querem mesmo entrar aí? - perguntou melindrosamente aos amigos.
- Não quero ouvir uma reclamação sua! - rebateu Bruenor. - 'Cê sabia o que tinha pela frente quando se juntou à gente lá no vale. Não começa a choramingar
agora!
- Você está bem protegido - interpôs Drizzt para reconfortar Régis.
Excessivamente orgulhoso em sua inexperiência, Wulfgar deu ainda mais ênfase à declaração:
- Que motivo eles teriam para nos fazer mal? Sem dúvida não fizemos nada de errado - indagou ele. Então, proclamou em alto e bom som, para desafiar
as sombras - Não tenha medo, amiguinho. Meu martelo há de eliminar quem quer que se levante contra nós!
- O orgulho dos jovens - resmungou Bruenor enquanto ele, Régis e Drizzt trocavam olhares incrédulos.
A atmosfera dentro do Alfanje estava de acordo com a decrepitude e a ralé que caracterizavam o lugar do lado de fora. A parte do edifício ocupada pela taverna
era uma única sala ampla, com um bar comprido posicionado defensivamente no canto da parede dos fundos, diretamente em frente à porta. Uma escadaria se elevava da
lateral do bar até o segundo nível da estrutura, uma escadaria utilizada com mais freqüência por mulheres maquiadas e excessivamente perfumadas e seus mais recentes
companheiros do que pelos hóspedes da estalagem. De fato, os marinheiros mercantes que aportavam em Luskan geralmente vinham à terra apenas para breves períodos
de emoção e divertimento, retornando à segurança de suas naus, se conseguissem fazê-lo, antes que o inevitável sono da embriaguez os deixasse vulneráveis.
Acima de tudo, porém, a taverna do Alfanje era uma sala de sensações, com miríades de sons, imagens e odores. O aroma de álcool, da cerveja forte e do vinho
barato às beberagens mais raras e potentes, permeava cada canto. Uma bruma de fumaça de exóticas ervas-de-fumo, como a névoa lá fora, tornava indistinta a dura realidade
das imagens, transformando-as em sensações mais suaves e oníricas.
Drizzt encaminhou-se para uma mesa desocupada, esquecida ao lado da porta, enquanto Bruenor aproximava-se do bar para acertar a estadia. Wulfgar foi atrás
do anão, mas Drizzt o deteve.
Para a mesa - explicou ele. - Você está muito alvoroçado para esse tipo de negócio; Bruenor pode cuidar disso.
Wulfgar começou a protestar, mas foi interrompido.
Que é isso - ofereceu Régis. - Sente-se comigo e com Drizzt.
Ninguém vai incomodar um velho e forte anão, mas um halfling minúsculo e um elfo magrelo podem parecer boa diversão para os brutamontes daqui. Precisamos
de seu tamanho e de sua força para evitar essa atenção indesejada.
O queixo de Wulfgar firmou-se com o elogio, e ele caminhou intrepidamente até a mesa. Régis lançou a Drizzt uma piscadela perspicaz e virou-se para segui-lo.
- Muitas lições você aprenderá nesta jornada, meu jovem amigo - Drizzt murmurou para Wulfgar, baixinho demais para o bárbaro ouvi-lo. - Tão longe de
seu lar.
Bruenor voltou do bar carregando quatro jarras de hidromel e resmungando a meia voz.
- A gente tem que acabar logo nossos negócios aqui - ele disse a Drizzt - e voltar prá estrada. O preço de um quarto nessa toca de orcs é uma ladroagem
descarada!
- Os quartos não são para se passar a noite toda - casquinou Régis.
Mas a carranca de Bruenor persistiu.
- Beba - ele disse ao drow. - O Beco do Rato não é muito longe daqui, pelo que disse a criada do bar, e pode ser que a gente consiga fazer contato
ainda esta noite.
Drizzt assentiu e bebericou o hidromel, sem querer realmente fazê-lo, mas esperando que uma bebida entre amigos pudesse relaxar o anão. O drow também estava
ansioso para deixar Luskan, temeroso de que sua própria identidade - ele mantinha o capuz ainda mais abaixado sob a luz bruxuleante das tochas da taverna - pudesse
lhes trazer mais problemas. Ele se preocupava ainda mais por Wulfgar, jovem e orgulhoso, e fora de seu elemento natural. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido, apesar
de impiedosos na batalha, eram inegavelmente honrados e baseavam toda a estrutura de sua sociedade em códigos rígidos e inflexíveis. Drizzt temia que Wulfgar fosse
presa fácil para as imagens falsas e a perfídia da cidade. Na estrada, nas terras selvagens, o martelo de Wulfgar o manteria em segurança, mas ali era provável que
ele se encontrasse em situações falazes envolvendo punhais dissimulados, nas quais sua poderosa arma e perícia na batalha seriam de pouca ajuda.
Wulfgar esvaziou sua jarra num único gole, limpou os lábios com zelo e ficou de pé.
- Vamos - disse a Bruenor. - Quem é que estamos procurando?
- Senta aí e cale a boca, garoto - ralhou Bruenor, olhando ao redor para ver se haviam atraído alguma atenção indesejada. - O trabalho desta noite
é prá mim e pro drow. Não tem lugar prum guerreiro grande demais como você! 'Cê fica aqui com Ronca-bucho, de boca fechada e com as costas prá parede!
Wulfgar voltou a afundar na cadeira, humilhado, mas Drizzt estava feliz por ter Bruenor aparentemente chegado às mesmas conclusões sobre o jovem guerreiro.
Mais uma vez, Régis salvou um pouco do orgulho de Wulfgar.
- Você não vai com eles, não! - ele retrucou ao bárbaro. - Eu não tenho a menor vontade de ir, mas não me atreveria a ficar aqui sozinho. Deixe que
Drizzt e Bruenor se divirtam em algum beco frio e fedorento. Ficaremos aqui e vamos aproveitar uma bem-merecida noite de boa diversão!
Drizzt deu um tapinha no joelho de Régis por baixo da mesa como agradecimento e levantou-se para sair. Bruenor bebeu em grandes goles o conteúdo de sua jarra
e saltou da cadeira.
- Vamos indo, então - ele disse ao drow. E depois, para Wulfgar - Tome conta do halfling e cuidado com as mulheres! São perversas como ratos famintos
e a única coisa que desejam morder é a sua bolsa!
Bruenor e Drizzt viraram no primeiro beco vazio depois do Alfanje, o anão, nervoso, montando guarda à entrada enquanto Drizzt seguia em frente alguns passos
e penetrava a escuridão. Convencido de que estava só e em segurança, Drizzt removeu de sua bolsa uma pequena estatueta de ônix, meticulosamente esculpida na forma
de um gato predador, e a colocou no chão diante dele.
- Guenhwyvar - ele chamou baixinho. - Venha, minha sombra.
Seu chamado atravessou os planos até o lar astral da entidade da pantera. O grande felino despertou de seu sono. Muitos meses haviam se passado desde que
seu mestre o chamara, e o gato estava ansioso para servir.
Guenhwyvar saltou através da urdidura dos planos, seguindo um bruxuleio de luz que só podia ser o chamado do drow. A seguir, o gato estava no beco com Drizzt,
imediatamente alerta naquele ambiente desconhecido.
- Vamos entrar numa teia perigosa, temo eu - explicou Drizzt. - Preciso de olhos onde os meus não são capazes de chegar.
Sem delongas e sem emitir um som sequer, Guenhwyvar saltou para uma pilha de escombros, dali para o patamar fragmentado de um pórtico, e dali para o alto
dos telhados. Satisfeito e sentindo-se muito mais seguro agora, Drizzt esgueirou-se de volta à rua onde Bruenor aguardava.
- Bem, cadê a maldita pantera? - perguntou Bruenor, um sinal de alívio em sua voz por Guenhwyvar não estar realmente com o drow. A maioria dos anões
desconfiava da magia, a não ser dos encantamentos mágicos que lançavam sobre suas armas, e Bruenor não gostava da pantera.
- Onde mais precisamos dela - foi a resposta do drow. Ele se pôs a descer a Rua da Meia-lua. - Não tenha medo, poderoso Bruenor. Os olhos de Guenhwyvar
estão sobre nós, mesmo que os nossos não possam retribuir seu olhar protetor!
O anão olhou ao redor, nervoso, gotas de suor visíveis na base de seu elmo de chifres. Ele conhecia Drizzt havia vários anos, mas nunca se acostumara ao gato
mágico.
Drizzt ocultou o sorriso sob o capuz.
Todas as vielas, abarrotadas de pilhas de escombros e refugos, pareceram-lhes iguais à medida que abriam caminho pelas docas. Bruenor fitava cada nicho sombreado
com uma desconfiança vigilante. À noite, sua visão não era tão aguçada quanto a do drow e, se ele enxergasse no escuro tão bem quanto Drizzt, teria apertado ainda
com mais força o cabo do machado.
Mas o anão e o drow não estavam excessivamente preocupados. Estavam muito longe de ser os típicos bêbados que costumavam cambalear por aquelas bandas à noite
e não eram presas fáceis para ladrões. Os inúmeros chanfros no machado de Bruenor e o balanço das duas cimitarras no cinto do drow serviriam para inibir totalmente
a maioria dos rufiões.
No labirinto de ruas e vielas, levaram um bom tempo para encontrar o Beco do Rato. Bem perto dos molhes, corria paralelamente ao mar, aparentemente intransitável
através da densa neblina. Armazéns baixos e compridos se alinhavam de ambos os lados, e caixas e engradados quebrados atravancavam o beco, reduzindo, em muitos lugares,
a passagem já estreita à largura de uma fila indiana.
- Lugarzinho agradável para um passeio numa noite sombria - declarou Bruenor categoricamente.
- Tem certeza de que esta é a tal viela? - perguntou Drizzt, igualmente pouco entusiasmado em relação à área diante dele.
- Pelo que disse o mercador em Dez-Burgos, o único homem vivo capaz de me conseguir o mapa é Sussurro. E o lugar prá encontrar Sussurro é o Beco do
Rato. Sempre no Beco do Rato.
- Então, vamos logo com isso - disse Drizzt. - Negócio excuso é melhor terminar rápido.
Bruenor entrou lentamente no beco, à frente de Drizzt. Os dois mal tinham caminhado uns três metros quando o anão pensou ouvir o estalido de uma besta. Ele
se deteve e olhou para Drizzt.
- 'Tão espreitando a gente - sussurrou.
- Na janela entabuada acima e à direita - explicou Drizzt, pois sua excepcional visão noturna e a admirável audição já haviam discernido a origem
do som. - Uma precaução, espero. Talvez um bom sinal de que seu contato está por perto.
- Nunca chamei uma besta apontada prá minha cabeça de bom sinal! - argumentou o anão. - Mas em frente, então, e esteja preparado. Esse lugar fede a
perigo! - Voltou a abrir caminho por entre os escombros.
Um movimento à esquerda revelou que também daquele lado havia olhos sobre eles. Mas, ainda assim, eles continuaram, compreendendo que não podiam ter esperado
nada diferente quando deixaram o Alfanje. Contornando uma última pilha de tábuas quebradas, viram um vulto esguio recostado a uma das paredes do beco, bem envolto
no manto e protegido contra o frio da névoa noturna.
Drizzt inclinou-se até a altura do ombro de Bruenor.
- Seria aquele ali? - ele murmurou.
O anão deu de ombros e disse:
- E quem mais poderia ser? - Ele deu mais um passo à frente, fincou os pés no chão, com firmeza e bem separados, e dirigiu-se ao vulto. - 'Tô procurando
um homem chamado Sussurro - disse ele. - E você, por acaso?
- Sim e não - foi a resposta. O vulto se virou na direção deles, embora o manto fechado pouco revelasse.
- Que joguinho é esse? - rebateu Bruenor.
- Sou Sussurro - respondeu o vulto, deixando o manto escorregar um pouco para trás. - Mas não um homem, com certeza!
Agora eles podiam ver claramente que o personagem que a eles se dirigia era de fato uma mulher, uma figura sombria e misteriosa com longos cabelos negros,
olhos dardejantes e obstinados que demonstravam experiência e um profundo entendimento da sobrevivência nas ruas.

3. VIDA NOTURNA

A noite ia passando e o Alfanje ficava cada vez mais movimentado. Marinheiros mercantes ali se aglomeravam, vindos dos navios, e os habitantes locais rapidamente
se dispunham a explorá-los. Régis e Wulfgar ficaram na mesa de canto, o bárbaro de olhos arregalados pela curiosidade diante do que via ao seu redor e o halfling
absorto em cautelosa observação.
Régis reconheceu a encrenca caminhando na direção deles na forma de uma mulher. Não era moça e tinha aquela aparência abatida tão familiar na zona do porto,
mas seu vestido, bastante revelador em todos os lugares que o vestido de uma dama não deveria ser, escondia todos os seus defeitos físicos por trás de uma saraivada
de insinuações. A expressão no rosto de Wulfgar - o queixo quase ao mesmo nível da mesa, pensou Régis - confirmou os temores do halfling.
- Bons olhos o vejam, grandalhão - disse a mulher com suavidade, introduzindo-se confortavelmente na cadeira ao lado do bárbaro.
Wulfgar olhou para Régis e quase gargalhou de incredulidade e constrangimento.
- Você não é de Luskan - continuou a mulher. - Nem tem a aparência dos mercadores agora atracados no porto. De onde você é?
- Do norte - gaguejou Wulfgar. - Do vale... Vento Gélido.
Régis não via tamanha ousadia numa mulher desde seus anos em Calimporto e sentiu que devia intervir. Havia algo de depravado naquele tipo de mulher, uma demasiadamente
extraordinária perversão do prazer. O fruto proibido tornado fácil. Régis, de repente, flagrou-se com saudades de Calimporto. Wulfgar não seria páreo para os artifícios
daquela criatura.
- Somos viajantes pobres - explicou Régis, enfatizando o "pobres" num esforço para proteger seu amigo. - Sem dinheiro, mas com muitos quilômetros a
percorrer.
Wulfgar olhou, curioso, para seu companheiro, sem entender muito bem a razão da mentira.
A mulher examinou Wulfgar mais uma vez e estalou os lábios.
- Pena - ela murmurou, e então perguntou a Régis - Nenhum dinheiro?
Régis deu de ombros, impotente.
- É uma pena mesmo - repetiu a mulher e levantou-se para deixar a mesa.
O rosto de Wulfgar corou com um vermelho intenso assim que ele começou a compreender os verdadeiros motivos daquele encontro.
Algo também se agitou dentro de Régis. Um anseio pelos dias de outrora, quando ele percorria a zona de má reputação de Calimporto, incitou seu coração de
tal modo que não conseguiu resistir. Agarrou o cotovelo da mulher assim que ela passou por ele.
- Nenhum dinheiro - explicou-lhe, diante de sua expressão indagativa -, a não ser isto. - Ele sacou o pingente de rubi de sob o casaco e o fez balançar
na ponta da corrente. As cintilações imediatamente atraíram o olhar cúpido da mulher, e a jóia mágica a absorveu em seu transe hipnótico. Ela voltou a se sentar,
dessa vez na cadeira mais próxima a Régis, sem que os olhos jamais abandonassem o maravilhoso rubi rodopiante.
Somente a confusão impediu Wulfgar de irromper num acesso de ultraje diante daquela deslealdade, e a indistinção de pensamentos e emoções em sua mente revelou-se
como um mero olhar de perplexidade.
Régis percebeu a expressão do bárbaro, mas o ignorou com um encolher de ombros e sua típica propensão para descartar emoções negativas, como a culpa. Que
a aurora do dia de amanhã expusesse sua manobra; a conclusão não diminuiria sua competência em desfrutar daquela noite.
- A noite de Luskan traz um vento frio - ele disse à mulher. Ela pousou uma das mãos sobre o braço dele.
- Acharemos para você uma cama quentinha, não tenha medo. O sorriso do halfling quase lhe alcançou as orelhas.
Wulfgar por pouco não caiu da cadeira.


Bruenor readquiriu rapidamente a compostura, não querendo insultar Sussurro nem deixá-la saber que sua surpresa ao encontrar uma mulher dava a ela uma pequena
vantagem. No entanto, ela sabia a verdade e seu sorriso deixou Bruenor ainda mais aturdido.
Vender informações num cenário tão perigoso quanto a zona do porto de Luskan significava uma constante negociação com assassinos e ladrões e, mesmo dentro
da estrutura de uma intricada rede de apoio, era uma função que exigia coragem. Poucos dentre os que procuravam os serviços de Sussurro conseguiam esconder a óbvia
surpresa ao encontrar uma mulher jovem e atraente exercendo tal profissão.
O respeito de Bruenor pela informante, porém, em nada diminuiu, apesar de sua surpresa, pois a reputação de Sussurro chegara até ele através de centenas
de quilômetros. Ela ainda estava viva e somente esse fato já revelava ao anão que se tratava de uma mulher formidável.
Drizzt estava consideravelmente menos perplexo com a descoberta. Nas cidades escuras dos elfos drow, as mulheres normalmente ocupavam posições mais elevadas
que os homens e eram geralmente mais mortíferas. Drizzt compreendia a vantagem que Sussurro tinha sobre os clientes masculinos que tendiam a subestimá-la nas sociedades
dominadas pelos homens das perigosas terras do norte.
Ansioso por terminar os negócios e voltar à estrada, o anão foi direto ao propósito do encontro.
- 'Tô precisando de um mapa - disse ele - e me disseram que eu podia conseguir ele com você.
- Possuo muitos mapas - a mulher respondeu serenamente.
- Um mapa do norte - explicou Bruenor. - Do mar ao deserto e nomeando corretamente os lugares segundo os costumes das raças que vivem por lá!
Sussurro assentiu.
- O preço será alto, meu bom anão - disse ela, os olhos cintilando à mera menção do ouro.
Bruenor atirou-lhe uma pequena bolsa de pedras preciosas.
- Isso deve dar - resmungou ele, sempre desgostoso em gastar dinheiro.
Sussurro esvaziou o conteúdo da bolsa em sua mão e examinou as pedras mal lapidadas. Ao voltar a guardá-las, meneava a cabeça, ciente do considerável valor
das jóias.
- Espera! - protestou Bruenor quando ela começou a prender a bolsa ao cinto. - 'Cê não vai levar as minhas pedras até eu ver o mapa!
- É claro - respondeu a mulher com um sorriso apaziguador. - Espere aqui. Devo retornar em breve com o mapa que deseja. - Ela atirou a bolsa de volta
a Bruenor e girou repentinamente, erguendo o manto com um ruído seco e levantando uma lufada de névoa com o movimento. Um clarão acompanhou a bruma e a mulher desapareceu.
Bruenor saltou para trás e agarrou o punho do machado.
- Que truque de feitiçaria é esse? - gritou.
Drizzt, nada impressionado, levou a mão ao ombro do anão.
- Calma, poderoso anão - disse ele. - Foi apenas um truque insignificante para disfarçar-lhe a fuga em meio à neblina e à luz. - Ele apontou uma pequena
pilha de tábuas. - Ali, naquele escoadouro.
Bruenor acompanhou a linha do braço do drow e relaxou. Mal se podia enxergar a boca de um buraco destampado, a grade encostada à parede do armazém a uma
pequena distância de onde eles se encontravam.
- 'Cê conhece esse tipo de coisa melhor do que eu, elfo - declarou o anão, atarantado com sua falta de experiência em lidar com os ladinos das ruas
de uma cidade. - Ela 'tá querendo negociar limpo ou estamos sentados aqui que nem patinhos esperando os canalhas dos comparsas dela nos roubar?
- Não, e não - respondeu Drizzt. - Sussurro não estaria viva se entregasse os clientes aos ladrões. Mas eu dificilmente esperaria que um acordo com
ela, qualquer que seja, venha a ser um negócio limpo.
Bruenor percebeu que, enquanto falavam, Drizzt retirara sorrateiramente uma de suas cimitarras da bainha.
- Sem armadilhas, hein? - perguntou o anão novamente, indicando a arma preparada.
- Da parte dela, não - replicou Drizzt. - Mas as sombras ocultam muitos outros olhos.

Muitos olhos além dos de Wulfgar recaíam sobre o halfling e a mulher.
Os ousados ladinos da zona do porto de Luskan costumavam se divertir bastante atormentando criaturas de menor estatura física, e os halflings estavam entre
seus alvos favoritos. Naquela noite, em particular, um homem imenso e obeso, com sobrancelhas peludas e cerdas de barba que retinham a espuma da caneca sempre cheia,
dominava a conversa no bar, gabando-se de proezas de força impossíveis e ameaçando todos ao redor dele com uma surra se o fluxo de cerveja diminuísse o mínimo que
fosse.
Todos os homens reunidos em volta dele no bar - homens que o conheciam, ou dele tinham ouvido falar - balançavam as cabeças em entusiástico assentimento a
cada uma de suas palavras, colocando-o sobre um pedestal de elogios para dispersar o medo que eles próprios nutriam por ele. Mas o ego do homem gordo precisava de
mais diversão, uma nova vítima para intimidar, e, percorrendo o perímetro da taverna, seu olhar recaiu naturalmente sobre Régis e o grande - porém evidentemente
jovem - amigo do halfling. O espetáculo de um halfling cortejando a mulher mais cara do Alfanje apresentava uma oportunidade por demais tentadora para o gordo simplesmente
ignorar.
- Olha aqui, moça bonita - babou ele, cuspindo cerveja a cada palavra.
- 'Cê acha que um meio-homem como esse aí vai te dar aquela noitada? - A turba ao redor do bar, ansiosa por se manter na alta conta do gordo, explodiu
numa gargalhada excessivamente ardorosa.
A mulher tratara com aquele homem antes e vira outros caírem dolorosamente diante dele. Ela atirou-lhe um olhar preocupado, mas continuou firmemente presa
à atração do pingente de rubi. Régis, porém, imediatamente desviou os olhos do homem gordo, voltando sua atenção para onde ele desconfiava que a encrenca mais
provavelmente começaria: o outro lado da mesa e Wulfgar.
Descobriu que sua preocupação era justificada. Os nós dos dedos do orgulhoso bárbaro estavam brancos de tanto apertar as bordas da mesa e o olhar inflamado
revelou a Régis que seu amigo estava a ponto de explodir.
- Ignore as provocações - insistiu Régis. - Não vale um segundo do seu tempo!
Wulfgar não relaxou nem um pouco, jamais desprendendo o olhar de seu adversário. Ele poderia ignorar os insultos do gordo, mesmo os que ofendiam Régis e a
mulher. Mas Wulfgar entendia a motivação por trás daqueles insultos. Aproveitando-se dos amigos menos capazes do bárbaro, o valentão desafiava Wulfgar. Ele se perguntou
quantos outros haviam sido vitimados por aquele palerma avantajado. Talvez fosse a hora do gordo aprender um pouco de humildade.
Reconhecendo ali uma possibilidade de confusão, o grotesco fanfarrão se aproximou alguns passos.
- Isso, chega prá lá um pouquinho, meio-homem - exigiu ele, acenando para que Régis se afastasse.
Régis fez um rápido inventário dos fregueses da taverna. Certamente havia muitos ali que poderiam se juntar à sua causa contra o gordo e os camaradas antipáticos
dele. Havia até mesmo um membro da guarda oficial da cidade, um grupo tido em alta conta em todos os setores de Luskan.
Régis interrompeu seu exame atento por um instante e olhou para o soldado. Quão deslocado o homem parecia numa escarradeira infestada de canalhas como o Alfanje.
Mais curioso ainda, Régis reconheceu o homem como Jierdan, o soldado no portão que reconhecera Drizzt e havia arranjado para que eles entrassem na cidade algumas
horas antes.
O gordo deu mais um passo em direção à mesa e Régis não teve tempo para considerar as implicações.
Com as mãos nos quadris, a imensa bolha humana fitou-o de cima para baixo. Régis sentiu o coração batendo, o sangue correndo em suas veias, como sempre acontecia
naquele tipo de confronto nervoso que caracterizara seus dias em Calimporto. E agora, como então, ele tinha toda a intenção de encontrar uma maneira de escapar.
Mas sua confiança desapareceu ao lembrar-se do companheiro. Menos experiente - e Régis rapidamente acrescentaria "menos esperto!" -, Wulfgar não deixaria
o desafio passar sem resposta. Um salto de suas pernas compridas o transportou sem dificuldade por cima da mesa e o colocou diretamente entre o gordo e Régis. Ele
retribuiu o olhar ameaçador do gordo com igual intensidade.
O gordo relanceou o olhar para seus amigos no bar, totalmente ciente de que o distorcido senso de honra de seu jovem e orgulhoso oponente impediria o primeiro
golpe.
- Ora, ora, vejam só isso - ele riu, os lábios retraídos em salivante expectativa -, parece que o moleque tem algo a dizer.
Ele começou lentamente a dar as costas a Wulfgar, depois se lançou de repente para a garganta do bárbaro, esperando que a mudança de velocidade pegasse Wulfgar
de surpresa.
Mas, apesar de inexperiente em relação aos costumes das tavernas, Wulfgar compreendia a batalha. Fora treinado por Drizzt Do'Urden, um guerreiro sempre alerta,
e trazia os músculos em sua melhor forma para o combate. Antes que as mãos do gordo sequer chegassem perto de sua garganta, Wulfgar havia agarrado o rosto do oponente
com uma de suas mãos descomunais e enfiado a outra na virilha do gordo.
O oponente atordoado viu-se erguido em pleno ar.
Por alguns segundos, os espectadores ficaram demasiado atônitos para reagir, exceto Régis, que espalmou a mão contra o próprio rosto incrédulo e deslizou
discretamente para baixo da mesa.
O gordo era mais pesado que três homens medianos, mas o bárbaro o ergueu facilmente sobre a cabeça, dois metros e meio acima do chão, e até mais alto, à máxima
extensão de seus braços.
Berrando de fúria impotente, o gordo ordenou que seus partidários atacassem. Wulfgar esperou pacientemente pelo primeiro gesto contra ele.
A turba inteira pareceu saltar de uma só vez. Mantendo a calma, o guerreiro treinado procurou pela mais densa concentração de oponentes - três homens - e
arremessou o projétil humano, observando-lhes as expressões horrorizadas pouco antes daquela montanha de banha atropelá-los e atirá-los para trás. Então, o impulso
combinado dos quatro arrancou uma seção inteira do bar de seus suportes, derrubando o desafortunado estalajadeiro e atirando-o contra as prateleiras que sustentavam
seus melhores vinhos.
A diversão de Wulfgar durou pouco, pois outros rufiões caíram rapidamente sobre ele. Plantou os calcanhares no chão, determinado a se manter de pé, e atacou
violentamente com seus imensos punhos, atirando para os lados cada um de seus inimigos e estatelando-os nos cantos mais distantes da sala.
A luta irrompeu em toda a taverna. Homens incapazes de erguer um dedo se um assassinato fosse cometido aos seus pés saltaram uns sobre os outros com fúria
desenfreada diante da visão aterrorizante de bebida derramada e de um bar quebrado.
Entretanto, foram poucos os partidários do gordo detidos pela desordem generalizada. Caíam em grandes números sobre Wulfgar, uma leva depois da outra. Ele
até que estava se saindo bem, pois ninguém conseguiu retardá-lo o bastante para que os reforços chegassem. Ainda assim, o bárbaro era atingido com a mesma freqüência
com que acertava os próprios golpes. Recebeu estoicamente os socos, bloqueando a dor com seu orgulho e sua tenacidade combativa, que simplesmente não lhe permitiriam
perder.
Desde seu novo lugar sob a mesa, Régis assistia ao combate e bebericava o hidromel. Até mesmo as criadas haviam se metido na briga, circulando pela taverna
montadas nas costas de algum combatente infeliz, usando as unhas para gravar desenhos intricados nos rostos dos homens. De fato, Régis logo discerniu que a única
outra pessoa na taverna não envolvida na luta, além dos que já estavam inconscientes, era Jierdan. O soldado continuava sentado em sua cadeira, em silêncio, indiferente
à briga e interessado apenas, aparentemente, em observar e avaliar a perícia de Wulfgar.
Aquilo também perturbou o halfling, mas ele descobriu, mais uma vez, que não tinha tempo para contemplar as ações incomuns do soldado. Régis soubera desde
o começo que precisaria tirar seu gigantesco amigo daquela confusão e agora seus olhos vigilantes haviam percebido o previsível cintilar do aço. Um ladino logo atrás
dos últimos oponentes de Wulfgar havia sacado um punhal.
- Maldição! - resmungou Régis, pousando sua bebida no chão e sacando a maça de uma prega em seu manto. Aquele tipo de coisa sempre deixava um gosto ruim em
sua boca.
Wulfgar jogou os dois oponentes para um lado, abrindo uma trilha para o homem com a faca. Ele arremeteu, os olhos erguidos a fitar os do bárbaro alto. Sequer
notou Régis disparar por entre as pernas compridas de Wulfgar, a pequena maça erguida para atacar. A arma atingiu o joelho do homem, estilhaçando-lhe a patela e
fazendo com que caísse de braços abertos - agora exposto o punhal - na direção de Wulfgar.
Wulfgar desviou-se da investida dando um passo para o lado no último segundo e fechou sua mão sobre a do atacante. Rolando com o impulso, o bárbaro derrubou
a mesa e bateu contra a parede. Um apertão esmagou os dedos do atacante contra o cabo da faca ao mesmo tempo que Wulfgar engolfava o rosto do homem com sua mão livre
e o erguia do chão. Clamando por Tempus, o deus das batalhas, o bárbaro, enfurecido com o aparecimento de uma arma, atravessou as tábuas de madeira da parede com
a cabeça do homem e o deixou ali, pendurado, os pés a trinta centímetros do chão.
Uma manobra impressionante, mas custou a Wulfgar tempo precioso. Quando de novo voltou-se para o bar, foi enterrado sob uma rajada de murros e chutes de vários
atacantes.

- Aí vem ela - Bruenor murmurou para Drizzt quando viu Sussurro voltando, embora os sentidos aguçados do drow tivessem lhe revelado a aproximação da mulher
muito antes que o anão o percebesse. Sussurro havia partido coisa de meia hora atrás, mas parecera muito mais tempo para os dois amigos no beco, perigosamente expostos
às miras dos besteiros e outros capangas que eles sabiam estar por perto.
Sussurro caminhou com confiança até eles.
- Aqui está o mapa que deseja - ela disse a Bruenor, erguendo um pergaminho enrolado.
- Deixa eu dar uma olhada, então - o anão exigiu, dando um passo a frente.
A mulher retraiu-se e abaixou o pergaminho.
- O preço agora é maior - declarou categoricamente. - Dez vezes o que você já ofereceu.
O olhar perigoso de Bruenor não a desencorajou.
- Não lhe resta alternativa - ela sibilou. - Não encontrará mais ninguém que possa lhe arranjar isto. Pague o preço e acabe logo com isso!
- Um momento - disse Bruenor, com repentina calma. - Meu amigo tem que opinar sobre isso. - Ele e Drizzt se afastaram um passo.
- Ela descobriu quem somos - explicou o drow, apesar de Bruenor já ter chegado à mesma conclusão. - E quanto podemos pagar.
- É o mapa? - perguntou Bruenor.
Drizzt assentiu.
- Ela não teria razão para acreditar que está em perigo, não aqui. Você tem o dinheiro?
- Sim - disse o anão -, mas nossa estrada ainda é longa e acho que vamos precisar de mais do que eu tenho.
- Está decidido, então - Drizzt respondeu. Bruenor reconheceu o brilho incandescente que se acendeu nos olhos cor de lavanda do drow. - Quando encontramos
esta mulher, fechamos um acordo justo - continuou ele. - Um acordo que devemos honrar.
Bruenor entendeu e aprovou. Sentiu começar o formigamento da expectativa em seu sangue. Voltou-se para a mulher e notou imediatamente que ela agora segurava
um punhal em lugar do pergaminho. Aparentemente, ela compreendia a natureza dos dois aventureiros com quem negociava.
Drizzt, percebendo também o brilho do metal, afastou-se de Bruenor, tentando parecer inofensivo para Sussurro, embora, na realidade, desejasse se colocar
num ângulo mais favorável em relação a algumas fendas suspeitas que ele notara na parede - fendas que poderiam ser as aparas de uma porta secreta.
Bruenor aproximou-se da mulher, as mãos desarmadas e os braços estendidos.
- Se esse é o preço - ele resmungou -, então não temos escolha a não ser pagar. Mas vou ver o mapa primeiro!
Confiante de que poderia enfiar o punhal no olho do anão antes que uma das mãos dele conseguisse alcançar o cinto em busca de uma arma, Sussurro relaxou e
moveu a mão livre para o pergaminho sob seu manto.
Mas ela subestimou seu oponente.
As pernas atarracadas de Bruenor se contraíram, arremessando-o alto o bastante para golpear o rosto da mulher com o elmo, arrancar-lhe sangue do nariz e bater-lhe
a cabeça na parede. Ele pegou o mapa, largando a bolsa original sobre a forma flácida de Sussurro e murmurando:
- Conforme combinado.
Drizzt também agiu rápido. Nem bem o anão se encolheu, o drow invocou a magia inerente à sua raça para conjurar um globo de escuridão em frente à janela que
abrigava os besteiros. Nenhum virote apontou, mas os gritos raivosos dos dois arqueiros ecoaram por todo o beco.
Então, as fendas na parede se abriram, como Drizzt havia antecipado, e a segunda linha de defesa de Sussurro investiu. O drow estava preparado, as cimitarras
já em suas mãos. As espadas cintilaram, apenas os lados embotados, mas com precisão suficiente para desarmar o ladino corpulento que dali saiu. Então, elas se apresentaram
novamente, atingindo o rosto do homem e, no mesmo movimento fluido, Drizzt reverteu o ângulo, dando com um botão, e depois o outro, nas têmporas do homem. Quando
Bruenor se virou com o mapa, o caminho estava livre diante dele.
Bruenor examinou a obra do drow com verdadeira admiração.
Então, um quadrelo de besta bateu na parede a menos de três centímetros de sua cabeça.
- Hora de ir - observou Drizzt.
- A ponta vai estar bloqueada, ou então sou um gnomo de barba - disse Bruenor quando eles se aproximaram da saída do beco. Um rugido no prédio ao lado
deles, seguido de gritos aterrorizados, trouxe-lhes algum consolo.
- Guenhwyvar - declarou Drizzt quando dois homens envoltos em mantos irromperam na rua diante deles e fugiram sem olhar para trás.
- Por certo que eu tinha me esquecido completamente do gato! - gritou Bruenor.
- Que bom que a memória de Guenhwyvar é melhor que a sua - riu Drizzt, e Bruenor, apesar de seus sentimentos pelo gato, gargalhou com ele. Detiveram-se ao
final do beco e inspecionaram a rua. Não havia sinal de problemas, mas a densa neblina proporcionava boa cobertura para uma possível emboscada.
- Vá devagar - sugeriu Bruenor. - Vamos chamar menos atenção.
Drizzt teria concordado mas, então, um segundo quadrelo, disparado de algum lugar lá atrás no beco, bateu numa viga de madeira entre eles.
- Hora de ir! - Drizzt declarou com veemência, apesar de Bruenor não precisar de mais encorajamento, pois suas pequenas pernas já estavam envolvidas num movimento
furioso enquanto disparava neblina adentro.
Abriram caminho por entre as voltas e curvas do labirinto de ratos que era Luskan, Drizzt passando graciosamente por sobre as barreiras de escombros e Bruenor
simplesmente atravessando-as à força. Dali a pouco, confiantes de que não eram seguidos, adotaram um passo mais tranqüilo.
O branco de um sorriso apontava por entre a barba ruiva do anão, que continuava a olhar por sobre o ombro com um ar satisfeito e malicioso no rosto. Mas,
quando ele se virou para ver a rua diante dele, mergulhou de repente para um lado, bracejando para encontrar seu machado.
Dera de cara com o gato mágico.
Drizzt não foi capaz de conter o riso.
- Tira essa coisa daqui! - exigiu Bruenor.
- Olhe os modos, meu bom anão - rebateu o drow. - Lembre-se de que Guenhwyvar abriu nossa rota de fuga.
-Tira ela daqui! - declarou Bruenor novamente, brandindo o machado, pronto para atacar.
Drizzt afagou o pescoço musculoso do poderoso felino.
- Não dê atenção às palavras dele, minha amiga - disse ele ao gato. - É um anão e não consegue apreciar a magia mais refinada!
- Ora! - rosnou Bruenor, apesar de respirar com um pouco mais de facilidade assim que Drizzt dispensou o gato e recolocou a estátua de ônix em sua
bolsa.
Os dois deram com a Rua da Meia-lua pouco depois, detendo-se num último beco para procurar sinais de emboscada. Souberam imediatamente que havia acontecido
alguma coisa, pois vários homens feridos passavam cambaleando ou carregados pela entrada do beco.

Então, viram o Alfanje e duas formas familiares sentadas na rua bem defronte.
- Que é que 'cês 'tão fazendo aí? - perguntou Bruenor quando se aproximaram.
- Parece que nosso amigo grandalhão responde aos insultos com socos - disse Régis, que saíra ileso da refrega.
O rosto de Wulfgar, porém, estava intumescido e machucado, e ele mal conseguia abrir um dos olhos. Sangue seco - um pouco do qual era seu mesmo - empastava-lhe
os punhos e as roupas.
Drizzt e Bruenor olharam um para o outro, não muito surpresos.
- E nossos quartos? - resmungou Bruenor.
Régis chacoalhou a cabeça.
- Duvido muito.
- E meu dinheiro?
De novo o halfling chacoalhou a cabeça.
- Ora! - bufou Bruenor, e ele partiu, pisando duro, em direção à porta do Alfanje.
- Eu não faria... - começou Régis, mas, então, deu de ombros e decidiu deixar Bruenor descobrir por si mesmo.
O choque de Bruenor foi total quando abriu a porta da taverna. Mesas, vidros e fregueses inconscientes jaziam em pedaços por todo o chão. O estalajadeiro
estava caído sobre uma parte do bar despedaçado, uma criada a envolver-lhe a cabeça ensangüentada em ataduras. O homem que Wulfgar implantara na parede ainda pendia
molemente pela nuca, gemendo baixinho, e Bruenor não conseguiu evitar uma risadinha diante da obra do poderoso bárbaro. De vez em quando, uma das criadas, ao passar
pelo homem enquanto limpava o recinto, dava-lhe um empurrãozinho, divertindo-se com seu balançar.
- Desperdício de bom dinheiro - inferiu Bruenor, e voltou a sair pela porta antes que o estalajadeiro o notasse e lançasse as criadas sobre ele.
- Mas que tremenda bagunça! - disse ele a Drizzt quando voltou para junto de seus companheiros. - Todo o mundo entrou na briga?
- Todos menos um - respondeu Régis. - Um soldado.
- Um soldado de Luskan, aqui? - perguntou Drizzt, surpreso pela óbvia inconsistência.
Régis assentiu.
- É ainda mais curioso - continuou ele -, era o mesmo guarda, Jierdan, que nos deixou entrar na cidade.
Drizzt e Bruenor trocaram olhares preocupados.
- Tem assassinos atrás da gente, uma estalagem arrebentada na nossa frente e um soldado dando mais atenção prá gente do que deveria - disse Bruenor.
- Hora de ir - respondeu Drizzt pela terceira vez. Wulfgar olhou para o drow, incrédulo. - Quantos homens você derrubou esta noite? - Drizzt perguntou-lhe,
colocando a suposição lógica de perigo bem diante dele. - E quantos deles não ansiariam pela oportunidade de enfiar um punhal nas suas costas?
- Além disso - acrescentou Régis, antes que Wulfgar pudesse responder -, não tenho o menor desejo de dividir a cama num beco com um bando de ratos!
- Então, para o portão - disse Bruenor Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Não com um guarda tão interessado em nós. Por cima da muralha, e que ninguém note nossa passagem.
Uma hora depois, caminhavam tranqüilamente pela vasta campina, sentindo o vento novamente, passada a barreira da muralha de Luskan. Régis resumiu seus pensamentos,
dizendo:
- Nossa primeira noite em nossa primeira cidade e enganamos assassinos, derrotamos um bando de rufiões e atraímos a atenção da guarda da cidade. Um
começo auspicioso para nossa jornada!
- É, mas temos isto! - gritou Bruenor, positivamente rebentando de expectativa para encontrar sua terra natal agora que o primeiro obstáculo, o mapa,
fora superado.
Pouco sabiam ele ou seus amigos, entretanto, que o mapa que ele apertava nas mãos com tanto amor detalhava várias regiões mortíferas, e que uma delas testaria
os quatro amigos até o limite... E além.

4. A CONJURAÇÃO

Um marco de prodigiosa arquitetura era a grande atração do centro da Cidade das Velas, um estranho edifício que emanava uma poderosa aura mágica. Diferente
de qualquer outra estrutura em todos os Reinos Esquecidos, a Torre das Hostes Arcanas parecia literalmente uma árvore de pedra, ostentando cinco torreões altos,
sendo o central o maior deles, e os outros quatro, igualmente altos, a crescer a partir do tronco principal com a graciosa curvatura de um carvalho. Não se via sinal
de alvenaria; era evidente a qualquer observador instruído que a magia - e não o trabalho físico - produzira aquela obra-de-arte.
Um Arquimago, Mestre inconteste da Torre das Hostes, residia na torre central, enquanto as outras quatro abrigavam os magos no topo da linha de sucessão.
Cada uma dessas torres menores, representando os quatro pontos cardeais, dominava uma face diferente do tronco e seu respectivo mago era responsável por zelar pela
direção que supervisionava e influenciar os acontecimentos daquele lado. Portanto, o mago a oeste do tronco passava seus dias olhando para o mar e para os navios
de mercadores e piratas que resistiam aos temporais no porto de Luskan.
Uma conversa no torreão norte teria interessado aos companheiros de Dez-Burgos naquele dia.
- Fez muito bem, Jierdan - disse Sidnéia, uma feiticeira mais jovem e de menor importância na Torre das Hostes, apesar de demonstrar potencial suficiente
para conquistar um noviciado com um dos mais poderosos magos da guilda. Sem ser bonita, Sidnéia pouco se importava com as aparências físicas, dedicando sua energia
à busca inexorável pelo poder. Ela passara a maior parte dos seus vinte e cinco anos trabalhando em prol de um objetivo - o título de Maga - e sua determinação e
atitude deixavam poucas dúvidas quanto à sua capacidade de consegui-lo.
Jierdan aceitou o elogio com um aceno sagaz da cabeça, entendendo perfeitamente a forma condescendente com que este fora oferecido.
- Agi apenas como fui instruído - ele respondeu, sob uma fachada de humildade, lançando um olhar para o homem de aparência frágil, vestindo túnicas
de um castanho variegado, que fitava o mundo lá fora pela única janela da sala.
- Por que eles viriam aqui? - murmurou o mago consigo mesmo. Ele se voltou para os demais, e eles se encolheram instintivamente diante daquele olhar.
Era Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte, e, apesar de parecer fraco à distância, um exame mais de perto revelava no homem um poder mais pujante que o
de meros músculos protuberantes. E sua merecida reputação de valorizar a busca pelo conhecimento muito mais que a vida intimidava muitos que se colocavam diante
dele.
- Os viajantes apresentaram algum motivo para vir aqui?
- Nenhum no qual eu acreditasse - replicou Jierdan tranqüilamente. - O halfling falou de inspecionar a praça do mercado, mas eu...
- Improvável - interrompeu Dendibar, falando mais consigo mesmo do que para os demais. - Esses quatro têm mais em mente do que uma mera expedição mercantil.
Sidnéia pressionou Jierdan, procurando se manter nas boas graças do Mestre do Torreão Norte.
- Onde estão eles agora? - indagou.
Jierdan não se atreveu a confrontá-la na frente de Dendibar.
- Nas docas... em algum lugar - disse, depois deu de ombros.
- Você não sabe? - sibilou a jovem feiticeira.
- Planejavam se hospedar no Alfanje - retorquiu Jierdan. - Mas a briga os deixou na rua.
- E você devia tê-los seguido! - ralhou Sidnéia, acossando implacavelmente o soldado.
- Seria tolice até mesmo para um soldado da cidade percorrer sozinho os molhes à noite - rebateu Jierdan. - Não importa onde estejam neste momento.
Tenho os portões e o cais sob vigilância. Não podem sair de Luskan sem que eu saiba!
- Quero que os encontre! - ordenou Sidnéia, mas então Dendibar a silenciou.
- Deixe a vigilância como está - ele disse a Jierdan. - Eles não devem partir sem que eu saiba. Está dispensado. Apresente-se novamente quando tiver
algo a relatar.
Jierdan assumiu a posição de sentido e virou-se para partir, lançando, ao passar, um último olhar feroz para sua rival pelas graças do mago variegado. Era
apenas um soldado, não um aprendiz promissor como Sidnéia, mas, em Luskan onde a Torre das Hostes Arcanas era a verdadeira força oculta por trás de todas as estruturas
de poder da cidade, um soldado fazia bem em procurar o favor de um mago. Os capitães da guarda somente conseguiam suas posições e seus privilégios com o consentimento
prévio da Torre das Hostes.
Não podemos permitir que eles perambulem por aí livremente - argumentou Sidnéia quando a porta se fechou atrás do soldado que saía.
Não devem causar problemas por enquanto - replicou Dendibar. - Mesmo se o drow carregar com ele o artefato, levará anos para que compreenda seu potencial.
Paciência, minha amiga, tenho maneiras de descobrir o que precisamos saber. As peças deste quebra-cabeça vão se encaixar direitinho muito em breve.
- Aflige-me pensar que tamanho poder esteja tão ao nosso alcance - suspirou a jovem e impaciente feiticeira. - E nas mãos de um principiante!
- Paciência - repetiu o Mestre do Torreão Norte.
Sidnéia terminou de acender o circuito de velas que demarcava o perímetro do aposento especial e dirigiu-se lentamente para o braseiro solitário que se achava
em seu tripé de ferro, imediatamente fora do círculo mágico inscrito no piso. Desapontava-a saber que, assim que o braseiro também estivesse ardendo, ela seria instruída
a sair. Saboreando cada momento naquela sala raramente franqueada, considerada por muitos a melhor câmara de conjuração em todas as terras do norte, Sidnéia havia
muitas vezes implorado para continuar de serviço.
Mas Dendibar nunca a deixava ficar, explicando que suas inevitáveis perguntas acabariam se revelando uma grande distração. E, quando se lidava com os mundos
inferiores, as distrações geralmente se mostravam fatais.
Dendibar sentou-se de pernas cruzadas no interior do círculo mágico, entoando mantras até entrar num profundo transe meditativo, sem nem mesmo perceber as
ações de Sidnéia, que completava os preparativos. Todos os seus sentidos se voltavam para o interior, vasculhando o próprio ser para garantir que estivesse totalmente
preparado para aquela tarefa. Ele deixara apenas uma janela em sua mente aberta para o exterior, uma fração de sua consciência à espera de uma única deixa: o estalido
do ferrolho da pesada porta sendo recolocado em seu lugar com a saída de Sidnéia.
Suas pálpebras pesadas se abriram de repente, o campo estreito da visão fixado unicamente nas chamas do braseiro. Aquelas labaredas seriam a vida do espírito
invocado e dariam a ele uma forma tangível enquanto Dendibar o mantivesse preso no plano material.
- Ey vesus venerais dimin dou - começou a entoar o mago, a princípio lentamente, depois estabelecendo um ritmo estável.
Arrebatado pela insistente atração da invocação - como se a magia, assim que tivesse recebido um bruxuleio de vida, conduzisse a si própria à conclusão
do encantamento -, Dendibar passou com desenvoltura pelas várias modulações e sílabas arcanas, o suor em seu rosto a refletir ansiedade mais que nervosismo.
O mago variegado se deleitava com as invocações, pois dominava a vontade de seres muito além do mundo mortal por meio da mera persistência de seu considerável
poder mental. Aquela sala representava o ápice de seus estudos, a evidência irrefutável dos vastos limites de seus poderes.
Dessa vez, ele tinha como alvo seu informante favorito, um espírito que verdadeiramente o desprezava, mas não podia recusar seu chamado. Dendibar chegou ao
clímax da invocação, a nomeação.
- Morkai - chamou ele, baixinho.
A chama do braseiro se avivou durante um momento.
- Morkai! - gritou Dendibar, arrancando o espírito de sua prisão no outro mundo. O braseiro formou uma pequena bola. de fogo, depois se extinguiu nas
trevas, as chamas transmutadas na imagem de um homem de pé diante de Dendibar.
Arregaçaram-se os lábios finos do mago. Que ironia, pensou ele, que o homem cujo assassinato ele arranjara acabasse se mostrando sua mais valiosa fonte de
informações.
O espectro de Morkai, o Vermelho, apresentou-se resoluto e orgulhoso, uma imagem digna do poderoso mago que fora outrora. Ele mesmo havia criado aquela sala,
na época em que servira à Torre das Hostes no papel de Mestre do Torreão Norte. Mas, então, Dendibar e seus capangas haviam conspirado contra ele, usando seu aprendiz
de confiança para enfiar um punhal em seu coração e, assim, abrir uma trilha de sucessão para o próprio Dendibar alcançar a cobiçada posição no torreão.
Esse mesmo ato havia colocado uma segunda - e talvez mais significativa - cadeia de eventos em ação, pois foi o mesmo aprendiz, Akar Kessell, que acabou possuindo
a Estilha de Cristal, o poderoso artefato que Dendibar agora acreditava estar nas mãos de Drizzt Do'Urden. As histórias que haviam chegado de Dez-Burgos sobre a
batalha final de Akar Kessell nomeavam o elfo como o guerreiro que o abatera.
Não havia como Dendibar saber que a Estilha de Cristal agora jazia enterrada sob centenas de toneladas de gelo e rocha na montanha do Vale do Vento Gélido,
conhecida como Sepulcro de Kelvin, perdida na avalanche que matara Kessell. Tudo o que sabia da história era que Kessell, o aprendiz insignificante, havia quase
conquistado todo o Vale do Vento Gélido com a Estilha de Cristal e que Drizzt Do'Urden foi o último a ver Kessell com vida.
Dendibar retorcia as mãos ansiosamente sempre que pensava no poder que a relíquia traria a um mago mais instruído.
Saudações, Morkai, o Vermelho - riu Dendibar. - Quanta cortesia aceitar meu convite.
Aceito toda oportunidade de encará-lo, Dendibar, o Assassino - replicou o espectro. - Para que possa reconhecê-lo quando você navegar no barco da
Morte pelo reino tenebroso. Então estaremos em pé de igualdade novamente...
Silêncio! - ordenou Dendibar. Embora não admitisse a verdade, o mago variegado temia imensamente o dia em que teria de enfrentar o poderoso Morkai
mais uma vez. - Eu o trouxe aqui com um propósito - disse ele ao espectro. - Não tenho tempo para suas ameaças vãs.
- Então, diga-me que serviço devo executar - sibilou o espectro -, e deixe-me partir. Sua presença me ofende.
Dendibar se enfureceu, mas não deu prosseguimento à discussão. O tempo agia contra um mago envolvido numa magia de invocação, pois esta o exauria para manter
um espírito no plano material, e cada segundo que passava o enfraquecia um pouco mais. O maior risco naquele tipo de magia era o conjurador tentar manter o controle
durante muito tempo, até que se achasse fraco demais para controlar a entidade que havia invocado.
- Uma resposta simples é tudo o que exijo de você hoje, Morkai - disse Dendibar, escolhendo cuidadosamente cada palavra enquanto prosseguia. Morkai
notou a cautela e desconfiou que Dendibar escondia algo.
- Então, qual é a pergunta? - pressionou o espectro.
Dendibar manteve a cautela, considerando cada palavra antes de pronunciá-la. Ele não queria que Morkai obtivesse uma dica sequer sobre suas razões para procurar
pelo drow, pois o espectro certamente transmitiria a informação através dos planos. Muitos seres poderosos - talvez até mesmo o próprio espírito de Morkai - partiriam
em busca de uma relíquia tão poderosa se fizessem idéia do paradeiro da estilha.
- Quatro viajantes, um deles um elfo drow, chegaram hoje a Luskan vindos do Vale do Vento Gélido - explicou o mago variegado. - O que vieram fazer
na cidade? Por que estão aqui?
Morkai examinou sua nêmese, tentando descobrir o motivo da pergunta.
- Está aí uma boa pergunta para a guarda de sua cidade - ele respondeu.
- Sem dúvida os visitantes declararam a que vieram ao entrar pelo portão.
- Mas foi a você que perguntei! - gritou Dendibar, subitamente explodindo de fúria. Morkai protelava, e cada segundo que passava agora cobrava seu
preço do mago variegado. A essência de Morkai perdera pouco poder na morte, e ele lutava teimosamente contra o encanto aprisionador da magia. Dendibar, com um gesto
rápido, abriu um pergaminho diante dele.
- lenho uma dúzia destes já redigida - avisou ele.
Morkai se encolheu. Compreendeu a natureza da escritura, um rolo de pergaminho que revelava o nome verdadeiro de seu próprio ser. E uma vez lido, despojando-o
do véu de sigilo conferido pelo nome e desnudando a privacidade de sua alma, Dendibar invocaria o poder verdadeiro do pergaminho, usando modulações desafinadas para
destorcer o nome de Morkai e desintegrar a harmonia de seu espírito, supliciando-o, assim, até o cerne de seu ser.
- Por quanto tempo devo procurar suas respostas? - perguntou Morkai.
Dendibar sorriu diante da vitória, embora seu desgaste fosse cada vez maior.
- Duas horas - ele respondeu sem delongas, tendo cuidadosamente decidido a duração da busca antes da invocação, escolhendo um limite de tempo que daria
a Morkai oportunidade suficiente para encontrar algumas respostas, mas não o bastante para permitir que o espírito descobrisse mais do que deveria.
Morkai sorriu, adivinhando os motivos por trás da decisão. Deixou-se arremessar para trás de repente e sumiu numa nuvem de fumaça, as chamas que haviam alimentado
sua forma agora relegadas ao braseiro para aguardar seu retorno.
O alívio de Dendibar foi imediato. Apesar de ainda precisar se concentrar com o intuito de manter o portal para os planos no lugar, a oposição à sua vontade
e o desgaste de seu poder diminuíram consideravelmente quando o espírito se foi. A força de vontade de Morkai quase o havia sujeitado durante a audiência, e Dendibar
sacudiu a cabeça, não querendo acreditar que o velho mestre fosse capaz, mesmo morto, de manifestar-se com tamanha força. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao considerar
se seria sábio tramar contra alguém tão poderoso. Sempre que invocava Morkai, era lembrado de que o dia do ajuste de contas certamente chegaria.
Morkai teve pouco trabalho para descobrir algo sobre os quatro aventureiros. De fato, o espectro já sabia muito sobre eles. Havia se interessado bastante
por Dez-Burgos durante seu reinado como Mestre do Torreão Norte, e a curiosidade não morrera com seu corpo. Mesmo agora, ele geralmente dava uma espiada no que acontecia
no Vale do Vento Gélido, e qualquer um que se preocupasse com Dez-Burgos em meses recentes sabia algo sobre os quatro heróis.
O interesse contínuo de Morkai no mundo que deixara para trás não era uma característica incomum no mundo espiritual. A morte alterava as ambições da alma,
substituindo o amor pelos ganhos materiais e sociais com a eterna avidez por conhecimento. Alguns espíritos observavam os Reinos durante incontáveis séculos, simplesmente
para recolher informações e observar os vivos se ocuparem de suas vidas. Talvez fosse a inveja das sensações físicas que não podiam mais sentir. Mas, não importava
o motivo, a riqueza de conhecimentos num único espírito geralmente era mais relevante que as obras reunidas em todas as bibliotecas do Reino combinadas.
Morkai descobriu muita coisa nas duas horas que Dendibar havia lhe designado. Agora era sua vez de escolher cuidadosamente as palavras. Era obrigado a satisfazer
a solicitação do conjurador, mas tinha a intenção de responder da maneira mais enigmática e ambígua possível.
Os olhos de Dendibar coruscaram ao ver as chamas do braseiro darem início à sua dança denunciadora novamente. Já se teriam passado as duas horas?
perguntou-se, pois seu descanso pareceu muito mais breve e ele sentiu que não tinha se recuperado inteiramente da primeira audiência com o espectro.
Contudo, não poderia rejeitar a dança das chamas. Aprumou-se e trouxe os tornozelos para mais junto do corpo, retesando-se e firmando sua posição meditativa, de
pernas cruzadas.
A bola de fogo fez fumaça no auge de seus estertores e Morkai apareceu diante dele. O espectro se afastou obedientemente, sem fornecer qualquer informação
até que Dendibar pedisse especificamente por ela. A história completa por trás da visita dos quatro amigos a Luskan continuava imprecisa para Morkai, mas ele muito
descobrira sobre a demanda e mais do que desejava que Dendibar viesse a saber. Ele ainda não discernira as verdadeiras intenções por trás das perguntas do mago variegado,
mas sentiu com certeza que não eram boas, não importavam os objetivos de Dendibar.
- Qual é o propósito da visita? - indagou Dendibar, furioso com a tática evasiva de Morkai.
- Foi você mesmo quem me invocou - respondeu Morkai astuciosamente. - Sou obrigado a aparecer.
- Sem joguinhos! - rosnou o mago variegado. Ele fitou o espectro, manuseando o pergaminho de tormento em franca ameaça. Famosos por responder literalmente,
os seres dos outros planos geralmente atarantavam seus conjuradores, destorcendo o sentido conotativo da exata formulação de uma pergunta.
Dendibar sorriu em concessão à lógica simples do espectro e esclareceu a pergunta:
- Qual é o propósito da visita a Luskan dos quatro viajantes do Vale do Vento Gélido?
Razões variadas - replicou Morkai. - Um deles veio em busca da terra natal de seu pai, e do pai de seu pai.
- O drow? - perguntou Dendibar, tentando encontrar alguma maneira de encadear suas suspeitas de que Drizzt planejava retornar ao seu mundo subterrâneo natal
com a Estilha de Cristal. Talvez uma insurreição dos elfos negros, usando o poder da estilha? - É o drow que busca por sua terra natal?
- Não - respondeu o espectro, contente que Dendibar houvesse se desviado por uma tangente, protelando a linha de indagação mais específica e mais
perigosa. Os minutos que se passavam logo começariam a dissipar o domínio de Dendibar sobre o espectro e Morkai esperava poder encontrar uma maneira de se libertar
do mago variegado antes de revelar coisas demais sobre a companhia de Bruenor. - Drizzt Do'Urden renunciou completamente à sua terra natal. Ele nunca mais há de
retornar às entranhas do mundo e certamente não com seus mais caros amigos a reboque!
- Então, quem?
- Um dos outros quatro foge de um perigo que deixou para trás - ofereceu Morkai, deturpando a linha de indagações.
- Quem busca sua terra natal? - indagou Dendibar mais enfaticamente.
- O anão, Bruenor Martelo de Batalha - replicou Morkai, obrigado a obedecer. - Ele procura o local de seu nascimento, o Salão de Mitral, e seus amigos
uniram-se à sua demanda. Por que isso o interessa? Os companheiros não têm ligação com Luskan e não representam uma ameaça à Torre das Hostes.
- Não o chamei aqui para responder às suas perguntas! - ralhou Dendibar. - Agora, diga-me quem está fugindo do perigo. E o que é esse perigo?
- Observe - instruiu o espectro. Com um aceno da mão, Morkai transmitiu à mente do mago variegado uma imagem, um retrato de um cavaleiro de manto negro
arremetendo impetuosamente pela tundra. O freio do cavalo estava branco de espuma, mas o cavaleiro forçava o animal a continuar implacavelmente.
- O halfling foge deste homem - explicou Morkai -, apesar de o propósito do cavaleiro continuar a ser um mistério para mim. - Contar a Dendibar até
mesmo tão pouco enfurecia o espectro, mas Morkai ainda não conseguia resistir às ordens de sua nêmese. No entanto, ele sentia os grilhões da vontade do mago afrouxando-se
e desconfiava que a invocação chegava ao fim.
Dendibar se deteve para considerar as informações.
Nada do que Morkai lhe dissera indicava qualquer ligação direta com a Estilha de Cristal, mas ao menos ele descobrira que os quatro amigos não pretendiam
permanecer em Luskan por muito tempo. E ele descobrira um possível aliado, mais uma fonte de informações. O cavaleiro de manto negro devia ser realmente poderoso
para pôr a formidável trupe do halfling em fuga pela estrada.
Dendibar começava a formular suas próximas manobras quando um repentino e insistente repelão da teimosa resistência de Morkai rompeu sua concentração. Furioso,
lançou ao espectro um olhar ameaçador e começou a desenrolar o pergaminho.
Insolente! - ele resmungou e, embora pudesse ter estendido seu domínio sobre o espectro um pouco mais caso tivesse investido sua energia numa disputa
de vontades, começou a recitar o texto do rolo de pergaminho.
Morkai se encolheu, apesar de ter conscientemente levado Dendibar a esse extremo. O espectro aceitava o suplício, pois este sinalizava o fim da inquisição.
E Morkai se considerava feliz por Dendibar não o ter forçado a revelar os acontecimentos ainda mais distantes de Luskan, no vale logo além das fronteiras de Dez-Burgos.
À medida que as recitações de Dendibar ressoavam de maneira dissonante na harmonia de sua alma, Morkai começou a deslocar o ponto focai de sua concentração
ao longo de centenas de quilômetros, de volta à imagem da caravana mercante que agora se encontrava a um dia de viagem de Bremen, o mais próximo dos Dez-Burgos,
e à imagem da corajosa moça que havia se juntado aos mercadores. O espectro se consolou em saber que ela havia, ao menos por enquanto, escapado às investigações
do mago variegado.
Não que Morkai fosse altruísta; jamais fora acusado de prodigalidade nessa característica. Ele simplesmente encontrava imensa satisfação em atrapalhar como
pudesse o tratante que havia arranjado para que ele fosse assassinado.
Os cachos castanho-avermelhados de Cattiebrie balouçavam em seus ombros. Ela estava sentada no alto da carroça que seguia à frente da caravana mercante que
partira de Dez-Burgos no dia anterior, com destino a Luskan. Sem se incomodar com a brisa gelada, ela mantinha os olhos na estrada adiante, procurando algum sinal
de que o assassino por ali passara. Ela havia transmitido informações sobre Entreri a Cássio, e ele as passaria adiante até que chegassem aos anões. Cattiebrie se
perguntava agora se havia justificativa para sua partida sorrateira com a caravana mercante antes que o Clã Martelo de Batalha pudesse organizar a perseguição por
conta própria.
Mas somente ela vira o assassino em ação. Sabia muito bem que, se os anões partissem atrás dele num ataque frontal, a cautela varrida por seu desejo de vingar
Arnês e Grollo, muitos outros do clã morreriam.
Egoisticamente, talvez, Cattiebrie havia decidido que o assassino era assunto seu. Ele a amedrontara, despojara-a de anos de treinamento e disciplina e reduzira-a
à imagem trêmula de uma criança assustada. Mas ela era uma jovem mulher agora, não mais uma menina. Precisava responder pessoalmente aquela humilhação emocional,
ou as cicatrizes seguiriam com ela até o túmulo, assombrando-a, paralisando-a por todo o sempre ao longo da senda que deveria tomar para descobrir seu verdadeiro
potencial na vida.
Ela encontraria seus amigos em Luskan e os alertaria sobre o perigo às suas costas, e então, juntos, eles dariam conta de Artemis Entreri.
- Vamos indo bem rápido - assegurou-lhe o condutor chefe, solidário com a pressa da moça.
Cattiebrie não se voltou, os olhos fixos no horizonte plano diante dela.
- Meu coração me diz que não é rápido o bastante - lamentou-se.
O condutor olhou-a, curioso, mas sabia que era melhor não forçar a questão. Ela havia deixado claro desde o começo que seu assunto era particular. E, sendo
a filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha e, conforme voz corrente, uma excelente guerreira por mérito próprio, os mercadores haviam se considerado homens de
sorte por tê-la como companhia e respeitado seu desejo de privacidade. Além disso, como argumentara com tanta eloqüência um dos condutores durante uma reunião informal
antes da viagem, "só de pensar em olhar pro traseiro de um boi por quase quinhentos quilômetros faz a idéia de ter essa moça como companhia me parecer muito boa!".
Eles haviam até antecipado a data da partida para acomodá-la.
- Não se preocupe, Cattiebrie - tranqüilizou-a o condutor -, a gente te leva até lá!
Com um balançar da cabeça, Cattiebrie removeu do rosto o cabelo açoitado pelo vento e olhou para o sol que se punha no horizonte diante dela.
- Mas será que vai dar tempo? - ela perguntou baixinho, retoricamente, sabendo que o sussurro se perderia no vento assim que passasse por seus lábios.

4. OS ROCHEDOS

Drizzt assumiu a liderança enquanto os quatro companheiros percorriam as margens do rio Mirar, distanciando-se tanto quanto possível de Luskan. Apesar de
não dormirem havia várias horas, os confrontos na Cidade das Velas tinham liberado um jato de adrenalina em suas veias e nenhum deles se sentia cansado.
Havia algo de mágico no ar daquela noite, uma estática revigorante que teria feito o mais exausto viajante se lamentar por fechar os olhos. O rio, correndo
célere e volumoso devido ao degelo da primavera, cintilava com a claridade da noitinha, as cristas espumosas das ondas a capturar a luz das estrelas, devolvendo-a
na forma de borrifos de gotículas ajaezadas.
Normalmente cautelosos, os amigos não conseguiram evitar baixar a guarda. Não sentiam o perigo a espreitá-los de perto, nada sentiam a não ser a frialdade
penetrante e agradável da noite de primavera e a misteriosa atração do firmamento. Bruenor se perdeu em sonhos com o Salão de Mitral; Régis, nas lembranças de Calimporto;
até mesmo Wulfgar, tão desanimado em relação ao seu malfadado encontro com a civilização, sentiu seu espírito se elevar. Pensava em noites semelhantes na vasta tundra,
quando sonhara com o que jazia além dos horizontes de seu mundo. Agora, Wulfgar descobriu que além daqueles horizontes, faltava apenas um elemento. Para sua surpresa
- e contra os instintos aventureiros que repudiavam esses pensamentos consoladores -, desejou que Cattiebrie, a mulher pela qual se apaixonara, estivesse ali agora
para partilhar com ele a beleza daquela noite.
Se não estivessem tão absortos no prazer individual que a noite lhes proporcionava, os outros teriam percebido uma certa vivacidade adicional também no gracioso
passo de Drizzt Do'Urden. Para o drow, aquelas noites mágicas, quando a abóbada celeste se estendia até abaixo do horizonte, reafirmavam sua confiança na decisão
mais importante e mais difícil que jamais tomara: a escolha de abandonar seu povo e sua terra natal. As estrelas não piscavam sobre Menzoberranzan, a cidade escura
dos elfos negros. Nenhuma fascinação inexplicável dedilhava as cordas da alma partindo da pedra fria do imenso teto sombrio da caverna.
- O quanto minha gente perdeu por caminhar nas trevas - esvaiu-se o murmúrio de Drizzt no ar noturno.
A atração dos mistérios do céu infinito levou a alegria de seu espírito para além dos limites normais e abriu-lhe a mente para as perguntas irrespondíveis
do multiverso. Ele era um elfo e, apesar da pele negra, restava em sua alma um aspecto da alegria harmônica de seus primos da superfície. Ele se perguntou com que
generalidade aqueles sentimentos ocorriam entre sua gente. Será que permaneciam nos corações de todos os drow? Ou séculos de sublimação teriam extinguido as chamas
espirituais? Na opinião de Drizzt, talvez a maior perda sofrida por seu povo ao se retirar para as profundezas do mundo tinha sido a perda da capacidade de filosofar
sobre a espiritualidade da existência simplesmente pelo bem da razão.
A luminosidade cristalina do Mirar foi gradualmente perdendo o brilho à medida que as estrelas eram ofuscadas pela aurora cada vez mais luminosa. Ela chegou
como uma decepção muda para os amigos enquanto estes montavam acampamento num local abrigado perto das margens do rio.
- Fiquem sabendo que são poucas as noites assim - observou Bruenor quando o primeiro raio de luz rastejou sobre o horizonte oriental. Seus olhos cintilavam,
uma insinuação do maravilhoso devaneio de que raramente desfrutava o habitualmente prático anão.
Drizzt percebeu o brilho visionário nos olhos do anão e pensou nas noites que ele e Bruenor haviam passado no alto da Ladeira de Bruenor - seu local de encontro
especial -, lá no vale dos anões, em Dez-Burgos.
- Bem poucas - ele concordou.
Com um suspiro resignado, puseram-se a trabalhar. Drizzt e Wulfgar deram início ao desjejum enquanto Bruenor e Régis examinavam o mapa obtido em Luskan.
Apesar de todos os resmungos e da implicância por causa do halfling, Bruenor o havia pressionado a acompanhá-los por uma razão bem definida - fora a amizade
- e, apesar de ter disfarçado muito bem suas emoções, o anão se encheu verdadeiramente de alegria quando Régis apareceu na estrada, deitando os bofes pela boca e
não muito longe de Dez-Burgos, com seu pedido de última hora para se juntar à demanda.
Régis conhecia as terras ao sul da Espinha do Mundo melhor que qualquer um deles. O próprio Bruenor não saíra do Vale do Vento Gélido em quase dois séculos
e, na época, era apenas uma criança-anã imberbe. Wulfgar jamais deixara o vale e a única jornada de Drizzt pela superfície do mundo havia sido uma aventura noturna,
passando de uma sombra a outra e evitando muitos dos lugares que os companheiros precisariam vasculhar se quisessem encontrar o Salão de Mitral.
Régis correu os dedos pelo mapa, recontando animadamente a Bruenor suas experiências em cada um dos lugares indicados, particularmente Mirabar, a cidade mineira
de grande riqueza, ao norte, e Águas Profundas, fiel ao nome de Cidade dos Esplendores, descendo a costa em direção ao sul.
Bruenor escorregou um dedo pelo mapa, estudando as características físicas do terreno.
Mirabar fica mais ao meu gosto - disse ele, por fim, tamborilando sobre a marca da cidade enfiada nas encostas meridionais da Espinha do Mundo. -
O Salão de Mitral fica nas montanhas, isso pelo menos eu sei, e não para o lado do mar.
Régis considerou as observações do anão apenas por um instante, depois deixou cair o dedo sobre um outro ponto, a mais de cento e cinqüenta quilômetros de
Luskan continente adentro, segundo a escala do mapa.
- Sela Longa - disse ele. - A meio caminho de Lua Argêntea e a meio caminho entre Mirabar e Águas Profundas. Um bom lugar para procurarmos nossa rota.
- Uma cidade? - perguntou Bruenor, pois a marca no mapa não passava de um pequeno ponto negro.
- Uma aldeia - corrigiu Régis. - Não há muita gente por lá, mas uma família de magos, os Harpells, vive ali há muitos anos e conhece as terras do norte
melhor que ninguém. Ficariam contentes em nos ajudar.
Bruenor coçou o queixo e assentiu.
- Uma bela caminhada. O que a gente vai encontrar no caminho?
- Os rochedos - admitiu Régis, um pouco desencorajado ao se lembrar do lugar. - Ermos e cheios de orcs. Queria que houvesse uma outra estrada, mas
Sela Longa ainda parece a melhor opção.
- Todas as estradas do norte são perigosas - lembrou-lhe Bruenor.
Continuaram a examinar o mapa, Régis a recordar cada vez mais detalhes.
Uma série de marcas incomuns e não identificadas - três, em particular, correndo numa linha quase reta exatamente a leste de Luskan e rumo ao complexo de
rios ao sul da Floresta Oculta - chamou a atenção de Bruenor.
- Cemitérios ancestrais - explicou Régis. - Lugares sagrados dos uthgardt.
- Uthgardt?
Bárbaros - respondeu Régis sombriamente. - Como os do vale. Conhecem melhor a civilização, talvez, mas não são menos ferozes. As diferentes tribos estão por
todas as terras do norte, vagando pelos ermos.
Bruenor gemeu, compreendendo o desânimo do halfling, conhecedor também dos modos selvagens e da perícia em combate dos bárbaros. Os orcs se mostrariam adversários
bem menos formidáveis.
Quando os dois terminaram a conversa, Drizzt já estava se deitando à sombra fresca de uma árvore que se debruçava sobre o rio e Wulfgar ainda tinha metade
do seu desjejum no prato que repetira três vezes.
- 'Cê ainda 'tá mastigando! - gritou Bruenor, ao notar as parcas porções deixadas na panela.
- Uma noite cheia de aventuras - Wulfgar respondeu alegremente, e os amigos ficaram contentes em observar que a briga aparentemente não havia deixado
cicatrizes em sua determinação. - Uma boa refeição, um bom sono, e eu devo estar pronto para a estrada mais uma vez!
- Bom, não vai se acomodando ainda não! - ordenou Bruenor. - Um dos três turnos de guarda de hoje é todo seu!
Régis olhou ao redor, perplexo, sempre ligeiro para reconhecer um acréscimo em sua carga de trabalho.
- Três? - ele perguntou. - Por que não quatro?
- Os olhos do elfo são prá de noite - explicou Bruenor. - Deixa ele estar pronto prá encontrar nosso caminho quando o dia tiver corrido.
- E onde fica o nosso caminho? - perguntou Drizzt, em sua cama de musgos. - Vocês chegaram a uma conclusão quanto ao nosso próximo destino?
- Sela Longa - respondeu Régis. -Trezentos e vinte quilômetros a leste e ao sul, contornando a Floresta do Inverno Remoto e através dos rochedos.
- Desconheço o nome - replicou Drizzt.
- Lar dos Harpells - explicou Régis. - Uma família de magos renomada por sua bondosa hospitalidade. Passei algum tempo lá quando estava a caminho de
Dez-Burgos.
Wulfgar refugou diante da idéia. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido desprezavam os magos, pois consideravam as artes negras um poder empregado apenas pelos
covardes.
- Não tenho a menor vontade de ver esse lugar - ele declarou categoricamente.
- Quem te perguntou? - resmungou Bruenor, e Wulfgar flagrou-se voltando atrás em sua determinação, como um filho que se recusa a sustentar um argumento
teimoso em face de uma repreensão do pai.
- Você vai gostar de Sela Longa - Régis o tranqüilizou. - Os Harpells merecem realmente a reputação de hospitaleiros, e os prodígios de Sela Longa
vão lhe mostrar uma faceta da magia que você jamais esperou ver. Eles aceitarão até mesmo... - Flagrou sua mão involuntariamente apontando para Drizzt e, constrangido,
abortou sua afirmação.
Mas o estóico drow apenas sorriu.
- Não tenha medo, meu amigo - ele consolou Régis. - Suas palavras soam verdadeiras, e eu já aceitei minha condição em seu mundo. - Ele se deteve e retribuiu
individualmente cada um dos olhares desconfortáveis que recaíam sobre sua pessoa. - Conheço meus amigos e desfaço-me de meus inimigos - declarou, com uma decisão
que afastou as preocupações deles.
Desfaz sim, com uma espada - acrescentou Bruenor, com uma risadinha baixa, apesar de os ouvidos aguçados de Drizzt captarem o sussurro.
Se for preciso - concordou o drow, sorrindo. Então, ele rolou de lado para dormir um pouco, confiando totalmente nas habilidades de seus amigos para
protegê-lo.
Passaram um dia ocioso à sombra, ao lado do rio. No fim da tarde, Drizzt e Bruenor fizeram uma refeição e discutiram a rota, deixando Wulfgar e Régis profundamente
adormecidos, pelo menos até que tivessem comido à farta.
- Vamos seguir o rio mais uma noite - disse Bruenor. - Depois, para sudeste, atravessando o terreno aberto. Isso vai livrar a gente das matas e abrir
uma trilha reta à nossa frente.
- Talvez seja melhor viajarmos somente à noite durante alguns dias - sugeriu Drizzt. - Não sabemos que olhos nos seguem desde a Cidade das Velas.
- Concordo - respondeu Bruenor. - Vamos embora, então. Uma longa estrada à nossa frente e outra mais longa ainda depois disso!
- Longa demais - murmurou Régis, abrindo um olho cheio de preguiça.
Bruenor lançou-lhe um olhar feroz. Estava ansioso - pela viagem e também por levar seus amigos a uma estrada perigosa - e, numa defesa emocional, tomava como
pessoais todas as reclamações em relação à aventura.
- Para se caminhar, quero dizer - Régis explicou rapidamente. - Há fazendas nesta área e, portanto, deve haver alguns cavalos por aí.
- Cavalos vão custar muito caro por estas bandas - replicou Bruenor.
- Talvez... - disse manhosamente o halfling, e seus amigos logo adivinharam o que ele estava pensando. Os cenhos franzidos de ambos refletiam a desaprovação
geral.
Temos os rochedos à nossa frente! - argumentou Régis. - Os cavalos podem deixar os orcs para trás mas, sem eles, certamente vamos precisar lutar a cada quilômetro
da viagem! Além disso, seria um empréstimo. Poderíamos devolver os animais quando não precisássemos mais deles.
Drizzt e Bruenor não aprovavam a trapaça sugerida pelo halfling, mas não podiam refutar sua lógica. Cavalos certamente seriam de muita ajuda naquele ponto
da jornada.
- Acorda o garoto - resmungou Bruenor.
- E quanto ao meu plano? - perguntou Régis.
- Vamos decidir quando surgir a oportunidade!
Régis ficou satisfeito, confiante de que seus amigos optariam pelos cavalos. Ele comeu até se fartar, depois juntou penosamente os parcos restos da ceia e
foi acordar Wulfgar.
Estavam a caminho novamente logo em seguida e, pouco tempo depois, viram as luzes de um pequeno povoado ao longe.
- Leva a gente até lá - Bruenor disse a Drizzt. - Pode ser que valha a pena tentar o plano do Ronca-bucho.
Wulfgar, tendo perdido a conversa no acampamento, não entendeu, mas não quis discutir nem mesmo questionar o anão. Depois do desastre no Alfanje, ele havia
se resignado a um papel mais passivo na viagem, deixando que os outros três decidissem que trilhas deveriam tomar. Seguia sem reclamar e mantinha o martelo de prontidão
para quando fosse necessário.
Afastaram-se do rio alguns quilômetros, depois encontraram várias chácaras agrupadas no interior de uma robusta cerca de madeira.
- Há cães por aí - observou Drizzt, percebendo-os com sua excepcional audição.
- Então Ronca-bucho entra sozinho - disse Bruenor.
O rosto de Wulfgar se contorceu, confuso, principalmente, já que o olhar do halfling indicava que este não estava nada entusiasmado com a idéia.
- Isso eu não posso permitir - falou pomposamente o bárbaro. - Se há alguém entre nós que precisa de proteção é o pequeno. Não vou me esconder aqui
no escuro enquanto ele caminha sozinho para o perigo!
- Ele entra sozinho - disse Bruenor novamente. - A gente não veio aqui prá brigar, garoto. Ronca-bucho vai conseguir uns cavalos prá gente.
Régis sorriu, impotente, apanhado completamente na armadilha que Bruenor havia claramente preparado para ele. Bruenor o deixaria se apropriar dos cavalos,
como Régis havia insistido, mas a permissão relutante vinha acompanhada de um certo grau de responsabilidade e bravura de sua parte. Era a maneira do anão de se
absolver por seu envolvimento no engodo.
Wulfgar permaneceu firme em sua determinação de ficar ao lado do halfling, mas Régis sabia que o jovem guerreiro poderia inadvertidamente lhe trazer problemas
em negociações tão delicadas.
- Você fica com os outros - ele explicou ao bárbaro. - Posso lidar com isso sozinho.
Reunindo sua coragem, ele puxou o cinto por sobre a barriga volumosa e partiu em direção ao pequeno povoado.
Os rosnados ameaçadores de vários cães o saudaram quando ele se aproximou da porteira. Pensou em voltar - o pingente de rubi provavelmente de nada adiantaria
contra cães ferozes - mas, então, viu o vulto de um homem deixar uma das casas e vir em sua direção.
- O que você quer? - indagou o fazendeiro, colocando-se desafiadoramente do outro lado da porteira e apertando nas mãos uma antiga arma de haste, provavelmente
passada de uma geração a outra em sua família.
Sou apenas um viajante cansado - Régis começou a explicar, tentando parecer tão digno de pena quanto pudesse. Era um conto que o fazendeiro ouvira
com demasiada freqüência.
- Vá embora! - ordenou ele.
- Mas...
- Suma!
Sobre um cômoro a uma pequena distância dali, os três companheiros assistiam à confrontação, apesar de, à luz fraca, somente Drizzt ver a cena com clareza
suficiente para entender o que acontecia. O drow via que o fazendeiro estava tenso pela maneira que segurava a alabarda e podia julgar a profunda determinação das
exigências do homem pela carranca resoluta que este trazia.
Mas, então, Régis puxou algo de sob seu paletó e quase que imediatamente o fazendeiro relaxou a pressão das mãos sobre a arma. Pouco depois, a porteira se
abriu e Régis entrou.
Os amigos esperaram ansiosamente durante várias horas extenuantes, sem qualquer outro sinal de Régis. Pensaram em confrontar os próprios fazendeiros, temendo
que alguma ignóbil perfídia houvesse ocorrido ao halfling. Então, finalmente, com a lua bem além de seu ponto culminante, Régis emergiu pela porteira, conduzindo
dois cavalos e dois pôneis. Os fazendeiros e suas famílias acenavam-lhe em despedida, fazendo-o prometer deter-se ali para uma visita caso algum dia passasse novamente
por aquelas bandas.
- Impressionante - riu Drizzt. Bruenor e Wulfgar só fizeram menear as cabeças, incrédulos.
Pela primeira vez desde que havia entrado no povoado, Régis lembrou que sua demora poderia ter causado alguma angústia aos amigos. O fazendeiro insistira
para que ele ceasse antes que se sentassem para discutir fosse lá qual o negocio que o trouxera ali, e, já que precisava ser cortês (e já que tinha ceado só uma
vez naquele dia), Régis concordou, apesar de abreviar a refeição ao máximo possível e educadamente declinar do convite para repetir o prato uma quarta vez. Conseguir
os cavalos mostrou-se bem fácil depois disso, Precisou apenas prometer deixá-los com os magos em Sela Longa quando ele e seus amigos prosseguissem a partir de lá.
Régis estava certo de que seus amigos não ficariam bravos com ele por muito tempo. Ele os fizera esperar, preocupados, durante metade da noite, mas seu
empenho pouparia a todos muitos dias numa estrada perigosa. Ele sabia que, depois de uma ou duas horas cavalgando com o vento a passar velozmente por eles, os companheiros
esqueceriam toda a raiva. Mesmo que não esquecessem com tanta facilidade, para Régis, uma boa refeição sempre valia algumas inconveniências.
Drizzt propositalmente fez o grupo se deslocar mais para leste que sudeste. Não encontrou nenhuma referência no mapa de Bruenor que lhe permitisse aproximar
a rota direta para Sela Longa. Se tentasse o caminho direto e errasse, mesmo que por pouco, eles topariam com a estrada principal que vinha da cidade nortista de
Mirabar sem saber se deveriam virar para o norte ou para o sul. Seguindo diretamente para leste, o drow tinha certeza de que alcançariam a estrada ao norte de Sela
Longa. A viagem aumentaria em alguns quilômetros, mas talvez isso lhes poupasse vários dias de retrocesso.
Durante todo o dia e a noite seguintes, a cavalgada foi fácil e desimpedida e, depois disso, Bruenor decidiu que estavam longe o suficiente de Luskan para
adotar um plano de viagem mais normal.
- A gente pode seguir de dia agora - ele anunciou no início da tarde de seu segundo dia com os cavalos.
- Prefiro a noite - disse Drizzt. Acabara de acordar e escovava seu garanhão negro, esguio, mas forte.
- Eu, não - argumentou Régis. - As noites foram feitas para se dormir, e os cavalos ficam praticamente cegos aos buracos e às pedras que poderiam estropiá-los.
- Um meio termo, então - ofereceu Wulfgar, espreguiçando-se para livrar seus ossos dos últimos vestígios de sono. - Podemos partir depois do zênite
do sol, mantendo-o às nossas costas pelo bem de Drizzt, e cavalgar até tarde da noite.
- Boa idéia, rapaz - riu Bruenor. - Parece mesmo passar do meio-dia agora. Aos cavalos, então! Hora de partir!
- Você poderia ter ficado de boca fechada até depois da ceia! - Régis resmungou para Wulfgar, levando relutantemente a sela às costas de seu pequeno
pônei branco.
Wulfgar correu a ajudar o amigo atribulado.
- Mas teríamos perdido meio dia de viagem - ele replicou.
- Que pena isso seria - retorquiu Régis.
Naquele dia, o quarto desde que haviam deixado Luskan, os companheiros chegaram aos rochedos, um trecho estreito de outeiros fragmentados e colinas onduladas.
Uma beleza rude e indomada definia o lugar, uma impressão esmagadora de natureza selvagem que dava a cada viajante que passasse por ali uma sensação de conquista,
de que ele poderia ser o primeiro a botar os olhos em cada ponto daquela paisagem. E, como sempre era o caso nos ermos, a emoção da aventura vinha acompanhada por
um certo grau de risco. Mal haviam adentrado o primeiro vale no terreno irregular e Drizzt avistou rastros que conhecia muito bem: a marcha pesada de um bando de
orcs.
- Foram feitos a menos de um dia - disse ele aos seus preocupados companheiros.
Quantos? - perguntou Bruenor.
Drizzt deu de ombros.
Uns dez pelo menos, talvez o dobro.
Vamos continuar no nosso caminho - sugeriu o anão. - Estão na nossa frente e é melhor do que se estivessem atrás da gente.
Quando veio o crepúsculo, marcando o ponto médio da jornada daquele dia os companheiros fizeram uma breve parada e deixaram os cavalos pastarem num pequeno
prado.
A trilha dos orcs ainda estava diante deles, mas Wulfgar, assumindo a retaguarda da trupe, mantinha os olhos voltados para trás.
- Estão nos seguindo - disse ele, diante dos rostos inquisitivos de seus amigos.
- Orcs? - Régis perguntou.
O bárbaro meneou a cabeça:
- Não como os que eu conheço. Pelo que sei, nossos perseguidores são espertos e cautelosos.
- Pode ser que os orcs daqui conheçam melhor que os orcs do vale os hábitos das pessoas de bem - disse Bruenor, mas ele desconfiava que não se tratavam
de orcs e não precisava olhar para Régis para saber que o halfling tinha a mesma preocupação. A primeira marca do mapa que Régis identificara como um cemitério ancestral
não poderia estar muito longe de sua posição atual.
- De volta aos cavalos - sugeriu Drizzt. - Uma cavalgada forçada pode melhorar bastante nossa posição.
Siga até depois da lua se pôr - concordou Bruenor - E pare quando tiver encontrado um lugar onde a gente possa resistir ao ataque. Tenho a impressão que vamos
ter luta antes da aurora pegar a gente de surpresa!
Eles não encontraram nenhum sinal palpável durante a cavalgada que os levou praticamente a atravessar toda a extensão dos rochedos. Até mesmo a trilha dos
orcs desapareceu mais ao norte, deixando o caminho diante deles aparentemente livre. Wulfgar, porém, estava certo de que captara vários sons arás deles e movimentos
na periferia de seu campo visual.
Drizzt teria preferido continuar até que tivessem deixado os rochedos completamente para trás mas, no terreno agreste, os cavalos haviam atingido o limite
de sua resistência. Parou num pequeno bosque de pinheiros no topo de uma pequena elevação, suspeitando, como os demais, de que olhos hostis os observavam de várias
direções.
Drizzt já estava no alto de uma das árvores antes que os outros tivessem sequer desmontado. Amarraram os cavalos bem juntos e posicionaram-se ao redor dos
animais. Nem mesmo Régis conseguiria dormir, pois, apesar de confiar na visão noturna de Drizzt, a expectativa já fazia o sangue circular rápido em suas veias.
Bruenor, um veterano de centenas de batalhas, tinha toda a confiança em sua perícia em combate. Recostou-se tranqüilamente contra uma árvore, o machado chanfrado
sobre o peito, uma das mãos bem firme sobre a empunhadura da arma.
Wulfgar, porém, fez outros preparativos. Começou a reunir paus e galhos quebrados e a afiar suas pontas. A procura de toda e qualquer vantagem, ele os distribuiu
em posições estratégicas ao redor da área para que oferecessem a melhor disposição defensiva possível, usando suas pontas mortíferas para reduzir o número de rotas
de aproximação dos atacantes. Escondeu astuciosamente outros paus em ângulos que fariam com que os orcs tropeçassem e neles se empalassem antes que conseguissem
alcançá-lo.
Régis, o mais nervoso de todos, assistiu a tudo e percebeu as diferenças nas táticas dos seus amigos. Sentiu que pouco poderia fazer a fim de se preparar
para tal luta e procurou apenas manter-se fora do caminho para não atrapalhar as diligências de seus companheiros. Talvez surgisse a oportunidade para desferir um
ataque de surpresa, mas ele sequer considerou essa possibilidade naquele momento. A bravura ocorria espontaneamente ao halfling. Com certeza nunca era algo que ele
planejasse.
Com tantas distrações e preparativos a desviar-lhes a atenção da nervosa expectativa, foi quase um alívio quando, coisa de uma hora depois, a ansiedade se
tornou realidade. Drizzt cochichou para os demais que havia movimento nos campos abaixo do bosque.
- Quantos? - retornou Bruenor.
- Quatro para um contra nós, talvez mais - Drizzt replicou. O anão se voltou para Wulfgar:
- 'Cê 'tá pronto, garoto?
Wulfgar bateu de leve no martelo diante dele.
- Quatro contra um? - ele riu.
Bruenor apreciava a confiança do jovem guerreiro, apesar de saber que a desvantagem poderia de fato mostrar-se maior, já que Régis provavelmente não se envolveria
no combate franco.
- A gente deixa eles vir ou pega eles no campo? - Bruenor perguntou a Drizzt.
- Deixe-os vir - replicou o drow. - O fato de se aproximarem furtiva mente mostra que eles acreditam ter a surpresa como aliada.
- E uma surpresa revertida é, de longe, muito melhor que o primeiro golpe - completou Bruenor. - Faça o que puder com seu arco quando a coisa começar, elfo.
A gente vai estar te esperando!
Wulfgar imaginou as chamas que se acendiam nos olhos cor de lavanda do drow, uma luz mortífera que jamais correspondia à calma exterior de Drizzt antes de
uma batalha. O bárbaro se consolou, pois a sede de batalha do drow sobrepujava a sua, e ele nunca vira as cimitarras sibilantes superadas por nenhum adversário.
Ele bateu de leve no martelo novamente e agachou-se num buraco ao lado das raízes de uma das árvores.
Bruenor se meteu entre os corpos volumosos de dois dos cavalos, enfiando os pés nos estribos de cada um dos animais, e Régis, depois de ter recheado os sacos
de dormir para lhes dar a aparência de corpos adormecidos, fugiu em disparada sob os ramos baixos de uma das árvores.
Os orcs se aproximaram do acampamento em formação circular, obviamente esperando um ataque fácil. Drizzt sorriu, esperançoso, ao notar as falhas no círculo,
os flancos expostos que impediriam o rápido socorro a qualquer grupo isolado. O bando inteiro alcançaria o perímetro do bosque ao mesmo tempo, e Wulfgar, o mais
próximo da orla, muito provavelmente desferiria o primeiro golpe.
Os orcs se aproximaram sorrateiramente, um grupo se esgueirava em direção aos cavalos, um outro em direção aos sacos de dormir. Quatro deles passaram por
Wulfgar, mas ele esperou mais um segundo e permitiu que os demais se aproximassem o suficiente dos cavalos para Bruenor atacar.
Então, passou o momento de se esconder.
Wulfgar saltou de seu esconderijo com Garra de Palas, seu martelo de guerra mágico, já em movimento.
- Tempus! -gritou ele para seu deus das batalhas, e o primeiro golpe atingiu ruidosamente o alvo, levando dois orcs ao chão.
O outro grupo correu a desamarrar os cavalos, a fim de tirá-los do acampamento, esperando dar um fim a todas as rotas de fuga.
Mas foram saudados pelos rosnados do anão e pelo clangor de seu machado!
Os orcs surpreendidos saltaram para as selas, e Bruenor dividiu um deles ao meio e arrancou a cabeça de um segundo antes que os outros dois percebessem que
haviam sido atacados.
Drizzt escolheu como alvos os orcs mais próximos aos grupos sob ataque e atrasou tanto quanto pôde os reforços. A corda de seu arco zuniu uma, duas, três
vezes, e um número igual de orcs caiu ao chão, os olhos fechados e as mãos impotentemente cerradas em torno das hastes das flechas assassinas.
Os ataques de surpresa haviam penetrado profundamente as fileiras de seus inimigos e agora o drow sacava as cimitarras e deixava-se cair de sua posição elevada,
confiante de que ele e seus companheiros conseguiriam liquidar rapidamente o resto do bando. Entretanto, seu sorriso durou pouco, pois, ao descer, ele notou mais
movimentação no campo.
Drizzt caíra no meio de três criaturas, as espadas já em movimento antes mesmo que seus pés tocassem o solo. Os orcs não estavam totalmente surpresos - um
deles vira o drow cair -, mas Drizzt apanhou-os desequilibrados, ainda completando o giro que colocaria suas armas em ação.
Com os golpes rápidos do drow, a menor hesitação significava a morte certa, e Drizzt era o único sob controle em meio àquela confusão de corpos. Suas cimitarras
desferiram talhos e estocadas na carne dos orcs com precisão mortal.
O sucesso de Wulfgar havia sido igualmente auspicioso. Ele encarou duas das criaturas e, apesar de serem guerreiros ferozes, os orcs não se igualavam em força
ao gigantesco bárbaro. Um deles conseguiu erguer a arma tosca a tempo de bloquear o golpe de Wulfgar, mas Garra de Palas atravessou-lhe a defesa, estilhaçando a
arma e depois o crânio do desafortunado orc, sem nem mesmo perder velocidade devido ao esforço.
Bruenor foi o primeiro a ter problemas. Seus ataques iniciais foram perfeitos, o que o deixou com apenas dois oponentes de pé: uma desvantagem que o anão
apreciava. Mas, em meio à comoção, os cavalos empinaram e dispararam, rompendo as amarras que os prendiam aos galhos. Bruenor caiu por terra e, antes que conseguisse
se recuperar, teve a cabeça pinçada pelo casco de seu próprio pônei. Um dos orcs também foi derrubado, mas o último se livrou da confusão e correu para dar cabo
do anão atordoado assim que os cavalos deixaram a área.
Por sorte, um daqueles momentos espontâneos de bravura se apoderou de Régis naquele instante. Ele saiu sorrateiramente de sob a árvore, postando-se silenciosamente
atrás do orc. Era alto para um orc e, mesmo nas pontas dos pés, Régis não gostou do ângulo que se apresentava para um golpe contra a cabeça do monstro. Dando de
ombros, resignado, o halfling reverteu sua estratégia.
Antes que o orc pudesse sequer dar início ao golpe que abateria Bruenor, a maça do halfling subiu por entre seus joelhos, chocando-se contra sua virilha e
erguendo-o do chão. A vítima, aos berros, levou às mãos ao ferimento, revirou os olhos a esmo e foi ao chão sem mais ambições de lutar.

Tudo acontecera apenas num instante, mas a vitória ainda não fora conquistada Outros seis orcs entraram na refrega, dois deles interromperam a tentativa
de Drizzt de chegar até Régis e Bruenor, três outros correram em auxílio do companheiro solitário que enfrentava o gigantesco bárbaro. E um deles rastejando pela
mesma trajetória tomada por Régis, aproximou-se do halfling desavisado.
No mesmo instante em que Régis distinguiu o grito de alerta do drow, uma clava o atingiu entre as omoplatas, arrancando-lhe o ar dos pulmões e atirando-o
ao solo.
Wulfgar agora era acossado pelos quatro lados e, apesar de sua gabolice antes da batalha, descobriu que não gostava nada daquela situação. Concentrou-se em
aparar os golpes, esperando que o drow conseguisse chegar até ele antes que suas defesas sucumbissem.
Ele se encontrava em terrível inferioridade numérica.
Uma espada orc entrou-lhe numa costela, uma outra lhe cortou o braço.
Drizzt sabia que poderia derrotar os dois que agora enfrentava, mas duvidava que conseguisse fazê-lo a tempo de ajudar seu amigo bárbaro ou o halfling. E
havia ainda reforços no campo.
Régis rolou para se postar bem ao lado de Bruenor, e os gemidos do anão deixaram claro que a luta terminara para ambos. Então, o orc estava sobre ele, a clava
erguida acima da cabeça e um sorriso maldoso a se espalhar em sua cara feia. Régis fechou os olhos, sem vontade de assistir à queda do golpe que o mataria.
Então, ouviu o som do impacto... acima dele.
Assustado, ele abriu os olhos. Uma machadinha se achava encravada no peito do seu atacante. O orc olhou para a coisa, atordoado. A clava despencou inofensivamente
atrás do orc e ele também caiu de costas, morto.
Régis não entendeu.
- Wulfgar? -perguntou ele, para ninguém.
Uma forma descomunal, quase tão grande quanto a de Wulfgar, saltou sobre ele e precipitou-se sobre o orc, arrancando ferozmente a machadinha do peito da criatura.
Era humano e vestia as peles de um bárbaro, mas, diferente das tribos do Vale do Vento Gélido, os cabelos daquele homem eram negros. - Ah, não - gemeu Régis, lembrando-se
de seus próprios alertas para Bruenor sobre os bárbaros uthgardt. O homem salvara sua vida, mas, conhecendo a reputação do selvagem, Régis duvidava que uma amizade
se formaria a partir daquele encontro. Ele começou a se sentar, desejando expressar sua sincera gratidão e dispersar quaisquer idéias hostis que o bárbaro pudesse
em relação a ele. Pensou até mesmo em usar o pingente de rubi para evocar alguns sentimentos amistosos.
Mas o grandalhão, percebendo o movimento, girou de repente e deu-lhe um pontapé no rosto.
Régis caiu de costas e tudo ficou escuro.

5. PÔNEIS CELESTES

Bárbaros de cabelos negros, aos gritos, tomados pelo frenesi da batalha, irromperam no bosque. Drizzt percebeu imediatamente que aqueles guerreiros corpulentos
eram as formas que vira no campo, movendo-se por trás das fileiras de orcs, mas ele ainda não tinha certeza se eram aliados ou inimigos.
Não importava de que lado estavam, a chegada dos bárbaros infundiu terror nos orcs remanescentes. Os dois que combatiam Drizzt perderam toda a vontade de
lutar, revelando o desejo de desistir do confronto e fugir com uma súbita alteração de postura. Drizzt lhes fez a vontade, certo de que não iriam muito longe de
qualquer maneira e sentindo que também seria aconselhável sumir de vista.
Os orcs fugiram, mas seus perseguidores logo os envolveram em nova batalha pouco além das árvores. Menos óbvio em sua fuga, Drizzt subiu, sorrateiro e despercebido,
de volta à arvore onde deixara seu arco.
Wulfgar foi incapaz de sublimar com a mesma facilidade sua ânsia de batalhas. Com dois de seus amigos inconscientes, sua sede pelo sangue dos orcs era insaciável,
e o novo grupo de homens que se juntara à luta clamava por Tempus - seu próprio deus das batalhas - com um fervor que o jovem guerreiro não conseguiria ignorar.
Distraído pela repentina marcha dos acontecimentos, o círculo de orcs em volta de Wulfgar se afrouxou por apenas um instante, e ele golpeou com força.
um orc desviou o olhar, e Garra de Palas lacerou-lhe a cara antes que seus olhos retornassem à luta. Wulfgar varou a falha no círculo, empurrando um segundo
orc ao passar. Enquanto a criatura cambaleava, tentando se virar para realinhar a defesa, o poderoso bárbaro a abateu com um só golpe. Os outros dois se viraram
e fugiram, mas Wulfgar seguiu em seus calcanhares.
Arremessou o martelo, arrancou a vida de um deles e saltou sobre o outro, levando-o ao chão sob seu peso e depois esmagou-o até a morte com as Próprias mãos.
Ao terminar, depois de ouvir o derradeiro estalido das vértebras do pescoço, Wulfgar lembrou-se de sua situação e de seus amigos. Ficou de pé num salto
e recuou, de costas para as árvores.
Os bárbaros de cabelos negros guardaram distância, respeitando-lhe a habilidade, e não havia como Wulfgar ter certeza das intenções deles. Olhou ao redor,
procurando pelos amigos. Régis e Bruenor jaziam lado a lado, perto de onde os cavalos haviam sido amarrados; não sabia dizer se estavam vivos ou mortos. Não havia
sinal de Drizzt, mas ainda se combatia além da outra orla do bosque.
Os guerreiros se dispuseram num amplo semicírculo ao redor dele, bloqueando todas as rotas de fuga. Mas interromperam de repente seu posicionamento, pois
Garra de Palas retornara magicamente às mãos de Wulfgar.
Ele não seria capaz de vencer tantos assim, mas a idéia não o intimidava. Morreria lutando, como um verdadeiro guerreiro, e sua morte seria lembrada. Se os
bárbaros de cabelos negros o atacassem, sabia que muitos não retornariam às respectivas famílias. Fincou os calcanhares no solo e apertou firmemente o martelo de
guerra nas mãos.
- Acabemos logo com isso - ele grunhiu para as trevas.
- Espere! - veio de cima um sussurro baixo, mas imperativo. Wulfgar imediatamente reconheceu a voz de Drizzt e relaxou as mãos. - Mantenha sua honra,
mas saiba que mais vidas estão em jogo além da sua!
Wulfgar compreendeu então que Régis e Bruenor provavelmente ainda estavam vivos. Deixou Garra de Palas cair e gritou para os guerreiros:
- Bons olhos os vejam!
Não responderam, mas um deles, quase tão alto e musculoso quanto Wulfgar, deixou as fileiras e aproximou-se para se colocar diante dele. O estranho usava
o cabelo comprido preso numa única trança que lhe descia pelo lado do rosto e por sobre o ombro. As faces se achavam pintadas de branco, à semelhança de asas. A
resistência de sua constituição e a disposição disciplinada de seu rosto refletiam uma vida inteira na imensidão agreste e, não fosse pela cor negra dos cabelos,
Wulfgar o teria julgado um membro das tribos do Vale do Vento Gélido.
O homem moreno também reconheceu Wulfgar; contudo, mais versado nas estruturas universais das sociedades do norte, não ficou tão perplexo com as semelhanças.
- Você é do vale - disse ele numa forma imperfeita da língua geral. - Além das montanhas, onde sopra o vento frio.
Wulfgar assentiu.
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce. Temos os mesmos deuses, pois eu também clamo a Tempus por força e coragem.
O homem moreno olhou ao redor, para os orcs abatidos.
- O deus responde ao seu chamado, guerreiro do vale.
O queixo de Wulfgar se ergueu de orgulho.
- Também temos em comum o ódio pelos orcs - continuou ele -, mas nada sei sobre o seu povo.
- Há de aprender - respondeu o homem moreno.
Ele estendeu a mão e indicou o martelo de guerra. Wulfgar se aprumou, firme sem a menor intenção de se render, não importavam suas chances de sobrevivência.
O homem moreno olhou de lado, atraindo o olhar de Wulfgar. Dois guerreiros haviam apanhado Bruenor e Régis e os carregavam nas costas, enquanto outros haviam já
recapturado os cavalos e os traziam pelas rédeas.
- A arma - exigiu o homem moreno. - Você está em nossas terras sem nossa permissão, Wulfgar, filho de Beornegar. O preço de tal crime é a morte. Vai assistir
à execução da sentença dos seus amiguinhos?
O Wulfgar mais jovem teria atacado naquele instante e provocado a perdição de todos eles num arroubo de fúria gloriosa. Mas Wulfgar muito aprendera com seus
novos amigos, particularmente com Drizzt. Ele sabia que Garra de Palas retornaria ao seu chamado e sabia também que Drizzt não os abandonaria. Não era hora de lutar.
Ele até mesmo deixou que lhe amarrassem as mãos, um ato de desonra que nenhum guerreiro da Tribo do Alce jamais permitiria. Mas Wulfgar tinha fé em Drizzt.
Suas mãos seriam liberadas novamente. Então, seria sua a última palavra.
Quando chegaram ao acampamento dos bárbaros, tanto Régis quanto Bruenor haviam recobrado a consciência e, amarrados, caminhavam ao lado de seu amigo bárbaro.
O sangue seco formava crostas nos cabelos de Bruenor, e ele perdera o elmo, mas sua resistência de anão fizera com que sobrevivesse a mais um confronto mortal.
Galgaram o cimo de uma elevação e chegaram ao perímetro de um círculo de tendas e fogueiras chamejantes. Ao som dos brados em louvor a Tempus, a volta do
bando de guerra despertou o acampamento e cabeças decepadas de orcs foram atiradas dentro do círculo para anunciar a gloriosa chegada dos guerreiros. O fervor no
interior do acampamento logo se igualou ao do bando guerra que chegava, e os três prisioneiros foram os primeiros a entrar, aos empurrões, para serem saudados por
vinte bárbaros aos berros.
- O que é que eles comem? - perguntou Bruenor, mais por sarcasmo que preocupação.
- Seja lá o que for, é bom alimentá-los, e rápido - respondeu Régis, conseguindo do guarda atrás dele um tapa na nuca e um aviso para ficar calado.
Os prisioneiros e os cavalos foram reunidos no centro do acampamento, e a tribo os cercou numa dança de vitória, chutando cabeças de orcs e entoando em
voz alta, numa língua desconhecida pelos companheiros, seu louvor a Tempus e a Uthgar - o herói ancestral - pelo sucesso da noite.
Aquilo continuou durante quase uma hora e, então, acabou de repente, e todos os rostos no círculo se voltaram para a aba fechada de uma tenda grande e ornamentada.
O silêncio se prolongou por um instante antes que a aba se abrisse de repente. Para fora saltou um ancião, esguio como um mastro de tenda, demonstrando, porém,
mais energia do que se esperaria de sua óbvia idade avançada. O rosto pintado com as mesmas marcas dos guerreiros, só que mais elaboradas, ele usava sobre um dos
olhos um tapa-olho com uma imensa gema verde costurada nele. Sua túnica era do mais puro branco, as mangas se revelavam como asas recobertas de penas sempre que
ele agitava os braços. Dançou e rodopiou pelas fileiras de guerreiros, e todos prendiam a respiração e se encolhiam até que ele tivesse passado.
- Chefe? - sussurrou Bruenor.
- Xamã - corrigiu Wulfgar, melhor conhecedor dos costumes da vida tribal. O respeito que os guerreiros mostravam àquele homem advinha de um temor muito
além daquele que um inimigo mortal, ou até mesmo um líder, seria capaz de provocar.
O xamã girou e saltou, pousando bem diante dos três prisioneiros. Olhou para Bruenor e Régis durante apenas um instante, depois voltou toda a sua atenção
para Wulfgar.
- Sou Valric Olhar Alto - berrou ele, de repente. - Sacerdote dos seguidores dos Pôneis Celestes! Os filhos de Uthgar!
- Uthgar! - repetiram os guerreiros, batendo suas machadinhas contra os escudos de madeira.
Wulfgar esperou até que a comoção se extinguisse, depois se apresentou:
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce.
- E eu sou Bruenor... - começou o anão.
- Silêncio! - berrou-lhe Valric, tremendo de raiva. - Não dou a mínima para você!
Bruenor fechou a boca e alimentou sonhos que envolviam seu machado e a cabeça de Valric.
- Não era a nossa intenção lhes fazer mal, nem invadir - começou Wulfgar, mas Valric ergueu a mão e o interrompeu.
- Seu propósito não me interessa - explicou com calma, mas sua agitação ressurgiu imediatamente. -Tempus nos entregou vocês, isso é tudo! Um guerreiro
valoroso?
Ele olhou ao redor, para seus próprios homens, e a resposta deles mostrou impaciência pelo desafio iminente.
_ A quantos você fez jus? - ele perguntou a Wulfgar.
- Sete tombaram diante de mim - respondeu orgulhosamente o jovem bárbaro.
Valric assentiu, com ar aprovador.
- Alto e forte - comentou ele. - Descubramos se Tempus está ao seu lado Julguemos se você é digno de correr com os Pôneis Celestes!
Gritos irromperam imediatamente e dois guerreiros se apressaram a desamarrar Wulfgar. Um terceiro, o líder do bando de guerra que falara a Wulfgar no arvoredo,
lançou ao chão a machadinha e o escudo e adentrou o círculo com impetuosidade.
Drizzt esperou em sua árvore até que o último membro do bando de guerra partisse, após desistir da busca pelo cavaleiro da quarta montaria. Então, o drow
se moveu rapidamente e juntou alguns dos objetos abandonados: o machado do anão e a maça de Régis. Contudo, foi obrigado a estacar e a se controlar ao encontrar
o elmo de Bruenor, manchado de sangue, a ostentar um novo amassado e um dos chifres, quebrado. Teria seu amigo sobrevivido?
Ele enfiou o elmo quebrado em sua mochila e escapuliu-se atrás do grupo, mantendo uma distância cautelosa.
O alívio o inundou ao chegar ao acampamento e avistar seus três amigos, Bruenor tranqüilo entre Wulfgar e Régis. Satisfeito, Drizzt recolheu suas emoções
e todos os pensamentos referentes ao confronto anterior, focalizou sua perspicácia na situação diante dele e formulou um plano de ataque para libertar seus amigos.
O homem moreno ofereceu as palmas abertas a Wulfgar, convidando sua contraparte loura a segurá-las. Wulfgar jamais vira aquele desafio antes, mas não era
tão diferente das provas de força que sua própria gente praticava.
Seus pés não devem se mexer! - instruiu Valric. - Este é o desafio de força! Que Tempus nos mostre seu valor!
A fisionomia determinada de Wulfgar não revelava o menor sinal de sua confiança em poder derrotar qualquer homem numa prova como aquela. Ele nivelou suas
mãos com as do oponente.
O homem agarrou-as furiosamente e rosnou para o imenso forasteiro. Quase imediatamente, antes que Wulfgar tivesse sequer firmado as mãos ou posicionado os
pés, o xamã gritou para que começassem, e o homem moreno impeliu as mãos adiante, fazendo com que as costas de Wulfgar se dobrassem sobre seus pulsos. Os gritos
irromperam em cada canto do acampamento; o homem moreno rugia e empurrava com toda a sua força, mas, passado o momento da surpresa, Wulfgar reagiu.
Os músculos de ferro no pescoço e nos ombros de Wulfgar se retesaram subitamente, e seus braços descomunais se avermelharam com o afluxo forçado de sangue
em suas veias. Tempus realmente o abençoara; restava apenas ao seu pujante oponente ficar embasbacado diante do espetáculo de sua força. Wulfgar fitou-o diretamente
nos olhos e retribuiu o rosnado com um olhar determinado que profetizava a vitória inevitável. Então, o filho de Beornegar se jogou para frente, interrompendo o
impulso inicial do homem moreno e forçando as próprias mãos de volta a um ângulo mais normal em relação a seus pulsos. Readquirida a paridade, Wulfgar percebeu que
um empurrão repentino deixaria seu oponente na mesma desvantagem da qual ele acabara de escapar. Dali em diante, seria improvável que o homem moreno se agüentasse
por muito tempo.
Mas Wulfgar não estava ansioso para pôr fim à peleja. Ele não queria humilhar seu oponente - isso apenas criaria um inimigo - e, mais importante ainda, ele
sabia que Drizzt estava por perto. Quanto mais conseguisse prolongar a peleja - e manter os olhos de cada membro da tribo fixos nele -, mais tempo Drizzt teria para
colocar algum plano em ação.
Os dois homens se agüentaram ali durante vários segundos e Wulfgar não conseguiu evitar um sorriso quando percebeu a forma escura que se esgueirava por entre
os cavalos, atrás dos guardas fascinados, do outro lado do acampamento. Não saberia dizer se era ou não sua imaginação, mas pensou ter visto dois pontos de chama
lilás a fitá-los desde as trevas. Mais alguns segundos, decidiu, apesar de saber que se arriscava por não dar logo fim ao desafio. O xamã poderia declarar um empate
se eles permanecessem imóveis durante muito tempo.
Mas, então, acabou. As veias e os tendões nos braços de Wulfgar saltaram e seus ombros se ergueram ainda mais alto.
-Tempus - vociferou, glorificando o deus por ainda mais uma vitória e, então, com uma repentina e feroz explosão de energia, obrigou o homem moreno a se ajoelhar.
A toda a sua volta, o acampamento se quedou silencioso. Até mesmo o xamã ficou sem palavras diante daquela exibição.
Dois guardas se moveram hesitantemente para flanquear Wulfgar.
O guerreiro derrotado se levantou e ficou ali, a encarar Wulfgar. Nenhum sinal de fúria desfigurava seu rosto, apenas a honesta admiração, pois os Pôneis
Celestes eram um povo honrado.
- Nós poderíamos acolhê-lo - disse Valric. - Você derrotou Torlin, filho de Jerek Caçador do Lobo, Chefe dos Pôneis Celestes. Torlin nunca havia sido superado
antes!
___ E meus amigos? - perguntou Wulfgar.
- Não dou a mínima para eles! - devolveu Valric. - O anão será libertado numa trilha que leva para fora de nossas terras. Não temos desavenças com ele ou
sua gente, nem desejamos ter qualquer negócio com eles!
O xamã olhou dissimuladamente para Wulfgar.
- O outro é um fraco - declarou. - Há de servir para marcar seu ritual de passagem na tribo, seu sacrifício para o cavalo alado.
Wulfgar não respondeu imediatamente. Eles testaram sua força e agora testavam sua lealdade. Os Pôneis Celestes haviam lhe prestado sua mais alta honraria
ao lhe oferecer um lugar na tribo, mas somente sob a condição de que ele demonstrasse lealdade sem sombra de dúvida. Wulfgar pensou em seu próprio povo e no modo
como tinham vivido durante tantos séculos na tundra. Mesmo agora, muitos dos bárbaros do Vale do Vento Gélido teriam aceitado os termos e matado Régis, pois consideravam
a vida de um halfling um pequeno preço por tamanha honra. Essa era a desilusão da existência de Wulfgar com sua gente, a faceta do código moral deles que se mostrara
inaceitável aos seus padrões pessoais.
- Não - ele respondeu a Valric, sem pestanejar.
- É um fraco! - argumentou Valric. - Somente os fortes merecem a vida!
- Não serei eu a decidir o destino dele - respondeu Wulfgar. - E nem você.
Valric fez sinal para os guardas, e eles imediatamente reataram as mãos de Wulfgar.
- Uma perda para o nosso povo - Torlin disse a Wulfgar. - Você teria recebido uma posição de honra entre nós.
Wulfgar não respondeu, sustentando o olhar de Torlin por um longo momento, partilhando o respeito e também a compreensão mútua de que seus códigos eram diferentes
demais para uma associação como aquela. Numa impossível fantasia comum, ambos se imaginaram lutando lado a lado, abatendo orcs às dezenas e inspirando os bardos
a compor uma nova lenda.
Era a vez de Drizzt atacar. O drow se detivera ao lado dos cavalos para ver o resultado da peleja e também para avaliar melhor seus inimigos. Planejou seu
ataque de modo a causar mais efeito que dano, pois desejava encenar um grande espetáculo a fim de intimidar uma tribo de guerreiros destemidos tempo suficiente para
que seus amigos deixassem o círculo.
Sem dúvida, os bárbaros haviam ouvido falar dos elfos negros. E, sem duvida, as histórias que tinham ouvido eram apavorantes.
Em silêncio, Drizzt amarrou os dois pôneis atrás dos cavalos, depois montou os corcéis, um pé no estribo de cada um deles. Erguendo-se entre ambos, sobranceiro,
atirou para trás o capuz do manto. Com o perigoso brilho em seus olhos cor de lavanda a cintilar furiosamente, ele fez as montarias dispararem rumo ao interior do
círculo, o que dispersou os atordoados bárbaros mais próximos.
Gritos de raiva se ergueram dos surpresos homens da tribo e o tom dos brados assumiu um aspecto de terror assim que os bárbaros viram a pele negra. Torlin
e Valric se voltaram para encarar a ameaça que se aproximava, mas nem mesmo eles sabiam lidar com a personificação de uma lenda.
E Drizzt tinha um truque preparado para eles. Com um aceno de sua mão negra, chamas púrpuras e frias irromperam da pele de Torlin e Valric, o que lançou os
dois bárbaros supersticiosos num frenesi de pânico. Torlin caiu de joelhos, agarrando os braços, incrédulo, e o excitável xamã se jogou no chão e começou a rolar
na terra.
Wulfgar aproveitou sua deixa. Um novo afluxo de força em seus braços arrebentou as correias de couro que lhe prendiam os pulsos. Ele deu continuidade ao impulso
das mãos, brandindo-as para cima, e acertou diretamente as faces dos dois guardas ao seu lado, atirando-os de costas ao chão.
Bruenor também compreendeu seu papel. Pisou com todo seu peso no peito do pé do bárbaro solitário entre ele e Régis e, quando o homem se abaixou para levar
as mãos ao pé dolorido, Bruenor deu-lhe uma cabeçada na fronte. O homem tombou tão facilmente quanto Sussurro o fizera no Beco do Rato, em Luskan.
- Ei, também funciona sem o elmo! - admirou-se Bruenor.
- Só se for a cabeça de um anão! - observou Régis enquanto Wulfgar agarrava a ambos pelos colarinhos e erguia-os com facilidade até as selas dos pôneis.
Ele também montou imediatamente, ao lado de Drizzt, e os quatro arremeteram pelo outro lado do acampamento. Tudo acontecera rápido demais para que os bárbaros
preparassem as armas ou dessem forma a algum tipo de defesa.
Drizzt deu a volta com seu cavalo e posicionou-se atrás dos pôneis para proteger a retaguarda.
- Corram! - ele gritou para seus amigos, batendo nas ancas das montarias com a parte chata das cimitarras. Os outros três gritaram vitória como se
a fuga já se houvesse completado, mas Drizzt sabia que aquela havia sido a parte fácil. A aurora se aproximava, célere, e, naquele terreno irregular e des conhecido,
os bárbaros nativos os alcançariam facilmente.
Os companheiros arremeteram pelo silêncio da madrugada e escolheram o caminho mais direto e mais fácil para ganhar tanto terreno quanto possível.
Drizzt ainda mantinha um olho na retaguarda, esperando que os bárbaros bem na cola deles. Mas a comoção no acampamento havia se extinguido quase imediatamente
depois da fuga, e o drow não via sinais de perseguição.
A ora só se ouvia um único brado, o canto ritmado de Valric numa língua nenhum dos viajantes compreendia. O pavor no rosto de Wulfgar fez todos se deterem.
Os poderes de um xamã - explicou o bárbaro.
No acampamento, Valric estava sozinho com Torlin no interior do círculo formado por sua gente, entoando um cântico e dançando o ritual supremo de sua posição,
invocando o poder do Animal Espiritual de sua tribo. O aparecimento do elfo drow havia amedrontado completamente o xamã. Ele interrompeu a perseguição antes que
esta tivesse início e correu para sua tenda em busca do sagrado bornal de couro necessário para o ritual, pois decidira que o espírito do cavalo alado, o Pégaso,
deveria lidar com aqueles invasores.
Valric escolheu Torlin como receptáculo da forma do espírito, e o filho de Jerek aguardava a possessão com estóica dignidade, odiando o ato, pois isso o despojava
de sua identidade, mas resignado à absoluta obediência ao xamã.
Entretanto, a partir do momento em que a coisa começou, Valric compreendeu, em meio à sua agitação, que se havia excedido na urgência da invocação.
Torlin emitiu um grito estridente e foi ao chão, contorcendo-se de agonia. Uma nuvem cinzenta o envolveu, os vapores revoltos se combinaram à sua forma e
remodelaram suas feições. Seu rosto inchou e se contorceu e, de repente, projetou-se para assumir o aspecto da cabeça de um cavalo. Seu torso também se transmutou
em algo inumano. Valric tivera a intenção de apenas emprestar um pouco das forças do espírito do Pégaso a Torlin, mas a própria entidade viera e possuíra o homem
inteiramente, subjugando-lhe o corpo à sua própria imagem.
Torlin foi consumido.
Em seu lugar apareceu a forma espectral do cavalo alado. Todos na tribo caíram de joelhos diante dele, até mesmo Valric, que não conseguia encarar a imagem
do Animal Espiritual. Mas o Pégaso conhecia os pensamentos do xamã e compreendia as necessidades dos seus filhos. As narinas do espírito soltaram fumaça, o animal
se elevou no ar e partiu em perseguição aos invasores que fugiam.
s amigos haviam imposto um passo mais confortável, embora ligeiro, às montarias. livres das amarras, com a aurora rompendo diante deles e nenhuma perseguição
aparente às suas costas, eles tinham se acalmado um pouco. Bruenor remexia o elmo nas mãos, tentando desamassá-lo o suficiente para recolocar a coisa em sua cabeça.
Até mesmo Wulfgar, tão impressionado ao ouvir o cântico do xamã pouco antes, começou a relaxar.
Somente Drizzt, sempre cauteloso, não se convenceu tão facilmente de que haviam escapado. E foi o drow quem primeiro percebeu a aproximação do perigo.
Nas cidades escuras, os elfos negros geralmente lidavam com seres de outro mundo e, no decorrer de muitos séculos, essas criaturas engendraram na raça dos
drow uma sensibilidade às suas emanações mágicas. Drizzt deteve repentinamente o cavalo e fez a volta.
- Que é que 'cê 'tá ouvindo? - perguntou-lhe Bruenor.
- Não ouço nada - respondeu Drizzt, os olhos dardejando em busca de algum sinal. - Mas há algo lá.
Antes que conseguissem responder, a nuvem cinzenta se precipitou do céu e se abateu sobre eles. Os cavalos corcovearam e empinaram, tomados de um pânico incontrolável,
e, na confusão, nenhum dos amigos conseguiu discernir o que acontecia. O Pégaso, então, formou-se bem na frente de Régis e o halfling sentiu um frio mortal a penetrar-lhe
os ossos. Ele gritou e caiu de sua montaria.
Bruenor, cavalgando ao lado de Régis, investiu intrepidamente contra a forma espectral. Mas o arco descendente do machado encontrou apenas uma nuvem de fumaça
onde a aparição estivera. Então, tão repentinamente quanto desaparecera, o espírito retornou, e Bruenor também sentiu o frio gélido de seu toque. Mais forte que
o halfling, ele conseguiu se manter sobre o pônei.
- O que? - ele gritou em vão para Drizzt e Wulfgar.
Garra de Palas passou por ele com um silvo e seguiu em frente até o alvo. Mas o Pégaso era só fumaça novamente, e o martelo de guerra mágico passou sem encontrar
resistência através da nuvem turbilhonante.
Num instante, o espírito estava de volta, precipitando-se sobre Bruenor. O pônei do anão rodopiou e foi ao chão num esforço frenético de escapar da criatura.
- Não vai conseguir atingi-lo! - Drizzt gritou para Wulfgar, que correu em auxílio do anão. - A criatura não existe totalmente neste plano!
As fortes pernas de Wulfgar controlaram o cavalo apavorado e o bárbaro golpeou assim que Garra de Palas retornou às suas mãos. Mas, novamente, encontrou apenas
fumaça.
- Então, como? - ele berrou para Drizzt, os olhos dardejando em busca dos primeiros sinais do espírito a se reformar.
Drizzt vasculhou sua mente em busca das respostas. Régis ainda estava 'lido e imóvel sobre o campo, e Bruenor, embora não tivesse sido ferido tão gravemente
ao cair do pônei, parecia aturdido e tremia devido ao frio sobrenatural. Drizzt agarrou-se a um plano desesperado. Sacou de sua bolsa a estátua de ônix da pantera
e chamou por Guenhwyvar.
O espírito retornou e atacou com fúria renovada. Baixou primeiro sobre Bruenor, envolvendo o anão com suas asas frias.
- Maldito seja daqui até o Abismo! - vociferou Bruenor em corajosa oposição.
Entrando precipitadamente na luta, Wulfgar perdeu o anão completamente de vista, exceto pela cabeça do machado que continuava a irromper inofensivamente através
da fumaça.
Então, a montaria do bárbaro estacou, recusando-se, contra todos os esforços, a se aproximar ainda mais do animal sobrenatural. Wulfgar saltou de sua sela
e investiu, lançando-se diretamente através da nuvem antes que o espírito conseguisse se reformar, e seu impulso fez com que tanto ele quanto Bruenor saíssem do
outro lado do manto fumarento. Rolaram para longe e olharam para trás, apenas para descobrir que o espírito havia desaparecido completamente mais uma vez.
As pálpebras de Bruenor pendiam pesadamente, sua pele apresentava um lívido tom de azul e, pela primeira vez em sua vida, seu espírito indomável não tinha
peito para lutar. Wulfgar também experimentara o toque gélido ao atravessar o espírito, mas ele ainda estava disposto a lutar mais um assalto com a criatura.
- Não podemos lutar contra isto! - disse Bruenor, ofegante e entre dentes. -Aparece prá atacar, mas some quando é a nossa vez!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, desafiador.
Tem de haver uma maneira! - reclamou ele, apesar de obrigado a admitir que o anão estava certo. - Mas meu martelo não é capaz de destruir nuvens!
Guenhwyvar apareceu ao lado de seu mestre e colocou-se rente ao solo, em busca da nêmese que ameaçava o drow. Drizzt compreendeu as intenções do gato.
Não! - ordenou. - Aqui não. - O drow se lembrou de algo que Guenhwyvar fizera vários meses antes. Para salvar Régis das pedras que caíam no desabamento de
uma torre, Guenhwyvar levara o halfling numa jornada -s aos planos da existência. Drizzt agarrou a pelagem espessa da pantera.
- Leve-me à terra do espírito - instruiu ele. - Para o próprio plano dele, onde minhas penetrarão fundo seu ser substancial.
O espírito apareceu novamente ao mesmo tempo em que Drizzt e o gato desapareciam numa outra nuvem.
- Continue golpeando! - Bruenor disse ao seu companheiro. -.
Mantenha a coisa na forma de fumaça prá ela não conseguir te atacar!
- Drizzt e o gato se foram! - gritou Wulfgar.
- Para a terra do espírito - explicou Bruenor.
Drizzt levou um bom tempo para se orientar. Ele adentrara um lugar de realidades diferentes, uma dimensão onde tudo, até mesmo sua própria pele, assumia o
mesmo tom de cinza, sendo os objetos apenas distinguíveis por uma delicada e bruxuleante linha negra que lhes servia de contorno. Sua percepção de profundidade era
inútil, pois não havia sombreados e nenhuma fonte discernível de luz para utilizar como referência. E não achava onde pôr os pés, nada tangível abaixo dele, nem
mesmo conseguia saber que direção era para cima ou para baixo. Esses conceitos não pareciam fazer sentido ali.
Ele distinguiu os contornos cambiantes do Pégaso quando este saltava entre os planos, nunca inteiramente num ou noutro lugar. Tentou se aproximar do animal
e descobriu que a propulsão era um ato da mente e o corpo automaticamente seguia as instruções da vontade. Ele se deteve diante das linhas cambiantes, a cimitarra
mágica erguida para golpear quando o alvo aparecesse inteiramente.
Então, o contorno do Pégaso se completou, e Drizzt enterrou sua espada na bruxuleante linha negra que lhe marcava a forma. A linha se transformou, arqueou-se,
e o contorno da cimitarra também estremeceu, pois ali até mesmo as propriedades da lâmina de aço assumiam uma composição diferente. Mas o aço se mostrou o mais forte,
e a cimitarra retomou seu fio recurvo e perfurou a linha do espírito. Veio então uma súbita titilação no gris, como se a linha do espírito estremecesse num arrepio
de agonia.
Wulfgar viu a nuvem de fumaça se evolar de repente, quase se rematerializando na forma do espírito.
- Drizzt! - gritou para Bruenor. - Ele está enfrentando o espírito em pé de igualdade!
- Prepare-se, então! - Bruenor respondeu ansiosamente, apesar de saber que seu próprio papel na luta havia terminado. - Pode ser que o drow traga a
coisa de volta prá você por tempo suficiente para um golpe! - Bruenor abraçou o próprio corpo, tentando arrancar o frio de seus ossos, e tropeçou na forma imóvel
do halfling.
O espírito se voltou contra Drizzt, mas a cimitarra o golpeou novamente. E Guenhwyvar lançou-se na refrega, as grandes garras do gato a dilacerar o contorno
negro do inimigo. O Pégaso se afastou com um giro sobre as patas compreendendo que não tinha qualquer vantagem contra inimigos u próprio plano. Seu único recurso
era se retirar para o plano material.
Onde Wulfgar aguardava.
Assim que a nuvem retomou sua forma, Garra de Palas a golpeou. Wulfgar sentiu um golpe consistente por apenas um instante e compreendeu que atingira o alvo.
Então, a fumaça foi como que soprada para longe.
O espírito voltou para Drizzt e Guenhwyvar, mais uma vez enfrentando as tocadas e arranhões implacáveis dos dois. Trocou de planos novamente e Wulfgar desferiu
um golpe rápido. Encurralado e sem ter para onde fugir, o espírito recebia golpes em ambos os planos. Toda vez que se materializava diante de Drizzt, o drow percebia
que seu contorno surgia mais fino e menos resistente aos seus golpes. E toda vez que a nuvem se rematerializava diante de Wulfgar, sua densidade diminuía. Os amigos
haviam vencido e Drizzt assistiu satisfeito, à essência do Pégaso livrar-se da forma material e flutuar para longe através do gris.
Leve-me para casa - o cansado drow instruiu Guenhwyvar. Um instante depois, ele estava de volta ao campo, ao lado de Bruenor e Régis.
- Ele vai viver - Bruenor declarou categoricamente em resposta ao olhar interrogativo de Drizzt. - Acho que ele 'tá é desmaiado, não morto.
A uma pequena distância dali, Wulfgar também estava curvado sobre uma forma, prostrada, deturpada e aprisionada numa transformação a meio caminho entre homem
e animal.
- Torlin, filho de Jerek - explicou Wulfgar. Ele ergueu os olhos para o acampamento dos bárbaros. - Valric fez isto. O sangue de Torlin suja-lhe as
mãos!
- Opção de Torlin, talvez? - ofereceu Drizzt.
Nunca! - insistiu Wulfgar. - Quando nos enfrentamos no desafio, meus olhos viram honra. Ele era um guerreiro. Nunca teria permitido isto! - Ele deu um passo
para longe do cadáver, deixando que os restos mutilados enfatizassem o horror da possessão. Na postura paralisada da morte, o rosto de Torlin retivera parte dos
traços de um homem e parte do espírito eqüino.
- Ele era filho do chefe deles - explicou Wulfgar. - Não poderia recusar o pedido do xamã.
- Foi corajoso ao aceitar esse destino - observou Drizzt.
- Filho do chefe deles? - riu Bruenor, desdenhoso. - Parece que a gente colocou mais inimigos ainda na estrada atrás da sente! Eles vão querer ajustar as
contas.
- E eu também! - proclamou Wulfgar. - Você tem nas mãos o sangue dele, Valric, Olhar Alto! - ele berrou para a imensidão, os gritos a ecoar pelos outeiros
dos rochedos. Wulfgar olhou para trás, para seus amigos, e a fúria fervilhava em suas feições ao declarar soturnamente - Hei de vingar a desonra de Torlin.
Com um aceno da cabeça, Bruenor demonstrou sua aprovação à dedicação do bárbaro aos próprios princípios.
- Uma nobre missão - concordou Drizzt, estendendo sua espada para o leste, em direção a Sela Longa, a próxima parada em sua jornada. - Mas para um outro dia.


6. PUNHAL E CAJADO

Entreri estava de pé sobre uma colina a alguns quilômetros da Cidade das Velas, a fogueira do acampamento lucilava logo atrás dele. Régis e companhia haviam
se utilizado daquele mesmo lugar em sua última parada antes de entrar em Luskan e, de fato, a fogueira do assassino ardia na mesmíssima coivara. Mas, não era uma
coincidência. Entreri imitara cada movimento do grupo do halfling desde que lhes encontrara o rastro logo ao sul da Espinha do Mundo. Movia-se com eles, seguindo-lhes
de perto os progressos num esforço para compreender melhor suas ações.
Agora, ao contrário do grupo que perseguia, os olhos de Entreri não repousavam sobre a muralha da cidade, nem mesmo se voltavam em direção a Luskan. Várias
fogueiras haviam surgido no norte, em meio à escuridão, na estrada que levava a Dez-Burgos. Não era a primeira vez que aquelas luzes apareciam às suas costas, e
o assassino sentia que também era seguido. Ele havia desacelerado seu ritmo frenético, imaginando que poderia facilmente recobrar o tempo perdido enquanto os companheiros
cuidavam de seus negócios em Luskan. Desejava proteger a própria retaguarda de todo e qualquer perigo antes de se concentrar em apanhar o halfling. Entreri havia
até mesmo deixado sinais indicadores de sua passagem, atraindo seus perseguidores cada vez mais para perto.
Ele aplacou as brasas da fogueira com a ponta do pé e voltou à sela, pois decidira ser melhor enfrentar uma espada pela frente do que um punhal pelas costas.
Cavalgou noite a dentro, confiante na escuridão. Era seu ambiente, onde cada sombra aumentava a vantagem de alguém que vivia nas sombras.
Ele amarrou a montaria antes da meia-noite, perto o bastante das fogueiras para completar a jornada a pé. Percebia agora que se tratava de uma caravana mercante,
algo nada incomum na estrada para Luskan naquela época do ano. Mas sua noção do perigo o incomodava. Os muitos anos de experiência haviam aguçado seus instintos
de sobrevivência, e ele sabia que não devia ignorá-los.
Insinuou-se no interior do acampamento, à procura do caminho mais fácil até o círculo de carroças. Os mercadores sempre dispunham muitas sentinelas ao redor
do perímetro de seus acampamentos e até mesmo os cavalos representavam um problema, pois os mantinham amarrados bem ao lado dos respectivos arreios.
Ainda assim, o assassino não desperdiçaria a viagem. Viera de muito longe e tinha a intenção de descobrir o propósito daqueles que o seguiam. Deslizando sobre
o ventre, abriu caminho até o perímetro e começou a rodear o acampamento por sob o círculo defensivo. Silencioso demais para ser percebido até mesmo pelos ouvidos
mais atentos, ele passou por dois guardas que jogavam dados. Então, passou por sob e entre os cavalos, os animais a abaixar as orelhas de medo, embora não emitissem
nenhum som.
Depois de percorrer metade do círculo, ele quase se convenceu de que se tratava de uma caravana mercante comum e estava prestes a esgueirar-se de volta às
trevas quando ouviu uma familiar voz feminina:
- 'Cê disse que viu um ponto de luz ao longe. Entreri se deteve, pois reconheceu quem falava.
- É, logo ali - um homem respondeu.
Entreri se esgueirou entre as duas carroças seguintes e espiou. Os interlocutores estavam a uma pequena distância dele, atrás da carroça seguinte, perscrutando
a noite na direção de seu acampamento. Ambos estavam vestidos para a batalha, e a mulher carregava comodamente sua espada.
- Subestimei você - sussurrou Entreri para si mesmo ao ver Cattiebrie. O punhal ajaezado já estava em sua mão. - Um erro que não repetirei - acrescentou,
depois se abaixou e procurou uma trilha que o levasse até o alvo.
- 'Cês foram bons prá mim, me trazendo tão rápido - disse Cattiebrie. - 'Tô te devendo, assim como Régis e os outros.
- Então, diga-me - o homem insistiu. - Para que a pressa?
Cattiebrie lutou com a lembrança do assassino. Ela ainda não se conformara com o pavor que sentira naquele dia, na casa do halfling, e sabia que não o faria
até que tivesse vingado as mortes dos dois amigos anões e resolvido sua própria humilhação. Seus lábios se apertaram e ela não respondeu.
- Como queira - cedeu o homem. - Seus motivos justificam a pressa, não temos dúvida. Se parecemos nos intrometer, isso apenas demonstra nosso desejo
de ajudar você como pudermos.
Cattiebrie se voltou para ele com um sorriso de sincero apreço no rosto. Já se dissera o bastante, e os dois ficaram ali, fitando em silêncio o horizonte
inane.
Silenciosa também foi a aproximação da morte.
Entreri se esgueirou por baixo da carroça e ergueu-se subitamente entre os dois, uma das mãos estendida para cada um deles. Agarrou o pescoço de Cattiebrie
com força suficiente para impedir que ela gritasse e silenciou o homem para todo o sempre com seu punhal.
Olhando por sobre os ombros de Entreri, Cattiebrie viu a horrenda expressão petrificada no rosto de seu companheiro, mas não conseguiu entender porque ele
não gritara, pois sua boca não estava coberta.
Entreri alterou ligeiramente sua posição e ela compreendeu. Apenas o abo do punhal ajaezado era visível, a cruzeta rente ao lado inferior do queixo do homem.
A lâmina delgada encontrara o cérebro do mercador antes que ele sequer percebesse o perigo. Entreri usou o punho da arma para conduzir sua vítima silenciosamente
até o chão, depois a arrancou.
Mais uma vez, a mulher se viu paralisada diante do horror de Entreri. Sentiu que deveria se livrar dele e alertar o acampamento, muito embora ele certamente
a matasse. Ou sacar sua espada e ao menos tentar resistir. Mas ela apenas observou, impotente, enquanto Entreri lhe retirava o próprio punhal do cinto e, trazendo-a
consigo, abaixava-se para inserir a arma no ferimento fatal.
Então, ele tirou-lhe a espada e a empurrou para baixo da carroça e dali para longe do perímetro do acampamento.
Por que não consigo gritar? - ela se perguntou repetidas vezes, pois o assassino, confiante no nível de terror que inspirava, nem mesmo a segurava enquanto
os dois se esgueiravam noite adentro. Ele sabia, e Cattiebrie tinha de admitir para si mesma, que ela não entregaria a própria vida com tanta facilidade.
Por fim, quando já estavam a uma distância segura do acampamento, ele a fez girar para encará-lo, e também ao punhal.
- Seguir-me? - perguntou, rindo dela. - O que você ganharia com isso?
Ela não respondeu, mas descobriu que sua força retornava. Entreri também o sentiu.
- Se você gritar, vou matá-la. - declarou categoricamente. - E então, juro, hei de retornar aos mercadores e matá-los a todos também!
Ela acreditou.
- Eu geralmente viajo com os mercadores - mentiu, controlando o tremor em sua voz. -É um dos deveres de meu posto como soldado de Dez-
Burgos.
Entreri riu da moça novamente. Depois, desviou o olhar em direção ao nada, e suas feições assumiram um ar introspectivo.
- Talvez isto me seja vantajoso - disse ele retoricamente, pois o início de um plano tomava forma em sua mente.
Cattiebrie o estudou, preocupada com a possibilidade de que ele tivesse descoberto algum modo de transformar sua expedição em algo danoso para seus amigos.
- Não vou matar você, ainda não - disse ele. - Quando encontrarmos o halfling, os amigos dele não o defenderão. Por sua causa.
- Não vou fazer nada prá te ajudar! - foi a resposta veemente de Cattiebrie. - Nada!
- Precisamente - sibilou Entreri. - Você não há de fazer nada. Não com uma faca no seu pescoço - levou a arma à garganta dela numa mórbida provocação
-, arranhando sua pele macia. Quando meus negócios estiverem acabados, moça corajosa, seguirei em frente e você há de ficar com a sua vergonha e a sua culpa. E as
suas explicações aos mercadores, que acreditam que você assassinou o companheiro deles! - Na verdade, Entreri não acreditou por um instante sequer que seu truque
com o punhal de Cattiebrie enganaria os mercadores. Era meramente uma arma psicológica endereçada à moça, destinada a instilar ainda mais uma dúvida e outra preocupação
em sua confusão de emoções.
Cattiebrie não respondeu às declarações do assassino com o menor sinal de emoção. Não, ela disse para si mesma, não vai ser desse jeito!
Mas, no fundo, ela imaginava se sua determinação apenas disfarçava o medo, sua própria crença de que seria contida novamente pelo horror da presença de Entreri
e de que a cena se desenrolaria exatamente como ele havia previsto.
Jierdan encontrou o acampamento sem muita dificuldade. Dendibar usara sua mágica para rastrear o misterioso cavaleiro por todo o caminho desde as montanhas
e havia enviado o soldado na direção correta.
Tenso, a espada desembainhada, Jierdan entrou no acampamento. O lugar estava deserto, mas não havia muito tempo. Mesmo a alguns metros de distância, o soldado
de Luskan sentia o calor agonizante da fogueira. Agachando-se para disfarçar sua silhueta contra a linha do horizonte, rastejou em direção a uma mochila e um cobertor
bem ao lado do fogo.
Entreri conduziu lentamente sua montaria de volta ao acampamento, esperando que o que deixara para trás pudesse ter atraído alguns visitantes. Cattiebrie
vinha sentada diante dele, amarrada e amordaçada com toda segurança, embora ela acreditasse inteiramente, para seu desagrado, que seu próprio terror tornava desnecessárias
as amarras.
O cauteloso assassino percebeu que alguém entrara no acampamento antes mesmo de se aproximar do local. Escorregou de sua sela, levando a prisioneira consigo.
- Um corcel nervoso - explicou, obviamente deleitando-se com o aviso soturno enquanto amarrava Cattiebrie às patas traseiras do cavalo. - Se você se
debater, ele vai escoiceá-la até a morte.
Então, Entreri desapareceu, misturando-se à escuridão como se ele próprio fosse uma extensão das trevas.
Jierdan deixou a mochila cair de volta ao chão, frustrado, pois o conteúdo da mesma nada mais era que o equipamento comum de viagem e nada revelava sobre
o dono. O soldado era um veterano de muitas campanhas e derrotara tanto homens quanto orcs centenas de vezes, mas agora estava nervoso, sentindo algo de incomum
e mortífero a respeito daquele cavaleiro. Um homem com a coragem de cavalgar sozinho pelo trajeto selvagem desde o Vale do Vento Gélido até Luskan não era um guerreiro
inexperiente.
Jierdan se sobressaltou, mas não ficou demasiado surpreso, quando a ponta de um punhal veio descansar subitamente na cavidade vulnerável em sua nuca, logo
abaixo da base do crânio. Ele não se moveu e nada disse, esperando que o cavaleiro pedisse alguma explicação antes de fazer uso da arma.
Entreri viu que sua mochila fora vasculhada, mas reconheceu o uniforme forrado de peles e sabia que aquele homem não era um ladrão.
- Estamos fora das fronteiras de sua cidade - disse ele, segurando a faca com firmeza. - O que você quer no meu acampamento, soldado de Luskan?
- Sou Jierdan do portão norte - ele respondeu. - Vim encontrar um cavaleiro proveniente do Vale do Vento Gélido.
- Que cavaleiro?
- Você.
Entreri se sentiu perplexo e incomodado com a resposta do soldado. Quem enviara aquele homem e como soubera onde procurar? Os primeiros pensamentos do assassino
se concentraram no grupo de Régis. Talvez o halfling tivesse conseguido alguma ajuda da guarda da cidade. Entreri devolveu a faca à sua bainha, certo de que poderia
recuperá-la a tempo de repelir qualquer ataque.
Jierdan também compreendeu a serena confiança do ato e toda idéia que pudesse ter de atacar aquele homem desapareceu.
- Meu mestre deseja uma audiência - disse ele, pensando ser aconselhável se explicar melhor. - Uma reunião para benefício de ambos.
- Seu mestre? - perguntou Entreri.
- Um cidadão de grande prestígio - explicou Jierdan. - Ele ficou sabendo de sua chegada e acredita que possa ajudá-lo em sua busca.
- O que ele sabe sobre os meus negócios? - rebateu Entreri, irritado por alguém ter se atrevido a espioná-lo. Mas também se sentiu aliviado, pois o
envolvimento de alguma outra estrutura de poder na cidade explicava muita coisa e eliminava, talvez, a suposição lógica de que o halfling estivesse por trás daquele
encontro.
Jierdan deu de ombros.
- Sou apenas o mensageiro. Mas eu também posso ser de ajuda para você. No portão.
- Dane-se o portão - rosnou Entreri. - Eu passaria pelas muralhas com facilidade. E uma rota mais direta até os lugares que procuro.
- Mesmo assim, conheço esses lugares e as pessoas que os controlam.
A faca saltou da bainha, intervindo e detendo-se pouco antes da garganta de Jierdan.
- Você sabe demais, mas explica pouco. É um joguinho perigoso, solda do de Luskan.
Jierdan não piscou.
- Quatro heróis, vindos de Dez-Burgos, chegaram a Luskan cinco dias atrás: um anão, um halfling, um bárbaro e um elfo negro. - Nem mesmo Artemis Entreri
conseguiu esconder um sinal de agitação diante da confirmação de suas suspeitas, e Jierdan o notou. - Desconheço-lhes a exata localização, mas conheço a área onde
estão se escondendo. Está interessado?
A faca retornou mais uma vez à sua bainha.
- Espere aqui - instruiu Entreri. - Tenho uma companheira que via jará conosco.
- Meu mestre disse que você cavalgava sozinho - questionou Jierdan.
O sorriso vil de Entreri fez um calafrio percorrer a espinha do soldado.
- Eu a adquiri - explicou ele. - Ela é minha e é tudo o que você precisa saber.
Jierdan não forçou a questão. Seu suspiro de alívio foi audível quando Entreri desapareceu de vista.
Cattiebrie cavalgou até Luskan desamarrada e sem a mordaça, mas o domínio de Entreri sobre ela não era menos aprisionador. O aviso que lhe dera ao buscá-la
no campo fora sucinto e inquestionável.
- Um gesto insensato - ele dissera - e você morre. E morre sabendo que o anão, Bruenor, há de sofrer por sua insolência.
O assassino nada mais dissera a Jierdan sobre ela, e o soldado não perguntou, embora a mulher o intrigasse, e bastante. Jierdan sabia que Dendibar obteria
as respostas.
Entraram na cidade ao fim daquela manhã, sob o olhar suspeito do Guardião do Dia do Portão Norte. O suborno custara a Jierdan uma semana de soldo, e ele sabia
que sua dívida seria ainda maior quando retornasse naquela noite, pois o acordo original com o Guardião do Dia permitia a passagem de forasteiro; nada fora dito
sobre a mulher. Mas, se as ações de Jierdan lhe trouxessem o favor de Dendibar, então os dois valeriam o preço.
De acordo com o código da cidade, os três deixaram seus cavalos no estábulo logo depois da muralha, e Jierdan conduziu Entreri e Cattiebrie pelas da Cidade
das Velas, passando pelos mercadores e mascates de olhos sonolentos que já haviam deixado suas casas desde antes do amanhecer, rumo ao próprio coração da cidade.
O assassino não se surpreendeu, uma hora depois, ao chegarem a um extenso bosque de densos pinheiros. Ele desconfiara que Jierdan estava de algum modo ligado
àquele lugar. Passaram por uma abertura na linha e viram-se diante da mais alta estrutura da Cidade, a Torre das Hostes Arcanas.
Quem é seu mestre? - Entreri perguntou bruscamente.
Jierdan casquinou, a coragem alentada pela visão da torre de Dendibar.
- Você vai conhecê-lo em breve.
- Hei de saber agora - grunhiu Entreri. - Ou nossa reunião está terminada. Estou dentro da cidade, soldado, e não mais necessito de sua assistência.
- Eu poderia fazer com que os guardas o expulsassem - devolveu Jierdan. - Ou coisa pior!
Mas Entreri deu a última palavra.
- Eles nunca encontrariam os restos do seu corpo - prometeu, e a fria certeza de seu tom de voz fez empalidecer as faces de Jierdan.
Cattiebrie percebeu a troca de ameaças com mais do que uma ligeira preocupação pelo soldado, imaginando se logo chegaria o momento em que poderia explorar
a natureza desconfiada de seus captores e disso extrair alguma vantagem.
- Sirvo a Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte - declarou Jierdan, encontrando forças na menção do nome de seu poderoso mestre.
Entreri ouvira o nome antes. A Torre das Hostes era um lugar-comum nos bochichos por toda a Luskan e a região circundante, e o nome de Dendibar, o Variegado,
surgia com freqüência em meio às conversas, que o descreviam como um mago ambicioso e ávido de poder, e insinuavam que o homem tinha um lado sombrio e sinistro que
lhe permitia conseguir o que desejava. Era perigoso, mas potencialmente um aliado poderoso. Entreri ficou satisfeito.
- Leve-me a ele agora - disse a Jierdan. - Vamos descobrir se temos ou não negócios a tratar.
Sidnéia esperava para escoltá-los a partir do vestíbulo da Torre das Hostes. Sem oferecer nem pedir apresentações, ela os conduziu através das passagens
serpeantes e portas secretas até o salão de audiências de Dendibar, o Variegado. O mago lá aguardava, em grande estilo, envergando suas mais finas vestes e tendo
diante dele um almoço fabuloso.
- Saudações, cavaleiro - disse Dendibar, depois dos necessários, apesar de incômodos, momentos de silêncio enquanto os dois lados mediam um ao outro.
- Sou Dendibar, o Variegado, como você já deve saber. Você e sua adorável companheira partilhariam de minha mesa?
A voz estridente do mago irritou os nervos de Cattiebrie e, apesar de não ter comido nada desde a ceia do dia anterior, ela não ansiava pela hospitalidade
daquele homem.
Entreri a empurrou.
- Coma - ordenou.
Ela sabia que Entreri a testava tanto quanto aos magos. Mas também chegara a hora de ela testar Entreri.
- Não - respondeu, fitando-o diretamente nos olhos.
Com as costas da mão, ele a arremessou ao chão. Jierdan e Sidnéia se sobressaltaram involuntariamente, mas, vendo que Dendibar não se dispunha a ajudar, rapidamente
se detiveram e voltaram a assistir à cena. Cattiebrie se afastou do assassino e permaneceu encolhida, na defensiva.
Dendibar sorriu para o assassino.
- Você respondeu algumas das minhas perguntas sobre a garota - disse ele, com um sorriso divertido. - A que propósito ela serve?
- Tenho minhas razões - foi tudo o que Entreri respondeu.
- E claro. E posso saber seu nome?
A expressão de Entreri não se alterou.
- Você procura os quatro companheiros de Dez-Burgos, eu sei - continuou Dendibar, sem desejar uma discussão. - Eu também os procuro, mas por razões
diferentes, estou certo.
- Você nada sabe sobre minhas razões - replicou Entreri.
- E nem me importo em sabê-las - riu o mago. - Podemos ajudar um ao outro a atingir nossos distintos objetivos. Isso é tudo o que me interessa.
- Não estou pedindo ajuda. Dendibar riu novamente.
- Eles são uma força poderosa, cavaleiro. Você os subestima.
- Talvez - respondeu Entreri. - Você perguntou pelo meu propósito, mas não ofereceu o seu. Que negócios a Torre das Hostes tem com os viajantes de
Dez-Burgos?
- É justo - respondeu Dendibar. - Mas devo esperar até que tenhamos formalizado um acordo antes de apresentar a resposta.
_ Então nem vou dormir direito de tanta preocupação - foi a réplica veemente de Entreri.
Mais uma vez, o mago gargalhou. - Pode ser que você mude de idéia antes do fim desta audiência - disse e de. - Por enquanto, ofereço um sinal de boa fé.
Os companheiros estão na cidade. No porto. Deveriam hospedar-se no Alfanje. Conhece? Entreri assentiu, agora muito interessado nas palavras do mago.
- Mas nós os perdemos nas vielas da parte oeste da cidade - explicou Dendibar, lançando um olhar feroz para Jierdan, o que fez o soldado trocar de pé apreensivamente.
- E qual é o preço dessa informação? - perguntou Entreri.
Nada - respondeu o mago. - Contar-lhe isso promove minha causa.
Você obterá o que quer; o que eu desejo, guardo para mim.
Entreri sorriu, compreendendo que Dendibar tinha a intenção de usá-lo como um cão de caça para farejar a presa.
- Minha aprendiza vai lhe indicar a saída - disse Dendibar, fazendo sinal para Sidnéia.
Entreri se virou para sair, detendo-se para confrontar o olhar de Jierdan.
- Fique longe do meu caminho, soldado - avisou o assassino. - Depois de banquetear-se o leão, é a vez dos abutres!
- Quando ele tiver me levado ao drow, vou arrancar-lhe a cabeça - grunhiu Jierdan quando os três se foram.
- E melhor ficar longe desse aí - instruiu Dendibar. Jierdan fitou o mago, confuso.
- Sem dúvida você o quer sob vigilância.
- Certamente - concordou Dendibar. - Mas é uma tarefa para Sidnéia, não para você. Guarde sua raiva - Dendibar disse a ele, notando-lhe a carranca
de ultraje. - Preservo sua vida. Seu orgulho é imenso, e você fez jus a esse direito. Mas esse aí está além de suas habilidades, meu amigo. Ele o teria apunhalado
antes mesmo que você lhe notasse a presença.
Do lado de fora, Entreri conduziu Cattiebrie para longe da Torre das Hostes sem uma palavra, repetindo e revisando silenciosamente a reunião, Pois sabia que
aquela não seria a última vez em que veria Dendibar e seus colegas.
Cattiebrie também ficou feliz com o silêncio, absorta em suas próprias contemplações. Por que um mago da Torre das Hostes estaria à procura de Bruenor e
dos demais? Vingança em nome de Akar Kessell, o mago ensandecido que seus amigos haviam ajudado a derrotar antes do último inverno? Ela olhou para trás, para a estrutura
em forma de árvore, e para o assassino ao lado dela, atônita e horrorizada com a atenção que seus amigos haviam atraído.
Então, ela perscrutou seu próprio coração, reavivando seu espírito e sua coragem. Drizzt, Bruenor, Wulfgar e Régis iriam precisar de sua ajuda antes do fim
de tudo aquilo. Ela não podia decepcioná-los.

 

 




CONTINUA