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RIOS DE PRATA
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LIVRO 2


ALIADOS


Ele quer ir para casa. Quer encontrar um mundo que conheceu outrora. Não sei se é a promessa de riquezas ou a da simplicidade que agora impele Bruenor.
Ele quer encontrar o Salão de Mitral, livrá-lo de todos os monstros que possam agora habitar o lugar a fim de reclamá-lo em nome do Clã Martelo de Batalha.
Superficialmente, esse desejo parece uma coisa razoável, até mesmo nobre. Todos nós buscamos a aventura e, para aqueles cujas famílias vivem segundo a tradição
da nobreza, o desejo de vingar um agravo e restaurar o nome e a posição da família não pode ser subestimado.
Nossa estrada para o Salão de Mitral provavelmente não será fácil. Muitas terras perigosas e incivilizadas jazem entre o Vale do Vento Gélido e a região bem
a leste de Luskan e, sem dúvida, essa estrada promete tornar-se ainda mais sombria se de fato encontrarmos a entrada para as minas perdidas dos anões. Mas estou
cercado por amigos capazes e poderosos e, assim sendo, os monstros não me preocupam, não os que conseguimos combater com a espada. Não, meu único temor em relação
a esta jornada que empreendemos agora se refere a Bruenor Martelo de Batalha. Ele quer ir para casa e existem muitos bons motivos para tanto. Há apenas um bom motivo
para que ele não o faça e, se esse motivo, a nostalgia, for a fonte de seu desejo, então temo que ele venha a sofrer uma amarga decepção.
A nostalgia é, talvez, a maior das mentiras que todos nós contamos a nós mesmos. É o lustro do passado a se adaptar às sensibilidades do presente. Para alguns,
isso traz um certo consolo, um sentido de identidade e origem, mas outros, acho eu, exageram essas lembranças alteradas e, por causa disso, ficam paralisados diante
da realidade.
Quantas pessoas anelam por aquele "mundo passado, mais simples e melhor", eu me pergunto, sem jamais reconhecer a verdade de que talvez elas é que eram mais
simples e melhores, e não o mundo ao seu redor?
Como um elfo drow, espero viver vários séculos, mas aquelas primeiras décadas de vida para um drow, e para um elfo da superfície, não são tão diferentes,
no que se refere ao desenvolvimento emocional, das de um humano, ou de um halfling, ou de um anão. Eu também recordo esse idealismo e essa energia dos meus dias
de juventude, quando o mundo parecia um lugar descomplicado, quando o certo e o errado estavam claramente gravados no caminho diante de cada um dos meus passos.
Talvez, de alguma estranha maneira, devido ao fato de que meus primeiros anos foram tão repletos de experiências terríveis, tão repletos de um ambiente e de uma
experiência que eu simplesmente não conseguia tolerar, estou em melhor situação agora. Bois, ao contrário de tantos que conheci na superfície, minha vida tem melhorado
constantemente.
Teria isso contribuído para o meu otimismo, para a minha própria existência e para mundo inteiro ao meu redor?
Tantas pessoas, particularmente os humanos que passaram o ponto médio de sua expectativa de vida, continuam a procurar no passado o paraíso, continuam a alegar
que o mundo era um lugar muito melhor quando eram jovens.
Não acredito nisso. Pode haver ocasiões específicas em que isso seja verdade - um rei despótico que deixa em seu lugar um monarca piedoso, uma era de bem-estar
que envolve a terra depois de uma peste -, mas acredito, preciso acreditar, que as pessoas do mundo são um grupo em desenvolvimento, que a evolução natural das civilizações,
apesar de não ser necessariamente uma sucessão em linha reta, caminha rumo a melhoria do mundo. Pois cada vez que se encontra um caminho melhor, as pessoas naturalmente
gravitam naquela direção enquanto os experimentos fracassados são abandonados. Tenho ouvido, por exemplo, as interpretações de Wulfgar sobre a história do seu povo,
as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido, e fico atônito e horrorizado diante da brutalidade do seu passado, a luta constante de tribo contra tribo, o estupro
em massa das mulheres capturadas e a tortura dos homens aprisionados. Os homens das tribos do Vale do Vento Gélido são ainda um bando selvagem, sem dúvida, mas,
se dermos crédito às tradições orais, não na mesma medida que seus predecessores. E isso faz todo o sentido para mim e, assim, tenho esperança de que a tendência
continuará. Talvez, um dia, venha a surgir um grande líder bárbaro que encontre verdadeiramente o amor de uma mulher, que encontre uma esposa que arranque dele um
certo grau de respeito, praticamente desconhecido entre os bárbaros. Será que esse líder elevará, de algum modo, a posição das mulheres entre as tribos?
Se isso acontecer, as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido encontrarão uma força que simplesmente não compreendem em meio à metade de sua população. Se
isso acontecer, se as mulheres bárbaras sofrerem essa ascensão, então os homens das tribos nunca, jamais as forçarão de volta aos seus papéis atuais, que podem ser
descritos apenas como escravidão.
E todos eles, homens e mulheres, mudarão para melhor.
Para que a mudança dure entre criaturas racionais, essa mudança deve ser para melhor. E, desse modo, as civilizações, os povos evoluem para um melhor entendimento
e um lugar melhor.
Para as Matriarcas de Menzoberranzan, assim como no caso de muitas gerações de famílias despóticas e de ricos proprietários de terras, a mudança pode ser
encarada como uma ameaça clara à sua base de poder e, portanto, sua resistência parece lógica, até mesmo esperada. Como, então, podemos encontrar explicação no fato
de que tantas, tantas pessoas, até mesmo aquelas que vivem na miséria, como viveram seus pais e os pais de seus pais, e gerações e gerações antes deles, encarem
a mudança com o mesmo medo e a mesma repulsa? Por que o mais humilde camponês não desejaria a evolução da civilização se essa evolução pudesse levar a uma vida melhor
para seus filhos?
Isso pareceria lógico, mas, pelo que vejo, não é o caso. Para muitos, se não para a maioria dos humanos de vida breve que já ultrapassou a idade de maior
vigor e saúde, que já deixou para trás seus melhores dias, aceitar qualquer mudança não parece algo fácil. Não, tantos se agarram ao passado, quando o mundo era
"mais simples e melhor". Eles se ressentem da mudança num nível pessoal, como se as melhorias que seus sucessores possam implementar lançassem uma luz brilhante
e reveladora sobre seus próprios fracassos.
Talvez seja isso. Talvez seja um dos nossos medos mais fundamentais, o medo, criado pelo orgulho insensato, de que nossos filhos venham a saber mais do que
nós mesmos. Ao mesmo tempo em que tantas pessoas enaltecem as virtudes de seus filhos, existirá algum medo remoto dentro delas de que esses filhos venham a enxergar
os erros de seus pais?
Não tenho respostas para esse aparente paradoxo, mas, pelo bem de Bruenor, rezo para que ele procure o Salão de Mitral pelos motivos certos, em nome da aventura
e do desafio, em nome de sua herança e da restauração do nome de sua família, e não em nome do desejo de transformar o mundo naquilo que era antes.
A nostalgia é algo necessário, creio eu, e uma maneira de todos nós encontrarmos paz naquilo que realizamos, ou até mesmo no que não conseguimos realizar.
For outro lado, se a nostalgia precipitar nossas ações numa tentativa de retornar àquela época lendária e cor-de-rosa, particularmente no caso de alguém que acredita
que sua vida tenha sido um fracasso, então é algo vazio, condenado a gerar nada além de frustração e uma sensação ainda maior de fracasso.
Pior ainda, se a nostalgia colocar obstáculos no caminho da evolução, então se trata de algo realmente limitante.
Drizzt Do'Urden


7. PARA RISCO DAS AVES QUE VOAM BAIXO


Para o mais absoluto alívio dos companheiros, eles emergiram das curvas e depressões dos rochedos quase no fim da tarde. Levaram algum tempo para reunir as
montarias depois do encontro com o Pégaso, particularmente o pônei do halfling, que havia disparado no começo da luta, quando Régis caíra. Na verdade, seria impossível
montar o pônei novamente: estava arisco demais e Régis não se encontrava em condições de cavalgar. Mas Drizzt insistira que os dois cavalos e os dois pôneis fossem
encontrados, lembrando seus companheiros de sua responsabilidade para com os fazendeiros, considerando-se especialmente a maneira pela qual haviam se apropriado
dos animais.
Régis agora ia sentado diante de Wulfgar no garanhão do bárbaro, à frente do grupo, com o pônei amarrado logo atrás e Drizzt e Bruenor a uma pequena distância
deles, defendendo a retaguarda. Wulfgar mantinha os braços imensos em torno do halfling e seu abraço protetor oferecia segurança suficiente para permitir a Régis
o descanso justo.
- Mantenha o sol poente às nossas costas - Drizzt instruiu o bárbaro.
Wulfgar assentiu com um brado e olhou para trás a fim de confirmar sua posição.
- Ronca-bucho não poderia ter encontrado um lugar mais seguro em todos os Reinos - Bruenor comentou com o drow.
Drizzt sorriu:
- Wulfgar se saiu bem.
- É - concordou o anão, obviamente satisfeito. - Apesar de que eu me pergunto quanto tempo mais vou poder continuar chamando ele de garoto!
- 'Cê devia ter visto o Alfanje, elfo - casquinou o anão. - Um barco cheio de Piratas, que não vêem outra coisa além do oceano há um ano e um dia, não
seria capaz de causar tanta destruição!
- Quando deixamos o vale, minha preocupação era se Wulfgar estaria pronto para as várias sociedades do mundo - replicou Drizzt. - Agora minha preocupação
é que o mundo pode não estar preparado para ele. Você deve estar orgulhoso.
- Você tem tanto a ver com isso quanto eu - disse Bruenor. - Ele é meu garoto, elfo, quase como se fosse mesmo meu filho. Ele nem pensou nos próprios
temores no campo lá atrás. Nunca tinha visto tamanha coragem num ser humano como quando você foi pro outro plano. Ele esperou - contou com isso, 'tô te dizendo!
- que o desgraçado do bicho voltasse prá que pudesse tentar acertar em cheio, só prá vingar a mim e o halfling, os dois feridos.
Drizzt apreciava aqueles raros momentos de vulnerabilidade do anão. Poucas vezes antes vira Bruenor abandonar sua fachada empedernida, no topo da ladeira
no Vale do Vento Gélido, quando o anão pensava no Salão de Mitral e nas maravilhosas lembranças de sua infância.
- E, 'tô orgulhoso - continuou Bruenor. - E me pego agora disposto a seguir a liderança dele e a confiar nas suas decisões.
Drizzt podia apenas concordar, tendo chegado às mesmas conclusões muitos meses antes, quando Wulfgar unira os povos do Vale do Vento Gélido - bárbaros e deca-burgueses
- para que juntos se protegessem contra o rigoroso inverno da tundra. Ele ainda tinha algum receio em levar o jovem bárbaro a lugares como a zona portuária de Luskan,
pois sabia que muitas das melhores pessoas nos Reinos haviam pago caro por seus primeiros encontros com as guildas e as estruturas de poder clandestinas de uma cidade,
e que a profunda compaixão de Wulfgar e seu irredutível código de honra poderiam ser usados contra ele.
Mas na estrada, nos ermos, Drizzt sabia que nunca encontraria um companheiro mais valioso.
Não encontraram mais problemas no resto do dia ou da noite e, na manhã seguinte, chegaram à estrada principal, a rota comercial de Águas Profundas a Mirabar
que passava por Sela Longa no caminho. Nenhum ponto de referência surgiu para orientá-los como Drizzt previra, mas, devido ao seu plano de se manter mais para leste
do que numa linha reta para sudeste, a direção a partir dali era claramente o sul.
Régis parecia muito melhor naquele dia e estava ansioso por ver Sela Longa. Era o único membro do grupo a ter visitado o lar dos magos Harpells e aguardava
ansiosamente para rever o estranho e geralmente exótico lugar.
Sua exaltada tagarelice, porém, fez apenas aumentar os receios de Wulfgar, pois era profunda a desconfiança do bárbaro em relação às artes negras. Entre o
povo de Wulfgar, os magos eram vistos como covardes e vigaristas malignos.
Quanto tempo teremos de ficar nesse lugar? - ele perguntou a Bruenor e Drizzt, que, com os rochedos às suas costas, passaram a cavalgar ao lado dele na estrada
larga.
- Até a gente conseguir algumas respostas - respondeu Bruenor. - Ou até a gente pensar num lugar melhor prá ir.
Wulfgar teve de se satisfazer com a resposta.
Eles logo passaram por algumas fazendas periféricas, atraindo olhares curiosos dos homens nos campos, que se inclinavam sobre as enxadas e os ancinhos para
estudar o grupo. Pouco depois do primeiro desses encontros, foram recebidos na estrada por cinco homens armados, chamados Longinetes, representantes da guarda avançada
da vila.
- Saudações, viajantes - disse um deles, educadamente. - Posso perguntar quais são suas intenções por estas bandas?
- Você pode é... - começou Bruenor, mas Drizzt interrompeu-lhe o comentário sarcástico com uma palma esticada.
- Viemos ver os Harpells - respondeu Régis. - Nossos assuntos não envolvem sua cidade, mas procuramos o sábio conselho da família que vive na mansão.
- Bons olhos os vejam, então - respondeu o Longinete. - A colina da Mansão de Hera fica só algumas milhas estrada abaixo, antes de Sela Longa propriamente
dita. - Ele fez uma pausa brusca, notando a presença do drow. - Podemos escoltá-los, se desejarem - ofereceu ele, limpando a garganta numa tentativa educada de esconder
seu assombro diante do elfo negro.
- Não é necessário - disse Drizzt. - Asseguro-lhe que encontraremos o caminho e que não desejamos nenhum mal a qualquer pessoa de Sela Longa.
- Muito bem.
O Longinete fez sua montaria dar um passo para o lado e os companheiros seguiram em frente.
- Mas fiquem na estrada - ele ainda gritou. - Alguns dos fazendeiros ficam nervosos com pessoas próximas aos limites de suas terras.
- São uma gente afável - Régis explicou para os companheiros enquanto desciam a estrada -, e confiam em seus magos.
- Afáveis, mas precavidos - retorquiu Drizzt, apontando um campo distante onde a silhueta de um homem a cavalo mal e mal se fazia notar na longínqua fileira
de árvores. - Somos vigiados.
- Mas não incomodados - disse Bruenor. - E é mais do que se pode dizer sobre qualquer outro lugar por onde a gente tenha andado!
A colina da Mansão de Hera compreendia um pequeno outeiro com três edifícios, dois deles semelhantes ao padrão das casas de fazenda, baixas e feitas de madeira.
O terceiro, porém, era diferente de tudo o que os quatro companheiros já tinham visto. Suas paredes se encontravam em ângulos abruptos a cada poucos metros, criando
nichos dentro de nichos, e dezenas de torreões brotavam do teto anguloso, não havendo dois iguais. Mil janelas eram visíveis somente a partir daquela direção, algumas
delas imensas, outras não maiores do que uma seteira.
Era impossível encontrar ali um projeto único, um plano ou estilo arquitetônico global. A mansão dos Harpells era uma colagem de idéias e experimentos independentes
em criação mágica. Mas havia realmente uma certa beleza em meio ao caos, uma sensação de liberdade que desafiava o termo "estrutura" e trazia consigo um sentimento
de boa acolhida.
Uma cerca em balaustrada circundava o outeiro, e os quatro amigos se aproximaram com curiosidade, se não com alvoroço. Não havia porteira, só uma abertura
e a estrada que seguia através dela. Sentado num banquinho do lado de dentro da cerca, fitando estupidamente o céu, encontrava-se um homem gordo, barbudo, vestindo
uma túnica carmesim.
O homem se sobressaltou ao notar a chegada do grupo.
- Quem são vocês e o que querem? - indagou bruscamente, furioso por terem interrompido sua meditação.
- Viajantes cansados - respondeu Régis - que aqui chegam em busca da sabedoria dos afamados Harpells.
O homem não pareceu impressionado.
- E daí? - encorajou ele.
Régis, impotente, virou-se para Drizzt e Bruenor, mas só lhes restava dar de ombros como resposta, sem compreender o que mais lhes era exigido. Bruenor começava
a se adiantar com seu pônei para reiterar suas intenções quando outro homem de túnica saiu desajeitadamente da mansão para se juntar ao primeiro.
Ele trocou algumas palavras em voz baixa com o mago gordo, depois se voltou para a estrada.
- Saudações - ofereceu ele aos companheiros. - Perdoem o pobre Regweld aqui - ele deu uma palmadinha no ombro do mago gordo -, pois ele anda tendo
um tremendo azar com algumas experiências. Bem, não que as coisas não acabem dando certo... Podem apenas levar algum tempo.
- Regweld é realmente um mago excepcional - continuou, batendo-lhe no ombro mais uma vez. - E suas idéias sobre cruzar um cavalo com uma rã têm lá
o seu mérito; é só não se incomodar com a explosão! Os laboratórios de alquimia são substituíveis!
Os amigos, no alto de suas montarias, reprimiram o assombro diante do discurso desconexo.
- Ora, pensem nas vantagens ao se atravessar os rios! - gritou o homem de túnica. - Mas já chega dessa história. Eu sou Harkle. Em que posso ser útil?
- Harkle Harpell? - Régis perguntou, com uma risadinha.
O homem fez uma reverência.
- Bruenor do Vale do Vento Gélido, esse sou eu - proclamou Bruenor ao recuperar a voz. - Meus amigos e eu andamos centenas de quilômetros em busca dos conselhos
dos magos de Sela Longa...
Ele notou que Harkle, distraído pela presença do drow, já não lhe dava atenção. Drizzt deixara o capuz escorregar para trás de propósito, para julgar a reação
dos supostamente cultos homens de Sela Longa. O Longinete na estrada ficara surpreso, mas não furioso, e Drizzt precisava descobrir se a vila em geral seria mais
tolerante à sua raça.
- Fantástico - murmurou Harkle. - Simplesmente inacreditável! - Regweld também notara o elfo negro e parecia interessado pela primeira vez desde que o grupo
chegara.
- Teremos permissão para entrar? - perguntou Drizzt.
- Ah, sim, por favor, entrem - respondeu Harkle, tentando sem sucesso disfarçar sua agitação pelo bem da etiqueta.
Adiantando-se com seu cavalo, Wulfgar colocou-os em movimento estrada acima.
- Por aí, não - disse Harkle. - Não pela estrada; é claro, não é real mente uma estrada. Quer dizer, é, mas você não vai conseguir passar.
Wulfgar deteve sua montaria.
- Chega de tolices, mago! - exigiu ele, irritado, pois os anos de desconfiança em relação aos praticantes das artes mágicas transbordavam em meio à
sua frustração. - Podemos entrar ou não?
- Ninguém está com tolices, eu lhe asseguro - disse Harkle, esperando manter o encontro em termos amigáveis.
Mas Regweld interveio.
- É um daqueles - disse acusadoramente o mago gordo, levantando-se de seu banquinho.
Wulfgar fitou-o, curioso.
- Um bárbaro - explicou Regweld. - Um guerreiro treinado para odiar aquilo que não consegue compreender. Vá em frente, guerreiro. Tire esse martelão
aí das suas costas.
Wulfgar hesitou, dando-se conta da própria fúria irracional, e olhou para os amigos em busca de apoio. Ele não queria estragar os planos de Bruenor em nome
da própria estreiteza de espírito.
- Vá em frente - insistiu Regweld, colocando-se no centro da estrada.
- Pegue o seu martelo e o atire em mim. Satisfaça seu desejo sincero de des- mascarar a tolice de um mago! E aproveite para abater um deles! Isso é que
eu chamo de bom negócio! - Ele apontou o próprio queixo. - Bem aqui - admoestou ele.
- Regweld - suspirou Harkle, balançando a cabeça. - Por favor, faça- lhe a vontade, guerreiro. Faça aquele rosto abatido sorrir.
Wulfgar olhou mais uma vez para seus amigos, mas novamente eles não tinham as respostas. Regweld resolveu por ele:
- Filho bastardo de um caribu.
Garra de Palas já girava pelo ar antes que o homem gordo tivesse terminado o insulto, rumando direto para o alvo. Regweld não se esquivou e, pouco antes de
passar por cima da cerca, o martelo se chocou contra algo invisível, mas tão palpável quanto a rocha. Ressoando como um gongo cerimonial, o muro transparente estremeceu
e ondas percorreram toda a sua extensão, visíveis aos espectadores estarrecidos como meras distorções das imagens por trás do muro. Os amigos perceberam pela primeira
vez que a cerca não era real, e sim uma pintura sobre a superfície do muro transparente.
Garra de Palas caiu por terra, como se todo o seu poder tivesse se exaurido, e levou um bom tempo para reaparecer nas mãos de Wulfgar.
A gargalhada de Regweld foi mais de vitória que de graça, mas Harkle meneou a cabeça.
- Sempre às custas dos outros - ralhou. - Você não tinha o direito de fazer isso.
- Ele precisava de uma lição - retorquiu Regweld. - A humildade é sempre um bem valioso para um guerreiro.
Régis agüentou enquanto pôde. Sabia o tempo todo sobre o muro invisível e desatou a rir naquele instante. Drizzt e Bruenor não resistiram e acompanharam o
halfling, e até mesmo Wulfgar, recuperado do choque, sorriu de sua própria "tolice".
Obviamente, Harkle não teve escolha a não ser parar de repreender Regweld e se juntar a eles.
- Entrem - ele implorou aos amigos. - O terceiro mourão é real; ali encontrarão a porteira. Mas, primeiro, desmontem e tirem as selas de seus cavalos.
As suspeitas de Wulfgar retornaram repentinamente, e uma carranca sufocou-lhe o sorriso.
- Explique-se - ele exigiu de Harkle.
- Faça o que ele manda! - ordenou Régis. - Ou terá uma surpresa ainda maior que a última.
Drizzt e Bruenor já haviam escorregado de suas selas, intrigados, mas nem um pouco temerosos em relação ao hospitaleiro Harkle Harpell. Wulfgar ergueu os
braços, impotente, e fez o mesmo, tirou os arreios do ruão e conduziu o animal, junto com o pônei de Régis, atrás dos demais.
Régis encontrou a entrada facilmente e a abriu para os amigos. Entraram sem medo, mas foram subitamente assaltados por lampejos ofuscantes de luz.
Quando seus olhos voltaram a ver, eles descobriram que seus cavalos e pôneis haviam sido reduzidos ao tamanho de gatos!
- O quê? - deixou escapar Bruenor, mas Régis estava rindo novamente e Harkle agia como se nada de incomum tivesse acontecido.
- Peguem-nos e venham comigo - ele instruiu. - Está quase na hora da ceia e a comida d'0 Varapau de Pileque está particularmente deliciosa hoje à noite!
Ele os fez contornar o lado da estranha mansão até uma ponte que cruzava o centro do outeiro. Bruenor e Wulfgar se sentiam ridículos carregando suas montarias,
mas Drizzt aceitava o fato com um sorriso e Régis desfrutava completamente do espetáculo ultrajante; tendo aprendido em sua primeira visita que Sela Longa não era
um lugar para se levar a sério, ele apreciava as idiossincrasias e os hábitos singulares dos Harpells simplesmente em nome da diversão.
Régis sabia que a ponte em arco diante deles serviria como mais um exemplo. Embora o vão sobre o riacho não fosse grande, aparentemente nada sustentava a
ponte e suas pranchas estreitas não tinham adornos, a ponto de não apresentar corrimãos.
Mais um Harpell de túnica, este incrivelmente velho, estava sentado num banquinho, o queixo numa das mãos, resmungando consigo mesmo e aparentemente ignorando
por completo os forasteiros.
Quando Wulfgar, à frente do grupo e ao lado de Harkle, aproximou-se da margem do riacho, deu um salto para trás e pôs-se a ofegar e a gaguejar. Régis deu
uma risadinha, sabendo o que o homenzarrão tinha visto, e Drizzt e Bruenor logo compreenderam.
O riacho SUBIA a encosta da colina, depois desaparecia logo antes do cume, mas os companheiros ouviam a água passando veloz diante deles. Então o riacho reaparecia
sobre o cimo da colina e escorria pela outra encosta.
O velho pôs-se de pé com um salto repentino e correu em direção a Wulfgar.
- Qual o significado disto? - gritava, desesperado. - Como pode ser? - Esmurrou o imenso peito do bárbaro de pura frustração.
Wulfgar procurou uma escapatória, não desejando nem mesmo agarrar o velho para contê-lo, com medo de partir sua forma frágil. Tão abruptamente quanto viera,
o velho correu de volta ao banquinho e reassumiu sua atitude silenciosa.
- Coitado do Chardin - disse Harkle, melancólico. - Foi poderoso em sua época. Foi ele quem mudou o curso do rio. Mas já faz quase vinte anos que
ele está obcecado em descobrir o segredo da invisibilidade sob a ponte.
- E no que o riacho é diferente do muro? - especulou Drizzt. - Sem dúvida, esse encantamento não é desconhecido na comunidade de magos.
- Ah, mas existe uma diferença - foi a resposta rápida de Harkle, empolgado ao descobrir alguém de fora da Mansão de Hera aparentemente interessado
em suas obras. - Um objeto invisível não é tão raro, mas um campo de invisibilidade... - Com um gesto largo da mão, apontou o riacho. - Tudo o que entra no rio naquele
ponto assume a propriedade - ele explicou. - Mas apenas enquanto permanecer no campo. E, para uma pessoa na área encantada - sei disso porque eu mesmo fiz o teste
-, tudo além do campo fica invisível, apesar de a água e os peixes parecerem normais. Isso desafia nosso conhecimento das propriedades da invisibilidade e pode,
na verdade, refletir um rasgão na urdidura de um plano inteiro da existência, ainda desconhecido!
Ele viu que sua agitação excedera a compreensão ou o interesse dos companheiros do drow havia algum tempo, por isso ele se acalmou e educadamente mudou de
assunto.
- O alojamento para seus cavalos fica naquele edifício - disse ele, apontando uma das estruturas baixas de madeira. - A sob-ponte os levará até lá.
Devo cuidar de um outro assunto no momento. Talvez possamos nos encontrar mais tarde na taverna.
Wulfgar, sem entender completamente as indicações de Harkle, pisou de leve na primeira prancha de madeira da ponte e foi prontamente atirado para trás por
alguma força invisível.
- Eu disse a sob-ponte - gritou Harkle, apontando o lado de baixo da ponte. - Vocês não podem atravessar o rio deste lado pela sobreponte; ela é usada
para voltar! E para não haver discussões - ele explicou.
Wulfgar tinha suas dúvidas sobre uma ponte que não enxergava, mas não quis parecer covarde diante dos amigos e do mago. Colocou-se ao lado do arco ascendente
da ponte e cautelosamente esticou o pé em direção à parte de baixo da estrutura de madeira, tateando em busca da travessia invisível. Havia apenas ar e a corrente
imperceptível de água logo abaixo de seu pé, e ele hesitou.
- Vamos - estimulou Harkle.
Wulfgar mergulhou de cabeça, preparando-se para cair na água. Mas, para sua absoluta surpresa, ele não caiu para baixo. Ele caiu para cima!
- Aaah! - gritou o bárbaro, ao bater com a cabeça no fundo da ponte.
Ficou estendido ali durante um bom tempo, incapaz de se orientar, de costas sobre o fundo da ponte, olhando para baixo em vez de para cima.
- Viu! - foi o grito agudo do mago. - A sob-ponte!
Drizzt foi o seguinte, saltou para a área encantada com uma cambalhota fácil e pousou suavemente ao lado de seu amigo.
- Você está bem? - perguntou.
- A estrada, meu amigo - gemeu Wulfgar. - Tenho saudades da estrada e dos orcs. É mais seguro.
Drizzt o ajudou a se manter de pé, pois a mente do bárbaro protestou o caminho todo contra ficar de cabeça para baixo sob a ponte, com um riacho invisível
correndo sobre sua cabeça.
Bruenor também tinha lá suas reservas, mas uma provocação do halfling o fez seguir em frente e logo os companheiros pisavam a relva do mundo natural na outra
margem do riacho. Dois edifícios se erguiam adiante e eles se dirigiram para o menor deles, aquele que Harkle indicara.
Uma mulher de túnica azul os recebeu à porta.
- Quatro? - ela perguntou retoricamente. - Vocês deveriam ter mandado avisar.
- Harkle nos enviou - Régis explicou. - Não somos destas bandas. Desculpe-nos por ignorarmos os seus costumes.
- Muito bem, então - bufou a mulher. - Vamos entrando. Estamos, na verdade, excepcionalmente tranqüilos para esta época do ano. Estou certa de que
tenho espaço para seus cavalos. - Ela os conduziu ao interior da sala principal da estrutura, uma câmara quadrangular. Todas as paredes estavam recobertas, do chão
ao teto, por pequenas gaiolas, grandes o suficiente para um cavalo do tamanho de um gato esticar as pernas. Muitas estavam ocupadas, as placas de identificação indicavam
estarem reservadas para determinados membros do clã Harpell, mas a mulher encontrou quatro completamente vazias e dentro delas colocou os cavalos dos companheiros.
- Podem pegá-los quando quiserem - ela explicou, entregando a cada um deles uma chave para a gaiola de sua respectiva montaria. Ela se deteve quando
chegou a Drizzt, estudando-lhe os traços formosos. - O que temos aqui? - ela perguntou, sem perder o tom de voz calmo e monótono. - Não me informaram da sua chegada,
mas tenho certeza de que muitos desejarão uma audiência com você antes de partirem! Nunca vimos alguém da sua espécie.
Drizzt meneou a cabeça e não respondeu, sentindo-se cada vez mais desconfortável com esse novo tipo de atenção. De algum modo, aquilo parecia aviltá-lo ainda
mais que as ameaças dos camponeses ignorantes. Contudo, ele compreendia aquela curiosidade e imaginou que devia aos magos pelo menos algumas horas de conversa.
O Varapau de Pileque, nos fundos da Mansão de Hera, preenchia uma câmara circular. O bar ficava no meio, como o eixo de uma roda, e dentro de seu amplo
perímetro ficava outro cômodo, uma cozinha anexa. Um homem peludo, calvo e de braços descomunais esfregava incessantemente a superfície lustrosa do bar com um pano,
mais para passar o tempo que para limpar bebida derramada.
Mais ao fundo, num palco elevado, instrumentos musicais tocavam-se sozinhos, guiados pelas revoluções bruscas de um mago de cabelos brancos que portava uma
varinha e vestia calças pretas e um colete negro. Sempre que os instrumentos atingiam um crescendo, o mago apontava sua varinha e estalava os dedos da mão livre,
e uma explosão de centelhas coloridas irrompia de cada um dos quatro cantos do palco.
Os companheiros tomaram uma mesa à vista do mago que se apresentava. Tiveram liberdade para escolher o local, pois aparentemente eram os únicos fregueses
no recinto. As mesas também eram circulares, feitas de boa madeira, e ostentavam como peça central uma jóia imensa, verde e multifacetada sobre um pedestal de prata.
- Nunca tinha ouvido falar de um lugar mais esquisito - resmungou Bruenor, constrangido desde a sob-ponte, mas resignado diante da necessidade de falar
com os Harpells.
- Nem eu - disse o bárbaro. -Tomara que partamos em breve.
- Vocês dois estão presos nas câmaras estreitas de suas mentes - ralhou Régis. - É um lugar para se apreciar, e vocês sabem que aqui nenhum perigo
nos espreita. - Ele piscou quando seu olhar recaiu sobre Wulfgar. - Nada sério, de qualquer maneira.
- Sela Longa nos oferece um descanso há muito necessário - acrescentou Drizzt. - Aqui, podemos traçar o curso de nossa próxima jornada em segurança
e voltar à estrada revigorados. Foram duas semanas desde o vale até Luskan, e quase mais uma até aqui, sem descanso. A fadiga esgota a força e tira a vantagem de
um guerreiro habilidoso. - Ele olhou particularmente para Wulfgar ao completar o raciocínio. - Um homem cansado comete erros. E os erros cometidos nos ermos são,
geralmente, fatais.
- Então, vamos relaxar e desfrutar da hospitalidade dos Harpells - disse Régis.
- Concordo - disse Bruenor, olhando ao redor -, mas que seja breve esse descanso. E onde, nos nove infernos, se meteu a criada? Ou será que a gente
tem que se servir sozinho prá conseguir comida e bebida?
- Se quiser algo, basta pedir - veio uma voz do centro da mesa. Tanto Wulfgar quanto Bruenor se levantaram imediatamente, em guarda. Drizzt notou o
fulgor de luz no interior da pedra verde e estudou o objeto, adivinhando imediatamente a função do enfeite. Olhou por sobre o ombro, para o taverneiro, que tinha
ao seu lado uma jóia semelhante.
- Um dispositivo de cristalomancia - explicou o drow aos amigos, hora eles, àquela altura, tivessem chegado à mesma conclusão e se sentissem muito idiotas
ali de pé, no meio de uma taverna vazia, com as armas nas mãos.
Régis mantinha a cabeça abaixada, os ombros a estremecer com os soluços provocados pelo riso.
- Ora! 'Cê sabia o tempo todo! - Bruenor grunhiu para ele. - 'Cê 'tá se divertindo demais às nossas custas, Ronca-bucho - o anão avisou. - Por mim já 'tô
começando a me perguntar quanto tempo mais nossa estrada ainda vai ter lugar prá você.
Régis ergueu a cabeça diante do olhar feroz de seu amigo anão, igualando-o subitamente com uma firmeza toda própria nos olhos.
- Caminhamos e cavalgamos quase seiscentos e cinqüenta quilômetros juntos! - ele retorquiu. - Enfrentamos ventos frios e ataques de orcs, brigas e
batalhas com espíritos. Permita-me um pouco de diversão, meu bom anão. Se você e Wulfgar tirassem esse peso das costas e enxergassem o verdadeiro encanto do lugar,
também estariam dando risada!
Wulfgar, de fato, sorriu. Então, de repente, atirou a cabeça para trás e urrou, livrando-se de toda a sua raiva e de todo o seu preconceito, para que pudesse
aceitar o conselho do halfling e encarar Sela Longa com mente aberta. Até mesmo o mago-músico parou de tocar para observar o espetáculo proporcionado pelo grito
catártico do bárbaro.
E, ao terminar, Wulfgar riu. Não uma risadinha divertida, mas uma gargalhada estrondosa que brotou de seu ventre e explodiu em sua boca escancarada.
- Cerveja! - disse Bruenor à jóia. Quase imediatamente, um disco flutuante de luz azul passou por cima do bar, levando até eles cerveja forte em quantidade
suficiente para durar a noite toda. Alguns minutos depois, todos os vestígios das tensões da estrada haviam se desfeito e eles brindavam e sorviam a bebida de suas
canecas com entusiasmo.
Apenas Drizzt se manteve reservado, bebericando a cerveja e permanecendo alerta. Não pressentia o perigo ali, mas desejava manter o controle diante das inevitáveis
perguntas dos magos.
Daí a pouco, os Harpells e seus amigos começaram a entrar em profusão n'O Varapau de Pileque. Os companheiros eram os únicos recém-chegados naquela noite
e todos os comensais trouxeram suas mesas para perto, partilhando histórias de viagem e brindes de amizade eterna durante o excelente jantar e, mais tarde, ao lado
de uma cálida lareira. Muitos, liderados por Harkle, ocuparam-se de Drizzt e do interesse que nutriam pelas cidades escuras dos drow, e o elfo negro não se importou
muito em responder-lhes as Perguntas.
Então vieram as indagações sobre a jornada que trouxera os companheiros tão longe. Bruenor, na verdade, foi quem as incitou, saltando sobre a mesa e proclamando:
- Salão de Mitral, lar dos meus ancestrais, você vai ser meu novamente!
Drizzt ficou preocupado. A se julgar pela reação curiosa da assembléia, o nome da antiga terra natal de Bruenor era conhecido ali, ao menos nas lendas. O
drow não temia ações malévolas por parte dos Harpells, mas simplesmente não queria o propósito da aventura acompanhando, ou até mesmo precedendo, a ele e a seus
amigos na etapa seguinte da jornada. Outras pessoas poderiam muito bem ter algum interesse em descobrir a localização de uma antiga fortaleza dos anões, um lugar
a que as lendas faziam referência como "as minas cortadas por rios de prata".
Drizzt chamou Harkle de lado.
- Já se faz tarde. Há quartos disponíveis na aldeia?
- Bobagem - irritou-se Harkle. - Vocês são meus convidados e permanecerão aqui. Os quartos já foram preparados.
- E o preço por tudo isto?
Harkle afastou a bolsa de Drizzt.
- O preço na Mansão de Hera é uma ou duas boas histórias e trazer um pouco de entretenimento à nossa existência. Você e seus amigos já pagaram por
um ano ou mais!
- Nossos agradecimentos - replicou Drizzt. - Acho que é hora de meus companheiros descansarem. Temos uma longa jornada à nossa frente, e muito mais.
- Quanto à estrada adiante - disse Harkle -, arranjei uma reunião com DelRoy, o mais velho dos Harpells atualmente em Sela Longa. Ele, mais que qualquer
um de nós, pode ser capaz de ajudar a apontar o caminho.
- Ótimo - disse Régis, inclinando-se para ouvir a conversa.
- Essa reunião tem um pequeno preço - disse Harkle a Drizzt. - DelRoy deseja uma audiência privada com você. Há muitos anos ele estuda os drow, mas
pouca coisa chega até nós.
- Concordo - replicou Drizzt. - Agora, já é hora de irmos para a cama.
- Vou lhes mostrar o caminho.
- A que horas encontraremos DelRoy? - perguntou Régis.
- De manhã - respondeu Harkle.
Régis riu, depois se inclinou para o outro lado da mesa onde Bruenor se achava sentado com uma caneca imóvel em suas mãos nodosas, sem piscar os olhos. Régis
deu ao anão um empurrãozinho e Bruenor tombou, caindo no chão com um baque surdo e sem emitir um gemido sequer de protesto.
À noitinha seria melhor - observou o halfling, apontando para uma outra mesa do outro lado da sala.
Sob a qual se achava Wulfgar.
Harkle olhou para Drizzt.
- À noitinha - ele concordou. - Vou falar com DelRoy.
Os quatro amigos passaram o dia seguinte se recuperando e desfrutando das maravilhas sem fim da Mansão de Hera. Drizzt foi chamado logo cedo para uma reunião
com DelRoy, enquanto os demais eram guiados por Harkle numa excursão pela casa principal, passando por dúzias de laboratórios de alquimia, salas de cristalomancia,
câmaras de meditação e várias salas protegidas especificamente projetadas para a conjuração de seres de outros mundos. Uma estátua de um tal Matherly Harpell se
mostrou particularmente interessante, já que a estátua era, na verdade, o próprio mago. Um coquetel malsucedido de poções deixara-o petrificado, literalmente.
E havia Pau-mandado, o cão da família, que outrora fora o primo em segundo grau de Harkle: mais uma vez, um coquetel ruim.
Harkle não guardou segredos de seus convidados, recontou a história de seu clã, suas realizações e seus fracassos, em geral desastrosos. E ele falou sobre
as terras ao redor de Sela Longa, dos bárbaros uthgardt que os companheiros haviam encontrado, os Pôneis Celestes, e as outras tribos que poderiam ainda encontrar
ao longo do caminho.
Bruenor ficou feliz pelo fato de aquela parada para descanso trazer também informações valiosas. Seu objetivo de encontrar o Salão de Mitral o angustiava
a todo momento, todos os dias, e sempre que passava algum tempo sem fazer progressos, mesmo que simplesmente precisasse repousar, ele sentia a agonia da culpa.
- 'Cê tem que querer com todo o coração - ele se repreendia com freqüência.
Mas Harkle lhe fornecera dicas importantes sobre aquelas terras, o que, sem dúvida, ajudaria em sua causa no futuro, e ele estava satisfeito quando se sentou
para a ceia n'O Varapau de Pileque. Drizzt se juntou a eles, taciturno e silencioso, e recusou-se a falar quando questionado sobre sua discussão com DelRoy.
- Pense na reunião ainda por vir - foi a resposta do drow às perguntas de Bruenor. - DelRoy é muito velho e sábio. Talvez ele seja nossa melhor esperança
de algum dia encontrarmos a estrada para o Salão de Mitral.
Bruenor estava de fato pensando na reunião por vir.
E Drizzt permaneceu em silêncio durante o resto da refeição, considerando as histórias e as imagens de sua terra natal que ele dividira com DelRoy, recordando
a beleza única de Menzoberranzan.
E os corações malévolos que a haviam espoliado.
Pouco depois, Harkle levou Drizzt, Bruenor e Wulfgar para ver o velho mago. Régis pediu para não participar da reunião, dando preferência a uma outra festa
na taverna. Eles encontraram DelRoy numa câmara pequena, sombria, à luz de tochas, e os bruxuleios de luz aumentavam o ar de mistério no rosto envelhecido do mago.
Bruenor e Wulfgar concordaram imediatamente com as observações de Drizzt sobre DelRoy, pois décadas de experiência e incontáveis aventuras estavam visivelmente gravadas
nos traços de sua pele curtida e morena. Seu corpo agora lhe faltava, era visível, mas o brilho de seus olhos pálidos revelava uma vida interior e deixava pouca
dúvida quanto à lucidez de sua mente.
Bruenor abriu seu mapa sobre a mesa circular da sala, ao lado dos livros e rolos de pergaminho que DelRoy trouxera. O velho mago o estudou cuidadosamente
durante alguns segundos, traçando a linha que trouxera os companheiros até Sela Longa.
- Do que você se lembra sobre os antigos salões, anão? - ele perguntou.
- Marcos na paisagem ou povos vizinhos?
Bruenor chacoalhou a cabeça.
- As imagens na minha cabeça mostram os salões profundos e as oficinas, o som do ferro sobre a bigorna. A debandada do meu clã começou nas montanhas;
isso é tudo o que sei.
- O norte é um território vasto - comentou Harkle. - Muitas cordilheiras extensas poderiam abrigar uma fortaleza assim.
- E por isso que o Salão de Mitral, apesar de toda a sua suposta riqueza, nunca foi encontrado - replicou DelRoy.
- Daí o nosso dilema - disse Drizzt. - Decidir onde começar a procurar!
- Ah, mas vocês já começaram - respondeu DelRoy. - Foi uma sábia decisão vir para o interior; a maioria das lendas sobre o Salão de Mitral se origina
nas terras a leste daqui, ainda mais distantes da costa. Parece provável que seu objetivo esteja entre Sela Longa e o grande deserto; norte ou sul, não sei dizer.
Fizeram bem.
Drizzt assentiu e cortou a conversa quando o velho mago voltou a examinar silenciosamente o mapa de Bruenor, marcando os pontos estratégicos e consultando
com freqüência o monte de livros que havia empilhado ao lado da mesa. Bruenor rondava DelRoy, ansioso por qualquer conselho ou revelação. Os anões eram um povo paciente,
uma característica que permitia que sua arte eclipsasse as obras de outras raças, e Bruenor manteve a calma o melhor que pôde, sem querer pressionar o mago.
Algum tempo depois, satisfeito por ter completado a organização de todas as informações pertinentes, DelRoy falou mais uma vez.
Aonde iriam a seguir - ele perguntou a Bruenor -, se aqui não conseguissem aconselhamento?
O anão voltou a olhar o mapa, com Drizzt a espiar por sobre seu ombro, e traçou uma linha em direção ao leste com o dedo hirsuto. Olhou para Drizzt em busca
de anuência ao alcançar um certo ponto que eles já haviam discutido anteriormente na estrada. O drow assentiu.
Cidadela Adbar - declarou Bruenor, batendo com o dedo sobre o mapa.
- A fortaleza dos anões - disse DelRoy, não muito surpreso. - Excelente escolha. Pode ser que o Rei Harbromm e seus anões venham a ser de grande ajuda.
Estão lá, nas Montanhas de Mitral, há incontáveis séculos.
Sem dúvida, Adbar era antiga mesmo nos dias em que os martelos do Salão de Mitral repicavam com as canções dos anões.
- A Cidadela Adbar é o que nos aconselha, então? - perguntou Drizzt.
- E sua própria escolha, mas não posso oferecer um destino melhor - respondeu DelRoy. - Mas o trajeto é longo, cinco semanas pelo menos, se tudo correr
bem. E na estrada oriental além de Sundabar, isso é improvável. Ainda assim, pode ser que vocês cheguem lá antes das primeiras geadas do inverno, mas eu duvido que
sejam capazes de conseguir as informações com Harbromm e retomar sua jornada antes da próxima primavera!
- Então a escolha parece clara - declarou Bruenor. - Para Adbar!
- Há mais coisas que você deve saber - disse DelRoy. - E este é o verdadeiro conselho que darei a você: não deixe que a visão promissora ao fim da
estrada ofusque as possibilidades ao longo da estrada. Seu curso até aqui seguiu trajetos diretos, primeiro do Vale do Vento Gélido até Luskan, depois de Luskan
até aqui. Há pouca coisa, a não ser monstros, ao longo de qualquer uma dessas duas estradas para dar a um viajante motivo para se desviar. Mas, na jornada para Adbar,
vocês passarão por Lua Argêntea, cidade de sabedoria e tradição, e da Senhora Alustriel e a Câmara dos Sábios, a melhor biblioteca de todo o norte. Muitos naquela
bela cidade podem ser de mais assistência à sua demanda do que eu, ou até mesmo que o Rei Harbromm.
- E, além de Lua Argêntea, vocês encontrarão Sundabar, também uma antiga fortaleza dos anões, onde governa Helm, afamado amigo dos anões. Os laços
dele com sua raça são fortes, Bruenor, de muitas gerações atrás. Laços, talvez, com sua própria gente.
- Possibilidades! - disse Harkle, exultante.
Consideraremos seu sábio conselho, DelRoy - disse Drizzt.
- É - concordou o anão, animado. - Quando a gente deixou o vale, eu não tinha idéia do que fazer depois de Luskan. Minhas esperanças eram seguir
uma estrada de palpites, já esperando que mais da metade não tivesse valor. O halfling foi sábio trazendo a gente prá este lugar, pois encontramos uma trilha de
pistas! E pistas levam a mais pistas! - Ele olhou ao redor, para o grupo entusiasmado - Drizzt, Harkle e DelRoy - e então notou Wulfgar, ainda sentado em silêncio
em sua cadeira, os braços descomunais cruzados sobre o peito, assistindo a tudo sem emoção aparente. - E você, garoto? - indagou Bruenor. - Tem alguma idéia?
Wulfgar se inclinou, repousando os cotovelos sobre a mesa.
- Não é minha a demanda nem a terra - ele explicou. - Acompanho você, confiante em qualquer senda que escolher.
- E alegro-me com seu júbilo e seu arrebatamento - ele acrescentou baixinho.
Bruenor tomou a explicação como completa e virou-se novamente para DelRoy e Harkle, desejando algumas informações específicas sobre a estrada adiante. Drizzt,
porém, sem se convencer da sinceridade da última declaração de Wulfgar, deixou seu olhar persistir sobre o jovem bárbaro, notando a expressão nos olhos dele enquanto
observava Bruenor.
Arrependimento?
Passaram mais dois dias sossegados na Mansão de Hera, apesar de Drizzt ser acossado constantemente pelos curiosos Harpells, que queriam mais informações sobre
sua raça tão raramente vista. Ele aceitou as perguntas com cortesia, compreendendo-lhes as boas intenções, e respondeu da melhor maneira que pôde. Quando Harkle
veio escoltá-los para sair na quinta manhã, estavam descansados e prontos para dar prosseguimento aos seus negócios. Harkle prometeu arranjar a devolução dos cavalos
aos donos de direito, dizendo que era o mínimo que poderia fazer pelos estrangeiros que haviam trazido tamanho entretenimento à vila.
Mas, na verdade, os amigos haviam se beneficiado muito mais com a estada. DelRoy e Harkle haviam dado a eles informações valiosas e, talvez o mais importante,
haviam lhes restaurado a esperança na missão. Bruenor estava de pé e ativo antes da aurora daquela última manhã, a adrenalina a correr nas veias com a idéia de voltar
à estrada agora que ele sabia aonde ir.
Deixaram a mansão, lançando muitas despedidas e olhares tristonhos por sobre os ombros - até mesmo Wulfgar, que chegara ali tão inflexível em sua antipatia
para com os magos.
Eles cruzaram a sobreponte, despediram-se de Chardin, perdido demais em suas meditações sobre o riacho para sequer notá-los, e logo descobriram que a estrutura
ao lado do estábulo em miniatura era uma fazenda experimental.
- Isto mudará a fisionomia do mundo! - Harkle assegurou-lhes, desviando-os um pouco na direção do edifício para olhar mais de perto. Drizzt adivinhou
o que o mago quis dizer mesmo antes de entrarem, tão logo ouviu os balidos agudos e os trinados cricrilantes. Como o estábulo, a fazenda compreendia uma sala, embora
parte dela não tivesse telhado e fosse, na verdade, um pasto entre quatro paredes. Vacas e ovelhas do tamanho de gatos ruminavam por ali, enquanto galinhas do tamanho
de camundongos escapavam por entre as minúsculas pernas dos animais.
- É claro que esta é a primeira temporada e não vimos ainda os resultados - explicou Harkle -, mas esperamos uma alta produção, considerando-se a pequena
quantidade de recursos envolvida.
- Eficiência - riu Régis. - Menos comida, menos espaço e você pode fazê-los voltar ao tamanho normal quando quiser comê-los!
- Exatamente - disse Harkle.
A seguir, foram ao estábulo, onde Harkle escolheu excelentes montarias para eles, dois cavalos e dois pôneis. Eram presentes, Harkle explicou, a serem devolvidos
apenas ao bel-prazer dos companheiros.
- É o mínimo que podemos fazer para ajudar em tão nobre missão - disse Harkle, com uma reverência, para evitar os protestos de Bruenor e Drizzt.
A estrada serpenteava, seguindo em frente pela encosta atrás da colina. Harkle parou por um instante, coçando o queixo, uma expressão perplexa no rosto.
- O sexto mourão - disse a si mesmo -, mas o da esquerda ou o da direita?
Um homem que trabalhava no alto de uma escada (mais uma divertida curiosidade: ver uma escada se alçar acima da balaustrada falsa da cerca e descansar em
pleno ar contra o topo do muro invisível) veio em seu auxílio.
- Esqueceu de novo? - ele riu de Harkle. Apontou um dos lados da balaustrada. - Sexto mourão à sua esquerda!
Harkle afastou seu constrangimento com um encolher de ombros e seguiu em frente.
Os companheiros observaram o trabalhador, curiosos, enquanto deixavam a colina, as montarias ainda enfiadas debaixo dos braços. Ele trazia um balde e alguns
trapos e esfregava várias manchas castanho-avermelhadas no muro invisível.
- Aves que voam baixo - explicou Harkle, a título de desculpas. - Mas, nada temam. Regweld está tentando resolver o problema neste exato momento.
- Agora, chegamos ao final do nosso encontro, embora muitos anos venham a se passar antes que vocês sejam esquecidos na Mansão de Hera! A estrada
leva diretamente à aldeia de Sela Longa. Vocês podem reabastecer seus suprimentos por lá: tudo já foi arranjado.
- Meus mais profundos cumprimentos a você e a sua gente - disse Bruenor, com uma reverência. - Por certo que Sela Longa foi uma parada alegre numa
estrada triste! - Os demais rapidamente concordaram.
- Adeus, então, Companheiros do Salão - suspirou Harkle. - Os Harpells esperam receber um pequeno sinal de gratidão quando vocês finalmente encontrarem
o Salão de Mitral e colocarem as antigas forjas para arder novamente!
- O tesouro de um rei! - assegurou-lhe Bruenor quando se puseram a caminho.
Estavam de volta à estrada, além das fronteiras de Sela Longa, antes do meio-dia, e as montarias trotavam fácil e com os alforjes cheios.
- Bem, o que 'cê prefere, elfo - Bruenor perguntou mais tarde naquele mesmo dia -, as espetadelas da lança de um soldado enfurecido ou o nariz bisbilhoteiro
de um mago curioso?
Drizzt riu defensivamente ao pensar na pergunta. Sela Longa tinha sido tão diferente de qualquer outro lugar em que já estivera e, ainda assim, tão igual.
Em todo caso, sua cor o destacava como uma singularidade e não era tanto a hostilidade do tratamento que geralmente recebia que o incomodava, mas os lembretes constrangedores
de que seria sempre diferente.
Somente Wulfgar, que cavalgava ao lado dele, ouviu o murmúrio que lhe serviu de resposta:
- A estrada.

8. NÃO EXISTE HONRA

Por que vocês se aproximam da cidade antes do amanhecer? - o Guardião da Noite do Portão Norte perguntou ao emissário da caravana mercante que havia parado
pouco antes da muralha de Luskan. Jierdan, em seu posto ao lado do Guardião da Noite, assistia a tudo com especial interesse, certo de que aquele grupo viera de
Dez-Burgos.
- Não abusaríamos das leis da cidade se nosso assunto não fosse urgente - respondeu o representante. - Não descansamos há dois dias. - Outro homem
emergiu de um agrupamento de carroças e trazia um corpo flácido sobre os ombros.
- Assassinado na estrada - explicou o representante. - E outro membro do grupo foi seqüestrado. Cattiebrie, filha do próprio Bruenor Martelo de Batalha.
- Uma donzela anã? - deixou escapar Jierdan, suspeitando outra coisa, mas disfarçando sua agitação com medo de que isso pudesse implicá-lo.
- Não, não é anã. Uma mulher - lamentou o representante. - A mais bela em todo o vale, talvez em todo o norte. O anão acolheu a órfã ainda criança
e reclamou-a como sua filha.
- Orcs? - perguntou o Guardião da Noite, mais preocupado com os possíveis perigos na estrada do que com a sorte de uma única mulher.
- Não foi obra dos orcs - respondeu o representante. - Dissimulação e astúcia tiraram Cattiebrie de nós e mataram o condutor. Sequer descobrimos o
ato hediondo até a manhã seguinte.
Jierdan não precisou de mais explicações nem mesmo de uma descrição mais completa de Cattiebrie para juntar as peças do quebra-cabeça. A ligação da moça a
Bruenor explicava o interesse de Entreri por ela. Jierdan olhou para o horizonte oriental e para os primeiros raios da aurora que se aproximava, ansioso por se desembaraçar
de seus deveres na muralha para que pudesse relatar suas descobertas a Dendibar. Aquela notícia deveria ajudar a aplacar a ira do mago variegado por ter o soldado
perdido o rastro do drow ainda nas docas.
- Ele não os encontrou? - sibilou Dendibar para Sidnéia.
- Nada encontrou a não ser uma trilha fria - respondeu a feiticeira mais jovem. - Se ainda estiverem nas docas, estão bem disfarçados.
Dendibar fez uma pausa para considerar o relatório de sua aprendiza. Algo estava errado naquele cenário. Quatro personagens tão distintivos não poderiam ter.
simplesmente desaparecido.
- Descobriu alguma coisa sobre o assassino então, ou sobre a companheira dele?
- Os vagabundos nos becos o temem. Até mesmo os rufiões o evitam respeitosamente.
- Então nosso amigo é conhecido no submundo - refletiu Dendibar.
- Um assassino de aluguel, eu diria - raciocinou Sidnéia. - Provavelmente do sul. Talvez de Águas Profundas, mas deveríamos ter ouvido mais sobre ele
se esse fosse o caso. Talvez mais ao sul ainda, das terras fora do nosso alcance.
- Interessante - replicou Dendibar, tentando formular alguma teoria para satisfazer a todas as variáveis. - E a moça?
Sidnéia deu de ombros:
- Não acredito que ela o acompanhe de boa vontade, apesar de não ter tentado se livrar dele. E, quando você o viu na visão de Morkai, ele viajava só.
- Ele a adquiriu - veio uma resposta inesperada desde a porta. Jierdan entrou na sala.
- O quê? Sem ser anunciado? - escarneceu Dendibar.
- Tenho novidades que não poderiam esperar - respondeu Jierdan audaciosamente.
- Eles deixaram a cidade? - sugeriu Sidnéia, dando voz às suas suspeitas para aumentar a fúria que adivinhava no rosto pálido do mago variegado. Sidnéia
compreendia perfeitamente bem os perigos e as dificuldades das docas e quase tinha pena de Jierdan por incorrer na ira do implacável Dendibar numa situação completamente
fora de seu controle. Mas Jierdan ainda era seu rival pelas graças do mago variegado, e ela não deixaria a compaixão atrapalhar suas ambições.
Não - retrucou Jierdan. - A novidade que trago não se refere ao grupo do drow - Ele voltou a fitar Dendibar. - Uma caravana chegou a Luskan hoje, em busca
da mulher.
- Quem é ela? - perguntou Dendibar, de repente muito interessado, já esquecendo sua raiva por causa da intromissão.
¦ - A filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha - replicou Jierdan. - - Cattiebrie! É claro! - sibilou Dendibar, familiarizado com as pessoas mais
importantes de Dez-Burgos. - Eu devia ter adivinhado! - Ele se voltou para Sidnéia. - Meu respeito pelo nosso misterioso cavaleiro cresce a cada dia. Encontre-o
e traga-o de volta!
Sidnéia assentiu, embora temesse que o pedido de Dendibar se mostrasse mais difícil de realizar do que acreditava o mago variegado, provavelmente uma tarefa
muito além até mesmo de suas habilidades.
Ela passou aquela noite, até as primeiras horas da manhã seguinte, vasculhando as vielas e os pontos de encontro da zona portuária. Mas, mesmo usando seus
contatos nas docas e todos os truques mágicos à sua disposição, não encontrou sinal de Entreri e Cattiebrie, nem ninguém disposto ou capaz de fornecer qualquer informação
que pudesse ajudá-la na busca.
Cansada e frustrada, ela voltou à Torre das Hostes no dia seguinte, passando pelo corredor que levava ao quarto de Dendibar, muito embora o mago lhe tivesse
ordenado que se apresentasse diretamente a ele assim que retornasse. Sidnéia não tinha a menor disposição para ouvir a arenga do mago variegado a respeito de seu
fracasso.
Ela entrou no pequeno quarto, próximo ao tronco principal da Torre das Hostes, na ala norte, abaixo dos aposentos do Mestre do Torreão Norte, e aferrolhou
as portas, selando-as com um encantamento contra intromissões indesejadas.
Ela mal caíra na cama quando a superfície de seu cobiçado espelho de cristalomancia começou a remoinhar e a brilhar.
- Maldito seja, Dendibar - ela resmungou, supondo que a perturbação era obra de seu mestre. Arrastando o corpo cansado até o espelho, fitou as profundezas
do vidro, sintonizou-se ao turbilhão para que a imagem clareasse. Não foi Dendibar quem ela encarou, para seu alívio, mas um mago de uma vila distante, um pretendente
que a impassível Sidnéia mantinha suspenso por um fio de esperança para que pudesse manipulá-lo sempre que precisasse.
- Saudações, bela Sidnéia - disse o mago. - Espero não ter perturbado seu sono, mas é que tenho novidades incríveis!
Normalmente, Sidnéia teria diplomaticamente escutado o mago, fingido interesse na história e educadamente se eximido do encontro. Mas agora, com o peso das
exigências prementes de Dendibar sobre seus ombros, ela não tinha paciência para distrações.
- Não é uma boa hora! - retrucou.
O mago, tão enlevado estava com as próprias novidades, pareceu não lhe notar o tom conclusivo.
- A coisa mais maravilhosa aconteceu em nossa vila - foi dizendo ele.
- Harkle! - Sidnéia gritou para interromper-lhe o ímpeto de tagarelice. O mago se deteve, desconcertado.
- Mas, Sidnéia... - disse ele.
- Uma outra hora - ela insistiu.
- Mas com que freqüência, nos dias de hoje, alguém consegue realmente ver um elfo drow e falar com ele? - persistiu Harkle.
- Não posso... - Sidnéia interrompeu o que ia dizer, assimilando as últimas palavras de Harkle. - Um elfo drow? - ela balbuciou.
- Sim - foi a resposta exultante do orgulhoso Harkle, emocionado por terem as novidades aparentemente impressionado sua amada Sidnéia. - Drizzt Do'Urden
é o nome dele. Deixou Sela Longa há dois dias somente. Eu teria contado antes, mas a mansão andou simplesmente num alvoroço com essa coisa toda.
- Conte-me mais, meu querido Harkle - disse Sidnéia sedutoramente. - Conte-me tudo.
- Preciso de informações.
Sussurro ficou imóvel ao som da voz inesperada, adivinhando imediatamente de quem se tratava. Sabia que ele estava na cidade e sabia também que ele era o
único capaz de atravessar sorrateiramente suas defesas e entrar nos seus aposentos secretos.
- Informações - Entreri disse novamente, deixando as sombras atrás de um biombo.
Sussurro enfiou o pote de ungüento cicatrizante no bolso e fez uma avaliação do homem. Os boatos falavam dele como o mais mortífero dos assassinos e ela,
bastante familiarizada com essa gente, soube imediatamente que os boatos eram verdadeiros. Sentiu o poder de Entreri e a coordenação desembaraçada de seus movimentos.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - avisou ela, com valentia.
Entreri se moveu para um ponto de observação mais vantajoso a fim de estudar a audaciosa mulher. Ele também ouvira falar dela, uma sobrevivente das ruas violentas,
bela e mortal. Mas, aparentemente, Sussurro perdera um embate. O nariz estava quebrado e desarticulado, esborrachado em sua face.
Sussurro compreendeu o escrutínio. Aprumou os ombros e atirou orgulhosamente a cabeça para trás.
- Um acidente infeliz - ela sibilou.
- Não é da minha conta - Entreri devolveu. - Vim aqui atrás de informações.
Sussurro deu-lhe as costas para se ocupar de sua rotina, tentando não parecer incomodada.
- Meu preço é alto - ela disse com toda serenidade.
Voltou-se para Entreri e o intenso, porém assustador aspecto de calma no rosto dele lhe revelou, sem sombra de dúvida, que sua vida seria a única recompensa
por sua cooperação.
- Procuro quatro companheiros - disse Entreri. - Um anão, um drow, um rapaz e um halfling.
Sussurro não estava acostumada àquele tipo de situação. As bestas não estavam ali para apoiá-la, nenhum guarda-costas esperava pelo sinal dela atrás de uma
porta secreta nas proximidades. Tentou manter a calma, mas Entreri conhecia a profundidade de seu medo. Ela riu de leve e apontou o nariz quebrado.
- Encontrei o seu anão e o drow, Artemis Entreri. - Enfatizou o nome ao pronunciá-lo, esperando que o reconhecimento recolocasse o assassino na defensiva.
- Onde eles estão? - perguntou Entreri, ainda no controle. - E o que lhe pediram?
Sussurro deu de ombros:
- Se ainda estão em Luskan, não sei onde. É mais provável que já tenham partido; o anão tem um mapa das terras do norte.
Entreri considerou as palavras.
- Você não faz jus à sua reputação - disse ele sarcasticamente. - Aceita tamanha injúria e deixa que eles escapem por entre seus dedos?
Os olhos de Sussurro se estreitaram de fúria.
- Escolho cuidadosamente quando lutar - ela sibilou. - Os quatro eram perigosos demais para se tentar uma vingança frívola. Deixe-os ir aonde bem entenderem.
Não quero ter negócios com eles novamente.
A aparência calma de Entreri fraquejou um pouco. Ele já estivera no Alfanje e ouvira falar das façanhas de Wulfgar. E agora isto. Uma mulher como Sussurro
não era facilmente intimidada. Talvez ele devesse realmente reavaliar a força de seus oponentes.
- É destemido o anão - ofereceu Sussurro, percebendo-lhe o desalento e adorando aumentar-lhe o desconforto. - E cuidado com o drow, Artemis Entreri
- ela sibilou incisivamente, tentando, com a severidade de seu tom de voz, relegá-lo a um nível semelhante de respeito pelos companheiros. - Ele caminha por entre
as sombras invisíveis e ataca a partir das trevas. Ele conjura um demônio na forma de um grande gato e...
Entreri se virou e partiu, sem intenção de permitir que Sussurro ganhasse um pouco mais de vantagem.
Deleitando-se com sua vitória, Sussurro não conseguiu resistir à tentação de atirar um último dardo.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - disse ela novamente, readquirindo, com a ameaça, um certo grau de orgulho.
Ela se voltou novamente para a pequena penteadeira e pegou o pote de ungüento, bastante contente consigo mesma. Examinou o ferimento no espelho da penteadeira.
Não estava tão ruim. A pomada o removeria como havia removido tantas cicatrizes, ossos do ofício.
Compreendeu sua estupidez ao ver a sombra deslizar por trás do próprio reflexo no espelho e sentir o ar lhe roçar as costas. Seu ramo de atividade não tolerava
erros e não oferecia uma segunda chance. Pela primeira e última vez na vida, Sussurro deixara o orgulho se elevar acima do discernimento.
Um último gemido lhe escapou dos lábios quando o punhal ajaezado se enterrou em suas costas.
- Eu também escolho com cuidado quando lutar - Entreri sussurrou- lhe ao pé do ouvido.
A manhã seguinte encontrou Entreri às portas de um lugar no qual ele não queria entrar: a Torre das Hostes Arcanas. Sabia que estava ficando sem opções. Convencido
agora de que os companheiros há muito haviam deixado Luskan, o assassino precisava de alguma ajuda mágica para reencontrar a trilha. Levara quase dois anos para
localizar o halfling em Dez-Burgos e sua paciência estava no fim.
Com Cattiebrie ao seu lado, relutante, mas obediente, ele se aproximou da estrutura e foi prontamente escoltado até a sala de audiências de Dendibar, onde
o mago variegado e Sidnéia aguardavam para saudá-lo.
- Eles deixaram a cidade - Entreri disse bruscamente, antes de qual quer troca de cumprimentos.
Dendibar sorriu para mostrar a Entreri que tinha a vantagem dessa vez.
- Pelo menos há uma semana - replicou tranqüilamente.
- E você sabe onde estão - raciocinou Entreri.
Dendibar assentiu e o sorriso ainda se enroscava em suas faces descarnadas.
O assassino não apreciava aquele jogo. Passou um bom tempo avaliando sua contraparte, em busca de alguma dica sobre as intenções do mago. Dendibar fez o mesmo,
ainda muito interessado numa aliança com o formidável matador, mas apenas se os termos lhe fossem favoráveis.
- O preço da informação? - perguntou Entreri.
- Eu nem mesmo sei o seu nome - foi a resposta de Dendibar.
É justo, pensou o assassino. Ele fez uma reverência.
- Artemis Entreri - disse ele, confiante o bastante para dizer a verdade.
- E por que você persegue os companheiros, com a filha do anão a tiracolo? - pressionou Dendibar, revelando suas cartas para dar ao assassino petulante
algo com que se preocupar.
- Isso é da minha conta - sibilou Entreri, e o estreitamento de seus olhos foi a única indicação de que o conhecimento de Dendibar o perturbara.
- Também o é da minha, se é que vamos ser aliados! - gritou Dendibar, levantando-se para parecer alto e ameaçador e intimidar Entreri.
O assassino, porém, pouco se importava com os contínuos esgares do mago, demasiado ocupado em estimar o valor de tal aliança.
- Nada pergunto sobre seus assuntos com eles - Entreri replicou, por fim. - Diga-me apenas a qual dos quatro se refere.
Foi a vez de Dendibar refletir. Ele queria Entreri em sua corte, se não por outra razão que o temor de que o assassino viesse a atrapalhá-lo. E gostava da
idéia de não precisar revelar nada sobre o artefato que procurava àquele homem tão perigoso.
- O drow tem algo que me pertence ou sabe onde posso encontrá-lo - disse ele. - Eu o quero de volta.
- E o halfling é meu - exigiu Entreri. - Onde estão eles?
Dendibar fez um sinal para Sidnéia.
- Eles passaram por Sela Longa - disse ela. - E estão a caminho de Lua Argêntea, mais de duas semanas a leste daqui.
Os nomes eram desconhecidos para Cattiebrie, mas ela estava feliz pelo fato de seus amigos levarem uma boa dianteira. Precisava de tempo para arranjar um
plano, mas questionava a própria eficiência cercada como estava por captores tão poderosos.
- E o que você propõe? - perguntou Entreri.
- Uma aliança - respondeu Dendibar.
- Mas eu já tenho a informação de que preciso - riu Entreri. - O que eu ganharia me aliando a você?
- Meus poderes levarão você até eles e o ajudarão a derrotá-los. Eles não são uma força desprezível. Considere a aliança como um benefício mútuo.
- Você e eu na estrada? Um livro e uma escrivaninha parecem lhe convir melhor, mago.
Dendibar fitou o assassino arrogante.
- Garanto-lhe que posso ir aonde desejar com uma eficiência além da sua imaginação - grunhiu ele. No entanto, desfez-se rapidamente da raiva, estando
mais interessado em completar a negociação. - Mas devo permanecer aqui. Sidnéia irá em meu lugar e Jierdan, o soldado, será sua escolta. Entreri não gostou da idéia
de viajar com Jierdan, mas decidiu não forçar a questão. Poderia ser interessante - e útil - dividir a caçada com a Torre das Hostes Arcanas. Ele concordou com os
termos.
- E quanto a ela? - Sidnéia perguntou, apontando Cattiebrie.
- Ela vai comigo - foi a resposta rápida de Entreri.
- É claro - concordou Dendibar. - Não há por que desperdiçar uma refém tão valiosa.
- Somos três contra cinco - raciocinou Sidnéia. - Se as coisas não se resolverem tão facilmente como vocês dois parecem esperar, a garota pode se mostrar
nossa ruína.
- Ela vai! - exigiu Entreri.
Dendibar já tinha a solução. Lançou um sorriso desfigurado para Sidnéia.
- Leve Bok - casquinou ele.
O rosto de Sidnéia se desfez com a sugestão, como se a ordem de Dendibar tivesse lhe roubado o desejo pela caçada.
Entreri não tinha certeza se gostava ou não da nova marcha dos acontecimentos.
Percebendo o desconforto do assassino, Dendibar, com um sinal, conduziu Sidnéia até um gabinete acortinado ao lado da sala.
- Bok - ela chamou baixinho assim que lá chegou, com um sinal de estremecimento na voz.
A coisa atravessou a cortina. Com dois metros e meio de altura e um metro de ombro a ombro, o monstro caminhou a passos rígidos até se colocar ao lado da
mulher. Parecia um homem descomunal e, de fato, o mago utilizara pedaços de corpos humanos para compor boa parte da coisa. Bok era maior e mais sólido que qualquer
homem vivo, quase do tamanho de um gigante, e fora envolvido, por meios mágicos, de uma força além dos padrões do mundo natural.
- Um golem - explicou Dendibar com orgulho. - Minha própria criação. Bok poderia nos matar a todos agora mesmo. Até mesmo sua espada cruel seria de
pouca utilidade contra ele, Artemis Entreri.
O assassino não estava tão convencido disso, mas não conseguiu disfarçar completamente seu constrangimento. Dendibar havia obviamente feito pender a balança
a seu favor naquela parceria, mas Entreri sabia que, caso voltasse atrás agora, estaria lançando o mago variegado e seus asseclas contra ele, em competição direta
pelo grupo do anão. Além do mais, levaria semanas, talvez meses, para alcançar os viajantes por meios normais e não duvidava que Dendibar pudesse chegar lá mais
rápido.
Cattiebrie partilhava dos mesmos pensamentos incômodos. Ela não tinha o menor desejo de viajar com o monstro horripilante, mas imaginava a carnificina que
encontraria quando finalmente alcançasse Bruenor e os demais caso Entreri decidisse romper a aliança.
- Nada tema - consolou-os Dendibar. - Bok é inofensivo, incapaz de qualquer pensamento independente, pois, vejam vocês, Bok não tem mente.
O golem atende aos meus comandos, ou aos de Sidnéia, e poderia se jogar numa fogueira até ser consumido se nós meramente pedíssemos que o fizesse!
-Tenho negócios a terminar na cidade - disse Entreri, sem duvidar das palavras de Dendibar e sem a menor intenção de ouvir mais detalhes sobre o golem. -
Quando partimos?
- A noite seria melhor - raciocinou Dendibar. - Volte ao jardim da Torre das Hostes assim que escurecer. Haveremos de nos encontrar lá e colocar vocês
a caminho.
Sozinho em seus aposentos, a não ser pela presença de Bok, Dendibar afagou os ombros musculosos do golem com profunda afeição. Bok era sua carta na manga,
sua proteção contra a resistência dos companheiros ou a traição de Artemis Entreri. Mas não era fácil para Dendibar separar-se facilmente do monstro, pois a coisa
representava também um papel importante como guardião contra os pretensos sucessores na Torre das Hostes. Dendibar havia sutilmente avisado os outros magos de que,
caso fosse atacado por qualquer um deles, teriam de lidar com Bok, mesmo que ele próprio estivesse morto.
Mas a estrada adiante talvez fosse longa, e o Mestre do Torreão Norte não poderia abandonar seus deveres e ainda assim esperar manter seu título. Principalmente
com o Arquimago à espera de apenas uma desculpa para se livrar dele, pois compreendia os riscos oferecidos pelas francas aspirações de Dendibar à torre central.
- Nada é capaz de deter você, meu animalzinho - Dendibar disse ao monstro. Na verdade, ele estava simplesmente reafirmando os próprios temores quanto
à decisão de enviar uma feiticeira inexperiente em seu lugar. Não duvidava da lealdade dela, nem da de Jierdan, mas Entreri e os heróis do Vale do Vento Gélido deviam
ser levados a sério.
- Dei a você o poder da caçada - explicou Dendibar enquanto atirava ao chão o invólucro do tomo e o pergaminho agora inutilizado. - O drow é o seu
objetivo e você agora é capaz de sentir a presença dele a qualquer distância. Encontre-o! Não retorne sem Drizzt Do'Urden!
Um rugido gutural saiu dos lábios azuis de Bok, o único som que o instrumento irracional era capaz de emitir.
Entreri e Cattiebrie encontraram o grupo do mago já reunido quando chegaram à Torre das Hostes mais tarde naquela noite.
Jierdan estava sozinho num canto, aparentemente nada entusiasmado quanto a tomar parte na aventura, mas sem muita escolha. O soldado temia o golem e não gostava
nada de Entreri, nem confiava nele. Contudo, temia Dendibar ainda mais e sua apreensão quanto aos possíveis riscos da estrada não se comparava aos perigos que certamente
enfrentaria nas mãos do mago variegado caso se recusasse a ir.
Sidnéia se afastou de Bok e Dendibar e atravessou a alameda para encontrar seus companheiros.
- Saudações - ela ofereceu, agora mais interessada na conciliação do que na competição com seu formidável parceiro. - Dendibar está preparando nossas
montarias. A viagem até Lua Argêntea será bem ligeira!
Entreri e Cattiebrie olharam para o mago variegado. Bok estava de pé ao lado dele, segurando um pergaminho desenrolado, enquanto Dendibar derramava o líquido
fumarento de um recipiente de boca larga sobre uma pena branca e entoava as runas de um encantamento.
Uma névoa surgiu aos pés do mago, remoinhou e depois se adensou, tomando uma forma definida. Dendibar deixou que a coisa continuasse a se transformar e deu
um ou dois passos para o lado a fim de repetir o ritual. Quando o primeiro cavalo mágico apareceu, o mago já criava o quarto e último.
Entreri ergueu as sobrancelhas.
- Quatro? - ele perguntou a Sidnéia. - Somos cinco agora.
- Bok não poderia cavalgar - ela respondeu, achando graça. - Ele vai correr. - Ela se virou e foi até onde estava Dendibar, deixando Entreri a sós
com a idéia.
- E claro - Entreri murmurou consigo mesmo, de certo modo mais desanimado do que nunca em relação à presença daquela coisa sobrenatural.
Mas Cattiebrie começara a ver as coisas por um outro ângulo. Dendibar obviamente enviara Bok junto com eles mais para ganhar uma vantagem sobre Entreri do
que para garantir a vitória sobre os amigos dela. Entreri também devia saber disso.
Sem percebê-lo, o mago criara justamente o tipo de ambiente nervoso que Cattiebrie pedira aos céus, uma situação tensa que ela poderia encontrar uma maneira
de explorar.

9. OS GRILHÕES DA REPUTAÇÃO

O sol brilhava na manhã do primeiro dia fora de Sela Longa. Os companheiros, revigorados pela estada com os Harpells, cavalgavam num ritmo forte, mas ainda
conseguiam desfrutar do tempo bom e da estrada desimpedida. A região era plana, sem marcos, nenhuma árvore ou colina à vista.
- Três dias até Nesmé, talvez quatro - Régis disse a eles.
- Está mais para três, se o tempo continuar assim - disse Wulfgar. Drizzt se inquietou sob o capuz do manto. Por mais agradável que a manhã pudesse
lhes parecer, ele sabia que ainda estavam nos ermos. Três dias poderiam se mostrar de fato uma longa viagem.
- O que 'cê sabe desse lugar, Nesmé? - Bruenor perguntou a Régis.
- Só o que Harkle nos contou - respondeu Régis. - Uma cidade de tamanho razoável, comerciantes. Mas são cautelosos. Nunca estive lá, mas as histórias
sobre o povo valente que vive na orla dos Pântanos Eternos são conhecidas em todo o norte.
- Estou intrigado com os Pântanos Eternos - disse Wulfgar. - Harkle pouco falava sobre o lugar, apenas chacoalhava a cabeça e se arrepiava todo sempre
que eu perguntava alguma coisa.
- Sem dúvida, um lugar cujo renome excede a verdade - disse Bruenor, rindo, sem se deixar impressionar por reputações. - Poderia ser pior que o vale?
Régis deu de ombros, sem se deixar convencer completamente pelo argumento do anão.
- As histórias sobre os Charcos dos Trolls, pois esse é o nome dado àquelas terras, podem ser exageradas, mas são sempre agourentas. Todas as cidades
do norte saúdam a bravura do povo de Nesmé por manter a rota comercial ao longo do Surbrin em face de tamanha provação.
Bruenor riu novamente.
- Será que as histórias não vêm da própria Nesmé, para pintar eles mais fortes do que realmente são?
Régis não discutiu.
Quando pararam para o almoço, uma cerração alta cobria o sol. Longe, ao norte, uma linha negra de nuvens aparecera e agora corria na direção deles. Drizzt
já esperava por isso. Nos ermos, até mesmo o tempo se revelava um inimigo.
Naquela tarde, a frente da borrasca se encrespou sobre eles, trazendo pancadas de chuva e pedras de granizo que retiniam ao bater no elmo amassado de Bruenor.
Repentinas vergastadas de raio cortavam o céu escuro e o trovão quase os derrubava das montarias. Mas eles continuavam a se arrastar pela lama cada vez mais profunda.
- Esta é a verdadeira provação da estrada! - berrou Drizzt por entre os uivos do vento. - Muito mais viajantes são derrotados pelas tempestades do
que pelos orcs porque não antevêem os perigos no início da jornada!
- Ora! É só uma chuvinha de verão! - desdenhou Bruenor, desafiador.
Como que em orgulhosa resposta, um raio explodiu a uma pequena distância dos cavaleiros. Os cavalos saltaram e escoicearam. O pônei de Bruenor caiu, tombando
de mau jeito na lama e quase esmagando o anão atordoado em seu desespero para ficar de pé.
Com sua montaria fora de controle, Régis conseguiu saltar da sela e rolar para longe.
Bruenor ficou de joelhos e limpou os olhos cobertos de lama, praguejando o tempo todo.
- Maldição! - disse com veemência, estudando os movimentos do pônei. - O bicho 'tá estropiado!
Wulfgar firmou o próprio cavalo e tentou partir atrás do pônei de Régis, que havia disparado, mas o granizo, impelido pelo vento, apedrejou-o, cegou-o e afligiu
seu cavalo, e novamente ele se viu lutando para se manter na sela.
Mais um raio caiu, acompanhado de trovoada. E mais outro.
Drizzt, murmurando baixinho e cobrindo a cabeça de seu cavalo com o manto para acalmá-lo, movia-se vagarosamente ao lado do anão.
- Estropiado! - Bruenor gritou novamente, apesar de Drizzt mal conseguir ouvi-lo.
Drizzt apenas chacoalhou a cabeça, impotente, e apontou o machado de Bruenor.
Vieram outros raios e mais uma rajada de vento. Drizzt deslizou para o lado da montaria a fim de se proteger, ciente de que não conseguiria manter o animal
calmo por muito mais tempo.
As pedras de granizo começaram a ficar maiores e a golpear com a força de projéteis.
O cavalo aterrorizado de Drizzt atirou-o ao chão e se afastou aos pinotes, tentando escapar do castigo da tempestade.
Drizzt logo estava de pé ao lado de Bruenor, mas os planos emergenciais que porventura os dois tivessem formulado foram imediatamente desencorajados, pois
então Wulfgar reapareceu, cambaleando na direção deles.
Ele caminhava - ou quase - apoiando-se na força do vento, utilizando-o para se manter ereto. Os olhos pareciam abatidos, o queixo se Crispava e o sangue e
a chuva se misturavam em suas faces. Fitou estupidamente os amigos, como se não compreendesse o que lhe acontecera.
Então, caiu de cara na lama aos pés deles.
Um assobio agudo atravessou a muralha insensibilizante de vento, um excepcional sinal de esperança em face da força crescente da tempestade. Os ouvidos aguçados
de Drizzt captaram-no assim que ele e Bruenor tiraram da lama o rosto do jovem amigo. Tão distante parecia o assobio, mas Drizzt sabia o quanto as tempestades eram
capazes de distorcer as percepções de alguém.
- O que foi? - Bruenor perguntou, percebendo a repentina reação do drow, pois não ouvira o chamado.
- Régis! - respondeu Drizzt. Ele começou a arrastar Wulfgar na direção do assobio, Bruenor logo atrás dele. Não tiveram tempo de discernir se o rapaz
ainda vivia.
O raciocínio rápido do halfling os salvou naquele dia. Completamente ciente do potencial assassino das borrascas que se precipitavam desde a Espinha do Mundo,
Régis rastejara de um lado a outro em busca de algum abrigo na região desabitada. Topou com um buraco na face de um pequeno cômoro, talvez o velho covil de um lobo,
agora desocupado.
Seguindo os assobios, Drizzt e Bruenor logo o encontraram.
- Vai encher de chuva e a gente vai se afogar! - berrou Bruenor, mas ajudou Drizzt a arrastar Wulfgar para dentro e a apoiá-lo contra a parede dos
fundos da caverna, depois assumiu seu lugar ao lado dos amigos, ocupados em construir, com terra e as mochilas remanescentes, uma barreira contra a temi da inundação.
Um gemido de Wulfgar fez com que Régis corresse para o lado dele.
- Está vivo! - proclamou o halfling. - E seus ferimentos não parecem tão feios!
Mais valente que um texugo acuado - comentou Bruenor. Não demorou muito para que tornassem o covil tolerável, se não confortável, e até mesmo Bruenor parou
de reclamar.
- A verdadeira provação da estrada - Drizzt disse novamente para Régis, tentando animar o amigo completamente desconsolado enquanto os três se sentavam
na lama para suportar a noite; os estrondos incessantes do trovão e as pancadas do granizo eram um lembrete constante da pequena margem de segurança.
Em resposta, Régis verteu uma torrente de água de sua bota.
- Quantos quilômetros 'cê acha que a gente percorreu? - Bruenor rezingou, questionando Drizzt.
- Quinze, talvez - respondeu o drow.
- Duas semanas até Nesmé nesse ritmo! - resmungou Bruenor, cruzando os braços sobre o peito.
- A tempestade vai passar - ofereceu Drizzt, esperançoso, mas o anão já não mais escutava.
O dia seguinte começou sem chuva, apesar das nuvens densas e cinzentas que pairavam baixo no céu. Wulfgar estava bem pela manhã, mas ainda não entendia o
que lhe acontecera. Bruenor insistiu para que partissem imediatamente, embora Régis tivesse preferido permanecer no buraco até que tivessem certeza de que a tempestade
passara.
- A maior parte das provisões se perdeu - Drizzt lembrou o halfling. - Pode ser que você não coma nada além de migalhas de pão duro até alcançar mos
Nesmé.
Régis foi o primeiro a sair do buraco.
A umidade insuportável e o solo lamacento impediam que acelerassem o ritmo, e os amigos logo descobriram que os joelhos doíam com os constantes desvios e
a patinhagem. As roupas encharcadas aderiam incomodamente a seus corpos e faziam peso a cada passo.
Encontraram o cavalo de Wulfgar, uma forma carbonizada e fumegante, semi-enterrada na lama.
- Um raio - observou Régis.
Os três olharam para o amigo bárbaro, admirados de que ele pudesse ter sobrevivido a tamanho impacto. Wulfgar também os fitava em estado de choque, dando-se
conta do que o derrubara da montaria na noite anterior.
- Mais valente que um texugo! - Bruenor bradou mais uma vez para Drizzt.
O sol provocativamente encontrava uma abertura no céu encoberto de vez em quando. Contudo, a luz era pouco substancial e, no zênite, o dia havia ficado mais
escuro na verdade. O trovão distante anunciava uma tarde lúgubre.
A tempestade já havia exaurido seu poderio mortífero, mas eles não encontraram outro abrigo naquela noite que não as próprias roupas molhadas e sempre que
o crepitar do relâmpago iluminava o céu, viam-se quatro formas encurvadas, sentadas na lama, cabisbaixas, como se aceitassem o destino com impotente resignação.
Durante outros dois dias eles continuaram a se arrastar em meio à chuva e ao vento, sem muita escolha nem outro lugar para ir a não ser avante.
Wulfgar se revelou o salvador do moral do grupo naqueles momentos de desânimo. Desatolou Régis do solo encharcado, atirando facilmente o halfling sobre suas
costas e explicando que precisava de um peso adicional para se equilibrar. Poupando desse modo o orgulho do halfling, o bárbaro conseguiu até mesmo convencer o anão
mal-humorado a ser carregado da mesma maneira durante algumas horas. E, todo o tempo, Wulfgar se mostrava indômito.
- Uma benção, digo eu - ele continuava gritando para os céus cinzentos. - A tempestade afasta os insetos e os orcs! E quantos meses vão se passar até que
venhamos a precisar de água?
Ele se esforçava bastante para manter os ânimos elevados. De certa feita, ele observou com cuidado os raios, calculando o intervalo entre o lampejo e o trovão
subseqüente. Quando se aproximaram do cadáver enegrecido de uma árvore morta havia tempos, o raio fulgurou e Wulfgar executou o truque. Ao brado de "Tempus!", ele
arremessou seu martelo de modo que a arma atingisse e derrubasse o tronco no exato momento em que o trovão explodia ao redor deles. Os amigos, entretidos, viraram-se
para encará-lo, apenas para encontrá-lo de pé, orgulhoso, os braços e os olhos erguidos para os deuses como se estes houvessem pessoalmente atendido ao seu chamado.
Drizzt, aceitando toda aquela provação com seu costumeiro estoicismo, aplaudiu silenciosamente seu jovem amigo e soube mais uma vez, ainda mais do que antes,
que fora sábia a decisão de trazê-lo. O drow compreendeu que seu próprio dever naquele momento difícil era continuar em seu papel de sentinela, mantendo diligente
vigília apesar da Proclamação de segurança do bárbaro.
Por fim, a tempestade foi soprada para longe pelo mesmo vento vigoroso que a havia anunciado. A brilhante luz do sol e o céu claro da manhã seguinte melhoraram
incomensuravelmente o humor dos companheiros e permitiram-lhes pensar mais uma vez no que tinham pela frente.
Principalmente Bruenor. O anão chegava a se dobrar em sua marcha urgente, exatamente como o fizera no início da jornada, ainda no Vale do Vento Gélido.
A barba ruiva a oscilar com a intensidade do passo vigoroso, Bruenor reencontrou seu estreito foco. Ele se retirou para os sonhos de sua terra natal, via
as sombras bruxuleantes da luz das tochas nas paredes raiadas de prata e os prodigiosos artefatos que resultavam do trabalho meticuloso de seu povo. Sua intensa
concentração no Salão de Mitral nos últimos meses trouxera lembranças novas e mais claras e, na estrada, ele se lembrava agora, pela primeira vez em mais de um século,
do Salão de Dumathoin.
Os anões do Salão de Mitral haviam ganhado bem a vida com o comércio de seus objetos manufaturados, mas eles sempre guardavam para si as melhores peças e
os regalos mais preciosos doados por forasteiros. Numa câmara grande e ornamentada, que deixava todos os visitantes de olhos arregalados, o legado dos ancestrais
de Bruenor se achava em exposição e servia de inspiração aos futuros artistas do clã.
Bruenor riu baixinho ao lembrar do prodigioso salão e daquelas peças maravilhosas, armas e armaduras em sua maioria. Olhou para Wulfgar caminhando ao lado
dele, e para o poderoso martelo de guerra que fabricara no ano anterior. Garra de Palas poderia ter sido pendurado no Salão de Dumathoin se o clã de Bruenor ainda
dominasse o Salão de Mitral, o que confirmaria a imortalidade de Bruenor no legado de seu povo.
Mas, observando Wulfgar manusear o martelo, brandindo-o com a mesma facilidade com que usaria o próprio braço, Bruenor não se arrependia.
O dia seguinte trouxe mais boas novas. Pouco depois de terem levantado acampamento, os amigos descobriram que haviam percorrido uma distância muito maior
do que a prevista durante as provações da tempestade, pois enquanto marchavam, a paisagem ao redor deles passava por transformações sutis, mas definitivas.
Onde antes o terreno se cobria de trechos esparsos de ervas silvestres e irregulares - um mar virtual de lama sob a torrente de chuva -, eles agora encontravam
luxuriantes relvados e bosques dispersos de olmos altaneiros. Ao galgar uma última serrania, confirmaram-se suas suspeitas, pois diante deles estava o Vale Dessarin.
Alguns quilômetros adiante, engrossado pelo degelo de primavera e a tempestade recente, e claramente visível da posição elevada em que se encontravam, o braço do
grande rio fluía constantemente em sua jornada para o sul.
O longo inverno dominava aquela região, mas quando as plantas finalmente floresciam, compensavam a estação curta com uma vivacidade sem igual em todo o mundo.
As cores magníficas da primavera começavam a cercar os amigos à medida que abriam caminho e desciam o declive até o rio. O tapete de relva era tão denso que eles
tiraram as botas e caminharam descalços por aquela maciez esponjosa. A vitalidade ali era verdadeiramente óbvia e contagiosa.
- 'Cês deviam ver os salões - comentou Bruenor, num impulso repentino. - Veios do mais puro mitral, mais largos que a sua mão! Rios de prata é o que são
e sobrepujados em beleza apenas pelo que a mão de um anão faz com eles.
- A privação de tal visão é o que nos faz atravessar todas as adversidades - replicou Drizzt.
- Ora! - Bruenor resmungou jovialmente. - 'Cê 'tá aqui porque eu te enganei, elfo. 'Cê não tinha mais motivo prá adiar minha aventura!
Wulfgar foi obrigado a rir. Ele tomara parte no engodo que havia feito Drizzt concordar em empreender aquela jornada. Depois da grande batalha com Akar Kessell
em Dez-Burgos, Bruenor fingira estar mortalmente ferido e, no seu aparente leito de morte, implorara ao drow que viajasse com ele até sua antiga terra natal. Pensando
que o anão estivesse às portas da morte, Drizzt não pôde recusar.
- E você! - Bruenor berrou para Wulfgar. - Já entendi porque é que 'cê veio, mesmo você sendo cabeçudo demais prá perceber isso!
- Por favor, diga-me - Wulfgar replicou, com um sorriso.
- 'Cê 'tá fugindo! Mas não vai escapar! - gritou o anão.
O júbilo de Wulfgar transformou-se em confusão.
- A menina assustou ele, elfo - Bruenor explicou para Drizzt. - Cattiebrie enredou ele de um jeito que esses músculos todos não vão ajudar em nada!
Wulfgar gargalhou com as conclusões rudes de Bruenor, sem se ofender. Mas, nas imagens engendradas pelas alusões de Bruenor a Cattiebrie, nas lembranças de
um pôr-do-sol sobre a face do Sepulcro de Kelvin, ou de horas passadas a conversar sobre a elevação rochosa denominada Ladeira de Bruenor, o jovem bárbaro encontrou
um perturbador elemento de verdade nas observações do anão.
- E quanto a Régis? - Drizzt perguntou a Bruenor. - Você já discerniu o motivo dele para vir conosco? Poderia ser o amor pela lama que lhe sobe pelos
tornozelos e traga suas perninhas até os joelhos?
Bruenor parou de rir e estudou a reação do halfling às perguntas do drow.
- Não, ainda não - ele respondeu, sério, depois de alguns momentos nada reveladores. - Só sei de uma coisa: se Ronca-bucho escolheu a estrada, isso
significa apenas que a lama e os orcs são melhores do que o que ele 'tá deixando prá trás - Bruenor manteve os olhos sobre o seu pequeno amigo, mais uma vez em busca
de alguma revelação na resposta do halfling.
Régis manteve a cabeça abaixada, observando os pés peludos, visíveis, pela primeira vez em muitos meses, abaixo do volume cada vez menor de seu ventre, enquanto
avançavam a custo pelas densas ondas de verde. O assassino, Entreri, estava a um mundo de distância, ele pensou. E ele não tinha a menor intenção de insistir num
perigo que fora evitado.
Alguns quilômetros rio acima, eles encontraram a primeira bifurcação importante, onde o Surbrin, vindo de nordeste, desaguava na corrente principal do braço
setentrional da bacia do grande rio.
Os amigos procuraram por um meio de atravessar o rio maior, o Dessarin, e chegar ao pequeno vale entre este e o Surbrin. Nesmé, sua próxima e última parada
antes de Lua Argêntea, ficava um pouco além, subindo o Surbrin, e, embora a cidade estivesse, na verdade, na margem oriental do rio, os amigos, seguindo o conselho
de Harkle Harpell, haviam decidido subir pela margem ocidental e evitar os perigos que se ocultavam nos Pântanos Eternos.
Cruzaram o Dessarin sem muita dificuldade graças à incrível agilidade do drow, que atravessou o rio correndo por um galho de árvore suspenso sobre o curso
d'água e dali saltou para um pouso semelhante no ramo de uma árvore na margem oposta. Logo depois, estavam todos caminhando tranqüilamente ao longo do Surbrin, aproveitando
o sol, a brisa cálida e a infindável canção do rio. Drizzt conseguiu até mesmo abater um gamo com seu arco, o que prometia uma excelente ceia com carne de caça e
mochilas reabastecidas para a estrada adiante.
Acamparam bem à beira d'água, sob a luz das estrelas pela primeira vez em quatro noites, sentados ao redor do fogo e a ouvir as histórias de Bruenor sobre
os salões argênteos e as maravilhas que encontrariam ao fim da estrada.
A serenidade da noite, porém, não persistiu na manhã seguinte, pois os amigos foram despertados por sons de batalha. Wulfgar imediatamente escalou uma árvore
próxima para descobrir quem eram os combatentes.
- Cavaleiros! - ele berrou, saltando e sacando seu martelo de guerra antes mesmo de atingir o chão. - Alguns caíram! Combatem monstros que não conheço! -
Ele saiu correndo em direção ao norte, com Bruenor em seu encalço e Drizzt contornando-lhes o flanco, rio abaixo. Menos entusiástico, Régis ficou para trás e sacou
sua pequena maça, mas dificilmente se preparava para o combate franco.
Wulfgar foi o primeiro a chegar. Sete cavaleiros ainda estavam de pé, tentando em vão manobrar suas montarias para formar algum tipo de linha defensiva. As
criaturas que combatiam eram rápidas e não tinham medo de correr sob os golpes das patas dos cavalos para fazer os animais tropeçarem. Os monstros tinham apenas
cerca de um metro de altura, com braços que chegavam ao dobro disso em comprimento. Lembravam pequenas árvores, apesar de inegavelmente vivazes, a correr de um lado
para outro freneticamente, golpeando com seus braços semelhantes a clavas ou, como mais um desafortunado cavaleiro descobriu assim que Wulfgar entrou na refrega,
envolvendo os adversários com seus membros flexíveis para derrubá-los das montarias.
Wulfgar passou rapidamente por duas das criaturas, atirando-as de lado, e abateu-se sobre a que acabara de derrubar o cavaleiro. O bárbaro, porém, subestimou
os monstros, pois os dedos dos pés das criaturas, semelhantes a raízes, rapidamente encontraram um novo ponto de equilíbrio, e os braços compridos o apanharam por
trás antes que ele tivesse dado dois passos, agarrando-o de ambos os lados e detendo-o imediatamente.
Bruenor investiu logo em seguida. O machado do anão atravessou um dos monstros, dividindo-o ao meio como lenha e depois se enterrou gravemente no outro, fazendo
com que um grande pedaço de seu tronco voasse longe.
Drizzt chegou ao local da batalha, ansioso, mas, como sempre, contido pela sensibilidade predominante que o fizera sobreviver a centenas de confrontos. Desceu
pelo flanco, abaixo do desnível da ribanceira, onde descobriu uma desengonçada ponte de troncos que atravessava o Surbrin. Os monstros a haviam construído, Drizzt
sabia. Aparentemente, não eram criaturas irracionais.
Drizzt espiou por sobre a ribanceira. Os cavaleiros tinham se reagrupado ao redor dos inesperados reforços, mas um deles, bem em frente ao drow, fora envolvido
por um monstro e era arrastado para longe do cavalo.
Notando a natureza vegetal de seus estranhos adversários, Drizzt compreendeu por que todos os cavaleiros empunhavam machados e imaginou se suas delgadas cimitarras
seriam de alguma ajuda.
Mas ele precisava agir. Saltando de seu esconderijo, enfiou as duas cimitarras na criatura. Elas atingiram o alvo, sem que provocassem maior efeito do que
se Drizzt tivesse apunhalado uma árvore.
Mesmo assim, a tentativa do drow salvara o cavaleiro. O monstro golpeou sua vítima uma última vez, para mantê-la atordoada, depois a soltou para enfrentar
Drizzt. Pensando rápido, o drow passou a um ataque alternativo, usando suas espadas ineficazes para aparar os golpes desferidos pelos braços do monstro. Então, quando
a criatura se precipitou sobre ele, mergulhou aos pés dela, desenraizando-a e lançando-a por cima dele em direção à margem do rio. Enfiou as cimitarras na pele semelhante
à casca de uma árvore e puxou, fazendo o monstro rolar, às cambalhotas, em direção ao Surbrin. A coisa conseguiu se segurar antes de cair n'água, mas Drizzt a atacou
novamente. Uma rajada de pontapés bem colocados lançou o monstro na corrente e o rio o arrastou para longe.
O cavaleiro, a essa altura, havia retornado à sela e ao domínio de suas faculdades mentais. Ele conduziu o cavalo em direção à ribanceira para agradecer seu salvador.
Então, ele viu a pele negra.
- Drow! - ele gritou e baixou o machado.
Drizzt foi pego de surpresa. Seus reflexos aguçados ergueram uma das espadas o suficiente para desviar o fio do machado, mas a parte embotada da arma atingiu-lhe
a cabeça e o fez cambalear. Ele mergulhou com o impulso do golpe e rolou, tentando se afastar o máximo possível do cavaleiro, pois percebeu que o homem o mataria
antes que conseguisse se recuperar.
- Wulfgar! - gritou Régis de seu esconderijo, um pouco mais atrás na ribanceira. O bárbaro deu cabo de um dos monstros com um estalo estrondoso que
provocou rachaduras por toda a extensão da coisa e virou-se no exato momento em que o cavaleiro dava a volta para alcançar Drizzt.
Wulfgar urrou de raiva e abandonou a própria luta, agarrou a rédea do cavalo enquanto este ainda fazia a volta e puxou com toda a sua força. Cavalo e cavaleiro
foram ao chão. O cavalo se levantou imediatamente e chacoalhou a cabeça, trotando nervosamente de um lado para outro, mas o cavaleiro ficou no chão, a perna esmagada
na queda sob o peso da montaria.
Os cinco cavaleiros remanescentes agora agiam em conjunto, investindo contra grupos de monstros e dispersando-os. O cruel machado de Bruenor continuava a
cortar, e o anão cantava o tempo todo uma canção de lenhador que aprendera quando menino:
- Guri, rache a lenha e acenda a lareira, Prá comer agora, aqueça a chaleira! - ele cantava enquanto abatia metodicamente um monstro após outro.
Wulfgar se postou defensivamente por sobre a forma de Drizzt, e seu poderoso martelo estilhaçava com um único golpe qualquer monstro que se aventurasse perto
demais.
A confusão estava formada e, em segundos, as poucas criaturas sobreviventes fugiram em pânico pela ponte sobre o Surbrin.
Três cavaleiros estavam caídos e mortos, um quarto se apoiava pesadamente contra o cavalo, quase sobrepujado pelos ferimentos, e aquele que Wulfgar havia
derrubado desmaiara de dor. Mas os cinco ainda sobre os cavalos não acudiram os feridos. Formaram um semicírculo em torno de Wulfgar e Drizzt - que só agora voltava
a ficar de pé -, encurralando os dois contra a ribanceira, os machados em prontidão.
- É assim que 'cês acolhem seus salvadores? - vociferou Bruenor, afastando um cavalo com um tapa para que pudesse se juntar aos amigos. - Aposto que
as mesmas pessoas não aparecem duas vezes prá socorrer vocês!
- Você anda em má companhia, anão! - retorquiu um dos cavaleiros.
- Seu amigo estaria morto não fosse a nossa má companhia! - replicou Wulfgar, indicando o cavaleiro que jazia num canto. - E ele agradeceu ao drow
com uma arma!
- Somos os Cavaleiros de Nesmé - o cavaleiro explicou. - Nossa sina é morrer no campo, protegendo nossa gente. Aceitamos esse destino de boa vontade.
- Dê mais um passo com esse cavalo e a gente vai realizar o seu desejo - avisou Bruenor.
- Mas vocês nos fazem uma grande injustiça - argumentou Wulfgar. - Estamos a caminho de Nesmé. Viemos em paz, como amigos.
- Vocês não entrarão, não com ele! - disse o cavaleiro com veemência. -Todos conhecem os métodos dos hediondos elfos drow. Você nos pede para acolhê-lo?
- Ora, 'cê é um idiota e a sua mãe também - grunhiu Bruenor.
- Meca as palavras, anão - avisou o cavaleiro. - Somos cinco contra três, e montados.
- Por que 'cê não tenta? - devolveu o anão. - Os abutres não vão conseguir muita comida com essas árvores bailarinas - Ele passou o dedo pelo fio do
machado. - Vamos dar a eles algo melhor prá bicar.
Wulfgar brandiu Garra de Palas de um lado para outro com apenas um braço. Drizzt não fez o menor gesto para sacar as armas, e sua calma inabalável foi, talvez,
a ação mais enervante de todas para os cavaleiros.
O porta-voz pareceu menos confiante depois do fracasso de sua ameaça, mas continuou agindo como se ainda fosse sua a vantagem.
- Mas não somos ingratos pela ajuda. Permitiremos que partam.
Desapareçam e nunca mais voltem às nossas terras.
- Ir ou vir é nossa opção - rosnou Bruenor.
- E optamos por não lutar - Drizzt acrescentou. - Não é o nosso objetivo nem o nosso desejo fazer mal a vocês ou a sua cidade, Cavaleiros de Nesmé.
Vamos passar, cuidaremos de nossas próprias vidas e deixaremos que vocês cuidem das suas.
- Você não vai chegar nem perto da minha cidade, elfo negro! - gritou um outro cavaleiro. - Vocês podem nos abater no campo, mas há outros cem atrás
de nós, e três vezes esse número atrás dos primeiros! Agora, sumam! - Seus companheiros pareceram readquirir a coragem com aquelas palavras audazes, os cavalos a
patear nervosamente com a súbita tensão das rédeas.
- Temos um trajeto a seguir - Wulfgar insistiu.
- Que se danem eles! - vociferou Bruenor, de repente. - Já agüentei o suficiente desse bando! Que se dane a vila deles. Que o rio varra eles da existência!
- Ele se virou para os amigos. - Estão fazendo um favor prá gente. Vamos poupar um dia ou mais indo direto até Lua Argêntea em vez de contornar pelo rio.
- Direto? - questionou Drizzt. - Os Pântanos Eternos?
- Será que é pior que o vale? - replicou Bruenor. Ele girou sobre os calcanhares e encarou os cavaleiros. - Fiquem com sua cidade e suas cabeças,
por enquanto - ele disse. - Vamos cruzar a ponte aqui e nos livrar de vocês e de toda a Nesmé!
- Coisas bem mais abomináveis que os homúnculos dos brejos vagam pelos Charcos dos Trolls, seu anão idiota - replicou o cavaleiro com um sorriso. -
Viemos destruir a ponte. Será queimada assim que vocês tiverem passado.
Bruenor assentiu e devolveu o sorriso.
- Continuem caminhando para leste - alertou o cavaleiro. - Avisaremos todos os outros cavaleiros. Se forem avistados perto de Nesmé, vocês serão mortos.
- Peguem seu amigo desprezível e sumam - provocou um outro cavaleiro - antes que o meu machado se banhe no sangue de um elfo negro! Embora eu tivesse
então que jogar fora a arma infectada!
Todos os cavaleiros se juntaram à gargalhada que se seguiu.
Drizzt sequer ouvira o insulto. Concentrava-se num cavaleiro na retaguarda do grupo, um tipo discreto que poderia aproveitar sua insignificância na conversa
para conseguir uma vantagem sem que os demais o percebessem. O cavaleiro havia sorrateiramente tirado o arco do ombro e agora levava com vagar a mão à aljava.
Bruenor nada mais tinha a dizer. Ele e Wulfgar deram as costas aos cavaleiros e partiram em direção à ponte.
- Venha, elfo - ele disse a Drizzt, ao passar. - Vou dormir melhor quando a gente estiver longe desses cães filhos de um orc.
Mas Drizzt tinha mais uma mensagem a enviar antes que desse as costas aos cavaleiros. Num movimento ofuscante, pegou o arco que trazia nas costas, retirou
uma flecha de sua aljava e a disparou com um silvo. Ela acertou o barrete de couro do suposto arqueiro, dividindo-lhe o cabelo ao meio, e engastou-se numa árvore
logo atrás dele, a haste a tremular um aviso claro.
- Seus insultos equivocados, eu aceito, até mesmo os espero - Drizzt explicou ao cavaleiro aterrorizado. - Mas não vou tolerar tentativas de ferir
meus amigos, e vou me defender. Considerem-se avisados, e aviso apenas uma vez: se tentarem qualquer outra coisa contra nós, vocês morrerão. - Ele se virou abruptamente
e desceu até a ponte, sem olhar para trás.
Os cavaleiros atordoados sem dúvida não tinham a intenção de retardar ainda mais o grupo do drow. O pretenso arqueiro nem mesmo procurou o barrete.
Drizzt sorriu diante da ironia de ser incapaz de se livrar das lendas sobre sua raça. Apesar de, por um lado, ser evitado e ameaçado, a aura de mistério
que cercava os elfos negros também lhe proporcionava um blefe poderoso o bastante para dissuadir os inimigos mais prováveis.
Régis se juntou a eles na ponte, brincando com uma pequena pedra.
- Eu os tinha na mira - foi explicando a arma improvisada. Ele lançou a pedra no rio. - Se a coisa começasse, o primeiro seria meu.
- Se a coisa começasse - Bruenor o corrigiu -, 'cê teria se borrado todo no buraco em que se escondeu!
Wulfgar refletiu sobre o aviso do cavaleiro em relação à senda que deveriam seguir.
- Charcos dos Trolls - ele repetiu sombriamente, percorrendo com os olhos o aclive do outro lado e a terra amaldiçoada diante deles. Harkle falara
sobre o lugar. A terra queimada e os brejos sem fundo. Os trolls e horrores piores que sequer possuíam um nome.
- Vamos ganhar um dia ou mais! - Bruenor repetiu teimosamente. Wulfgar não se convenceu.
- Está dispensado - Dendibar disse ao espectro.
Enquanto as chamas se refaziam no braseiro, despojando-o de sua forma material, Morkai considerava aquele segundo encontro. Com que freqüência Dendibar o
invocaria? - perguntou-se. O mago variegado ainda não havia se recuperado totalmente do último encontro, mas ousara convocá-lo novamente em tão pouco tempo. O assunto
de Dendibar com o grupo do anão devia ser realmente urgente! Essa suposição só fez Morkai desprezar ainda mais seu papel como espião do mago variegado.
Sozinho na sala novamente, Dendibar saiu de sua posição meditativa, espreguiçando-se, e sorriu perversamente ao considerar a imagem que Morkai lhe mostrara.
Os companheiros haviam perdido as montarias e marchavam em direção à área mais abominável de todo o Norte. Mais um ou dois dias e seu próprio grupo, voando nos cascos
de seus corcéis mágicos, viria a alcançá-los, embora cinqüenta quilômetros mais ao norte.
Sidnéia chegaria a Lua Argêntea muito antes do drow.


10. LUA ARGÊNTEA

A viagem desde Luskan foi realmente ligeira. Entreri e seu bando pareciam aos espectadores curiosos não mais que um borrão indistinto no vento noturno. As
montarias mágicas não deixavam rastro de sua passagem e nenhuma criatura viva conseguiria alcançá-las. O golem, como sempre, se arrastava incansavelmente na retaguarda
com grandes passos rígidos.
Tão macios e suportáveis eram os assentos sobre os corcéis conjurados de Dendibar que o grupo foi capaz de continuar a carreira depois do amanhecer e durante
todo o dia seguinte com apenas paradas breves para as refeições. Portanto, quando montaram acampamento depois do pôr do sol do primeiro dia de viagem, eles já haviam
deixado os rochedos para trás.
Cattiebrie travava uma batalha interior naquele primeiro dia. Ela não tinha dúvidas de que Entreri e a nova aliança alcançariam Bruenor. No pé em que estavam
as coisas, Cattiebrie seria apenas um empecilho para seus amigos, um joguete que Entreri poderia usar como melhor lhe aprouvesse.
Ela pouco podia fazer para remediar o problema, a menos que encontrasse algum modo de diminuir, se não sobrepujar, o aterrorizante domínio que o assassino
exercia sobre ela. Ela passou aquele primeiro dia concentrada, excluindo o mundo ao seu redor tanto quanto podia e procurando em seu espírito interior a força e
a coragem de que precisaria.
Bruenor, ao longo dos anos, havia armado a moça com muitos instrumentos para travar uma batalha como aquela, habilidades de disciplina e autoconfiança que
fizeram com que ela sobrevivesse a muitas situações difíceis. No segundo dia da viagem, então, mais confiante e mais à vontade com a situação, Cattiebrie foi capaz
de se concentrar em seus captores.
Extremamente interessantes eram os olhares que Jierdan e Entreri trocavam. O orgulhoso soldado obviamente não esquecera a humilhação que sofrera na noite
em que os dois se conheceram, no campo fora das muralhas de Luskan. Entreri - profundamente ciente do ressentimento, chegando mesmo a alimentá-lo, disposto como
estava a levar a questão a um confronto - vigiava o homem com desconfiança.
Essa rivalidade crescente poderia se revelar sua mais promissora, e talvez única esperança de escapar, pensou Cattiebrie. Ela tinha de admitir que Bok era
uma máquina de destruição irracional e indestrutível, imune à manipulação, e descobriu rapidamente que Sidnéia nada lhe oferecia.
Cattiebrie tentara engajar a jovem feiticeira numa conversa logo no segundo dia, mas o foco de Sidnéia era estreito demais para quaisquer distrações. Ela
não se deixaria desviar de sua obsessão, nem seria persuadida a abandoná-la. Ela nem mesmo respondeu à saudação de Cattiebrie quando as duas se sentaram para a refeição
do meio-dia. E quando Cattiebrie a importunou um pouco mais, Sidnéia instruiu Entreri a "manter a rameira longe dela".
No entanto, mesmo nessa tentativa fracassada, a feiticeira arredia ajudara Cattiebrie de uma maneira que nenhuma das duas conseguiria prever. O franco desdém
de Sidnéia e os insultos foram como um tapa no rosto de Cattiebrie e instilaram na moça mais um instrumento que a ajudaria a sobrepujar a paralisia provocada pelo
terror: a raiva.
Eles ultrapassaram o ponto médio de sua jornada no segundo dia - a paisagem passava por eles de uma maneira surreal à medida que seguiam a toda pressa - e
acamparam nas pequenas colinas a nordeste de Nesmé, com a cidade de Luskan agora duzentas milhas para trás.
Fogueiras piscavam ao longe. Uma patrulha de Nesmé, teorizou Sidnéia.
- Devemos ir até lá e descobrir o que pudermos - Entreri sugeriu, ansioso por notícias sobre seu alvo.
- Você e eu - concordou Sidnéia. - Podemos ir e voltar antes de se passar metade da noite.
Entreri olhou para Cattiebrie.
- E quanto a ela? - ele perguntou à feiticeira. - Eu não a deixaria com Jierdan.
- Você acha que o soldado se aproveitaria da garota? - Sidnéia replicou. - Garanto que ele é honrado.
- Não é isso que me preocupa - disse Entreri, com um sorriso pretensioso. - Não temo pela filha de Bruenor Martelo de Batalha. Ela se livraria do seu
soldado honrado e sumiria noite adentro antes do nosso retorno.
Cattiebrie não recebeu bem o elogio. Ela entendeu que o comentário de Entreri era antes um insulto a Jierdan, que estava longe, catando lenha, do que um reconhecimento
à sua própria competência, mas o inesperado respeito do assassino por ela tornaria sua tarefa duplamente difícil. Não queria que Entreri a julgasse perigosa, ou
mesmo engenhosa, pois isso o deixaria demasiado alerta para que ela agisse.
Sidnéia olhou para Bok.
- Vou sair - ela disse ao golem, alteando propositalmente a voz, o bastante para Cattiebrie ouvi-la com facilidade. - Se a prisioneira tentar fugir,
persiga-a e mate-a! - Ela lançou um sorriso maldoso para Entreri. - Satisfeito?
Ele devolveu o sorriso e fez um gesto largo com o braço na direção do acampamento distante.
Jierdan voltou então, e Sidnéia contou-lhe os planos. O soldado não pareceu entusiasmado com a idéia de Sidnéia e Entreri partirem juntos, apesar de nada
dizer para dissuadir a feiticeira. Cattiebrie o observou atentamente e inferiu a verdade. Ser deixado a sós com ela e o golem não o incomodava, ela conjeturou, mas
ele temia que um vínculo de amizade se formasse entre seus dois companheiros de estrada. Cattiebrie compreendia e até mesmo esperava por isso, pois Jierdan se encontrava
na posição mais vulnerável: subserviente a Sidnéia e com medo de Entreri. Uma aliança entre aqueles dois, talvez mesmo um pacto que excluísse completamente Dendibar
e a Torre das Hostes, no mínimo o deixaria de fora e, mais provavelmente, significaria seu fim.
- Por certo que a natureza desse negócio sombrio age contra eles mesmos - Cattiebrie murmurou quando Sidnéia e Entreri deixaram o acampamento, pronunciando
as palavras em voz alta para reforçar sua confiança cada vez maior.
- Eu podia te ajudar com isso aí - ela propôs a Jierdan enquanto ele dava os toques finais ao acampamento.
O soldado fulminou-a com o olhar.
- Ajudar? - zombou ele. - Eu devia era obrigá-la a fazer tudo sozinha.
- Entendo sua raiva - Cattiebrie rebateu, solidária. - Eu mesma sofri nas mãos imundas de Entreri.
A pena da moça enfureceu o soldado orgulhoso. Ele investiu contra ela, ameaçador, mas Cattiebrie manteve a compostura e não se esquivou.
- Este trabalho não condiz com o seu posto.
Jierdan se deteve de repente, a raiva dissipada pelo fato de estar intrigado com o elogio. Uma manobra evidente mas, para o ego ferido de Jierdan, o respeito
da moça era oportuno demais para se ignorar.
- O que sabe você sobre o meu posto? - ele perguntou.
- Sei que é um soldado de Luskan - Cattiebrie respondeu. - De um grupo temido em todo o norte. 'Cê não deveria fazer o trabalho braçal enquanto a feiticeira
e o caçador de sombras saem prá brincar de noite.
- Você está criando encrenca! - grunhiu Jierdan, mas ele se deteve para considerar o argumento. - Você monta o acampamento - ele ordenou, por fim,
readquirindo um certo grau de amor-próprio ao demonstrar sua superioridade em relação a ela. Entretanto, Cattiebrie não se importou. Ocupou-se da tarefa imediatamente,
interpretando seu papel subserviente sem reclamar. Um plano agora começava a tomar forma definida em sua mente, e essa fase exigia que ela fizesse um aliado entre
seus inimigos, ou pelo menos se colocasse numa posição que lhe permitisse plantar as sementes do zelo na mente de Jierdan.
Satisfeita, ela ouviu o soldado se afastar, resmungando a meia-voz.
Antes que Entreri e Sidnéia tivessem sequer se aproximado o suficiente para dar uma boa olhada no acampamento, um cântico ritualístico lhes revelou que não
se tratava de uma caravana de Nesmé. Eles se aproximaram com maior cautela para confirmar suas suspeitas.
Bárbaros de cabelos longos, morenos e altos, e envergando vestes cerimoniais emplumadas, dançavam em círculo em volta de um totem de madeira em forma de grifo.
- Uthgardt - explicou Sidnéia. - A tribo do Grifo. Estamos perto de Branco Reluzente, seu cemitério ancestral. - Ela se afastou vagarosamente da luminosidade
do acampamento. - Venha - ela sussurrou. - Não descobriremos nada de útil aqui.
Entreri a seguiu de volta ao acampamento.
- Não seria melhor montarmos agora? - ele perguntou quando se encontraram a uma distância segura. - Para nos afastarmos mais dos bárbaros?
- Não é necessário - respondeu Sidnéia. - Os uthgardt vão dançar a noite inteira. Toda a tribo toma parte no ritual. Duvido até que tenham postado
sentinelas.
- Você sabe muita coisa sobre eles - comentou o assassino num tom acusador, um sinal de suas repentinas suspeitas de que poderia haver alguma trama
ulterior a controlar os acontecimentos ao redor deles.
- Eu me preparei para esta jornada - rebateu Sidnéia. - Os uthgardt guardam poucos segredos; seus costumes são bastante conhecidos e documentados.
Aqueles que viajam pelo norte fariam bem em compreender essas pessoas.
-Tenho sorte por ter uma companheira de viagem tão instruída - disse Entreri, fazendo uma reverência sarcástica à guisa de desculpas.
Sidnéia, os olhos na estrada logo adiante, não respondeu.
Mas Entreri não deixaria a conversa morrer com tanta facilidade. Havia método em sua linha mestra de suspeitas. Ele havia conscientemente escolhido aquele
momento para revelar suas cartas e sua desconfiança, mesmo antes de descobrirem a natureza do acampamento. Pela primeira vez, os dois se encontravam a sós, sem Cattiebrie
ou Jierdan por perto para complicar a confrontação, e Entreri tinha a intenção de dar um fim às suas preocupações, ou dar um fim à feiticeira.
- Quando é que devo morrer? - ele perguntou bruscamente. Sidnéia sequer vacilou.
- Quando os fados assim o decretarem, como todos nós.
- Deixe-me reformular a pergunta - Entreri continuou agarrando-a pelo braço e virando-a para que ela o encarasse. - Quando você está instruída a tentar
me matar?
- Por que outro motivo Dendibar enviaria o golem? - raciocinou Entreri. - O mago não confia em pactos, nem na honra. Ele faz o que precisa fazer para
alcançar seus objetivos da maneira mais conveniente, e depois elimina aqueles que não são mais necessários. Quando eu não tiver mais valor, devo ser morto. Uma tarefa
que você pode achar mais difícil do que imagina.
- Você é perceptivo - Sidnéia respondeu tranqüilamente. - Avaliou muito bem o caráter de Dendibar. Ele teria matado você simplesmente para evitar possíveis
complicações. Mas você não considerou meu próprio papel nisso tudo. Devido à minha insistência, Dendibar colocou a decisão do seu destino nas minhas mãos. - Ela
fez uma pausa momentânea para deixar Entreri ponderar suas palavras. Ele poderia facilmente matá-la ali mesmo, ambos sabiam disso, de modo que a franqueza de sua
tranqüila confissão de uma trama para assassiná-lo impediu quaisquer ações imediatas e o forçou a ouvi-la até o fim.
- Estou convencida de que temos em mente desfechos distintos para o nosso confronto com o grupo do anão - explicou Sidnéia - e, portanto, não tenho
a intenção de destruir um aliado atual e, talvez, futuro.
A despeito de sua natureza sempre desconfiada, Entreri entendeu perfeitamente a lógica da linha de raciocínio da feiticeira. Reconheceu muitas de suas próprias
características em Sidnéia. Implacável, ela não deixaria que nada lhe atravancasse o caminho que escolhera, mas não se desviaria da trilha por qualquer distração,
não importando quão fortes fossem seus sentimentos. Ele soltou o braço dela.
- Mas o golem viaja conosco - disse ele distraidamente, voltando-se para a noite inane. - Dendibar acredita que precisaremos da coisa para derrotar
o anão e seus companheiros?
- Meu mestre me deixa pouca escolha - respondeu Sidnéia. - Bok foi enviado para ratificar a pretensão de Dendibar sobre aquilo que deseja. Proteção
contra dificuldades inesperadas oferecidas pelos companheiros. E contra você.
Entreri avançou mais um passo em sua linha de raciocínio.
- O objeto que o mago deseja deve ser realmente poderoso - concluiu. Sidnéia assentiu.
- Tentador para uma jovem feiticeira, talvez.
- O que você está insinuando? - Sidnéia exigiu, furiosa por Entreri questionar sua lealdade a Dendibar.
O sorriso confiante do assassino fez com que ela se contorcesse, incomodada.
- O propósito do golem é proteger Dendibar de dificuldades inesperadas oferecidas... por você!
Sidnéia gaguejou, mas não conseguiu encontrar as palavras para responder. Ela não havia considerado aquela possibilidade. Tentou rejeitar pela lógica a estranha
conclusão de Entreri, mas o comentário seguinte do assassino nublou sua capacidade de pensar.
- Simplesmente para evitar possíveis complicações - ele disse sombriamente, repetindo as palavras que ela pronunciara anteriormente.
Para Sidnéia, a lógica das suposições dele foi como um tapa na cara. Como ela pôde se imaginar acima da trama maliciosa de Dendibar? A revelação lhe deu calafrios,
mas ela não tinha a intenção de procurar a resposta com Entreri bem ao seu lado.
- Temos de confiar um no outro - ela disse. - Precisamos entender que ambos nos beneficiamos com a aliança e que isso não nos custa nada.
- Mande o golem embora, então - Entreri replicou.
Um alarme disparou na mente de Sidnéia. Estaria Entreri tentando instilar nela a dúvida meramente para ganhar uma vantagem na relação entre os dois?
- Não precisamos da coisa - disse ele. -Temos a garota. E, mesmo que os companheiros não cedam às nossas exigências, podemos tomar à força o que desejamos.
- Ele devolveu o olhar ressabiado da feiticeira. - Você fala em confiança?
Sidnéia não respondeu e pôs-se mais uma vez a caminho do acampamento. Talvez ela devesse mandar Bok embora. O ato aplacaria as dúvidas de Entreri em relação
a ela, embora isso certamente desse a ele uma vantagem caso algum problema viesse a surgir. Mas mandar o golem embora poderia também responder algumas das questões
ainda mais perturbadoras que lhe pesavam agora, as questões a respeito de Dendibar.
O dia seguinte foi o mais tranqüilo - e o mais produtivo - da viagem. Sidnéia se debatia com sua confusão em relação às razões para a presença do golem. Ela
chegara à conclusão de que deveria mandar Bok embora, mesmo que por nenhuma outra razão a não ser provar para si mesma a confiança de seu mestre.
Entreri observou com interesse os sinais reveladores daquela luta, sabendo que enfraquecera o elo entre Sidnéia e Dendibar o bastante para fortalecer sua
própria posição junto à jovem feiticeira. Agora ele devia simplesmente esperar e aguardar pela próxima chance de realinhar seus companheiros.
Do mesmo modo, Cattiebrie esperava por outras oportunidades de cultivar as sementes que plantara nos pensamentos de Jierdan. Os resmungos que ela via o soldado
esconder de Entreri e Sidnéia lhe revelavam que faltava pouco para seu plano ter um início promissor.
Eles chegaram a Lua Argêntea pouco depois do zênite do dia seguinte. Se tinha ainda qualquer dúvida quanto à decisão de se juntar ao grupo da Torre das Hostes,
Entreri a descartou assim que considerou a desmesura da proeza. Com os incansáveis corcéis mágicos, eles haviam percorrido quase oitocentos quilômetros em quatro
dias. E, depois de uma viagem sem esforço - a absoluta facilidade em conduzir as montarias -, eles dificilmente se consideravam cansados quando chegaram aos contrafortes
das montanhas logo a oeste da cidade encantada.
- O rio Rauvin - Jierdan, na vanguarda do grupo, informou-lhes. - E um posto avançado.
- Vamos dar a volta - replicou Entreri.
- Não - disse Sidnéia. - São os guias para a Ponte da Lua. Eles nos deixarão passar, e a ajuda deles facilitará bastante a nossa admissão na cidade.
Entreri olhou para Bok, que vinha subindo pesadamente pela trilha atrás deles.
- Todos nós? - ele perguntou, incrédulo.
Sidnéia não esquecera o golem.
- Bok - disse ela, assim que o golem os alcançou -, você não é mais necessário. Volte para Dendibar e diga a ele que tudo está correndo bem.
Os olhos de Cattiebrie se iluminaram com a possibilidade de mandarem o monstro de volta, e Jierdan, surpreso, olhou para trás com ansiedade crescente. Observando-o,
Cattiebrie viu mais uma vantagem naquela inesperada reviravolta. Ao mandar o golem embora, Sidnéia dava mais crédito aos temores de uma aliança entre ela e o assassino,
temores que Cattiebrie implantara no soldado.
O golem não se moveu.
- Eu disse para ir embora! - exigiu Sidnéia.
Ela percebeu com o canto do olho que Entreri a observava, nada surpreso.
- Maldito seja - ela murmurou consigo mesma. Ainda assim, Bok não se moveu.
- Você é realmente perceptivo - ela rosnou para Entreri.
- Fique aqui, então - ela sibilou para o golem. - Vamos ficar na cidade durante vários dias. - Deslizou da sela para o chão e saiu pisando duro,
humilhada pelo assassino que ria dela pelas costas.
- E as montarias? - Jierdan perguntou.
- Foram criadas para nos trazer a Lua Argêntea, e só - respondeu Sidnéia e, enquanto os quatro se afastavam pela trilha, as luzes bruxuleantes que
foram outrora os cavalos desvaneceram-se num brilho azul e suave, e então sumiram completamente.
Tiveram pouco trabalho para passar pelo posto avançado, principalmente quando Sidnéia se identificou como uma representante da Torre das Hostes Arcanas. Ao
contrário da maioria das cidades nas hostis terras do norte, que levavam seus temores em relação a forasteiros à beira da paranóia, Lua Argêntea não se encontrava
enclausurada por muralhas sinistras e fileiras de soldados desconfiados. O povo daquela cidade encarava os visitantes como um engrandecimento para sua cultura, e
não como uma ameaça ao seu modo de vida.
Um dos Cavaleiros em Prata, os guardas no posto sobre o Rauvin, conduziu os quatro viajantes à entrada da Ponte da Lua, uma estrutura em arco, invisível,
que cobria o vão do rio diante do portão principal da cidade. Os estrangeiros atravessaram hesitantes, incomodados com a falta de matéria visível sob seus pés. Mas
logo se viram descendo as ruas serpeantes da cidade mágica. O ritmo de seus passos se reduziu inconscientemente, apanhado pela indolência contagiosa, a atmosfera
relaxada e contemplativa que dissipou até mesmo a intensidade focalizada de Entreri.
Torres altas e retorcidas e estruturas de formas estranhas os saudavam a cada esquina. Nenhum estilo arquitetônico único dominava Lua Argêntea, a não ser
que este fosse a liberdade de um construtor, ou construtora, de exercer sua criatividade pessoal sem medo de críticas ou desprezo. O resultado era um lugar de esplendores
sem fim, não uma cidade rica em tesouros enumeráveis - como eram Águas Profundas e Mirabar, as duas vizinhas mais poderosas -, mas incomparável em beleza estética.
Um retrocesso aos primeiros dias dos Reinos, quando os elfos, os anões e os humanos tinham espaço suficiente para perambular sob o sol e as estrelas sem medo de
cruzar a fronteira invisível de algum reino hostil. Lua Argêntea existia em franco desafio aos conquistadores e tiranos do mundo, um lugar onde ninguém tinha direitos
sobre outra pessoa.
Ali pessoas de todas as raças virtuosas caminhavam livres e sem medo pelas ruas e vielas nas noites mais escuras e, se os viajantes passassem por alguém e
não fossem saudados com uma palavra de boa acolhida, era apenas porque a pessoa estava profundamente empenhada numa contemplação meditativa.
- O grupo do anão está a menos de uma semana de Sela Longa - Sidnéia mencionou enquanto eles andavam pela cidade. - Pode ser que tenhamos de esperar
vários dias.
- Aonde vamos? - Entreri perguntou, sentindo-se um peixe fora d'água.
Os valores que obviamente tinham precedência em Lua Argêntea eram diferentes dos de qualquer cidade em que ele já estivera e eram completamente estranhos
às suas próprias concepções do mundo como um lugar de cobiça e lascívia.
- Incontáveis estalagens enchem as ruas - Sidnéia respondeu. - Hóspedes são abundantes por aqui, e são acolhidos com sinceridade.
- Então, nossa tarefa de encontrar os companheiros, assim que chegarem, há de se mostrar realmente difícil - Jierdan resmungou.
- Nem tanto - replicou Sidnéia obliquamente. - O anão vem a Lua Argêntea em busca de informações. Logo depois de chegarem, Bruenor e seus amigos irão
à Câmara dos Sábios, a mais famosa biblioteca em todo o norte.
Entreri estreitou os olhos e disse:
- E nós estaremos lá para recebê-los.

11. OS CHARCOS DOS TROLLS

Era uma região de terra enegrecida e brejos nevoentos, onde a podridão e uma sensação impressionante de perigo sujeitavam até mesmo os céus mais ensolarados.
A paisagem subia e descia continuamente e o cimo de cada elevação, galgado por qualquer viajante na esperança de avistar o fim do lugar, trazia apenas desespero
e mais das mesmas cenas imutáveis.
Os valentes Cavaleiros de Nesmé se aventuravam nos urzais toda primavera para fazer grandes queimadas e expulsar os monstros daquela terra hostil dos limites
de sua vila. A estação ia longe e várias semanas haviam se passado desde o último incêndio, mas, mesmo então, os vales estreitos e baixos se achavam nublados pela
fumaça e as ondas de calor das grandes queimadas ainda tremeluziam no ar ao redor das maiores pilhas carbonizadas de madeira.
Bruenor conduzira seus amigos para os Charcos dos Trolls como teimosa afronta aos cavaleiros e estava determinado a marchar até Lua Argêntea. Mas, bastou
apenas o primeiro dia de viagem para que até ele começasse a duvidar de sua decisão.
O lugar exigia um estado de prontidão constante, e cada bosque de árvores queimadas pelo qual passavam os obrigava a parar, pois os cepos negros e desprovidos
de folhas e os troncos caídos assumiam uma incômoda semelhança com os homúnculos dos brejos. Inúmeras vezes, o terreno esponjoso sob seus pés se transformava subitamente
num fosso profundo de lama e somente a reação rápida de um companheiro próximo impedia que um deles descobrisse a verdadeira profundidade dos fossos.
Uma brisa contínua soprava pelos urzais, alimentada pelos trechos contrastantes de solo quente e brejos frios, e trazia um odor mais fétido que o da fumaça
e da fuligem das queimadas, um cheiro enjoativamente doce, perturbadoramente familiar para Drizzt Do'Urden: o fedor dos trolls.
Aquele era o domínio dos monstros, e todos os boatos sobre os Pântanos Eternos que os companheiros tinham ouvido - e descartado com uma risada no conforto
d'0 Varapau de Pileque - não poderiam tê-los preparado para a realidade que subitamente se abateu sobre eles ao entrarem no lugar.
Bruenor estimara que seu grupo conseguiria se livrar dos urzais em cinco dias se mantivessem um ritmo forte. Naquele primeiro dia, percorreram, na verdade,
a distância necessária, mas o anão não previra os contínuos desvios que teriam de empreender para evitar os brejos. Apesar de terem marchado mais de trinta quilômetros
naquele dia, estavam a menos de dez do ponto onde haviam entrado nos urzais.
Ainda assim, não encontraram trolls nem qualquer outro tipo de monstro, e montaram acampamento naquela noite sob a falsa aparência de silencioso otimismo.
- 'Cê vai ficar de guarda? - Bruenor perguntou a Drizzt, ciente de que somente o drow possuía os sentidos aguçados de que precisariam para sobre viver
àquela noite.
Drizzt assentiu.
- A noite toda - ele respondeu, e Bruenor não discutiu. O anão sabia que nenhum deles conseguiria dormir naquela noite, estando ou não de guarda.
As trevas chegaram súbita e completamente. Bruenor, Régis e Wulfgar não enxergavam as próprias mãos se as mantivessem a uma pequena distância do rosto. Com
a escuridão, ouviram-se os sons de um terrível pesadelo. Ruídos de passos chapinhando na lama se aproximavam de todos os lados. A fumaça se misturava à névoa noturna
e se enovelava em volta dos troncos das árvores desfolhadas. O vento não aumentou, mas a intensidade de seu fedor hediondo sim, e agora transportava os gemidos dos
espíritos atormentados dos desgraçados habitantes dos urzais.
- Peguem suas coisas - Drizzt sussurrou para os amigos.
- Que é que 'cê 'tá vendo? - Bruenor perguntou baixinho.
- Nada diretamente - veio a resposta. - Mas eu os sinto ao nosso redor, como todos vocês. Não podemos deixar que nos surpreendam aqui. Devemos andar
entre eles para evitar que se juntem à nossa volta.
- Minhas pernas doem - reclamou Régis. - E os meus pés estão inchados. Eu nem sei se consigo voltar a calçar as botas!
- Ajude ele, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - O elfo 'tá certo. A gente vai te carregar se for preciso, Ronca-bucho, mas não vamos ficar aqui.
Drizzt assumiu a liderança e, às vezes, precisava segurar a mão de Bruenor, que vinha logo atrás dele - e assim acontecia pela fila toda até Wulfgar, na retaguarda
-, para evitar que seus companheiros se extraviassem.
Todos pressentiam as formas escuras que se moviam ao redor deles e farejavam a vileza dos perversos trolls. Vendo claramente o exército se reunir ao seu redor,
somente Drizzt compreendeu a precariedade de suas posições e arrastou os amigos o mais rápido que pôde.
A sorte estava ao lado deles, pois a lua saiu naquele instante, transformando a névoa numa fantasmagórica manta prateada e revelando a todos os amigos o
perigo premente. Agora, com o movimento visível de todos os lados, os amigos corriam.
Formas esguias e trôpegas surgiam das brumas ao lado deles, dedos providos de garras se estendiam para puxar-lhes as roupas à medida que passavam correndo.
Wulfgar se colocou ao lado de Drizzt, afastando os trolls com grandes golpes de Garra de Palas, enquanto o drow se concentrava em mantê-los em movimento e na direção
correta.
Durante horas eles correram e, ainda assim, os trolls avançavam. Vencendo todas as sensações de exaustão, vencendo a dor e depois o entorpecimento dos membros,
os amigos correram, sabendo que encontrariam uma morte certa e horrível caso vacilassem por apenas um segundo, o medo a sobrepujar os gritos de derrota de seus corpos.
Mesmo Régis, gordo e indolente demais, e com as pernas curtas demais para a estrada, acompanhava o passo e instigava os que estavam à sua frente a correr ainda mais.
Drizzt compreendeu a futilidade da marcha. O martelo de Wulfgar invariavelmente perdia velocidade e todos vacilavam mais e mais a cada minuto que passava.
Restavam ainda muitas horas de treva, e mesmo o amanhecer não garantiria o fim da perseguição. Quantos quilômetros conseguiriam correr? Quando é que tomariam uma
trilha que daria num brejo sem fundo, com centenas de trolls às suas costas?
Drizzt mudou de estratégia. Não mais tentando apenas fugir, ele começou a procurar uma porção de terreno defensável. Ele avistou um pequeno outeiro, com três
metros de altura talvez, e um aclive íngreme, quase escarpado, dos três lados que ele enxergava a partir daquele ângulo. Uma árvore nova e solitária crescia na face
da colina. Ele apontou o lugar para Wulfgar, que compreendeu o plano imediatamente e mudou de direção. Dois trolls apareceram para lhes bloquear o caminho, mas Wulfgar,
urrando de fúria, arremeteu para enfrentá-los. Garra de Palas desferiu uma sucessão furiosa de golpes e os outros três companheiros foram capazes de se esgueirar
por trás do bárbaro e chegar ao outeiro.
Wulfgar abandonou a luta e correu para se juntar a eles, com os teimosos trolls no seu encalço e, agora, acompanhados por uma extensa formação de sua raça
perversa.
Surpreendentemente ágil, mesmo apesar da barriga, Régis trepou pela arvore até o topo do outeiro. Para Bruenor, porém, sem a constituição física adequada
para essa atividade, a escalada foi uma luta.
- Ajude-o! - Drizzt, de costas para a árvore e as cimitarras em prontidão, gritou para Wulfgar. - Depois é sua vez! Vou segurá-los.
A respiração de Wulfgar vinha em arquejos forçados e uma linha de sangue brilhante se desenhava em sua testa. Ele trombou contra a árvore e começou a subir
atrás do anão. As raízes se vergaram sob o peso combinado dos dois e eles pareciam não fazer muito progresso. Por fim, Régis conseguiu agarrar a mão de Bruenor e
ajudá-lo a galgar o topo, e Wulfgar, com o caminho livre diante dele, fez menção de se juntar aos outros dois. Com a própria segurança assegurada, eles olharam para
trás, preocupados com o amigo.
Drizzt combatia três dos monstros e outros faziam fila atrás dos primeiros. Wulfgar pensou em saltar de volta ao chão desde sua posição a meio caminho do
topo da árvore e morrer ao lado do drow, mas Drizzt, olhando de vez em quando por sobre o ombro para verificar o progresso de seus amigos, notou a hesitação do bárbaro
e leu a mente dele.
- Vá! - ele gritou. - Essa demora não ajuda em nada!
Wulfgar precisou parar e considerar a origem da ordem. Sua confiança em Drizzt e o respeito que nutria por ele sobrepujaram o desejo instintivo de voltar
à luta e, relutante, o bárbaro se alçou para se juntar a Régis e Bruenor no pequeno platô.
Os trolls se posicionaram para franquear o drow, e as garras imundas tentavam alcançá-lo por todos os lados. Ele ouviu os amigos, todos os três, implorando
que se desprendesse da luta e se juntasse a eles, mas sabia que os monstros já tinham se esgueirado por trás para lhe interceptar a retirada.
Um sorriso se espalhou por seu rosto. A luz em seus olhos cintilou.
Ele se lançou contra o exército principal dos trolls, afastando-se do outeiro inatingível e dos amigos horrorizados.
Os três companheiros, entretanto, tiveram pouco tempo para conjeturar sobre a sorte do drow, pois logo se viram atacados por todos os lados à medida que os
trolls avançavam implacavelmente, usando as garras para chegar até eles.
Cada amigo se posicionou para defender o próprio lado. Por sorte, a ladeira do lado de trás do outeiro se revelou ainda mais íngreme - em alguns pontos, o
aclive era negativo - e os trolls não conseguiam efetivamente chegar até eles por trás.
Wulfgar era o mais mortífero, derrubava um troll da encosta do outeiro a cada golpe de seu possante martelo. Mas, antes mesmo que o bárbaro conseguisse recuperar
o fôlego, um outro havia tomado o lugar do primeiro.
Régis, golpeando com sua pequena maça, era o menos eficiente. Ele martelava com toda a força os dedos, os cotovelos e mesmo as cabeças dos trolls que chegavam
mais perto, mas não conseguia desalojar os monstros que se agarravam às suas posições. Invariavelmente, à medida que cada um deles galgava a elevação, Wulfgar ou
Bruenor tinham de abandonar a própria luta e afugentar a fera com uma pancada.
Eles sabiam que, da primeira vez que um único golpe falhasse, encontrariam um troll de pé e pronto para atacar ao lado deles no topo do outeiro.
Deu-se a catástrofe depois de apenas alguns minutos. Bruenor girou para auxiliar Régis quando mais um monstro alçou o torso por sobre o topo. O machado do
anão penetrou a criatura com extrema perícia.
Com demasiada perícia. Entrou pelo pescoço do troll e o atravessou, decapitando a criatura. Mas embora a cabeça voasse do outeiro, o corpo continuou avançando.
Régis caiu de costas, horrorizado demais para reagir.
- Wulfgar! - gritou Bruenor.
O bárbaro girou sobre os calcanhares, sem que se detivesse tempo suficiente para se admirar com o adversário decapitado, e deu com Garra de Palas no peito
da coisa, fazendo-a voar pelos ares e cair do outeiro.
Duas outras mãos se agarraram à beirada. Do lado de Wulfgar, outro troll havia rastejado mais de meio caminho por sobre o topo. E atrás deles, onde Bruenor
estivera, um terceiro se achava de pé e sobre o halfling indefeso.
Eles não sabiam por onde começar. O outeiro fora tomado. Wulfgar chegou a pensar em saltar no meio da aglomeração lá embaixo para morrer como um verdadeiro
guerreiro, matando tantos inimigos quanto pudesse, e também para não precisar assistir ao despedaçamento dos dois amigos.
Mas, de repente, o troll por sobre o halfling lutou para se equilibrar, como se algo o puxasse por trás. Uma de suas pernas se dobrou e então ele caiu de
costas na escuridão.
Drizzt Do'Urden arrancou sua espada da panturrilha da coisa quando esta passou sobre ele, depois rolou habilmente para o topo do outeiro, erguendo-se bem
ao lado do halfling surpreso. Seu manto ondeava em farrapos e linhas de sangue escureciam suas vestes em muitos pontos.
Mas ele conservava o sorriso, e a chama em seus olhos cor de lavanda revelou aos amigos que ele ainda tinha muito para dar. Passou como um raio pelo anão
e pelo bárbaro admirado e talhou o troll seguinte, despachando-o rapidamente encosta abaixo.
- Como? - perguntou Bruenor, estupefato, embora soubesse, enquanto corria novamente para Régis, que nenhuma resposta viria do drow atarefado.
A manobra audaciosa de Drizzt lá embaixo lhe dera uma vantagem sobre os seus inimigos. Os trolls tinham o dobro da sua altura e os que estavam atrás daqueles
que combatiam não faziam idéia de que ele estava a caminho. Sabia que infligira pouco dano permanente aos monstros - os ferimentos das estocadas que ele cravava
ao passar cicatrizariam rápido, e os membros que ele decepava cresceriam novamente -, mas a ousada manobra ganhou-lhe o tempo de que precisava para se livrar da
horda impetuosa e contorná-la em meio às trevas. Uma vez livre na noite escura, ele prosseguiu com cautela de volta ao outeiro, passando pelos trolls distraídos
com a mesma intensidade flamejante. Apenas sua agilidade o salvou ao chegar à base, pois ele praticamente subiu correndo a encosta do outeiro, chegando a escalar
as costas de um troll, rápido demais para os monstros surpresos o agarrarem.
A defesa do outeiro agora se consolidava. Frente ao machado cruel de Bruenor, ao martelo esmagador de Wulfgar e às cimitarras sibilantes de Drizzt, cada um
a defender um lado, os trolls que subiam não encontravam uma única rota desimpedida até o topo. Régis ficou no meio do pequeno platô, correndo ora para um lado,
ora para outro, a fim de ajudar seus amigos sempre que um troll chegava perto demais e conseguia um ponto de apoio.
Mesmo assim, os trolls avançavam, e a aglomeração lá embaixo crescia a cada minuto que passava. Os amigos sabiam perfeitamente qual seria o resultado inevitável
daquele confronto. Sua única chance residia em desfazer a aglomeração de monstros lá embaixo para abrir uma rota de fuga, mas eles estavam empenhados demais em meramente
rechaçar os novos inimigos para procurar uma solução.
Exceto Régis.
Aconteceu quase por acidente. Um braço trépido, decepado por uma das espadas de Drizzt, rastejara até o centro das defesas. Régis, completamente enojado,
golpeava-o desvairadamente com sua maça.
- Esta coisa não morre! - ele gritava enquanto o braço continuava a se contorcer, tentando agarrar a pequena arma. - Não morre! Alguém aí acerte esta coisa!
Cortem! Botem fogo!
Os outros três estavam ocupados demais para reagir aos rogos desesperados, mas a última frase de Régis, berrada em total aflição, deu-lhe uma idéia. Ele pulou
em cima do membro trépido, imobilizando-o por um instante enquanto vasculhava sua mochila em busca da isca e da pederneira.
Suas mãos trêmulas mal conseguiam golpear a pedra, mas a mais minúscula centelha cumpriu seu papel assassino. O braço do troll pegou fogo e crepitou, transformando-se
numa bola friável. Nada disposto a perder a oportunidade diante dele, Régis apanhou o membro flamejante e correu até Bruenor. Ele refreou o machado do anão, dizendo
a Bruenor para deixar o novo oponente ultrapassar a borda do cômoro.
Quando o troll se içou, Régis ateou-lhe fogo à cara. A cabeça praticamente explodiu em chamas e, gritando de agonia, o troll despencou do outeiro, levando
as labaredas mortíferas aos próprios companheiros.
Os trolls não temiam a lâmina nem o martelo. Os ferimentos infligidos por essas armas cicatrizavam rapidamente e mesmo uma cabeça decepada logo voltava a
crescer. Esses confrontos, na verdade, ajudavam a propagar a maldita espécie, pois um troll costumava regenerar um braço decepado e um braço decepado costumava
regenerar um troll inteiro! Inúmeros felinos predadores e lobos haviam se banqueteado com a carcaça de um troll apenas para descobrir que haviam provocado a própria
morte quando um novo monstro crescesse em seu ventre.
Mas mesmo os trolls tinham algo a temer. O fogo era sua ruína, e os trolls dos Pântanos Eternos o conheciam muito bem. Era impossível regenerar queimaduras
e um troll destruído pelas chamas estava definitivamente morto. Quase como se isso tivesse um propósito no desígnio dos deuses, o fogo aderia à pele ressecada de
um troll tão prontamente quanto a gravetos secos.
Os monstros do lado de Bruenor fugiram ou tombaram, formando pilhas carbonizadas. Bruenor deu uma palmada nas costas do halfling ao observar o espetáculo
gratificante, e a esperança retornou aos seus olhos cansados.
- Lenha - concluiu Régis. - Precisamos de lenha.
Bruenor tirou a mochila das costas.
- 'Cê vai ter sua lenha, Ronca-bucho - ele gargalhou, apontando para a árvore nova que subia pela encosta do outeiro. - E tem óleo na minha bolsa!
- Ele correu até Wulfgar. - A árvore, garoto! Ajude o halfling - foi sua única explicação ao se colocar diante do bárbaro.
Assim que Wulfgar deu meia-volta e viu Régis manuseando desajeitadamente um frasco de óleo, ele compreendeu sua parte no plano. Nenhum troll havia ainda retornado
àquele lado do outeiro, e o fedor de carne queimada lá embaixo era quase insuportável. Com um único tranco, o musculoso bárbaro arrancou a árvore do solo e içou-a
até Régis. Depois, retrocedeu e rendeu o anão, permitindo a Bruenor colocar seu machado em ação para rachar a lenha.
Logo, projéteis incandescentes iluminavam o céu a toda volta do outeiro, caíam em meio à horda de trolls, e centelhas mortíferas irrompiam por todos os lados.
Régis correu para a beirada do outeiro com outro frasco de óleo e o aspergiu sobre os trolls mais próximos, provocando neles um frenesi de pânico. A confusão estava
formada e, entre a debandada e a rápida disseminação das chamas, a área abaixo do outeiro foi liberada em questão de minutos, e os amigos não avistaram nenhum outro
movimento durante as poucas horas que restavam à noite, a não ser os lamentáveis espasmos da massa de membros e torsos queimados. Fascinado, Drizzt se perguntou
quanto tempo as coisas sobreviveriam em face das feridas cauterizadas que jamais regenerariam.
Mesmo com a exaustão, nenhum dos companheiros conseguiu dormir naquela noite. Com o romper da aurora - e nenhum sinal de trolls nas redondezas, apesar da
fumaça asquerosa que pairava pesadamente no ar -, Drizzt insistiu para que prosseguissem.
Eles deixaram sua fortaleza e puseram-se a caminhar porque não tinham outra escolha e porque se recusavam a desistir num ponto em que outros poderiam ter
vacilado. Eles não encontraram nada de imediato, mas sentiam os olhos dos urzais ainda sobre eles, um silêncio abafado que antecipava a catástrofe.
Mais tarde, naquela manhã, enquanto caminhavam com dificuldade pela turfa musgosa, Wulfgar estacou de repente e arremessou Garra de Palas contra um pequeno
bosque de árvores enegrecidas.
O homúnculo dos brejos, pois esse era realmente o alvo do bárbaro, cruzou os braços defensivamente à sua frente, mas o martelo de guerra mágico o atingiu
com força suficiente para rachar o monstro ao meio. Seus companheiros assustados, quase uma dezena deles, abandonaram suas posições e desapareceram nos urzais.
- Como é que você sabia? - perguntou Régis, pois estava certo de que o bárbaro mal havia olhado para o arvoredo.
Wulfgar chacoalhou a cabeça, sinceramente ignaro do que o havia impelido. Drizzt e Bruenor compreenderam e aprovaram. Estavam todos operando por instinto
agora, e a exaustão levava suas mentes para muito além do pensamento racional e consistente. Os reflexos de Wulfgar continuavam no mesmo nível de delicada precisão.
Ele poderia ter captado uma insinuação de movimento com o canto dos olhos, tão minúscula que sua mente consciente sequer o teria registrado. Mas seu instinto de
sobrevivência reagira. O anão e o drow trocaram olhares de aprovação, dessa vez já não tão surpresos com a contínua demonstração de maturidade do bárbaro como guerreiro.
O dia foi ficando insuportavelmente quente, o que aumentava o desconforto. Tudo o que queriam fazer era desabar e deixar a fadiga dominá-los.
Mas Drizzt os impelia, sempre em frente, à procura de mais um ponto defensável, apesar de duvidar que eles conseguissem encontrar outro tão adequado quanto
o último. Mesmo assim, sobrara óleo suficiente para sobreviverem a mais uma noite caso conseguissem defender uma pequena trincheira tempo suficiente para tirar máximo
proveito das chamas. Qualquer elevação, até mesmo um bosque, já bastaria.
O que eles encontraram, porém, foi outro brejo, estendendo-se até onde a vista alcançava em todas as direções, quilômetros talvez.
- Poderíamos virar para o norte - Drizzt sugeriu a Bruenor. - É possível que, a essa altura, tenhamos seguido para leste o suficiente para nos livrarmos
dos urzais e deixarmos a zona de influência de Nesmé.
- A noite vai nos pegar ao longo da margem - Bruenor observou sombriamente.
- Poderíamos atravessar - Wulfgar sugeriu.
- Trolls gostam de água? - Bruenor perguntou a Drizzt, intrigado pelas possibilidades. O drow deu de ombros.
- Vale a pena tentar, então! - proclamou Bruenor.
- Juntem alguns troncos - instruiu Drizzt. - Não percam tempo amarrando-os: podemos fazer isso na água, se for preciso.
Fazendo os troncos flutuarem como bóias ao lado deles, deslizaram para dentro das águas frias e estagnadas do imenso brejo.
Apesar de não estarem entusiasmados com a sensação de que ventosas lamacentas os aspiravam a cada passo, Drizzt e Wulfgar descobriram que era possível caminhar
em muitos pontos e impelir a jangada improvisada num ritmo constante. Régis e Bruenor, baixos demais para a água, estendiam-se de través nos troncos. Por fim, eles
começaram a se sentir mais à vontade com a quietude lúgubre do brejo e aceitaram a rota aquática como um descanso tranqüilo.
O retorno à realidade foi repentino.
A água pareceu explodir, e três formas semelhantes a trolls os atacaram numa súbita emboscada. Régis, quase adormecido sobre seu tronco, foi atirado n'água.
Wulfgar tomou uma pancada no peito antes que conseguisse preparar Garra de Palas, mas ele não era um halfling e mesmo a força considerável do monstro não foi capaz
de atirá-lo para trás. O troll que se ergueu diante do vigilante drow encontrou as duas cimitarras em ação antes que sua cabeça tivesse sequer deixado a água.
A batalha se revelou tão furiosa quanto fora abrupto seu início. Exasperados pelas contínuas exigências dos implacáveis urzais, os amigos reagiram ao assalto
com um contra-ataque de fúria inigualável. O troll do drow foi feito em pedaços antes mesmo que conseguisse ficar de pé, e Bruenor teve tempo suficiente para se
preparar e atacar o monstro que derrubara Régis.
O troll de Wulfgar, embora desferisse uma segunda pancada logo depois da primeira, foi atingido por uma seqüência feroz de golpes que jamais teria esperado.
Não sendo uma criatura inteligente, seu raciocínio e sua experiência em batalha limitados levaram-no a acreditar que o adversário não deveria ter continuado de pé
e pronto para retaliar depois de ter recebido dois golpes pesados.
Sua percepção, porém, foi pequeno consolo quando Garra de Palas fez o monstro afundar novamente.
Régis retornou à superfície, depois lançou um braço por cima do tronco. Um dos lados de seu rosto brilhava com um vergão e uma esfoladura de aparência dolorosa.
- O que eram essas coisas? - Wulfgar perguntou ao drow.
- Algum tipo de troll - concluiu Drizzt, ainda desferindo estocadas na forma imóvel que jazia diante dele sob a água.
Wulfgar e Bruenor compreenderam por que o drow continuava atacando. Subitamente apavorados, eles voltaram a golpear as formas que jaziam ao lado deles, esperando
mutilar os cadáveres o bastante para que pudessem estar a quilômetros dali antes que as coisas ressuscitassem mais uma vez.
Sob a superfície do brejo, na serena solidão das águas escuras, as pancadas metódicas do machado e do martelo perturbaram o sono de outros habitantes. Um
deles, em particular, dormira durante mais de uma década, sem ser incomodado por nenhum dos potenciais perigos que se ocultavam nas redondezas, seguro por saber-se
supremo.
Tonto e extenuado pelo golpe que recebera, como se a inesperada emboscada tivesse forçado seu espírito para além do ponto de ruptura, Régis desabou indefeso
sobre o tronco e imaginou se ainda teria condições de lutar. Ele não percebeu quando o tronco começou a derivar de leve, impelido pela brisa quente dos urzais. Dirigido
pelas raízes expostas de uma pequena fileira de árvores, o tronco flutuou livremente rumo às águas cobertas de nenúfares de uma tranqüila laguna.
Régis se espreguiçou com indolência, consciente apenas em parte da mudança no ambiente. Ele ainda ouvia indistintamente, ao fundo, a conversa de seus amigos.
Entretanto, ele amaldiçoou seu descuido e lutou contra o domínio teimoso da letargia assim que a água começou a se agitar diante dele. Uma forma púrpura e
coriácea rompeu a superfície e, então, ele viu a imensa bocarra circular com as terríveis fileiras de dentes afiados.
Régis, agora ereto, não gritou nem esboçou a menor reação, fascinado pelo espectro da própria morte que pairava diante dele.
Um verme gigante.
- Achei que a água fosse ao menos nos oferecer alguma proteção contra aquelas coisas imundas - gemeu Wulfgar, dando uma última pancada no cadáver do
troll que jazia submerso diante dele.
- Pelo menos o deslocamento é mais fácil - Bruenor interveio. - Junte os troncos e vamos em frente. Não dá prá saber quantos parentes desses três aí
estão espreitando a área.
- Não tenho o menor desejo de ficar e contar - replicou Wulfgar. Ele olhou ao redor, perplexo, e perguntou - Onde está Régis?
Foi a primeira vez em meio à confusão da luta que um deles notou que o halfling flutuara para longe. Bruenor começou a chamar por ele, mas Drizzt tapou-lhe
a boca com a mão.
- Escute - ele disse.
O anão e Wulfgar ficaram imóveis e aguçaram os ouvidos na direção para a qual o drow agora olhava atentamente. Passado um instante, eles ouviram a voz trepidante
do halfling.
- ... é mesmo uma linda jóia - eles ouviram, e concluíram imediatamente que Régis estava usando o pingente para se livrar de alguma encrenca.
A gravidade da situação ficou evidente no mesmo instante, pois Drizzt havia distinguido algo por entre o borrão de imagens que via através de uma fileira
de árvores, cerca de trinta metros a oeste.
- Um verme! - ele sussurrou para os companheiros. - Mais descomunal que qualquer coisa que eu já tenha visto! - Ele indicou a Wulfgar uma árvore alta,
depois estabeleceu um trajeto para flanquear a laguna pelo sul, tirando a estátua de ônix da mochila e chamando por Guenhwyvar. Eles precisariam de toda a ajuda
possível contra aquele monstro.
Mergulhando na água, Wulfgar chegou facilmente à fileira de árvores e começou a subir por uma delas, a cena agora clara diante dele. Bruenor o seguiu, mas
esgueirou-se por entre as árvores, afundando-se cada vez mais no brejo, e posicionou-se do outro lado.
- E tem mais - negociava Régis, alteando a voz, esperando que seus amigos o ouvissem e salvassem. Mantinha o rubi hipnótico girando na ponta da corrente.
Ele não pensou nem por um instante que o monstro primitivo fosse capaz de entendê-lo, mas a criatura parecia fascinada o bastante pelas cintilações da jóia para
se abster de devorá-lo, ao menos momentaneamente.
Na verdade, a magia do rubi era de pouca utilidade contra a criatura. Os vermes gigantes não possuíam mentes dignas de menção e os encantos não exerciam qualquer
efeito sobre eles. Mas o imenso verme, como se não estivesse realmente faminto, ficou fascinado pela dança da luz e permitiu que Régis continuasse com a brincadeira.
Drizzt se colocou em posição um pouco abaixo da fileira de árvores, o arco agora em suas mãos, enquanto Guenhwyvar sorrateiramente contornava a retaguarda
do monstro. Drizzt viu Wulfgar equilibrado no alto da árvore acima de Régis, pronto para saltar e agir. O drow não via Bruenor, mas sabia que o astucioso anão encontraria
uma maneira de se tornar eficaz.
Por fim, o verme se cansou da brincadeira com o halfling e sua jóia rodopiante. Ouviu-se uma repentina inspiração e o chiado do ar entrando em contato com
a saliva ácida.
Reconhecendo o perigo, Drizzt agiu primeiro, conjurando um globo de escuridão ao redor do tronco do halfling. Régis, a princípio, pensou que as trevas repentinas
sinalizassem o fim de sua vida, mas compreendeu tudo assim que a água gelada lhe atingiu o rosto e o envolveu quando ele rolou languidamente para longe do tronco.
O globo confundiu o monstro por um instante, mas a fera expeliu uma golfada de seu ácido mortífero assim mesmo; a substância repulsiva chiou ao atingir a
água e fez o tronco irromper em chamas.
Wulfgar saltou, lançando-se intrepidamente no ar e gritando "Tempus!", as pernas em movimento, mas tendo o braço erguido e o martelo de guerra inteiramente
sob controle e pronto para atacar.
O verme desviou a cabeça para escapar ao bárbaro, mas não reagiu rápido o bastante. Garra de Palas despedaçou-lhe o lado da cara, rasgou-lhe o couro violáceo
e arrancou-lhe o perímetro externo da boca, esmigalhando dentes e ossos. Wulfgar dera tudo de si naquele golpe poderoso e não podia imaginar a enormidade de seu
sucesso ao cair de barriga na água gelada, sob a escuridão do drow.
Enfurecido pela dor e subitamente mais ferido do que jamais estivera, o grande verme emitiu um rugido que rachou árvores e fez com que criaturas dos urzais
há quilômetros dali corressem em busca de abrigo. Um arco percorreu-lhe o corpo de quinze metros de comprimento, para cima e para baixo, num furor contínuo que lançou
grandes jatos d'água no ar.
Drizzt se revelou então, a quarta flecha já pronta na corda do arco antes que a primeira sequer tivesse atingido o alvo. O verme urrou de agonia mais uma
vez e atacou o drow, liberando uma segunda golfada de ácido.
Mas o elfo ágil desaparecera muito antes que o ácido se espalhasse com um chiado pela água. Bruenor, enquanto isso, afundara completamente na água, caminhando
às cegas em direção à fera. Quase esmagado na lama pelas revoluções frenéticas do verme, ele emergiu logo atrás de uma das voltas do corpo da criatura. A largura
do torso compacto da criatura tinha o dobro da sua altura, mas o anão não hesitou e deu com o machado no couro resistente.
Guenhwyvar, então, saltou sobre as costas do monstro e percorreu sua extensão, empoleirando-se sobre a cabeça da criatura. As garras do gato se enterraram
nos olhos do verme antes que este tivesse tempo de reagir aos novos atacantes.
Drizzt retesou o arco, mas sua aljava estava quase vazia e uma dezena de hastes emplumadas se projetava da boca e da cabeça do verme. A fera decidiu se concentrar
em Bruenor, pois o machado selvagem do anão infligia as feridas mais graves. Mas antes que o verme conseguisse se revirar sobre o anão, Wulfgar emergiu da escuridão
e arremessou seu martelo de guerra. Garra de Palas atingiu novamente a bocarra com um baque surdo, e o osso enfraquecido rachou. Ossos e gotas ácidas de sangue chiaram
ao cair no brejo e o verme rugiu de agonia e protesto uma terceira vez.
Os amigos não se compadeceram. As flechas do drow atingiram o alvo numa série contínua. As garras do gato se enterravam cada vez mais fundo na carne. O
machado do anão cortava e talhava, fazendo com que pedaços de couro flutuassem para longe. E Wulfgar batia continuamente.
O verme gigante vacilou. Não conseguia retaliar. Em meio à onda de vertiginosa escuridão que rápido se precipitou sobre ele, o monstro estava demasiado ocupado
em meramente manter seu teimoso equilíbrio. Tinha a boca escancarada e um olho havia sido arrancado. Os golpes implacáveis do anão e do bárbaro haviam atravessado
seu couro protetor, e Bruenor grunhiu com prazer selvagem quando seu machado finalmente se enterrou na carne exposta.
Um súbito espasmo do monstro fez Guenhwyvar cair no brejo e arremessou Bruenor e Wulfgar longe. Os amigos nem mesmo tentaram voltar, sabendo que a tarefa
fora completada. O verme estremeceu e se contorceu em seu último afã de vida.
Então, tombou no brejo, para dormir o sono mais longo que jamais conhecera: o sono infinito da morte.


12. A ÚLTIMA MARCHA

O globo de escuridão que se dissipava encontrou Régis mais uma vez agarrado ao seu tronco - que agora não passava de um pedaço negro de carvão - e a chacoalhar
a cabeça.
- Está além de nossas forças - ele suspirou. - Não vamos conseguir.
-Tenha fé, Ronca-bucho - consolou-o Bruenor, chapinhando pela água para se juntar ao halfling. - A gente 'tá fazendo história, prá contar aos filhos dos nossos
filhos, e prá outras pessoas contarem quando a gente morrer!
- Você quer dizer hoje, então? - cortou Régis. - Ou talvez sobreviva mos hoje para morrermos amanhã.
Bruenor riu e agarrou o tronco.
- Ainda não, meu amigo - ele tranqüilizou Régis com um sorriso audaz.
- Não até eu resolver meus assuntos!
Drizzt, ao tomar providências para recuperar suas flechas, notou o abandono com que Wulfgar se recostava ao corpo do verme. De longe, achou que o jovem bárbaro
estava simplesmente exausto, mas, ao se aproximar, começou a desconfiar de algo mais sério. Wulfgar claramente poupava uma perna, como se esta - ou talvez a região
lombar - estivesse machucada.
Assim que notou o olhar preocupado do drow, Wulfgar se endireitou estoicamente.
- Vamos andando - ele sugeriu, afastando-se na direção de Bruenor e Régis e fazendo o possível para disfarçar o fato de que coxeava.
Drizzt não o questionou. O rapaz era feito de uma substância tão inflexível quanto a tundra no meio do inverno, demasiado altruísta e orgulhoso para admitir
um ferimento quando nada se ganharia com tal admissão. Seus amigos não poderiam esperar até que ele sarasse e certamente não conseguiriam carregá-lo, e assim ele
afastava a dor com um esgar e seguia adiante penosamente.
Mas Wulfgar estava realmente ferido. Ao espadanar na água depois de cair da árvore, torcera gravemente as costas. No calor da batalha, a adrenalina correndo
nas veias, ele não sentira a dor excruciante. Mas, agora, todo passo era difícil.
Drizzt o notou com a mesma clareza com que via o desespero no rosto normalmente jovial de Régis, ou a exaustão que fazia o anão trazer baixo o machado,
apesar da fanfarronice otimista de Bruenor. Com os olhos, ele percorreu os urzais, que pareciam se estender pela eternidade em todas as direções, e perguntou-se,
pela primeira vez, se ele e seus companheiros haviam realmente encontrado um desafio além das próprias forças.
Guenhwyvar não havia se ferido na batalha - estava só um pouco abalada -, mas Drizzt, reconhecendo a amplitude limitada de movimento da pantera naquele brejo,
mandou-a de volta ao seu próprio plano. Ele teria preferido manter a circunspecta pantera naquele momento. Mas a água era profunda demais para o gato, e a única
maneira de Guenhwyvar continuar em movimento teria sido saltando de uma árvore a outra. Drizzt sabia que não daria certo. Ele e os amigos teriam de continuar, sozinhos.
Recorrendo ao próprio âmago para fortalecer sua determinação, os companheiros completaram o serviço, o drow a inspecionar a cabeça do verme para recuperar
qualquer uma das vinte flechas que havia disparado, sabendo muito bem que provavelmente precisaria delas de novo antes de saírem dos urzais, enquanto os outros três
recuperavam o resto dos troncos e das provisões.
Pouco depois, os amigos flutuavam pelo brejo com o mínimo tolerável de esforço físico, lutando a cada minuto para manter suas mentes alertas ao perigoso ambiente.
Com o calor do dia, porém - o mais quente até então -, e o embalo suave dos troncos na água tranqüila, todos, à exceção de Drizzt, pegaram no sono, um a um.
O drow manteve a jangada improvisada em movimento e permaneceu vigilante. Eles não poderiam se permitir o menor atraso ou lapso. Por sorte, o alagado se abriu
depois da laguna e Drizzt teve de lidar com poucas obstruções. Depois de algum tempo, o brejo se tornou um grande borrão para ele, e seus olhos cansados registravam
poucos detalhes, só os contornos gerais e os movimentos inesperados nos juncos.
Mas ele era um guerreiro, com reflexos rápidos e excepcional disciplina. Os trolls aquáticos atacaram novamente e o minúsculo lampejo de consciência que restava
a Drizzt Do'Urden o convocou de volta à realidade a tempo de negar aos monstros a vantagem da surpresa.
Assim que ele os chamou, Wulfgar e Bruenor também despertaram, sobressaltados, as armas nas mãos. Apenas dois trolls se ergueram para enfrentá-los dessa vez,
e os três os despacharam em poucos e breves segundos.
Régis dormiu durante todo o incidente.
E veio o frescor da noite, dispersando misericordiosamente as ondas de calor. Bruenor tomou a decisão de seguir em frente, sempre com dois deles de pé, empurrando,
enquanto os outros dois descansavam.
- Régis não consegue empurrar - ponderou Drizzt. - Ele é baixo demais para o brejo.
- Então, deixe-o sentado e de guarda enquanto eu empurro - ofereceu Wulfgar estoicamente. - Não preciso de ajuda.
- Então 'cês dois ficam com o primeiro turno - disse Bruenor. - Ronca-bucho dormiu o dia inteiro. Ele deve dar pro gasto durante uma ou duas horas!
Drizzt subiu aos troncos pela primeira vez naquele dia e repousou a cabeça sobre a mochila. Contudo, não fechou os olhos. O plano de Bruenor de trabalhar
em turnos parecia razoável, mas pouco prático. Na noite escura, somente ele seria capaz de guiá-los e de se manter alerta à aproximação do perigo. Várias vezes,
enquanto Wulfgar e Régis cumpriam seu turno, o drow ergueu a cabeça e deu ao halfling algumas dicas sobre os arredores e conselhos quanto ao melhor rumo a se tomar.
Seria mais uma noite sem sono para Drizzt. Ele jurou descansar pela manhã, mas, ao romper da aurora, descobriu que as árvores e os juncos novamente se debruçavam
sobre eles. A própria ansiedade dos urzais os encurralava, como se um único ser consciente os vigiasse e tramasse contra sua passagem.
A vasta extensão de água se mostrou, na verdade, uma vantagem para os companheiros. O deslocamento sobre a superfície vítrea era mais fácil que caminhar e,
apesar dos perigos que os espreitavam, nada encontraram de hostil depois da segunda confusão com os trolls aquáticos. Quando o caminho que seguiam finalmente retornou
à terra enegrecida, após dias e noites de deriva, eles desconfiaram que poderiam ter percorrido a maior parte da distância até o outro lado dos Pântanos Eternos.
Assim que Régis subiu na árvore mais alta que foram capazes de encontrar - pois o halfling era o único leve o bastante para chegar aos galhos mais elevados (principalmente
desde que a viagem praticamente dissipara a obesidade de seu ventre) -, suas esperanças se confirmaram. Bem longe, no horizonte oriental, mas não mais do que a um
ou dois dias de viagem, Régis viu árvores: não os pequenos bosques de bétulas ou as árvores pantaneiras cobertas de musgo dos urzais, mas uma floresta densa de carvalhos
e olmos.
Eles seguiram em frente com um vigor renovado nos passos, apesar da exaustão. Caminhavam em terra firme mais uma vez e sabiam que teriam de acampar novamente
com as hordas de trolls errantes a espreitá-los, mas, agora, também sabiam que a provação dos Pântanos Eternos estava quase no fim. Não tinham a intenção de deixar
que os abomináveis habitantes do lugar viessem a derrotá-los naquela última etapa da viagem.
- Devíamos interromper nossa jornada por hoje - sugeriu Drizzt, embora o sol estivesse a mais de uma hora do horizonte ocidental. O drow já percebera
a presença que se congregava, pois os trolls despertavam de seu des- canso diurno e captavam os estranhos odores dos visitantes. - Devemos escolher cuidadosamente
o local do acampamento. Os urzais ainda não nos libertaram de seu domínio.
A gente vai perder uma hora ou mais - declarou Bruenor, mais para revelar o lado negativo do plano do que para discutir. O anão se lembrava muito
bem da terrível batalha no outeiro e não tinha o menor desejo de repetir aquele esforço colossal.
- Recuperaremos o tempo perdido amanhã - ponderou Drizzt. - Nossa necessidade no momento é sobreviver.
Wulfgar concordava inteiramente.
- O cheiro dessas feras hediondas fica mais forte a cada passo - disse ele -, de todos os lados. Não podemos fugir. Então, vamos lutar.
- Mas nos nossos termos - acrescentou Drizzt.
- Lá - sugeriu Régis, apontando um cômoro densamente coberto de vegetação à esquerda deles.
- É exposto demais - disse Bruenor. - Os trolls vão escalar aquilo com a mesma facilidade que a gente, e serão muitos de uma vez só para que a gente
impeça eles!
- Não enquanto estiver queimando - rebateu Régis, com um sorriso furtivo, e seus companheiros acabaram concordando com a lógica simples.
Eles passaram o restante das horas de luz preparando suas defesas. Wulfgar e Bruenor trouxeram tantos galhos secos quanto conseguiram encontrar, dispondo-os
em linhas estratégicas para estender o diâmetro da área-alvo, enquanto Régis limpava um aceiro no topo do cômoro e Drizzt mantinha cautelosa vigilância. O plano
de defesa era simples: deixar que os trolls chegassem até eles e então atear fogo a todo o cômoro fora dos limites do acampamento.
Somente Drizzt reconheceu o ponto fraco do plano, apesar de não ter nada melhor a oferecer. Ele combatera trolls antes dos urzais e compreendia a teimosia
dos monstros perversos. Quando as chamas da emboscada finalmente se extinguissem - muito antes do raiar do novo dia -, ele e seus amigos ficariam indefesos contra
os trolls remanescentes. Sua única esperança era a carnificina das chamas dissuadir outros inimigos.
Wulfgar e Bruenor teriam preferido fazer algo mais, pois as lembranças do outeiro ainda eram demasiadamente vividas para que se satisfizessem com qualquer
tipo de defesa erguida contra os urzais. Mas o crepúsculo chegou, trazendo consigo olhos ávidos que se fixavam neles. Juntaram-se a Régis e a Drizzt no acampamento
no topo do cômoro e agacharam-se em ansiosa espera.
Passou-se uma hora - que, aos amigos, pareceram dez - e a noite ficou mais escura.
- Onde estão eles? - indagou Bruenor, batendo o machado nervosamente na palma da mão, traindo uma impaciência atípica no veterano combatente.
- Por que eles não atacam? - concordou Régis, e sua ansiedade beirava o pânico.
- Tenha paciência e considere-se feliz - ofereceu Drizzt. - Quanto mais tempo se passar antes da batalha, melhores serão nossas chances de ver o amanhecer.
Pode ser que ainda não nos tenham encontrado.
- 'Tá mais com jeito de estarem se reunindo prá atacar a gente todos ao mesmo tempo - disse Bruenor sombriamente.
- Isso é bom - disse Wulfgar, confortavelmente agachado e a perscrutar a obscuridade. - Que o fogo prove o quanto puder dessa raça imunda!
Drizzt notou o efeito tranqüilizante que a força e a determinação do homenzarrão tinham sobre Régis e Bruenor. O machado do anão interrompeu seu salutar nervoso
e veio descansar serenamente ao lado de Bruenor, preparado para a tarefa por vir. Mesmo Régis, o mais relutante dos guerreiros, ergueu sua pequena maça com um rosnado,
os nós dos dedos a empalidecer com a pressão.
Mais uma hora se passou.
A demora não relaxou totalmente a guarda dos companheiros. Eles sabiam que o perigo agora estava muito próximo: sentiam o fedor que se concentrava nas brumas
e nas trevas além do alcance da visão.
- Acenda as tochas - Drizzt disse a Régis.
- Vamos atrair todos os monstros a quilômetros daqui prá cima da gente! - argumentou Bruenor.
- Eles já nos encontraram - respondeu Drizzt, apontando a base do cômoro, apesar de os trolls que ele via a se mover nas trevas estarem além da limitada
visão noturna de seus amigos. - A visão das tochas pode mantê-los longe e nos ganhar algum tempo.
Enquanto ele falava, entretanto, o primeiro troll escalou o cômoro. Bruenor e Wulfgar aguardaram, agachados, até que o monstro estivesse praticamente em cima
deles, então saltaram com fúria inesperada, machado e martelo de guerra à frente, numa rajada brutal de golpes bem colocados. O monstro caiu na mesma hora.
Régis acendera uma das tochas. Ele a jogou para Wulfgar e o bárbaro ateou fogo ao corpo caído do troll. Dois outros trolls que haviam chegado ao pé do cômoro
correram de volta à bruma ao ver as odiadas chamas.
- Ah, foi muito cedo! - gemeu Bruenor. - A gente não vai pegar um que seja com as tochas bem à vista!
- Se as tochas os mantiverem longe, então as chamas terão nos servido muito bem - insistiu Drizzt, apesar de saber que não deveria esperar por esse
acontecimento.
De repente, como se os próprios urzais tivessem cuspido sua peçonha, um imenso exército de trolls cobriu toda a base do cômoro. Eles avançavam de modo hesitante,
nada entusiasmados com a presença do fogo. Mas avançavam inexoravelmente, subindo de rastos a colina, salivando de desejo.
- Paciência - Drizzt disse aos companheiros, sentindo a inquietação deles. - Mantenham-nos atrás do aceiro, mas deixem tantos quantos quiserem penetrar
os círculos de acendalha.
Wulfgar correu até a orla do círculo, brandindo sua tocha ameaçadoramente.
Bruenor se posicionou mais atrás, com os dois últimos frascos de óleo nas mãos, trapos embebidos em óleo a pender das biqueiras, e um sorriso selvagem no
rosto.
- A estação 'tá um pouco verde pr'uma queimada - ele disse a Drizzt com uma piscadela. - Pode ser que o fogo precise de uma mãozinha prá começar!
Os trolls se apinharam sobre o cômoro em volta deles; a horda salivante avançava com determinação e as fileiras se engrossavam a cada passo.
Drizzt agiu primeiro. Com a tocha na mão, ele correu até a acendalha e a incendiou. Wulfgar e Régis juntaram-se a ele logo atrás, interpondo o maior número
possível de focos de fogo entre eles e os trolls que avançavam. Bruenor atirou sua tocha sobre as primeiras fileiras de monstros, esperando surpreendê-los em meio
a dois incêndios, depois arremessou seus frascos de óleo nos grupos de maior concentração.
As chamas saltaram no céu noturno, iluminando a área próxima, mas aumentaram a escuridão além de sua zona de influência. Amontoados como estavam, os trolls
não conseguiam facilmente virar e fugir, e o fogo, como se o compreendesse, precipitava-se sobre eles metodicamente.
Quando um deles começou a arder, sua dança frenética espalhou ainda mais a luz pelos limites do cômoro.
Por todos os vastos urzais, as criaturas interromperam suas atividades noturnas e repararam na crescente coluna de chamas e nos gritos agudos dos trolls agonizantes
transportados pelo vento.
Acuados no topo do cômoro, os companheiros se viram praticamente sobrepujados pelo grande calor. Mas o fogo definhou rapidamente com seu banquete de volátil
carne de troll e começou a diminuir, deixando um fedor revoltante no ar e mais uma cicatriz enegrecida de carnificina nos Pântanos Eternos.
Os companheiros prepararam mais tochas para a fuga. Restavam muitos trolls para lutar, mesmo depois do fogo, e os amigos não tinham a menor esperança de
resistir consumido o combustível das chamas. Devido à insistência de Drizzt, eles aguardaram pela primeira rota de fuga livre na encosta oriental do cômoro e, quando
esta se abriu, arremeteram noite adentro, atravessando intempestivamente os grupos iniciais de trolls desavisados com um assalto inesperado que dispersou os monstros
e deixou vários em chamas.
Noite adentro eles correram, atravessando às cegas a lama e a sarça, esperando que a pura sorte evitasse que fossem engolidos por algum brejo sem fundo. Tão
completa fora a surpresa da emboscada no cômoro que, durante vários minutos, não ouviram sinais de perseguição.
Mas os urzais não levaram muito tempo para responder. Gemidos e gritos agudos logo ecoavam ao redor deles.
Drizzt assumiu a liderança. Confiando em seus instintos tanto quanto na visão, ele desviava seus amigos para a esquerda e para a direita, seguindo pelas áreas
de menor resistência aparente, embora mantivesse o curso rumo ao leste. Esperando tirar proveito do único medo dos monstros, iam ateando fogo a qualquer coisa que
queimasse.
Não encontraram nada diretamente ao longo da noite, mas os gemidos e os passos surdos logo atrás deles não cederam. Logo começaram a desconfiar que uma inteligência
coletiva agia contra eles, pois, embora estivessem obviamente superando os trolls que os cercavam por trás e pelos lados, mais monstros estavam sempre aguardando
para se juntar à perseguição. Algo maligno impregnava a região, como se os próprios Pântanos Eternos fossem os verdadeiros inimigos. Os trolls estavam por toda a
parte, e esse era o perigo imediato, mas mesmo que todos os trolls e outros habitantes dos urzais fossem mortos ou repelidos, os amigos desconfiavam que o lugar
continuaria desagradável.
Rompeu o dia, mas isso não trouxe alívio.
- A gente irritou os próprios urzais! -Bruenor gritou ao perceber que desta vez a perseguição não terminaria com tanta facilidade. - A gente não vai ter descanso
até deixar prá trás este lugar imundo!
Seguiram em frente, vendo, enquanto ziguezagueavam pelo lugar, as formas esguias e trôpegas que se atiravam sobre eles e aquelas que corriam lado a lado ou
logo atrás, assustadoramente visíveis e à espera apenas de que alguém tropeçasse. Brumas densas se fecharam sobre eles, dificultando-lhes a orientação, mais uma
prova, para seus temores, de que os próprios urzais haviam se erguido contra eles.
Além de todo o pensamento racional, além de toda a esperança, eles continuaram, forçando a si próprios a ultrapassar seus limites físicos e emocionais por
falta de alternativas.
Quase inconsciente de suas ações, Régis tropeçou e caiu. Sua tocha rolou para longe, mas ele nem reparou. Ele sequer era capaz de imaginar como se levantar,
ou mesmo conceber que havia caído! Bocas famintas precipitaram-se sobre ele, um banquete certo.
O monstro esfaimado foi frustrado, porém, quando Wulfgar passou e tomou o halfling em seus braços. O imenso bárbaro chocou-se com o troll, derrubando-o, mas
manteve o equilíbrio e seguiu em frente.
Drizzt agora abandonava todas as táticas sutis, compreendendo a situação que se desenvolvia rapidamente atrás dele. Era obrigado, inúmeras vezes, a diminuir
o passo para ajudar Bruenor, que tropeçava, e ele duvidava da capacidade de Wulfgar de seguir em frente carregando o halfling.
O bárbaro exausto obviamente não cogitaria erguer Garra de Palas para se defender. Sua única chance era correr direto até a fronteira. Um brejo extenso os
derrotaria, uma ravina de buxos os aprisionaria e, mesmo que nenhuma barreira natural lhes bloqueasse o caminho, eram poucas as esperanças de escapar aos trolls
por muito mais tempo. Drizzt temia a difícil decisão que ele via próxima: salvar a si mesmo, pois somente ele parecia ter alguma possibilidade de escapar, ou permanecer
ao lado de seus amigos condenados numa batalha que não conseguiriam vencer.
Eles seguiram em frente e fizeram progresso consistente durante mais uma hora, mas o próprio tempo começou a afetá-los. Drizzt ouvia Bruenor murmurando atrás
dele, perdido em algum delírio de sua infância no Salão de Mitral. Wulfgar, com o halfling inconsciente, seguia logo atrás, recitando uma oração para um de seus
deuses, usando o ritmo dos cânticos para manter os pés numa cadência constante.
Então Bruenor caiu, derrubado por um troll que havia se aproximado inconteste.
A decisão fatal se revelou facilmente para Drizzt. Ele fez a volta, as cimitarras prontas. Não conseguiria carregar o anão robusto nem derrotar a horda de
trolls que se aproximava.
- E assim termina a nossa história, Bruenor Martelo de Batalha! - ele gritou. - Na batalha, como havia de ser!
Wulfgar, tonto e ofegante, não escolheu conscientemente sua ação seguinte. Foi simplesmente uma reação à cena diante dele, uma manobra perpetrada pelos instintos
teimosos de um homem que se recusava a ceder. Ele cambaleou até o anão caído, que a essa altura havia se erguido penosamente até se apoiar nas mãos e nos joelhos,
e o apanhou com o braço livre. Dois trolls os encurralavam.
Drizzt Do'Urden estava por perto, e o ato heróico do jovem bárbaro inspirou o drow. Chamas fervilhantes dançaram novamente nos seus olhos cor de lavanda,
e as espadas rodopiaram em sua própria dança de morte.
Os dois trolls esticaram os braços para usar as unhas em suas vítimas indefesas mas, depois de um único passe rápido da parte de Drizzt, não restavam braços
aos monstros com os quais agarrar.
- Continue correndo! - Drizzt gritou, protegendo a retaguarda do grupo e estimulando Wulfgar a seguir em frente com uma torrente constante de palavras
animadoras. Toda a fadiga abandonou o drow naquela última explosão de ânsia guerreira. Ele saltitava e lançava desafios aos trolls. Qualquer um que se aproximasse
demais encontrava a mordacidade de suas espadas.
Grunhindo a cada passo doloroso, os olhos a arder por causa do próprio suor, Wulfgar arremeteu adiante, às cegas. Não pensava em quanto tempo conseguiria
manter aquele ritmo com o peso que carregava. Não pensava na morte certa e horrível que o seguia de perto por todos os lados e provavelmente havia também lhe interceptado
a rota de fuga. Não pensava na dor terrível em suas costas machucadas nem na nova ardência que sentia agudamente no jarrete. Concentrava-se apenas em colocar uma
das botas pesadas diante da outra.
Eles pisotearam algumas sarças, desceram uma elevação e contornaram outra. Seus corações se animaram e esmoreceram, ao mesmo tempo pois diante deles assomava
a floresta imaculada que Régis avistara, o fim dos Pântanos Eternos. Mas, entre eles e as matas, aguardava uma densa linha de trolls, com três fileiras de largura.
O domínio dos Pântanos Eternos não era fácil de romper.
- Continue - Drizzt disse ao pé do ouvido de Wulfgar, num murmúrio baixo, como se temesse que os urzais pudessem ouvi-lo. - Ainda me resta um pequeno
truque.
Wulfgar viu a linha diante dele mas, mesmo em seu estado atual, a confiança que tinha em Drizzt sobrepujou todas as objeções de seu bom senso. Acomodando
Bruenor e Régis numa posição mais confortável, abaixou a cabeça e urrou para as feras, gritando com a fúria induzida pelo frenesi.
Quando ele já quase os tinha alcançado, com Drizzt alguns passos atrás - os trolls a salivar, acotovelados para refrear-lhe o ímpeto -, o drow deu sua última
cartada.
Chamas mágicas brotaram do bárbaro. Elas não eram capazes de queimar nem Wulfgar nem os trolls mas, para os monstros, o espectro de um selvagem descomunal
e envolto em chamas abatendo-se sobre eles levou o pânico aos seus corações normalmente destemidos.
Drizzt cronometrou o encanto com precisão, permitindo aos trolls apenas uma fração de segundo para reagir ao imponente adversário. Como as águas diante da
proa de um navio de grande calado, eles se separaram, e Wulfgar, quase perdendo o equilíbrio devido às suas expectativas de impacto, passou aos trambolhões, com
Drizzt a saltitar junto aos seus calcanhares.
Quando os trolls se reagruparam para a perseguição, as vítimas já escalavam a última elevação que levava para fora dos Pântanos Eternos e para dentro da
floresta - um bosque sob o olhar protetor da Senhora Alustriel e dos garbosos Cavaleiros em Prata.
Drizzt voltou-se sob os ramos da primeira árvore, atento aos sinais de perseguição. Uma neblina densa retornava aos urzais num movimento rodopiante, como
se aquela região abominável tivesse batido a porta logo que passaram. Nenhum troll apareceu.
O drow se afundou contra a árvore, demasiado exausto para sorrir.

13. Lá no Céu tem Mil Estrelas

Wulfgar depositou Régis e Bruenor sobre um leito de musgos numa pequena clareira um pouco além da orla da floresta e tombou por causa da dor. Drizzt o alcançou
alguns minutos depois.
- Devemos acampar aqui - foi dizendo o drow -, mas eu preferia que nos afastássemos mais... - Ele se deteve ao ver o jovem amigo a se contorcer no
solo, levando as mãos à perna ferida, quase sobrepujado pela dor. Drizzt correu para o lado dele a fim de examinar-lhe o joelho, e seus olhos se arregalaram de espanto
e asco.
A mão de um troll, provavelmente de um dos que ele retalhara quando Wulfgar resgatou Bruenor, havia se agarrado ao bárbaro enquanto ele corria, encontrando
um nicho em seu jarrete. Um dedo provido de garra já tinha se enterrado profundamente na perna e dois outros abriam caminho naquele exato momento.
- Não olhe - Drizzt aconselhou Wulfgar. Ele procurou pelo isqueiro em sua mochila e acendeu um graveto, depois o usou para espetar a mão perversa.
Assim que a coisa começou a fumegar e a se contorcer, Drizzt a retirou da perna e a atirou ao chão. A coisa tentou fugir, mas Drizzt saltou sobre ela, espetando-a
com uma de suas cimitarras e incendiando-a completamente com o graveto incandescente.
Ele voltou a olhar para Wulfgar, admirado com a absoluta determinação que permitira ao bárbaro prosseguir com um ferimento tão feio. Mas, então, a fuga chegara
ao fim, e Wulfgar já sucumbira à dor e à exaustão. Ele jazia escarrapachado e inconsciente no chão, ao lado de Bruenor e Régis.
- Durmam bem - Drizzt disse aos três, baixinho. - Vocês merecem - Verificou cada um deles para se certificar de que não estavam gravemente feri dos.
Então, satisfeito com o fato de que todos se recuperariam, ele deu início à sua guarda vigilante.
No entanto, até mesmo o valente drow havia ultrapassado os limites de seu vigor durante a marcha através dos Pântanos Eternos, e não demorou muito para
que ele também cabeceasse de sono e se juntasse aos amigos.
Ao fim da manhã seguinte, foram despertados pelos resmungos de Bruenor.
- 'Cê esqueceu meu machado! - o anão gritava, irritado. - Não posso cortar os malditos trolls sem o meu machado!
Drizzt se espreguiçou confortavelmente, um tanto quanto revigorado, mas ainda longe de estar recuperado.
- Eu disse a você que pegasse o machado - ele disse a Wulfgar, que também se livrava do sono profundo.
- Eu fui bem claro - Drizzt ralhou, de brincadeira. - Pegue o machado e deixe o anão ingrato.
- Foi o nariz que me confundiu - replicou Wulfgar. - Mais parecido com a cabeça de um machado do que qualquer outro nariz que eu já tenha visto!
Bruenor inconscientemente olhou para a ponta de seu narigão.
- Ora! - ele resmungou. - Vou arranjar uma clava! - e, com passos pesados, sumiu floresta adentro.
- Um pouco de silêncio, por favor! - disse Régis, ríspido, quando o último vestígio de seus sonhos agradáveis esvoaçou para longe. Aborrecido por ser
despertado tão cedo, ele rolou de lado e cobriu a cabeça com o manto.
Poderiam ter chegado a Lua Argêntea naquele mesmo dia, mas uma única noite de descanso não apagaria a fadiga dos dias que haviam passado nos Pântanos Eternos
e numa estrada difícil antes disso. Wulfgar, por exemplo, com a perna e as costas machucadas, era obrigado a usar uma bengala, e o sono que Drizzt conciliara na
noite anterior fora o primeiro em quase uma semana. Ao contrário dos urzais, aquela floresta parecia bastante incorrupta. E, embora soubessem que ainda estavam nos
ermos, sentiram-se suficientemente seguros para alongar a estrada até a cidade e desfrutar, pela primeira vez desde que haviam deixado Dez-Burgos, de uma caminhada
tranqüila.
Eles deixaram a floresta no zênite do dia seguinte e cobriram as últimas milhas até Lua Argêntea. Antes do pôr do sol, venceram a última subida e, lá do alto,
avistaram o Rio Rauvin e os incontáveis torreões da cidade encantada.
Todos eles experimentaram uma sensação de esperança e alívio ao vislumbrarem aquele cenário magnífico, mas ninguém a sentiu mais intensamente que Drizzt Do'Urden.
Desde que haviam se sentado pela primeira vez para planejar a aventura, o drow alimentara a esperança de que viessem a passar por Lua Argêntea, apesar de nada fazer
para influenciar a decisão de Bruenor na escolha do trajeto.
Drizzt ouvira falar de Lua Argêntea depois de sua chegada a Dez-Burgos e, não fosse pelo fato de que encontrara um certo grau de tolerância na rude comunidade
de fronteira, ele teria retraçado seus passos imediatamente até o lugar. Famoso por aceitar todos os que ali chegassem em busca de conhecimento, não importava a
raça, o povo de Lua Argêntea oferecia ao elfo negro renegado uma verdadeira oportunidade de encontrar um lar. Inúmeras vezes ele havia considerado viajar até o lugar,
mas algo dentro dele, talvez o medo da falsa esperança e de expectativas não cumpridas, manteve-o na segurança do Vale do Vento Gélido. Portanto, quando a decisão
fora tomada em Sela Longa de que Lua Argêntea seria seu próximo destino, Drizzt se surpreendeu encarando diretamente a utopia que nunca ousara sonhar. Observando
agora, lá do alto, sua única esperança de verdadeira aceitação na superfície do mundo, ele corajosamente afastou suas apreensões.
- A Ponte da Lua - comentou Bruenor quando uma carroça lá embaixo cruzou o Rauvin, aparentemente flutuando em pleno ar. Bruenor ouvira falar da estrutura
invisível quando menino, mas nunca a tinha visto pessoalmente.
Wulfgar e Régis assistiram ao espetáculo da carroça voadora com absoluto assombro. O bárbaro sobrepujara muitos de seus medos em relação à magia durante a
estada em Sela Longa e estava verdadeiramente ansioso por explorar aquela cidade lendária. Régis ali estivera uma vez anteriormente, mas sua familiaridade com o
lugar em nada ajudava a diminuir seu alvoroço.
Apesar do cansaço, eles se aproximaram ansiosamente do posto avançado sobre o Rauvin, o mesmo posto pelo qual o grupo de Entreri passara quatro dias antes,
com os mesmos guardas que haviam dado permissão ao grupo maligno para entrar na cidade.
- Saudações - ofereceu Bruenor, num tom de voz que poderia ser considerado jovial para o austero anão. - E saibam que a visão da sua bela cidade trouxe
nova vida pro meu coração cansado.
Os guardas mal lhe deram ouvidos, concentrados no drow, que havia recolhido o capuz. Pareciam curiosos, pois nunca tinham visto realmente um elfo negro, mas
não aparentaram muita surpresa com a chegada de Drizzt.
- Vocês podem nos escoltar até a Ponte da Lua agora? - Régis perguntou depois de um período de silêncio que foi se tornando cada vez mais incômodo.
- Vocês não fazem idéia de como estamos ansiosos para ver Lua Argêntea. Ouvimos falar tanto da cidade!
Drizzt desconfiou do que estava por vir. Um nó colérico se formou em sua garganta.
- Vão embora - o guarda disse tranqüilamente. - Vocês não podem passar.
O rosto de Bruenor ficou vermelho de raiva, mas Régis interrompeu-lhe a explosão.
- Certamente nada fizemos para motivar um julgamento tão severo o halfling protestou com toda a calma. - Somos simples viajantes, não procuramos
encrenca. - A mão dele se moveu em direção ao paletó e ao rubi hipnótico, mas o cenho franzido de Drizzt pôs fim ao seu plano.
- Sua reputação parece ter mais valor que suas ações - Wulfgar observou aos guardas.
- Sinto muito - um deles replicou -, mas tenho meus deveres e costumo cumpri-los.
- Nós ou o drow? - indagou Bruenor.
- O drow - respondeu o guarda. - O resto de vocês pode ir à cidade, mas o drow não pode passar!
Drizzt sentiu as muralhas da esperança desmoronando ao seu redor. As mãos, largadas ao lado do corpo, tremiam. Ele nunca tinha experimentado tamanha dor,
pois jamais chegara a um lugar sem a expectativa da rejeição. Mesmo assim, ele conseguiu sublimar sua raiva imediata e lembrar a si mesmo de que, para todos os efeitos,
esta era a demanda de Bruenor, não a sua.
- Canalhas! - Bruenor gritou. - O elfo vale uns dez de vocês, mais até! Devo a ele minha vida umas cem vezes e 'cês acham que podem dizer que ele não
é bom o bastante prá sua maldita cidade! Quantos trolls cês já mataram com as próprias espadas?
- Acalme-se, meu amigo - Drizzt o interrompeu, completamente controlado. - Já esperava por isto. Eles não conhecem Drizzt Do'Urden. Apenas a reputação
de meu povo. E a culpa não é deles. Entrem vocês, então. Aguardarei seu retorno.
- Não! - Bruenor declarou num tom de voz que não admitiria discussões. - Se você não pode entrar, então nenhum de nós entra!
- Pense no seu objetivo, seu anão teimoso - ralhou Drizzt. - A Câmara dos Sábios fica na cidade. A nossa única esperança, quem sabe.
- Ora! - desdenhou Bruenor. - Pro Abismo com esta cidade amaldiçoada e todos os que nela vivem! Sundabar fica a menos de uma semana de caminhada. Helm,
o amigo dos anões, vai ser mais hospitaleiro, ou então sou um gnomo de barba!
- Você devia entrar - disse Wulfgar. - Não deixe sua raiva vencer nosso propósito. Mas eu fico com Drizzt. Aonde ele não puder ir, Wulfgar, filho de
Beornegar recusa-se a ir!
Mas os passos ruidosos e determinados das pernas atarracadas de Bruenor já o levavam estrada afora para longe da cidade. Régis se virou para °s outros, deu
de ombros e seguiu atrás do anão, tão leal ao drow quanto qualquer um deles.
- Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum
monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros
em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela Longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - E a história se complica ainda mais, parece - Alustriel continuou. - Você sabe que tenho
duas irmãs?
Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Storm, uma barda de renome, e Dove Garra de Falcão, uma ranger. Ambas se interessaram pelo nome de Drizzt Do'Urden: Storm, como uma lenda em desenvolvimento
ainda carente de uma canção à sua altura, e Dove... Ainda preciso discernir seus motivos. Você se tornou um herói para ela, eu acho, o epítome das qualidades que
ela, como ranger, se esforça para aperfeiçoar. Ela entrou na cidade hoje de manhã e sabia de sua chegada iminente.
- Dove é muitos anos mais jovem que eu - continuou Alustriel. - E não tão experiente na política do mundo.
- Ela poderia ter me procurado - Drizzt concluiu, enxergando as implicações temidas por Alustriel.
- Ela o fará, um dia - a senhora respondeu. - Mas não posso permiti-lo agora, não em Lua Argêntea. - Alustriel fitou-o com atenção, e seu olhar insinuava
emoções mais profundas e pessoais. - E, além disso, eu mesma teria procurado uma audiência com você, como faço agora.
As implicações de um encontro como aquele no interior da cidade pareceram óbvias para Drizzt à luz dos conflitos políticos que Alustriel insinuara.
- Um outro dia, noutro lugar talvez - ele sugeriu. - Seria um incômodo muito grande?
Ela respondeu com um sorriso:
- De modo algum.
Satisfação e ansiedade se apossaram de Drizzt ao mesmo tempo. Ele voltou a olhar para as estrelas, imaginando se algum dia descobriria inteiramente a verdade
sobre sua decisão de vir ao mundo da superfície, ou se sua vida seria eternamente um tumulto de esperanças tentadoras e expectativas despedaçadas.
Eles permaneceram em silêncio durante um bom tempo até Alustriel falar novamente.
- Vocês vieram em busca da Câmara dos Sábios - disse ela -, para descobrir se algo ali menciona o Salão de Mitral.
- Eu exortei o anão a entrar - respondeu Drizzt. - Mas ele é teimoso.
- Foi o que imaginei - riu Alustriel. - Mas não quero que minhas ações interfiram com sua tão nobre demanda. Eu vasculhei o cofre pessoal mente. Você
não faz idéia do tamanho da biblioteca! Vocês não saberiam por onde começar a procurar entre os milhares de volumes que revestem as pare des. Mas conheço o cofre
melhor do que ninguém. Descobri coisas que você e seus amigos levariam semanas para encontrar. Mas, honestamente, muito pouco foi escrito sobre o Salão de Mitral
e nada, nada mesmo, oferece mais do que uma indicação passageira sobre a sua localização geral.
- Então, talvez tenha sido melhor sermos rechaçados.
Alustriel corou de constrangimento, embora Drizzt não tivesse a intenção de parecer sarcástico com sua observação.
- Meus guardas me informaram que vocês planejam seguir em frente até Sundabar - disse a dama.
- E verdade - respondeu Drizzt -, e de lá para a Cidadela Adbar, se necessário.
- Desaconselho esse curso - disse Alustriel. - Considerando tudo o que consegui encontrar no cofre e o meu próprio conhecimento das lendas sobre os
dias em que tesouros fluíam do Salão de Mitral, meu palpite é que fica no oeste, não no leste.
- Viemos do oeste e nossa trilha, em busca dos que detêm o conhecimento sobre os salões argênteos, tem nos conduzido continuamente para leste - opôs-se
Drizzt. - Além de Lua Argêntea, as únicas esperanças que temos são Helm e Harbromm, ambos no leste.
- Pode ser que Helm tenha algo a lhes contar - concordou Alustriel. - Mas pouco descobrirão com o Rei Harbromm e os anões de Adbar. Eles próprios empreenderam
a busca para encontrar a antiga terra natal da família de Bruenor há alguns anos apenas, e passaram por Lua Argêntea em sua jornada: rumo ao oeste. Mas eles nunca
encontraram o lugar e voltaram para casa, convencidos de que foi destruído e enterrado bem fundo em alguma montanha não assinalada ou que jamais tenha existido e
não passasse de um estratagema dos mercadores sulistas para negociar seus produtos no norte.
- Você não oferece muita esperança - comentou Drizzt.
- Pelo contrário - opôs-se Alustriel. - A oeste daqui, a menos de um dia de marcha, ao longo de uma trilha não assinalada que corre ao norte do Rauvin,
fica o Forte dos Arautos, um antigo bastião de saber acumulado. Se existe alguém nos dias de hoje que pode orientá-los, é o arauto, Noite Anciã. Eu o informei sobre
vocês e ele concordou em vê-los, mas ele não recebe visitas há décadas, além de mim e alguns seletos eruditos.
- Estamos em dívida com você - disse Drizzt, com uma reverência.
- Não espere muita coisa - avisou Alustriel. - O Salão de Mitral apareceu e desapareceu no conhecimento deste mundo num piscar de olhos. Dificilmente
três gerações de anões chegaram a minerar o lugar, apesar de eu admitir que uma geração dos anões é uma quantidade considerável de tempo, e eles não eram tão liberais
em seu comércio. Só raramente permitiam que alguém visitasse as minas, se as histórias forem verdadeiras. Eles apresentavam suas obras nas trevas da noite e, para
que chegassem aos mercados, supriam-nas por meio de uma rede secreta e intricada de agentes anões.
- Eles se defenderam muito bem contra a cobiça do mundo exterior - observou Drizzt.
- Mas sua ruína veio do interior das minas - disse Alustriel. - Um perigo desconhecido que talvez ainda se esconda por lá, você deve saber.
Drizzt assentiu.
- E, ainda assim, você quer ir até lá?
- Não me importo com os tesouros, apesar de que, se forem de fato tão esplêndidos quanto Bruenor os descreve, gostaria então de dar uma olhada neles.
Mas é a demanda do anão, sua grande aventura, e eu seria realmente um amigo deplorável se não o ajudasse a completá-la.
- Dificilmente tal rótulo lhe caberia, Drizzt Do'Urden - disse Alustriel. Ela retirou um pequeno frasco de uma dobra em seu vestido. -Leve isto com
você - instruiu ela.
- O que é isto?
- Uma poção de recordação - explicou Alustriel. - Dê isto ao anão quando as respostas parecerem próximas. Mas, cuidado, os poderes da poção são violentos!
Bruenor caminhará durante algum tempo entre as lembranças do passado distante tanto quanto entre as experiências do presente.
- E estes - ela disse, retirando uma pequena bolsa da mesma dobra e entregando-a a Drizzt - são para todos vocês. Ungüento para ajudar a cicatrizar
as feridas e biscoitos que revigoram um viajante cansado.
- Meus agradecimentos e os de meus amigos - disse Drizzt.
- Diante da terrível injustiça que lhe foi imposta, são uma pequena compensação.
- Mas a preocupação de quem os oferece não foi um presente insignificante - replicou Drizzt. Ele olhou diretamente nos olhos dela, absorvendo-a com
sua intensidade. - Você renovou minha esperança, Senhora de Lua Argêntea. Você me lembrou de que há realmente uma recompensa para os que seguem a senda da consciência,
um tesouro muito maior do que as ninharias materiais que com tanta freqüência são ofertadas a homens injustos.
- E há, de fato - ela concordou. - E seu futuro lhe mostrará muitas outras mais, orgulhoso ranger. Mas, agora, metade da noite já se foi e você precisa
descansar. Nada tema, pois há quem zele por vocês esta noite. Adeus, Drizzt Do'Urden, e que a estrada adiante seja veloz e desimpedida.
Com um aceno da mão, ela desvaneceu na luz das estrelas, deixando Drizzt a se perguntar se sonhara com aquele encontro. Mas, então, as últimas palavras dela
chegaram até ele pairando na brisa suave.
- Adeus, e não desanime, Drizzt Do'Urden. Sua honra e coragem não pas sam despercebidas!
Drizzt permaneceu em silêncio durante um bom tempo. Ele se abaixou e apanhou uma flor silvestre na margem do rio, girou-a entre seus dedos e imaginou se
ele a Senhora de Lua Argêntea poderiam realmente se encontrar de novo em condições mais transigentes. E aonde tal encontro poderia levar.
Então, ele atirou a flor no Rauvin.
- Deixemos os acontecimentos seguirem seu curso - ele disse, resoluto, olhando para o acampamento e para seus amigos mais chegados. - Não preciso de fantasias
para diminuir os grandes tesouros que já possuo. - Ele inspirou profundamente a fim de soprar para longe os restos de sua autopiedade.
E, com a fé restaurada, o estóico ranger foi dormir.

14. OS OLHOS DO GOLEM

Drizzt teve pouco trabalho para convencer Bruenor a reverter o curso deles e voltar para o oeste. Apesar de ansioso por chegar a Sundabar e descobrir o que
Helm sabia, a possibilidade de informações valiosas a menos de um dia de viagem dali deixou o anão alvoroçado.
Quanto a como conseguira a informação, Drizzt ofereceu poucas explicações, dizendo apenas que topara com um viajante solitário na estrada para Lua Argêntea
durante a noite. Apesar de a história soar inventada aos amigos, eles não questionaram o drow por respeitarem sua privacidade e confiarem inteiramente nele. Mas,
durante o desjejum, Régis chegou a esperar que outras informações viessem à tona, pois os biscoitos que o tal viajante dera a Drizzt eram verdadeiramente deliciosos
e incrivelmente revigorantes. Depois de apenas algumas mordidas, o halfling se sentia como se tivesse passado uma semana descansando. E a pomada mágica curou imediatamente
a perna e as costas machucadas de Wulfgar, que caminhou sem a bengala pela primeira vez desde que eles haviam deixado os Pântanos Eternos.
Wulfgar desconfiou que o encontro de Drizzt envolvera alguém de grande importância muito antes do drow revelar os presentes maravilhosos. Pois o brilho interior
de otimismo do drow, uma centelha sagaz em seus olhos a refletir o espírito indômito que o fazia sobreviver a provações que teriam esmagado a maioria dos homens,
retornara total e dramaticamente. O bárbaro não precisava conhecer a identidade da pessoa: estava simplesmente contente por seu amigo ter superado a depressão.
Quando eles se puseram a caminho, mais tarde naquela manhã, mais pareciam um grupo que acabava de dar início a uma aventura do que um bando fatigado pela
estrada. Assobiando e conversando, seguiram o fluxo do Rauvin em seu curso para oeste. Apesar de por um triz, haviam saído relativamente ilesos da marcha brutal
e tinham aparentemente feito bom progresso em direção ao seu objetivo. O sol do verão brilhava no céu e todas as peças do quebra-cabeça do Salão de Mitral pareciam
estar ao alcance da mão.
Jamais suspeitariam que olhos assassinos neles se fixavam.
Desde os contrafortes ao norte do Rauvin, muito acima dos viajantes, o golem pressentiu a passagem do elfo drow. Seguindo a atração dos encantos mágicos de
busca que Dendibar lançara sobre ele, Bok não demorou muito para avistar lá do alto o bando que percorria a trilha. Sem hesitação, o monstro obedeceu às suas diretrizes
e partiu em busca de Sidnéia.
Bok arremessou longe um matacão que jazia em seu caminho, depois escalou um outro que era grande demais, sem compreender as vantagens de simplesmente contornar
as pedras. O caminho de Bok estava claramente traçado e o monstro se recusava a se desviar daquele curso o mínimo que fosse.
- Esse é um dos grandes! - riu um dos guardas no posto sobre o Rauvin ao ver Bok do outro lado da clareira. Entretanto, mesmo enquanto as palavras
deixavam sua boca, o guarda percebeu o perigo iminente: aquele não era um viajante comum!
Corajosamente, ele saiu correndo para encarar o golem de frente, a espada desembainhada e o companheiro logo atrás.
Transfixado por seu objetivo, Bok não deu ouvidos aos alertas dos dois.
- Alto! - ordenou o guarda uma última vez enquanto Bok cobria a pequena distância entre eles.
O golem não conhecia emoções, de modo que não sentiu raiva dos guardas quando eles o atacaram. Postaram-se para bloquear o caminho e Bok os jogou longe com
um tapa, sem hesitação, e o incrível poder de seus braços fortalecidos pela magia atravessou-lhes as defesas e os arremessou pelos ares. Sem se deter, o golem seguiu
adiante até o rio e não diminuiu o passo, desaparecendo sob as águas impetuosas.
Alarmas soaram na cidade, pois os soldados ao portão, do outro lado do rio, assistiram ao espetáculo que se desenrolou no posto avançado. Os imensos portões
foram fechados e trancados, e os Cavaleiros em Prata puseram-se a vigiar o Rauvin, esperando pelo reaparecimento do monstro.
Bok seguiu em linha reta pelo leito do rio, singrando o lodo e a lama e mantendo o curso com facilidade apesar do pujante ímpeto das correntes. Quando o monstro
reemergiu diretamente do outro lado do posto avançado, os cavaleiros enfileirados diante do portão da cidade ficaram boquiabertos de incredulidade, mas mantiveram
suas posições, os rostos severos e as armas em prontidão.
O portão se situava um pouco mais rio acima a partir do ângulo da senda escolhida por Bok. O golem seguiu em frente até a muralha da cidade, mas não alterou
seu curso para se aproximar do portão.
Com um murro, ele abriu um buraco na muralha e a atravessou. Entreri andava ansiosamente de um lado para outro em seu quarto na Estalagem dos Sábios Geniosos,
perto do centro da cidade.
- Eles já deviam ter chegado - ele disse com aspereza para Sidnéia, sentando-se na cama e apertando as cordas que seguravam Cattiebrie.
Antes que Sidnéia conseguisse responder, um globo de chamas apareceu no centro da sala, não um fogo real, mas a imagem de chamas, ilusória, como algo ardendo
naquele determinado ponto em outro plano. As chamas tremularam e se transformaram na aparição de um homem de túnica.
- Morkai! - arquejou Sidnéia.
- Meus cumprimentos - replicou o espectro. - E os cumprimentos de Dendibar, o Variegado.
Entreri se esgueirou de volta a um dos cantos do quarto, desconfiado. Cattiebrie, indefesa, amarrada como estava, continuou sentada e imóvel.
Sidnéia, versada nas sutilezas da conjuração, sabia que o ser sobrenatural estava sob o controle de Dendibar e ela teve medo.
- Por que meu mestre mandou que viesse aqui? - ela perguntou audaciosamente.
- Trago notícias - respondeu o espectro. - O grupo que vocês procuram foi desviado para os Pântanos Eternos há uma semana, ao sul de Nesmé.
Sidnéia mordeu o lábio de expectativa pela próxima revelação do espectro, mas Morkai quedou-se mudo e também aguardou.
- E onde estão eles agora? - pressionou Sidnéia, impaciente.
Morkai sorriu.
- Perguntado fui duas vezes, mas ainda não obrigado! - As chamas se consumiram com estrépito novamente e o espectro desapareceu.
- Os Pântanos Eternos - disse Entreri. - Isso explicaria a demora.
Sidnéia concordou com um meneio da cabeça, distraída, pois ela tinha outras coisas em mente.
- Ainda não obrigado - ela murmurou consigo mesma, repetindo as últimas palavras do espectro. Perguntas perturbadoras a incomodavam. Por que Dendibar
esperara uma semana para enviar Morkai com as notícias? E por que o mago não teria conseguido forçar o espectro a revelar atividades mais recentes do grupo do drow?
Sidnéia conhecia os perigos e as limitações da invocação e compreendia a espantosa exaustão que o ato exercia sobre o poder de um mago. Dendibar havia conjurado
Morkai pelo menos três vezes recentemente: uma vez quando o grupo do drow entrara em Luskan, e ao menos duas vezes desde que ela e seus companheiros haviam partido
na caçada. Teria Dendibar abandonado toda a cautela em sua obsessão pela Estilha de Cristal?
Sidnéia sentiu que o domínio do mago variegado sobre Morkai havia diminuído imensamente e ela esperava que Dendibar fosse prudente com futuras invocações,
pelo menos até que tivesse descansado completamente.
- Podem se passar semanas até que cheguem! - disse Entreri, com veemência, considerando as notícias. - Se é que um dia virão.
- Talvez você tenha razão - concordou Sidnéia. - Eles poderiam ter tombado nos urzais.
- E se tiverem?
- Então, entraremos lá atrás deles - disse Sidnéia, sem hesitação. Entreri estudou-a por alguns instantes.
- O prêmio que você busca deve ser realmente vultoso - ele disse.
- Tenho o meu dever e não vou falhar com meu mestre - ela retrucou rispidamente. - Bok vai encontrá-los mesmo que estejam no fundo do brejo mais profundo!
- Temos de decidir nosso curso agora - Entreri insistiu. Ele voltou seu olhar maldoso para Cattiebrie. - Estou ficando cansado de vigiar essa aí.
- Eu tampouco confio nela - Sidnéia concordou. - Mas ela pode ser útil quando encontrarmos o anão. Esperaremos mais três dias. Depois disso, voltaremos
a Nesmé e entraremos nos Pântanos Eternos se for preciso.
Entreri relutantemente aprovou o plano com um aceno da cabeça.
- Ouviu? - ele sibilou para Cattiebrie. - Você tem mais três dias de vida, a menos que seus amigos cheguem. Se estiverem mortos nos urzais, você não
tem utilidade para nós.
Cattiebrie não demonstrou qualquer emoção durante toda a conversa, determinada a não deixar Entreri conquistar a menor vantagem descobrindo-lhe a fraqueza,
ou a força. Ela acreditava que seus amigos não estavam mortos. Tipos como Bruenor Martelo de Batalha e Drizzt Do'Urden não estavam destinados a morrer numa vala
indigente em algum pântano desolado. E Cattiebrie jamais aceitaria que Wulfgar estivesse morto até que a prova fosse irrefutável. Fiel à sua crença, seu dever para
com os amigos era manter uma fisionomia inexpressiva. Ela sabia que estava vencendo sua batalha pessoal, que o medo paralisante que Entreri provocava nela perdia
força a cada dia. Ela estaria pronta para agir quando chegasse a hora. Ela apenas precisava se certificar de que Entreri e Sidnéia não o percebessem.
Ela notara que o afã da estrada e os novos companheiros começavam a afetar o assassino. A cada dia, Entreri revelava mais emoções, maior desespero para terminar
o serviço. Seria possível que pudesse cometer um erro?
- Está aqui! - um grito ecoou desde o corredor e todos os três se sobressaltaram involuntariamente, depois reconheceram a voz como sendo a de Jierdan,
que ficara vigiando a Câmara dos Sábios. Um segundo depois, a porta se abriu com violência e o soldado entrou espalhafatosamente no quarto, a respiração desigual.
- O anão? - Sidnéia perguntou, segurando Jierdan para acalmá-lo.
- Não! - gritou Jierdan. - O golem! Bok entrou em Lua Argêntea! Eles o aprisionaram perto do portão oeste. Um mago foi chamado.
- Maldição! - Sidnéia disse com veemência e saiu do quarto.
Entreri deu um passo para segui-la, segurando o braço de Jierdan e forçando-o a dar meia-volta com um puxão, de modo que os dois ficassem cara a cara.
- Fique com a garota - ordenou o assassino. Jierdan o fulminou com o olhar.
- Ela é problema seu.
Entreri poderia facilmente ter matado o soldado bem ali, notou Cattiebrie, esperando que Jierdan houvesse interpretado o olhar mortífero do assassino tão
claramente quanto ela.
- Faça o que lhe mandam! - Sidnéia gritou com Jierdan, pondo fim à discussão. Ela e Entreri saíram, e o assassino bateu a porta.
- Ele teria matado você - Cattiebrie disse a Jierdan quando Entreri e Sidnéia se foram. - Você sabe disso.
- Quieta - rosnou Jierdan. - Estou cheio de suas palavras vis! - Ele se aproximou dela ameaçadoramente, os punhos cerrados.
- Pode bater - desafiou Cattiebrie, sabendo que mesmo que ele o fizesse, seu código de soldado não lhe permitiria continuar tal assalto a um adversário
indefeso. - Apesar de que, na verdade, eu sou sua única amiga nesta viagem amaldiçoada!
Jierdan estacou.
- Amiga? - enjeitou ele.
- E melhor amiga você não vai encontrar - respondeu Cattiebrie. - Você aqui é tão prisioneiro quanto eu. - Ela reconheceu a vulnerabilidade daquele
homem orgulhoso, reduzido à servidão pela arrogância de Sidnéia e Entreri, e atingiu-o com precisão cirúrgica. - Eles querem te matar, 'cê sabe disso agora, e mesmo
que 'cê escape do fio da espada, 'cê não tem prá onde ir. 'Cê abandonou seus colegas em Luskan e, de qualquer maneira, o mago na torre te daria um triste fim se
você voltasse lá um dia!
Jierdan se retesou de fúria frustrada, mas não atacou.
- Meus amigos 'tão por perto - continuou Cattiebrie, apesar dos sinais ameaçadores. - Eles 'tão vivos ainda, eu sei, e vamos encontrar eles qualquer
dia desses. Vai ser a nossa hora, soldado, de viver ou morrer. No meu caso, vejo uma oportunidade. Mas no seu, como a estrada parece escura! Se meus amigos vencerem,
vão te matar, e se seus camaradas vencerem... - Ela deixou as possibilidades sinistras em mudo suspense por alguns instantes para que Tierdan pudesse ponderá-las
em sua totalidade.
- Quando eles pegarem o que procuram, não vão mais precisar de você - ela disse sombriamente. Notou que ele tremia, não de medo, mas de raiva, e forçou-o
a perder o controle. - Pode ser que te deixem viver - ela disse sarcasticamente. - Quem sabe não estejam precisando de um lacaio!
Ele a esmurrou então, apenas uma vez, e recuou.
Cattiebrie aceitou o golpe sem se queixar e até mesmo sorriu em meio à dor, apesar de tomar o cuidado de esconder sua satisfação. A perda de autocontrole
de Jierdan provava que o contínuo desrespeito que Sidnéia e principalmente Entreri haviam demonstrado por ele alimentara as chamas da insatisfação, levando-as à
beira da explosão.
Ela também sabia que quando Entreri retornasse e visse a equimose que Jierdan lhe proporcionara, aquelas chamas arderiam com mais intensidade ainda.
Sidnéia e Entreri correram pelas ruas de Lua Argêntea, seguindo os óbvios ruídos de comoção. Quando chegaram à muralha, encontraram Bok enclausurado numa
esfera de luzes verdes e brilhantes. Cavalos sem cavaleiros andavam para lá e para cá, ao som dos gemidos de uma dezena de soldados feridos, e um velho - o mago
- se achava diante do globo de luz, cofiando a barba e estudando o golem aprisionado. Um Cavaleiro em Prata de considerável posição hierárquica se encontrava ao
lado dele, impaciente, crispando-se nervosamente e apertando com força o botão do punho de sua espada embainhada.
- Destrua essa coisa e acabe logo com isso - Sidnéia ouviu o cavaleiro dizer ao mago.
- Ah, não! - exclamou o mago. - É prodigioso!
- Você quer segurá-lo aqui para sempre? - devolveu o cavaleiro. - Dê uma olhada ao redor...
- Com licença, cavalheiros - Sidnéia interrompeu. - Sou Sidnéia da Torre das Hostes Arcanas de Luskan. Talvez eu possa ser de alguma ajuda.
- Bons olhos a vejam - disse o mago. - Sou Mizzen da Segunda Escola do Conhecimento. Você conhece o proprietário desta criatura magnífica?
- Bok é meu - ela admitiu.
O cavaleiro a fitou, admirado que uma mulher - ou qualquer pessoa, por falar nisso - controlasse o monstro que havia abatido alguns de seus melhores guerreiros
e derrubado uma seção da muralha da cidade.
- O preço há de ser alto, Sidnéia de Luskan - ele rosnou.
- A Torre das Hostes irá ressarci-los - ela concordou. - Agora, poderia libertar o golem e deixá-lo sob meu controle? - ela perguntou ao mago. -
Bok vai me obedecer.
- Não! - disse o cavaleiro, ríspido. - Não vou deixar essa coisa à solta novamente.
- Calma, Gavin - disse-lhe Mizzen. Ele se voltou para Sidnéia. - Eu gostaria de estudar o golem, se possível. É realmente a mais primorosa construção
que já vi, com uma força além das expectativas dos livros de criação.
- Sinto muito - Sidnéia respondeu -, mas tenho pouco tempo. E muitas estradas ainda a percorrer. Diga o valor dos prejuízos causados pelo golem e eu
o retransmitirei ao meu mestre. Dou-lhe minha palavra como membro da Torre das Hostes.
- Você vai pagar agora - argumentou o guarda.
Mais uma vez, Mizzen o silenciou.
- Perdoe a raiva de Gavin - disse ele a Sidnéia. Ele inspecionou a área. - Talvez possamos fazer um acordo. Ninguém parece ter sido ferido gravemente.
- Três homens saíram daqui carregados! - Gavin refutou. - E pelo menos um cavalo está estropiado e teremos de sacrificá-lo!
Mizzen acenou com a mão como se para minimizar as reclamações.
- Eles vão se recuperar - disse. - Eles vão se recuperar. E a muralha precisava mesmo de reparos. - Ele olhou para Sidnéia e cofiou a barba novamente.
- Eis a minha oferta, e você não vai encontrar outra mais razoável! Entregue-me o golem por uma noite, apenas uma, e eu ressarcirei o prejuízo que ele causou. Só
uma noite.
- Você não vai desmontar Bok - afirmou Sidnéia.
- Nem mesmo a cabeça? - implorou Mizzen.
- Nem mesmo a cabeça - insistiu Sidnéia. - E eu virei buscar o golem à primeira luz da manhã.
Mizzen cofiou a barba mais uma vez.
- Uma obra prodigiosa - ele murmurou, perscrutando o interior da prisão mágica. - Feito!
- Se esse monstro... - começou Gavin, furioso.
- Ah, onde está seu senso de aventura, Gavin? - devolveu Mizzen, antes mesmo que o cavaleiro conseguisse terminar sua ameaça. - Lembre-se dos preceitos
de nossa cidade, homem. Estamos aqui para aprender. Se você pudesse apenas compreender o potencial de uma criação como esta!
Eles se afastaram de Sidnéia, não lhe dando mais atenção, e o mago ainda tagarelava no ouvido de Gavin. Entreri se esgueirou desde as sombras de um edifício
próximo para o lado de Sidnéia.
- Por que a coisa veio até nós? - ele perguntou. Ela chacoalhou a cabeça.
- Só pode haver uma resposta.
- O drow?
- Sim - ela disse. - Bok deve tê-los seguido até a cidade.
- Improvável - concluiu Entreri -, mas é possível que o golem os tenha visto. Se Bok estivesse atrás do drow e seus valentes companheiros, eles estariam
aqui na batalha, ajudando a rechaçá-lo.
- Então, é possível que ainda estejam lá fora.
- Ou talvez estivessem deixando a cidade quando Bok os viu - disse Entreri. - Vou ver se descubro alguma coisa com os guardas do portão. Nada tema,
nossa presa está bem próxima!
Eles retornaram ao quarto umas duas horas depois. Com os guardas no portão, descobriram que o grupo do drow fora rechaçado e agora estavam ansiosos para recuperar
Bok e seguir caminho.
Sidnéia deu início a uma série de instruções para Jierdan referentes à partida pela manhã, mas o que atraiu a atenção imediata de Entreri foi o olho machucado
de Cattiebrie. Ele se aproximou para verificar as cordas e, satisfeito por estarem intactas, virou-se para Jierdan com o punhal desembainhado.
Sidnéia o interrompeu, rapidamente inferindo a situação.
- Agora não! - exigiu. - Nossas recompensas estão próximas. Não podemos nos permitir isto!
Entreri riu maldosamente e guardou o punhal.
- Ainda vamos discutir isso - ele prometeu a Jierdan, entre dentes. - Não toque na garota novamente.
Perfeito, pensou Cattiebrie. Do ponto de vista de Jierdan, era como se o assassino confessasse a intenção de matá-lo.
Mais combustível para as chamas.
Ao recuperar o golem com Mizzen na manhã seguinte, as suspeitas de Sidnéia de que Bok vira o grupo do drow foram confirmadas. Eles deixaram lua Argêntea imediatamente
e Bok os conduziu pela mesma trilha que Bruenor e seus amigos haviam tomado na manhã anterior.
Como o grupo anterior, eles também eram vigiados.
Alustriel afastou do rosto o cabelo ondulante e capturou o sol da manhã em seus olhos verdes enquanto observava aquele bando com curiosidade cada vez maior.
A dama descobrira com os porteiros que alguém estivera perguntando sobre o elfo negro.
Ela ainda não conseguia entender que papel aquele novo grupo que deixava Lua Argêntea representava na missão, mas ela desconfiava que suas intenções não
eram boas. Alustriel havia saciado a própria sede de aventura muitos anos antes, mas ela desejava agora que pudesse, de algum modo, ajudar o drow e seus amigos em
sua nobre missão. No entanto, os assuntos de estado a oprimiam e ela não tinha tempo para essas distrações. Pensou por um momento em despachar uma patrulha para
capturar aquele segundo grupo, para que, assim, pudesse lhes descobrir a intenção.
Então, ela se voltou para sua cidade, lembrando a si mesma de que era apenas uma personagem de menor importância na busca pelo Salão de Mitral. Só lhe restava
confiar nas habilidades de Drizzt Do'Urden e seus amigos.

CONTINUA

LIVRO 2
ALIADOS


Ele quer ir para casa. Quer encontrar um mundo que conheceu outrora. Não sei se é a promessa de riquezas ou a da simplicidade que agora impele Bruenor.
Ele quer encontrar o Salão de Mitral, livrá-lo de todos os monstros que possam agora habitar o lugar a fim de reclamá-lo em nome do Clã Martelo de Batalha.
Superficialmente, esse desejo parece uma coisa razoável, até mesmo nobre. Todos nós buscamos a aventura e, para aqueles cujas famílias vivem segundo a tradição
da nobreza, o desejo de vingar um agravo e restaurar o nome e a posição da família não pode ser subestimado.
Nossa estrada para o Salão de Mitral provavelmente não será fácil. Muitas terras perigosas e incivilizadas jazem entre o Vale do Vento Gélido e a região bem
a leste de Luskan e, sem dúvida, essa estrada promete tornar-se ainda mais sombria se de fato encontrarmos a entrada para as minas perdidas dos anões. Mas estou
cercado por amigos capazes e poderosos e, assim sendo, os monstros não me preocupam, não os que conseguimos combater com a espada. Não, meu único temor em relação
a esta jornada que empreendemos agora se refere a Bruenor Martelo de Batalha. Ele quer ir para casa e existem muitos bons motivos para tanto. Há apenas um bom motivo
para que ele não o faça e, se esse motivo, a nostalgia, for a fonte de seu desejo, então temo que ele venha a sofrer uma amarga decepção.
A nostalgia é, talvez, a maior das mentiras que todos nós contamos a nós mesmos. É o lustro do passado a se adaptar às sensibilidades do presente. Para alguns,
isso traz um certo consolo, um sentido de identidade e origem, mas outros, acho eu, exageram essas lembranças alteradas e, por causa disso, ficam paralisados diante
da realidade.
Quantas pessoas anelam por aquele "mundo passado, mais simples e melhor", eu me pergunto, sem jamais reconhecer a verdade de que talvez elas é que eram mais
simples e melhores, e não o mundo ao seu redor?
Como um elfo drow, espero viver vários séculos, mas aquelas primeiras décadas de vida para um drow, e para um elfo da superfície, não são tão diferentes,
no que se refere ao desenvolvimento emocional, das de um humano, ou de um halfling, ou de um anão. Eu também recordo esse idealismo e essa energia dos meus dias
de juventude, quando o mundo parecia um lugar descomplicado, quando o certo e o errado estavam claramente gravados no caminho diante de cada um dos meus passos.
Talvez, de alguma estranha maneira, devido ao fato de que meus primeiros anos foram tão repletos de experiências terríveis, tão repletos de um ambiente e de uma
experiência que eu simplesmente não conseguia tolerar, estou em melhor situação agora. Bois, ao contrário de tantos que conheci na superfície, minha vida tem melhorado
constantemente.
Teria isso contribuído para o meu otimismo, para a minha própria existência e para mundo inteiro ao meu redor?
Tantas pessoas, particularmente os humanos que passaram o ponto médio de sua expectativa de vida, continuam a procurar no passado o paraíso, continuam a alegar
que o mundo era um lugar muito melhor quando eram jovens.
Não acredito nisso. Pode haver ocasiões específicas em que isso seja verdade - um rei despótico que deixa em seu lugar um monarca piedoso, uma era de bem-estar
que envolve a terra depois de uma peste -, mas acredito, preciso acreditar, que as pessoas do mundo são um grupo em desenvolvimento, que a evolução natural das civilizações,
apesar de não ser necessariamente uma sucessão em linha reta, caminha rumo a melhoria do mundo. Pois cada vez que se encontra um caminho melhor, as pessoas naturalmente
gravitam naquela direção enquanto os experimentos fracassados são abandonados. Tenho ouvido, por exemplo, as interpretações de Wulfgar sobre a história do seu povo,
as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido, e fico atônito e horrorizado diante da brutalidade do seu passado, a luta constante de tribo contra tribo, o estupro
em massa das mulheres capturadas e a tortura dos homens aprisionados. Os homens das tribos do Vale do Vento Gélido são ainda um bando selvagem, sem dúvida, mas,
se dermos crédito às tradições orais, não na mesma medida que seus predecessores. E isso faz todo o sentido para mim e, assim, tenho esperança de que a tendência
continuará. Talvez, um dia, venha a surgir um grande líder bárbaro que encontre verdadeiramente o amor de uma mulher, que encontre uma esposa que arranque dele um
certo grau de respeito, praticamente desconhecido entre os bárbaros. Será que esse líder elevará, de algum modo, a posição das mulheres entre as tribos?
Se isso acontecer, as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido encontrarão uma força que simplesmente não compreendem em meio à metade de sua população. Se
isso acontecer, se as mulheres bárbaras sofrerem essa ascensão, então os homens das tribos nunca, jamais as forçarão de volta aos seus papéis atuais, que podem ser
descritos apenas como escravidão.
E todos eles, homens e mulheres, mudarão para melhor.
Para que a mudança dure entre criaturas racionais, essa mudança deve ser para melhor. E, desse modo, as civilizações, os povos evoluem para um melhor entendimento
e um lugar melhor.
Para as Matriarcas de Menzoberranzan, assim como no caso de muitas gerações de famílias despóticas e de ricos proprietários de terras, a mudança pode ser
encarada como uma ameaça clara à sua base de poder e, portanto, sua resistência parece lógica, até mesmo esperada. Como, então, podemos encontrar explicação no fato
de que tantas, tantas pessoas, até mesmo aquelas que vivem na miséria, como viveram seus pais e os pais de seus pais, e gerações e gerações antes deles, encarem
a mudança com o mesmo medo e a mesma repulsa? Por que o mais humilde camponês não desejaria a evolução da civilização se essa evolução pudesse levar a uma vida melhor
para seus filhos?
Isso pareceria lógico, mas, pelo que vejo, não é o caso. Para muitos, se não para a maioria dos humanos de vida breve que já ultrapassou a idade de maior
vigor e saúde, que já deixou para trás seus melhores dias, aceitar qualquer mudança não parece algo fácil. Não, tantos se agarram ao passado, quando o mundo era
"mais simples e melhor". Eles se ressentem da mudança num nível pessoal, como se as melhorias que seus sucessores possam implementar lançassem uma luz brilhante
e reveladora sobre seus próprios fracassos.
Talvez seja isso. Talvez seja um dos nossos medos mais fundamentais, o medo, criado pelo orgulho insensato, de que nossos filhos venham a saber mais do que
nós mesmos. Ao mesmo tempo em que tantas pessoas enaltecem as virtudes de seus filhos, existirá algum medo remoto dentro delas de que esses filhos venham a enxergar
os erros de seus pais?
Não tenho respostas para esse aparente paradoxo, mas, pelo bem de Bruenor, rezo para que ele procure o Salão de Mitral pelos motivos certos, em nome da aventura
e do desafio, em nome de sua herança e da restauração do nome de sua família, e não em nome do desejo de transformar o mundo naquilo que era antes.
A nostalgia é algo necessário, creio eu, e uma maneira de todos nós encontrarmos paz naquilo que realizamos, ou até mesmo no que não conseguimos realizar.
For outro lado, se a nostalgia precipitar nossas ações numa tentativa de retornar àquela época lendária e cor-de-rosa, particularmente no caso de alguém que acredita
que sua vida tenha sido um fracasso, então é algo vazio, condenado a gerar nada além de frustração e uma sensação ainda maior de fracasso.
Pior ainda, se a nostalgia colocar obstáculos no caminho da evolução, então se trata de algo realmente limitante.
Drizzt Do'Urden


7. PARA RISCO DAS AVES QUE VOAM BAIXO


Para o mais absoluto alívio dos companheiros, eles emergiram das curvas e depressões dos rochedos quase no fim da tarde. Levaram algum tempo para reunir as
montarias depois do encontro com o Pégaso, particularmente o pônei do halfling, que havia disparado no começo da luta, quando Régis caíra. Na verdade, seria impossível
montar o pônei novamente: estava arisco demais e Régis não se encontrava em condições de cavalgar. Mas Drizzt insistira que os dois cavalos e os dois pôneis fossem
encontrados, lembrando seus companheiros de sua responsabilidade para com os fazendeiros, considerando-se especialmente a maneira pela qual haviam se apropriado
dos animais.
Régis agora ia sentado diante de Wulfgar no garanhão do bárbaro, à frente do grupo, com o pônei amarrado logo atrás e Drizzt e Bruenor a uma pequena distância
deles, defendendo a retaguarda. Wulfgar mantinha os braços imensos em torno do halfling e seu abraço protetor oferecia segurança suficiente para permitir a Régis
o descanso justo.
- Mantenha o sol poente às nossas costas - Drizzt instruiu o bárbaro.
Wulfgar assentiu com um brado e olhou para trás a fim de confirmar sua posição.
- Ronca-bucho não poderia ter encontrado um lugar mais seguro em todos os Reinos - Bruenor comentou com o drow.
Drizzt sorriu:
- Wulfgar se saiu bem.
- É - concordou o anão, obviamente satisfeito. - Apesar de que eu me pergunto quanto tempo mais vou poder continuar chamando ele de garoto!
- 'Cê devia ter visto o Alfanje, elfo - casquinou o anão. - Um barco cheio de Piratas, que não vêem outra coisa além do oceano há um ano e um dia, não
seria capaz de causar tanta destruição!
- Quando deixamos o vale, minha preocupação era se Wulfgar estaria pronto para as várias sociedades do mundo - replicou Drizzt. - Agora minha preocupação
é que o mundo pode não estar preparado para ele. Você deve estar orgulhoso.
- Você tem tanto a ver com isso quanto eu - disse Bruenor. - Ele é meu garoto, elfo, quase como se fosse mesmo meu filho. Ele nem pensou nos próprios
temores no campo lá atrás. Nunca tinha visto tamanha coragem num ser humano como quando você foi pro outro plano. Ele esperou - contou com isso, 'tô te dizendo!
- que o desgraçado do bicho voltasse prá que pudesse tentar acertar em cheio, só prá vingar a mim e o halfling, os dois feridos.
Drizzt apreciava aqueles raros momentos de vulnerabilidade do anão. Poucas vezes antes vira Bruenor abandonar sua fachada empedernida, no topo da ladeira
no Vale do Vento Gélido, quando o anão pensava no Salão de Mitral e nas maravilhosas lembranças de sua infância.
- E, 'tô orgulhoso - continuou Bruenor. - E me pego agora disposto a seguir a liderança dele e a confiar nas suas decisões.
Drizzt podia apenas concordar, tendo chegado às mesmas conclusões muitos meses antes, quando Wulfgar unira os povos do Vale do Vento Gélido - bárbaros e deca-burgueses
- para que juntos se protegessem contra o rigoroso inverno da tundra. Ele ainda tinha algum receio em levar o jovem bárbaro a lugares como a zona portuária de Luskan,
pois sabia que muitas das melhores pessoas nos Reinos haviam pago caro por seus primeiros encontros com as guildas e as estruturas de poder clandestinas de uma cidade,
e que a profunda compaixão de Wulfgar e seu irredutível código de honra poderiam ser usados contra ele.
Mas na estrada, nos ermos, Drizzt sabia que nunca encontraria um companheiro mais valioso.
Não encontraram mais problemas no resto do dia ou da noite e, na manhã seguinte, chegaram à estrada principal, a rota comercial de Águas Profundas a Mirabar
que passava por Sela Longa no caminho. Nenhum ponto de referência surgiu para orientá-los como Drizzt previra, mas, devido ao seu plano de se manter mais para leste
do que numa linha reta para sudeste, a direção a partir dali era claramente o sul.
Régis parecia muito melhor naquele dia e estava ansioso por ver Sela Longa. Era o único membro do grupo a ter visitado o lar dos magos Harpells e aguardava
ansiosamente para rever o estranho e geralmente exótico lugar.
Sua exaltada tagarelice, porém, fez apenas aumentar os receios de Wulfgar, pois era profunda a desconfiança do bárbaro em relação às artes negras. Entre o
povo de Wulfgar, os magos eram vistos como covardes e vigaristas malignos.
Quanto tempo teremos de ficar nesse lugar? - ele perguntou a Bruenor e Drizzt, que, com os rochedos às suas costas, passaram a cavalgar ao lado dele na estrada
larga.
- Até a gente conseguir algumas respostas - respondeu Bruenor. - Ou até a gente pensar num lugar melhor prá ir.
Wulfgar teve de se satisfazer com a resposta.
Eles logo passaram por algumas fazendas periféricas, atraindo olhares curiosos dos homens nos campos, que se inclinavam sobre as enxadas e os ancinhos para
estudar o grupo. Pouco depois do primeiro desses encontros, foram recebidos na estrada por cinco homens armados, chamados Longinetes, representantes da guarda avançada
da vila.
- Saudações, viajantes - disse um deles, educadamente. - Posso perguntar quais são suas intenções por estas bandas?
- Você pode é... - começou Bruenor, mas Drizzt interrompeu-lhe o comentário sarcástico com uma palma esticada.
- Viemos ver os Harpells - respondeu Régis. - Nossos assuntos não envolvem sua cidade, mas procuramos o sábio conselho da família que vive na mansão.
- Bons olhos os vejam, então - respondeu o Longinete. - A colina da Mansão de Hera fica só algumas milhas estrada abaixo, antes de Sela Longa propriamente
dita. - Ele fez uma pausa brusca, notando a presença do drow. - Podemos escoltá-los, se desejarem - ofereceu ele, limpando a garganta numa tentativa educada de esconder
seu assombro diante do elfo negro.
- Não é necessário - disse Drizzt. - Asseguro-lhe que encontraremos o caminho e que não desejamos nenhum mal a qualquer pessoa de Sela Longa.
- Muito bem.
O Longinete fez sua montaria dar um passo para o lado e os companheiros seguiram em frente.
- Mas fiquem na estrada - ele ainda gritou. - Alguns dos fazendeiros ficam nervosos com pessoas próximas aos limites de suas terras.
- São uma gente afável - Régis explicou para os companheiros enquanto desciam a estrada -, e confiam em seus magos.
- Afáveis, mas precavidos - retorquiu Drizzt, apontando um campo distante onde a silhueta de um homem a cavalo mal e mal se fazia notar na longínqua fileira
de árvores. - Somos vigiados.
- Mas não incomodados - disse Bruenor. - E é mais do que se pode dizer sobre qualquer outro lugar por onde a gente tenha andado!
A colina da Mansão de Hera compreendia um pequeno outeiro com três edifícios, dois deles semelhantes ao padrão das casas de fazenda, baixas e feitas de madeira.
O terceiro, porém, era diferente de tudo o que os quatro companheiros já tinham visto. Suas paredes se encontravam em ângulos abruptos a cada poucos metros, criando
nichos dentro de nichos, e dezenas de torreões brotavam do teto anguloso, não havendo dois iguais. Mil janelas eram visíveis somente a partir daquela direção, algumas
delas imensas, outras não maiores do que uma seteira.
Era impossível encontrar ali um projeto único, um plano ou estilo arquitetônico global. A mansão dos Harpells era uma colagem de idéias e experimentos independentes
em criação mágica. Mas havia realmente uma certa beleza em meio ao caos, uma sensação de liberdade que desafiava o termo "estrutura" e trazia consigo um sentimento
de boa acolhida.
Uma cerca em balaustrada circundava o outeiro, e os quatro amigos se aproximaram com curiosidade, se não com alvoroço. Não havia porteira, só uma abertura
e a estrada que seguia através dela. Sentado num banquinho do lado de dentro da cerca, fitando estupidamente o céu, encontrava-se um homem gordo, barbudo, vestindo
uma túnica carmesim.
O homem se sobressaltou ao notar a chegada do grupo.
- Quem são vocês e o que querem? - indagou bruscamente, furioso por terem interrompido sua meditação.
- Viajantes cansados - respondeu Régis - que aqui chegam em busca da sabedoria dos afamados Harpells.
O homem não pareceu impressionado.
- E daí? - encorajou ele.
Régis, impotente, virou-se para Drizzt e Bruenor, mas só lhes restava dar de ombros como resposta, sem compreender o que mais lhes era exigido. Bruenor começava
a se adiantar com seu pônei para reiterar suas intenções quando outro homem de túnica saiu desajeitadamente da mansão para se juntar ao primeiro.
Ele trocou algumas palavras em voz baixa com o mago gordo, depois se voltou para a estrada.
- Saudações - ofereceu ele aos companheiros. - Perdoem o pobre Regweld aqui - ele deu uma palmadinha no ombro do mago gordo -, pois ele anda tendo
um tremendo azar com algumas experiências. Bem, não que as coisas não acabem dando certo... Podem apenas levar algum tempo.
- Regweld é realmente um mago excepcional - continuou, batendo-lhe no ombro mais uma vez. - E suas idéias sobre cruzar um cavalo com uma rã têm lá
o seu mérito; é só não se incomodar com a explosão! Os laboratórios de alquimia são substituíveis!
Os amigos, no alto de suas montarias, reprimiram o assombro diante do discurso desconexo.
- Ora, pensem nas vantagens ao se atravessar os rios! - gritou o homem de túnica. - Mas já chega dessa história. Eu sou Harkle. Em que posso ser útil?
- Harkle Harpell? - Régis perguntou, com uma risadinha.
O homem fez uma reverência.
- Bruenor do Vale do Vento Gélido, esse sou eu - proclamou Bruenor ao recuperar a voz. - Meus amigos e eu andamos centenas de quilômetros em busca dos conselhos
dos magos de Sela Longa...
Ele notou que Harkle, distraído pela presença do drow, já não lhe dava atenção. Drizzt deixara o capuz escorregar para trás de propósito, para julgar a reação
dos supostamente cultos homens de Sela Longa. O Longinete na estrada ficara surpreso, mas não furioso, e Drizzt precisava descobrir se a vila em geral seria mais
tolerante à sua raça.
- Fantástico - murmurou Harkle. - Simplesmente inacreditável! - Regweld também notara o elfo negro e parecia interessado pela primeira vez desde que o grupo
chegara.
- Teremos permissão para entrar? - perguntou Drizzt.
- Ah, sim, por favor, entrem - respondeu Harkle, tentando sem sucesso disfarçar sua agitação pelo bem da etiqueta.
Adiantando-se com seu cavalo, Wulfgar colocou-os em movimento estrada acima.
- Por aí, não - disse Harkle. - Não pela estrada; é claro, não é real mente uma estrada. Quer dizer, é, mas você não vai conseguir passar.
Wulfgar deteve sua montaria.
- Chega de tolices, mago! - exigiu ele, irritado, pois os anos de desconfiança em relação aos praticantes das artes mágicas transbordavam em meio à
sua frustração. - Podemos entrar ou não?
- Ninguém está com tolices, eu lhe asseguro - disse Harkle, esperando manter o encontro em termos amigáveis.
Mas Regweld interveio.
- É um daqueles - disse acusadoramente o mago gordo, levantando-se de seu banquinho.
Wulfgar fitou-o, curioso.
- Um bárbaro - explicou Regweld. - Um guerreiro treinado para odiar aquilo que não consegue compreender. Vá em frente, guerreiro. Tire esse martelão
aí das suas costas.
Wulfgar hesitou, dando-se conta da própria fúria irracional, e olhou para os amigos em busca de apoio. Ele não queria estragar os planos de Bruenor em nome
da própria estreiteza de espírito.
- Vá em frente - insistiu Regweld, colocando-se no centro da estrada.
- Pegue o seu martelo e o atire em mim. Satisfaça seu desejo sincero de des- mascarar a tolice de um mago! E aproveite para abater um deles! Isso é que
eu chamo de bom negócio! - Ele apontou o próprio queixo. - Bem aqui - admoestou ele.
- Regweld - suspirou Harkle, balançando a cabeça. - Por favor, faça- lhe a vontade, guerreiro. Faça aquele rosto abatido sorrir.
Wulfgar olhou mais uma vez para seus amigos, mas novamente eles não tinham as respostas. Regweld resolveu por ele:
- Filho bastardo de um caribu.
Garra de Palas já girava pelo ar antes que o homem gordo tivesse terminado o insulto, rumando direto para o alvo. Regweld não se esquivou e, pouco antes de
passar por cima da cerca, o martelo se chocou contra algo invisível, mas tão palpável quanto a rocha. Ressoando como um gongo cerimonial, o muro transparente estremeceu
e ondas percorreram toda a sua extensão, visíveis aos espectadores estarrecidos como meras distorções das imagens por trás do muro. Os amigos perceberam pela primeira
vez que a cerca não era real, e sim uma pintura sobre a superfície do muro transparente.
Garra de Palas caiu por terra, como se todo o seu poder tivesse se exaurido, e levou um bom tempo para reaparecer nas mãos de Wulfgar.
A gargalhada de Regweld foi mais de vitória que de graça, mas Harkle meneou a cabeça.
- Sempre às custas dos outros - ralhou. - Você não tinha o direito de fazer isso.
- Ele precisava de uma lição - retorquiu Regweld. - A humildade é sempre um bem valioso para um guerreiro.
Régis agüentou enquanto pôde. Sabia o tempo todo sobre o muro invisível e desatou a rir naquele instante. Drizzt e Bruenor não resistiram e acompanharam o
halfling, e até mesmo Wulfgar, recuperado do choque, sorriu de sua própria "tolice".
Obviamente, Harkle não teve escolha a não ser parar de repreender Regweld e se juntar a eles.
- Entrem - ele implorou aos amigos. - O terceiro mourão é real; ali encontrarão a porteira. Mas, primeiro, desmontem e tirem as selas de seus cavalos.
As suspeitas de Wulfgar retornaram repentinamente, e uma carranca sufocou-lhe o sorriso.
- Explique-se - ele exigiu de Harkle.
- Faça o que ele manda! - ordenou Régis. - Ou terá uma surpresa ainda maior que a última.
Drizzt e Bruenor já haviam escorregado de suas selas, intrigados, mas nem um pouco temerosos em relação ao hospitaleiro Harkle Harpell. Wulfgar ergueu os
braços, impotente, e fez o mesmo, tirou os arreios do ruão e conduziu o animal, junto com o pônei de Régis, atrás dos demais.
Régis encontrou a entrada facilmente e a abriu para os amigos. Entraram sem medo, mas foram subitamente assaltados por lampejos ofuscantes de luz.
Quando seus olhos voltaram a ver, eles descobriram que seus cavalos e pôneis haviam sido reduzidos ao tamanho de gatos!
- O quê? - deixou escapar Bruenor, mas Régis estava rindo novamente e Harkle agia como se nada de incomum tivesse acontecido.
- Peguem-nos e venham comigo - ele instruiu. - Está quase na hora da ceia e a comida d'0 Varapau de Pileque está particularmente deliciosa hoje à noite!
Ele os fez contornar o lado da estranha mansão até uma ponte que cruzava o centro do outeiro. Bruenor e Wulfgar se sentiam ridículos carregando suas montarias,
mas Drizzt aceitava o fato com um sorriso e Régis desfrutava completamente do espetáculo ultrajante; tendo aprendido em sua primeira visita que Sela Longa não era
um lugar para se levar a sério, ele apreciava as idiossincrasias e os hábitos singulares dos Harpells simplesmente em nome da diversão.
Régis sabia que a ponte em arco diante deles serviria como mais um exemplo. Embora o vão sobre o riacho não fosse grande, aparentemente nada sustentava a
ponte e suas pranchas estreitas não tinham adornos, a ponto de não apresentar corrimãos.
Mais um Harpell de túnica, este incrivelmente velho, estava sentado num banquinho, o queixo numa das mãos, resmungando consigo mesmo e aparentemente ignorando
por completo os forasteiros.
Quando Wulfgar, à frente do grupo e ao lado de Harkle, aproximou-se da margem do riacho, deu um salto para trás e pôs-se a ofegar e a gaguejar. Régis deu
uma risadinha, sabendo o que o homenzarrão tinha visto, e Drizzt e Bruenor logo compreenderam.
O riacho SUBIA a encosta da colina, depois desaparecia logo antes do cume, mas os companheiros ouviam a água passando veloz diante deles. Então o riacho reaparecia
sobre o cimo da colina e escorria pela outra encosta.
O velho pôs-se de pé com um salto repentino e correu em direção a Wulfgar.
- Qual o significado disto? - gritava, desesperado. - Como pode ser? - Esmurrou o imenso peito do bárbaro de pura frustração.
Wulfgar procurou uma escapatória, não desejando nem mesmo agarrar o velho para contê-lo, com medo de partir sua forma frágil. Tão abruptamente quanto viera,
o velho correu de volta ao banquinho e reassumiu sua atitude silenciosa.
- Coitado do Chardin - disse Harkle, melancólico. - Foi poderoso em sua época. Foi ele quem mudou o curso do rio. Mas já faz quase vinte anos que
ele está obcecado em descobrir o segredo da invisibilidade sob a ponte.
- E no que o riacho é diferente do muro? - especulou Drizzt. - Sem dúvida, esse encantamento não é desconhecido na comunidade de magos.
- Ah, mas existe uma diferença - foi a resposta rápida de Harkle, empolgado ao descobrir alguém de fora da Mansão de Hera aparentemente interessado
em suas obras. - Um objeto invisível não é tão raro, mas um campo de invisibilidade... - Com um gesto largo da mão, apontou o riacho. - Tudo o que entra no rio naquele
ponto assume a propriedade - ele explicou. - Mas apenas enquanto permanecer no campo. E, para uma pessoa na área encantada - sei disso porque eu mesmo fiz o teste
-, tudo além do campo fica invisível, apesar de a água e os peixes parecerem normais. Isso desafia nosso conhecimento das propriedades da invisibilidade e pode,
na verdade, refletir um rasgão na urdidura de um plano inteiro da existência, ainda desconhecido!
Ele viu que sua agitação excedera a compreensão ou o interesse dos companheiros do drow havia algum tempo, por isso ele se acalmou e educadamente mudou de
assunto.
- O alojamento para seus cavalos fica naquele edifício - disse ele, apontando uma das estruturas baixas de madeira. - A sob-ponte os levará até lá.
Devo cuidar de um outro assunto no momento. Talvez possamos nos encontrar mais tarde na taverna.
Wulfgar, sem entender completamente as indicações de Harkle, pisou de leve na primeira prancha de madeira da ponte e foi prontamente atirado para trás por
alguma força invisível.
- Eu disse a sob-ponte - gritou Harkle, apontando o lado de baixo da ponte. - Vocês não podem atravessar o rio deste lado pela sobreponte; ela é usada
para voltar! E para não haver discussões - ele explicou.
Wulfgar tinha suas dúvidas sobre uma ponte que não enxergava, mas não quis parecer covarde diante dos amigos e do mago. Colocou-se ao lado do arco ascendente
da ponte e cautelosamente esticou o pé em direção à parte de baixo da estrutura de madeira, tateando em busca da travessia invisível. Havia apenas ar e a corrente
imperceptível de água logo abaixo de seu pé, e ele hesitou.
- Vamos - estimulou Harkle.
Wulfgar mergulhou de cabeça, preparando-se para cair na água. Mas, para sua absoluta surpresa, ele não caiu para baixo. Ele caiu para cima!
- Aaah! - gritou o bárbaro, ao bater com a cabeça no fundo da ponte.
Ficou estendido ali durante um bom tempo, incapaz de se orientar, de costas sobre o fundo da ponte, olhando para baixo em vez de para cima.
- Viu! - foi o grito agudo do mago. - A sob-ponte!
Drizzt foi o seguinte, saltou para a área encantada com uma cambalhota fácil e pousou suavemente ao lado de seu amigo.
- Você está bem? - perguntou.
- A estrada, meu amigo - gemeu Wulfgar. - Tenho saudades da estrada e dos orcs. É mais seguro.
Drizzt o ajudou a se manter de pé, pois a mente do bárbaro protestou o caminho todo contra ficar de cabeça para baixo sob a ponte, com um riacho invisível
correndo sobre sua cabeça.
Bruenor também tinha lá suas reservas, mas uma provocação do halfling o fez seguir em frente e logo os companheiros pisavam a relva do mundo natural na outra
margem do riacho. Dois edifícios se erguiam adiante e eles se dirigiram para o menor deles, aquele que Harkle indicara.
Uma mulher de túnica azul os recebeu à porta.
- Quatro? - ela perguntou retoricamente. - Vocês deveriam ter mandado avisar.
- Harkle nos enviou - Régis explicou. - Não somos destas bandas. Desculpe-nos por ignorarmos os seus costumes.
- Muito bem, então - bufou a mulher. - Vamos entrando. Estamos, na verdade, excepcionalmente tranqüilos para esta época do ano. Estou certa de que
tenho espaço para seus cavalos. - Ela os conduziu ao interior da sala principal da estrutura, uma câmara quadrangular. Todas as paredes estavam recobertas, do chão
ao teto, por pequenas gaiolas, grandes o suficiente para um cavalo do tamanho de um gato esticar as pernas. Muitas estavam ocupadas, as placas de identificação indicavam
estarem reservadas para determinados membros do clã Harpell, mas a mulher encontrou quatro completamente vazias e dentro delas colocou os cavalos dos companheiros.
- Podem pegá-los quando quiserem - ela explicou, entregando a cada um deles uma chave para a gaiola de sua respectiva montaria. Ela se deteve quando
chegou a Drizzt, estudando-lhe os traços formosos. - O que temos aqui? - ela perguntou, sem perder o tom de voz calmo e monótono. - Não me informaram da sua chegada,
mas tenho certeza de que muitos desejarão uma audiência com você antes de partirem! Nunca vimos alguém da sua espécie.
Drizzt meneou a cabeça e não respondeu, sentindo-se cada vez mais desconfortável com esse novo tipo de atenção. De algum modo, aquilo parecia aviltá-lo ainda
mais que as ameaças dos camponeses ignorantes. Contudo, ele compreendia aquela curiosidade e imaginou que devia aos magos pelo menos algumas horas de conversa.
O Varapau de Pileque, nos fundos da Mansão de Hera, preenchia uma câmara circular. O bar ficava no meio, como o eixo de uma roda, e dentro de seu amplo
perímetro ficava outro cômodo, uma cozinha anexa. Um homem peludo, calvo e de braços descomunais esfregava incessantemente a superfície lustrosa do bar com um pano,
mais para passar o tempo que para limpar bebida derramada.
Mais ao fundo, num palco elevado, instrumentos musicais tocavam-se sozinhos, guiados pelas revoluções bruscas de um mago de cabelos brancos que portava uma
varinha e vestia calças pretas e um colete negro. Sempre que os instrumentos atingiam um crescendo, o mago apontava sua varinha e estalava os dedos da mão livre,
e uma explosão de centelhas coloridas irrompia de cada um dos quatro cantos do palco.
Os companheiros tomaram uma mesa à vista do mago que se apresentava. Tiveram liberdade para escolher o local, pois aparentemente eram os únicos fregueses
no recinto. As mesas também eram circulares, feitas de boa madeira, e ostentavam como peça central uma jóia imensa, verde e multifacetada sobre um pedestal de prata.
- Nunca tinha ouvido falar de um lugar mais esquisito - resmungou Bruenor, constrangido desde a sob-ponte, mas resignado diante da necessidade de falar
com os Harpells.
- Nem eu - disse o bárbaro. -Tomara que partamos em breve.
- Vocês dois estão presos nas câmaras estreitas de suas mentes - ralhou Régis. - É um lugar para se apreciar, e vocês sabem que aqui nenhum perigo
nos espreita. - Ele piscou quando seu olhar recaiu sobre Wulfgar. - Nada sério, de qualquer maneira.
- Sela Longa nos oferece um descanso há muito necessário - acrescentou Drizzt. - Aqui, podemos traçar o curso de nossa próxima jornada em segurança
e voltar à estrada revigorados. Foram duas semanas desde o vale até Luskan, e quase mais uma até aqui, sem descanso. A fadiga esgota a força e tira a vantagem de
um guerreiro habilidoso. - Ele olhou particularmente para Wulfgar ao completar o raciocínio. - Um homem cansado comete erros. E os erros cometidos nos ermos são,
geralmente, fatais.
- Então, vamos relaxar e desfrutar da hospitalidade dos Harpells - disse Régis.
- Concordo - disse Bruenor, olhando ao redor -, mas que seja breve esse descanso. E onde, nos nove infernos, se meteu a criada? Ou será que a gente
tem que se servir sozinho prá conseguir comida e bebida?
- Se quiser algo, basta pedir - veio uma voz do centro da mesa. Tanto Wulfgar quanto Bruenor se levantaram imediatamente, em guarda. Drizzt notou o
fulgor de luz no interior da pedra verde e estudou o objeto, adivinhando imediatamente a função do enfeite. Olhou por sobre o ombro, para o taverneiro, que tinha
ao seu lado uma jóia semelhante.
- Um dispositivo de cristalomancia - explicou o drow aos amigos, hora eles, àquela altura, tivessem chegado à mesma conclusão e se sentissem muito idiotas
ali de pé, no meio de uma taverna vazia, com as armas nas mãos.
Régis mantinha a cabeça abaixada, os ombros a estremecer com os soluços provocados pelo riso.
- Ora! 'Cê sabia o tempo todo! - Bruenor grunhiu para ele. - 'Cê 'tá se divertindo demais às nossas custas, Ronca-bucho - o anão avisou. - Por mim já 'tô
começando a me perguntar quanto tempo mais nossa estrada ainda vai ter lugar prá você.
Régis ergueu a cabeça diante do olhar feroz de seu amigo anão, igualando-o subitamente com uma firmeza toda própria nos olhos.
- Caminhamos e cavalgamos quase seiscentos e cinqüenta quilômetros juntos! - ele retorquiu. - Enfrentamos ventos frios e ataques de orcs, brigas e
batalhas com espíritos. Permita-me um pouco de diversão, meu bom anão. Se você e Wulfgar tirassem esse peso das costas e enxergassem o verdadeiro encanto do lugar,
também estariam dando risada!
Wulfgar, de fato, sorriu. Então, de repente, atirou a cabeça para trás e urrou, livrando-se de toda a sua raiva e de todo o seu preconceito, para que pudesse
aceitar o conselho do halfling e encarar Sela Longa com mente aberta. Até mesmo o mago-músico parou de tocar para observar o espetáculo proporcionado pelo grito
catártico do bárbaro.
E, ao terminar, Wulfgar riu. Não uma risadinha divertida, mas uma gargalhada estrondosa que brotou de seu ventre e explodiu em sua boca escancarada.
- Cerveja! - disse Bruenor à jóia. Quase imediatamente, um disco flutuante de luz azul passou por cima do bar, levando até eles cerveja forte em quantidade
suficiente para durar a noite toda. Alguns minutos depois, todos os vestígios das tensões da estrada haviam se desfeito e eles brindavam e sorviam a bebida de suas
canecas com entusiasmo.
Apenas Drizzt se manteve reservado, bebericando a cerveja e permanecendo alerta. Não pressentia o perigo ali, mas desejava manter o controle diante das inevitáveis
perguntas dos magos.
Daí a pouco, os Harpells e seus amigos começaram a entrar em profusão n'O Varapau de Pileque. Os companheiros eram os únicos recém-chegados naquela noite
e todos os comensais trouxeram suas mesas para perto, partilhando histórias de viagem e brindes de amizade eterna durante o excelente jantar e, mais tarde, ao lado
de uma cálida lareira. Muitos, liderados por Harkle, ocuparam-se de Drizzt e do interesse que nutriam pelas cidades escuras dos drow, e o elfo negro não se importou
muito em responder-lhes as Perguntas.
Então vieram as indagações sobre a jornada que trouxera os companheiros tão longe. Bruenor, na verdade, foi quem as incitou, saltando sobre a mesa e proclamando:
- Salão de Mitral, lar dos meus ancestrais, você vai ser meu novamente!
Drizzt ficou preocupado. A se julgar pela reação curiosa da assembléia, o nome da antiga terra natal de Bruenor era conhecido ali, ao menos nas lendas. O
drow não temia ações malévolas por parte dos Harpells, mas simplesmente não queria o propósito da aventura acompanhando, ou até mesmo precedendo, a ele e a seus
amigos na etapa seguinte da jornada. Outras pessoas poderiam muito bem ter algum interesse em descobrir a localização de uma antiga fortaleza dos anões, um lugar
a que as lendas faziam referência como "as minas cortadas por rios de prata".
Drizzt chamou Harkle de lado.
- Já se faz tarde. Há quartos disponíveis na aldeia?
- Bobagem - irritou-se Harkle. - Vocês são meus convidados e permanecerão aqui. Os quartos já foram preparados.
- E o preço por tudo isto?
Harkle afastou a bolsa de Drizzt.
- O preço na Mansão de Hera é uma ou duas boas histórias e trazer um pouco de entretenimento à nossa existência. Você e seus amigos já pagaram por
um ano ou mais!
- Nossos agradecimentos - replicou Drizzt. - Acho que é hora de meus companheiros descansarem. Temos uma longa jornada à nossa frente, e muito mais.
- Quanto à estrada adiante - disse Harkle -, arranjei uma reunião com DelRoy, o mais velho dos Harpells atualmente em Sela Longa. Ele, mais que qualquer
um de nós, pode ser capaz de ajudar a apontar o caminho.
- Ótimo - disse Régis, inclinando-se para ouvir a conversa.
- Essa reunião tem um pequeno preço - disse Harkle a Drizzt. - DelRoy deseja uma audiência privada com você. Há muitos anos ele estuda os drow, mas
pouca coisa chega até nós.
- Concordo - replicou Drizzt. - Agora, já é hora de irmos para a cama.
- Vou lhes mostrar o caminho.
- A que horas encontraremos DelRoy? - perguntou Régis.
- De manhã - respondeu Harkle.
Régis riu, depois se inclinou para o outro lado da mesa onde Bruenor se achava sentado com uma caneca imóvel em suas mãos nodosas, sem piscar os olhos. Régis
deu ao anão um empurrãozinho e Bruenor tombou, caindo no chão com um baque surdo e sem emitir um gemido sequer de protesto.
À noitinha seria melhor - observou o halfling, apontando para uma outra mesa do outro lado da sala.
Sob a qual se achava Wulfgar.
Harkle olhou para Drizzt.
- À noitinha - ele concordou. - Vou falar com DelRoy.
Os quatro amigos passaram o dia seguinte se recuperando e desfrutando das maravilhas sem fim da Mansão de Hera. Drizzt foi chamado logo cedo para uma reunião
com DelRoy, enquanto os demais eram guiados por Harkle numa excursão pela casa principal, passando por dúzias de laboratórios de alquimia, salas de cristalomancia,
câmaras de meditação e várias salas protegidas especificamente projetadas para a conjuração de seres de outros mundos. Uma estátua de um tal Matherly Harpell se
mostrou particularmente interessante, já que a estátua era, na verdade, o próprio mago. Um coquetel malsucedido de poções deixara-o petrificado, literalmente.
E havia Pau-mandado, o cão da família, que outrora fora o primo em segundo grau de Harkle: mais uma vez, um coquetel ruim.
Harkle não guardou segredos de seus convidados, recontou a história de seu clã, suas realizações e seus fracassos, em geral desastrosos. E ele falou sobre
as terras ao redor de Sela Longa, dos bárbaros uthgardt que os companheiros haviam encontrado, os Pôneis Celestes, e as outras tribos que poderiam ainda encontrar
ao longo do caminho.
Bruenor ficou feliz pelo fato de aquela parada para descanso trazer também informações valiosas. Seu objetivo de encontrar o Salão de Mitral o angustiava
a todo momento, todos os dias, e sempre que passava algum tempo sem fazer progressos, mesmo que simplesmente precisasse repousar, ele sentia a agonia da culpa.
- 'Cê tem que querer com todo o coração - ele se repreendia com freqüência.
Mas Harkle lhe fornecera dicas importantes sobre aquelas terras, o que, sem dúvida, ajudaria em sua causa no futuro, e ele estava satisfeito quando se sentou
para a ceia n'O Varapau de Pileque. Drizzt se juntou a eles, taciturno e silencioso, e recusou-se a falar quando questionado sobre sua discussão com DelRoy.
- Pense na reunião ainda por vir - foi a resposta do drow às perguntas de Bruenor. - DelRoy é muito velho e sábio. Talvez ele seja nossa melhor esperança
de algum dia encontrarmos a estrada para o Salão de Mitral.
Bruenor estava de fato pensando na reunião por vir.
E Drizzt permaneceu em silêncio durante o resto da refeição, considerando as histórias e as imagens de sua terra natal que ele dividira com DelRoy, recordando
a beleza única de Menzoberranzan.
E os corações malévolos que a haviam espoliado.
Pouco depois, Harkle levou Drizzt, Bruenor e Wulfgar para ver o velho mago. Régis pediu para não participar da reunião, dando preferência a uma outra festa
na taverna. Eles encontraram DelRoy numa câmara pequena, sombria, à luz de tochas, e os bruxuleios de luz aumentavam o ar de mistério no rosto envelhecido do mago.
Bruenor e Wulfgar concordaram imediatamente com as observações de Drizzt sobre DelRoy, pois décadas de experiência e incontáveis aventuras estavam visivelmente gravadas
nos traços de sua pele curtida e morena. Seu corpo agora lhe faltava, era visível, mas o brilho de seus olhos pálidos revelava uma vida interior e deixava pouca
dúvida quanto à lucidez de sua mente.
Bruenor abriu seu mapa sobre a mesa circular da sala, ao lado dos livros e rolos de pergaminho que DelRoy trouxera. O velho mago o estudou cuidadosamente
durante alguns segundos, traçando a linha que trouxera os companheiros até Sela Longa.
- Do que você se lembra sobre os antigos salões, anão? - ele perguntou.
- Marcos na paisagem ou povos vizinhos?
Bruenor chacoalhou a cabeça.
- As imagens na minha cabeça mostram os salões profundos e as oficinas, o som do ferro sobre a bigorna. A debandada do meu clã começou nas montanhas;
isso é tudo o que sei.
- O norte é um território vasto - comentou Harkle. - Muitas cordilheiras extensas poderiam abrigar uma fortaleza assim.
- E por isso que o Salão de Mitral, apesar de toda a sua suposta riqueza, nunca foi encontrado - replicou DelRoy.
- Daí o nosso dilema - disse Drizzt. - Decidir onde começar a procurar!
- Ah, mas vocês já começaram - respondeu DelRoy. - Foi uma sábia decisão vir para o interior; a maioria das lendas sobre o Salão de Mitral se origina
nas terras a leste daqui, ainda mais distantes da costa. Parece provável que seu objetivo esteja entre Sela Longa e o grande deserto; norte ou sul, não sei dizer.
Fizeram bem.
Drizzt assentiu e cortou a conversa quando o velho mago voltou a examinar silenciosamente o mapa de Bruenor, marcando os pontos estratégicos e consultando
com freqüência o monte de livros que havia empilhado ao lado da mesa. Bruenor rondava DelRoy, ansioso por qualquer conselho ou revelação. Os anões eram um povo paciente,
uma característica que permitia que sua arte eclipsasse as obras de outras raças, e Bruenor manteve a calma o melhor que pôde, sem querer pressionar o mago.
Algum tempo depois, satisfeito por ter completado a organização de todas as informações pertinentes, DelRoy falou mais uma vez.
Aonde iriam a seguir - ele perguntou a Bruenor -, se aqui não conseguissem aconselhamento?
O anão voltou a olhar o mapa, com Drizzt a espiar por sobre seu ombro, e traçou uma linha em direção ao leste com o dedo hirsuto. Olhou para Drizzt em busca
de anuência ao alcançar um certo ponto que eles já haviam discutido anteriormente na estrada. O drow assentiu.
Cidadela Adbar - declarou Bruenor, batendo com o dedo sobre o mapa.
- A fortaleza dos anões - disse DelRoy, não muito surpreso. - Excelente escolha. Pode ser que o Rei Harbromm e seus anões venham a ser de grande ajuda.
Estão lá, nas Montanhas de Mitral, há incontáveis séculos.
Sem dúvida, Adbar era antiga mesmo nos dias em que os martelos do Salão de Mitral repicavam com as canções dos anões.
- A Cidadela Adbar é o que nos aconselha, então? - perguntou Drizzt.
- E sua própria escolha, mas não posso oferecer um destino melhor - respondeu DelRoy. - Mas o trajeto é longo, cinco semanas pelo menos, se tudo correr
bem. E na estrada oriental além de Sundabar, isso é improvável. Ainda assim, pode ser que vocês cheguem lá antes das primeiras geadas do inverno, mas eu duvido que
sejam capazes de conseguir as informações com Harbromm e retomar sua jornada antes da próxima primavera!
- Então a escolha parece clara - declarou Bruenor. - Para Adbar!
- Há mais coisas que você deve saber - disse DelRoy. - E este é o verdadeiro conselho que darei a você: não deixe que a visão promissora ao fim da
estrada ofusque as possibilidades ao longo da estrada. Seu curso até aqui seguiu trajetos diretos, primeiro do Vale do Vento Gélido até Luskan, depois de Luskan
até aqui. Há pouca coisa, a não ser monstros, ao longo de qualquer uma dessas duas estradas para dar a um viajante motivo para se desviar. Mas, na jornada para Adbar,
vocês passarão por Lua Argêntea, cidade de sabedoria e tradição, e da Senhora Alustriel e a Câmara dos Sábios, a melhor biblioteca de todo o norte. Muitos naquela
bela cidade podem ser de mais assistência à sua demanda do que eu, ou até mesmo que o Rei Harbromm.
- E, além de Lua Argêntea, vocês encontrarão Sundabar, também uma antiga fortaleza dos anões, onde governa Helm, afamado amigo dos anões. Os laços
dele com sua raça são fortes, Bruenor, de muitas gerações atrás. Laços, talvez, com sua própria gente.
- Possibilidades! - disse Harkle, exultante.
Consideraremos seu sábio conselho, DelRoy - disse Drizzt.
- É - concordou o anão, animado. - Quando a gente deixou o vale, eu não tinha idéia do que fazer depois de Luskan. Minhas esperanças eram seguir
uma estrada de palpites, já esperando que mais da metade não tivesse valor. O halfling foi sábio trazendo a gente prá este lugar, pois encontramos uma trilha de
pistas! E pistas levam a mais pistas! - Ele olhou ao redor, para o grupo entusiasmado - Drizzt, Harkle e DelRoy - e então notou Wulfgar, ainda sentado em silêncio
em sua cadeira, os braços descomunais cruzados sobre o peito, assistindo a tudo sem emoção aparente. - E você, garoto? - indagou Bruenor. - Tem alguma idéia?
Wulfgar se inclinou, repousando os cotovelos sobre a mesa.
- Não é minha a demanda nem a terra - ele explicou. - Acompanho você, confiante em qualquer senda que escolher.
- E alegro-me com seu júbilo e seu arrebatamento - ele acrescentou baixinho.
Bruenor tomou a explicação como completa e virou-se novamente para DelRoy e Harkle, desejando algumas informações específicas sobre a estrada adiante. Drizzt,
porém, sem se convencer da sinceridade da última declaração de Wulfgar, deixou seu olhar persistir sobre o jovem bárbaro, notando a expressão nos olhos dele enquanto
observava Bruenor.
Arrependimento?
Passaram mais dois dias sossegados na Mansão de Hera, apesar de Drizzt ser acossado constantemente pelos curiosos Harpells, que queriam mais informações sobre
sua raça tão raramente vista. Ele aceitou as perguntas com cortesia, compreendendo-lhes as boas intenções, e respondeu da melhor maneira que pôde. Quando Harkle
veio escoltá-los para sair na quinta manhã, estavam descansados e prontos para dar prosseguimento aos seus negócios. Harkle prometeu arranjar a devolução dos cavalos
aos donos de direito, dizendo que era o mínimo que poderia fazer pelos estrangeiros que haviam trazido tamanho entretenimento à vila.
Mas, na verdade, os amigos haviam se beneficiado muito mais com a estada. DelRoy e Harkle haviam dado a eles informações valiosas e, talvez o mais importante,
haviam lhes restaurado a esperança na missão. Bruenor estava de pé e ativo antes da aurora daquela última manhã, a adrenalina a correr nas veias com a idéia de voltar
à estrada agora que ele sabia aonde ir.
Deixaram a mansão, lançando muitas despedidas e olhares tristonhos por sobre os ombros - até mesmo Wulfgar, que chegara ali tão inflexível em sua antipatia
para com os magos.
Eles cruzaram a sobreponte, despediram-se de Chardin, perdido demais em suas meditações sobre o riacho para sequer notá-los, e logo descobriram que a estrutura
ao lado do estábulo em miniatura era uma fazenda experimental.
- Isto mudará a fisionomia do mundo! - Harkle assegurou-lhes, desviando-os um pouco na direção do edifício para olhar mais de perto. Drizzt adivinhou
o que o mago quis dizer mesmo antes de entrarem, tão logo ouviu os balidos agudos e os trinados cricrilantes. Como o estábulo, a fazenda compreendia uma sala, embora
parte dela não tivesse telhado e fosse, na verdade, um pasto entre quatro paredes. Vacas e ovelhas do tamanho de gatos ruminavam por ali, enquanto galinhas do tamanho
de camundongos escapavam por entre as minúsculas pernas dos animais.
- É claro que esta é a primeira temporada e não vimos ainda os resultados - explicou Harkle -, mas esperamos uma alta produção, considerando-se a pequena
quantidade de recursos envolvida.
- Eficiência - riu Régis. - Menos comida, menos espaço e você pode fazê-los voltar ao tamanho normal quando quiser comê-los!
- Exatamente - disse Harkle.
A seguir, foram ao estábulo, onde Harkle escolheu excelentes montarias para eles, dois cavalos e dois pôneis. Eram presentes, Harkle explicou, a serem devolvidos
apenas ao bel-prazer dos companheiros.
- É o mínimo que podemos fazer para ajudar em tão nobre missão - disse Harkle, com uma reverência, para evitar os protestos de Bruenor e Drizzt.
A estrada serpenteava, seguindo em frente pela encosta atrás da colina. Harkle parou por um instante, coçando o queixo, uma expressão perplexa no rosto.
- O sexto mourão - disse a si mesmo -, mas o da esquerda ou o da direita?
Um homem que trabalhava no alto de uma escada (mais uma divertida curiosidade: ver uma escada se alçar acima da balaustrada falsa da cerca e descansar em
pleno ar contra o topo do muro invisível) veio em seu auxílio.
- Esqueceu de novo? - ele riu de Harkle. Apontou um dos lados da balaustrada. - Sexto mourão à sua esquerda!
Harkle afastou seu constrangimento com um encolher de ombros e seguiu em frente.
Os companheiros observaram o trabalhador, curiosos, enquanto deixavam a colina, as montarias ainda enfiadas debaixo dos braços. Ele trazia um balde e alguns
trapos e esfregava várias manchas castanho-avermelhadas no muro invisível.
- Aves que voam baixo - explicou Harkle, a título de desculpas. - Mas, nada temam. Regweld está tentando resolver o problema neste exato momento.
- Agora, chegamos ao final do nosso encontro, embora muitos anos venham a se passar antes que vocês sejam esquecidos na Mansão de Hera! A estrada
leva diretamente à aldeia de Sela Longa. Vocês podem reabastecer seus suprimentos por lá: tudo já foi arranjado.
- Meus mais profundos cumprimentos a você e a sua gente - disse Bruenor, com uma reverência. - Por certo que Sela Longa foi uma parada alegre numa
estrada triste! - Os demais rapidamente concordaram.
- Adeus, então, Companheiros do Salão - suspirou Harkle. - Os Harpells esperam receber um pequeno sinal de gratidão quando vocês finalmente encontrarem
o Salão de Mitral e colocarem as antigas forjas para arder novamente!
- O tesouro de um rei! - assegurou-lhe Bruenor quando se puseram a caminho.
Estavam de volta à estrada, além das fronteiras de Sela Longa, antes do meio-dia, e as montarias trotavam fácil e com os alforjes cheios.
- Bem, o que 'cê prefere, elfo - Bruenor perguntou mais tarde naquele mesmo dia -, as espetadelas da lança de um soldado enfurecido ou o nariz bisbilhoteiro
de um mago curioso?
Drizzt riu defensivamente ao pensar na pergunta. Sela Longa tinha sido tão diferente de qualquer outro lugar em que já estivera e, ainda assim, tão igual.
Em todo caso, sua cor o destacava como uma singularidade e não era tanto a hostilidade do tratamento que geralmente recebia que o incomodava, mas os lembretes constrangedores
de que seria sempre diferente.
Somente Wulfgar, que cavalgava ao lado dele, ouviu o murmúrio que lhe serviu de resposta:
- A estrada.

8. NÃO EXISTE HONRA

Por que vocês se aproximam da cidade antes do amanhecer? - o Guardião da Noite do Portão Norte perguntou ao emissário da caravana mercante que havia parado
pouco antes da muralha de Luskan. Jierdan, em seu posto ao lado do Guardião da Noite, assistia a tudo com especial interesse, certo de que aquele grupo viera de
Dez-Burgos.
- Não abusaríamos das leis da cidade se nosso assunto não fosse urgente - respondeu o representante. - Não descansamos há dois dias. - Outro homem
emergiu de um agrupamento de carroças e trazia um corpo flácido sobre os ombros.
- Assassinado na estrada - explicou o representante. - E outro membro do grupo foi seqüestrado. Cattiebrie, filha do próprio Bruenor Martelo de Batalha.
- Uma donzela anã? - deixou escapar Jierdan, suspeitando outra coisa, mas disfarçando sua agitação com medo de que isso pudesse implicá-lo.
- Não, não é anã. Uma mulher - lamentou o representante. - A mais bela em todo o vale, talvez em todo o norte. O anão acolheu a órfã ainda criança
e reclamou-a como sua filha.
- Orcs? - perguntou o Guardião da Noite, mais preocupado com os possíveis perigos na estrada do que com a sorte de uma única mulher.
- Não foi obra dos orcs - respondeu o representante. - Dissimulação e astúcia tiraram Cattiebrie de nós e mataram o condutor. Sequer descobrimos o
ato hediondo até a manhã seguinte.
Jierdan não precisou de mais explicações nem mesmo de uma descrição mais completa de Cattiebrie para juntar as peças do quebra-cabeça. A ligação da moça a
Bruenor explicava o interesse de Entreri por ela. Jierdan olhou para o horizonte oriental e para os primeiros raios da aurora que se aproximava, ansioso por se desembaraçar
de seus deveres na muralha para que pudesse relatar suas descobertas a Dendibar. Aquela notícia deveria ajudar a aplacar a ira do mago variegado por ter o soldado
perdido o rastro do drow ainda nas docas.
- Ele não os encontrou? - sibilou Dendibar para Sidnéia.
- Nada encontrou a não ser uma trilha fria - respondeu a feiticeira mais jovem. - Se ainda estiverem nas docas, estão bem disfarçados.
Dendibar fez uma pausa para considerar o relatório de sua aprendiza. Algo estava errado naquele cenário. Quatro personagens tão distintivos não poderiam ter.
simplesmente desaparecido.
- Descobriu alguma coisa sobre o assassino então, ou sobre a companheira dele?
- Os vagabundos nos becos o temem. Até mesmo os rufiões o evitam respeitosamente.
- Então nosso amigo é conhecido no submundo - refletiu Dendibar.
- Um assassino de aluguel, eu diria - raciocinou Sidnéia. - Provavelmente do sul. Talvez de Águas Profundas, mas deveríamos ter ouvido mais sobre ele
se esse fosse o caso. Talvez mais ao sul ainda, das terras fora do nosso alcance.
- Interessante - replicou Dendibar, tentando formular alguma teoria para satisfazer a todas as variáveis. - E a moça?
Sidnéia deu de ombros:
- Não acredito que ela o acompanhe de boa vontade, apesar de não ter tentado se livrar dele. E, quando você o viu na visão de Morkai, ele viajava só.
- Ele a adquiriu - veio uma resposta inesperada desde a porta. Jierdan entrou na sala.
- O quê? Sem ser anunciado? - escarneceu Dendibar.
- Tenho novidades que não poderiam esperar - respondeu Jierdan audaciosamente.
- Eles deixaram a cidade? - sugeriu Sidnéia, dando voz às suas suspeitas para aumentar a fúria que adivinhava no rosto pálido do mago variegado. Sidnéia
compreendia perfeitamente bem os perigos e as dificuldades das docas e quase tinha pena de Jierdan por incorrer na ira do implacável Dendibar numa situação completamente
fora de seu controle. Mas Jierdan ainda era seu rival pelas graças do mago variegado, e ela não deixaria a compaixão atrapalhar suas ambições.
Não - retrucou Jierdan. - A novidade que trago não se refere ao grupo do drow - Ele voltou a fitar Dendibar. - Uma caravana chegou a Luskan hoje, em busca
da mulher.
- Quem é ela? - perguntou Dendibar, de repente muito interessado, já esquecendo sua raiva por causa da intromissão.
¦ - A filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha - replicou Jierdan. - - Cattiebrie! É claro! - sibilou Dendibar, familiarizado com as pessoas mais
importantes de Dez-Burgos. - Eu devia ter adivinhado! - Ele se voltou para Sidnéia. - Meu respeito pelo nosso misterioso cavaleiro cresce a cada dia. Encontre-o
e traga-o de volta!
Sidnéia assentiu, embora temesse que o pedido de Dendibar se mostrasse mais difícil de realizar do que acreditava o mago variegado, provavelmente uma tarefa
muito além até mesmo de suas habilidades.
Ela passou aquela noite, até as primeiras horas da manhã seguinte, vasculhando as vielas e os pontos de encontro da zona portuária. Mas, mesmo usando seus
contatos nas docas e todos os truques mágicos à sua disposição, não encontrou sinal de Entreri e Cattiebrie, nem ninguém disposto ou capaz de fornecer qualquer informação
que pudesse ajudá-la na busca.
Cansada e frustrada, ela voltou à Torre das Hostes no dia seguinte, passando pelo corredor que levava ao quarto de Dendibar, muito embora o mago lhe tivesse
ordenado que se apresentasse diretamente a ele assim que retornasse. Sidnéia não tinha a menor disposição para ouvir a arenga do mago variegado a respeito de seu
fracasso.
Ela entrou no pequeno quarto, próximo ao tronco principal da Torre das Hostes, na ala norte, abaixo dos aposentos do Mestre do Torreão Norte, e aferrolhou
as portas, selando-as com um encantamento contra intromissões indesejadas.
Ela mal caíra na cama quando a superfície de seu cobiçado espelho de cristalomancia começou a remoinhar e a brilhar.
- Maldito seja, Dendibar - ela resmungou, supondo que a perturbação era obra de seu mestre. Arrastando o corpo cansado até o espelho, fitou as profundezas
do vidro, sintonizou-se ao turbilhão para que a imagem clareasse. Não foi Dendibar quem ela encarou, para seu alívio, mas um mago de uma vila distante, um pretendente
que a impassível Sidnéia mantinha suspenso por um fio de esperança para que pudesse manipulá-lo sempre que precisasse.
- Saudações, bela Sidnéia - disse o mago. - Espero não ter perturbado seu sono, mas é que tenho novidades incríveis!
Normalmente, Sidnéia teria diplomaticamente escutado o mago, fingido interesse na história e educadamente se eximido do encontro. Mas agora, com o peso das
exigências prementes de Dendibar sobre seus ombros, ela não tinha paciência para distrações.
- Não é uma boa hora! - retrucou.
O mago, tão enlevado estava com as próprias novidades, pareceu não lhe notar o tom conclusivo.
- A coisa mais maravilhosa aconteceu em nossa vila - foi dizendo ele.
- Harkle! - Sidnéia gritou para interromper-lhe o ímpeto de tagarelice. O mago se deteve, desconcertado.
- Mas, Sidnéia... - disse ele.
- Uma outra hora - ela insistiu.
- Mas com que freqüência, nos dias de hoje, alguém consegue realmente ver um elfo drow e falar com ele? - persistiu Harkle.
- Não posso... - Sidnéia interrompeu o que ia dizer, assimilando as últimas palavras de Harkle. - Um elfo drow? - ela balbuciou.
- Sim - foi a resposta exultante do orgulhoso Harkle, emocionado por terem as novidades aparentemente impressionado sua amada Sidnéia. - Drizzt Do'Urden
é o nome dele. Deixou Sela Longa há dois dias somente. Eu teria contado antes, mas a mansão andou simplesmente num alvoroço com essa coisa toda.
- Conte-me mais, meu querido Harkle - disse Sidnéia sedutoramente. - Conte-me tudo.
- Preciso de informações.
Sussurro ficou imóvel ao som da voz inesperada, adivinhando imediatamente de quem se tratava. Sabia que ele estava na cidade e sabia também que ele era o
único capaz de atravessar sorrateiramente suas defesas e entrar nos seus aposentos secretos.
- Informações - Entreri disse novamente, deixando as sombras atrás de um biombo.
Sussurro enfiou o pote de ungüento cicatrizante no bolso e fez uma avaliação do homem. Os boatos falavam dele como o mais mortífero dos assassinos e ela,
bastante familiarizada com essa gente, soube imediatamente que os boatos eram verdadeiros. Sentiu o poder de Entreri e a coordenação desembaraçada de seus movimentos.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - avisou ela, com valentia.
Entreri se moveu para um ponto de observação mais vantajoso a fim de estudar a audaciosa mulher. Ele também ouvira falar dela, uma sobrevivente das ruas violentas,
bela e mortal. Mas, aparentemente, Sussurro perdera um embate. O nariz estava quebrado e desarticulado, esborrachado em sua face.
Sussurro compreendeu o escrutínio. Aprumou os ombros e atirou orgulhosamente a cabeça para trás.
- Um acidente infeliz - ela sibilou.
- Não é da minha conta - Entreri devolveu. - Vim aqui atrás de informações.
Sussurro deu-lhe as costas para se ocupar de sua rotina, tentando não parecer incomodada.
- Meu preço é alto - ela disse com toda serenidade.
Voltou-se para Entreri e o intenso, porém assustador aspecto de calma no rosto dele lhe revelou, sem sombra de dúvida, que sua vida seria a única recompensa
por sua cooperação.
- Procuro quatro companheiros - disse Entreri. - Um anão, um drow, um rapaz e um halfling.
Sussurro não estava acostumada àquele tipo de situação. As bestas não estavam ali para apoiá-la, nenhum guarda-costas esperava pelo sinal dela atrás de uma
porta secreta nas proximidades. Tentou manter a calma, mas Entreri conhecia a profundidade de seu medo. Ela riu de leve e apontou o nariz quebrado.
- Encontrei o seu anão e o drow, Artemis Entreri. - Enfatizou o nome ao pronunciá-lo, esperando que o reconhecimento recolocasse o assassino na defensiva.
- Onde eles estão? - perguntou Entreri, ainda no controle. - E o que lhe pediram?
Sussurro deu de ombros:
- Se ainda estão em Luskan, não sei onde. É mais provável que já tenham partido; o anão tem um mapa das terras do norte.
Entreri considerou as palavras.
- Você não faz jus à sua reputação - disse ele sarcasticamente. - Aceita tamanha injúria e deixa que eles escapem por entre seus dedos?
Os olhos de Sussurro se estreitaram de fúria.
- Escolho cuidadosamente quando lutar - ela sibilou. - Os quatro eram perigosos demais para se tentar uma vingança frívola. Deixe-os ir aonde bem entenderem.
Não quero ter negócios com eles novamente.
A aparência calma de Entreri fraquejou um pouco. Ele já estivera no Alfanje e ouvira falar das façanhas de Wulfgar. E agora isto. Uma mulher como Sussurro
não era facilmente intimidada. Talvez ele devesse realmente reavaliar a força de seus oponentes.
- É destemido o anão - ofereceu Sussurro, percebendo-lhe o desalento e adorando aumentar-lhe o desconforto. - E cuidado com o drow, Artemis Entreri
- ela sibilou incisivamente, tentando, com a severidade de seu tom de voz, relegá-lo a um nível semelhante de respeito pelos companheiros. - Ele caminha por entre
as sombras invisíveis e ataca a partir das trevas. Ele conjura um demônio na forma de um grande gato e...
Entreri se virou e partiu, sem intenção de permitir que Sussurro ganhasse um pouco mais de vantagem.
Deleitando-se com sua vitória, Sussurro não conseguiu resistir à tentação de atirar um último dardo.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - disse ela novamente, readquirindo, com a ameaça, um certo grau de orgulho.
Ela se voltou novamente para a pequena penteadeira e pegou o pote de ungüento, bastante contente consigo mesma. Examinou o ferimento no espelho da penteadeira.
Não estava tão ruim. A pomada o removeria como havia removido tantas cicatrizes, ossos do ofício.
Compreendeu sua estupidez ao ver a sombra deslizar por trás do próprio reflexo no espelho e sentir o ar lhe roçar as costas. Seu ramo de atividade não tolerava
erros e não oferecia uma segunda chance. Pela primeira e última vez na vida, Sussurro deixara o orgulho se elevar acima do discernimento.
Um último gemido lhe escapou dos lábios quando o punhal ajaezado se enterrou em suas costas.
- Eu também escolho com cuidado quando lutar - Entreri sussurrou- lhe ao pé do ouvido.
A manhã seguinte encontrou Entreri às portas de um lugar no qual ele não queria entrar: a Torre das Hostes Arcanas. Sabia que estava ficando sem opções. Convencido
agora de que os companheiros há muito haviam deixado Luskan, o assassino precisava de alguma ajuda mágica para reencontrar a trilha. Levara quase dois anos para
localizar o halfling em Dez-Burgos e sua paciência estava no fim.
Com Cattiebrie ao seu lado, relutante, mas obediente, ele se aproximou da estrutura e foi prontamente escoltado até a sala de audiências de Dendibar, onde
o mago variegado e Sidnéia aguardavam para saudá-lo.
- Eles deixaram a cidade - Entreri disse bruscamente, antes de qual quer troca de cumprimentos.
Dendibar sorriu para mostrar a Entreri que tinha a vantagem dessa vez.
- Pelo menos há uma semana - replicou tranqüilamente.
- E você sabe onde estão - raciocinou Entreri.
Dendibar assentiu e o sorriso ainda se enroscava em suas faces descarnadas.
O assassino não apreciava aquele jogo. Passou um bom tempo avaliando sua contraparte, em busca de alguma dica sobre as intenções do mago. Dendibar fez o mesmo,
ainda muito interessado numa aliança com o formidável matador, mas apenas se os termos lhe fossem favoráveis.
- O preço da informação? - perguntou Entreri.
- Eu nem mesmo sei o seu nome - foi a resposta de Dendibar.
É justo, pensou o assassino. Ele fez uma reverência.
- Artemis Entreri - disse ele, confiante o bastante para dizer a verdade.
- E por que você persegue os companheiros, com a filha do anão a tiracolo? - pressionou Dendibar, revelando suas cartas para dar ao assassino petulante
algo com que se preocupar.
- Isso é da minha conta - sibilou Entreri, e o estreitamento de seus olhos foi a única indicação de que o conhecimento de Dendibar o perturbara.
- Também o é da minha, se é que vamos ser aliados! - gritou Dendibar, levantando-se para parecer alto e ameaçador e intimidar Entreri.
O assassino, porém, pouco se importava com os contínuos esgares do mago, demasiado ocupado em estimar o valor de tal aliança.
- Nada pergunto sobre seus assuntos com eles - Entreri replicou, por fim. - Diga-me apenas a qual dos quatro se refere.
Foi a vez de Dendibar refletir. Ele queria Entreri em sua corte, se não por outra razão que o temor de que o assassino viesse a atrapalhá-lo. E gostava da
idéia de não precisar revelar nada sobre o artefato que procurava àquele homem tão perigoso.
- O drow tem algo que me pertence ou sabe onde posso encontrá-lo - disse ele. - Eu o quero de volta.
- E o halfling é meu - exigiu Entreri. - Onde estão eles?
Dendibar fez um sinal para Sidnéia.
- Eles passaram por Sela Longa - disse ela. - E estão a caminho de Lua Argêntea, mais de duas semanas a leste daqui.
Os nomes eram desconhecidos para Cattiebrie, mas ela estava feliz pelo fato de seus amigos levarem uma boa dianteira. Precisava de tempo para arranjar um
plano, mas questionava a própria eficiência cercada como estava por captores tão poderosos.
- E o que você propõe? - perguntou Entreri.
- Uma aliança - respondeu Dendibar.
- Mas eu já tenho a informação de que preciso - riu Entreri. - O que eu ganharia me aliando a você?
- Meus poderes levarão você até eles e o ajudarão a derrotá-los. Eles não são uma força desprezível. Considere a aliança como um benefício mútuo.
- Você e eu na estrada? Um livro e uma escrivaninha parecem lhe convir melhor, mago.
Dendibar fitou o assassino arrogante.
- Garanto-lhe que posso ir aonde desejar com uma eficiência além da sua imaginação - grunhiu ele. No entanto, desfez-se rapidamente da raiva, estando
mais interessado em completar a negociação. - Mas devo permanecer aqui. Sidnéia irá em meu lugar e Jierdan, o soldado, será sua escolta. Entreri não gostou da idéia
de viajar com Jierdan, mas decidiu não forçar a questão. Poderia ser interessante - e útil - dividir a caçada com a Torre das Hostes Arcanas. Ele concordou com os
termos.
- E quanto a ela? - Sidnéia perguntou, apontando Cattiebrie.
- Ela vai comigo - foi a resposta rápida de Entreri.
- É claro - concordou Dendibar. - Não há por que desperdiçar uma refém tão valiosa.
- Somos três contra cinco - raciocinou Sidnéia. - Se as coisas não se resolverem tão facilmente como vocês dois parecem esperar, a garota pode se mostrar
nossa ruína.
- Ela vai! - exigiu Entreri.
Dendibar já tinha a solução. Lançou um sorriso desfigurado para Sidnéia.
- Leve Bok - casquinou ele.
O rosto de Sidnéia se desfez com a sugestão, como se a ordem de Dendibar tivesse lhe roubado o desejo pela caçada.
Entreri não tinha certeza se gostava ou não da nova marcha dos acontecimentos.
Percebendo o desconforto do assassino, Dendibar, com um sinal, conduziu Sidnéia até um gabinete acortinado ao lado da sala.
- Bok - ela chamou baixinho assim que lá chegou, com um sinal de estremecimento na voz.
A coisa atravessou a cortina. Com dois metros e meio de altura e um metro de ombro a ombro, o monstro caminhou a passos rígidos até se colocar ao lado da
mulher. Parecia um homem descomunal e, de fato, o mago utilizara pedaços de corpos humanos para compor boa parte da coisa. Bok era maior e mais sólido que qualquer
homem vivo, quase do tamanho de um gigante, e fora envolvido, por meios mágicos, de uma força além dos padrões do mundo natural.
- Um golem - explicou Dendibar com orgulho. - Minha própria criação. Bok poderia nos matar a todos agora mesmo. Até mesmo sua espada cruel seria de
pouca utilidade contra ele, Artemis Entreri.
O assassino não estava tão convencido disso, mas não conseguiu disfarçar completamente seu constrangimento. Dendibar havia obviamente feito pender a balança
a seu favor naquela parceria, mas Entreri sabia que, caso voltasse atrás agora, estaria lançando o mago variegado e seus asseclas contra ele, em competição direta
pelo grupo do anão. Além do mais, levaria semanas, talvez meses, para alcançar os viajantes por meios normais e não duvidava que Dendibar pudesse chegar lá mais
rápido.
Cattiebrie partilhava dos mesmos pensamentos incômodos. Ela não tinha o menor desejo de viajar com o monstro horripilante, mas imaginava a carnificina que
encontraria quando finalmente alcançasse Bruenor e os demais caso Entreri decidisse romper a aliança.
- Nada tema - consolou-os Dendibar. - Bok é inofensivo, incapaz de qualquer pensamento independente, pois, vejam vocês, Bok não tem mente.
O golem atende aos meus comandos, ou aos de Sidnéia, e poderia se jogar numa fogueira até ser consumido se nós meramente pedíssemos que o fizesse!
-Tenho negócios a terminar na cidade - disse Entreri, sem duvidar das palavras de Dendibar e sem a menor intenção de ouvir mais detalhes sobre o golem. -
Quando partimos?
- A noite seria melhor - raciocinou Dendibar. - Volte ao jardim da Torre das Hostes assim que escurecer. Haveremos de nos encontrar lá e colocar vocês
a caminho.
Sozinho em seus aposentos, a não ser pela presença de Bok, Dendibar afagou os ombros musculosos do golem com profunda afeição. Bok era sua carta na manga,
sua proteção contra a resistência dos companheiros ou a traição de Artemis Entreri. Mas não era fácil para Dendibar separar-se facilmente do monstro, pois a coisa
representava também um papel importante como guardião contra os pretensos sucessores na Torre das Hostes. Dendibar havia sutilmente avisado os outros magos de que,
caso fosse atacado por qualquer um deles, teriam de lidar com Bok, mesmo que ele próprio estivesse morto.
Mas a estrada adiante talvez fosse longa, e o Mestre do Torreão Norte não poderia abandonar seus deveres e ainda assim esperar manter seu título. Principalmente
com o Arquimago à espera de apenas uma desculpa para se livrar dele, pois compreendia os riscos oferecidos pelas francas aspirações de Dendibar à torre central.
- Nada é capaz de deter você, meu animalzinho - Dendibar disse ao monstro. Na verdade, ele estava simplesmente reafirmando os próprios temores quanto
à decisão de enviar uma feiticeira inexperiente em seu lugar. Não duvidava da lealdade dela, nem da de Jierdan, mas Entreri e os heróis do Vale do Vento Gélido deviam
ser levados a sério.
- Dei a você o poder da caçada - explicou Dendibar enquanto atirava ao chão o invólucro do tomo e o pergaminho agora inutilizado. - O drow é o seu
objetivo e você agora é capaz de sentir a presença dele a qualquer distância. Encontre-o! Não retorne sem Drizzt Do'Urden!
Um rugido gutural saiu dos lábios azuis de Bok, o único som que o instrumento irracional era capaz de emitir.
Entreri e Cattiebrie encontraram o grupo do mago já reunido quando chegaram à Torre das Hostes mais tarde naquela noite.
Jierdan estava sozinho num canto, aparentemente nada entusiasmado quanto a tomar parte na aventura, mas sem muita escolha. O soldado temia o golem e não gostava
nada de Entreri, nem confiava nele. Contudo, temia Dendibar ainda mais e sua apreensão quanto aos possíveis riscos da estrada não se comparava aos perigos que certamente
enfrentaria nas mãos do mago variegado caso se recusasse a ir.
Sidnéia se afastou de Bok e Dendibar e atravessou a alameda para encontrar seus companheiros.
- Saudações - ela ofereceu, agora mais interessada na conciliação do que na competição com seu formidável parceiro. - Dendibar está preparando nossas
montarias. A viagem até Lua Argêntea será bem ligeira!
Entreri e Cattiebrie olharam para o mago variegado. Bok estava de pé ao lado dele, segurando um pergaminho desenrolado, enquanto Dendibar derramava o líquido
fumarento de um recipiente de boca larga sobre uma pena branca e entoava as runas de um encantamento.
Uma névoa surgiu aos pés do mago, remoinhou e depois se adensou, tomando uma forma definida. Dendibar deixou que a coisa continuasse a se transformar e deu
um ou dois passos para o lado a fim de repetir o ritual. Quando o primeiro cavalo mágico apareceu, o mago já criava o quarto e último.
Entreri ergueu as sobrancelhas.
- Quatro? - ele perguntou a Sidnéia. - Somos cinco agora.
- Bok não poderia cavalgar - ela respondeu, achando graça. - Ele vai correr. - Ela se virou e foi até onde estava Dendibar, deixando Entreri a sós
com a idéia.
- E claro - Entreri murmurou consigo mesmo, de certo modo mais desanimado do que nunca em relação à presença daquela coisa sobrenatural.
Mas Cattiebrie começara a ver as coisas por um outro ângulo. Dendibar obviamente enviara Bok junto com eles mais para ganhar uma vantagem sobre Entreri do
que para garantir a vitória sobre os amigos dela. Entreri também devia saber disso.
Sem percebê-lo, o mago criara justamente o tipo de ambiente nervoso que Cattiebrie pedira aos céus, uma situação tensa que ela poderia encontrar uma maneira
de explorar.

9. OS GRILHÕES DA REPUTAÇÃO

O sol brilhava na manhã do primeiro dia fora de Sela Longa. Os companheiros, revigorados pela estada com os Harpells, cavalgavam num ritmo forte, mas ainda
conseguiam desfrutar do tempo bom e da estrada desimpedida. A região era plana, sem marcos, nenhuma árvore ou colina à vista.
- Três dias até Nesmé, talvez quatro - Régis disse a eles.
- Está mais para três, se o tempo continuar assim - disse Wulfgar. Drizzt se inquietou sob o capuz do manto. Por mais agradável que a manhã pudesse
lhes parecer, ele sabia que ainda estavam nos ermos. Três dias poderiam se mostrar de fato uma longa viagem.
- O que 'cê sabe desse lugar, Nesmé? - Bruenor perguntou a Régis.
- Só o que Harkle nos contou - respondeu Régis. - Uma cidade de tamanho razoável, comerciantes. Mas são cautelosos. Nunca estive lá, mas as histórias
sobre o povo valente que vive na orla dos Pântanos Eternos são conhecidas em todo o norte.
- Estou intrigado com os Pântanos Eternos - disse Wulfgar. - Harkle pouco falava sobre o lugar, apenas chacoalhava a cabeça e se arrepiava todo sempre
que eu perguntava alguma coisa.
- Sem dúvida, um lugar cujo renome excede a verdade - disse Bruenor, rindo, sem se deixar impressionar por reputações. - Poderia ser pior que o vale?
Régis deu de ombros, sem se deixar convencer completamente pelo argumento do anão.
- As histórias sobre os Charcos dos Trolls, pois esse é o nome dado àquelas terras, podem ser exageradas, mas são sempre agourentas. Todas as cidades
do norte saúdam a bravura do povo de Nesmé por manter a rota comercial ao longo do Surbrin em face de tamanha provação.
Bruenor riu novamente.
- Será que as histórias não vêm da própria Nesmé, para pintar eles mais fortes do que realmente são?
Régis não discutiu.
Quando pararam para o almoço, uma cerração alta cobria o sol. Longe, ao norte, uma linha negra de nuvens aparecera e agora corria na direção deles. Drizzt
já esperava por isso. Nos ermos, até mesmo o tempo se revelava um inimigo.
Naquela tarde, a frente da borrasca se encrespou sobre eles, trazendo pancadas de chuva e pedras de granizo que retiniam ao bater no elmo amassado de Bruenor.
Repentinas vergastadas de raio cortavam o céu escuro e o trovão quase os derrubava das montarias. Mas eles continuavam a se arrastar pela lama cada vez mais profunda.
- Esta é a verdadeira provação da estrada! - berrou Drizzt por entre os uivos do vento. - Muito mais viajantes são derrotados pelas tempestades do
que pelos orcs porque não antevêem os perigos no início da jornada!
- Ora! É só uma chuvinha de verão! - desdenhou Bruenor, desafiador.
Como que em orgulhosa resposta, um raio explodiu a uma pequena distância dos cavaleiros. Os cavalos saltaram e escoicearam. O pônei de Bruenor caiu, tombando
de mau jeito na lama e quase esmagando o anão atordoado em seu desespero para ficar de pé.
Com sua montaria fora de controle, Régis conseguiu saltar da sela e rolar para longe.
Bruenor ficou de joelhos e limpou os olhos cobertos de lama, praguejando o tempo todo.
- Maldição! - disse com veemência, estudando os movimentos do pônei. - O bicho 'tá estropiado!
Wulfgar firmou o próprio cavalo e tentou partir atrás do pônei de Régis, que havia disparado, mas o granizo, impelido pelo vento, apedrejou-o, cegou-o e afligiu
seu cavalo, e novamente ele se viu lutando para se manter na sela.
Mais um raio caiu, acompanhado de trovoada. E mais outro.
Drizzt, murmurando baixinho e cobrindo a cabeça de seu cavalo com o manto para acalmá-lo, movia-se vagarosamente ao lado do anão.
- Estropiado! - Bruenor gritou novamente, apesar de Drizzt mal conseguir ouvi-lo.
Drizzt apenas chacoalhou a cabeça, impotente, e apontou o machado de Bruenor.
Vieram outros raios e mais uma rajada de vento. Drizzt deslizou para o lado da montaria a fim de se proteger, ciente de que não conseguiria manter o animal
calmo por muito mais tempo.
As pedras de granizo começaram a ficar maiores e a golpear com a força de projéteis.
O cavalo aterrorizado de Drizzt atirou-o ao chão e se afastou aos pinotes, tentando escapar do castigo da tempestade.
Drizzt logo estava de pé ao lado de Bruenor, mas os planos emergenciais que porventura os dois tivessem formulado foram imediatamente desencorajados, pois
então Wulfgar reapareceu, cambaleando na direção deles.
Ele caminhava - ou quase - apoiando-se na força do vento, utilizando-o para se manter ereto. Os olhos pareciam abatidos, o queixo se Crispava e o sangue e
a chuva se misturavam em suas faces. Fitou estupidamente os amigos, como se não compreendesse o que lhe acontecera.
Então, caiu de cara na lama aos pés deles.
Um assobio agudo atravessou a muralha insensibilizante de vento, um excepcional sinal de esperança em face da força crescente da tempestade. Os ouvidos aguçados
de Drizzt captaram-no assim que ele e Bruenor tiraram da lama o rosto do jovem amigo. Tão distante parecia o assobio, mas Drizzt sabia o quanto as tempestades eram
capazes de distorcer as percepções de alguém.
- O que foi? - Bruenor perguntou, percebendo a repentina reação do drow, pois não ouvira o chamado.
- Régis! - respondeu Drizzt. Ele começou a arrastar Wulfgar na direção do assobio, Bruenor logo atrás dele. Não tiveram tempo de discernir se o rapaz
ainda vivia.
O raciocínio rápido do halfling os salvou naquele dia. Completamente ciente do potencial assassino das borrascas que se precipitavam desde a Espinha do Mundo,
Régis rastejara de um lado a outro em busca de algum abrigo na região desabitada. Topou com um buraco na face de um pequeno cômoro, talvez o velho covil de um lobo,
agora desocupado.
Seguindo os assobios, Drizzt e Bruenor logo o encontraram.
- Vai encher de chuva e a gente vai se afogar! - berrou Bruenor, mas ajudou Drizzt a arrastar Wulfgar para dentro e a apoiá-lo contra a parede dos
fundos da caverna, depois assumiu seu lugar ao lado dos amigos, ocupados em construir, com terra e as mochilas remanescentes, uma barreira contra a temi da inundação.
Um gemido de Wulfgar fez com que Régis corresse para o lado dele.
- Está vivo! - proclamou o halfling. - E seus ferimentos não parecem tão feios!
Mais valente que um texugo acuado - comentou Bruenor. Não demorou muito para que tornassem o covil tolerável, se não confortável, e até mesmo Bruenor parou
de reclamar.
- A verdadeira provação da estrada - Drizzt disse novamente para Régis, tentando animar o amigo completamente desconsolado enquanto os três se sentavam
na lama para suportar a noite; os estrondos incessantes do trovão e as pancadas do granizo eram um lembrete constante da pequena margem de segurança.
Em resposta, Régis verteu uma torrente de água de sua bota.
- Quantos quilômetros 'cê acha que a gente percorreu? - Bruenor rezingou, questionando Drizzt.
- Quinze, talvez - respondeu o drow.
- Duas semanas até Nesmé nesse ritmo! - resmungou Bruenor, cruzando os braços sobre o peito.
- A tempestade vai passar - ofereceu Drizzt, esperançoso, mas o anão já não mais escutava.
O dia seguinte começou sem chuva, apesar das nuvens densas e cinzentas que pairavam baixo no céu. Wulfgar estava bem pela manhã, mas ainda não entendia o
que lhe acontecera. Bruenor insistiu para que partissem imediatamente, embora Régis tivesse preferido permanecer no buraco até que tivessem certeza de que a tempestade
passara.
- A maior parte das provisões se perdeu - Drizzt lembrou o halfling. - Pode ser que você não coma nada além de migalhas de pão duro até alcançar mos
Nesmé.
Régis foi o primeiro a sair do buraco.
A umidade insuportável e o solo lamacento impediam que acelerassem o ritmo, e os amigos logo descobriram que os joelhos doíam com os constantes desvios e
a patinhagem. As roupas encharcadas aderiam incomodamente a seus corpos e faziam peso a cada passo.
Encontraram o cavalo de Wulfgar, uma forma carbonizada e fumegante, semi-enterrada na lama.
- Um raio - observou Régis.
Os três olharam para o amigo bárbaro, admirados de que ele pudesse ter sobrevivido a tamanho impacto. Wulfgar também os fitava em estado de choque, dando-se
conta do que o derrubara da montaria na noite anterior.
- Mais valente que um texugo! - Bruenor bradou mais uma vez para Drizzt.
O sol provocativamente encontrava uma abertura no céu encoberto de vez em quando. Contudo, a luz era pouco substancial e, no zênite, o dia havia ficado mais
escuro na verdade. O trovão distante anunciava uma tarde lúgubre.
A tempestade já havia exaurido seu poderio mortífero, mas eles não encontraram outro abrigo naquela noite que não as próprias roupas molhadas e sempre que
o crepitar do relâmpago iluminava o céu, viam-se quatro formas encurvadas, sentadas na lama, cabisbaixas, como se aceitassem o destino com impotente resignação.
Durante outros dois dias eles continuaram a se arrastar em meio à chuva e ao vento, sem muita escolha nem outro lugar para ir a não ser avante.
Wulfgar se revelou o salvador do moral do grupo naqueles momentos de desânimo. Desatolou Régis do solo encharcado, atirando facilmente o halfling sobre suas
costas e explicando que precisava de um peso adicional para se equilibrar. Poupando desse modo o orgulho do halfling, o bárbaro conseguiu até mesmo convencer o anão
mal-humorado a ser carregado da mesma maneira durante algumas horas. E, todo o tempo, Wulfgar se mostrava indômito.
- Uma benção, digo eu - ele continuava gritando para os céus cinzentos. - A tempestade afasta os insetos e os orcs! E quantos meses vão se passar até que
venhamos a precisar de água?
Ele se esforçava bastante para manter os ânimos elevados. De certa feita, ele observou com cuidado os raios, calculando o intervalo entre o lampejo e o trovão
subseqüente. Quando se aproximaram do cadáver enegrecido de uma árvore morta havia tempos, o raio fulgurou e Wulfgar executou o truque. Ao brado de "Tempus!", ele
arremessou seu martelo de modo que a arma atingisse e derrubasse o tronco no exato momento em que o trovão explodia ao redor deles. Os amigos, entretidos, viraram-se
para encará-lo, apenas para encontrá-lo de pé, orgulhoso, os braços e os olhos erguidos para os deuses como se estes houvessem pessoalmente atendido ao seu chamado.
Drizzt, aceitando toda aquela provação com seu costumeiro estoicismo, aplaudiu silenciosamente seu jovem amigo e soube mais uma vez, ainda mais do que antes,
que fora sábia a decisão de trazê-lo. O drow compreendeu que seu próprio dever naquele momento difícil era continuar em seu papel de sentinela, mantendo diligente
vigília apesar da Proclamação de segurança do bárbaro.
Por fim, a tempestade foi soprada para longe pelo mesmo vento vigoroso que a havia anunciado. A brilhante luz do sol e o céu claro da manhã seguinte melhoraram
incomensuravelmente o humor dos companheiros e permitiram-lhes pensar mais uma vez no que tinham pela frente.
Principalmente Bruenor. O anão chegava a se dobrar em sua marcha urgente, exatamente como o fizera no início da jornada, ainda no Vale do Vento Gélido.
A barba ruiva a oscilar com a intensidade do passo vigoroso, Bruenor reencontrou seu estreito foco. Ele se retirou para os sonhos de sua terra natal, via
as sombras bruxuleantes da luz das tochas nas paredes raiadas de prata e os prodigiosos artefatos que resultavam do trabalho meticuloso de seu povo. Sua intensa
concentração no Salão de Mitral nos últimos meses trouxera lembranças novas e mais claras e, na estrada, ele se lembrava agora, pela primeira vez em mais de um século,
do Salão de Dumathoin.
Os anões do Salão de Mitral haviam ganhado bem a vida com o comércio de seus objetos manufaturados, mas eles sempre guardavam para si as melhores peças e
os regalos mais preciosos doados por forasteiros. Numa câmara grande e ornamentada, que deixava todos os visitantes de olhos arregalados, o legado dos ancestrais
de Bruenor se achava em exposição e servia de inspiração aos futuros artistas do clã.
Bruenor riu baixinho ao lembrar do prodigioso salão e daquelas peças maravilhosas, armas e armaduras em sua maioria. Olhou para Wulfgar caminhando ao lado
dele, e para o poderoso martelo de guerra que fabricara no ano anterior. Garra de Palas poderia ter sido pendurado no Salão de Dumathoin se o clã de Bruenor ainda
dominasse o Salão de Mitral, o que confirmaria a imortalidade de Bruenor no legado de seu povo.
Mas, observando Wulfgar manusear o martelo, brandindo-o com a mesma facilidade com que usaria o próprio braço, Bruenor não se arrependia.
O dia seguinte trouxe mais boas novas. Pouco depois de terem levantado acampamento, os amigos descobriram que haviam percorrido uma distância muito maior
do que a prevista durante as provações da tempestade, pois enquanto marchavam, a paisagem ao redor deles passava por transformações sutis, mas definitivas.
Onde antes o terreno se cobria de trechos esparsos de ervas silvestres e irregulares - um mar virtual de lama sob a torrente de chuva -, eles agora encontravam
luxuriantes relvados e bosques dispersos de olmos altaneiros. Ao galgar uma última serrania, confirmaram-se suas suspeitas, pois diante deles estava o Vale Dessarin.
Alguns quilômetros adiante, engrossado pelo degelo de primavera e a tempestade recente, e claramente visível da posição elevada em que se encontravam, o braço do
grande rio fluía constantemente em sua jornada para o sul.
O longo inverno dominava aquela região, mas quando as plantas finalmente floresciam, compensavam a estação curta com uma vivacidade sem igual em todo o mundo.
As cores magníficas da primavera começavam a cercar os amigos à medida que abriam caminho e desciam o declive até o rio. O tapete de relva era tão denso que eles
tiraram as botas e caminharam descalços por aquela maciez esponjosa. A vitalidade ali era verdadeiramente óbvia e contagiosa.
- 'Cês deviam ver os salões - comentou Bruenor, num impulso repentino. - Veios do mais puro mitral, mais largos que a sua mão! Rios de prata é o que são
e sobrepujados em beleza apenas pelo que a mão de um anão faz com eles.
- A privação de tal visão é o que nos faz atravessar todas as adversidades - replicou Drizzt.
- Ora! - Bruenor resmungou jovialmente. - 'Cê 'tá aqui porque eu te enganei, elfo. 'Cê não tinha mais motivo prá adiar minha aventura!
Wulfgar foi obrigado a rir. Ele tomara parte no engodo que havia feito Drizzt concordar em empreender aquela jornada. Depois da grande batalha com Akar Kessell
em Dez-Burgos, Bruenor fingira estar mortalmente ferido e, no seu aparente leito de morte, implorara ao drow que viajasse com ele até sua antiga terra natal. Pensando
que o anão estivesse às portas da morte, Drizzt não pôde recusar.
- E você! - Bruenor berrou para Wulfgar. - Já entendi porque é que 'cê veio, mesmo você sendo cabeçudo demais prá perceber isso!
- Por favor, diga-me - Wulfgar replicou, com um sorriso.
- 'Cê 'tá fugindo! Mas não vai escapar! - gritou o anão.
O júbilo de Wulfgar transformou-se em confusão.
- A menina assustou ele, elfo - Bruenor explicou para Drizzt. - Cattiebrie enredou ele de um jeito que esses músculos todos não vão ajudar em nada!
Wulfgar gargalhou com as conclusões rudes de Bruenor, sem se ofender. Mas, nas imagens engendradas pelas alusões de Bruenor a Cattiebrie, nas lembranças de
um pôr-do-sol sobre a face do Sepulcro de Kelvin, ou de horas passadas a conversar sobre a elevação rochosa denominada Ladeira de Bruenor, o jovem bárbaro encontrou
um perturbador elemento de verdade nas observações do anão.
- E quanto a Régis? - Drizzt perguntou a Bruenor. - Você já discerniu o motivo dele para vir conosco? Poderia ser o amor pela lama que lhe sobe pelos
tornozelos e traga suas perninhas até os joelhos?
Bruenor parou de rir e estudou a reação do halfling às perguntas do drow.
- Não, ainda não - ele respondeu, sério, depois de alguns momentos nada reveladores. - Só sei de uma coisa: se Ronca-bucho escolheu a estrada, isso
significa apenas que a lama e os orcs são melhores do que o que ele 'tá deixando prá trás - Bruenor manteve os olhos sobre o seu pequeno amigo, mais uma vez em busca
de alguma revelação na resposta do halfling.
Régis manteve a cabeça abaixada, observando os pés peludos, visíveis, pela primeira vez em muitos meses, abaixo do volume cada vez menor de seu ventre, enquanto
avançavam a custo pelas densas ondas de verde. O assassino, Entreri, estava a um mundo de distância, ele pensou. E ele não tinha a menor intenção de insistir num
perigo que fora evitado.
Alguns quilômetros rio acima, eles encontraram a primeira bifurcação importante, onde o Surbrin, vindo de nordeste, desaguava na corrente principal do braço
setentrional da bacia do grande rio.
Os amigos procuraram por um meio de atravessar o rio maior, o Dessarin, e chegar ao pequeno vale entre este e o Surbrin. Nesmé, sua próxima e última parada
antes de Lua Argêntea, ficava um pouco além, subindo o Surbrin, e, embora a cidade estivesse, na verdade, na margem oriental do rio, os amigos, seguindo o conselho
de Harkle Harpell, haviam decidido subir pela margem ocidental e evitar os perigos que se ocultavam nos Pântanos Eternos.
Cruzaram o Dessarin sem muita dificuldade graças à incrível agilidade do drow, que atravessou o rio correndo por um galho de árvore suspenso sobre o curso
d'água e dali saltou para um pouso semelhante no ramo de uma árvore na margem oposta. Logo depois, estavam todos caminhando tranqüilamente ao longo do Surbrin, aproveitando
o sol, a brisa cálida e a infindável canção do rio. Drizzt conseguiu até mesmo abater um gamo com seu arco, o que prometia uma excelente ceia com carne de caça e
mochilas reabastecidas para a estrada adiante.
Acamparam bem à beira d'água, sob a luz das estrelas pela primeira vez em quatro noites, sentados ao redor do fogo e a ouvir as histórias de Bruenor sobre
os salões argênteos e as maravilhas que encontrariam ao fim da estrada.
A serenidade da noite, porém, não persistiu na manhã seguinte, pois os amigos foram despertados por sons de batalha. Wulfgar imediatamente escalou uma árvore
próxima para descobrir quem eram os combatentes.
- Cavaleiros! - ele berrou, saltando e sacando seu martelo de guerra antes mesmo de atingir o chão. - Alguns caíram! Combatem monstros que não conheço! -
Ele saiu correndo em direção ao norte, com Bruenor em seu encalço e Drizzt contornando-lhes o flanco, rio abaixo. Menos entusiástico, Régis ficou para trás e sacou
sua pequena maça, mas dificilmente se preparava para o combate franco.
Wulfgar foi o primeiro a chegar. Sete cavaleiros ainda estavam de pé, tentando em vão manobrar suas montarias para formar algum tipo de linha defensiva. As
criaturas que combatiam eram rápidas e não tinham medo de correr sob os golpes das patas dos cavalos para fazer os animais tropeçarem. Os monstros tinham apenas
cerca de um metro de altura, com braços que chegavam ao dobro disso em comprimento. Lembravam pequenas árvores, apesar de inegavelmente vivazes, a correr de um lado
para outro freneticamente, golpeando com seus braços semelhantes a clavas ou, como mais um desafortunado cavaleiro descobriu assim que Wulfgar entrou na refrega,
envolvendo os adversários com seus membros flexíveis para derrubá-los das montarias.
Wulfgar passou rapidamente por duas das criaturas, atirando-as de lado, e abateu-se sobre a que acabara de derrubar o cavaleiro. O bárbaro, porém, subestimou
os monstros, pois os dedos dos pés das criaturas, semelhantes a raízes, rapidamente encontraram um novo ponto de equilíbrio, e os braços compridos o apanharam por
trás antes que ele tivesse dado dois passos, agarrando-o de ambos os lados e detendo-o imediatamente.
Bruenor investiu logo em seguida. O machado do anão atravessou um dos monstros, dividindo-o ao meio como lenha e depois se enterrou gravemente no outro, fazendo
com que um grande pedaço de seu tronco voasse longe.
Drizzt chegou ao local da batalha, ansioso, mas, como sempre, contido pela sensibilidade predominante que o fizera sobreviver a centenas de confrontos. Desceu
pelo flanco, abaixo do desnível da ribanceira, onde descobriu uma desengonçada ponte de troncos que atravessava o Surbrin. Os monstros a haviam construído, Drizzt
sabia. Aparentemente, não eram criaturas irracionais.
Drizzt espiou por sobre a ribanceira. Os cavaleiros tinham se reagrupado ao redor dos inesperados reforços, mas um deles, bem em frente ao drow, fora envolvido
por um monstro e era arrastado para longe do cavalo.
Notando a natureza vegetal de seus estranhos adversários, Drizzt compreendeu por que todos os cavaleiros empunhavam machados e imaginou se suas delgadas cimitarras
seriam de alguma ajuda.
Mas ele precisava agir. Saltando de seu esconderijo, enfiou as duas cimitarras na criatura. Elas atingiram o alvo, sem que provocassem maior efeito do que
se Drizzt tivesse apunhalado uma árvore.
Mesmo assim, a tentativa do drow salvara o cavaleiro. O monstro golpeou sua vítima uma última vez, para mantê-la atordoada, depois a soltou para enfrentar
Drizzt. Pensando rápido, o drow passou a um ataque alternativo, usando suas espadas ineficazes para aparar os golpes desferidos pelos braços do monstro. Então, quando
a criatura se precipitou sobre ele, mergulhou aos pés dela, desenraizando-a e lançando-a por cima dele em direção à margem do rio. Enfiou as cimitarras na pele semelhante
à casca de uma árvore e puxou, fazendo o monstro rolar, às cambalhotas, em direção ao Surbrin. A coisa conseguiu se segurar antes de cair n'água, mas Drizzt a atacou
novamente. Uma rajada de pontapés bem colocados lançou o monstro na corrente e o rio o arrastou para longe.
O cavaleiro, a essa altura, havia retornado à sela e ao domínio de suas faculdades mentais. Ele conduziu o cavalo em direção à ribanceira para agradecer seu salvador.
Então, ele viu a pele negra.
- Drow! - ele gritou e baixou o machado.
Drizzt foi pego de surpresa. Seus reflexos aguçados ergueram uma das espadas o suficiente para desviar o fio do machado, mas a parte embotada da arma atingiu-lhe
a cabeça e o fez cambalear. Ele mergulhou com o impulso do golpe e rolou, tentando se afastar o máximo possível do cavaleiro, pois percebeu que o homem o mataria
antes que conseguisse se recuperar.
- Wulfgar! - gritou Régis de seu esconderijo, um pouco mais atrás na ribanceira. O bárbaro deu cabo de um dos monstros com um estalo estrondoso que
provocou rachaduras por toda a extensão da coisa e virou-se no exato momento em que o cavaleiro dava a volta para alcançar Drizzt.
Wulfgar urrou de raiva e abandonou a própria luta, agarrou a rédea do cavalo enquanto este ainda fazia a volta e puxou com toda a sua força. Cavalo e cavaleiro
foram ao chão. O cavalo se levantou imediatamente e chacoalhou a cabeça, trotando nervosamente de um lado para outro, mas o cavaleiro ficou no chão, a perna esmagada
na queda sob o peso da montaria.
Os cinco cavaleiros remanescentes agora agiam em conjunto, investindo contra grupos de monstros e dispersando-os. O cruel machado de Bruenor continuava a
cortar, e o anão cantava o tempo todo uma canção de lenhador que aprendera quando menino:
- Guri, rache a lenha e acenda a lareira, Prá comer agora, aqueça a chaleira! - ele cantava enquanto abatia metodicamente um monstro após outro.
Wulfgar se postou defensivamente por sobre a forma de Drizzt, e seu poderoso martelo estilhaçava com um único golpe qualquer monstro que se aventurasse perto
demais.
A confusão estava formada e, em segundos, as poucas criaturas sobreviventes fugiram em pânico pela ponte sobre o Surbrin.
Três cavaleiros estavam caídos e mortos, um quarto se apoiava pesadamente contra o cavalo, quase sobrepujado pelos ferimentos, e aquele que Wulfgar havia
derrubado desmaiara de dor. Mas os cinco ainda sobre os cavalos não acudiram os feridos. Formaram um semicírculo em torno de Wulfgar e Drizzt - que só agora voltava
a ficar de pé -, encurralando os dois contra a ribanceira, os machados em prontidão.
- É assim que 'cês acolhem seus salvadores? - vociferou Bruenor, afastando um cavalo com um tapa para que pudesse se juntar aos amigos. - Aposto que
as mesmas pessoas não aparecem duas vezes prá socorrer vocês!
- Você anda em má companhia, anão! - retorquiu um dos cavaleiros.
- Seu amigo estaria morto não fosse a nossa má companhia! - replicou Wulfgar, indicando o cavaleiro que jazia num canto. - E ele agradeceu ao drow
com uma arma!
- Somos os Cavaleiros de Nesmé - o cavaleiro explicou. - Nossa sina é morrer no campo, protegendo nossa gente. Aceitamos esse destino de boa vontade.
- Dê mais um passo com esse cavalo e a gente vai realizar o seu desejo - avisou Bruenor.
- Mas vocês nos fazem uma grande injustiça - argumentou Wulfgar. - Estamos a caminho de Nesmé. Viemos em paz, como amigos.
- Vocês não entrarão, não com ele! - disse o cavaleiro com veemência. -Todos conhecem os métodos dos hediondos elfos drow. Você nos pede para acolhê-lo?
- Ora, 'cê é um idiota e a sua mãe também - grunhiu Bruenor.
- Meca as palavras, anão - avisou o cavaleiro. - Somos cinco contra três, e montados.
- Por que 'cê não tenta? - devolveu o anão. - Os abutres não vão conseguir muita comida com essas árvores bailarinas - Ele passou o dedo pelo fio do
machado. - Vamos dar a eles algo melhor prá bicar.
Wulfgar brandiu Garra de Palas de um lado para outro com apenas um braço. Drizzt não fez o menor gesto para sacar as armas, e sua calma inabalável foi, talvez,
a ação mais enervante de todas para os cavaleiros.
O porta-voz pareceu menos confiante depois do fracasso de sua ameaça, mas continuou agindo como se ainda fosse sua a vantagem.
- Mas não somos ingratos pela ajuda. Permitiremos que partam.
Desapareçam e nunca mais voltem às nossas terras.
- Ir ou vir é nossa opção - rosnou Bruenor.
- E optamos por não lutar - Drizzt acrescentou. - Não é o nosso objetivo nem o nosso desejo fazer mal a vocês ou a sua cidade, Cavaleiros de Nesmé.
Vamos passar, cuidaremos de nossas próprias vidas e deixaremos que vocês cuidem das suas.
- Você não vai chegar nem perto da minha cidade, elfo negro! - gritou um outro cavaleiro. - Vocês podem nos abater no campo, mas há outros cem atrás
de nós, e três vezes esse número atrás dos primeiros! Agora, sumam! - Seus companheiros pareceram readquirir a coragem com aquelas palavras audazes, os cavalos a
patear nervosamente com a súbita tensão das rédeas.
- Temos um trajeto a seguir - Wulfgar insistiu.
- Que se danem eles! - vociferou Bruenor, de repente. - Já agüentei o suficiente desse bando! Que se dane a vila deles. Que o rio varra eles da existência!
- Ele se virou para os amigos. - Estão fazendo um favor prá gente. Vamos poupar um dia ou mais indo direto até Lua Argêntea em vez de contornar pelo rio.
- Direto? - questionou Drizzt. - Os Pântanos Eternos?
- Será que é pior que o vale? - replicou Bruenor. Ele girou sobre os calcanhares e encarou os cavaleiros. - Fiquem com sua cidade e suas cabeças,
por enquanto - ele disse. - Vamos cruzar a ponte aqui e nos livrar de vocês e de toda a Nesmé!
- Coisas bem mais abomináveis que os homúnculos dos brejos vagam pelos Charcos dos Trolls, seu anão idiota - replicou o cavaleiro com um sorriso. -
Viemos destruir a ponte. Será queimada assim que vocês tiverem passado.
Bruenor assentiu e devolveu o sorriso.
- Continuem caminhando para leste - alertou o cavaleiro. - Avisaremos todos os outros cavaleiros. Se forem avistados perto de Nesmé, vocês serão mortos.
- Peguem seu amigo desprezível e sumam - provocou um outro cavaleiro - antes que o meu machado se banhe no sangue de um elfo negro! Embora eu tivesse
então que jogar fora a arma infectada!
Todos os cavaleiros se juntaram à gargalhada que se seguiu.
Drizzt sequer ouvira o insulto. Concentrava-se num cavaleiro na retaguarda do grupo, um tipo discreto que poderia aproveitar sua insignificância na conversa
para conseguir uma vantagem sem que os demais o percebessem. O cavaleiro havia sorrateiramente tirado o arco do ombro e agora levava com vagar a mão à aljava.
Bruenor nada mais tinha a dizer. Ele e Wulfgar deram as costas aos cavaleiros e partiram em direção à ponte.
- Venha, elfo - ele disse a Drizzt, ao passar. - Vou dormir melhor quando a gente estiver longe desses cães filhos de um orc.
Mas Drizzt tinha mais uma mensagem a enviar antes que desse as costas aos cavaleiros. Num movimento ofuscante, pegou o arco que trazia nas costas, retirou
uma flecha de sua aljava e a disparou com um silvo. Ela acertou o barrete de couro do suposto arqueiro, dividindo-lhe o cabelo ao meio, e engastou-se numa árvore
logo atrás dele, a haste a tremular um aviso claro.
- Seus insultos equivocados, eu aceito, até mesmo os espero - Drizzt explicou ao cavaleiro aterrorizado. - Mas não vou tolerar tentativas de ferir
meus amigos, e vou me defender. Considerem-se avisados, e aviso apenas uma vez: se tentarem qualquer outra coisa contra nós, vocês morrerão. - Ele se virou abruptamente
e desceu até a ponte, sem olhar para trás.
Os cavaleiros atordoados sem dúvida não tinham a intenção de retardar ainda mais o grupo do drow. O pretenso arqueiro nem mesmo procurou o barrete.
Drizzt sorriu diante da ironia de ser incapaz de se livrar das lendas sobre sua raça. Apesar de, por um lado, ser evitado e ameaçado, a aura de mistério
que cercava os elfos negros também lhe proporcionava um blefe poderoso o bastante para dissuadir os inimigos mais prováveis.
Régis se juntou a eles na ponte, brincando com uma pequena pedra.
- Eu os tinha na mira - foi explicando a arma improvisada. Ele lançou a pedra no rio. - Se a coisa começasse, o primeiro seria meu.
- Se a coisa começasse - Bruenor o corrigiu -, 'cê teria se borrado todo no buraco em que se escondeu!
Wulfgar refletiu sobre o aviso do cavaleiro em relação à senda que deveriam seguir.
- Charcos dos Trolls - ele repetiu sombriamente, percorrendo com os olhos o aclive do outro lado e a terra amaldiçoada diante deles. Harkle falara
sobre o lugar. A terra queimada e os brejos sem fundo. Os trolls e horrores piores que sequer possuíam um nome.
- Vamos ganhar um dia ou mais! - Bruenor repetiu teimosamente. Wulfgar não se convenceu.
- Está dispensado - Dendibar disse ao espectro.
Enquanto as chamas se refaziam no braseiro, despojando-o de sua forma material, Morkai considerava aquele segundo encontro. Com que freqüência Dendibar o
invocaria? - perguntou-se. O mago variegado ainda não havia se recuperado totalmente do último encontro, mas ousara convocá-lo novamente em tão pouco tempo. O assunto
de Dendibar com o grupo do anão devia ser realmente urgente! Essa suposição só fez Morkai desprezar ainda mais seu papel como espião do mago variegado.
Sozinho na sala novamente, Dendibar saiu de sua posição meditativa, espreguiçando-se, e sorriu perversamente ao considerar a imagem que Morkai lhe mostrara.
Os companheiros haviam perdido as montarias e marchavam em direção à área mais abominável de todo o Norte. Mais um ou dois dias e seu próprio grupo, voando nos cascos
de seus corcéis mágicos, viria a alcançá-los, embora cinqüenta quilômetros mais ao norte.
Sidnéia chegaria a Lua Argêntea muito antes do drow.


10. LUA ARGÊNTEA

A viagem desde Luskan foi realmente ligeira. Entreri e seu bando pareciam aos espectadores curiosos não mais que um borrão indistinto no vento noturno. As
montarias mágicas não deixavam rastro de sua passagem e nenhuma criatura viva conseguiria alcançá-las. O golem, como sempre, se arrastava incansavelmente na retaguarda
com grandes passos rígidos.
Tão macios e suportáveis eram os assentos sobre os corcéis conjurados de Dendibar que o grupo foi capaz de continuar a carreira depois do amanhecer e durante
todo o dia seguinte com apenas paradas breves para as refeições. Portanto, quando montaram acampamento depois do pôr do sol do primeiro dia de viagem, eles já haviam
deixado os rochedos para trás.
Cattiebrie travava uma batalha interior naquele primeiro dia. Ela não tinha dúvidas de que Entreri e a nova aliança alcançariam Bruenor. No pé em que estavam
as coisas, Cattiebrie seria apenas um empecilho para seus amigos, um joguete que Entreri poderia usar como melhor lhe aprouvesse.
Ela pouco podia fazer para remediar o problema, a menos que encontrasse algum modo de diminuir, se não sobrepujar, o aterrorizante domínio que o assassino
exercia sobre ela. Ela passou aquele primeiro dia concentrada, excluindo o mundo ao seu redor tanto quanto podia e procurando em seu espírito interior a força e
a coragem de que precisaria.
Bruenor, ao longo dos anos, havia armado a moça com muitos instrumentos para travar uma batalha como aquela, habilidades de disciplina e autoconfiança que
fizeram com que ela sobrevivesse a muitas situações difíceis. No segundo dia da viagem, então, mais confiante e mais à vontade com a situação, Cattiebrie foi capaz
de se concentrar em seus captores.
Extremamente interessantes eram os olhares que Jierdan e Entreri trocavam. O orgulhoso soldado obviamente não esquecera a humilhação que sofrera na noite
em que os dois se conheceram, no campo fora das muralhas de Luskan. Entreri - profundamente ciente do ressentimento, chegando mesmo a alimentá-lo, disposto como
estava a levar a questão a um confronto - vigiava o homem com desconfiança.
Essa rivalidade crescente poderia se revelar sua mais promissora, e talvez única esperança de escapar, pensou Cattiebrie. Ela tinha de admitir que Bok era
uma máquina de destruição irracional e indestrutível, imune à manipulação, e descobriu rapidamente que Sidnéia nada lhe oferecia.
Cattiebrie tentara engajar a jovem feiticeira numa conversa logo no segundo dia, mas o foco de Sidnéia era estreito demais para quaisquer distrações. Ela
não se deixaria desviar de sua obsessão, nem seria persuadida a abandoná-la. Ela nem mesmo respondeu à saudação de Cattiebrie quando as duas se sentaram para a refeição
do meio-dia. E quando Cattiebrie a importunou um pouco mais, Sidnéia instruiu Entreri a "manter a rameira longe dela".
No entanto, mesmo nessa tentativa fracassada, a feiticeira arredia ajudara Cattiebrie de uma maneira que nenhuma das duas conseguiria prever. O franco desdém
de Sidnéia e os insultos foram como um tapa no rosto de Cattiebrie e instilaram na moça mais um instrumento que a ajudaria a sobrepujar a paralisia provocada pelo
terror: a raiva.
Eles ultrapassaram o ponto médio de sua jornada no segundo dia - a paisagem passava por eles de uma maneira surreal à medida que seguiam a toda pressa - e
acamparam nas pequenas colinas a nordeste de Nesmé, com a cidade de Luskan agora duzentas milhas para trás.
Fogueiras piscavam ao longe. Uma patrulha de Nesmé, teorizou Sidnéia.
- Devemos ir até lá e descobrir o que pudermos - Entreri sugeriu, ansioso por notícias sobre seu alvo.
- Você e eu - concordou Sidnéia. - Podemos ir e voltar antes de se passar metade da noite.
Entreri olhou para Cattiebrie.
- E quanto a ela? - ele perguntou à feiticeira. - Eu não a deixaria com Jierdan.
- Você acha que o soldado se aproveitaria da garota? - Sidnéia replicou. - Garanto que ele é honrado.
- Não é isso que me preocupa - disse Entreri, com um sorriso pretensioso. - Não temo pela filha de Bruenor Martelo de Batalha. Ela se livraria do seu
soldado honrado e sumiria noite adentro antes do nosso retorno.
Cattiebrie não recebeu bem o elogio. Ela entendeu que o comentário de Entreri era antes um insulto a Jierdan, que estava longe, catando lenha, do que um reconhecimento
à sua própria competência, mas o inesperado respeito do assassino por ela tornaria sua tarefa duplamente difícil. Não queria que Entreri a julgasse perigosa, ou
mesmo engenhosa, pois isso o deixaria demasiado alerta para que ela agisse.
Sidnéia olhou para Bok.
- Vou sair - ela disse ao golem, alteando propositalmente a voz, o bastante para Cattiebrie ouvi-la com facilidade. - Se a prisioneira tentar fugir,
persiga-a e mate-a! - Ela lançou um sorriso maldoso para Entreri. - Satisfeito?
Ele devolveu o sorriso e fez um gesto largo com o braço na direção do acampamento distante.
Jierdan voltou então, e Sidnéia contou-lhe os planos. O soldado não pareceu entusiasmado com a idéia de Sidnéia e Entreri partirem juntos, apesar de nada
dizer para dissuadir a feiticeira. Cattiebrie o observou atentamente e inferiu a verdade. Ser deixado a sós com ela e o golem não o incomodava, ela conjeturou, mas
ele temia que um vínculo de amizade se formasse entre seus dois companheiros de estrada. Cattiebrie compreendia e até mesmo esperava por isso, pois Jierdan se encontrava
na posição mais vulnerável: subserviente a Sidnéia e com medo de Entreri. Uma aliança entre aqueles dois, talvez mesmo um pacto que excluísse completamente Dendibar
e a Torre das Hostes, no mínimo o deixaria de fora e, mais provavelmente, significaria seu fim.
- Por certo que a natureza desse negócio sombrio age contra eles mesmos - Cattiebrie murmurou quando Sidnéia e Entreri deixaram o acampamento, pronunciando
as palavras em voz alta para reforçar sua confiança cada vez maior.
- Eu podia te ajudar com isso aí - ela propôs a Jierdan enquanto ele dava os toques finais ao acampamento.
O soldado fulminou-a com o olhar.
- Ajudar? - zombou ele. - Eu devia era obrigá-la a fazer tudo sozinha.
- Entendo sua raiva - Cattiebrie rebateu, solidária. - Eu mesma sofri nas mãos imundas de Entreri.
A pena da moça enfureceu o soldado orgulhoso. Ele investiu contra ela, ameaçador, mas Cattiebrie manteve a compostura e não se esquivou.
- Este trabalho não condiz com o seu posto.
Jierdan se deteve de repente, a raiva dissipada pelo fato de estar intrigado com o elogio. Uma manobra evidente mas, para o ego ferido de Jierdan, o respeito
da moça era oportuno demais para se ignorar.
- O que sabe você sobre o meu posto? - ele perguntou.
- Sei que é um soldado de Luskan - Cattiebrie respondeu. - De um grupo temido em todo o norte. 'Cê não deveria fazer o trabalho braçal enquanto a feiticeira
e o caçador de sombras saem prá brincar de noite.
- Você está criando encrenca! - grunhiu Jierdan, mas ele se deteve para considerar o argumento. - Você monta o acampamento - ele ordenou, por fim,
readquirindo um certo grau de amor-próprio ao demonstrar sua superioridade em relação a ela. Entretanto, Cattiebrie não se importou. Ocupou-se da tarefa imediatamente,
interpretando seu papel subserviente sem reclamar. Um plano agora começava a tomar forma definida em sua mente, e essa fase exigia que ela fizesse um aliado entre
seus inimigos, ou pelo menos se colocasse numa posição que lhe permitisse plantar as sementes do zelo na mente de Jierdan.
Satisfeita, ela ouviu o soldado se afastar, resmungando a meia-voz.
Antes que Entreri e Sidnéia tivessem sequer se aproximado o suficiente para dar uma boa olhada no acampamento, um cântico ritualístico lhes revelou que não
se tratava de uma caravana de Nesmé. Eles se aproximaram com maior cautela para confirmar suas suspeitas.
Bárbaros de cabelos longos, morenos e altos, e envergando vestes cerimoniais emplumadas, dançavam em círculo em volta de um totem de madeira em forma de grifo.
- Uthgardt - explicou Sidnéia. - A tribo do Grifo. Estamos perto de Branco Reluzente, seu cemitério ancestral. - Ela se afastou vagarosamente da luminosidade
do acampamento. - Venha - ela sussurrou. - Não descobriremos nada de útil aqui.
Entreri a seguiu de volta ao acampamento.
- Não seria melhor montarmos agora? - ele perguntou quando se encontraram a uma distância segura. - Para nos afastarmos mais dos bárbaros?
- Não é necessário - respondeu Sidnéia. - Os uthgardt vão dançar a noite inteira. Toda a tribo toma parte no ritual. Duvido até que tenham postado
sentinelas.
- Você sabe muita coisa sobre eles - comentou o assassino num tom acusador, um sinal de suas repentinas suspeitas de que poderia haver alguma trama
ulterior a controlar os acontecimentos ao redor deles.
- Eu me preparei para esta jornada - rebateu Sidnéia. - Os uthgardt guardam poucos segredos; seus costumes são bastante conhecidos e documentados.
Aqueles que viajam pelo norte fariam bem em compreender essas pessoas.
-Tenho sorte por ter uma companheira de viagem tão instruída - disse Entreri, fazendo uma reverência sarcástica à guisa de desculpas.
Sidnéia, os olhos na estrada logo adiante, não respondeu.
Mas Entreri não deixaria a conversa morrer com tanta facilidade. Havia método em sua linha mestra de suspeitas. Ele havia conscientemente escolhido aquele
momento para revelar suas cartas e sua desconfiança, mesmo antes de descobrirem a natureza do acampamento. Pela primeira vez, os dois se encontravam a sós, sem Cattiebrie
ou Jierdan por perto para complicar a confrontação, e Entreri tinha a intenção de dar um fim às suas preocupações, ou dar um fim à feiticeira.
- Quando é que devo morrer? - ele perguntou bruscamente. Sidnéia sequer vacilou.
- Quando os fados assim o decretarem, como todos nós.
- Deixe-me reformular a pergunta - Entreri continuou agarrando-a pelo braço e virando-a para que ela o encarasse. - Quando você está instruída a tentar
me matar?
- Por que outro motivo Dendibar enviaria o golem? - raciocinou Entreri. - O mago não confia em pactos, nem na honra. Ele faz o que precisa fazer para
alcançar seus objetivos da maneira mais conveniente, e depois elimina aqueles que não são mais necessários. Quando eu não tiver mais valor, devo ser morto. Uma tarefa
que você pode achar mais difícil do que imagina.
- Você é perceptivo - Sidnéia respondeu tranqüilamente. - Avaliou muito bem o caráter de Dendibar. Ele teria matado você simplesmente para evitar possíveis
complicações. Mas você não considerou meu próprio papel nisso tudo. Devido à minha insistência, Dendibar colocou a decisão do seu destino nas minhas mãos. - Ela
fez uma pausa momentânea para deixar Entreri ponderar suas palavras. Ele poderia facilmente matá-la ali mesmo, ambos sabiam disso, de modo que a franqueza de sua
tranqüila confissão de uma trama para assassiná-lo impediu quaisquer ações imediatas e o forçou a ouvi-la até o fim.
- Estou convencida de que temos em mente desfechos distintos para o nosso confronto com o grupo do anão - explicou Sidnéia - e, portanto, não tenho
a intenção de destruir um aliado atual e, talvez, futuro.
A despeito de sua natureza sempre desconfiada, Entreri entendeu perfeitamente a lógica da linha de raciocínio da feiticeira. Reconheceu muitas de suas próprias
características em Sidnéia. Implacável, ela não deixaria que nada lhe atravancasse o caminho que escolhera, mas não se desviaria da trilha por qualquer distração,
não importando quão fortes fossem seus sentimentos. Ele soltou o braço dela.
- Mas o golem viaja conosco - disse ele distraidamente, voltando-se para a noite inane. - Dendibar acredita que precisaremos da coisa para derrotar
o anão e seus companheiros?
- Meu mestre me deixa pouca escolha - respondeu Sidnéia. - Bok foi enviado para ratificar a pretensão de Dendibar sobre aquilo que deseja. Proteção
contra dificuldades inesperadas oferecidas pelos companheiros. E contra você.
Entreri avançou mais um passo em sua linha de raciocínio.
- O objeto que o mago deseja deve ser realmente poderoso - concluiu. Sidnéia assentiu.
- Tentador para uma jovem feiticeira, talvez.
- O que você está insinuando? - Sidnéia exigiu, furiosa por Entreri questionar sua lealdade a Dendibar.
O sorriso confiante do assassino fez com que ela se contorcesse, incomodada.
- O propósito do golem é proteger Dendibar de dificuldades inesperadas oferecidas... por você!
Sidnéia gaguejou, mas não conseguiu encontrar as palavras para responder. Ela não havia considerado aquela possibilidade. Tentou rejeitar pela lógica a estranha
conclusão de Entreri, mas o comentário seguinte do assassino nublou sua capacidade de pensar.
- Simplesmente para evitar possíveis complicações - ele disse sombriamente, repetindo as palavras que ela pronunciara anteriormente.
Para Sidnéia, a lógica das suposições dele foi como um tapa na cara. Como ela pôde se imaginar acima da trama maliciosa de Dendibar? A revelação lhe deu calafrios,
mas ela não tinha a intenção de procurar a resposta com Entreri bem ao seu lado.
- Temos de confiar um no outro - ela disse. - Precisamos entender que ambos nos beneficiamos com a aliança e que isso não nos custa nada.
- Mande o golem embora, então - Entreri replicou.
Um alarme disparou na mente de Sidnéia. Estaria Entreri tentando instilar nela a dúvida meramente para ganhar uma vantagem na relação entre os dois?
- Não precisamos da coisa - disse ele. -Temos a garota. E, mesmo que os companheiros não cedam às nossas exigências, podemos tomar à força o que desejamos.
- Ele devolveu o olhar ressabiado da feiticeira. - Você fala em confiança?
Sidnéia não respondeu e pôs-se mais uma vez a caminho do acampamento. Talvez ela devesse mandar Bok embora. O ato aplacaria as dúvidas de Entreri em relação
a ela, embora isso certamente desse a ele uma vantagem caso algum problema viesse a surgir. Mas mandar o golem embora poderia também responder algumas das questões
ainda mais perturbadoras que lhe pesavam agora, as questões a respeito de Dendibar.
O dia seguinte foi o mais tranqüilo - e o mais produtivo - da viagem. Sidnéia se debatia com sua confusão em relação às razões para a presença do golem. Ela
chegara à conclusão de que deveria mandar Bok embora, mesmo que por nenhuma outra razão a não ser provar para si mesma a confiança de seu mestre.
Entreri observou com interesse os sinais reveladores daquela luta, sabendo que enfraquecera o elo entre Sidnéia e Dendibar o bastante para fortalecer sua
própria posição junto à jovem feiticeira. Agora ele devia simplesmente esperar e aguardar pela próxima chance de realinhar seus companheiros.
Do mesmo modo, Cattiebrie esperava por outras oportunidades de cultivar as sementes que plantara nos pensamentos de Jierdan. Os resmungos que ela via o soldado
esconder de Entreri e Sidnéia lhe revelavam que faltava pouco para seu plano ter um início promissor.
Eles chegaram a Lua Argêntea pouco depois do zênite do dia seguinte. Se tinha ainda qualquer dúvida quanto à decisão de se juntar ao grupo da Torre das Hostes,
Entreri a descartou assim que considerou a desmesura da proeza. Com os incansáveis corcéis mágicos, eles haviam percorrido quase oitocentos quilômetros em quatro
dias. E, depois de uma viagem sem esforço - a absoluta facilidade em conduzir as montarias -, eles dificilmente se consideravam cansados quando chegaram aos contrafortes
das montanhas logo a oeste da cidade encantada.
- O rio Rauvin - Jierdan, na vanguarda do grupo, informou-lhes. - E um posto avançado.
- Vamos dar a volta - replicou Entreri.
- Não - disse Sidnéia. - São os guias para a Ponte da Lua. Eles nos deixarão passar, e a ajuda deles facilitará bastante a nossa admissão na cidade.
Entreri olhou para Bok, que vinha subindo pesadamente pela trilha atrás deles.
- Todos nós? - ele perguntou, incrédulo.
Sidnéia não esquecera o golem.
- Bok - disse ela, assim que o golem os alcançou -, você não é mais necessário. Volte para Dendibar e diga a ele que tudo está correndo bem.
Os olhos de Cattiebrie se iluminaram com a possibilidade de mandarem o monstro de volta, e Jierdan, surpreso, olhou para trás com ansiedade crescente. Observando-o,
Cattiebrie viu mais uma vantagem naquela inesperada reviravolta. Ao mandar o golem embora, Sidnéia dava mais crédito aos temores de uma aliança entre ela e o assassino,
temores que Cattiebrie implantara no soldado.
O golem não se moveu.
- Eu disse para ir embora! - exigiu Sidnéia.
Ela percebeu com o canto do olho que Entreri a observava, nada surpreso.
- Maldito seja - ela murmurou consigo mesma. Ainda assim, Bok não se moveu.
- Você é realmente perceptivo - ela rosnou para Entreri.
- Fique aqui, então - ela sibilou para o golem. - Vamos ficar na cidade durante vários dias. - Deslizou da sela para o chão e saiu pisando duro,
humilhada pelo assassino que ria dela pelas costas.
- E as montarias? - Jierdan perguntou.
- Foram criadas para nos trazer a Lua Argêntea, e só - respondeu Sidnéia e, enquanto os quatro se afastavam pela trilha, as luzes bruxuleantes que
foram outrora os cavalos desvaneceram-se num brilho azul e suave, e então sumiram completamente.
Tiveram pouco trabalho para passar pelo posto avançado, principalmente quando Sidnéia se identificou como uma representante da Torre das Hostes Arcanas. Ao
contrário da maioria das cidades nas hostis terras do norte, que levavam seus temores em relação a forasteiros à beira da paranóia, Lua Argêntea não se encontrava
enclausurada por muralhas sinistras e fileiras de soldados desconfiados. O povo daquela cidade encarava os visitantes como um engrandecimento para sua cultura, e
não como uma ameaça ao seu modo de vida.
Um dos Cavaleiros em Prata, os guardas no posto sobre o Rauvin, conduziu os quatro viajantes à entrada da Ponte da Lua, uma estrutura em arco, invisível,
que cobria o vão do rio diante do portão principal da cidade. Os estrangeiros atravessaram hesitantes, incomodados com a falta de matéria visível sob seus pés. Mas
logo se viram descendo as ruas serpeantes da cidade mágica. O ritmo de seus passos se reduziu inconscientemente, apanhado pela indolência contagiosa, a atmosfera
relaxada e contemplativa que dissipou até mesmo a intensidade focalizada de Entreri.
Torres altas e retorcidas e estruturas de formas estranhas os saudavam a cada esquina. Nenhum estilo arquitetônico único dominava Lua Argêntea, a não ser
que este fosse a liberdade de um construtor, ou construtora, de exercer sua criatividade pessoal sem medo de críticas ou desprezo. O resultado era um lugar de esplendores
sem fim, não uma cidade rica em tesouros enumeráveis - como eram Águas Profundas e Mirabar, as duas vizinhas mais poderosas -, mas incomparável em beleza estética.
Um retrocesso aos primeiros dias dos Reinos, quando os elfos, os anões e os humanos tinham espaço suficiente para perambular sob o sol e as estrelas sem medo de
cruzar a fronteira invisível de algum reino hostil. Lua Argêntea existia em franco desafio aos conquistadores e tiranos do mundo, um lugar onde ninguém tinha direitos
sobre outra pessoa.
Ali pessoas de todas as raças virtuosas caminhavam livres e sem medo pelas ruas e vielas nas noites mais escuras e, se os viajantes passassem por alguém e
não fossem saudados com uma palavra de boa acolhida, era apenas porque a pessoa estava profundamente empenhada numa contemplação meditativa.
- O grupo do anão está a menos de uma semana de Sela Longa - Sidnéia mencionou enquanto eles andavam pela cidade. - Pode ser que tenhamos de esperar
vários dias.
- Aonde vamos? - Entreri perguntou, sentindo-se um peixe fora d'água.
Os valores que obviamente tinham precedência em Lua Argêntea eram diferentes dos de qualquer cidade em que ele já estivera e eram completamente estranhos
às suas próprias concepções do mundo como um lugar de cobiça e lascívia.
- Incontáveis estalagens enchem as ruas - Sidnéia respondeu. - Hóspedes são abundantes por aqui, e são acolhidos com sinceridade.
- Então, nossa tarefa de encontrar os companheiros, assim que chegarem, há de se mostrar realmente difícil - Jierdan resmungou.
- Nem tanto - replicou Sidnéia obliquamente. - O anão vem a Lua Argêntea em busca de informações. Logo depois de chegarem, Bruenor e seus amigos irão
à Câmara dos Sábios, a mais famosa biblioteca em todo o norte.
Entreri estreitou os olhos e disse:
- E nós estaremos lá para recebê-los.

11. OS CHARCOS DOS TROLLS

Era uma região de terra enegrecida e brejos nevoentos, onde a podridão e uma sensação impressionante de perigo sujeitavam até mesmo os céus mais ensolarados.
A paisagem subia e descia continuamente e o cimo de cada elevação, galgado por qualquer viajante na esperança de avistar o fim do lugar, trazia apenas desespero
e mais das mesmas cenas imutáveis.
Os valentes Cavaleiros de Nesmé se aventuravam nos urzais toda primavera para fazer grandes queimadas e expulsar os monstros daquela terra hostil dos limites
de sua vila. A estação ia longe e várias semanas haviam se passado desde o último incêndio, mas, mesmo então, os vales estreitos e baixos se achavam nublados pela
fumaça e as ondas de calor das grandes queimadas ainda tremeluziam no ar ao redor das maiores pilhas carbonizadas de madeira.
Bruenor conduzira seus amigos para os Charcos dos Trolls como teimosa afronta aos cavaleiros e estava determinado a marchar até Lua Argêntea. Mas, bastou
apenas o primeiro dia de viagem para que até ele começasse a duvidar de sua decisão.
O lugar exigia um estado de prontidão constante, e cada bosque de árvores queimadas pelo qual passavam os obrigava a parar, pois os cepos negros e desprovidos
de folhas e os troncos caídos assumiam uma incômoda semelhança com os homúnculos dos brejos. Inúmeras vezes, o terreno esponjoso sob seus pés se transformava subitamente
num fosso profundo de lama e somente a reação rápida de um companheiro próximo impedia que um deles descobrisse a verdadeira profundidade dos fossos.
Uma brisa contínua soprava pelos urzais, alimentada pelos trechos contrastantes de solo quente e brejos frios, e trazia um odor mais fétido que o da fumaça
e da fuligem das queimadas, um cheiro enjoativamente doce, perturbadoramente familiar para Drizzt Do'Urden: o fedor dos trolls.
Aquele era o domínio dos monstros, e todos os boatos sobre os Pântanos Eternos que os companheiros tinham ouvido - e descartado com uma risada no conforto
d'0 Varapau de Pileque - não poderiam tê-los preparado para a realidade que subitamente se abateu sobre eles ao entrarem no lugar.
Bruenor estimara que seu grupo conseguiria se livrar dos urzais em cinco dias se mantivessem um ritmo forte. Naquele primeiro dia, percorreram, na verdade,
a distância necessária, mas o anão não previra os contínuos desvios que teriam de empreender para evitar os brejos. Apesar de terem marchado mais de trinta quilômetros
naquele dia, estavam a menos de dez do ponto onde haviam entrado nos urzais.
Ainda assim, não encontraram trolls nem qualquer outro tipo de monstro, e montaram acampamento naquela noite sob a falsa aparência de silencioso otimismo.
- 'Cê vai ficar de guarda? - Bruenor perguntou a Drizzt, ciente de que somente o drow possuía os sentidos aguçados de que precisariam para sobre viver
àquela noite.
Drizzt assentiu.
- A noite toda - ele respondeu, e Bruenor não discutiu. O anão sabia que nenhum deles conseguiria dormir naquela noite, estando ou não de guarda.
As trevas chegaram súbita e completamente. Bruenor, Régis e Wulfgar não enxergavam as próprias mãos se as mantivessem a uma pequena distância do rosto. Com
a escuridão, ouviram-se os sons de um terrível pesadelo. Ruídos de passos chapinhando na lama se aproximavam de todos os lados. A fumaça se misturava à névoa noturna
e se enovelava em volta dos troncos das árvores desfolhadas. O vento não aumentou, mas a intensidade de seu fedor hediondo sim, e agora transportava os gemidos dos
espíritos atormentados dos desgraçados habitantes dos urzais.
- Peguem suas coisas - Drizzt sussurrou para os amigos.
- Que é que 'cê 'tá vendo? - Bruenor perguntou baixinho.
- Nada diretamente - veio a resposta. - Mas eu os sinto ao nosso redor, como todos vocês. Não podemos deixar que nos surpreendam aqui. Devemos andar
entre eles para evitar que se juntem à nossa volta.
- Minhas pernas doem - reclamou Régis. - E os meus pés estão inchados. Eu nem sei se consigo voltar a calçar as botas!
- Ajude ele, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - O elfo 'tá certo. A gente vai te carregar se for preciso, Ronca-bucho, mas não vamos ficar aqui.
Drizzt assumiu a liderança e, às vezes, precisava segurar a mão de Bruenor, que vinha logo atrás dele - e assim acontecia pela fila toda até Wulfgar, na retaguarda
-, para evitar que seus companheiros se extraviassem.
Todos pressentiam as formas escuras que se moviam ao redor deles e farejavam a vileza dos perversos trolls. Vendo claramente o exército se reunir ao seu redor,
somente Drizzt compreendeu a precariedade de suas posições e arrastou os amigos o mais rápido que pôde.
A sorte estava ao lado deles, pois a lua saiu naquele instante, transformando a névoa numa fantasmagórica manta prateada e revelando a todos os amigos o
perigo premente. Agora, com o movimento visível de todos os lados, os amigos corriam.
Formas esguias e trôpegas surgiam das brumas ao lado deles, dedos providos de garras se estendiam para puxar-lhes as roupas à medida que passavam correndo.
Wulfgar se colocou ao lado de Drizzt, afastando os trolls com grandes golpes de Garra de Palas, enquanto o drow se concentrava em mantê-los em movimento e na direção
correta.
Durante horas eles correram e, ainda assim, os trolls avançavam. Vencendo todas as sensações de exaustão, vencendo a dor e depois o entorpecimento dos membros,
os amigos correram, sabendo que encontrariam uma morte certa e horrível caso vacilassem por apenas um segundo, o medo a sobrepujar os gritos de derrota de seus corpos.
Mesmo Régis, gordo e indolente demais, e com as pernas curtas demais para a estrada, acompanhava o passo e instigava os que estavam à sua frente a correr ainda mais.
Drizzt compreendeu a futilidade da marcha. O martelo de Wulfgar invariavelmente perdia velocidade e todos vacilavam mais e mais a cada minuto que passava.
Restavam ainda muitas horas de treva, e mesmo o amanhecer não garantiria o fim da perseguição. Quantos quilômetros conseguiriam correr? Quando é que tomariam uma
trilha que daria num brejo sem fundo, com centenas de trolls às suas costas?
Drizzt mudou de estratégia. Não mais tentando apenas fugir, ele começou a procurar uma porção de terreno defensável. Ele avistou um pequeno outeiro, com três
metros de altura talvez, e um aclive íngreme, quase escarpado, dos três lados que ele enxergava a partir daquele ângulo. Uma árvore nova e solitária crescia na face
da colina. Ele apontou o lugar para Wulfgar, que compreendeu o plano imediatamente e mudou de direção. Dois trolls apareceram para lhes bloquear o caminho, mas Wulfgar,
urrando de fúria, arremeteu para enfrentá-los. Garra de Palas desferiu uma sucessão furiosa de golpes e os outros três companheiros foram capazes de se esgueirar
por trás do bárbaro e chegar ao outeiro.
Wulfgar abandonou a luta e correu para se juntar a eles, com os teimosos trolls no seu encalço e, agora, acompanhados por uma extensa formação de sua raça
perversa.
Surpreendentemente ágil, mesmo apesar da barriga, Régis trepou pela arvore até o topo do outeiro. Para Bruenor, porém, sem a constituição física adequada
para essa atividade, a escalada foi uma luta.
- Ajude-o! - Drizzt, de costas para a árvore e as cimitarras em prontidão, gritou para Wulfgar. - Depois é sua vez! Vou segurá-los.
A respiração de Wulfgar vinha em arquejos forçados e uma linha de sangue brilhante se desenhava em sua testa. Ele trombou contra a árvore e começou a subir
atrás do anão. As raízes se vergaram sob o peso combinado dos dois e eles pareciam não fazer muito progresso. Por fim, Régis conseguiu agarrar a mão de Bruenor e
ajudá-lo a galgar o topo, e Wulfgar, com o caminho livre diante dele, fez menção de se juntar aos outros dois. Com a própria segurança assegurada, eles olharam para
trás, preocupados com o amigo.
Drizzt combatia três dos monstros e outros faziam fila atrás dos primeiros. Wulfgar pensou em saltar de volta ao chão desde sua posição a meio caminho do
topo da árvore e morrer ao lado do drow, mas Drizzt, olhando de vez em quando por sobre o ombro para verificar o progresso de seus amigos, notou a hesitação do bárbaro
e leu a mente dele.
- Vá! - ele gritou. - Essa demora não ajuda em nada!
Wulfgar precisou parar e considerar a origem da ordem. Sua confiança em Drizzt e o respeito que nutria por ele sobrepujaram o desejo instintivo de voltar
à luta e, relutante, o bárbaro se alçou para se juntar a Régis e Bruenor no pequeno platô.
Os trolls se posicionaram para franquear o drow, e as garras imundas tentavam alcançá-lo por todos os lados. Ele ouviu os amigos, todos os três, implorando
que se desprendesse da luta e se juntasse a eles, mas sabia que os monstros já tinham se esgueirado por trás para lhe interceptar a retirada.
Um sorriso se espalhou por seu rosto. A luz em seus olhos cintilou.
Ele se lançou contra o exército principal dos trolls, afastando-se do outeiro inatingível e dos amigos horrorizados.
Os três companheiros, entretanto, tiveram pouco tempo para conjeturar sobre a sorte do drow, pois logo se viram atacados por todos os lados à medida que os
trolls avançavam implacavelmente, usando as garras para chegar até eles.
Cada amigo se posicionou para defender o próprio lado. Por sorte, a ladeira do lado de trás do outeiro se revelou ainda mais íngreme - em alguns pontos, o
aclive era negativo - e os trolls não conseguiam efetivamente chegar até eles por trás.
Wulfgar era o mais mortífero, derrubava um troll da encosta do outeiro a cada golpe de seu possante martelo. Mas, antes mesmo que o bárbaro conseguisse recuperar
o fôlego, um outro havia tomado o lugar do primeiro.
Régis, golpeando com sua pequena maça, era o menos eficiente. Ele martelava com toda a força os dedos, os cotovelos e mesmo as cabeças dos trolls que chegavam
mais perto, mas não conseguia desalojar os monstros que se agarravam às suas posições. Invariavelmente, à medida que cada um deles galgava a elevação, Wulfgar ou
Bruenor tinham de abandonar a própria luta e afugentar a fera com uma pancada.
Eles sabiam que, da primeira vez que um único golpe falhasse, encontrariam um troll de pé e pronto para atacar ao lado deles no topo do outeiro.
Deu-se a catástrofe depois de apenas alguns minutos. Bruenor girou para auxiliar Régis quando mais um monstro alçou o torso por sobre o topo. O machado do
anão penetrou a criatura com extrema perícia.
Com demasiada perícia. Entrou pelo pescoço do troll e o atravessou, decapitando a criatura. Mas embora a cabeça voasse do outeiro, o corpo continuou avançando.
Régis caiu de costas, horrorizado demais para reagir.
- Wulfgar! - gritou Bruenor.
O bárbaro girou sobre os calcanhares, sem que se detivesse tempo suficiente para se admirar com o adversário decapitado, e deu com Garra de Palas no peito
da coisa, fazendo-a voar pelos ares e cair do outeiro.
Duas outras mãos se agarraram à beirada. Do lado de Wulfgar, outro troll havia rastejado mais de meio caminho por sobre o topo. E atrás deles, onde Bruenor
estivera, um terceiro se achava de pé e sobre o halfling indefeso.
Eles não sabiam por onde começar. O outeiro fora tomado. Wulfgar chegou a pensar em saltar no meio da aglomeração lá embaixo para morrer como um verdadeiro
guerreiro, matando tantos inimigos quanto pudesse, e também para não precisar assistir ao despedaçamento dos dois amigos.
Mas, de repente, o troll por sobre o halfling lutou para se equilibrar, como se algo o puxasse por trás. Uma de suas pernas se dobrou e então ele caiu de
costas na escuridão.
Drizzt Do'Urden arrancou sua espada da panturrilha da coisa quando esta passou sobre ele, depois rolou habilmente para o topo do outeiro, erguendo-se bem
ao lado do halfling surpreso. Seu manto ondeava em farrapos e linhas de sangue escureciam suas vestes em muitos pontos.
Mas ele conservava o sorriso, e a chama em seus olhos cor de lavanda revelou aos amigos que ele ainda tinha muito para dar. Passou como um raio pelo anão
e pelo bárbaro admirado e talhou o troll seguinte, despachando-o rapidamente encosta abaixo.
- Como? - perguntou Bruenor, estupefato, embora soubesse, enquanto corria novamente para Régis, que nenhuma resposta viria do drow atarefado.
A manobra audaciosa de Drizzt lá embaixo lhe dera uma vantagem sobre os seus inimigos. Os trolls tinham o dobro da sua altura e os que estavam atrás daqueles
que combatiam não faziam idéia de que ele estava a caminho. Sabia que infligira pouco dano permanente aos monstros - os ferimentos das estocadas que ele cravava
ao passar cicatrizariam rápido, e os membros que ele decepava cresceriam novamente -, mas a ousada manobra ganhou-lhe o tempo de que precisava para se livrar da
horda impetuosa e contorná-la em meio às trevas. Uma vez livre na noite escura, ele prosseguiu com cautela de volta ao outeiro, passando pelos trolls distraídos
com a mesma intensidade flamejante. Apenas sua agilidade o salvou ao chegar à base, pois ele praticamente subiu correndo a encosta do outeiro, chegando a escalar
as costas de um troll, rápido demais para os monstros surpresos o agarrarem.
A defesa do outeiro agora se consolidava. Frente ao machado cruel de Bruenor, ao martelo esmagador de Wulfgar e às cimitarras sibilantes de Drizzt, cada um
a defender um lado, os trolls que subiam não encontravam uma única rota desimpedida até o topo. Régis ficou no meio do pequeno platô, correndo ora para um lado,
ora para outro, a fim de ajudar seus amigos sempre que um troll chegava perto demais e conseguia um ponto de apoio.
Mesmo assim, os trolls avançavam, e a aglomeração lá embaixo crescia a cada minuto que passava. Os amigos sabiam perfeitamente qual seria o resultado inevitável
daquele confronto. Sua única chance residia em desfazer a aglomeração de monstros lá embaixo para abrir uma rota de fuga, mas eles estavam empenhados demais em meramente
rechaçar os novos inimigos para procurar uma solução.
Exceto Régis.
Aconteceu quase por acidente. Um braço trépido, decepado por uma das espadas de Drizzt, rastejara até o centro das defesas. Régis, completamente enojado,
golpeava-o desvairadamente com sua maça.
- Esta coisa não morre! - ele gritava enquanto o braço continuava a se contorcer, tentando agarrar a pequena arma. - Não morre! Alguém aí acerte esta coisa!
Cortem! Botem fogo!
Os outros três estavam ocupados demais para reagir aos rogos desesperados, mas a última frase de Régis, berrada em total aflição, deu-lhe uma idéia. Ele pulou
em cima do membro trépido, imobilizando-o por um instante enquanto vasculhava sua mochila em busca da isca e da pederneira.
Suas mãos trêmulas mal conseguiam golpear a pedra, mas a mais minúscula centelha cumpriu seu papel assassino. O braço do troll pegou fogo e crepitou, transformando-se
numa bola friável. Nada disposto a perder a oportunidade diante dele, Régis apanhou o membro flamejante e correu até Bruenor. Ele refreou o machado do anão, dizendo
a Bruenor para deixar o novo oponente ultrapassar a borda do cômoro.
Quando o troll se içou, Régis ateou-lhe fogo à cara. A cabeça praticamente explodiu em chamas e, gritando de agonia, o troll despencou do outeiro, levando
as labaredas mortíferas aos próprios companheiros.
Os trolls não temiam a lâmina nem o martelo. Os ferimentos infligidos por essas armas cicatrizavam rapidamente e mesmo uma cabeça decepada logo voltava a
crescer. Esses confrontos, na verdade, ajudavam a propagar a maldita espécie, pois um troll costumava regenerar um braço decepado e um braço decepado costumava
regenerar um troll inteiro! Inúmeros felinos predadores e lobos haviam se banqueteado com a carcaça de um troll apenas para descobrir que haviam provocado a própria
morte quando um novo monstro crescesse em seu ventre.
Mas mesmo os trolls tinham algo a temer. O fogo era sua ruína, e os trolls dos Pântanos Eternos o conheciam muito bem. Era impossível regenerar queimaduras
e um troll destruído pelas chamas estava definitivamente morto. Quase como se isso tivesse um propósito no desígnio dos deuses, o fogo aderia à pele ressecada de
um troll tão prontamente quanto a gravetos secos.
Os monstros do lado de Bruenor fugiram ou tombaram, formando pilhas carbonizadas. Bruenor deu uma palmada nas costas do halfling ao observar o espetáculo
gratificante, e a esperança retornou aos seus olhos cansados.
- Lenha - concluiu Régis. - Precisamos de lenha.
Bruenor tirou a mochila das costas.
- 'Cê vai ter sua lenha, Ronca-bucho - ele gargalhou, apontando para a árvore nova que subia pela encosta do outeiro. - E tem óleo na minha bolsa!
- Ele correu até Wulfgar. - A árvore, garoto! Ajude o halfling - foi sua única explicação ao se colocar diante do bárbaro.
Assim que Wulfgar deu meia-volta e viu Régis manuseando desajeitadamente um frasco de óleo, ele compreendeu sua parte no plano. Nenhum troll havia ainda retornado
àquele lado do outeiro, e o fedor de carne queimada lá embaixo era quase insuportável. Com um único tranco, o musculoso bárbaro arrancou a árvore do solo e içou-a
até Régis. Depois, retrocedeu e rendeu o anão, permitindo a Bruenor colocar seu machado em ação para rachar a lenha.
Logo, projéteis incandescentes iluminavam o céu a toda volta do outeiro, caíam em meio à horda de trolls, e centelhas mortíferas irrompiam por todos os lados.
Régis correu para a beirada do outeiro com outro frasco de óleo e o aspergiu sobre os trolls mais próximos, provocando neles um frenesi de pânico. A confusão estava
formada e, entre a debandada e a rápida disseminação das chamas, a área abaixo do outeiro foi liberada em questão de minutos, e os amigos não avistaram nenhum outro
movimento durante as poucas horas que restavam à noite, a não ser os lamentáveis espasmos da massa de membros e torsos queimados. Fascinado, Drizzt se perguntou
quanto tempo as coisas sobreviveriam em face das feridas cauterizadas que jamais regenerariam.
Mesmo com a exaustão, nenhum dos companheiros conseguiu dormir naquela noite. Com o romper da aurora - e nenhum sinal de trolls nas redondezas, apesar da
fumaça asquerosa que pairava pesadamente no ar -, Drizzt insistiu para que prosseguissem.
Eles deixaram sua fortaleza e puseram-se a caminhar porque não tinham outra escolha e porque se recusavam a desistir num ponto em que outros poderiam ter
vacilado. Eles não encontraram nada de imediato, mas sentiam os olhos dos urzais ainda sobre eles, um silêncio abafado que antecipava a catástrofe.
Mais tarde, naquela manhã, enquanto caminhavam com dificuldade pela turfa musgosa, Wulfgar estacou de repente e arremessou Garra de Palas contra um pequeno
bosque de árvores enegrecidas.
O homúnculo dos brejos, pois esse era realmente o alvo do bárbaro, cruzou os braços defensivamente à sua frente, mas o martelo de guerra mágico o atingiu
com força suficiente para rachar o monstro ao meio. Seus companheiros assustados, quase uma dezena deles, abandonaram suas posições e desapareceram nos urzais.
- Como é que você sabia? - perguntou Régis, pois estava certo de que o bárbaro mal havia olhado para o arvoredo.
Wulfgar chacoalhou a cabeça, sinceramente ignaro do que o havia impelido. Drizzt e Bruenor compreenderam e aprovaram. Estavam todos operando por instinto
agora, e a exaustão levava suas mentes para muito além do pensamento racional e consistente. Os reflexos de Wulfgar continuavam no mesmo nível de delicada precisão.
Ele poderia ter captado uma insinuação de movimento com o canto dos olhos, tão minúscula que sua mente consciente sequer o teria registrado. Mas seu instinto de
sobrevivência reagira. O anão e o drow trocaram olhares de aprovação, dessa vez já não tão surpresos com a contínua demonstração de maturidade do bárbaro como guerreiro.
O dia foi ficando insuportavelmente quente, o que aumentava o desconforto. Tudo o que queriam fazer era desabar e deixar a fadiga dominá-los.
Mas Drizzt os impelia, sempre em frente, à procura de mais um ponto defensável, apesar de duvidar que eles conseguissem encontrar outro tão adequado quanto
o último. Mesmo assim, sobrara óleo suficiente para sobreviverem a mais uma noite caso conseguissem defender uma pequena trincheira tempo suficiente para tirar máximo
proveito das chamas. Qualquer elevação, até mesmo um bosque, já bastaria.
O que eles encontraram, porém, foi outro brejo, estendendo-se até onde a vista alcançava em todas as direções, quilômetros talvez.
- Poderíamos virar para o norte - Drizzt sugeriu a Bruenor. - É possível que, a essa altura, tenhamos seguido para leste o suficiente para nos livrarmos
dos urzais e deixarmos a zona de influência de Nesmé.
- A noite vai nos pegar ao longo da margem - Bruenor observou sombriamente.
- Poderíamos atravessar - Wulfgar sugeriu.
- Trolls gostam de água? - Bruenor perguntou a Drizzt, intrigado pelas possibilidades. O drow deu de ombros.
- Vale a pena tentar, então! - proclamou Bruenor.
- Juntem alguns troncos - instruiu Drizzt. - Não percam tempo amarrando-os: podemos fazer isso na água, se for preciso.
Fazendo os troncos flutuarem como bóias ao lado deles, deslizaram para dentro das águas frias e estagnadas do imenso brejo.
Apesar de não estarem entusiasmados com a sensação de que ventosas lamacentas os aspiravam a cada passo, Drizzt e Wulfgar descobriram que era possível caminhar
em muitos pontos e impelir a jangada improvisada num ritmo constante. Régis e Bruenor, baixos demais para a água, estendiam-se de través nos troncos. Por fim, eles
começaram a se sentir mais à vontade com a quietude lúgubre do brejo e aceitaram a rota aquática como um descanso tranqüilo.
O retorno à realidade foi repentino.
A água pareceu explodir, e três formas semelhantes a trolls os atacaram numa súbita emboscada. Régis, quase adormecido sobre seu tronco, foi atirado n'água.
Wulfgar tomou uma pancada no peito antes que conseguisse preparar Garra de Palas, mas ele não era um halfling e mesmo a força considerável do monstro não foi capaz
de atirá-lo para trás. O troll que se ergueu diante do vigilante drow encontrou as duas cimitarras em ação antes que sua cabeça tivesse sequer deixado a água.
A batalha se revelou tão furiosa quanto fora abrupto seu início. Exasperados pelas contínuas exigências dos implacáveis urzais, os amigos reagiram ao assalto
com um contra-ataque de fúria inigualável. O troll do drow foi feito em pedaços antes mesmo que conseguisse ficar de pé, e Bruenor teve tempo suficiente para se
preparar e atacar o monstro que derrubara Régis.
O troll de Wulfgar, embora desferisse uma segunda pancada logo depois da primeira, foi atingido por uma seqüência feroz de golpes que jamais teria esperado.
Não sendo uma criatura inteligente, seu raciocínio e sua experiência em batalha limitados levaram-no a acreditar que o adversário não deveria ter continuado de pé
e pronto para retaliar depois de ter recebido dois golpes pesados.
Sua percepção, porém, foi pequeno consolo quando Garra de Palas fez o monstro afundar novamente.
Régis retornou à superfície, depois lançou um braço por cima do tronco. Um dos lados de seu rosto brilhava com um vergão e uma esfoladura de aparência dolorosa.
- O que eram essas coisas? - Wulfgar perguntou ao drow.
- Algum tipo de troll - concluiu Drizzt, ainda desferindo estocadas na forma imóvel que jazia diante dele sob a água.
Wulfgar e Bruenor compreenderam por que o drow continuava atacando. Subitamente apavorados, eles voltaram a golpear as formas que jaziam ao lado deles, esperando
mutilar os cadáveres o bastante para que pudessem estar a quilômetros dali antes que as coisas ressuscitassem mais uma vez.
Sob a superfície do brejo, na serena solidão das águas escuras, as pancadas metódicas do machado e do martelo perturbaram o sono de outros habitantes. Um
deles, em particular, dormira durante mais de uma década, sem ser incomodado por nenhum dos potenciais perigos que se ocultavam nas redondezas, seguro por saber-se
supremo.
Tonto e extenuado pelo golpe que recebera, como se a inesperada emboscada tivesse forçado seu espírito para além do ponto de ruptura, Régis desabou indefeso
sobre o tronco e imaginou se ainda teria condições de lutar. Ele não percebeu quando o tronco começou a derivar de leve, impelido pela brisa quente dos urzais. Dirigido
pelas raízes expostas de uma pequena fileira de árvores, o tronco flutuou livremente rumo às águas cobertas de nenúfares de uma tranqüila laguna.
Régis se espreguiçou com indolência, consciente apenas em parte da mudança no ambiente. Ele ainda ouvia indistintamente, ao fundo, a conversa de seus amigos.
Entretanto, ele amaldiçoou seu descuido e lutou contra o domínio teimoso da letargia assim que a água começou a se agitar diante dele. Uma forma púrpura e
coriácea rompeu a superfície e, então, ele viu a imensa bocarra circular com as terríveis fileiras de dentes afiados.
Régis, agora ereto, não gritou nem esboçou a menor reação, fascinado pelo espectro da própria morte que pairava diante dele.
Um verme gigante.
- Achei que a água fosse ao menos nos oferecer alguma proteção contra aquelas coisas imundas - gemeu Wulfgar, dando uma última pancada no cadáver do
troll que jazia submerso diante dele.
- Pelo menos o deslocamento é mais fácil - Bruenor interveio. - Junte os troncos e vamos em frente. Não dá prá saber quantos parentes desses três aí
estão espreitando a área.
- Não tenho o menor desejo de ficar e contar - replicou Wulfgar. Ele olhou ao redor, perplexo, e perguntou - Onde está Régis?
Foi a primeira vez em meio à confusão da luta que um deles notou que o halfling flutuara para longe. Bruenor começou a chamar por ele, mas Drizzt tapou-lhe
a boca com a mão.
- Escute - ele disse.
O anão e Wulfgar ficaram imóveis e aguçaram os ouvidos na direção para a qual o drow agora olhava atentamente. Passado um instante, eles ouviram a voz trepidante
do halfling.
- ... é mesmo uma linda jóia - eles ouviram, e concluíram imediatamente que Régis estava usando o pingente para se livrar de alguma encrenca.
A gravidade da situação ficou evidente no mesmo instante, pois Drizzt havia distinguido algo por entre o borrão de imagens que via através de uma fileira
de árvores, cerca de trinta metros a oeste.
- Um verme! - ele sussurrou para os companheiros. - Mais descomunal que qualquer coisa que eu já tenha visto! - Ele indicou a Wulfgar uma árvore alta,
depois estabeleceu um trajeto para flanquear a laguna pelo sul, tirando a estátua de ônix da mochila e chamando por Guenhwyvar. Eles precisariam de toda a ajuda
possível contra aquele monstro.
Mergulhando na água, Wulfgar chegou facilmente à fileira de árvores e começou a subir por uma delas, a cena agora clara diante dele. Bruenor o seguiu, mas
esgueirou-se por entre as árvores, afundando-se cada vez mais no brejo, e posicionou-se do outro lado.
- E tem mais - negociava Régis, alteando a voz, esperando que seus amigos o ouvissem e salvassem. Mantinha o rubi hipnótico girando na ponta da corrente.
Ele não pensou nem por um instante que o monstro primitivo fosse capaz de entendê-lo, mas a criatura parecia fascinada o bastante pelas cintilações da jóia para
se abster de devorá-lo, ao menos momentaneamente.
Na verdade, a magia do rubi era de pouca utilidade contra a criatura. Os vermes gigantes não possuíam mentes dignas de menção e os encantos não exerciam qualquer
efeito sobre eles. Mas o imenso verme, como se não estivesse realmente faminto, ficou fascinado pela dança da luz e permitiu que Régis continuasse com a brincadeira.
Drizzt se colocou em posição um pouco abaixo da fileira de árvores, o arco agora em suas mãos, enquanto Guenhwyvar sorrateiramente contornava a retaguarda
do monstro. Drizzt viu Wulfgar equilibrado no alto da árvore acima de Régis, pronto para saltar e agir. O drow não via Bruenor, mas sabia que o astucioso anão encontraria
uma maneira de se tornar eficaz.
Por fim, o verme se cansou da brincadeira com o halfling e sua jóia rodopiante. Ouviu-se uma repentina inspiração e o chiado do ar entrando em contato com
a saliva ácida.
Reconhecendo o perigo, Drizzt agiu primeiro, conjurando um globo de escuridão ao redor do tronco do halfling. Régis, a princípio, pensou que as trevas repentinas
sinalizassem o fim de sua vida, mas compreendeu tudo assim que a água gelada lhe atingiu o rosto e o envolveu quando ele rolou languidamente para longe do tronco.
O globo confundiu o monstro por um instante, mas a fera expeliu uma golfada de seu ácido mortífero assim mesmo; a substância repulsiva chiou ao atingir a
água e fez o tronco irromper em chamas.
Wulfgar saltou, lançando-se intrepidamente no ar e gritando "Tempus!", as pernas em movimento, mas tendo o braço erguido e o martelo de guerra inteiramente
sob controle e pronto para atacar.
O verme desviou a cabeça para escapar ao bárbaro, mas não reagiu rápido o bastante. Garra de Palas despedaçou-lhe o lado da cara, rasgou-lhe o couro violáceo
e arrancou-lhe o perímetro externo da boca, esmigalhando dentes e ossos. Wulfgar dera tudo de si naquele golpe poderoso e não podia imaginar a enormidade de seu
sucesso ao cair de barriga na água gelada, sob a escuridão do drow.
Enfurecido pela dor e subitamente mais ferido do que jamais estivera, o grande verme emitiu um rugido que rachou árvores e fez com que criaturas dos urzais
há quilômetros dali corressem em busca de abrigo. Um arco percorreu-lhe o corpo de quinze metros de comprimento, para cima e para baixo, num furor contínuo que lançou
grandes jatos d'água no ar.
Drizzt se revelou então, a quarta flecha já pronta na corda do arco antes que a primeira sequer tivesse atingido o alvo. O verme urrou de agonia mais uma
vez e atacou o drow, liberando uma segunda golfada de ácido.
Mas o elfo ágil desaparecera muito antes que o ácido se espalhasse com um chiado pela água. Bruenor, enquanto isso, afundara completamente na água, caminhando
às cegas em direção à fera. Quase esmagado na lama pelas revoluções frenéticas do verme, ele emergiu logo atrás de uma das voltas do corpo da criatura. A largura
do torso compacto da criatura tinha o dobro da sua altura, mas o anão não hesitou e deu com o machado no couro resistente.
Guenhwyvar, então, saltou sobre as costas do monstro e percorreu sua extensão, empoleirando-se sobre a cabeça da criatura. As garras do gato se enterraram
nos olhos do verme antes que este tivesse tempo de reagir aos novos atacantes.
Drizzt retesou o arco, mas sua aljava estava quase vazia e uma dezena de hastes emplumadas se projetava da boca e da cabeça do verme. A fera decidiu se concentrar
em Bruenor, pois o machado selvagem do anão infligia as feridas mais graves. Mas antes que o verme conseguisse se revirar sobre o anão, Wulfgar emergiu da escuridão
e arremessou seu martelo de guerra. Garra de Palas atingiu novamente a bocarra com um baque surdo, e o osso enfraquecido rachou. Ossos e gotas ácidas de sangue chiaram
ao cair no brejo e o verme rugiu de agonia e protesto uma terceira vez.
Os amigos não se compadeceram. As flechas do drow atingiram o alvo numa série contínua. As garras do gato se enterravam cada vez mais fundo na carne. O
machado do anão cortava e talhava, fazendo com que pedaços de couro flutuassem para longe. E Wulfgar batia continuamente.
O verme gigante vacilou. Não conseguia retaliar. Em meio à onda de vertiginosa escuridão que rápido se precipitou sobre ele, o monstro estava demasiado ocupado
em meramente manter seu teimoso equilíbrio. Tinha a boca escancarada e um olho havia sido arrancado. Os golpes implacáveis do anão e do bárbaro haviam atravessado
seu couro protetor, e Bruenor grunhiu com prazer selvagem quando seu machado finalmente se enterrou na carne exposta.
Um súbito espasmo do monstro fez Guenhwyvar cair no brejo e arremessou Bruenor e Wulfgar longe. Os amigos nem mesmo tentaram voltar, sabendo que a tarefa
fora completada. O verme estremeceu e se contorceu em seu último afã de vida.
Então, tombou no brejo, para dormir o sono mais longo que jamais conhecera: o sono infinito da morte.


12. A ÚLTIMA MARCHA

O globo de escuridão que se dissipava encontrou Régis mais uma vez agarrado ao seu tronco - que agora não passava de um pedaço negro de carvão - e a chacoalhar
a cabeça.
- Está além de nossas forças - ele suspirou. - Não vamos conseguir.
-Tenha fé, Ronca-bucho - consolou-o Bruenor, chapinhando pela água para se juntar ao halfling. - A gente 'tá fazendo história, prá contar aos filhos dos nossos
filhos, e prá outras pessoas contarem quando a gente morrer!
- Você quer dizer hoje, então? - cortou Régis. - Ou talvez sobreviva mos hoje para morrermos amanhã.
Bruenor riu e agarrou o tronco.
- Ainda não, meu amigo - ele tranqüilizou Régis com um sorriso audaz.
- Não até eu resolver meus assuntos!
Drizzt, ao tomar providências para recuperar suas flechas, notou o abandono com que Wulfgar se recostava ao corpo do verme. De longe, achou que o jovem bárbaro
estava simplesmente exausto, mas, ao se aproximar, começou a desconfiar de algo mais sério. Wulfgar claramente poupava uma perna, como se esta - ou talvez a região
lombar - estivesse machucada.
Assim que notou o olhar preocupado do drow, Wulfgar se endireitou estoicamente.
- Vamos andando - ele sugeriu, afastando-se na direção de Bruenor e Régis e fazendo o possível para disfarçar o fato de que coxeava.
Drizzt não o questionou. O rapaz era feito de uma substância tão inflexível quanto a tundra no meio do inverno, demasiado altruísta e orgulhoso para admitir
um ferimento quando nada se ganharia com tal admissão. Seus amigos não poderiam esperar até que ele sarasse e certamente não conseguiriam carregá-lo, e assim ele
afastava a dor com um esgar e seguia adiante penosamente.
Mas Wulfgar estava realmente ferido. Ao espadanar na água depois de cair da árvore, torcera gravemente as costas. No calor da batalha, a adrenalina correndo
nas veias, ele não sentira a dor excruciante. Mas, agora, todo passo era difícil.
Drizzt o notou com a mesma clareza com que via o desespero no rosto normalmente jovial de Régis, ou a exaustão que fazia o anão trazer baixo o machado,
apesar da fanfarronice otimista de Bruenor. Com os olhos, ele percorreu os urzais, que pareciam se estender pela eternidade em todas as direções, e perguntou-se,
pela primeira vez, se ele e seus companheiros haviam realmente encontrado um desafio além das próprias forças.
Guenhwyvar não havia se ferido na batalha - estava só um pouco abalada -, mas Drizzt, reconhecendo a amplitude limitada de movimento da pantera naquele brejo,
mandou-a de volta ao seu próprio plano. Ele teria preferido manter a circunspecta pantera naquele momento. Mas a água era profunda demais para o gato, e a única
maneira de Guenhwyvar continuar em movimento teria sido saltando de uma árvore a outra. Drizzt sabia que não daria certo. Ele e os amigos teriam de continuar, sozinhos.
Recorrendo ao próprio âmago para fortalecer sua determinação, os companheiros completaram o serviço, o drow a inspecionar a cabeça do verme para recuperar
qualquer uma das vinte flechas que havia disparado, sabendo muito bem que provavelmente precisaria delas de novo antes de saírem dos urzais, enquanto os outros três
recuperavam o resto dos troncos e das provisões.
Pouco depois, os amigos flutuavam pelo brejo com o mínimo tolerável de esforço físico, lutando a cada minuto para manter suas mentes alertas ao perigoso ambiente.
Com o calor do dia, porém - o mais quente até então -, e o embalo suave dos troncos na água tranqüila, todos, à exceção de Drizzt, pegaram no sono, um a um.
O drow manteve a jangada improvisada em movimento e permaneceu vigilante. Eles não poderiam se permitir o menor atraso ou lapso. Por sorte, o alagado se abriu
depois da laguna e Drizzt teve de lidar com poucas obstruções. Depois de algum tempo, o brejo se tornou um grande borrão para ele, e seus olhos cansados registravam
poucos detalhes, só os contornos gerais e os movimentos inesperados nos juncos.
Mas ele era um guerreiro, com reflexos rápidos e excepcional disciplina. Os trolls aquáticos atacaram novamente e o minúsculo lampejo de consciência que restava
a Drizzt Do'Urden o convocou de volta à realidade a tempo de negar aos monstros a vantagem da surpresa.
Assim que ele os chamou, Wulfgar e Bruenor também despertaram, sobressaltados, as armas nas mãos. Apenas dois trolls se ergueram para enfrentá-los dessa vez,
e os três os despacharam em poucos e breves segundos.
Régis dormiu durante todo o incidente.
E veio o frescor da noite, dispersando misericordiosamente as ondas de calor. Bruenor tomou a decisão de seguir em frente, sempre com dois deles de pé, empurrando,
enquanto os outros dois descansavam.
- Régis não consegue empurrar - ponderou Drizzt. - Ele é baixo demais para o brejo.
- Então, deixe-o sentado e de guarda enquanto eu empurro - ofereceu Wulfgar estoicamente. - Não preciso de ajuda.
- Então 'cês dois ficam com o primeiro turno - disse Bruenor. - Ronca-bucho dormiu o dia inteiro. Ele deve dar pro gasto durante uma ou duas horas!
Drizzt subiu aos troncos pela primeira vez naquele dia e repousou a cabeça sobre a mochila. Contudo, não fechou os olhos. O plano de Bruenor de trabalhar
em turnos parecia razoável, mas pouco prático. Na noite escura, somente ele seria capaz de guiá-los e de se manter alerta à aproximação do perigo. Várias vezes,
enquanto Wulfgar e Régis cumpriam seu turno, o drow ergueu a cabeça e deu ao halfling algumas dicas sobre os arredores e conselhos quanto ao melhor rumo a se tomar.
Seria mais uma noite sem sono para Drizzt. Ele jurou descansar pela manhã, mas, ao romper da aurora, descobriu que as árvores e os juncos novamente se debruçavam
sobre eles. A própria ansiedade dos urzais os encurralava, como se um único ser consciente os vigiasse e tramasse contra sua passagem.
A vasta extensão de água se mostrou, na verdade, uma vantagem para os companheiros. O deslocamento sobre a superfície vítrea era mais fácil que caminhar e,
apesar dos perigos que os espreitavam, nada encontraram de hostil depois da segunda confusão com os trolls aquáticos. Quando o caminho que seguiam finalmente retornou
à terra enegrecida, após dias e noites de deriva, eles desconfiaram que poderiam ter percorrido a maior parte da distância até o outro lado dos Pântanos Eternos.
Assim que Régis subiu na árvore mais alta que foram capazes de encontrar - pois o halfling era o único leve o bastante para chegar aos galhos mais elevados (principalmente
desde que a viagem praticamente dissipara a obesidade de seu ventre) -, suas esperanças se confirmaram. Bem longe, no horizonte oriental, mas não mais do que a um
ou dois dias de viagem, Régis viu árvores: não os pequenos bosques de bétulas ou as árvores pantaneiras cobertas de musgo dos urzais, mas uma floresta densa de carvalhos
e olmos.
Eles seguiram em frente com um vigor renovado nos passos, apesar da exaustão. Caminhavam em terra firme mais uma vez e sabiam que teriam de acampar novamente
com as hordas de trolls errantes a espreitá-los, mas, agora, também sabiam que a provação dos Pântanos Eternos estava quase no fim. Não tinham a intenção de deixar
que os abomináveis habitantes do lugar viessem a derrotá-los naquela última etapa da viagem.
- Devíamos interromper nossa jornada por hoje - sugeriu Drizzt, embora o sol estivesse a mais de uma hora do horizonte ocidental. O drow já percebera
a presença que se congregava, pois os trolls despertavam de seu des- canso diurno e captavam os estranhos odores dos visitantes. - Devemos escolher cuidadosamente
o local do acampamento. Os urzais ainda não nos libertaram de seu domínio.
A gente vai perder uma hora ou mais - declarou Bruenor, mais para revelar o lado negativo do plano do que para discutir. O anão se lembrava muito
bem da terrível batalha no outeiro e não tinha o menor desejo de repetir aquele esforço colossal.
- Recuperaremos o tempo perdido amanhã - ponderou Drizzt. - Nossa necessidade no momento é sobreviver.
Wulfgar concordava inteiramente.
- O cheiro dessas feras hediondas fica mais forte a cada passo - disse ele -, de todos os lados. Não podemos fugir. Então, vamos lutar.
- Mas nos nossos termos - acrescentou Drizzt.
- Lá - sugeriu Régis, apontando um cômoro densamente coberto de vegetação à esquerda deles.
- É exposto demais - disse Bruenor. - Os trolls vão escalar aquilo com a mesma facilidade que a gente, e serão muitos de uma vez só para que a gente
impeça eles!
- Não enquanto estiver queimando - rebateu Régis, com um sorriso furtivo, e seus companheiros acabaram concordando com a lógica simples.
Eles passaram o restante das horas de luz preparando suas defesas. Wulfgar e Bruenor trouxeram tantos galhos secos quanto conseguiram encontrar, dispondo-os
em linhas estratégicas para estender o diâmetro da área-alvo, enquanto Régis limpava um aceiro no topo do cômoro e Drizzt mantinha cautelosa vigilância. O plano
de defesa era simples: deixar que os trolls chegassem até eles e então atear fogo a todo o cômoro fora dos limites do acampamento.
Somente Drizzt reconheceu o ponto fraco do plano, apesar de não ter nada melhor a oferecer. Ele combatera trolls antes dos urzais e compreendia a teimosia
dos monstros perversos. Quando as chamas da emboscada finalmente se extinguissem - muito antes do raiar do novo dia -, ele e seus amigos ficariam indefesos contra
os trolls remanescentes. Sua única esperança era a carnificina das chamas dissuadir outros inimigos.
Wulfgar e Bruenor teriam preferido fazer algo mais, pois as lembranças do outeiro ainda eram demasiadamente vividas para que se satisfizessem com qualquer
tipo de defesa erguida contra os urzais. Mas o crepúsculo chegou, trazendo consigo olhos ávidos que se fixavam neles. Juntaram-se a Régis e a Drizzt no acampamento
no topo do cômoro e agacharam-se em ansiosa espera.
Passou-se uma hora - que, aos amigos, pareceram dez - e a noite ficou mais escura.
- Onde estão eles? - indagou Bruenor, batendo o machado nervosamente na palma da mão, traindo uma impaciência atípica no veterano combatente.
- Por que eles não atacam? - concordou Régis, e sua ansiedade beirava o pânico.
- Tenha paciência e considere-se feliz - ofereceu Drizzt. - Quanto mais tempo se passar antes da batalha, melhores serão nossas chances de ver o amanhecer.
Pode ser que ainda não nos tenham encontrado.
- 'Tá mais com jeito de estarem se reunindo prá atacar a gente todos ao mesmo tempo - disse Bruenor sombriamente.
- Isso é bom - disse Wulfgar, confortavelmente agachado e a perscrutar a obscuridade. - Que o fogo prove o quanto puder dessa raça imunda!
Drizzt notou o efeito tranqüilizante que a força e a determinação do homenzarrão tinham sobre Régis e Bruenor. O machado do anão interrompeu seu salutar nervoso
e veio descansar serenamente ao lado de Bruenor, preparado para a tarefa por vir. Mesmo Régis, o mais relutante dos guerreiros, ergueu sua pequena maça com um rosnado,
os nós dos dedos a empalidecer com a pressão.
Mais uma hora se passou.
A demora não relaxou totalmente a guarda dos companheiros. Eles sabiam que o perigo agora estava muito próximo: sentiam o fedor que se concentrava nas brumas
e nas trevas além do alcance da visão.
- Acenda as tochas - Drizzt disse a Régis.
- Vamos atrair todos os monstros a quilômetros daqui prá cima da gente! - argumentou Bruenor.
- Eles já nos encontraram - respondeu Drizzt, apontando a base do cômoro, apesar de os trolls que ele via a se mover nas trevas estarem além da limitada
visão noturna de seus amigos. - A visão das tochas pode mantê-los longe e nos ganhar algum tempo.
Enquanto ele falava, entretanto, o primeiro troll escalou o cômoro. Bruenor e Wulfgar aguardaram, agachados, até que o monstro estivesse praticamente em cima
deles, então saltaram com fúria inesperada, machado e martelo de guerra à frente, numa rajada brutal de golpes bem colocados. O monstro caiu na mesma hora.
Régis acendera uma das tochas. Ele a jogou para Wulfgar e o bárbaro ateou fogo ao corpo caído do troll. Dois outros trolls que haviam chegado ao pé do cômoro
correram de volta à bruma ao ver as odiadas chamas.
- Ah, foi muito cedo! - gemeu Bruenor. - A gente não vai pegar um que seja com as tochas bem à vista!
- Se as tochas os mantiverem longe, então as chamas terão nos servido muito bem - insistiu Drizzt, apesar de saber que não deveria esperar por esse
acontecimento.
De repente, como se os próprios urzais tivessem cuspido sua peçonha, um imenso exército de trolls cobriu toda a base do cômoro. Eles avançavam de modo hesitante,
nada entusiasmados com a presença do fogo. Mas avançavam inexoravelmente, subindo de rastos a colina, salivando de desejo.
- Paciência - Drizzt disse aos companheiros, sentindo a inquietação deles. - Mantenham-nos atrás do aceiro, mas deixem tantos quantos quiserem penetrar
os círculos de acendalha.
Wulfgar correu até a orla do círculo, brandindo sua tocha ameaçadoramente.
Bruenor se posicionou mais atrás, com os dois últimos frascos de óleo nas mãos, trapos embebidos em óleo a pender das biqueiras, e um sorriso selvagem no
rosto.
- A estação 'tá um pouco verde pr'uma queimada - ele disse a Drizzt com uma piscadela. - Pode ser que o fogo precise de uma mãozinha prá começar!
Os trolls se apinharam sobre o cômoro em volta deles; a horda salivante avançava com determinação e as fileiras se engrossavam a cada passo.
Drizzt agiu primeiro. Com a tocha na mão, ele correu até a acendalha e a incendiou. Wulfgar e Régis juntaram-se a ele logo atrás, interpondo o maior número
possível de focos de fogo entre eles e os trolls que avançavam. Bruenor atirou sua tocha sobre as primeiras fileiras de monstros, esperando surpreendê-los em meio
a dois incêndios, depois arremessou seus frascos de óleo nos grupos de maior concentração.
As chamas saltaram no céu noturno, iluminando a área próxima, mas aumentaram a escuridão além de sua zona de influência. Amontoados como estavam, os trolls
não conseguiam facilmente virar e fugir, e o fogo, como se o compreendesse, precipitava-se sobre eles metodicamente.
Quando um deles começou a arder, sua dança frenética espalhou ainda mais a luz pelos limites do cômoro.
Por todos os vastos urzais, as criaturas interromperam suas atividades noturnas e repararam na crescente coluna de chamas e nos gritos agudos dos trolls agonizantes
transportados pelo vento.
Acuados no topo do cômoro, os companheiros se viram praticamente sobrepujados pelo grande calor. Mas o fogo definhou rapidamente com seu banquete de volátil
carne de troll e começou a diminuir, deixando um fedor revoltante no ar e mais uma cicatriz enegrecida de carnificina nos Pântanos Eternos.
Os companheiros prepararam mais tochas para a fuga. Restavam muitos trolls para lutar, mesmo depois do fogo, e os amigos não tinham a menor esperança de
resistir consumido o combustível das chamas. Devido à insistência de Drizzt, eles aguardaram pela primeira rota de fuga livre na encosta oriental do cômoro e, quando
esta se abriu, arremeteram noite adentro, atravessando intempestivamente os grupos iniciais de trolls desavisados com um assalto inesperado que dispersou os monstros
e deixou vários em chamas.
Noite adentro eles correram, atravessando às cegas a lama e a sarça, esperando que a pura sorte evitasse que fossem engolidos por algum brejo sem fundo. Tão
completa fora a surpresa da emboscada no cômoro que, durante vários minutos, não ouviram sinais de perseguição.
Mas os urzais não levaram muito tempo para responder. Gemidos e gritos agudos logo ecoavam ao redor deles.
Drizzt assumiu a liderança. Confiando em seus instintos tanto quanto na visão, ele desviava seus amigos para a esquerda e para a direita, seguindo pelas áreas
de menor resistência aparente, embora mantivesse o curso rumo ao leste. Esperando tirar proveito do único medo dos monstros, iam ateando fogo a qualquer coisa que
queimasse.
Não encontraram nada diretamente ao longo da noite, mas os gemidos e os passos surdos logo atrás deles não cederam. Logo começaram a desconfiar que uma inteligência
coletiva agia contra eles, pois, embora estivessem obviamente superando os trolls que os cercavam por trás e pelos lados, mais monstros estavam sempre aguardando
para se juntar à perseguição. Algo maligno impregnava a região, como se os próprios Pântanos Eternos fossem os verdadeiros inimigos. Os trolls estavam por toda a
parte, e esse era o perigo imediato, mas mesmo que todos os trolls e outros habitantes dos urzais fossem mortos ou repelidos, os amigos desconfiavam que o lugar
continuaria desagradável.
Rompeu o dia, mas isso não trouxe alívio.
- A gente irritou os próprios urzais! -Bruenor gritou ao perceber que desta vez a perseguição não terminaria com tanta facilidade. - A gente não vai ter descanso
até deixar prá trás este lugar imundo!
Seguiram em frente, vendo, enquanto ziguezagueavam pelo lugar, as formas esguias e trôpegas que se atiravam sobre eles e aquelas que corriam lado a lado ou
logo atrás, assustadoramente visíveis e à espera apenas de que alguém tropeçasse. Brumas densas se fecharam sobre eles, dificultando-lhes a orientação, mais uma
prova, para seus temores, de que os próprios urzais haviam se erguido contra eles.
Além de todo o pensamento racional, além de toda a esperança, eles continuaram, forçando a si próprios a ultrapassar seus limites físicos e emocionais por
falta de alternativas.
Quase inconsciente de suas ações, Régis tropeçou e caiu. Sua tocha rolou para longe, mas ele nem reparou. Ele sequer era capaz de imaginar como se levantar,
ou mesmo conceber que havia caído! Bocas famintas precipitaram-se sobre ele, um banquete certo.
O monstro esfaimado foi frustrado, porém, quando Wulfgar passou e tomou o halfling em seus braços. O imenso bárbaro chocou-se com o troll, derrubando-o, mas
manteve o equilíbrio e seguiu em frente.
Drizzt agora abandonava todas as táticas sutis, compreendendo a situação que se desenvolvia rapidamente atrás dele. Era obrigado, inúmeras vezes, a diminuir
o passo para ajudar Bruenor, que tropeçava, e ele duvidava da capacidade de Wulfgar de seguir em frente carregando o halfling.
O bárbaro exausto obviamente não cogitaria erguer Garra de Palas para se defender. Sua única chance era correr direto até a fronteira. Um brejo extenso os
derrotaria, uma ravina de buxos os aprisionaria e, mesmo que nenhuma barreira natural lhes bloqueasse o caminho, eram poucas as esperanças de escapar aos trolls
por muito mais tempo. Drizzt temia a difícil decisão que ele via próxima: salvar a si mesmo, pois somente ele parecia ter alguma possibilidade de escapar, ou permanecer
ao lado de seus amigos condenados numa batalha que não conseguiriam vencer.
Eles seguiram em frente e fizeram progresso consistente durante mais uma hora, mas o próprio tempo começou a afetá-los. Drizzt ouvia Bruenor murmurando atrás
dele, perdido em algum delírio de sua infância no Salão de Mitral. Wulfgar, com o halfling inconsciente, seguia logo atrás, recitando uma oração para um de seus
deuses, usando o ritmo dos cânticos para manter os pés numa cadência constante.
Então Bruenor caiu, derrubado por um troll que havia se aproximado inconteste.
A decisão fatal se revelou facilmente para Drizzt. Ele fez a volta, as cimitarras prontas. Não conseguiria carregar o anão robusto nem derrotar a horda de
trolls que se aproximava.
- E assim termina a nossa história, Bruenor Martelo de Batalha! - ele gritou. - Na batalha, como havia de ser!
Wulfgar, tonto e ofegante, não escolheu conscientemente sua ação seguinte. Foi simplesmente uma reação à cena diante dele, uma manobra perpetrada pelos instintos
teimosos de um homem que se recusava a ceder. Ele cambaleou até o anão caído, que a essa altura havia se erguido penosamente até se apoiar nas mãos e nos joelhos,
e o apanhou com o braço livre. Dois trolls os encurralavam.
Drizzt Do'Urden estava por perto, e o ato heróico do jovem bárbaro inspirou o drow. Chamas fervilhantes dançaram novamente nos seus olhos cor de lavanda,
e as espadas rodopiaram em sua própria dança de morte.
Os dois trolls esticaram os braços para usar as unhas em suas vítimas indefesas mas, depois de um único passe rápido da parte de Drizzt, não restavam braços
aos monstros com os quais agarrar.
- Continue correndo! - Drizzt gritou, protegendo a retaguarda do grupo e estimulando Wulfgar a seguir em frente com uma torrente constante de palavras
animadoras. Toda a fadiga abandonou o drow naquela última explosão de ânsia guerreira. Ele saltitava e lançava desafios aos trolls. Qualquer um que se aproximasse
demais encontrava a mordacidade de suas espadas.
Grunhindo a cada passo doloroso, os olhos a arder por causa do próprio suor, Wulfgar arremeteu adiante, às cegas. Não pensava em quanto tempo conseguiria
manter aquele ritmo com o peso que carregava. Não pensava na morte certa e horrível que o seguia de perto por todos os lados e provavelmente havia também lhe interceptado
a rota de fuga. Não pensava na dor terrível em suas costas machucadas nem na nova ardência que sentia agudamente no jarrete. Concentrava-se apenas em colocar uma
das botas pesadas diante da outra.
Eles pisotearam algumas sarças, desceram uma elevação e contornaram outra. Seus corações se animaram e esmoreceram, ao mesmo tempo pois diante deles assomava
a floresta imaculada que Régis avistara, o fim dos Pântanos Eternos. Mas, entre eles e as matas, aguardava uma densa linha de trolls, com três fileiras de largura.
O domínio dos Pântanos Eternos não era fácil de romper.
- Continue - Drizzt disse ao pé do ouvido de Wulfgar, num murmúrio baixo, como se temesse que os urzais pudessem ouvi-lo. - Ainda me resta um pequeno
truque.
Wulfgar viu a linha diante dele mas, mesmo em seu estado atual, a confiança que tinha em Drizzt sobrepujou todas as objeções de seu bom senso. Acomodando
Bruenor e Régis numa posição mais confortável, abaixou a cabeça e urrou para as feras, gritando com a fúria induzida pelo frenesi.
Quando ele já quase os tinha alcançado, com Drizzt alguns passos atrás - os trolls a salivar, acotovelados para refrear-lhe o ímpeto -, o drow deu sua última
cartada.
Chamas mágicas brotaram do bárbaro. Elas não eram capazes de queimar nem Wulfgar nem os trolls mas, para os monstros, o espectro de um selvagem descomunal
e envolto em chamas abatendo-se sobre eles levou o pânico aos seus corações normalmente destemidos.
Drizzt cronometrou o encanto com precisão, permitindo aos trolls apenas uma fração de segundo para reagir ao imponente adversário. Como as águas diante da
proa de um navio de grande calado, eles se separaram, e Wulfgar, quase perdendo o equilíbrio devido às suas expectativas de impacto, passou aos trambolhões, com
Drizzt a saltitar junto aos seus calcanhares.
Quando os trolls se reagruparam para a perseguição, as vítimas já escalavam a última elevação que levava para fora dos Pântanos Eternos e para dentro da
floresta - um bosque sob o olhar protetor da Senhora Alustriel e dos garbosos Cavaleiros em Prata.
Drizzt voltou-se sob os ramos da primeira árvore, atento aos sinais de perseguição. Uma neblina densa retornava aos urzais num movimento rodopiante, como
se aquela região abominável tivesse batido a porta logo que passaram. Nenhum troll apareceu.
O drow se afundou contra a árvore, demasiado exausto para sorrir.

13. Lá no Céu tem Mil Estrelas

Wulfgar depositou Régis e Bruenor sobre um leito de musgos numa pequena clareira um pouco além da orla da floresta e tombou por causa da dor. Drizzt o alcançou
alguns minutos depois.
- Devemos acampar aqui - foi dizendo o drow -, mas eu preferia que nos afastássemos mais... - Ele se deteve ao ver o jovem amigo a se contorcer no
solo, levando as mãos à perna ferida, quase sobrepujado pela dor. Drizzt correu para o lado dele a fim de examinar-lhe o joelho, e seus olhos se arregalaram de espanto
e asco.
A mão de um troll, provavelmente de um dos que ele retalhara quando Wulfgar resgatou Bruenor, havia se agarrado ao bárbaro enquanto ele corria, encontrando
um nicho em seu jarrete. Um dedo provido de garra já tinha se enterrado profundamente na perna e dois outros abriam caminho naquele exato momento.
- Não olhe - Drizzt aconselhou Wulfgar. Ele procurou pelo isqueiro em sua mochila e acendeu um graveto, depois o usou para espetar a mão perversa.
Assim que a coisa começou a fumegar e a se contorcer, Drizzt a retirou da perna e a atirou ao chão. A coisa tentou fugir, mas Drizzt saltou sobre ela, espetando-a
com uma de suas cimitarras e incendiando-a completamente com o graveto incandescente.
Ele voltou a olhar para Wulfgar, admirado com a absoluta determinação que permitira ao bárbaro prosseguir com um ferimento tão feio. Mas, então, a fuga chegara
ao fim, e Wulfgar já sucumbira à dor e à exaustão. Ele jazia escarrapachado e inconsciente no chão, ao lado de Bruenor e Régis.
- Durmam bem - Drizzt disse aos três, baixinho. - Vocês merecem - Verificou cada um deles para se certificar de que não estavam gravemente feri dos.
Então, satisfeito com o fato de que todos se recuperariam, ele deu início à sua guarda vigilante.
No entanto, até mesmo o valente drow havia ultrapassado os limites de seu vigor durante a marcha através dos Pântanos Eternos, e não demorou muito para
que ele também cabeceasse de sono e se juntasse aos amigos.
Ao fim da manhã seguinte, foram despertados pelos resmungos de Bruenor.
- 'Cê esqueceu meu machado! - o anão gritava, irritado. - Não posso cortar os malditos trolls sem o meu machado!
Drizzt se espreguiçou confortavelmente, um tanto quanto revigorado, mas ainda longe de estar recuperado.
- Eu disse a você que pegasse o machado - ele disse a Wulfgar, que também se livrava do sono profundo.
- Eu fui bem claro - Drizzt ralhou, de brincadeira. - Pegue o machado e deixe o anão ingrato.
- Foi o nariz que me confundiu - replicou Wulfgar. - Mais parecido com a cabeça de um machado do que qualquer outro nariz que eu já tenha visto!
Bruenor inconscientemente olhou para a ponta de seu narigão.
- Ora! - ele resmungou. - Vou arranjar uma clava! - e, com passos pesados, sumiu floresta adentro.
- Um pouco de silêncio, por favor! - disse Régis, ríspido, quando o último vestígio de seus sonhos agradáveis esvoaçou para longe. Aborrecido por ser
despertado tão cedo, ele rolou de lado e cobriu a cabeça com o manto.
Poderiam ter chegado a Lua Argêntea naquele mesmo dia, mas uma única noite de descanso não apagaria a fadiga dos dias que haviam passado nos Pântanos Eternos
e numa estrada difícil antes disso. Wulfgar, por exemplo, com a perna e as costas machucadas, era obrigado a usar uma bengala, e o sono que Drizzt conciliara na
noite anterior fora o primeiro em quase uma semana. Ao contrário dos urzais, aquela floresta parecia bastante incorrupta. E, embora soubessem que ainda estavam nos
ermos, sentiram-se suficientemente seguros para alongar a estrada até a cidade e desfrutar, pela primeira vez desde que haviam deixado Dez-Burgos, de uma caminhada
tranqüila.
Eles deixaram a floresta no zênite do dia seguinte e cobriram as últimas milhas até Lua Argêntea. Antes do pôr do sol, venceram a última subida e, lá do alto,
avistaram o Rio Rauvin e os incontáveis torreões da cidade encantada.
Todos eles experimentaram uma sensação de esperança e alívio ao vislumbrarem aquele cenário magnífico, mas ninguém a sentiu mais intensamente que Drizzt Do'Urden.
Desde que haviam se sentado pela primeira vez para planejar a aventura, o drow alimentara a esperança de que viessem a passar por Lua Argêntea, apesar de nada fazer
para influenciar a decisão de Bruenor na escolha do trajeto.
Drizzt ouvira falar de Lua Argêntea depois de sua chegada a Dez-Burgos e, não fosse pelo fato de que encontrara um certo grau de tolerância na rude comunidade
de fronteira, ele teria retraçado seus passos imediatamente até o lugar. Famoso por aceitar todos os que ali chegassem em busca de conhecimento, não importava a
raça, o povo de Lua Argêntea oferecia ao elfo negro renegado uma verdadeira oportunidade de encontrar um lar. Inúmeras vezes ele havia considerado viajar até o lugar,
mas algo dentro dele, talvez o medo da falsa esperança e de expectativas não cumpridas, manteve-o na segurança do Vale do Vento Gélido. Portanto, quando a decisão
fora tomada em Sela Longa de que Lua Argêntea seria seu próximo destino, Drizzt se surpreendeu encarando diretamente a utopia que nunca ousara sonhar. Observando
agora, lá do alto, sua única esperança de verdadeira aceitação na superfície do mundo, ele corajosamente afastou suas apreensões.
- A Ponte da Lua - comentou Bruenor quando uma carroça lá embaixo cruzou o Rauvin, aparentemente flutuando em pleno ar. Bruenor ouvira falar da estrutura
invisível quando menino, mas nunca a tinha visto pessoalmente.
Wulfgar e Régis assistiram ao espetáculo da carroça voadora com absoluto assombro. O bárbaro sobrepujara muitos de seus medos em relação à magia durante a
estada em Sela Longa e estava verdadeiramente ansioso por explorar aquela cidade lendária. Régis ali estivera uma vez anteriormente, mas sua familiaridade com o
lugar em nada ajudava a diminuir seu alvoroço.
Apesar do cansaço, eles se aproximaram ansiosamente do posto avançado sobre o Rauvin, o mesmo posto pelo qual o grupo de Entreri passara quatro dias antes,
com os mesmos guardas que haviam dado permissão ao grupo maligno para entrar na cidade.
- Saudações - ofereceu Bruenor, num tom de voz que poderia ser considerado jovial para o austero anão. - E saibam que a visão da sua bela cidade trouxe
nova vida pro meu coração cansado.
Os guardas mal lhe deram ouvidos, concentrados no drow, que havia recolhido o capuz. Pareciam curiosos, pois nunca tinham visto realmente um elfo negro, mas
não aparentaram muita surpresa com a chegada de Drizzt.
- Vocês podem nos escoltar até a Ponte da Lua agora? - Régis perguntou depois de um período de silêncio que foi se tornando cada vez mais incômodo.
- Vocês não fazem idéia de como estamos ansiosos para ver Lua Argêntea. Ouvimos falar tanto da cidade!
Drizzt desconfiou do que estava por vir. Um nó colérico se formou em sua garganta.
- Vão embora - o guarda disse tranqüilamente. - Vocês não podem passar.
O rosto de Bruenor ficou vermelho de raiva, mas Régis interrompeu-lhe a explosão.
- Certamente nada fizemos para motivar um julgamento tão severo o halfling protestou com toda a calma. - Somos simples viajantes, não procuramos
encrenca. - A mão dele se moveu em direção ao paletó e ao rubi hipnótico, mas o cenho franzido de Drizzt pôs fim ao seu plano.
- Sua reputação parece ter mais valor que suas ações - Wulfgar observou aos guardas.
- Sinto muito - um deles replicou -, mas tenho meus deveres e costumo cumpri-los.
- Nós ou o drow? - indagou Bruenor.
- O drow - respondeu o guarda. - O resto de vocês pode ir à cidade, mas o drow não pode passar!
Drizzt sentiu as muralhas da esperança desmoronando ao seu redor. As mãos, largadas ao lado do corpo, tremiam. Ele nunca tinha experimentado tamanha dor,
pois jamais chegara a um lugar sem a expectativa da rejeição. Mesmo assim, ele conseguiu sublimar sua raiva imediata e lembrar a si mesmo de que, para todos os efeitos,
esta era a demanda de Bruenor, não a sua.
- Canalhas! - Bruenor gritou. - O elfo vale uns dez de vocês, mais até! Devo a ele minha vida umas cem vezes e 'cês acham que podem dizer que ele não
é bom o bastante prá sua maldita cidade! Quantos trolls cês já mataram com as próprias espadas?
- Acalme-se, meu amigo - Drizzt o interrompeu, completamente controlado. - Já esperava por isto. Eles não conhecem Drizzt Do'Urden. Apenas a reputação
de meu povo. E a culpa não é deles. Entrem vocês, então. Aguardarei seu retorno.
- Não! - Bruenor declarou num tom de voz que não admitiria discussões. - Se você não pode entrar, então nenhum de nós entra!
- Pense no seu objetivo, seu anão teimoso - ralhou Drizzt. - A Câmara dos Sábios fica na cidade. A nossa única esperança, quem sabe.
- Ora! - desdenhou Bruenor. - Pro Abismo com esta cidade amaldiçoada e todos os que nela vivem! Sundabar fica a menos de uma semana de caminhada. Helm,
o amigo dos anões, vai ser mais hospitaleiro, ou então sou um gnomo de barba!
- Você devia entrar - disse Wulfgar. - Não deixe sua raiva vencer nosso propósito. Mas eu fico com Drizzt. Aonde ele não puder ir, Wulfgar, filho de
Beornegar recusa-se a ir!
Mas os passos ruidosos e determinados das pernas atarracadas de Bruenor já o levavam estrada afora para longe da cidade. Régis se virou para °s outros, deu
de ombros e seguiu atrás do anão, tão leal ao drow quanto qualquer um deles.
- Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum
monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros
em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela Longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - E a história se complica ainda mais, parece - Alustriel continuou. - Você sabe que tenho
duas irmãs?
Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Storm, uma barda de renome, e Dove Garra de Falcão, uma ranger. Ambas se interessaram pelo nome de Drizzt Do'Urden: Storm, como uma lenda em desenvolvimento
ainda carente de uma canção à sua altura, e Dove... Ainda preciso discernir seus motivos. Você se tornou um herói para ela, eu acho, o epítome das qualidades que
ela, como ranger, se esforça para aperfeiçoar. Ela entrou na cidade hoje de manhã e sabia de sua chegada iminente.
- Dove é muitos anos mais jovem que eu - continuou Alustriel. - E não tão experiente na política do mundo.
- Ela poderia ter me procurado - Drizzt concluiu, enxergando as implicações temidas por Alustriel.
- Ela o fará, um dia - a senhora respondeu. - Mas não posso permiti-lo agora, não em Lua Argêntea. - Alustriel fitou-o com atenção, e seu olhar insinuava
emoções mais profundas e pessoais. - E, além disso, eu mesma teria procurado uma audiência com você, como faço agora.
As implicações de um encontro como aquele no interior da cidade pareceram óbvias para Drizzt à luz dos conflitos políticos que Alustriel insinuara.
- Um outro dia, noutro lugar talvez - ele sugeriu. - Seria um incômodo muito grande?
Ela respondeu com um sorriso:
- De modo algum.
Satisfação e ansiedade se apossaram de Drizzt ao mesmo tempo. Ele voltou a olhar para as estrelas, imaginando se algum dia descobriria inteiramente a verdade
sobre sua decisão de vir ao mundo da superfície, ou se sua vida seria eternamente um tumulto de esperanças tentadoras e expectativas despedaçadas.
Eles permaneceram em silêncio durante um bom tempo até Alustriel falar novamente.
- Vocês vieram em busca da Câmara dos Sábios - disse ela -, para descobrir se algo ali menciona o Salão de Mitral.
- Eu exortei o anão a entrar - respondeu Drizzt. - Mas ele é teimoso.
- Foi o que imaginei - riu Alustriel. - Mas não quero que minhas ações interfiram com sua tão nobre demanda. Eu vasculhei o cofre pessoal mente. Você
não faz idéia do tamanho da biblioteca! Vocês não saberiam por onde começar a procurar entre os milhares de volumes que revestem as pare des. Mas conheço o cofre
melhor do que ninguém. Descobri coisas que você e seus amigos levariam semanas para encontrar. Mas, honestamente, muito pouco foi escrito sobre o Salão de Mitral
e nada, nada mesmo, oferece mais do que uma indicação passageira sobre a sua localização geral.
- Então, talvez tenha sido melhor sermos rechaçados.
Alustriel corou de constrangimento, embora Drizzt não tivesse a intenção de parecer sarcástico com sua observação.
- Meus guardas me informaram que vocês planejam seguir em frente até Sundabar - disse a dama.
- E verdade - respondeu Drizzt -, e de lá para a Cidadela Adbar, se necessário.
- Desaconselho esse curso - disse Alustriel. - Considerando tudo o que consegui encontrar no cofre e o meu próprio conhecimento das lendas sobre os
dias em que tesouros fluíam do Salão de Mitral, meu palpite é que fica no oeste, não no leste.
- Viemos do oeste e nossa trilha, em busca dos que detêm o conhecimento sobre os salões argênteos, tem nos conduzido continuamente para leste - opôs-se
Drizzt. - Além de Lua Argêntea, as únicas esperanças que temos são Helm e Harbromm, ambos no leste.
- Pode ser que Helm tenha algo a lhes contar - concordou Alustriel. - Mas pouco descobrirão com o Rei Harbromm e os anões de Adbar. Eles próprios empreenderam
a busca para encontrar a antiga terra natal da família de Bruenor há alguns anos apenas, e passaram por Lua Argêntea em sua jornada: rumo ao oeste. Mas eles nunca
encontraram o lugar e voltaram para casa, convencidos de que foi destruído e enterrado bem fundo em alguma montanha não assinalada ou que jamais tenha existido e
não passasse de um estratagema dos mercadores sulistas para negociar seus produtos no norte.
- Você não oferece muita esperança - comentou Drizzt.
- Pelo contrário - opôs-se Alustriel. - A oeste daqui, a menos de um dia de marcha, ao longo de uma trilha não assinalada que corre ao norte do Rauvin,
fica o Forte dos Arautos, um antigo bastião de saber acumulado. Se existe alguém nos dias de hoje que pode orientá-los, é o arauto, Noite Anciã. Eu o informei sobre
vocês e ele concordou em vê-los, mas ele não recebe visitas há décadas, além de mim e alguns seletos eruditos.
- Estamos em dívida com você - disse Drizzt, com uma reverência.
- Não espere muita coisa - avisou Alustriel. - O Salão de Mitral apareceu e desapareceu no conhecimento deste mundo num piscar de olhos. Dificilmente
três gerações de anões chegaram a minerar o lugar, apesar de eu admitir que uma geração dos anões é uma quantidade considerável de tempo, e eles não eram tão liberais
em seu comércio. Só raramente permitiam que alguém visitasse as minas, se as histórias forem verdadeiras. Eles apresentavam suas obras nas trevas da noite e, para
que chegassem aos mercados, supriam-nas por meio de uma rede secreta e intricada de agentes anões.
- Eles se defenderam muito bem contra a cobiça do mundo exterior - observou Drizzt.
- Mas sua ruína veio do interior das minas - disse Alustriel. - Um perigo desconhecido que talvez ainda se esconda por lá, você deve saber.
Drizzt assentiu.
- E, ainda assim, você quer ir até lá?
- Não me importo com os tesouros, apesar de que, se forem de fato tão esplêndidos quanto Bruenor os descreve, gostaria então de dar uma olhada neles.
Mas é a demanda do anão, sua grande aventura, e eu seria realmente um amigo deplorável se não o ajudasse a completá-la.
- Dificilmente tal rótulo lhe caberia, Drizzt Do'Urden - disse Alustriel. Ela retirou um pequeno frasco de uma dobra em seu vestido. -Leve isto com
você - instruiu ela.
- O que é isto?
- Uma poção de recordação - explicou Alustriel. - Dê isto ao anão quando as respostas parecerem próximas. Mas, cuidado, os poderes da poção são violentos!
Bruenor caminhará durante algum tempo entre as lembranças do passado distante tanto quanto entre as experiências do presente.
- E estes - ela disse, retirando uma pequena bolsa da mesma dobra e entregando-a a Drizzt - são para todos vocês. Ungüento para ajudar a cicatrizar
as feridas e biscoitos que revigoram um viajante cansado.
- Meus agradecimentos e os de meus amigos - disse Drizzt.
- Diante da terrível injustiça que lhe foi imposta, são uma pequena compensação.
- Mas a preocupação de quem os oferece não foi um presente insignificante - replicou Drizzt. Ele olhou diretamente nos olhos dela, absorvendo-a com
sua intensidade. - Você renovou minha esperança, Senhora de Lua Argêntea. Você me lembrou de que há realmente uma recompensa para os que seguem a senda da consciência,
um tesouro muito maior do que as ninharias materiais que com tanta freqüência são ofertadas a homens injustos.
- E há, de fato - ela concordou. - E seu futuro lhe mostrará muitas outras mais, orgulhoso ranger. Mas, agora, metade da noite já se foi e você precisa
descansar. Nada tema, pois há quem zele por vocês esta noite. Adeus, Drizzt Do'Urden, e que a estrada adiante seja veloz e desimpedida.
Com um aceno da mão, ela desvaneceu na luz das estrelas, deixando Drizzt a se perguntar se sonhara com aquele encontro. Mas, então, as últimas palavras dela
chegaram até ele pairando na brisa suave.
- Adeus, e não desanime, Drizzt Do'Urden. Sua honra e coragem não pas sam despercebidas!
Drizzt permaneceu em silêncio durante um bom tempo. Ele se abaixou e apanhou uma flor silvestre na margem do rio, girou-a entre seus dedos e imaginou se
ele a Senhora de Lua Argêntea poderiam realmente se encontrar de novo em condições mais transigentes. E aonde tal encontro poderia levar.
Então, ele atirou a flor no Rauvin.
- Deixemos os acontecimentos seguirem seu curso - ele disse, resoluto, olhando para o acampamento e para seus amigos mais chegados. - Não preciso de fantasias
para diminuir os grandes tesouros que já possuo. - Ele inspirou profundamente a fim de soprar para longe os restos de sua autopiedade.
E, com a fé restaurada, o estóico ranger foi dormir.

14. OS OLHOS DO GOLEM

Drizzt teve pouco trabalho para convencer Bruenor a reverter o curso deles e voltar para o oeste. Apesar de ansioso por chegar a Sundabar e descobrir o que
Helm sabia, a possibilidade de informações valiosas a menos de um dia de viagem dali deixou o anão alvoroçado.
Quanto a como conseguira a informação, Drizzt ofereceu poucas explicações, dizendo apenas que topara com um viajante solitário na estrada para Lua Argêntea
durante a noite. Apesar de a história soar inventada aos amigos, eles não questionaram o drow por respeitarem sua privacidade e confiarem inteiramente nele. Mas,
durante o desjejum, Régis chegou a esperar que outras informações viessem à tona, pois os biscoitos que o tal viajante dera a Drizzt eram verdadeiramente deliciosos
e incrivelmente revigorantes. Depois de apenas algumas mordidas, o halfling se sentia como se tivesse passado uma semana descansando. E a pomada mágica curou imediatamente
a perna e as costas machucadas de Wulfgar, que caminhou sem a bengala pela primeira vez desde que eles haviam deixado os Pântanos Eternos.
Wulfgar desconfiou que o encontro de Drizzt envolvera alguém de grande importância muito antes do drow revelar os presentes maravilhosos. Pois o brilho interior
de otimismo do drow, uma centelha sagaz em seus olhos a refletir o espírito indômito que o fazia sobreviver a provações que teriam esmagado a maioria dos homens,
retornara total e dramaticamente. O bárbaro não precisava conhecer a identidade da pessoa: estava simplesmente contente por seu amigo ter superado a depressão.
Quando eles se puseram a caminho, mais tarde naquela manhã, mais pareciam um grupo que acabava de dar início a uma aventura do que um bando fatigado pela
estrada. Assobiando e conversando, seguiram o fluxo do Rauvin em seu curso para oeste. Apesar de por um triz, haviam saído relativamente ilesos da marcha brutal
e tinham aparentemente feito bom progresso em direção ao seu objetivo. O sol do verão brilhava no céu e todas as peças do quebra-cabeça do Salão de Mitral pareciam
estar ao alcance da mão.
Jamais suspeitariam que olhos assassinos neles se fixavam.
Desde os contrafortes ao norte do Rauvin, muito acima dos viajantes, o golem pressentiu a passagem do elfo drow. Seguindo a atração dos encantos mágicos de
busca que Dendibar lançara sobre ele, Bok não demorou muito para avistar lá do alto o bando que percorria a trilha. Sem hesitação, o monstro obedeceu às suas diretrizes
e partiu em busca de Sidnéia.
Bok arremessou longe um matacão que jazia em seu caminho, depois escalou um outro que era grande demais, sem compreender as vantagens de simplesmente contornar
as pedras. O caminho de Bok estava claramente traçado e o monstro se recusava a se desviar daquele curso o mínimo que fosse.
- Esse é um dos grandes! - riu um dos guardas no posto sobre o Rauvin ao ver Bok do outro lado da clareira. Entretanto, mesmo enquanto as palavras
deixavam sua boca, o guarda percebeu o perigo iminente: aquele não era um viajante comum!
Corajosamente, ele saiu correndo para encarar o golem de frente, a espada desembainhada e o companheiro logo atrás.
Transfixado por seu objetivo, Bok não deu ouvidos aos alertas dos dois.
- Alto! - ordenou o guarda uma última vez enquanto Bok cobria a pequena distância entre eles.
O golem não conhecia emoções, de modo que não sentiu raiva dos guardas quando eles o atacaram. Postaram-se para bloquear o caminho e Bok os jogou longe com
um tapa, sem hesitação, e o incrível poder de seus braços fortalecidos pela magia atravessou-lhes as defesas e os arremessou pelos ares. Sem se deter, o golem seguiu
adiante até o rio e não diminuiu o passo, desaparecendo sob as águas impetuosas.
Alarmas soaram na cidade, pois os soldados ao portão, do outro lado do rio, assistiram ao espetáculo que se desenrolou no posto avançado. Os imensos portões
foram fechados e trancados, e os Cavaleiros em Prata puseram-se a vigiar o Rauvin, esperando pelo reaparecimento do monstro.
Bok seguiu em linha reta pelo leito do rio, singrando o lodo e a lama e mantendo o curso com facilidade apesar do pujante ímpeto das correntes. Quando o monstro
reemergiu diretamente do outro lado do posto avançado, os cavaleiros enfileirados diante do portão da cidade ficaram boquiabertos de incredulidade, mas mantiveram
suas posições, os rostos severos e as armas em prontidão.
O portão se situava um pouco mais rio acima a partir do ângulo da senda escolhida por Bok. O golem seguiu em frente até a muralha da cidade, mas não alterou
seu curso para se aproximar do portão.
Com um murro, ele abriu um buraco na muralha e a atravessou. Entreri andava ansiosamente de um lado para outro em seu quarto na Estalagem dos Sábios Geniosos,
perto do centro da cidade.
- Eles já deviam ter chegado - ele disse com aspereza para Sidnéia, sentando-se na cama e apertando as cordas que seguravam Cattiebrie.
Antes que Sidnéia conseguisse responder, um globo de chamas apareceu no centro da sala, não um fogo real, mas a imagem de chamas, ilusória, como algo ardendo
naquele determinado ponto em outro plano. As chamas tremularam e se transformaram na aparição de um homem de túnica.
- Morkai! - arquejou Sidnéia.
- Meus cumprimentos - replicou o espectro. - E os cumprimentos de Dendibar, o Variegado.
Entreri se esgueirou de volta a um dos cantos do quarto, desconfiado. Cattiebrie, indefesa, amarrada como estava, continuou sentada e imóvel.
Sidnéia, versada nas sutilezas da conjuração, sabia que o ser sobrenatural estava sob o controle de Dendibar e ela teve medo.
- Por que meu mestre mandou que viesse aqui? - ela perguntou audaciosamente.
- Trago notícias - respondeu o espectro. - O grupo que vocês procuram foi desviado para os Pântanos Eternos há uma semana, ao sul de Nesmé.
Sidnéia mordeu o lábio de expectativa pela próxima revelação do espectro, mas Morkai quedou-se mudo e também aguardou.
- E onde estão eles agora? - pressionou Sidnéia, impaciente.
Morkai sorriu.
- Perguntado fui duas vezes, mas ainda não obrigado! - As chamas se consumiram com estrépito novamente e o espectro desapareceu.
- Os Pântanos Eternos - disse Entreri. - Isso explicaria a demora.
Sidnéia concordou com um meneio da cabeça, distraída, pois ela tinha outras coisas em mente.
- Ainda não obrigado - ela murmurou consigo mesma, repetindo as últimas palavras do espectro. Perguntas perturbadoras a incomodavam. Por que Dendibar
esperara uma semana para enviar Morkai com as notícias? E por que o mago não teria conseguido forçar o espectro a revelar atividades mais recentes do grupo do drow?
Sidnéia conhecia os perigos e as limitações da invocação e compreendia a espantosa exaustão que o ato exercia sobre o poder de um mago. Dendibar havia conjurado
Morkai pelo menos três vezes recentemente: uma vez quando o grupo do drow entrara em Luskan, e ao menos duas vezes desde que ela e seus companheiros haviam partido
na caçada. Teria Dendibar abandonado toda a cautela em sua obsessão pela Estilha de Cristal?
Sidnéia sentiu que o domínio do mago variegado sobre Morkai havia diminuído imensamente e ela esperava que Dendibar fosse prudente com futuras invocações,
pelo menos até que tivesse descansado completamente.
- Podem se passar semanas até que cheguem! - disse Entreri, com veemência, considerando as notícias. - Se é que um dia virão.
- Talvez você tenha razão - concordou Sidnéia. - Eles poderiam ter tombado nos urzais.
- E se tiverem?
- Então, entraremos lá atrás deles - disse Sidnéia, sem hesitação. Entreri estudou-a por alguns instantes.
- O prêmio que você busca deve ser realmente vultoso - ele disse.
- Tenho o meu dever e não vou falhar com meu mestre - ela retrucou rispidamente. - Bok vai encontrá-los mesmo que estejam no fundo do brejo mais profundo!
- Temos de decidir nosso curso agora - Entreri insistiu. Ele voltou seu olhar maldoso para Cattiebrie. - Estou ficando cansado de vigiar essa aí.
- Eu tampouco confio nela - Sidnéia concordou. - Mas ela pode ser útil quando encontrarmos o anão. Esperaremos mais três dias. Depois disso, voltaremos
a Nesmé e entraremos nos Pântanos Eternos se for preciso.
Entreri relutantemente aprovou o plano com um aceno da cabeça.
- Ouviu? - ele sibilou para Cattiebrie. - Você tem mais três dias de vida, a menos que seus amigos cheguem. Se estiverem mortos nos urzais, você não
tem utilidade para nós.
Cattiebrie não demonstrou qualquer emoção durante toda a conversa, determinada a não deixar Entreri conquistar a menor vantagem descobrindo-lhe a fraqueza,
ou a força. Ela acreditava que seus amigos não estavam mortos. Tipos como Bruenor Martelo de Batalha e Drizzt Do'Urden não estavam destinados a morrer numa vala
indigente em algum pântano desolado. E Cattiebrie jamais aceitaria que Wulfgar estivesse morto até que a prova fosse irrefutável. Fiel à sua crença, seu dever para
com os amigos era manter uma fisionomia inexpressiva. Ela sabia que estava vencendo sua batalha pessoal, que o medo paralisante que Entreri provocava nela perdia
força a cada dia. Ela estaria pronta para agir quando chegasse a hora. Ela apenas precisava se certificar de que Entreri e Sidnéia não o percebessem.
Ela notara que o afã da estrada e os novos companheiros começavam a afetar o assassino. A cada dia, Entreri revelava mais emoções, maior desespero para terminar
o serviço. Seria possível que pudesse cometer um erro?
- Está aqui! - um grito ecoou desde o corredor e todos os três se sobressaltaram involuntariamente, depois reconheceram a voz como sendo a de Jierdan,
que ficara vigiando a Câmara dos Sábios. Um segundo depois, a porta se abriu com violência e o soldado entrou espalhafatosamente no quarto, a respiração desigual.
- O anão? - Sidnéia perguntou, segurando Jierdan para acalmá-lo.
- Não! - gritou Jierdan. - O golem! Bok entrou em Lua Argêntea! Eles o aprisionaram perto do portão oeste. Um mago foi chamado.
- Maldição! - Sidnéia disse com veemência e saiu do quarto.
Entreri deu um passo para segui-la, segurando o braço de Jierdan e forçando-o a dar meia-volta com um puxão, de modo que os dois ficassem cara a cara.
- Fique com a garota - ordenou o assassino. Jierdan o fulminou com o olhar.
- Ela é problema seu.
Entreri poderia facilmente ter matado o soldado bem ali, notou Cattiebrie, esperando que Jierdan houvesse interpretado o olhar mortífero do assassino tão
claramente quanto ela.
- Faça o que lhe mandam! - Sidnéia gritou com Jierdan, pondo fim à discussão. Ela e Entreri saíram, e o assassino bateu a porta.
- Ele teria matado você - Cattiebrie disse a Jierdan quando Entreri e Sidnéia se foram. - Você sabe disso.
- Quieta - rosnou Jierdan. - Estou cheio de suas palavras vis! - Ele se aproximou dela ameaçadoramente, os punhos cerrados.
- Pode bater - desafiou Cattiebrie, sabendo que mesmo que ele o fizesse, seu código de soldado não lhe permitiria continuar tal assalto a um adversário
indefeso. - Apesar de que, na verdade, eu sou sua única amiga nesta viagem amaldiçoada!
Jierdan estacou.
- Amiga? - enjeitou ele.
- E melhor amiga você não vai encontrar - respondeu Cattiebrie. - Você aqui é tão prisioneiro quanto eu. - Ela reconheceu a vulnerabilidade daquele
homem orgulhoso, reduzido à servidão pela arrogância de Sidnéia e Entreri, e atingiu-o com precisão cirúrgica. - Eles querem te matar, 'cê sabe disso agora, e mesmo
que 'cê escape do fio da espada, 'cê não tem prá onde ir. 'Cê abandonou seus colegas em Luskan e, de qualquer maneira, o mago na torre te daria um triste fim se
você voltasse lá um dia!
Jierdan se retesou de fúria frustrada, mas não atacou.
- Meus amigos 'tão por perto - continuou Cattiebrie, apesar dos sinais ameaçadores. - Eles 'tão vivos ainda, eu sei, e vamos encontrar eles qualquer
dia desses. Vai ser a nossa hora, soldado, de viver ou morrer. No meu caso, vejo uma oportunidade. Mas no seu, como a estrada parece escura! Se meus amigos vencerem,
vão te matar, e se seus camaradas vencerem... - Ela deixou as possibilidades sinistras em mudo suspense por alguns instantes para que Tierdan pudesse ponderá-las
em sua totalidade.
- Quando eles pegarem o que procuram, não vão mais precisar de você - ela disse sombriamente. Notou que ele tremia, não de medo, mas de raiva, e forçou-o
a perder o controle. - Pode ser que te deixem viver - ela disse sarcasticamente. - Quem sabe não estejam precisando de um lacaio!
Ele a esmurrou então, apenas uma vez, e recuou.
Cattiebrie aceitou o golpe sem se queixar e até mesmo sorriu em meio à dor, apesar de tomar o cuidado de esconder sua satisfação. A perda de autocontrole
de Jierdan provava que o contínuo desrespeito que Sidnéia e principalmente Entreri haviam demonstrado por ele alimentara as chamas da insatisfação, levando-as à
beira da explosão.
Ela também sabia que quando Entreri retornasse e visse a equimose que Jierdan lhe proporcionara, aquelas chamas arderiam com mais intensidade ainda.
Sidnéia e Entreri correram pelas ruas de Lua Argêntea, seguindo os óbvios ruídos de comoção. Quando chegaram à muralha, encontraram Bok enclausurado numa
esfera de luzes verdes e brilhantes. Cavalos sem cavaleiros andavam para lá e para cá, ao som dos gemidos de uma dezena de soldados feridos, e um velho - o mago
- se achava diante do globo de luz, cofiando a barba e estudando o golem aprisionado. Um Cavaleiro em Prata de considerável posição hierárquica se encontrava ao
lado dele, impaciente, crispando-se nervosamente e apertando com força o botão do punho de sua espada embainhada.
- Destrua essa coisa e acabe logo com isso - Sidnéia ouviu o cavaleiro dizer ao mago.
- Ah, não! - exclamou o mago. - É prodigioso!
- Você quer segurá-lo aqui para sempre? - devolveu o cavaleiro. - Dê uma olhada ao redor...
- Com licença, cavalheiros - Sidnéia interrompeu. - Sou Sidnéia da Torre das Hostes Arcanas de Luskan. Talvez eu possa ser de alguma ajuda.
- Bons olhos a vejam - disse o mago. - Sou Mizzen da Segunda Escola do Conhecimento. Você conhece o proprietário desta criatura magnífica?
- Bok é meu - ela admitiu.
O cavaleiro a fitou, admirado que uma mulher - ou qualquer pessoa, por falar nisso - controlasse o monstro que havia abatido alguns de seus melhores guerreiros
e derrubado uma seção da muralha da cidade.
- O preço há de ser alto, Sidnéia de Luskan - ele rosnou.
- A Torre das Hostes irá ressarci-los - ela concordou. - Agora, poderia libertar o golem e deixá-lo sob meu controle? - ela perguntou ao mago. -
Bok vai me obedecer.
- Não! - disse o cavaleiro, ríspido. - Não vou deixar essa coisa à solta novamente.
- Calma, Gavin - disse-lhe Mizzen. Ele se voltou para Sidnéia. - Eu gostaria de estudar o golem, se possível. É realmente a mais primorosa construção
que já vi, com uma força além das expectativas dos livros de criação.
- Sinto muito - Sidnéia respondeu -, mas tenho pouco tempo. E muitas estradas ainda a percorrer. Diga o valor dos prejuízos causados pelo golem e eu
o retransmitirei ao meu mestre. Dou-lhe minha palavra como membro da Torre das Hostes.
- Você vai pagar agora - argumentou o guarda.
Mais uma vez, Mizzen o silenciou.
- Perdoe a raiva de Gavin - disse ele a Sidnéia. Ele inspecionou a área. - Talvez possamos fazer um acordo. Ninguém parece ter sido ferido gravemente.
- Três homens saíram daqui carregados! - Gavin refutou. - E pelo menos um cavalo está estropiado e teremos de sacrificá-lo!
Mizzen acenou com a mão como se para minimizar as reclamações.
- Eles vão se recuperar - disse. - Eles vão se recuperar. E a muralha precisava mesmo de reparos. - Ele olhou para Sidnéia e cofiou a barba novamente.
- Eis a minha oferta, e você não vai encontrar outra mais razoável! Entregue-me o golem por uma noite, apenas uma, e eu ressarcirei o prejuízo que ele causou. Só
uma noite.
- Você não vai desmontar Bok - afirmou Sidnéia.
- Nem mesmo a cabeça? - implorou Mizzen.
- Nem mesmo a cabeça - insistiu Sidnéia. - E eu virei buscar o golem à primeira luz da manhã.
Mizzen cofiou a barba mais uma vez.
- Uma obra prodigiosa - ele murmurou, perscrutando o interior da prisão mágica. - Feito!
- Se esse monstro... - começou Gavin, furioso.
- Ah, onde está seu senso de aventura, Gavin? - devolveu Mizzen, antes mesmo que o cavaleiro conseguisse terminar sua ameaça. - Lembre-se dos preceitos
de nossa cidade, homem. Estamos aqui para aprender. Se você pudesse apenas compreender o potencial de uma criação como esta!
Eles se afastaram de Sidnéia, não lhe dando mais atenção, e o mago ainda tagarelava no ouvido de Gavin. Entreri se esgueirou desde as sombras de um edifício
próximo para o lado de Sidnéia.
- Por que a coisa veio até nós? - ele perguntou. Ela chacoalhou a cabeça.
- Só pode haver uma resposta.
- O drow?
- Sim - ela disse. - Bok deve tê-los seguido até a cidade.
- Improvável - concluiu Entreri -, mas é possível que o golem os tenha visto. Se Bok estivesse atrás do drow e seus valentes companheiros, eles estariam
aqui na batalha, ajudando a rechaçá-lo.
- Então, é possível que ainda estejam lá fora.
- Ou talvez estivessem deixando a cidade quando Bok os viu - disse Entreri. - Vou ver se descubro alguma coisa com os guardas do portão. Nada tema,
nossa presa está bem próxima!
Eles retornaram ao quarto umas duas horas depois. Com os guardas no portão, descobriram que o grupo do drow fora rechaçado e agora estavam ansiosos para recuperar
Bok e seguir caminho.
Sidnéia deu início a uma série de instruções para Jierdan referentes à partida pela manhã, mas o que atraiu a atenção imediata de Entreri foi o olho machucado
de Cattiebrie. Ele se aproximou para verificar as cordas e, satisfeito por estarem intactas, virou-se para Jierdan com o punhal desembainhado.
Sidnéia o interrompeu, rapidamente inferindo a situação.
- Agora não! - exigiu. - Nossas recompensas estão próximas. Não podemos nos permitir isto!
Entreri riu maldosamente e guardou o punhal.
- Ainda vamos discutir isso - ele prometeu a Jierdan, entre dentes. - Não toque na garota novamente.
Perfeito, pensou Cattiebrie. Do ponto de vista de Jierdan, era como se o assassino confessasse a intenção de matá-lo.
Mais combustível para as chamas.
Ao recuperar o golem com Mizzen na manhã seguinte, as suspeitas de Sidnéia de que Bok vira o grupo do drow foram confirmadas. Eles deixaram lua Argêntea imediatamente
e Bok os conduziu pela mesma trilha que Bruenor e seus amigos haviam tomado na manhã anterior.
Como o grupo anterior, eles também eram vigiados.
Alustriel afastou do rosto o cabelo ondulante e capturou o sol da manhã em seus olhos verdes enquanto observava aquele bando com curiosidade cada vez maior.
A dama descobrira com os porteiros que alguém estivera perguntando sobre o elfo negro.
Ela ainda não conseguia entender que papel aquele novo grupo que deixava Lua Argêntea representava na missão, mas ela desconfiava que suas intenções não
eram boas. Alustriel havia saciado a própria sede de aventura muitos anos antes, mas ela desejava agora que pudesse, de algum modo, ajudar o drow e seus amigos em
sua nobre missão. No entanto, os assuntos de estado a oprimiam e ela não tinha tempo para essas distrações. Pensou por um momento em despachar uma patrulha para
capturar aquele segundo grupo, para que, assim, pudesse lhes descobrir a intenção.
Então, ela se voltou para sua cidade, lembrando a si mesma de que era apenas uma personagem de menor importância na busca pelo Salão de Mitral. Só lhe restava
confiar nas habilidades de Drizzt Do'Urden e seus amigos.

CONTINUA

LIVRO 2
ALIADOS


Ele quer ir para casa. Quer encontrar um mundo que conheceu outrora. Não sei se é a promessa de riquezas ou a da simplicidade que agora impele Bruenor.
Ele quer encontrar o Salão de Mitral, livrá-lo de todos os monstros que possam agora habitar o lugar a fim de reclamá-lo em nome do Clã Martelo de Batalha.
Superficialmente, esse desejo parece uma coisa razoável, até mesmo nobre. Todos nós buscamos a aventura e, para aqueles cujas famílias vivem segundo a tradição
da nobreza, o desejo de vingar um agravo e restaurar o nome e a posição da família não pode ser subestimado.
Nossa estrada para o Salão de Mitral provavelmente não será fácil. Muitas terras perigosas e incivilizadas jazem entre o Vale do Vento Gélido e a região bem
a leste de Luskan e, sem dúvida, essa estrada promete tornar-se ainda mais sombria se de fato encontrarmos a entrada para as minas perdidas dos anões. Mas estou
cercado por amigos capazes e poderosos e, assim sendo, os monstros não me preocupam, não os que conseguimos combater com a espada. Não, meu único temor em relação
a esta jornada que empreendemos agora se refere a Bruenor Martelo de Batalha. Ele quer ir para casa e existem muitos bons motivos para tanto. Há apenas um bom motivo
para que ele não o faça e, se esse motivo, a nostalgia, for a fonte de seu desejo, então temo que ele venha a sofrer uma amarga decepção.
A nostalgia é, talvez, a maior das mentiras que todos nós contamos a nós mesmos. É o lustro do passado a se adaptar às sensibilidades do presente. Para alguns,
isso traz um certo consolo, um sentido de identidade e origem, mas outros, acho eu, exageram essas lembranças alteradas e, por causa disso, ficam paralisados diante
da realidade.
Quantas pessoas anelam por aquele "mundo passado, mais simples e melhor", eu me pergunto, sem jamais reconhecer a verdade de que talvez elas é que eram mais
simples e melhores, e não o mundo ao seu redor?
Como um elfo drow, espero viver vários séculos, mas aquelas primeiras décadas de vida para um drow, e para um elfo da superfície, não são tão diferentes,
no que se refere ao desenvolvimento emocional, das de um humano, ou de um halfling, ou de um anão. Eu também recordo esse idealismo e essa energia dos meus dias
de juventude, quando o mundo parecia um lugar descomplicado, quando o certo e o errado estavam claramente gravados no caminho diante de cada um dos meus passos.
Talvez, de alguma estranha maneira, devido ao fato de que meus primeiros anos foram tão repletos de experiências terríveis, tão repletos de um ambiente e de uma
experiência que eu simplesmente não conseguia tolerar, estou em melhor situação agora. Bois, ao contrário de tantos que conheci na superfície, minha vida tem melhorado
constantemente.
Teria isso contribuído para o meu otimismo, para a minha própria existência e para mundo inteiro ao meu redor?
Tantas pessoas, particularmente os humanos que passaram o ponto médio de sua expectativa de vida, continuam a procurar no passado o paraíso, continuam a alegar
que o mundo era um lugar muito melhor quando eram jovens.
Não acredito nisso. Pode haver ocasiões específicas em que isso seja verdade - um rei despótico que deixa em seu lugar um monarca piedoso, uma era de bem-estar
que envolve a terra depois de uma peste -, mas acredito, preciso acreditar, que as pessoas do mundo são um grupo em desenvolvimento, que a evolução natural das civilizações,
apesar de não ser necessariamente uma sucessão em linha reta, caminha rumo a melhoria do mundo. Pois cada vez que se encontra um caminho melhor, as pessoas naturalmente
gravitam naquela direção enquanto os experimentos fracassados são abandonados. Tenho ouvido, por exemplo, as interpretações de Wulfgar sobre a história do seu povo,
as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido, e fico atônito e horrorizado diante da brutalidade do seu passado, a luta constante de tribo contra tribo, o estupro
em massa das mulheres capturadas e a tortura dos homens aprisionados. Os homens das tribos do Vale do Vento Gélido são ainda um bando selvagem, sem dúvida, mas,
se dermos crédito às tradições orais, não na mesma medida que seus predecessores. E isso faz todo o sentido para mim e, assim, tenho esperança de que a tendência
continuará. Talvez, um dia, venha a surgir um grande líder bárbaro que encontre verdadeiramente o amor de uma mulher, que encontre uma esposa que arranque dele um
certo grau de respeito, praticamente desconhecido entre os bárbaros. Será que esse líder elevará, de algum modo, a posição das mulheres entre as tribos?
Se isso acontecer, as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido encontrarão uma força que simplesmente não compreendem em meio à metade de sua população. Se
isso acontecer, se as mulheres bárbaras sofrerem essa ascensão, então os homens das tribos nunca, jamais as forçarão de volta aos seus papéis atuais, que podem ser
descritos apenas como escravidão.
E todos eles, homens e mulheres, mudarão para melhor.
Para que a mudança dure entre criaturas racionais, essa mudança deve ser para melhor. E, desse modo, as civilizações, os povos evoluem para um melhor entendimento
e um lugar melhor.
Para as Matriarcas de Menzoberranzan, assim como no caso de muitas gerações de famílias despóticas e de ricos proprietários de terras, a mudança pode ser
encarada como uma ameaça clara à sua base de poder e, portanto, sua resistência parece lógica, até mesmo esperada. Como, então, podemos encontrar explicação no fato
de que tantas, tantas pessoas, até mesmo aquelas que vivem na miséria, como viveram seus pais e os pais de seus pais, e gerações e gerações antes deles, encarem
a mudança com o mesmo medo e a mesma repulsa? Por que o mais humilde camponês não desejaria a evolução da civilização se essa evolução pudesse levar a uma vida melhor
para seus filhos?
Isso pareceria lógico, mas, pelo que vejo, não é o caso. Para muitos, se não para a maioria dos humanos de vida breve que já ultrapassou a idade de maior
vigor e saúde, que já deixou para trás seus melhores dias, aceitar qualquer mudança não parece algo fácil. Não, tantos se agarram ao passado, quando o mundo era
"mais simples e melhor". Eles se ressentem da mudança num nível pessoal, como se as melhorias que seus sucessores possam implementar lançassem uma luz brilhante
e reveladora sobre seus próprios fracassos.
Talvez seja isso. Talvez seja um dos nossos medos mais fundamentais, o medo, criado pelo orgulho insensato, de que nossos filhos venham a saber mais do que
nós mesmos. Ao mesmo tempo em que tantas pessoas enaltecem as virtudes de seus filhos, existirá algum medo remoto dentro delas de que esses filhos venham a enxergar
os erros de seus pais?
Não tenho respostas para esse aparente paradoxo, mas, pelo bem de Bruenor, rezo para que ele procure o Salão de Mitral pelos motivos certos, em nome da aventura
e do desafio, em nome de sua herança e da restauração do nome de sua família, e não em nome do desejo de transformar o mundo naquilo que era antes.
A nostalgia é algo necessário, creio eu, e uma maneira de todos nós encontrarmos paz naquilo que realizamos, ou até mesmo no que não conseguimos realizar.
For outro lado, se a nostalgia precipitar nossas ações numa tentativa de retornar àquela época lendária e cor-de-rosa, particularmente no caso de alguém que acredita
que sua vida tenha sido um fracasso, então é algo vazio, condenado a gerar nada além de frustração e uma sensação ainda maior de fracasso.
Pior ainda, se a nostalgia colocar obstáculos no caminho da evolução, então se trata de algo realmente limitante.
Drizzt Do'Urden


7. PARA RISCO DAS AVES QUE VOAM BAIXO


Para o mais absoluto alívio dos companheiros, eles emergiram das curvas e depressões dos rochedos quase no fim da tarde. Levaram algum tempo para reunir as
montarias depois do encontro com o Pégaso, particularmente o pônei do halfling, que havia disparado no começo da luta, quando Régis caíra. Na verdade, seria impossível
montar o pônei novamente: estava arisco demais e Régis não se encontrava em condições de cavalgar. Mas Drizzt insistira que os dois cavalos e os dois pôneis fossem
encontrados, lembrando seus companheiros de sua responsabilidade para com os fazendeiros, considerando-se especialmente a maneira pela qual haviam se apropriado
dos animais.
Régis agora ia sentado diante de Wulfgar no garanhão do bárbaro, à frente do grupo, com o pônei amarrado logo atrás e Drizzt e Bruenor a uma pequena distância
deles, defendendo a retaguarda. Wulfgar mantinha os braços imensos em torno do halfling e seu abraço protetor oferecia segurança suficiente para permitir a Régis
o descanso justo.
- Mantenha o sol poente às nossas costas - Drizzt instruiu o bárbaro.
Wulfgar assentiu com um brado e olhou para trás a fim de confirmar sua posição.
- Ronca-bucho não poderia ter encontrado um lugar mais seguro em todos os Reinos - Bruenor comentou com o drow.
Drizzt sorriu:
- Wulfgar se saiu bem.
- É - concordou o anão, obviamente satisfeito. - Apesar de que eu me pergunto quanto tempo mais vou poder continuar chamando ele de garoto!
- 'Cê devia ter visto o Alfanje, elfo - casquinou o anão. - Um barco cheio de Piratas, que não vêem outra coisa além do oceano há um ano e um dia, não
seria capaz de causar tanta destruição!
- Quando deixamos o vale, minha preocupação era se Wulfgar estaria pronto para as várias sociedades do mundo - replicou Drizzt. - Agora minha preocupação
é que o mundo pode não estar preparado para ele. Você deve estar orgulhoso.
- Você tem tanto a ver com isso quanto eu - disse Bruenor. - Ele é meu garoto, elfo, quase como se fosse mesmo meu filho. Ele nem pensou nos próprios
temores no campo lá atrás. Nunca tinha visto tamanha coragem num ser humano como quando você foi pro outro plano. Ele esperou - contou com isso, 'tô te dizendo!
- que o desgraçado do bicho voltasse prá que pudesse tentar acertar em cheio, só prá vingar a mim e o halfling, os dois feridos.
Drizzt apreciava aqueles raros momentos de vulnerabilidade do anão. Poucas vezes antes vira Bruenor abandonar sua fachada empedernida, no topo da ladeira
no Vale do Vento Gélido, quando o anão pensava no Salão de Mitral e nas maravilhosas lembranças de sua infância.
- E, 'tô orgulhoso - continuou Bruenor. - E me pego agora disposto a seguir a liderança dele e a confiar nas suas decisões.
Drizzt podia apenas concordar, tendo chegado às mesmas conclusões muitos meses antes, quando Wulfgar unira os povos do Vale do Vento Gélido - bárbaros e deca-burgueses
- para que juntos se protegessem contra o rigoroso inverno da tundra. Ele ainda tinha algum receio em levar o jovem bárbaro a lugares como a zona portuária de Luskan,
pois sabia que muitas das melhores pessoas nos Reinos haviam pago caro por seus primeiros encontros com as guildas e as estruturas de poder clandestinas de uma cidade,
e que a profunda compaixão de Wulfgar e seu irredutível código de honra poderiam ser usados contra ele.
Mas na estrada, nos ermos, Drizzt sabia que nunca encontraria um companheiro mais valioso.
Não encontraram mais problemas no resto do dia ou da noite e, na manhã seguinte, chegaram à estrada principal, a rota comercial de Águas Profundas a Mirabar
que passava por Sela Longa no caminho. Nenhum ponto de referência surgiu para orientá-los como Drizzt previra, mas, devido ao seu plano de se manter mais para leste
do que numa linha reta para sudeste, a direção a partir dali era claramente o sul.
Régis parecia muito melhor naquele dia e estava ansioso por ver Sela Longa. Era o único membro do grupo a ter visitado o lar dos magos Harpells e aguardava
ansiosamente para rever o estranho e geralmente exótico lugar.
Sua exaltada tagarelice, porém, fez apenas aumentar os receios de Wulfgar, pois era profunda a desconfiança do bárbaro em relação às artes negras. Entre o
povo de Wulfgar, os magos eram vistos como covardes e vigaristas malignos.
Quanto tempo teremos de ficar nesse lugar? - ele perguntou a Bruenor e Drizzt, que, com os rochedos às suas costas, passaram a cavalgar ao lado dele na estrada
larga.
- Até a gente conseguir algumas respostas - respondeu Bruenor. - Ou até a gente pensar num lugar melhor prá ir.
Wulfgar teve de se satisfazer com a resposta.
Eles logo passaram por algumas fazendas periféricas, atraindo olhares curiosos dos homens nos campos, que se inclinavam sobre as enxadas e os ancinhos para
estudar o grupo. Pouco depois do primeiro desses encontros, foram recebidos na estrada por cinco homens armados, chamados Longinetes, representantes da guarda avançada
da vila.
- Saudações, viajantes - disse um deles, educadamente. - Posso perguntar quais são suas intenções por estas bandas?
- Você pode é... - começou Bruenor, mas Drizzt interrompeu-lhe o comentário sarcástico com uma palma esticada.
- Viemos ver os Harpells - respondeu Régis. - Nossos assuntos não envolvem sua cidade, mas procuramos o sábio conselho da família que vive na mansão.
- Bons olhos os vejam, então - respondeu o Longinete. - A colina da Mansão de Hera fica só algumas milhas estrada abaixo, antes de Sela Longa propriamente
dita. - Ele fez uma pausa brusca, notando a presença do drow. - Podemos escoltá-los, se desejarem - ofereceu ele, limpando a garganta numa tentativa educada de esconder
seu assombro diante do elfo negro.
- Não é necessário - disse Drizzt. - Asseguro-lhe que encontraremos o caminho e que não desejamos nenhum mal a qualquer pessoa de Sela Longa.
- Muito bem.
O Longinete fez sua montaria dar um passo para o lado e os companheiros seguiram em frente.
- Mas fiquem na estrada - ele ainda gritou. - Alguns dos fazendeiros ficam nervosos com pessoas próximas aos limites de suas terras.
- São uma gente afável - Régis explicou para os companheiros enquanto desciam a estrada -, e confiam em seus magos.
- Afáveis, mas precavidos - retorquiu Drizzt, apontando um campo distante onde a silhueta de um homem a cavalo mal e mal se fazia notar na longínqua fileira
de árvores. - Somos vigiados.
- Mas não incomodados - disse Bruenor. - E é mais do que se pode dizer sobre qualquer outro lugar por onde a gente tenha andado!
A colina da Mansão de Hera compreendia um pequeno outeiro com três edifícios, dois deles semelhantes ao padrão das casas de fazenda, baixas e feitas de madeira.
O terceiro, porém, era diferente de tudo o que os quatro companheiros já tinham visto. Suas paredes se encontravam em ângulos abruptos a cada poucos metros, criando
nichos dentro de nichos, e dezenas de torreões brotavam do teto anguloso, não havendo dois iguais. Mil janelas eram visíveis somente a partir daquela direção, algumas
delas imensas, outras não maiores do que uma seteira.
Era impossível encontrar ali um projeto único, um plano ou estilo arquitetônico global. A mansão dos Harpells era uma colagem de idéias e experimentos independentes
em criação mágica. Mas havia realmente uma certa beleza em meio ao caos, uma sensação de liberdade que desafiava o termo "estrutura" e trazia consigo um sentimento
de boa acolhida.
Uma cerca em balaustrada circundava o outeiro, e os quatro amigos se aproximaram com curiosidade, se não com alvoroço. Não havia porteira, só uma abertura
e a estrada que seguia através dela. Sentado num banquinho do lado de dentro da cerca, fitando estupidamente o céu, encontrava-se um homem gordo, barbudo, vestindo
uma túnica carmesim.
O homem se sobressaltou ao notar a chegada do grupo.
- Quem são vocês e o que querem? - indagou bruscamente, furioso por terem interrompido sua meditação.
- Viajantes cansados - respondeu Régis - que aqui chegam em busca da sabedoria dos afamados Harpells.
O homem não pareceu impressionado.
- E daí? - encorajou ele.
Régis, impotente, virou-se para Drizzt e Bruenor, mas só lhes restava dar de ombros como resposta, sem compreender o que mais lhes era exigido. Bruenor começava
a se adiantar com seu pônei para reiterar suas intenções quando outro homem de túnica saiu desajeitadamente da mansão para se juntar ao primeiro.
Ele trocou algumas palavras em voz baixa com o mago gordo, depois se voltou para a estrada.
- Saudações - ofereceu ele aos companheiros. - Perdoem o pobre Regweld aqui - ele deu uma palmadinha no ombro do mago gordo -, pois ele anda tendo
um tremendo azar com algumas experiências. Bem, não que as coisas não acabem dando certo... Podem apenas levar algum tempo.
- Regweld é realmente um mago excepcional - continuou, batendo-lhe no ombro mais uma vez. - E suas idéias sobre cruzar um cavalo com uma rã têm lá
o seu mérito; é só não se incomodar com a explosão! Os laboratórios de alquimia são substituíveis!
Os amigos, no alto de suas montarias, reprimiram o assombro diante do discurso desconexo.
- Ora, pensem nas vantagens ao se atravessar os rios! - gritou o homem de túnica. - Mas já chega dessa história. Eu sou Harkle. Em que posso ser útil?
- Harkle Harpell? - Régis perguntou, com uma risadinha.
O homem fez uma reverência.
- Bruenor do Vale do Vento Gélido, esse sou eu - proclamou Bruenor ao recuperar a voz. - Meus amigos e eu andamos centenas de quilômetros em busca dos conselhos
dos magos de Sela Longa...
Ele notou que Harkle, distraído pela presença do drow, já não lhe dava atenção. Drizzt deixara o capuz escorregar para trás de propósito, para julgar a reação
dos supostamente cultos homens de Sela Longa. O Longinete na estrada ficara surpreso, mas não furioso, e Drizzt precisava descobrir se a vila em geral seria mais
tolerante à sua raça.
- Fantástico - murmurou Harkle. - Simplesmente inacreditável! - Regweld também notara o elfo negro e parecia interessado pela primeira vez desde que o grupo
chegara.
- Teremos permissão para entrar? - perguntou Drizzt.
- Ah, sim, por favor, entrem - respondeu Harkle, tentando sem sucesso disfarçar sua agitação pelo bem da etiqueta.
Adiantando-se com seu cavalo, Wulfgar colocou-os em movimento estrada acima.
- Por aí, não - disse Harkle. - Não pela estrada; é claro, não é real mente uma estrada. Quer dizer, é, mas você não vai conseguir passar.
Wulfgar deteve sua montaria.
- Chega de tolices, mago! - exigiu ele, irritado, pois os anos de desconfiança em relação aos praticantes das artes mágicas transbordavam em meio à
sua frustração. - Podemos entrar ou não?
- Ninguém está com tolices, eu lhe asseguro - disse Harkle, esperando manter o encontro em termos amigáveis.
Mas Regweld interveio.
- É um daqueles - disse acusadoramente o mago gordo, levantando-se de seu banquinho.
Wulfgar fitou-o, curioso.
- Um bárbaro - explicou Regweld. - Um guerreiro treinado para odiar aquilo que não consegue compreender. Vá em frente, guerreiro. Tire esse martelão
aí das suas costas.
Wulfgar hesitou, dando-se conta da própria fúria irracional, e olhou para os amigos em busca de apoio. Ele não queria estragar os planos de Bruenor em nome
da própria estreiteza de espírito.
- Vá em frente - insistiu Regweld, colocando-se no centro da estrada.
- Pegue o seu martelo e o atire em mim. Satisfaça seu desejo sincero de des- mascarar a tolice de um mago! E aproveite para abater um deles! Isso é que
eu chamo de bom negócio! - Ele apontou o próprio queixo. - Bem aqui - admoestou ele.
- Regweld - suspirou Harkle, balançando a cabeça. - Por favor, faça- lhe a vontade, guerreiro. Faça aquele rosto abatido sorrir.
Wulfgar olhou mais uma vez para seus amigos, mas novamente eles não tinham as respostas. Regweld resolveu por ele:
- Filho bastardo de um caribu.
Garra de Palas já girava pelo ar antes que o homem gordo tivesse terminado o insulto, rumando direto para o alvo. Regweld não se esquivou e, pouco antes de
passar por cima da cerca, o martelo se chocou contra algo invisível, mas tão palpável quanto a rocha. Ressoando como um gongo cerimonial, o muro transparente estremeceu
e ondas percorreram toda a sua extensão, visíveis aos espectadores estarrecidos como meras distorções das imagens por trás do muro. Os amigos perceberam pela primeira
vez que a cerca não era real, e sim uma pintura sobre a superfície do muro transparente.
Garra de Palas caiu por terra, como se todo o seu poder tivesse se exaurido, e levou um bom tempo para reaparecer nas mãos de Wulfgar.
A gargalhada de Regweld foi mais de vitória que de graça, mas Harkle meneou a cabeça.
- Sempre às custas dos outros - ralhou. - Você não tinha o direito de fazer isso.
- Ele precisava de uma lição - retorquiu Regweld. - A humildade é sempre um bem valioso para um guerreiro.
Régis agüentou enquanto pôde. Sabia o tempo todo sobre o muro invisível e desatou a rir naquele instante. Drizzt e Bruenor não resistiram e acompanharam o
halfling, e até mesmo Wulfgar, recuperado do choque, sorriu de sua própria "tolice".
Obviamente, Harkle não teve escolha a não ser parar de repreender Regweld e se juntar a eles.
- Entrem - ele implorou aos amigos. - O terceiro mourão é real; ali encontrarão a porteira. Mas, primeiro, desmontem e tirem as selas de seus cavalos.
As suspeitas de Wulfgar retornaram repentinamente, e uma carranca sufocou-lhe o sorriso.
- Explique-se - ele exigiu de Harkle.
- Faça o que ele manda! - ordenou Régis. - Ou terá uma surpresa ainda maior que a última.
Drizzt e Bruenor já haviam escorregado de suas selas, intrigados, mas nem um pouco temerosos em relação ao hospitaleiro Harkle Harpell. Wulfgar ergueu os
braços, impotente, e fez o mesmo, tirou os arreios do ruão e conduziu o animal, junto com o pônei de Régis, atrás dos demais.
Régis encontrou a entrada facilmente e a abriu para os amigos. Entraram sem medo, mas foram subitamente assaltados por lampejos ofuscantes de luz.
Quando seus olhos voltaram a ver, eles descobriram que seus cavalos e pôneis haviam sido reduzidos ao tamanho de gatos!
- O quê? - deixou escapar Bruenor, mas Régis estava rindo novamente e Harkle agia como se nada de incomum tivesse acontecido.
- Peguem-nos e venham comigo - ele instruiu. - Está quase na hora da ceia e a comida d'0 Varapau de Pileque está particularmente deliciosa hoje à noite!
Ele os fez contornar o lado da estranha mansão até uma ponte que cruzava o centro do outeiro. Bruenor e Wulfgar se sentiam ridículos carregando suas montarias,
mas Drizzt aceitava o fato com um sorriso e Régis desfrutava completamente do espetáculo ultrajante; tendo aprendido em sua primeira visita que Sela Longa não era
um lugar para se levar a sério, ele apreciava as idiossincrasias e os hábitos singulares dos Harpells simplesmente em nome da diversão.
Régis sabia que a ponte em arco diante deles serviria como mais um exemplo. Embora o vão sobre o riacho não fosse grande, aparentemente nada sustentava a
ponte e suas pranchas estreitas não tinham adornos, a ponto de não apresentar corrimãos.
Mais um Harpell de túnica, este incrivelmente velho, estava sentado num banquinho, o queixo numa das mãos, resmungando consigo mesmo e aparentemente ignorando
por completo os forasteiros.
Quando Wulfgar, à frente do grupo e ao lado de Harkle, aproximou-se da margem do riacho, deu um salto para trás e pôs-se a ofegar e a gaguejar. Régis deu
uma risadinha, sabendo o que o homenzarrão tinha visto, e Drizzt e Bruenor logo compreenderam.
O riacho SUBIA a encosta da colina, depois desaparecia logo antes do cume, mas os companheiros ouviam a água passando veloz diante deles. Então o riacho reaparecia
sobre o cimo da colina e escorria pela outra encosta.
O velho pôs-se de pé com um salto repentino e correu em direção a Wulfgar.
- Qual o significado disto? - gritava, desesperado. - Como pode ser? - Esmurrou o imenso peito do bárbaro de pura frustração.
Wulfgar procurou uma escapatória, não desejando nem mesmo agarrar o velho para contê-lo, com medo de partir sua forma frágil. Tão abruptamente quanto viera,
o velho correu de volta ao banquinho e reassumiu sua atitude silenciosa.
- Coitado do Chardin - disse Harkle, melancólico. - Foi poderoso em sua época. Foi ele quem mudou o curso do rio. Mas já faz quase vinte anos que
ele está obcecado em descobrir o segredo da invisibilidade sob a ponte.
- E no que o riacho é diferente do muro? - especulou Drizzt. - Sem dúvida, esse encantamento não é desconhecido na comunidade de magos.
- Ah, mas existe uma diferença - foi a resposta rápida de Harkle, empolgado ao descobrir alguém de fora da Mansão de Hera aparentemente interessado
em suas obras. - Um objeto invisível não é tão raro, mas um campo de invisibilidade... - Com um gesto largo da mão, apontou o riacho. - Tudo o que entra no rio naquele
ponto assume a propriedade - ele explicou. - Mas apenas enquanto permanecer no campo. E, para uma pessoa na área encantada - sei disso porque eu mesmo fiz o teste
-, tudo além do campo fica invisível, apesar de a água e os peixes parecerem normais. Isso desafia nosso conhecimento das propriedades da invisibilidade e pode,
na verdade, refletir um rasgão na urdidura de um plano inteiro da existência, ainda desconhecido!
Ele viu que sua agitação excedera a compreensão ou o interesse dos companheiros do drow havia algum tempo, por isso ele se acalmou e educadamente mudou de
assunto.
- O alojamento para seus cavalos fica naquele edifício - disse ele, apontando uma das estruturas baixas de madeira. - A sob-ponte os levará até lá.
Devo cuidar de um outro assunto no momento. Talvez possamos nos encontrar mais tarde na taverna.
Wulfgar, sem entender completamente as indicações de Harkle, pisou de leve na primeira prancha de madeira da ponte e foi prontamente atirado para trás por
alguma força invisível.
- Eu disse a sob-ponte - gritou Harkle, apontando o lado de baixo da ponte. - Vocês não podem atravessar o rio deste lado pela sobreponte; ela é usada
para voltar! E para não haver discussões - ele explicou.
Wulfgar tinha suas dúvidas sobre uma ponte que não enxergava, mas não quis parecer covarde diante dos amigos e do mago. Colocou-se ao lado do arco ascendente
da ponte e cautelosamente esticou o pé em direção à parte de baixo da estrutura de madeira, tateando em busca da travessia invisível. Havia apenas ar e a corrente
imperceptível de água logo abaixo de seu pé, e ele hesitou.
- Vamos - estimulou Harkle.
Wulfgar mergulhou de cabeça, preparando-se para cair na água. Mas, para sua absoluta surpresa, ele não caiu para baixo. Ele caiu para cima!
- Aaah! - gritou o bárbaro, ao bater com a cabeça no fundo da ponte.
Ficou estendido ali durante um bom tempo, incapaz de se orientar, de costas sobre o fundo da ponte, olhando para baixo em vez de para cima.
- Viu! - foi o grito agudo do mago. - A sob-ponte!
Drizzt foi o seguinte, saltou para a área encantada com uma cambalhota fácil e pousou suavemente ao lado de seu amigo.
- Você está bem? - perguntou.
- A estrada, meu amigo - gemeu Wulfgar. - Tenho saudades da estrada e dos orcs. É mais seguro.
Drizzt o ajudou a se manter de pé, pois a mente do bárbaro protestou o caminho todo contra ficar de cabeça para baixo sob a ponte, com um riacho invisível
correndo sobre sua cabeça.
Bruenor também tinha lá suas reservas, mas uma provocação do halfling o fez seguir em frente e logo os companheiros pisavam a relva do mundo natural na outra
margem do riacho. Dois edifícios se erguiam adiante e eles se dirigiram para o menor deles, aquele que Harkle indicara.
Uma mulher de túnica azul os recebeu à porta.
- Quatro? - ela perguntou retoricamente. - Vocês deveriam ter mandado avisar.
- Harkle nos enviou - Régis explicou. - Não somos destas bandas. Desculpe-nos por ignorarmos os seus costumes.
- Muito bem, então - bufou a mulher. - Vamos entrando. Estamos, na verdade, excepcionalmente tranqüilos para esta época do ano. Estou certa de que
tenho espaço para seus cavalos. - Ela os conduziu ao interior da sala principal da estrutura, uma câmara quadrangular. Todas as paredes estavam recobertas, do chão
ao teto, por pequenas gaiolas, grandes o suficiente para um cavalo do tamanho de um gato esticar as pernas. Muitas estavam ocupadas, as placas de identificação indicavam
estarem reservadas para determinados membros do clã Harpell, mas a mulher encontrou quatro completamente vazias e dentro delas colocou os cavalos dos companheiros.
- Podem pegá-los quando quiserem - ela explicou, entregando a cada um deles uma chave para a gaiola de sua respectiva montaria. Ela se deteve quando
chegou a Drizzt, estudando-lhe os traços formosos. - O que temos aqui? - ela perguntou, sem perder o tom de voz calmo e monótono. - Não me informaram da sua chegada,
mas tenho certeza de que muitos desejarão uma audiência com você antes de partirem! Nunca vimos alguém da sua espécie.
Drizzt meneou a cabeça e não respondeu, sentindo-se cada vez mais desconfortável com esse novo tipo de atenção. De algum modo, aquilo parecia aviltá-lo ainda
mais que as ameaças dos camponeses ignorantes. Contudo, ele compreendia aquela curiosidade e imaginou que devia aos magos pelo menos algumas horas de conversa.
O Varapau de Pileque, nos fundos da Mansão de Hera, preenchia uma câmara circular. O bar ficava no meio, como o eixo de uma roda, e dentro de seu amplo
perímetro ficava outro cômodo, uma cozinha anexa. Um homem peludo, calvo e de braços descomunais esfregava incessantemente a superfície lustrosa do bar com um pano,
mais para passar o tempo que para limpar bebida derramada.
Mais ao fundo, num palco elevado, instrumentos musicais tocavam-se sozinhos, guiados pelas revoluções bruscas de um mago de cabelos brancos que portava uma
varinha e vestia calças pretas e um colete negro. Sempre que os instrumentos atingiam um crescendo, o mago apontava sua varinha e estalava os dedos da mão livre,
e uma explosão de centelhas coloridas irrompia de cada um dos quatro cantos do palco.
Os companheiros tomaram uma mesa à vista do mago que se apresentava. Tiveram liberdade para escolher o local, pois aparentemente eram os únicos fregueses
no recinto. As mesas também eram circulares, feitas de boa madeira, e ostentavam como peça central uma jóia imensa, verde e multifacetada sobre um pedestal de prata.
- Nunca tinha ouvido falar de um lugar mais esquisito - resmungou Bruenor, constrangido desde a sob-ponte, mas resignado diante da necessidade de falar
com os Harpells.
- Nem eu - disse o bárbaro. -Tomara que partamos em breve.
- Vocês dois estão presos nas câmaras estreitas de suas mentes - ralhou Régis. - É um lugar para se apreciar, e vocês sabem que aqui nenhum perigo
nos espreita. - Ele piscou quando seu olhar recaiu sobre Wulfgar. - Nada sério, de qualquer maneira.
- Sela Longa nos oferece um descanso há muito necessário - acrescentou Drizzt. - Aqui, podemos traçar o curso de nossa próxima jornada em segurança
e voltar à estrada revigorados. Foram duas semanas desde o vale até Luskan, e quase mais uma até aqui, sem descanso. A fadiga esgota a força e tira a vantagem de
um guerreiro habilidoso. - Ele olhou particularmente para Wulfgar ao completar o raciocínio. - Um homem cansado comete erros. E os erros cometidos nos ermos são,
geralmente, fatais.
- Então, vamos relaxar e desfrutar da hospitalidade dos Harpells - disse Régis.
- Concordo - disse Bruenor, olhando ao redor -, mas que seja breve esse descanso. E onde, nos nove infernos, se meteu a criada? Ou será que a gente
tem que se servir sozinho prá conseguir comida e bebida?
- Se quiser algo, basta pedir - veio uma voz do centro da mesa. Tanto Wulfgar quanto Bruenor se levantaram imediatamente, em guarda. Drizzt notou o
fulgor de luz no interior da pedra verde e estudou o objeto, adivinhando imediatamente a função do enfeite. Olhou por sobre o ombro, para o taverneiro, que tinha
ao seu lado uma jóia semelhante.
- Um dispositivo de cristalomancia - explicou o drow aos amigos, hora eles, àquela altura, tivessem chegado à mesma conclusão e se sentissem muito idiotas
ali de pé, no meio de uma taverna vazia, com as armas nas mãos.
Régis mantinha a cabeça abaixada, os ombros a estremecer com os soluços provocados pelo riso.
- Ora! 'Cê sabia o tempo todo! - Bruenor grunhiu para ele. - 'Cê 'tá se divertindo demais às nossas custas, Ronca-bucho - o anão avisou. - Por mim já 'tô
começando a me perguntar quanto tempo mais nossa estrada ainda vai ter lugar prá você.
Régis ergueu a cabeça diante do olhar feroz de seu amigo anão, igualando-o subitamente com uma firmeza toda própria nos olhos.
- Caminhamos e cavalgamos quase seiscentos e cinqüenta quilômetros juntos! - ele retorquiu. - Enfrentamos ventos frios e ataques de orcs, brigas e
batalhas com espíritos. Permita-me um pouco de diversão, meu bom anão. Se você e Wulfgar tirassem esse peso das costas e enxergassem o verdadeiro encanto do lugar,
também estariam dando risada!
Wulfgar, de fato, sorriu. Então, de repente, atirou a cabeça para trás e urrou, livrando-se de toda a sua raiva e de todo o seu preconceito, para que pudesse
aceitar o conselho do halfling e encarar Sela Longa com mente aberta. Até mesmo o mago-músico parou de tocar para observar o espetáculo proporcionado pelo grito
catártico do bárbaro.
E, ao terminar, Wulfgar riu. Não uma risadinha divertida, mas uma gargalhada estrondosa que brotou de seu ventre e explodiu em sua boca escancarada.
- Cerveja! - disse Bruenor à jóia. Quase imediatamente, um disco flutuante de luz azul passou por cima do bar, levando até eles cerveja forte em quantidade
suficiente para durar a noite toda. Alguns minutos depois, todos os vestígios das tensões da estrada haviam se desfeito e eles brindavam e sorviam a bebida de suas
canecas com entusiasmo.
Apenas Drizzt se manteve reservado, bebericando a cerveja e permanecendo alerta. Não pressentia o perigo ali, mas desejava manter o controle diante das inevitáveis
perguntas dos magos.
Daí a pouco, os Harpells e seus amigos começaram a entrar em profusão n'O Varapau de Pileque. Os companheiros eram os únicos recém-chegados naquela noite
e todos os comensais trouxeram suas mesas para perto, partilhando histórias de viagem e brindes de amizade eterna durante o excelente jantar e, mais tarde, ao lado
de uma cálida lareira. Muitos, liderados por Harkle, ocuparam-se de Drizzt e do interesse que nutriam pelas cidades escuras dos drow, e o elfo negro não se importou
muito em responder-lhes as Perguntas.
Então vieram as indagações sobre a jornada que trouxera os companheiros tão longe. Bruenor, na verdade, foi quem as incitou, saltando sobre a mesa e proclamando:
- Salão de Mitral, lar dos meus ancestrais, você vai ser meu novamente!
Drizzt ficou preocupado. A se julgar pela reação curiosa da assembléia, o nome da antiga terra natal de Bruenor era conhecido ali, ao menos nas lendas. O
drow não temia ações malévolas por parte dos Harpells, mas simplesmente não queria o propósito da aventura acompanhando, ou até mesmo precedendo, a ele e a seus
amigos na etapa seguinte da jornada. Outras pessoas poderiam muito bem ter algum interesse em descobrir a localização de uma antiga fortaleza dos anões, um lugar
a que as lendas faziam referência como "as minas cortadas por rios de prata".
Drizzt chamou Harkle de lado.
- Já se faz tarde. Há quartos disponíveis na aldeia?
- Bobagem - irritou-se Harkle. - Vocês são meus convidados e permanecerão aqui. Os quartos já foram preparados.
- E o preço por tudo isto?
Harkle afastou a bolsa de Drizzt.
- O preço na Mansão de Hera é uma ou duas boas histórias e trazer um pouco de entretenimento à nossa existência. Você e seus amigos já pagaram por
um ano ou mais!
- Nossos agradecimentos - replicou Drizzt. - Acho que é hora de meus companheiros descansarem. Temos uma longa jornada à nossa frente, e muito mais.
- Quanto à estrada adiante - disse Harkle -, arranjei uma reunião com DelRoy, o mais velho dos Harpells atualmente em Sela Longa. Ele, mais que qualquer
um de nós, pode ser capaz de ajudar a apontar o caminho.
- Ótimo - disse Régis, inclinando-se para ouvir a conversa.
- Essa reunião tem um pequeno preço - disse Harkle a Drizzt. - DelRoy deseja uma audiência privada com você. Há muitos anos ele estuda os drow, mas
pouca coisa chega até nós.
- Concordo - replicou Drizzt. - Agora, já é hora de irmos para a cama.
- Vou lhes mostrar o caminho.
- A que horas encontraremos DelRoy? - perguntou Régis.
- De manhã - respondeu Harkle.
Régis riu, depois se inclinou para o outro lado da mesa onde Bruenor se achava sentado com uma caneca imóvel em suas mãos nodosas, sem piscar os olhos. Régis
deu ao anão um empurrãozinho e Bruenor tombou, caindo no chão com um baque surdo e sem emitir um gemido sequer de protesto.
À noitinha seria melhor - observou o halfling, apontando para uma outra mesa do outro lado da sala.
Sob a qual se achava Wulfgar.
Harkle olhou para Drizzt.
- À noitinha - ele concordou. - Vou falar com DelRoy.
Os quatro amigos passaram o dia seguinte se recuperando e desfrutando das maravilhas sem fim da Mansão de Hera. Drizzt foi chamado logo cedo para uma reunião
com DelRoy, enquanto os demais eram guiados por Harkle numa excursão pela casa principal, passando por dúzias de laboratórios de alquimia, salas de cristalomancia,
câmaras de meditação e várias salas protegidas especificamente projetadas para a conjuração de seres de outros mundos. Uma estátua de um tal Matherly Harpell se
mostrou particularmente interessante, já que a estátua era, na verdade, o próprio mago. Um coquetel malsucedido de poções deixara-o petrificado, literalmente.
E havia Pau-mandado, o cão da família, que outrora fora o primo em segundo grau de Harkle: mais uma vez, um coquetel ruim.
Harkle não guardou segredos de seus convidados, recontou a história de seu clã, suas realizações e seus fracassos, em geral desastrosos. E ele falou sobre
as terras ao redor de Sela Longa, dos bárbaros uthgardt que os companheiros haviam encontrado, os Pôneis Celestes, e as outras tribos que poderiam ainda encontrar
ao longo do caminho.
Bruenor ficou feliz pelo fato de aquela parada para descanso trazer também informações valiosas. Seu objetivo de encontrar o Salão de Mitral o angustiava
a todo momento, todos os dias, e sempre que passava algum tempo sem fazer progressos, mesmo que simplesmente precisasse repousar, ele sentia a agonia da culpa.
- 'Cê tem que querer com todo o coração - ele se repreendia com freqüência.
Mas Harkle lhe fornecera dicas importantes sobre aquelas terras, o que, sem dúvida, ajudaria em sua causa no futuro, e ele estava satisfeito quando se sentou
para a ceia n'O Varapau de Pileque. Drizzt se juntou a eles, taciturno e silencioso, e recusou-se a falar quando questionado sobre sua discussão com DelRoy.
- Pense na reunião ainda por vir - foi a resposta do drow às perguntas de Bruenor. - DelRoy é muito velho e sábio. Talvez ele seja nossa melhor esperança
de algum dia encontrarmos a estrada para o Salão de Mitral.
Bruenor estava de fato pensando na reunião por vir.
E Drizzt permaneceu em silêncio durante o resto da refeição, considerando as histórias e as imagens de sua terra natal que ele dividira com DelRoy, recordando
a beleza única de Menzoberranzan.
E os corações malévolos que a haviam espoliado.
Pouco depois, Harkle levou Drizzt, Bruenor e Wulfgar para ver o velho mago. Régis pediu para não participar da reunião, dando preferência a uma outra festa
na taverna. Eles encontraram DelRoy numa câmara pequena, sombria, à luz de tochas, e os bruxuleios de luz aumentavam o ar de mistério no rosto envelhecido do mago.
Bruenor e Wulfgar concordaram imediatamente com as observações de Drizzt sobre DelRoy, pois décadas de experiência e incontáveis aventuras estavam visivelmente gravadas
nos traços de sua pele curtida e morena. Seu corpo agora lhe faltava, era visível, mas o brilho de seus olhos pálidos revelava uma vida interior e deixava pouca
dúvida quanto à lucidez de sua mente.
Bruenor abriu seu mapa sobre a mesa circular da sala, ao lado dos livros e rolos de pergaminho que DelRoy trouxera. O velho mago o estudou cuidadosamente
durante alguns segundos, traçando a linha que trouxera os companheiros até Sela Longa.
- Do que você se lembra sobre os antigos salões, anão? - ele perguntou.
- Marcos na paisagem ou povos vizinhos?
Bruenor chacoalhou a cabeça.
- As imagens na minha cabeça mostram os salões profundos e as oficinas, o som do ferro sobre a bigorna. A debandada do meu clã começou nas montanhas;
isso é tudo o que sei.
- O norte é um território vasto - comentou Harkle. - Muitas cordilheiras extensas poderiam abrigar uma fortaleza assim.
- E por isso que o Salão de Mitral, apesar de toda a sua suposta riqueza, nunca foi encontrado - replicou DelRoy.
- Daí o nosso dilema - disse Drizzt. - Decidir onde começar a procurar!
- Ah, mas vocês já começaram - respondeu DelRoy. - Foi uma sábia decisão vir para o interior; a maioria das lendas sobre o Salão de Mitral se origina
nas terras a leste daqui, ainda mais distantes da costa. Parece provável que seu objetivo esteja entre Sela Longa e o grande deserto; norte ou sul, não sei dizer.
Fizeram bem.
Drizzt assentiu e cortou a conversa quando o velho mago voltou a examinar silenciosamente o mapa de Bruenor, marcando os pontos estratégicos e consultando
com freqüência o monte de livros que havia empilhado ao lado da mesa. Bruenor rondava DelRoy, ansioso por qualquer conselho ou revelação. Os anões eram um povo paciente,
uma característica que permitia que sua arte eclipsasse as obras de outras raças, e Bruenor manteve a calma o melhor que pôde, sem querer pressionar o mago.
Algum tempo depois, satisfeito por ter completado a organização de todas as informações pertinentes, DelRoy falou mais uma vez.
Aonde iriam a seguir - ele perguntou a Bruenor -, se aqui não conseguissem aconselhamento?
O anão voltou a olhar o mapa, com Drizzt a espiar por sobre seu ombro, e traçou uma linha em direção ao leste com o dedo hirsuto. Olhou para Drizzt em busca
de anuência ao alcançar um certo ponto que eles já haviam discutido anteriormente na estrada. O drow assentiu.
Cidadela Adbar - declarou Bruenor, batendo com o dedo sobre o mapa.
- A fortaleza dos anões - disse DelRoy, não muito surpreso. - Excelente escolha. Pode ser que o Rei Harbromm e seus anões venham a ser de grande ajuda.
Estão lá, nas Montanhas de Mitral, há incontáveis séculos.
Sem dúvida, Adbar era antiga mesmo nos dias em que os martelos do Salão de Mitral repicavam com as canções dos anões.
- A Cidadela Adbar é o que nos aconselha, então? - perguntou Drizzt.
- E sua própria escolha, mas não posso oferecer um destino melhor - respondeu DelRoy. - Mas o trajeto é longo, cinco semanas pelo menos, se tudo correr
bem. E na estrada oriental além de Sundabar, isso é improvável. Ainda assim, pode ser que vocês cheguem lá antes das primeiras geadas do inverno, mas eu duvido que
sejam capazes de conseguir as informações com Harbromm e retomar sua jornada antes da próxima primavera!
- Então a escolha parece clara - declarou Bruenor. - Para Adbar!
- Há mais coisas que você deve saber - disse DelRoy. - E este é o verdadeiro conselho que darei a você: não deixe que a visão promissora ao fim da
estrada ofusque as possibilidades ao longo da estrada. Seu curso até aqui seguiu trajetos diretos, primeiro do Vale do Vento Gélido até Luskan, depois de Luskan
até aqui. Há pouca coisa, a não ser monstros, ao longo de qualquer uma dessas duas estradas para dar a um viajante motivo para se desviar. Mas, na jornada para Adbar,
vocês passarão por Lua Argêntea, cidade de sabedoria e tradição, e da Senhora Alustriel e a Câmara dos Sábios, a melhor biblioteca de todo o norte. Muitos naquela
bela cidade podem ser de mais assistência à sua demanda do que eu, ou até mesmo que o Rei Harbromm.
- E, além de Lua Argêntea, vocês encontrarão Sundabar, também uma antiga fortaleza dos anões, onde governa Helm, afamado amigo dos anões. Os laços
dele com sua raça são fortes, Bruenor, de muitas gerações atrás. Laços, talvez, com sua própria gente.
- Possibilidades! - disse Harkle, exultante.
Consideraremos seu sábio conselho, DelRoy - disse Drizzt.
- É - concordou o anão, animado. - Quando a gente deixou o vale, eu não tinha idéia do que fazer depois de Luskan. Minhas esperanças eram seguir
uma estrada de palpites, já esperando que mais da metade não tivesse valor. O halfling foi sábio trazendo a gente prá este lugar, pois encontramos uma trilha de
pistas! E pistas levam a mais pistas! - Ele olhou ao redor, para o grupo entusiasmado - Drizzt, Harkle e DelRoy - e então notou Wulfgar, ainda sentado em silêncio
em sua cadeira, os braços descomunais cruzados sobre o peito, assistindo a tudo sem emoção aparente. - E você, garoto? - indagou Bruenor. - Tem alguma idéia?
Wulfgar se inclinou, repousando os cotovelos sobre a mesa.
- Não é minha a demanda nem a terra - ele explicou. - Acompanho você, confiante em qualquer senda que escolher.
- E alegro-me com seu júbilo e seu arrebatamento - ele acrescentou baixinho.
Bruenor tomou a explicação como completa e virou-se novamente para DelRoy e Harkle, desejando algumas informações específicas sobre a estrada adiante. Drizzt,
porém, sem se convencer da sinceridade da última declaração de Wulfgar, deixou seu olhar persistir sobre o jovem bárbaro, notando a expressão nos olhos dele enquanto
observava Bruenor.
Arrependimento?
Passaram mais dois dias sossegados na Mansão de Hera, apesar de Drizzt ser acossado constantemente pelos curiosos Harpells, que queriam mais informações sobre
sua raça tão raramente vista. Ele aceitou as perguntas com cortesia, compreendendo-lhes as boas intenções, e respondeu da melhor maneira que pôde. Quando Harkle
veio escoltá-los para sair na quinta manhã, estavam descansados e prontos para dar prosseguimento aos seus negócios. Harkle prometeu arranjar a devolução dos cavalos
aos donos de direito, dizendo que era o mínimo que poderia fazer pelos estrangeiros que haviam trazido tamanho entretenimento à vila.
Mas, na verdade, os amigos haviam se beneficiado muito mais com a estada. DelRoy e Harkle haviam dado a eles informações valiosas e, talvez o mais importante,
haviam lhes restaurado a esperança na missão. Bruenor estava de pé e ativo antes da aurora daquela última manhã, a adrenalina a correr nas veias com a idéia de voltar
à estrada agora que ele sabia aonde ir.
Deixaram a mansão, lançando muitas despedidas e olhares tristonhos por sobre os ombros - até mesmo Wulfgar, que chegara ali tão inflexível em sua antipatia
para com os magos.
Eles cruzaram a sobreponte, despediram-se de Chardin, perdido demais em suas meditações sobre o riacho para sequer notá-los, e logo descobriram que a estrutura
ao lado do estábulo em miniatura era uma fazenda experimental.
- Isto mudará a fisionomia do mundo! - Harkle assegurou-lhes, desviando-os um pouco na direção do edifício para olhar mais de perto. Drizzt adivinhou
o que o mago quis dizer mesmo antes de entrarem, tão logo ouviu os balidos agudos e os trinados cricrilantes. Como o estábulo, a fazenda compreendia uma sala, embora
parte dela não tivesse telhado e fosse, na verdade, um pasto entre quatro paredes. Vacas e ovelhas do tamanho de gatos ruminavam por ali, enquanto galinhas do tamanho
de camundongos escapavam por entre as minúsculas pernas dos animais.
- É claro que esta é a primeira temporada e não vimos ainda os resultados - explicou Harkle -, mas esperamos uma alta produção, considerando-se a pequena
quantidade de recursos envolvida.
- Eficiência - riu Régis. - Menos comida, menos espaço e você pode fazê-los voltar ao tamanho normal quando quiser comê-los!
- Exatamente - disse Harkle.
A seguir, foram ao estábulo, onde Harkle escolheu excelentes montarias para eles, dois cavalos e dois pôneis. Eram presentes, Harkle explicou, a serem devolvidos
apenas ao bel-prazer dos companheiros.
- É o mínimo que podemos fazer para ajudar em tão nobre missão - disse Harkle, com uma reverência, para evitar os protestos de Bruenor e Drizzt.
A estrada serpenteava, seguindo em frente pela encosta atrás da colina. Harkle parou por um instante, coçando o queixo, uma expressão perplexa no rosto.
- O sexto mourão - disse a si mesmo -, mas o da esquerda ou o da direita?
Um homem que trabalhava no alto de uma escada (mais uma divertida curiosidade: ver uma escada se alçar acima da balaustrada falsa da cerca e descansar em
pleno ar contra o topo do muro invisível) veio em seu auxílio.
- Esqueceu de novo? - ele riu de Harkle. Apontou um dos lados da balaustrada. - Sexto mourão à sua esquerda!
Harkle afastou seu constrangimento com um encolher de ombros e seguiu em frente.
Os companheiros observaram o trabalhador, curiosos, enquanto deixavam a colina, as montarias ainda enfiadas debaixo dos braços. Ele trazia um balde e alguns
trapos e esfregava várias manchas castanho-avermelhadas no muro invisível.
- Aves que voam baixo - explicou Harkle, a título de desculpas. - Mas, nada temam. Regweld está tentando resolver o problema neste exato momento.
- Agora, chegamos ao final do nosso encontro, embora muitos anos venham a se passar antes que vocês sejam esquecidos na Mansão de Hera! A estrada
leva diretamente à aldeia de Sela Longa. Vocês podem reabastecer seus suprimentos por lá: tudo já foi arranjado.
- Meus mais profundos cumprimentos a você e a sua gente - disse Bruenor, com uma reverência. - Por certo que Sela Longa foi uma parada alegre numa
estrada triste! - Os demais rapidamente concordaram.
- Adeus, então, Companheiros do Salão - suspirou Harkle. - Os Harpells esperam receber um pequeno sinal de gratidão quando vocês finalmente encontrarem
o Salão de Mitral e colocarem as antigas forjas para arder novamente!
- O tesouro de um rei! - assegurou-lhe Bruenor quando se puseram a caminho.
Estavam de volta à estrada, além das fronteiras de Sela Longa, antes do meio-dia, e as montarias trotavam fácil e com os alforjes cheios.
- Bem, o que 'cê prefere, elfo - Bruenor perguntou mais tarde naquele mesmo dia -, as espetadelas da lança de um soldado enfurecido ou o nariz bisbilhoteiro
de um mago curioso?
Drizzt riu defensivamente ao pensar na pergunta. Sela Longa tinha sido tão diferente de qualquer outro lugar em que já estivera e, ainda assim, tão igual.
Em todo caso, sua cor o destacava como uma singularidade e não era tanto a hostilidade do tratamento que geralmente recebia que o incomodava, mas os lembretes constrangedores
de que seria sempre diferente.
Somente Wulfgar, que cavalgava ao lado dele, ouviu o murmúrio que lhe serviu de resposta:
- A estrada.

8. NÃO EXISTE HONRA

Por que vocês se aproximam da cidade antes do amanhecer? - o Guardião da Noite do Portão Norte perguntou ao emissário da caravana mercante que havia parado
pouco antes da muralha de Luskan. Jierdan, em seu posto ao lado do Guardião da Noite, assistia a tudo com especial interesse, certo de que aquele grupo viera de
Dez-Burgos.
- Não abusaríamos das leis da cidade se nosso assunto não fosse urgente - respondeu o representante. - Não descansamos há dois dias. - Outro homem
emergiu de um agrupamento de carroças e trazia um corpo flácido sobre os ombros.
- Assassinado na estrada - explicou o representante. - E outro membro do grupo foi seqüestrado. Cattiebrie, filha do próprio Bruenor Martelo de Batalha.
- Uma donzela anã? - deixou escapar Jierdan, suspeitando outra coisa, mas disfarçando sua agitação com medo de que isso pudesse implicá-lo.
- Não, não é anã. Uma mulher - lamentou o representante. - A mais bela em todo o vale, talvez em todo o norte. O anão acolheu a órfã ainda criança
e reclamou-a como sua filha.
- Orcs? - perguntou o Guardião da Noite, mais preocupado com os possíveis perigos na estrada do que com a sorte de uma única mulher.
- Não foi obra dos orcs - respondeu o representante. - Dissimulação e astúcia tiraram Cattiebrie de nós e mataram o condutor. Sequer descobrimos o
ato hediondo até a manhã seguinte.
Jierdan não precisou de mais explicações nem mesmo de uma descrição mais completa de Cattiebrie para juntar as peças do quebra-cabeça. A ligação da moça a
Bruenor explicava o interesse de Entreri por ela. Jierdan olhou para o horizonte oriental e para os primeiros raios da aurora que se aproximava, ansioso por se desembaraçar
de seus deveres na muralha para que pudesse relatar suas descobertas a Dendibar. Aquela notícia deveria ajudar a aplacar a ira do mago variegado por ter o soldado
perdido o rastro do drow ainda nas docas.
- Ele não os encontrou? - sibilou Dendibar para Sidnéia.
- Nada encontrou a não ser uma trilha fria - respondeu a feiticeira mais jovem. - Se ainda estiverem nas docas, estão bem disfarçados.
Dendibar fez uma pausa para considerar o relatório de sua aprendiza. Algo estava errado naquele cenário. Quatro personagens tão distintivos não poderiam ter.
simplesmente desaparecido.
- Descobriu alguma coisa sobre o assassino então, ou sobre a companheira dele?
- Os vagabundos nos becos o temem. Até mesmo os rufiões o evitam respeitosamente.
- Então nosso amigo é conhecido no submundo - refletiu Dendibar.
- Um assassino de aluguel, eu diria - raciocinou Sidnéia. - Provavelmente do sul. Talvez de Águas Profundas, mas deveríamos ter ouvido mais sobre ele
se esse fosse o caso. Talvez mais ao sul ainda, das terras fora do nosso alcance.
- Interessante - replicou Dendibar, tentando formular alguma teoria para satisfazer a todas as variáveis. - E a moça?
Sidnéia deu de ombros:
- Não acredito que ela o acompanhe de boa vontade, apesar de não ter tentado se livrar dele. E, quando você o viu na visão de Morkai, ele viajava só.
- Ele a adquiriu - veio uma resposta inesperada desde a porta. Jierdan entrou na sala.
- O quê? Sem ser anunciado? - escarneceu Dendibar.
- Tenho novidades que não poderiam esperar - respondeu Jierdan audaciosamente.
- Eles deixaram a cidade? - sugeriu Sidnéia, dando voz às suas suspeitas para aumentar a fúria que adivinhava no rosto pálido do mago variegado. Sidnéia
compreendia perfeitamente bem os perigos e as dificuldades das docas e quase tinha pena de Jierdan por incorrer na ira do implacável Dendibar numa situação completamente
fora de seu controle. Mas Jierdan ainda era seu rival pelas graças do mago variegado, e ela não deixaria a compaixão atrapalhar suas ambições.
Não - retrucou Jierdan. - A novidade que trago não se refere ao grupo do drow - Ele voltou a fitar Dendibar. - Uma caravana chegou a Luskan hoje, em busca
da mulher.
- Quem é ela? - perguntou Dendibar, de repente muito interessado, já esquecendo sua raiva por causa da intromissão.
¦ - A filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha - replicou Jierdan. - - Cattiebrie! É claro! - sibilou Dendibar, familiarizado com as pessoas mais
importantes de Dez-Burgos. - Eu devia ter adivinhado! - Ele se voltou para Sidnéia. - Meu respeito pelo nosso misterioso cavaleiro cresce a cada dia. Encontre-o
e traga-o de volta!
Sidnéia assentiu, embora temesse que o pedido de Dendibar se mostrasse mais difícil de realizar do que acreditava o mago variegado, provavelmente uma tarefa
muito além até mesmo de suas habilidades.
Ela passou aquela noite, até as primeiras horas da manhã seguinte, vasculhando as vielas e os pontos de encontro da zona portuária. Mas, mesmo usando seus
contatos nas docas e todos os truques mágicos à sua disposição, não encontrou sinal de Entreri e Cattiebrie, nem ninguém disposto ou capaz de fornecer qualquer informação
que pudesse ajudá-la na busca.
Cansada e frustrada, ela voltou à Torre das Hostes no dia seguinte, passando pelo corredor que levava ao quarto de Dendibar, muito embora o mago lhe tivesse
ordenado que se apresentasse diretamente a ele assim que retornasse. Sidnéia não tinha a menor disposição para ouvir a arenga do mago variegado a respeito de seu
fracasso.
Ela entrou no pequeno quarto, próximo ao tronco principal da Torre das Hostes, na ala norte, abaixo dos aposentos do Mestre do Torreão Norte, e aferrolhou
as portas, selando-as com um encantamento contra intromissões indesejadas.
Ela mal caíra na cama quando a superfície de seu cobiçado espelho de cristalomancia começou a remoinhar e a brilhar.
- Maldito seja, Dendibar - ela resmungou, supondo que a perturbação era obra de seu mestre. Arrastando o corpo cansado até o espelho, fitou as profundezas
do vidro, sintonizou-se ao turbilhão para que a imagem clareasse. Não foi Dendibar quem ela encarou, para seu alívio, mas um mago de uma vila distante, um pretendente
que a impassível Sidnéia mantinha suspenso por um fio de esperança para que pudesse manipulá-lo sempre que precisasse.
- Saudações, bela Sidnéia - disse o mago. - Espero não ter perturbado seu sono, mas é que tenho novidades incríveis!
Normalmente, Sidnéia teria diplomaticamente escutado o mago, fingido interesse na história e educadamente se eximido do encontro. Mas agora, com o peso das
exigências prementes de Dendibar sobre seus ombros, ela não tinha paciência para distrações.
- Não é uma boa hora! - retrucou.
O mago, tão enlevado estava com as próprias novidades, pareceu não lhe notar o tom conclusivo.
- A coisa mais maravilhosa aconteceu em nossa vila - foi dizendo ele.
- Harkle! - Sidnéia gritou para interromper-lhe o ímpeto de tagarelice. O mago se deteve, desconcertado.
- Mas, Sidnéia... - disse ele.
- Uma outra hora - ela insistiu.
- Mas com que freqüência, nos dias de hoje, alguém consegue realmente ver um elfo drow e falar com ele? - persistiu Harkle.
- Não posso... - Sidnéia interrompeu o que ia dizer, assimilando as últimas palavras de Harkle. - Um elfo drow? - ela balbuciou.
- Sim - foi a resposta exultante do orgulhoso Harkle, emocionado por terem as novidades aparentemente impressionado sua amada Sidnéia. - Drizzt Do'Urden
é o nome dele. Deixou Sela Longa há dois dias somente. Eu teria contado antes, mas a mansão andou simplesmente num alvoroço com essa coisa toda.
- Conte-me mais, meu querido Harkle - disse Sidnéia sedutoramente. - Conte-me tudo.
- Preciso de informações.
Sussurro ficou imóvel ao som da voz inesperada, adivinhando imediatamente de quem se tratava. Sabia que ele estava na cidade e sabia também que ele era o
único capaz de atravessar sorrateiramente suas defesas e entrar nos seus aposentos secretos.
- Informações - Entreri disse novamente, deixando as sombras atrás de um biombo.
Sussurro enfiou o pote de ungüento cicatrizante no bolso e fez uma avaliação do homem. Os boatos falavam dele como o mais mortífero dos assassinos e ela,
bastante familiarizada com essa gente, soube imediatamente que os boatos eram verdadeiros. Sentiu o poder de Entreri e a coordenação desembaraçada de seus movimentos.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - avisou ela, com valentia.
Entreri se moveu para um ponto de observação mais vantajoso a fim de estudar a audaciosa mulher. Ele também ouvira falar dela, uma sobrevivente das ruas violentas,
bela e mortal. Mas, aparentemente, Sussurro perdera um embate. O nariz estava quebrado e desarticulado, esborrachado em sua face.
Sussurro compreendeu o escrutínio. Aprumou os ombros e atirou orgulhosamente a cabeça para trás.
- Um acidente infeliz - ela sibilou.
- Não é da minha conta - Entreri devolveu. - Vim aqui atrás de informações.
Sussurro deu-lhe as costas para se ocupar de sua rotina, tentando não parecer incomodada.
- Meu preço é alto - ela disse com toda serenidade.
Voltou-se para Entreri e o intenso, porém assustador aspecto de calma no rosto dele lhe revelou, sem sombra de dúvida, que sua vida seria a única recompensa
por sua cooperação.
- Procuro quatro companheiros - disse Entreri. - Um anão, um drow, um rapaz e um halfling.
Sussurro não estava acostumada àquele tipo de situação. As bestas não estavam ali para apoiá-la, nenhum guarda-costas esperava pelo sinal dela atrás de uma
porta secreta nas proximidades. Tentou manter a calma, mas Entreri conhecia a profundidade de seu medo. Ela riu de leve e apontou o nariz quebrado.
- Encontrei o seu anão e o drow, Artemis Entreri. - Enfatizou o nome ao pronunciá-lo, esperando que o reconhecimento recolocasse o assassino na defensiva.
- Onde eles estão? - perguntou Entreri, ainda no controle. - E o que lhe pediram?
Sussurro deu de ombros:
- Se ainda estão em Luskan, não sei onde. É mais provável que já tenham partido; o anão tem um mapa das terras do norte.
Entreri considerou as palavras.
- Você não faz jus à sua reputação - disse ele sarcasticamente. - Aceita tamanha injúria e deixa que eles escapem por entre seus dedos?
Os olhos de Sussurro se estreitaram de fúria.
- Escolho cuidadosamente quando lutar - ela sibilou. - Os quatro eram perigosos demais para se tentar uma vingança frívola. Deixe-os ir aonde bem entenderem.
Não quero ter negócios com eles novamente.
A aparência calma de Entreri fraquejou um pouco. Ele já estivera no Alfanje e ouvira falar das façanhas de Wulfgar. E agora isto. Uma mulher como Sussurro
não era facilmente intimidada. Talvez ele devesse realmente reavaliar a força de seus oponentes.
- É destemido o anão - ofereceu Sussurro, percebendo-lhe o desalento e adorando aumentar-lhe o desconforto. - E cuidado com o drow, Artemis Entreri
- ela sibilou incisivamente, tentando, com a severidade de seu tom de voz, relegá-lo a um nível semelhante de respeito pelos companheiros. - Ele caminha por entre
as sombras invisíveis e ataca a partir das trevas. Ele conjura um demônio na forma de um grande gato e...
Entreri se virou e partiu, sem intenção de permitir que Sussurro ganhasse um pouco mais de vantagem.
Deleitando-se com sua vitória, Sussurro não conseguiu resistir à tentação de atirar um último dardo.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - disse ela novamente, readquirindo, com a ameaça, um certo grau de orgulho.
Ela se voltou novamente para a pequena penteadeira e pegou o pote de ungüento, bastante contente consigo mesma. Examinou o ferimento no espelho da penteadeira.
Não estava tão ruim. A pomada o removeria como havia removido tantas cicatrizes, ossos do ofício.
Compreendeu sua estupidez ao ver a sombra deslizar por trás do próprio reflexo no espelho e sentir o ar lhe roçar as costas. Seu ramo de atividade não tolerava
erros e não oferecia uma segunda chance. Pela primeira e última vez na vida, Sussurro deixara o orgulho se elevar acima do discernimento.
Um último gemido lhe escapou dos lábios quando o punhal ajaezado se enterrou em suas costas.
- Eu também escolho com cuidado quando lutar - Entreri sussurrou- lhe ao pé do ouvido.
A manhã seguinte encontrou Entreri às portas de um lugar no qual ele não queria entrar: a Torre das Hostes Arcanas. Sabia que estava ficando sem opções. Convencido
agora de que os companheiros há muito haviam deixado Luskan, o assassino precisava de alguma ajuda mágica para reencontrar a trilha. Levara quase dois anos para
localizar o halfling em Dez-Burgos e sua paciência estava no fim.
Com Cattiebrie ao seu lado, relutante, mas obediente, ele se aproximou da estrutura e foi prontamente escoltado até a sala de audiências de Dendibar, onde
o mago variegado e Sidnéia aguardavam para saudá-lo.
- Eles deixaram a cidade - Entreri disse bruscamente, antes de qual quer troca de cumprimentos.
Dendibar sorriu para mostrar a Entreri que tinha a vantagem dessa vez.
- Pelo menos há uma semana - replicou tranqüilamente.
- E você sabe onde estão - raciocinou Entreri.
Dendibar assentiu e o sorriso ainda se enroscava em suas faces descarnadas.
O assassino não apreciava aquele jogo. Passou um bom tempo avaliando sua contraparte, em busca de alguma dica sobre as intenções do mago. Dendibar fez o mesmo,
ainda muito interessado numa aliança com o formidável matador, mas apenas se os termos lhe fossem favoráveis.
- O preço da informação? - perguntou Entreri.
- Eu nem mesmo sei o seu nome - foi a resposta de Dendibar.
É justo, pensou o assassino. Ele fez uma reverência.
- Artemis Entreri - disse ele, confiante o bastante para dizer a verdade.
- E por que você persegue os companheiros, com a filha do anão a tiracolo? - pressionou Dendibar, revelando suas cartas para dar ao assassino petulante
algo com que se preocupar.
- Isso é da minha conta - sibilou Entreri, e o estreitamento de seus olhos foi a única indicação de que o conhecimento de Dendibar o perturbara.
- Também o é da minha, se é que vamos ser aliados! - gritou Dendibar, levantando-se para parecer alto e ameaçador e intimidar Entreri.
O assassino, porém, pouco se importava com os contínuos esgares do mago, demasiado ocupado em estimar o valor de tal aliança.
- Nada pergunto sobre seus assuntos com eles - Entreri replicou, por fim. - Diga-me apenas a qual dos quatro se refere.
Foi a vez de Dendibar refletir. Ele queria Entreri em sua corte, se não por outra razão que o temor de que o assassino viesse a atrapalhá-lo. E gostava da
idéia de não precisar revelar nada sobre o artefato que procurava àquele homem tão perigoso.
- O drow tem algo que me pertence ou sabe onde posso encontrá-lo - disse ele. - Eu o quero de volta.
- E o halfling é meu - exigiu Entreri. - Onde estão eles?
Dendibar fez um sinal para Sidnéia.
- Eles passaram por Sela Longa - disse ela. - E estão a caminho de Lua Argêntea, mais de duas semanas a leste daqui.
Os nomes eram desconhecidos para Cattiebrie, mas ela estava feliz pelo fato de seus amigos levarem uma boa dianteira. Precisava de tempo para arranjar um
plano, mas questionava a própria eficiência cercada como estava por captores tão poderosos.
- E o que você propõe? - perguntou Entreri.
- Uma aliança - respondeu Dendibar.
- Mas eu já tenho a informação de que preciso - riu Entreri. - O que eu ganharia me aliando a você?
- Meus poderes levarão você até eles e o ajudarão a derrotá-los. Eles não são uma força desprezível. Considere a aliança como um benefício mútuo.
- Você e eu na estrada? Um livro e uma escrivaninha parecem lhe convir melhor, mago.
Dendibar fitou o assassino arrogante.
- Garanto-lhe que posso ir aonde desejar com uma eficiência além da sua imaginação - grunhiu ele. No entanto, desfez-se rapidamente da raiva, estando
mais interessado em completar a negociação. - Mas devo permanecer aqui. Sidnéia irá em meu lugar e Jierdan, o soldado, será sua escolta. Entreri não gostou da idéia
de viajar com Jierdan, mas decidiu não forçar a questão. Poderia ser interessante - e útil - dividir a caçada com a Torre das Hostes Arcanas. Ele concordou com os
termos.
- E quanto a ela? - Sidnéia perguntou, apontando Cattiebrie.
- Ela vai comigo - foi a resposta rápida de Entreri.
- É claro - concordou Dendibar. - Não há por que desperdiçar uma refém tão valiosa.
- Somos três contra cinco - raciocinou Sidnéia. - Se as coisas não se resolverem tão facilmente como vocês dois parecem esperar, a garota pode se mostrar
nossa ruína.
- Ela vai! - exigiu Entreri.
Dendibar já tinha a solução. Lançou um sorriso desfigurado para Sidnéia.
- Leve Bok - casquinou ele.
O rosto de Sidnéia se desfez com a sugestão, como se a ordem de Dendibar tivesse lhe roubado o desejo pela caçada.
Entreri não tinha certeza se gostava ou não da nova marcha dos acontecimentos.
Percebendo o desconforto do assassino, Dendibar, com um sinal, conduziu Sidnéia até um gabinete acortinado ao lado da sala.
- Bok - ela chamou baixinho assim que lá chegou, com um sinal de estremecimento na voz.
A coisa atravessou a cortina. Com dois metros e meio de altura e um metro de ombro a ombro, o monstro caminhou a passos rígidos até se colocar ao lado da
mulher. Parecia um homem descomunal e, de fato, o mago utilizara pedaços de corpos humanos para compor boa parte da coisa. Bok era maior e mais sólido que qualquer
homem vivo, quase do tamanho de um gigante, e fora envolvido, por meios mágicos, de uma força além dos padrões do mundo natural.
- Um golem - explicou Dendibar com orgulho. - Minha própria criação. Bok poderia nos matar a todos agora mesmo. Até mesmo sua espada cruel seria de
pouca utilidade contra ele, Artemis Entreri.
O assassino não estava tão convencido disso, mas não conseguiu disfarçar completamente seu constrangimento. Dendibar havia obviamente feito pender a balança
a seu favor naquela parceria, mas Entreri sabia que, caso voltasse atrás agora, estaria lançando o mago variegado e seus asseclas contra ele, em competição direta
pelo grupo do anão. Além do mais, levaria semanas, talvez meses, para alcançar os viajantes por meios normais e não duvidava que Dendibar pudesse chegar lá mais
rápido.
Cattiebrie partilhava dos mesmos pensamentos incômodos. Ela não tinha o menor desejo de viajar com o monstro horripilante, mas imaginava a carnificina que
encontraria quando finalmente alcançasse Bruenor e os demais caso Entreri decidisse romper a aliança.
- Nada tema - consolou-os Dendibar. - Bok é inofensivo, incapaz de qualquer pensamento independente, pois, vejam vocês, Bok não tem mente.
O golem atende aos meus comandos, ou aos de Sidnéia, e poderia se jogar numa fogueira até ser consumido se nós meramente pedíssemos que o fizesse!
-Tenho negócios a terminar na cidade - disse Entreri, sem duvidar das palavras de Dendibar e sem a menor intenção de ouvir mais detalhes sobre o golem. -
Quando partimos?
- A noite seria melhor - raciocinou Dendibar. - Volte ao jardim da Torre das Hostes assim que escurecer. Haveremos de nos encontrar lá e colocar vocês
a caminho.
Sozinho em seus aposentos, a não ser pela presença de Bok, Dendibar afagou os ombros musculosos do golem com profunda afeição. Bok era sua carta na manga,
sua proteção contra a resistência dos companheiros ou a traição de Artemis Entreri. Mas não era fácil para Dendibar separar-se facilmente do monstro, pois a coisa
representava também um papel importante como guardião contra os pretensos sucessores na Torre das Hostes. Dendibar havia sutilmente avisado os outros magos de que,
caso fosse atacado por qualquer um deles, teriam de lidar com Bok, mesmo que ele próprio estivesse morto.
Mas a estrada adiante talvez fosse longa, e o Mestre do Torreão Norte não poderia abandonar seus deveres e ainda assim esperar manter seu título. Principalmente
com o Arquimago à espera de apenas uma desculpa para se livrar dele, pois compreendia os riscos oferecidos pelas francas aspirações de Dendibar à torre central.
- Nada é capaz de deter você, meu animalzinho - Dendibar disse ao monstro. Na verdade, ele estava simplesmente reafirmando os próprios temores quanto
à decisão de enviar uma feiticeira inexperiente em seu lugar. Não duvidava da lealdade dela, nem da de Jierdan, mas Entreri e os heróis do Vale do Vento Gélido deviam
ser levados a sério.
- Dei a você o poder da caçada - explicou Dendibar enquanto atirava ao chão o invólucro do tomo e o pergaminho agora inutilizado. - O drow é o seu
objetivo e você agora é capaz de sentir a presença dele a qualquer distância. Encontre-o! Não retorne sem Drizzt Do'Urden!
Um rugido gutural saiu dos lábios azuis de Bok, o único som que o instrumento irracional era capaz de emitir.
Entreri e Cattiebrie encontraram o grupo do mago já reunido quando chegaram à Torre das Hostes mais tarde naquela noite.
Jierdan estava sozinho num canto, aparentemente nada entusiasmado quanto a tomar parte na aventura, mas sem muita escolha. O soldado temia o golem e não gostava
nada de Entreri, nem confiava nele. Contudo, temia Dendibar ainda mais e sua apreensão quanto aos possíveis riscos da estrada não se comparava aos perigos que certamente
enfrentaria nas mãos do mago variegado caso se recusasse a ir.
Sidnéia se afastou de Bok e Dendibar e atravessou a alameda para encontrar seus companheiros.
- Saudações - ela ofereceu, agora mais interessada na conciliação do que na competição com seu formidável parceiro. - Dendibar está preparando nossas
montarias. A viagem até Lua Argêntea será bem ligeira!
Entreri e Cattiebrie olharam para o mago variegado. Bok estava de pé ao lado dele, segurando um pergaminho desenrolado, enquanto Dendibar derramava o líquido
fumarento de um recipiente de boca larga sobre uma pena branca e entoava as runas de um encantamento.
Uma névoa surgiu aos pés do mago, remoinhou e depois se adensou, tomando uma forma definida. Dendibar deixou que a coisa continuasse a se transformar e deu
um ou dois passos para o lado a fim de repetir o ritual. Quando o primeiro cavalo mágico apareceu, o mago já criava o quarto e último.
Entreri ergueu as sobrancelhas.
- Quatro? - ele perguntou a Sidnéia. - Somos cinco agora.
- Bok não poderia cavalgar - ela respondeu, achando graça. - Ele vai correr. - Ela se virou e foi até onde estava Dendibar, deixando Entreri a sós
com a idéia.
- E claro - Entreri murmurou consigo mesmo, de certo modo mais desanimado do que nunca em relação à presença daquela coisa sobrenatural.
Mas Cattiebrie começara a ver as coisas por um outro ângulo. Dendibar obviamente enviara Bok junto com eles mais para ganhar uma vantagem sobre Entreri do
que para garantir a vitória sobre os amigos dela. Entreri também devia saber disso.
Sem percebê-lo, o mago criara justamente o tipo de ambiente nervoso que Cattiebrie pedira aos céus, uma situação tensa que ela poderia encontrar uma maneira
de explorar.

9. OS GRILHÕES DA REPUTAÇÃO

O sol brilhava na manhã do primeiro dia fora de Sela Longa. Os companheiros, revigorados pela estada com os Harpells, cavalgavam num ritmo forte, mas ainda
conseguiam desfrutar do tempo bom e da estrada desimpedida. A região era plana, sem marcos, nenhuma árvore ou colina à vista.
- Três dias até Nesmé, talvez quatro - Régis disse a eles.
- Está mais para três, se o tempo continuar assim - disse Wulfgar. Drizzt se inquietou sob o capuz do manto. Por mais agradável que a manhã pudesse
lhes parecer, ele sabia que ainda estavam nos ermos. Três dias poderiam se mostrar de fato uma longa viagem.
- O que 'cê sabe desse lugar, Nesmé? - Bruenor perguntou a Régis.
- Só o que Harkle nos contou - respondeu Régis. - Uma cidade de tamanho razoável, comerciantes. Mas são cautelosos. Nunca estive lá, mas as histórias
sobre o povo valente que vive na orla dos Pântanos Eternos são conhecidas em todo o norte.
- Estou intrigado com os Pântanos Eternos - disse Wulfgar. - Harkle pouco falava sobre o lugar, apenas chacoalhava a cabeça e se arrepiava todo sempre
que eu perguntava alguma coisa.
- Sem dúvida, um lugar cujo renome excede a verdade - disse Bruenor, rindo, sem se deixar impressionar por reputações. - Poderia ser pior que o vale?
Régis deu de ombros, sem se deixar convencer completamente pelo argumento do anão.
- As histórias sobre os Charcos dos Trolls, pois esse é o nome dado àquelas terras, podem ser exageradas, mas são sempre agourentas. Todas as cidades
do norte saúdam a bravura do povo de Nesmé por manter a rota comercial ao longo do Surbrin em face de tamanha provação.
Bruenor riu novamente.
- Será que as histórias não vêm da própria Nesmé, para pintar eles mais fortes do que realmente são?
Régis não discutiu.
Quando pararam para o almoço, uma cerração alta cobria o sol. Longe, ao norte, uma linha negra de nuvens aparecera e agora corria na direção deles. Drizzt
já esperava por isso. Nos ermos, até mesmo o tempo se revelava um inimigo.
Naquela tarde, a frente da borrasca se encrespou sobre eles, trazendo pancadas de chuva e pedras de granizo que retiniam ao bater no elmo amassado de Bruenor.
Repentinas vergastadas de raio cortavam o céu escuro e o trovão quase os derrubava das montarias. Mas eles continuavam a se arrastar pela lama cada vez mais profunda.
- Esta é a verdadeira provação da estrada! - berrou Drizzt por entre os uivos do vento. - Muito mais viajantes são derrotados pelas tempestades do
que pelos orcs porque não antevêem os perigos no início da jornada!
- Ora! É só uma chuvinha de verão! - desdenhou Bruenor, desafiador.
Como que em orgulhosa resposta, um raio explodiu a uma pequena distância dos cavaleiros. Os cavalos saltaram e escoicearam. O pônei de Bruenor caiu, tombando
de mau jeito na lama e quase esmagando o anão atordoado em seu desespero para ficar de pé.
Com sua montaria fora de controle, Régis conseguiu saltar da sela e rolar para longe.
Bruenor ficou de joelhos e limpou os olhos cobertos de lama, praguejando o tempo todo.
- Maldição! - disse com veemência, estudando os movimentos do pônei. - O bicho 'tá estropiado!
Wulfgar firmou o próprio cavalo e tentou partir atrás do pônei de Régis, que havia disparado, mas o granizo, impelido pelo vento, apedrejou-o, cegou-o e afligiu
seu cavalo, e novamente ele se viu lutando para se manter na sela.
Mais um raio caiu, acompanhado de trovoada. E mais outro.
Drizzt, murmurando baixinho e cobrindo a cabeça de seu cavalo com o manto para acalmá-lo, movia-se vagarosamente ao lado do anão.
- Estropiado! - Bruenor gritou novamente, apesar de Drizzt mal conseguir ouvi-lo.
Drizzt apenas chacoalhou a cabeça, impotente, e apontou o machado de Bruenor.
Vieram outros raios e mais uma rajada de vento. Drizzt deslizou para o lado da montaria a fim de se proteger, ciente de que não conseguiria manter o animal
calmo por muito mais tempo.
As pedras de granizo começaram a ficar maiores e a golpear com a força de projéteis.
O cavalo aterrorizado de Drizzt atirou-o ao chão e se afastou aos pinotes, tentando escapar do castigo da tempestade.
Drizzt logo estava de pé ao lado de Bruenor, mas os planos emergenciais que porventura os dois tivessem formulado foram imediatamente desencorajados, pois
então Wulfgar reapareceu, cambaleando na direção deles.
Ele caminhava - ou quase - apoiando-se na força do vento, utilizando-o para se manter ereto. Os olhos pareciam abatidos, o queixo se Crispava e o sangue e
a chuva se misturavam em suas faces. Fitou estupidamente os amigos, como se não compreendesse o que lhe acontecera.
Então, caiu de cara na lama aos pés deles.
Um assobio agudo atravessou a muralha insensibilizante de vento, um excepcional sinal de esperança em face da força crescente da tempestade. Os ouvidos aguçados
de Drizzt captaram-no assim que ele e Bruenor tiraram da lama o rosto do jovem amigo. Tão distante parecia o assobio, mas Drizzt sabia o quanto as tempestades eram
capazes de distorcer as percepções de alguém.
- O que foi? - Bruenor perguntou, percebendo a repentina reação do drow, pois não ouvira o chamado.
- Régis! - respondeu Drizzt. Ele começou a arrastar Wulfgar na direção do assobio, Bruenor logo atrás dele. Não tiveram tempo de discernir se o rapaz
ainda vivia.
O raciocínio rápido do halfling os salvou naquele dia. Completamente ciente do potencial assassino das borrascas que se precipitavam desde a Espinha do Mundo,
Régis rastejara de um lado a outro em busca de algum abrigo na região desabitada. Topou com um buraco na face de um pequeno cômoro, talvez o velho covil de um lobo,
agora desocupado.
Seguindo os assobios, Drizzt e Bruenor logo o encontraram.
- Vai encher de chuva e a gente vai se afogar! - berrou Bruenor, mas ajudou Drizzt a arrastar Wulfgar para dentro e a apoiá-lo contra a parede dos
fundos da caverna, depois assumiu seu lugar ao lado dos amigos, ocupados em construir, com terra e as mochilas remanescentes, uma barreira contra a temi da inundação.
Um gemido de Wulfgar fez com que Régis corresse para o lado dele.
- Está vivo! - proclamou o halfling. - E seus ferimentos não parecem tão feios!
Mais valente que um texugo acuado - comentou Bruenor. Não demorou muito para que tornassem o covil tolerável, se não confortável, e até mesmo Bruenor parou
de reclamar.
- A verdadeira provação da estrada - Drizzt disse novamente para Régis, tentando animar o amigo completamente desconsolado enquanto os três se sentavam
na lama para suportar a noite; os estrondos incessantes do trovão e as pancadas do granizo eram um lembrete constante da pequena margem de segurança.
Em resposta, Régis verteu uma torrente de água de sua bota.
- Quantos quilômetros 'cê acha que a gente percorreu? - Bruenor rezingou, questionando Drizzt.
- Quinze, talvez - respondeu o drow.
- Duas semanas até Nesmé nesse ritmo! - resmungou Bruenor, cruzando os braços sobre o peito.
- A tempestade vai passar - ofereceu Drizzt, esperançoso, mas o anão já não mais escutava.
O dia seguinte começou sem chuva, apesar das nuvens densas e cinzentas que pairavam baixo no céu. Wulfgar estava bem pela manhã, mas ainda não entendia o
que lhe acontecera. Bruenor insistiu para que partissem imediatamente, embora Régis tivesse preferido permanecer no buraco até que tivessem certeza de que a tempestade
passara.
- A maior parte das provisões se perdeu - Drizzt lembrou o halfling. - Pode ser que você não coma nada além de migalhas de pão duro até alcançar mos
Nesmé.
Régis foi o primeiro a sair do buraco.
A umidade insuportável e o solo lamacento impediam que acelerassem o ritmo, e os amigos logo descobriram que os joelhos doíam com os constantes desvios e
a patinhagem. As roupas encharcadas aderiam incomodamente a seus corpos e faziam peso a cada passo.
Encontraram o cavalo de Wulfgar, uma forma carbonizada e fumegante, semi-enterrada na lama.
- Um raio - observou Régis.
Os três olharam para o amigo bárbaro, admirados de que ele pudesse ter sobrevivido a tamanho impacto. Wulfgar também os fitava em estado de choque, dando-se
conta do que o derrubara da montaria na noite anterior.
- Mais valente que um texugo! - Bruenor bradou mais uma vez para Drizzt.
O sol provocativamente encontrava uma abertura no céu encoberto de vez em quando. Contudo, a luz era pouco substancial e, no zênite, o dia havia ficado mais
escuro na verdade. O trovão distante anunciava uma tarde lúgubre.
A tempestade já havia exaurido seu poderio mortífero, mas eles não encontraram outro abrigo naquela noite que não as próprias roupas molhadas e sempre que
o crepitar do relâmpago iluminava o céu, viam-se quatro formas encurvadas, sentadas na lama, cabisbaixas, como se aceitassem o destino com impotente resignação.
Durante outros dois dias eles continuaram a se arrastar em meio à chuva e ao vento, sem muita escolha nem outro lugar para ir a não ser avante.
Wulfgar se revelou o salvador do moral do grupo naqueles momentos de desânimo. Desatolou Régis do solo encharcado, atirando facilmente o halfling sobre suas
costas e explicando que precisava de um peso adicional para se equilibrar. Poupando desse modo o orgulho do halfling, o bárbaro conseguiu até mesmo convencer o anão
mal-humorado a ser carregado da mesma maneira durante algumas horas. E, todo o tempo, Wulfgar se mostrava indômito.
- Uma benção, digo eu - ele continuava gritando para os céus cinzentos. - A tempestade afasta os insetos e os orcs! E quantos meses vão se passar até que
venhamos a precisar de água?
Ele se esforçava bastante para manter os ânimos elevados. De certa feita, ele observou com cuidado os raios, calculando o intervalo entre o lampejo e o trovão
subseqüente. Quando se aproximaram do cadáver enegrecido de uma árvore morta havia tempos, o raio fulgurou e Wulfgar executou o truque. Ao brado de "Tempus!", ele
arremessou seu martelo de modo que a arma atingisse e derrubasse o tronco no exato momento em que o trovão explodia ao redor deles. Os amigos, entretidos, viraram-se
para encará-lo, apenas para encontrá-lo de pé, orgulhoso, os braços e os olhos erguidos para os deuses como se estes houvessem pessoalmente atendido ao seu chamado.
Drizzt, aceitando toda aquela provação com seu costumeiro estoicismo, aplaudiu silenciosamente seu jovem amigo e soube mais uma vez, ainda mais do que antes,
que fora sábia a decisão de trazê-lo. O drow compreendeu que seu próprio dever naquele momento difícil era continuar em seu papel de sentinela, mantendo diligente
vigília apesar da Proclamação de segurança do bárbaro.
Por fim, a tempestade foi soprada para longe pelo mesmo vento vigoroso que a havia anunciado. A brilhante luz do sol e o céu claro da manhã seguinte melhoraram
incomensuravelmente o humor dos companheiros e permitiram-lhes pensar mais uma vez no que tinham pela frente.
Principalmente Bruenor. O anão chegava a se dobrar em sua marcha urgente, exatamente como o fizera no início da jornada, ainda no Vale do Vento Gélido.
A barba ruiva a oscilar com a intensidade do passo vigoroso, Bruenor reencontrou seu estreito foco. Ele se retirou para os sonhos de sua terra natal, via
as sombras bruxuleantes da luz das tochas nas paredes raiadas de prata e os prodigiosos artefatos que resultavam do trabalho meticuloso de seu povo. Sua intensa
concentração no Salão de Mitral nos últimos meses trouxera lembranças novas e mais claras e, na estrada, ele se lembrava agora, pela primeira vez em mais de um século,
do Salão de Dumathoin.
Os anões do Salão de Mitral haviam ganhado bem a vida com o comércio de seus objetos manufaturados, mas eles sempre guardavam para si as melhores peças e
os regalos mais preciosos doados por forasteiros. Numa câmara grande e ornamentada, que deixava todos os visitantes de olhos arregalados, o legado dos ancestrais
de Bruenor se achava em exposição e servia de inspiração aos futuros artistas do clã.
Bruenor riu baixinho ao lembrar do prodigioso salão e daquelas peças maravilhosas, armas e armaduras em sua maioria. Olhou para Wulfgar caminhando ao lado
dele, e para o poderoso martelo de guerra que fabricara no ano anterior. Garra de Palas poderia ter sido pendurado no Salão de Dumathoin se o clã de Bruenor ainda
dominasse o Salão de Mitral, o que confirmaria a imortalidade de Bruenor no legado de seu povo.
Mas, observando Wulfgar manusear o martelo, brandindo-o com a mesma facilidade com que usaria o próprio braço, Bruenor não se arrependia.
O dia seguinte trouxe mais boas novas. Pouco depois de terem levantado acampamento, os amigos descobriram que haviam percorrido uma distância muito maior
do que a prevista durante as provações da tempestade, pois enquanto marchavam, a paisagem ao redor deles passava por transformações sutis, mas definitivas.
Onde antes o terreno se cobria de trechos esparsos de ervas silvestres e irregulares - um mar virtual de lama sob a torrente de chuva -, eles agora encontravam
luxuriantes relvados e bosques dispersos de olmos altaneiros. Ao galgar uma última serrania, confirmaram-se suas suspeitas, pois diante deles estava o Vale Dessarin.
Alguns quilômetros adiante, engrossado pelo degelo de primavera e a tempestade recente, e claramente visível da posição elevada em que se encontravam, o braço do
grande rio fluía constantemente em sua jornada para o sul.
O longo inverno dominava aquela região, mas quando as plantas finalmente floresciam, compensavam a estação curta com uma vivacidade sem igual em todo o mundo.
As cores magníficas da primavera começavam a cercar os amigos à medida que abriam caminho e desciam o declive até o rio. O tapete de relva era tão denso que eles
tiraram as botas e caminharam descalços por aquela maciez esponjosa. A vitalidade ali era verdadeiramente óbvia e contagiosa.
- 'Cês deviam ver os salões - comentou Bruenor, num impulso repentino. - Veios do mais puro mitral, mais largos que a sua mão! Rios de prata é o que são
e sobrepujados em beleza apenas pelo que a mão de um anão faz com eles.
- A privação de tal visão é o que nos faz atravessar todas as adversidades - replicou Drizzt.
- Ora! - Bruenor resmungou jovialmente. - 'Cê 'tá aqui porque eu te enganei, elfo. 'Cê não tinha mais motivo prá adiar minha aventura!
Wulfgar foi obrigado a rir. Ele tomara parte no engodo que havia feito Drizzt concordar em empreender aquela jornada. Depois da grande batalha com Akar Kessell
em Dez-Burgos, Bruenor fingira estar mortalmente ferido e, no seu aparente leito de morte, implorara ao drow que viajasse com ele até sua antiga terra natal. Pensando
que o anão estivesse às portas da morte, Drizzt não pôde recusar.
- E você! - Bruenor berrou para Wulfgar. - Já entendi porque é que 'cê veio, mesmo você sendo cabeçudo demais prá perceber isso!
- Por favor, diga-me - Wulfgar replicou, com um sorriso.
- 'Cê 'tá fugindo! Mas não vai escapar! - gritou o anão.
O júbilo de Wulfgar transformou-se em confusão.
- A menina assustou ele, elfo - Bruenor explicou para Drizzt. - Cattiebrie enredou ele de um jeito que esses músculos todos não vão ajudar em nada!
Wulfgar gargalhou com as conclusões rudes de Bruenor, sem se ofender. Mas, nas imagens engendradas pelas alusões de Bruenor a Cattiebrie, nas lembranças de
um pôr-do-sol sobre a face do Sepulcro de Kelvin, ou de horas passadas a conversar sobre a elevação rochosa denominada Ladeira de Bruenor, o jovem bárbaro encontrou
um perturbador elemento de verdade nas observações do anão.
- E quanto a Régis? - Drizzt perguntou a Bruenor. - Você já discerniu o motivo dele para vir conosco? Poderia ser o amor pela lama que lhe sobe pelos
tornozelos e traga suas perninhas até os joelhos?
Bruenor parou de rir e estudou a reação do halfling às perguntas do drow.
- Não, ainda não - ele respondeu, sério, depois de alguns momentos nada reveladores. - Só sei de uma coisa: se Ronca-bucho escolheu a estrada, isso
significa apenas que a lama e os orcs são melhores do que o que ele 'tá deixando prá trás - Bruenor manteve os olhos sobre o seu pequeno amigo, mais uma vez em busca
de alguma revelação na resposta do halfling.
Régis manteve a cabeça abaixada, observando os pés peludos, visíveis, pela primeira vez em muitos meses, abaixo do volume cada vez menor de seu ventre, enquanto
avançavam a custo pelas densas ondas de verde. O assassino, Entreri, estava a um mundo de distância, ele pensou. E ele não tinha a menor intenção de insistir num
perigo que fora evitado.
Alguns quilômetros rio acima, eles encontraram a primeira bifurcação importante, onde o Surbrin, vindo de nordeste, desaguava na corrente principal do braço
setentrional da bacia do grande rio.
Os amigos procuraram por um meio de atravessar o rio maior, o Dessarin, e chegar ao pequeno vale entre este e o Surbrin. Nesmé, sua próxima e última parada
antes de Lua Argêntea, ficava um pouco além, subindo o Surbrin, e, embora a cidade estivesse, na verdade, na margem oriental do rio, os amigos, seguindo o conselho
de Harkle Harpell, haviam decidido subir pela margem ocidental e evitar os perigos que se ocultavam nos Pântanos Eternos.
Cruzaram o Dessarin sem muita dificuldade graças à incrível agilidade do drow, que atravessou o rio correndo por um galho de árvore suspenso sobre o curso
d'água e dali saltou para um pouso semelhante no ramo de uma árvore na margem oposta. Logo depois, estavam todos caminhando tranqüilamente ao longo do Surbrin, aproveitando
o sol, a brisa cálida e a infindável canção do rio. Drizzt conseguiu até mesmo abater um gamo com seu arco, o que prometia uma excelente ceia com carne de caça e
mochilas reabastecidas para a estrada adiante.
Acamparam bem à beira d'água, sob a luz das estrelas pela primeira vez em quatro noites, sentados ao redor do fogo e a ouvir as histórias de Bruenor sobre
os salões argênteos e as maravilhas que encontrariam ao fim da estrada.
A serenidade da noite, porém, não persistiu na manhã seguinte, pois os amigos foram despertados por sons de batalha. Wulfgar imediatamente escalou uma árvore
próxima para descobrir quem eram os combatentes.
- Cavaleiros! - ele berrou, saltando e sacando seu martelo de guerra antes mesmo de atingir o chão. - Alguns caíram! Combatem monstros que não conheço! -
Ele saiu correndo em direção ao norte, com Bruenor em seu encalço e Drizzt contornando-lhes o flanco, rio abaixo. Menos entusiástico, Régis ficou para trás e sacou
sua pequena maça, mas dificilmente se preparava para o combate franco.
Wulfgar foi o primeiro a chegar. Sete cavaleiros ainda estavam de pé, tentando em vão manobrar suas montarias para formar algum tipo de linha defensiva. As
criaturas que combatiam eram rápidas e não tinham medo de correr sob os golpes das patas dos cavalos para fazer os animais tropeçarem. Os monstros tinham apenas
cerca de um metro de altura, com braços que chegavam ao dobro disso em comprimento. Lembravam pequenas árvores, apesar de inegavelmente vivazes, a correr de um lado
para outro freneticamente, golpeando com seus braços semelhantes a clavas ou, como mais um desafortunado cavaleiro descobriu assim que Wulfgar entrou na refrega,
envolvendo os adversários com seus membros flexíveis para derrubá-los das montarias.
Wulfgar passou rapidamente por duas das criaturas, atirando-as de lado, e abateu-se sobre a que acabara de derrubar o cavaleiro. O bárbaro, porém, subestimou
os monstros, pois os dedos dos pés das criaturas, semelhantes a raízes, rapidamente encontraram um novo ponto de equilíbrio, e os braços compridos o apanharam por
trás antes que ele tivesse dado dois passos, agarrando-o de ambos os lados e detendo-o imediatamente.
Bruenor investiu logo em seguida. O machado do anão atravessou um dos monstros, dividindo-o ao meio como lenha e depois se enterrou gravemente no outro, fazendo
com que um grande pedaço de seu tronco voasse longe.
Drizzt chegou ao local da batalha, ansioso, mas, como sempre, contido pela sensibilidade predominante que o fizera sobreviver a centenas de confrontos. Desceu
pelo flanco, abaixo do desnível da ribanceira, onde descobriu uma desengonçada ponte de troncos que atravessava o Surbrin. Os monstros a haviam construído, Drizzt
sabia. Aparentemente, não eram criaturas irracionais.
Drizzt espiou por sobre a ribanceira. Os cavaleiros tinham se reagrupado ao redor dos inesperados reforços, mas um deles, bem em frente ao drow, fora envolvido
por um monstro e era arrastado para longe do cavalo.
Notando a natureza vegetal de seus estranhos adversários, Drizzt compreendeu por que todos os cavaleiros empunhavam machados e imaginou se suas delgadas cimitarras
seriam de alguma ajuda.
Mas ele precisava agir. Saltando de seu esconderijo, enfiou as duas cimitarras na criatura. Elas atingiram o alvo, sem que provocassem maior efeito do que
se Drizzt tivesse apunhalado uma árvore.
Mesmo assim, a tentativa do drow salvara o cavaleiro. O monstro golpeou sua vítima uma última vez, para mantê-la atordoada, depois a soltou para enfrentar
Drizzt. Pensando rápido, o drow passou a um ataque alternativo, usando suas espadas ineficazes para aparar os golpes desferidos pelos braços do monstro. Então, quando
a criatura se precipitou sobre ele, mergulhou aos pés dela, desenraizando-a e lançando-a por cima dele em direção à margem do rio. Enfiou as cimitarras na pele semelhante
à casca de uma árvore e puxou, fazendo o monstro rolar, às cambalhotas, em direção ao Surbrin. A coisa conseguiu se segurar antes de cair n'água, mas Drizzt a atacou
novamente. Uma rajada de pontapés bem colocados lançou o monstro na corrente e o rio o arrastou para longe.
O cavaleiro, a essa altura, havia retornado à sela e ao domínio de suas faculdades mentais. Ele conduziu o cavalo em direção à ribanceira para agradecer seu salvador.
Então, ele viu a pele negra.
- Drow! - ele gritou e baixou o machado.
Drizzt foi pego de surpresa. Seus reflexos aguçados ergueram uma das espadas o suficiente para desviar o fio do machado, mas a parte embotada da arma atingiu-lhe
a cabeça e o fez cambalear. Ele mergulhou com o impulso do golpe e rolou, tentando se afastar o máximo possível do cavaleiro, pois percebeu que o homem o mataria
antes que conseguisse se recuperar.
- Wulfgar! - gritou Régis de seu esconderijo, um pouco mais atrás na ribanceira. O bárbaro deu cabo de um dos monstros com um estalo estrondoso que
provocou rachaduras por toda a extensão da coisa e virou-se no exato momento em que o cavaleiro dava a volta para alcançar Drizzt.
Wulfgar urrou de raiva e abandonou a própria luta, agarrou a rédea do cavalo enquanto este ainda fazia a volta e puxou com toda a sua força. Cavalo e cavaleiro
foram ao chão. O cavalo se levantou imediatamente e chacoalhou a cabeça, trotando nervosamente de um lado para outro, mas o cavaleiro ficou no chão, a perna esmagada
na queda sob o peso da montaria.
Os cinco cavaleiros remanescentes agora agiam em conjunto, investindo contra grupos de monstros e dispersando-os. O cruel machado de Bruenor continuava a
cortar, e o anão cantava o tempo todo uma canção de lenhador que aprendera quando menino:
- Guri, rache a lenha e acenda a lareira, Prá comer agora, aqueça a chaleira! - ele cantava enquanto abatia metodicamente um monstro após outro.
Wulfgar se postou defensivamente por sobre a forma de Drizzt, e seu poderoso martelo estilhaçava com um único golpe qualquer monstro que se aventurasse perto
demais.
A confusão estava formada e, em segundos, as poucas criaturas sobreviventes fugiram em pânico pela ponte sobre o Surbrin.
Três cavaleiros estavam caídos e mortos, um quarto se apoiava pesadamente contra o cavalo, quase sobrepujado pelos ferimentos, e aquele que Wulfgar havia
derrubado desmaiara de dor. Mas os cinco ainda sobre os cavalos não acudiram os feridos. Formaram um semicírculo em torno de Wulfgar e Drizzt - que só agora voltava
a ficar de pé -, encurralando os dois contra a ribanceira, os machados em prontidão.
- É assim que 'cês acolhem seus salvadores? - vociferou Bruenor, afastando um cavalo com um tapa para que pudesse se juntar aos amigos. - Aposto que
as mesmas pessoas não aparecem duas vezes prá socorrer vocês!
- Você anda em má companhia, anão! - retorquiu um dos cavaleiros.
- Seu amigo estaria morto não fosse a nossa má companhia! - replicou Wulfgar, indicando o cavaleiro que jazia num canto. - E ele agradeceu ao drow
com uma arma!
- Somos os Cavaleiros de Nesmé - o cavaleiro explicou. - Nossa sina é morrer no campo, protegendo nossa gente. Aceitamos esse destino de boa vontade.
- Dê mais um passo com esse cavalo e a gente vai realizar o seu desejo - avisou Bruenor.
- Mas vocês nos fazem uma grande injustiça - argumentou Wulfgar. - Estamos a caminho de Nesmé. Viemos em paz, como amigos.
- Vocês não entrarão, não com ele! - disse o cavaleiro com veemência. -Todos conhecem os métodos dos hediondos elfos drow. Você nos pede para acolhê-lo?
- Ora, 'cê é um idiota e a sua mãe também - grunhiu Bruenor.
- Meca as palavras, anão - avisou o cavaleiro. - Somos cinco contra três, e montados.
- Por que 'cê não tenta? - devolveu o anão. - Os abutres não vão conseguir muita comida com essas árvores bailarinas - Ele passou o dedo pelo fio do
machado. - Vamos dar a eles algo melhor prá bicar.
Wulfgar brandiu Garra de Palas de um lado para outro com apenas um braço. Drizzt não fez o menor gesto para sacar as armas, e sua calma inabalável foi, talvez,
a ação mais enervante de todas para os cavaleiros.
O porta-voz pareceu menos confiante depois do fracasso de sua ameaça, mas continuou agindo como se ainda fosse sua a vantagem.
- Mas não somos ingratos pela ajuda. Permitiremos que partam.
Desapareçam e nunca mais voltem às nossas terras.
- Ir ou vir é nossa opção - rosnou Bruenor.
- E optamos por não lutar - Drizzt acrescentou. - Não é o nosso objetivo nem o nosso desejo fazer mal a vocês ou a sua cidade, Cavaleiros de Nesmé.
Vamos passar, cuidaremos de nossas próprias vidas e deixaremos que vocês cuidem das suas.
- Você não vai chegar nem perto da minha cidade, elfo negro! - gritou um outro cavaleiro. - Vocês podem nos abater no campo, mas há outros cem atrás
de nós, e três vezes esse número atrás dos primeiros! Agora, sumam! - Seus companheiros pareceram readquirir a coragem com aquelas palavras audazes, os cavalos a
patear nervosamente com a súbita tensão das rédeas.
- Temos um trajeto a seguir - Wulfgar insistiu.
- Que se danem eles! - vociferou Bruenor, de repente. - Já agüentei o suficiente desse bando! Que se dane a vila deles. Que o rio varra eles da existência!
- Ele se virou para os amigos. - Estão fazendo um favor prá gente. Vamos poupar um dia ou mais indo direto até Lua Argêntea em vez de contornar pelo rio.
- Direto? - questionou Drizzt. - Os Pântanos Eternos?
- Será que é pior que o vale? - replicou Bruenor. Ele girou sobre os calcanhares e encarou os cavaleiros. - Fiquem com sua cidade e suas cabeças,
por enquanto - ele disse. - Vamos cruzar a ponte aqui e nos livrar de vocês e de toda a Nesmé!
- Coisas bem mais abomináveis que os homúnculos dos brejos vagam pelos Charcos dos Trolls, seu anão idiota - replicou o cavaleiro com um sorriso. -
Viemos destruir a ponte. Será queimada assim que vocês tiverem passado.
Bruenor assentiu e devolveu o sorriso.
- Continuem caminhando para leste - alertou o cavaleiro. - Avisaremos todos os outros cavaleiros. Se forem avistados perto de Nesmé, vocês serão mortos.
- Peguem seu amigo desprezível e sumam - provocou um outro cavaleiro - antes que o meu machado se banhe no sangue de um elfo negro! Embora eu tivesse
então que jogar fora a arma infectada!
Todos os cavaleiros se juntaram à gargalhada que se seguiu.
Drizzt sequer ouvira o insulto. Concentrava-se num cavaleiro na retaguarda do grupo, um tipo discreto que poderia aproveitar sua insignificância na conversa
para conseguir uma vantagem sem que os demais o percebessem. O cavaleiro havia sorrateiramente tirado o arco do ombro e agora levava com vagar a mão à aljava.
Bruenor nada mais tinha a dizer. Ele e Wulfgar deram as costas aos cavaleiros e partiram em direção à ponte.
- Venha, elfo - ele disse a Drizzt, ao passar. - Vou dormir melhor quando a gente estiver longe desses cães filhos de um orc.
Mas Drizzt tinha mais uma mensagem a enviar antes que desse as costas aos cavaleiros. Num movimento ofuscante, pegou o arco que trazia nas costas, retirou
uma flecha de sua aljava e a disparou com um silvo. Ela acertou o barrete de couro do suposto arqueiro, dividindo-lhe o cabelo ao meio, e engastou-se numa árvore
logo atrás dele, a haste a tremular um aviso claro.
- Seus insultos equivocados, eu aceito, até mesmo os espero - Drizzt explicou ao cavaleiro aterrorizado. - Mas não vou tolerar tentativas de ferir
meus amigos, e vou me defender. Considerem-se avisados, e aviso apenas uma vez: se tentarem qualquer outra coisa contra nós, vocês morrerão. - Ele se virou abruptamente
e desceu até a ponte, sem olhar para trás.
Os cavaleiros atordoados sem dúvida não tinham a intenção de retardar ainda mais o grupo do drow. O pretenso arqueiro nem mesmo procurou o barrete.
Drizzt sorriu diante da ironia de ser incapaz de se livrar das lendas sobre sua raça. Apesar de, por um lado, ser evitado e ameaçado, a aura de mistério
que cercava os elfos negros também lhe proporcionava um blefe poderoso o bastante para dissuadir os inimigos mais prováveis.
Régis se juntou a eles na ponte, brincando com uma pequena pedra.
- Eu os tinha na mira - foi explicando a arma improvisada. Ele lançou a pedra no rio. - Se a coisa começasse, o primeiro seria meu.
- Se a coisa começasse - Bruenor o corrigiu -, 'cê teria se borrado todo no buraco em que se escondeu!
Wulfgar refletiu sobre o aviso do cavaleiro em relação à senda que deveriam seguir.
- Charcos dos Trolls - ele repetiu sombriamente, percorrendo com os olhos o aclive do outro lado e a terra amaldiçoada diante deles. Harkle falara
sobre o lugar. A terra queimada e os brejos sem fundo. Os trolls e horrores piores que sequer possuíam um nome.
- Vamos ganhar um dia ou mais! - Bruenor repetiu teimosamente. Wulfgar não se convenceu.
- Está dispensado - Dendibar disse ao espectro.
Enquanto as chamas se refaziam no braseiro, despojando-o de sua forma material, Morkai considerava aquele segundo encontro. Com que freqüência Dendibar o
invocaria? - perguntou-se. O mago variegado ainda não havia se recuperado totalmente do último encontro, mas ousara convocá-lo novamente em tão pouco tempo. O assunto
de Dendibar com o grupo do anão devia ser realmente urgente! Essa suposição só fez Morkai desprezar ainda mais seu papel como espião do mago variegado.
Sozinho na sala novamente, Dendibar saiu de sua posição meditativa, espreguiçando-se, e sorriu perversamente ao considerar a imagem que Morkai lhe mostrara.
Os companheiros haviam perdido as montarias e marchavam em direção à área mais abominável de todo o Norte. Mais um ou dois dias e seu próprio grupo, voando nos cascos
de seus corcéis mágicos, viria a alcançá-los, embora cinqüenta quilômetros mais ao norte.
Sidnéia chegaria a Lua Argêntea muito antes do drow.


10. LUA ARGÊNTEA

A viagem desde Luskan foi realmente ligeira. Entreri e seu bando pareciam aos espectadores curiosos não mais que um borrão indistinto no vento noturno. As
montarias mágicas não deixavam rastro de sua passagem e nenhuma criatura viva conseguiria alcançá-las. O golem, como sempre, se arrastava incansavelmente na retaguarda
com grandes passos rígidos.
Tão macios e suportáveis eram os assentos sobre os corcéis conjurados de Dendibar que o grupo foi capaz de continuar a carreira depois do amanhecer e durante
todo o dia seguinte com apenas paradas breves para as refeições. Portanto, quando montaram acampamento depois do pôr do sol do primeiro dia de viagem, eles já haviam
deixado os rochedos para trás.
Cattiebrie travava uma batalha interior naquele primeiro dia. Ela não tinha dúvidas de que Entreri e a nova aliança alcançariam Bruenor. No pé em que estavam
as coisas, Cattiebrie seria apenas um empecilho para seus amigos, um joguete que Entreri poderia usar como melhor lhe aprouvesse.
Ela pouco podia fazer para remediar o problema, a menos que encontrasse algum modo de diminuir, se não sobrepujar, o aterrorizante domínio que o assassino
exercia sobre ela. Ela passou aquele primeiro dia concentrada, excluindo o mundo ao seu redor tanto quanto podia e procurando em seu espírito interior a força e
a coragem de que precisaria.
Bruenor, ao longo dos anos, havia armado a moça com muitos instrumentos para travar uma batalha como aquela, habilidades de disciplina e autoconfiança que
fizeram com que ela sobrevivesse a muitas situações difíceis. No segundo dia da viagem, então, mais confiante e mais à vontade com a situação, Cattiebrie foi capaz
de se concentrar em seus captores.
Extremamente interessantes eram os olhares que Jierdan e Entreri trocavam. O orgulhoso soldado obviamente não esquecera a humilhação que sofrera na noite
em que os dois se conheceram, no campo fora das muralhas de Luskan. Entreri - profundamente ciente do ressentimento, chegando mesmo a alimentá-lo, disposto como
estava a levar a questão a um confronto - vigiava o homem com desconfiança.
Essa rivalidade crescente poderia se revelar sua mais promissora, e talvez única esperança de escapar, pensou Cattiebrie. Ela tinha de admitir que Bok era
uma máquina de destruição irracional e indestrutível, imune à manipulação, e descobriu rapidamente que Sidnéia nada lhe oferecia.
Cattiebrie tentara engajar a jovem feiticeira numa conversa logo no segundo dia, mas o foco de Sidnéia era estreito demais para quaisquer distrações. Ela
não se deixaria desviar de sua obsessão, nem seria persuadida a abandoná-la. Ela nem mesmo respondeu à saudação de Cattiebrie quando as duas se sentaram para a refeição
do meio-dia. E quando Cattiebrie a importunou um pouco mais, Sidnéia instruiu Entreri a "manter a rameira longe dela".
No entanto, mesmo nessa tentativa fracassada, a feiticeira arredia ajudara Cattiebrie de uma maneira que nenhuma das duas conseguiria prever. O franco desdém
de Sidnéia e os insultos foram como um tapa no rosto de Cattiebrie e instilaram na moça mais um instrumento que a ajudaria a sobrepujar a paralisia provocada pelo
terror: a raiva.
Eles ultrapassaram o ponto médio de sua jornada no segundo dia - a paisagem passava por eles de uma maneira surreal à medida que seguiam a toda pressa - e
acamparam nas pequenas colinas a nordeste de Nesmé, com a cidade de Luskan agora duzentas milhas para trás.
Fogueiras piscavam ao longe. Uma patrulha de Nesmé, teorizou Sidnéia.
- Devemos ir até lá e descobrir o que pudermos - Entreri sugeriu, ansioso por notícias sobre seu alvo.
- Você e eu - concordou Sidnéia. - Podemos ir e voltar antes de se passar metade da noite.
Entreri olhou para Cattiebrie.
- E quanto a ela? - ele perguntou à feiticeira. - Eu não a deixaria com Jierdan.
- Você acha que o soldado se aproveitaria da garota? - Sidnéia replicou. - Garanto que ele é honrado.
- Não é isso que me preocupa - disse Entreri, com um sorriso pretensioso. - Não temo pela filha de Bruenor Martelo de Batalha. Ela se livraria do seu
soldado honrado e sumiria noite adentro antes do nosso retorno.
Cattiebrie não recebeu bem o elogio. Ela entendeu que o comentário de Entreri era antes um insulto a Jierdan, que estava longe, catando lenha, do que um reconhecimento
à sua própria competência, mas o inesperado respeito do assassino por ela tornaria sua tarefa duplamente difícil. Não queria que Entreri a julgasse perigosa, ou
mesmo engenhosa, pois isso o deixaria demasiado alerta para que ela agisse.
Sidnéia olhou para Bok.
- Vou sair - ela disse ao golem, alteando propositalmente a voz, o bastante para Cattiebrie ouvi-la com facilidade. - Se a prisioneira tentar fugir,
persiga-a e mate-a! - Ela lançou um sorriso maldoso para Entreri. - Satisfeito?
Ele devolveu o sorriso e fez um gesto largo com o braço na direção do acampamento distante.
Jierdan voltou então, e Sidnéia contou-lhe os planos. O soldado não pareceu entusiasmado com a idéia de Sidnéia e Entreri partirem juntos, apesar de nada
dizer para dissuadir a feiticeira. Cattiebrie o observou atentamente e inferiu a verdade. Ser deixado a sós com ela e o golem não o incomodava, ela conjeturou, mas
ele temia que um vínculo de amizade se formasse entre seus dois companheiros de estrada. Cattiebrie compreendia e até mesmo esperava por isso, pois Jierdan se encontrava
na posição mais vulnerável: subserviente a Sidnéia e com medo de Entreri. Uma aliança entre aqueles dois, talvez mesmo um pacto que excluísse completamente Dendibar
e a Torre das Hostes, no mínimo o deixaria de fora e, mais provavelmente, significaria seu fim.
- Por certo que a natureza desse negócio sombrio age contra eles mesmos - Cattiebrie murmurou quando Sidnéia e Entreri deixaram o acampamento, pronunciando
as palavras em voz alta para reforçar sua confiança cada vez maior.
- Eu podia te ajudar com isso aí - ela propôs a Jierdan enquanto ele dava os toques finais ao acampamento.
O soldado fulminou-a com o olhar.
- Ajudar? - zombou ele. - Eu devia era obrigá-la a fazer tudo sozinha.
- Entendo sua raiva - Cattiebrie rebateu, solidária. - Eu mesma sofri nas mãos imundas de Entreri.
A pena da moça enfureceu o soldado orgulhoso. Ele investiu contra ela, ameaçador, mas Cattiebrie manteve a compostura e não se esquivou.
- Este trabalho não condiz com o seu posto.
Jierdan se deteve de repente, a raiva dissipada pelo fato de estar intrigado com o elogio. Uma manobra evidente mas, para o ego ferido de Jierdan, o respeito
da moça era oportuno demais para se ignorar.
- O que sabe você sobre o meu posto? - ele perguntou.
- Sei que é um soldado de Luskan - Cattiebrie respondeu. - De um grupo temido em todo o norte. 'Cê não deveria fazer o trabalho braçal enquanto a feiticeira
e o caçador de sombras saem prá brincar de noite.
- Você está criando encrenca! - grunhiu Jierdan, mas ele se deteve para considerar o argumento. - Você monta o acampamento - ele ordenou, por fim,
readquirindo um certo grau de amor-próprio ao demonstrar sua superioridade em relação a ela. Entretanto, Cattiebrie não se importou. Ocupou-se da tarefa imediatamente,
interpretando seu papel subserviente sem reclamar. Um plano agora começava a tomar forma definida em sua mente, e essa fase exigia que ela fizesse um aliado entre
seus inimigos, ou pelo menos se colocasse numa posição que lhe permitisse plantar as sementes do zelo na mente de Jierdan.
Satisfeita, ela ouviu o soldado se afastar, resmungando a meia-voz.
Antes que Entreri e Sidnéia tivessem sequer se aproximado o suficiente para dar uma boa olhada no acampamento, um cântico ritualístico lhes revelou que não
se tratava de uma caravana de Nesmé. Eles se aproximaram com maior cautela para confirmar suas suspeitas.
Bárbaros de cabelos longos, morenos e altos, e envergando vestes cerimoniais emplumadas, dançavam em círculo em volta de um totem de madeira em forma de grifo.
- Uthgardt - explicou Sidnéia. - A tribo do Grifo. Estamos perto de Branco Reluzente, seu cemitério ancestral. - Ela se afastou vagarosamente da luminosidade
do acampamento. - Venha - ela sussurrou. - Não descobriremos nada de útil aqui.
Entreri a seguiu de volta ao acampamento.
- Não seria melhor montarmos agora? - ele perguntou quando se encontraram a uma distância segura. - Para nos afastarmos mais dos bárbaros?
- Não é necessário - respondeu Sidnéia. - Os uthgardt vão dançar a noite inteira. Toda a tribo toma parte no ritual. Duvido até que tenham postado
sentinelas.
- Você sabe muita coisa sobre eles - comentou o assassino num tom acusador, um sinal de suas repentinas suspeitas de que poderia haver alguma trama
ulterior a controlar os acontecimentos ao redor deles.
- Eu me preparei para esta jornada - rebateu Sidnéia. - Os uthgardt guardam poucos segredos; seus costumes são bastante conhecidos e documentados.
Aqueles que viajam pelo norte fariam bem em compreender essas pessoas.
-Tenho sorte por ter uma companheira de viagem tão instruída - disse Entreri, fazendo uma reverência sarcástica à guisa de desculpas.
Sidnéia, os olhos na estrada logo adiante, não respondeu.
Mas Entreri não deixaria a conversa morrer com tanta facilidade. Havia método em sua linha mestra de suspeitas. Ele havia conscientemente escolhido aquele
momento para revelar suas cartas e sua desconfiança, mesmo antes de descobrirem a natureza do acampamento. Pela primeira vez, os dois se encontravam a sós, sem Cattiebrie
ou Jierdan por perto para complicar a confrontação, e Entreri tinha a intenção de dar um fim às suas preocupações, ou dar um fim à feiticeira.
- Quando é que devo morrer? - ele perguntou bruscamente. Sidnéia sequer vacilou.
- Quando os fados assim o decretarem, como todos nós.
- Deixe-me reformular a pergunta - Entreri continuou agarrando-a pelo braço e virando-a para que ela o encarasse. - Quando você está instruída a tentar
me matar?
- Por que outro motivo Dendibar enviaria o golem? - raciocinou Entreri. - O mago não confia em pactos, nem na honra. Ele faz o que precisa fazer para
alcançar seus objetivos da maneira mais conveniente, e depois elimina aqueles que não são mais necessários. Quando eu não tiver mais valor, devo ser morto. Uma tarefa
que você pode achar mais difícil do que imagina.
- Você é perceptivo - Sidnéia respondeu tranqüilamente. - Avaliou muito bem o caráter de Dendibar. Ele teria matado você simplesmente para evitar possíveis
complicações. Mas você não considerou meu próprio papel nisso tudo. Devido à minha insistência, Dendibar colocou a decisão do seu destino nas minhas mãos. - Ela
fez uma pausa momentânea para deixar Entreri ponderar suas palavras. Ele poderia facilmente matá-la ali mesmo, ambos sabiam disso, de modo que a franqueza de sua
tranqüila confissão de uma trama para assassiná-lo impediu quaisquer ações imediatas e o forçou a ouvi-la até o fim.
- Estou convencida de que temos em mente desfechos distintos para o nosso confronto com o grupo do anão - explicou Sidnéia - e, portanto, não tenho
a intenção de destruir um aliado atual e, talvez, futuro.
A despeito de sua natureza sempre desconfiada, Entreri entendeu perfeitamente a lógica da linha de raciocínio da feiticeira. Reconheceu muitas de suas próprias
características em Sidnéia. Implacável, ela não deixaria que nada lhe atravancasse o caminho que escolhera, mas não se desviaria da trilha por qualquer distração,
não importando quão fortes fossem seus sentimentos. Ele soltou o braço dela.
- Mas o golem viaja conosco - disse ele distraidamente, voltando-se para a noite inane. - Dendibar acredita que precisaremos da coisa para derrotar
o anão e seus companheiros?
- Meu mestre me deixa pouca escolha - respondeu Sidnéia. - Bok foi enviado para ratificar a pretensão de Dendibar sobre aquilo que deseja. Proteção
contra dificuldades inesperadas oferecidas pelos companheiros. E contra você.
Entreri avançou mais um passo em sua linha de raciocínio.
- O objeto que o mago deseja deve ser realmente poderoso - concluiu. Sidnéia assentiu.
- Tentador para uma jovem feiticeira, talvez.
- O que você está insinuando? - Sidnéia exigiu, furiosa por Entreri questionar sua lealdade a Dendibar.
O sorriso confiante do assassino fez com que ela se contorcesse, incomodada.
- O propósito do golem é proteger Dendibar de dificuldades inesperadas oferecidas... por você!
Sidnéia gaguejou, mas não conseguiu encontrar as palavras para responder. Ela não havia considerado aquela possibilidade. Tentou rejeitar pela lógica a estranha
conclusão de Entreri, mas o comentário seguinte do assassino nublou sua capacidade de pensar.
- Simplesmente para evitar possíveis complicações - ele disse sombriamente, repetindo as palavras que ela pronunciara anteriormente.
Para Sidnéia, a lógica das suposições dele foi como um tapa na cara. Como ela pôde se imaginar acima da trama maliciosa de Dendibar? A revelação lhe deu calafrios,
mas ela não tinha a intenção de procurar a resposta com Entreri bem ao seu lado.
- Temos de confiar um no outro - ela disse. - Precisamos entender que ambos nos beneficiamos com a aliança e que isso não nos custa nada.
- Mande o golem embora, então - Entreri replicou.
Um alarme disparou na mente de Sidnéia. Estaria Entreri tentando instilar nela a dúvida meramente para ganhar uma vantagem na relação entre os dois?
- Não precisamos da coisa - disse ele. -Temos a garota. E, mesmo que os companheiros não cedam às nossas exigências, podemos tomar à força o que desejamos.
- Ele devolveu o olhar ressabiado da feiticeira. - Você fala em confiança?
Sidnéia não respondeu e pôs-se mais uma vez a caminho do acampamento. Talvez ela devesse mandar Bok embora. O ato aplacaria as dúvidas de Entreri em relação
a ela, embora isso certamente desse a ele uma vantagem caso algum problema viesse a surgir. Mas mandar o golem embora poderia também responder algumas das questões
ainda mais perturbadoras que lhe pesavam agora, as questões a respeito de Dendibar.
O dia seguinte foi o mais tranqüilo - e o mais produtivo - da viagem. Sidnéia se debatia com sua confusão em relação às razões para a presença do golem. Ela
chegara à conclusão de que deveria mandar Bok embora, mesmo que por nenhuma outra razão a não ser provar para si mesma a confiança de seu mestre.
Entreri observou com interesse os sinais reveladores daquela luta, sabendo que enfraquecera o elo entre Sidnéia e Dendibar o bastante para fortalecer sua
própria posição junto à jovem feiticeira. Agora ele devia simplesmente esperar e aguardar pela próxima chance de realinhar seus companheiros.
Do mesmo modo, Cattiebrie esperava por outras oportunidades de cultivar as sementes que plantara nos pensamentos de Jierdan. Os resmungos que ela via o soldado
esconder de Entreri e Sidnéia lhe revelavam que faltava pouco para seu plano ter um início promissor.
Eles chegaram a Lua Argêntea pouco depois do zênite do dia seguinte. Se tinha ainda qualquer dúvida quanto à decisão de se juntar ao grupo da Torre das Hostes,
Entreri a descartou assim que considerou a desmesura da proeza. Com os incansáveis corcéis mágicos, eles haviam percorrido quase oitocentos quilômetros em quatro
dias. E, depois de uma viagem sem esforço - a absoluta facilidade em conduzir as montarias -, eles dificilmente se consideravam cansados quando chegaram aos contrafortes
das montanhas logo a oeste da cidade encantada.
- O rio Rauvin - Jierdan, na vanguarda do grupo, informou-lhes. - E um posto avançado.
- Vamos dar a volta - replicou Entreri.
- Não - disse Sidnéia. - São os guias para a Ponte da Lua. Eles nos deixarão passar, e a ajuda deles facilitará bastante a nossa admissão na cidade.
Entreri olhou para Bok, que vinha subindo pesadamente pela trilha atrás deles.
- Todos nós? - ele perguntou, incrédulo.
Sidnéia não esquecera o golem.
- Bok - disse ela, assim que o golem os alcançou -, você não é mais necessário. Volte para Dendibar e diga a ele que tudo está correndo bem.
Os olhos de Cattiebrie se iluminaram com a possibilidade de mandarem o monstro de volta, e Jierdan, surpreso, olhou para trás com ansiedade crescente. Observando-o,
Cattiebrie viu mais uma vantagem naquela inesperada reviravolta. Ao mandar o golem embora, Sidnéia dava mais crédito aos temores de uma aliança entre ela e o assassino,
temores que Cattiebrie implantara no soldado.
O golem não se moveu.
- Eu disse para ir embora! - exigiu Sidnéia.
Ela percebeu com o canto do olho que Entreri a observava, nada surpreso.
- Maldito seja - ela murmurou consigo mesma. Ainda assim, Bok não se moveu.
- Você é realmente perceptivo - ela rosnou para Entreri.
- Fique aqui, então - ela sibilou para o golem. - Vamos ficar na cidade durante vários dias. - Deslizou da sela para o chão e saiu pisando duro,
humilhada pelo assassino que ria dela pelas costas.
- E as montarias? - Jierdan perguntou.
- Foram criadas para nos trazer a Lua Argêntea, e só - respondeu Sidnéia e, enquanto os quatro se afastavam pela trilha, as luzes bruxuleantes que
foram outrora os cavalos desvaneceram-se num brilho azul e suave, e então sumiram completamente.
Tiveram pouco trabalho para passar pelo posto avançado, principalmente quando Sidnéia se identificou como uma representante da Torre das Hostes Arcanas. Ao
contrário da maioria das cidades nas hostis terras do norte, que levavam seus temores em relação a forasteiros à beira da paranóia, Lua Argêntea não se encontrava
enclausurada por muralhas sinistras e fileiras de soldados desconfiados. O povo daquela cidade encarava os visitantes como um engrandecimento para sua cultura, e
não como uma ameaça ao seu modo de vida.
Um dos Cavaleiros em Prata, os guardas no posto sobre o Rauvin, conduziu os quatro viajantes à entrada da Ponte da Lua, uma estrutura em arco, invisível,
que cobria o vão do rio diante do portão principal da cidade. Os estrangeiros atravessaram hesitantes, incomodados com a falta de matéria visível sob seus pés. Mas
logo se viram descendo as ruas serpeantes da cidade mágica. O ritmo de seus passos se reduziu inconscientemente, apanhado pela indolência contagiosa, a atmosfera
relaxada e contemplativa que dissipou até mesmo a intensidade focalizada de Entreri.
Torres altas e retorcidas e estruturas de formas estranhas os saudavam a cada esquina. Nenhum estilo arquitetônico único dominava Lua Argêntea, a não ser
que este fosse a liberdade de um construtor, ou construtora, de exercer sua criatividade pessoal sem medo de críticas ou desprezo. O resultado era um lugar de esplendores
sem fim, não uma cidade rica em tesouros enumeráveis - como eram Águas Profundas e Mirabar, as duas vizinhas mais poderosas -, mas incomparável em beleza estética.
Um retrocesso aos primeiros dias dos Reinos, quando os elfos, os anões e os humanos tinham espaço suficiente para perambular sob o sol e as estrelas sem medo de
cruzar a fronteira invisível de algum reino hostil. Lua Argêntea existia em franco desafio aos conquistadores e tiranos do mundo, um lugar onde ninguém tinha direitos
sobre outra pessoa.
Ali pessoas de todas as raças virtuosas caminhavam livres e sem medo pelas ruas e vielas nas noites mais escuras e, se os viajantes passassem por alguém e
não fossem saudados com uma palavra de boa acolhida, era apenas porque a pessoa estava profundamente empenhada numa contemplação meditativa.
- O grupo do anão está a menos de uma semana de Sela Longa - Sidnéia mencionou enquanto eles andavam pela cidade. - Pode ser que tenhamos de esperar
vários dias.
- Aonde vamos? - Entreri perguntou, sentindo-se um peixe fora d'água.
Os valores que obviamente tinham precedência em Lua Argêntea eram diferentes dos de qualquer cidade em que ele já estivera e eram completamente estranhos
às suas próprias concepções do mundo como um lugar de cobiça e lascívia.
- Incontáveis estalagens enchem as ruas - Sidnéia respondeu. - Hóspedes são abundantes por aqui, e são acolhidos com sinceridade.
- Então, nossa tarefa de encontrar os companheiros, assim que chegarem, há de se mostrar realmente difícil - Jierdan resmungou.
- Nem tanto - replicou Sidnéia obliquamente. - O anão vem a Lua Argêntea em busca de informações. Logo depois de chegarem, Bruenor e seus amigos irão
à Câmara dos Sábios, a mais famosa biblioteca em todo o norte.
Entreri estreitou os olhos e disse:
- E nós estaremos lá para recebê-los.

11. OS CHARCOS DOS TROLLS

Era uma região de terra enegrecida e brejos nevoentos, onde a podridão e uma sensação impressionante de perigo sujeitavam até mesmo os céus mais ensolarados.
A paisagem subia e descia continuamente e o cimo de cada elevação, galgado por qualquer viajante na esperança de avistar o fim do lugar, trazia apenas desespero
e mais das mesmas cenas imutáveis.
Os valentes Cavaleiros de Nesmé se aventuravam nos urzais toda primavera para fazer grandes queimadas e expulsar os monstros daquela terra hostil dos limites
de sua vila. A estação ia longe e várias semanas haviam se passado desde o último incêndio, mas, mesmo então, os vales estreitos e baixos se achavam nublados pela
fumaça e as ondas de calor das grandes queimadas ainda tremeluziam no ar ao redor das maiores pilhas carbonizadas de madeira.
Bruenor conduzira seus amigos para os Charcos dos Trolls como teimosa afronta aos cavaleiros e estava determinado a marchar até Lua Argêntea. Mas, bastou
apenas o primeiro dia de viagem para que até ele começasse a duvidar de sua decisão.
O lugar exigia um estado de prontidão constante, e cada bosque de árvores queimadas pelo qual passavam os obrigava a parar, pois os cepos negros e desprovidos
de folhas e os troncos caídos assumiam uma incômoda semelhança com os homúnculos dos brejos. Inúmeras vezes, o terreno esponjoso sob seus pés se transformava subitamente
num fosso profundo de lama e somente a reação rápida de um companheiro próximo impedia que um deles descobrisse a verdadeira profundidade dos fossos.
Uma brisa contínua soprava pelos urzais, alimentada pelos trechos contrastantes de solo quente e brejos frios, e trazia um odor mais fétido que o da fumaça
e da fuligem das queimadas, um cheiro enjoativamente doce, perturbadoramente familiar para Drizzt Do'Urden: o fedor dos trolls.
Aquele era o domínio dos monstros, e todos os boatos sobre os Pântanos Eternos que os companheiros tinham ouvido - e descartado com uma risada no conforto
d'0 Varapau de Pileque - não poderiam tê-los preparado para a realidade que subitamente se abateu sobre eles ao entrarem no lugar.
Bruenor estimara que seu grupo conseguiria se livrar dos urzais em cinco dias se mantivessem um ritmo forte. Naquele primeiro dia, percorreram, na verdade,
a distância necessária, mas o anão não previra os contínuos desvios que teriam de empreender para evitar os brejos. Apesar de terem marchado mais de trinta quilômetros
naquele dia, estavam a menos de dez do ponto onde haviam entrado nos urzais.
Ainda assim, não encontraram trolls nem qualquer outro tipo de monstro, e montaram acampamento naquela noite sob a falsa aparência de silencioso otimismo.
- 'Cê vai ficar de guarda? - Bruenor perguntou a Drizzt, ciente de que somente o drow possuía os sentidos aguçados de que precisariam para sobre viver
àquela noite.
Drizzt assentiu.
- A noite toda - ele respondeu, e Bruenor não discutiu. O anão sabia que nenhum deles conseguiria dormir naquela noite, estando ou não de guarda.
As trevas chegaram súbita e completamente. Bruenor, Régis e Wulfgar não enxergavam as próprias mãos se as mantivessem a uma pequena distância do rosto. Com
a escuridão, ouviram-se os sons de um terrível pesadelo. Ruídos de passos chapinhando na lama se aproximavam de todos os lados. A fumaça se misturava à névoa noturna
e se enovelava em volta dos troncos das árvores desfolhadas. O vento não aumentou, mas a intensidade de seu fedor hediondo sim, e agora transportava os gemidos dos
espíritos atormentados dos desgraçados habitantes dos urzais.
- Peguem suas coisas - Drizzt sussurrou para os amigos.
- Que é que 'cê 'tá vendo? - Bruenor perguntou baixinho.
- Nada diretamente - veio a resposta. - Mas eu os sinto ao nosso redor, como todos vocês. Não podemos deixar que nos surpreendam aqui. Devemos andar
entre eles para evitar que se juntem à nossa volta.
- Minhas pernas doem - reclamou Régis. - E os meus pés estão inchados. Eu nem sei se consigo voltar a calçar as botas!
- Ajude ele, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - O elfo 'tá certo. A gente vai te carregar se for preciso, Ronca-bucho, mas não vamos ficar aqui.
Drizzt assumiu a liderança e, às vezes, precisava segurar a mão de Bruenor, que vinha logo atrás dele - e assim acontecia pela fila toda até Wulfgar, na retaguarda
-, para evitar que seus companheiros se extraviassem.
Todos pressentiam as formas escuras que se moviam ao redor deles e farejavam a vileza dos perversos trolls. Vendo claramente o exército se reunir ao seu redor,
somente Drizzt compreendeu a precariedade de suas posições e arrastou os amigos o mais rápido que pôde.
A sorte estava ao lado deles, pois a lua saiu naquele instante, transformando a névoa numa fantasmagórica manta prateada e revelando a todos os amigos o
perigo premente. Agora, com o movimento visível de todos os lados, os amigos corriam.
Formas esguias e trôpegas surgiam das brumas ao lado deles, dedos providos de garras se estendiam para puxar-lhes as roupas à medida que passavam correndo.
Wulfgar se colocou ao lado de Drizzt, afastando os trolls com grandes golpes de Garra de Palas, enquanto o drow se concentrava em mantê-los em movimento e na direção
correta.
Durante horas eles correram e, ainda assim, os trolls avançavam. Vencendo todas as sensações de exaustão, vencendo a dor e depois o entorpecimento dos membros,
os amigos correram, sabendo que encontrariam uma morte certa e horrível caso vacilassem por apenas um segundo, o medo a sobrepujar os gritos de derrota de seus corpos.
Mesmo Régis, gordo e indolente demais, e com as pernas curtas demais para a estrada, acompanhava o passo e instigava os que estavam à sua frente a correr ainda mais.
Drizzt compreendeu a futilidade da marcha. O martelo de Wulfgar invariavelmente perdia velocidade e todos vacilavam mais e mais a cada minuto que passava.
Restavam ainda muitas horas de treva, e mesmo o amanhecer não garantiria o fim da perseguição. Quantos quilômetros conseguiriam correr? Quando é que tomariam uma
trilha que daria num brejo sem fundo, com centenas de trolls às suas costas?
Drizzt mudou de estratégia. Não mais tentando apenas fugir, ele começou a procurar uma porção de terreno defensável. Ele avistou um pequeno outeiro, com três
metros de altura talvez, e um aclive íngreme, quase escarpado, dos três lados que ele enxergava a partir daquele ângulo. Uma árvore nova e solitária crescia na face
da colina. Ele apontou o lugar para Wulfgar, que compreendeu o plano imediatamente e mudou de direção. Dois trolls apareceram para lhes bloquear o caminho, mas Wulfgar,
urrando de fúria, arremeteu para enfrentá-los. Garra de Palas desferiu uma sucessão furiosa de golpes e os outros três companheiros foram capazes de se esgueirar
por trás do bárbaro e chegar ao outeiro.
Wulfgar abandonou a luta e correu para se juntar a eles, com os teimosos trolls no seu encalço e, agora, acompanhados por uma extensa formação de sua raça
perversa.
Surpreendentemente ágil, mesmo apesar da barriga, Régis trepou pela arvore até o topo do outeiro. Para Bruenor, porém, sem a constituição física adequada
para essa atividade, a escalada foi uma luta.
- Ajude-o! - Drizzt, de costas para a árvore e as cimitarras em prontidão, gritou para Wulfgar. - Depois é sua vez! Vou segurá-los.
A respiração de Wulfgar vinha em arquejos forçados e uma linha de sangue brilhante se desenhava em sua testa. Ele trombou contra a árvore e começou a subir
atrás do anão. As raízes se vergaram sob o peso combinado dos dois e eles pareciam não fazer muito progresso. Por fim, Régis conseguiu agarrar a mão de Bruenor e
ajudá-lo a galgar o topo, e Wulfgar, com o caminho livre diante dele, fez menção de se juntar aos outros dois. Com a própria segurança assegurada, eles olharam para
trás, preocupados com o amigo.
Drizzt combatia três dos monstros e outros faziam fila atrás dos primeiros. Wulfgar pensou em saltar de volta ao chão desde sua posição a meio caminho do
topo da árvore e morrer ao lado do drow, mas Drizzt, olhando de vez em quando por sobre o ombro para verificar o progresso de seus amigos, notou a hesitação do bárbaro
e leu a mente dele.
- Vá! - ele gritou. - Essa demora não ajuda em nada!
Wulfgar precisou parar e considerar a origem da ordem. Sua confiança em Drizzt e o respeito que nutria por ele sobrepujaram o desejo instintivo de voltar
à luta e, relutante, o bárbaro se alçou para se juntar a Régis e Bruenor no pequeno platô.
Os trolls se posicionaram para franquear o drow, e as garras imundas tentavam alcançá-lo por todos os lados. Ele ouviu os amigos, todos os três, implorando
que se desprendesse da luta e se juntasse a eles, mas sabia que os monstros já tinham se esgueirado por trás para lhe interceptar a retirada.
Um sorriso se espalhou por seu rosto. A luz em seus olhos cintilou.
Ele se lançou contra o exército principal dos trolls, afastando-se do outeiro inatingível e dos amigos horrorizados.
Os três companheiros, entretanto, tiveram pouco tempo para conjeturar sobre a sorte do drow, pois logo se viram atacados por todos os lados à medida que os
trolls avançavam implacavelmente, usando as garras para chegar até eles.
Cada amigo se posicionou para defender o próprio lado. Por sorte, a ladeira do lado de trás do outeiro se revelou ainda mais íngreme - em alguns pontos, o
aclive era negativo - e os trolls não conseguiam efetivamente chegar até eles por trás.
Wulfgar era o mais mortífero, derrubava um troll da encosta do outeiro a cada golpe de seu possante martelo. Mas, antes mesmo que o bárbaro conseguisse recuperar
o fôlego, um outro havia tomado o lugar do primeiro.
Régis, golpeando com sua pequena maça, era o menos eficiente. Ele martelava com toda a força os dedos, os cotovelos e mesmo as cabeças dos trolls que chegavam
mais perto, mas não conseguia desalojar os monstros que se agarravam às suas posições. Invariavelmente, à medida que cada um deles galgava a elevação, Wulfgar ou
Bruenor tinham de abandonar a própria luta e afugentar a fera com uma pancada.
Eles sabiam que, da primeira vez que um único golpe falhasse, encontrariam um troll de pé e pronto para atacar ao lado deles no topo do outeiro.
Deu-se a catástrofe depois de apenas alguns minutos. Bruenor girou para auxiliar Régis quando mais um monstro alçou o torso por sobre o topo. O machado do
anão penetrou a criatura com extrema perícia.
Com demasiada perícia. Entrou pelo pescoço do troll e o atravessou, decapitando a criatura. Mas embora a cabeça voasse do outeiro, o corpo continuou avançando.
Régis caiu de costas, horrorizado demais para reagir.
- Wulfgar! - gritou Bruenor.
O bárbaro girou sobre os calcanhares, sem que se detivesse tempo suficiente para se admirar com o adversário decapitado, e deu com Garra de Palas no peito
da coisa, fazendo-a voar pelos ares e cair do outeiro.
Duas outras mãos se agarraram à beirada. Do lado de Wulfgar, outro troll havia rastejado mais de meio caminho por sobre o topo. E atrás deles, onde Bruenor
estivera, um terceiro se achava de pé e sobre o halfling indefeso.
Eles não sabiam por onde começar. O outeiro fora tomado. Wulfgar chegou a pensar em saltar no meio da aglomeração lá embaixo para morrer como um verdadeiro
guerreiro, matando tantos inimigos quanto pudesse, e também para não precisar assistir ao despedaçamento dos dois amigos.
Mas, de repente, o troll por sobre o halfling lutou para se equilibrar, como se algo o puxasse por trás. Uma de suas pernas se dobrou e então ele caiu de
costas na escuridão.
Drizzt Do'Urden arrancou sua espada da panturrilha da coisa quando esta passou sobre ele, depois rolou habilmente para o topo do outeiro, erguendo-se bem
ao lado do halfling surpreso. Seu manto ondeava em farrapos e linhas de sangue escureciam suas vestes em muitos pontos.
Mas ele conservava o sorriso, e a chama em seus olhos cor de lavanda revelou aos amigos que ele ainda tinha muito para dar. Passou como um raio pelo anão
e pelo bárbaro admirado e talhou o troll seguinte, despachando-o rapidamente encosta abaixo.
- Como? - perguntou Bruenor, estupefato, embora soubesse, enquanto corria novamente para Régis, que nenhuma resposta viria do drow atarefado.
A manobra audaciosa de Drizzt lá embaixo lhe dera uma vantagem sobre os seus inimigos. Os trolls tinham o dobro da sua altura e os que estavam atrás daqueles
que combatiam não faziam idéia de que ele estava a caminho. Sabia que infligira pouco dano permanente aos monstros - os ferimentos das estocadas que ele cravava
ao passar cicatrizariam rápido, e os membros que ele decepava cresceriam novamente -, mas a ousada manobra ganhou-lhe o tempo de que precisava para se livrar da
horda impetuosa e contorná-la em meio às trevas. Uma vez livre na noite escura, ele prosseguiu com cautela de volta ao outeiro, passando pelos trolls distraídos
com a mesma intensidade flamejante. Apenas sua agilidade o salvou ao chegar à base, pois ele praticamente subiu correndo a encosta do outeiro, chegando a escalar
as costas de um troll, rápido demais para os monstros surpresos o agarrarem.
A defesa do outeiro agora se consolidava. Frente ao machado cruel de Bruenor, ao martelo esmagador de Wulfgar e às cimitarras sibilantes de Drizzt, cada um
a defender um lado, os trolls que subiam não encontravam uma única rota desimpedida até o topo. Régis ficou no meio do pequeno platô, correndo ora para um lado,
ora para outro, a fim de ajudar seus amigos sempre que um troll chegava perto demais e conseguia um ponto de apoio.
Mesmo assim, os trolls avançavam, e a aglomeração lá embaixo crescia a cada minuto que passava. Os amigos sabiam perfeitamente qual seria o resultado inevitável
daquele confronto. Sua única chance residia em desfazer a aglomeração de monstros lá embaixo para abrir uma rota de fuga, mas eles estavam empenhados demais em meramente
rechaçar os novos inimigos para procurar uma solução.
Exceto Régis.
Aconteceu quase por acidente. Um braço trépido, decepado por uma das espadas de Drizzt, rastejara até o centro das defesas. Régis, completamente enojado,
golpeava-o desvairadamente com sua maça.
- Esta coisa não morre! - ele gritava enquanto o braço continuava a se contorcer, tentando agarrar a pequena arma. - Não morre! Alguém aí acerte esta coisa!
Cortem! Botem fogo!
Os outros três estavam ocupados demais para reagir aos rogos desesperados, mas a última frase de Régis, berrada em total aflição, deu-lhe uma idéia. Ele pulou
em cima do membro trépido, imobilizando-o por um instante enquanto vasculhava sua mochila em busca da isca e da pederneira.
Suas mãos trêmulas mal conseguiam golpear a pedra, mas a mais minúscula centelha cumpriu seu papel assassino. O braço do troll pegou fogo e crepitou, transformando-se
numa bola friável. Nada disposto a perder a oportunidade diante dele, Régis apanhou o membro flamejante e correu até Bruenor. Ele refreou o machado do anão, dizendo
a Bruenor para deixar o novo oponente ultrapassar a borda do cômoro.
Quando o troll se içou, Régis ateou-lhe fogo à cara. A cabeça praticamente explodiu em chamas e, gritando de agonia, o troll despencou do outeiro, levando
as labaredas mortíferas aos próprios companheiros.
Os trolls não temiam a lâmina nem o martelo. Os ferimentos infligidos por essas armas cicatrizavam rapidamente e mesmo uma cabeça decepada logo voltava a
crescer. Esses confrontos, na verdade, ajudavam a propagar a maldita espécie, pois um troll costumava regenerar um braço decepado e um braço decepado costumava
regenerar um troll inteiro! Inúmeros felinos predadores e lobos haviam se banqueteado com a carcaça de um troll apenas para descobrir que haviam provocado a própria
morte quando um novo monstro crescesse em seu ventre.
Mas mesmo os trolls tinham algo a temer. O fogo era sua ruína, e os trolls dos Pântanos Eternos o conheciam muito bem. Era impossível regenerar queimaduras
e um troll destruído pelas chamas estava definitivamente morto. Quase como se isso tivesse um propósito no desígnio dos deuses, o fogo aderia à pele ressecada de
um troll tão prontamente quanto a gravetos secos.
Os monstros do lado de Bruenor fugiram ou tombaram, formando pilhas carbonizadas. Bruenor deu uma palmada nas costas do halfling ao observar o espetáculo
gratificante, e a esperança retornou aos seus olhos cansados.
- Lenha - concluiu Régis. - Precisamos de lenha.
Bruenor tirou a mochila das costas.
- 'Cê vai ter sua lenha, Ronca-bucho - ele gargalhou, apontando para a árvore nova que subia pela encosta do outeiro. - E tem óleo na minha bolsa!
- Ele correu até Wulfgar. - A árvore, garoto! Ajude o halfling - foi sua única explicação ao se colocar diante do bárbaro.
Assim que Wulfgar deu meia-volta e viu Régis manuseando desajeitadamente um frasco de óleo, ele compreendeu sua parte no plano. Nenhum troll havia ainda retornado
àquele lado do outeiro, e o fedor de carne queimada lá embaixo era quase insuportável. Com um único tranco, o musculoso bárbaro arrancou a árvore do solo e içou-a
até Régis. Depois, retrocedeu e rendeu o anão, permitindo a Bruenor colocar seu machado em ação para rachar a lenha.
Logo, projéteis incandescentes iluminavam o céu a toda volta do outeiro, caíam em meio à horda de trolls, e centelhas mortíferas irrompiam por todos os lados.
Régis correu para a beirada do outeiro com outro frasco de óleo e o aspergiu sobre os trolls mais próximos, provocando neles um frenesi de pânico. A confusão estava
formada e, entre a debandada e a rápida disseminação das chamas, a área abaixo do outeiro foi liberada em questão de minutos, e os amigos não avistaram nenhum outro
movimento durante as poucas horas que restavam à noite, a não ser os lamentáveis espasmos da massa de membros e torsos queimados. Fascinado, Drizzt se perguntou
quanto tempo as coisas sobreviveriam em face das feridas cauterizadas que jamais regenerariam.
Mesmo com a exaustão, nenhum dos companheiros conseguiu dormir naquela noite. Com o romper da aurora - e nenhum sinal de trolls nas redondezas, apesar da
fumaça asquerosa que pairava pesadamente no ar -, Drizzt insistiu para que prosseguissem.
Eles deixaram sua fortaleza e puseram-se a caminhar porque não tinham outra escolha e porque se recusavam a desistir num ponto em que outros poderiam ter
vacilado. Eles não encontraram nada de imediato, mas sentiam os olhos dos urzais ainda sobre eles, um silêncio abafado que antecipava a catástrofe.
Mais tarde, naquela manhã, enquanto caminhavam com dificuldade pela turfa musgosa, Wulfgar estacou de repente e arremessou Garra de Palas contra um pequeno
bosque de árvores enegrecidas.
O homúnculo dos brejos, pois esse era realmente o alvo do bárbaro, cruzou os braços defensivamente à sua frente, mas o martelo de guerra mágico o atingiu
com força suficiente para rachar o monstro ao meio. Seus companheiros assustados, quase uma dezena deles, abandonaram suas posições e desapareceram nos urzais.
- Como é que você sabia? - perguntou Régis, pois estava certo de que o bárbaro mal havia olhado para o arvoredo.
Wulfgar chacoalhou a cabeça, sinceramente ignaro do que o havia impelido. Drizzt e Bruenor compreenderam e aprovaram. Estavam todos operando por instinto
agora, e a exaustão levava suas mentes para muito além do pensamento racional e consistente. Os reflexos de Wulfgar continuavam no mesmo nível de delicada precisão.
Ele poderia ter captado uma insinuação de movimento com o canto dos olhos, tão minúscula que sua mente consciente sequer o teria registrado. Mas seu instinto de
sobrevivência reagira. O anão e o drow trocaram olhares de aprovação, dessa vez já não tão surpresos com a contínua demonstração de maturidade do bárbaro como guerreiro.
O dia foi ficando insuportavelmente quente, o que aumentava o desconforto. Tudo o que queriam fazer era desabar e deixar a fadiga dominá-los.
Mas Drizzt os impelia, sempre em frente, à procura de mais um ponto defensável, apesar de duvidar que eles conseguissem encontrar outro tão adequado quanto
o último. Mesmo assim, sobrara óleo suficiente para sobreviverem a mais uma noite caso conseguissem defender uma pequena trincheira tempo suficiente para tirar máximo
proveito das chamas. Qualquer elevação, até mesmo um bosque, já bastaria.
O que eles encontraram, porém, foi outro brejo, estendendo-se até onde a vista alcançava em todas as direções, quilômetros talvez.
- Poderíamos virar para o norte - Drizzt sugeriu a Bruenor. - É possível que, a essa altura, tenhamos seguido para leste o suficiente para nos livrarmos
dos urzais e deixarmos a zona de influência de Nesmé.
- A noite vai nos pegar ao longo da margem - Bruenor observou sombriamente.
- Poderíamos atravessar - Wulfgar sugeriu.
- Trolls gostam de água? - Bruenor perguntou a Drizzt, intrigado pelas possibilidades. O drow deu de ombros.
- Vale a pena tentar, então! - proclamou Bruenor.
- Juntem alguns troncos - instruiu Drizzt. - Não percam tempo amarrando-os: podemos fazer isso na água, se for preciso.
Fazendo os troncos flutuarem como bóias ao lado deles, deslizaram para dentro das águas frias e estagnadas do imenso brejo.
Apesar de não estarem entusiasmados com a sensação de que ventosas lamacentas os aspiravam a cada passo, Drizzt e Wulfgar descobriram que era possível caminhar
em muitos pontos e impelir a jangada improvisada num ritmo constante. Régis e Bruenor, baixos demais para a água, estendiam-se de través nos troncos. Por fim, eles
começaram a se sentir mais à vontade com a quietude lúgubre do brejo e aceitaram a rota aquática como um descanso tranqüilo.
O retorno à realidade foi repentino.
A água pareceu explodir, e três formas semelhantes a trolls os atacaram numa súbita emboscada. Régis, quase adormecido sobre seu tronco, foi atirado n'água.
Wulfgar tomou uma pancada no peito antes que conseguisse preparar Garra de Palas, mas ele não era um halfling e mesmo a força considerável do monstro não foi capaz
de atirá-lo para trás. O troll que se ergueu diante do vigilante drow encontrou as duas cimitarras em ação antes que sua cabeça tivesse sequer deixado a água.
A batalha se revelou tão furiosa quanto fora abrupto seu início. Exasperados pelas contínuas exigências dos implacáveis urzais, os amigos reagiram ao assalto
com um contra-ataque de fúria inigualável. O troll do drow foi feito em pedaços antes mesmo que conseguisse ficar de pé, e Bruenor teve tempo suficiente para se
preparar e atacar o monstro que derrubara Régis.
O troll de Wulfgar, embora desferisse uma segunda pancada logo depois da primeira, foi atingido por uma seqüência feroz de golpes que jamais teria esperado.
Não sendo uma criatura inteligente, seu raciocínio e sua experiência em batalha limitados levaram-no a acreditar que o adversário não deveria ter continuado de pé
e pronto para retaliar depois de ter recebido dois golpes pesados.
Sua percepção, porém, foi pequeno consolo quando Garra de Palas fez o monstro afundar novamente.
Régis retornou à superfície, depois lançou um braço por cima do tronco. Um dos lados de seu rosto brilhava com um vergão e uma esfoladura de aparência dolorosa.
- O que eram essas coisas? - Wulfgar perguntou ao drow.
- Algum tipo de troll - concluiu Drizzt, ainda desferindo estocadas na forma imóvel que jazia diante dele sob a água.
Wulfgar e Bruenor compreenderam por que o drow continuava atacando. Subitamente apavorados, eles voltaram a golpear as formas que jaziam ao lado deles, esperando
mutilar os cadáveres o bastante para que pudessem estar a quilômetros dali antes que as coisas ressuscitassem mais uma vez.
Sob a superfície do brejo, na serena solidão das águas escuras, as pancadas metódicas do machado e do martelo perturbaram o sono de outros habitantes. Um
deles, em particular, dormira durante mais de uma década, sem ser incomodado por nenhum dos potenciais perigos que se ocultavam nas redondezas, seguro por saber-se
supremo.
Tonto e extenuado pelo golpe que recebera, como se a inesperada emboscada tivesse forçado seu espírito para além do ponto de ruptura, Régis desabou indefeso
sobre o tronco e imaginou se ainda teria condições de lutar. Ele não percebeu quando o tronco começou a derivar de leve, impelido pela brisa quente dos urzais. Dirigido
pelas raízes expostas de uma pequena fileira de árvores, o tronco flutuou livremente rumo às águas cobertas de nenúfares de uma tranqüila laguna.
Régis se espreguiçou com indolência, consciente apenas em parte da mudança no ambiente. Ele ainda ouvia indistintamente, ao fundo, a conversa de seus amigos.
Entretanto, ele amaldiçoou seu descuido e lutou contra o domínio teimoso da letargia assim que a água começou a se agitar diante dele. Uma forma púrpura e
coriácea rompeu a superfície e, então, ele viu a imensa bocarra circular com as terríveis fileiras de dentes afiados.
Régis, agora ereto, não gritou nem esboçou a menor reação, fascinado pelo espectro da própria morte que pairava diante dele.
Um verme gigante.
- Achei que a água fosse ao menos nos oferecer alguma proteção contra aquelas coisas imundas - gemeu Wulfgar, dando uma última pancada no cadáver do
troll que jazia submerso diante dele.
- Pelo menos o deslocamento é mais fácil - Bruenor interveio. - Junte os troncos e vamos em frente. Não dá prá saber quantos parentes desses três aí
estão espreitando a área.
- Não tenho o menor desejo de ficar e contar - replicou Wulfgar. Ele olhou ao redor, perplexo, e perguntou - Onde está Régis?
Foi a primeira vez em meio à confusão da luta que um deles notou que o halfling flutuara para longe. Bruenor começou a chamar por ele, mas Drizzt tapou-lhe
a boca com a mão.
- Escute - ele disse.
O anão e Wulfgar ficaram imóveis e aguçaram os ouvidos na direção para a qual o drow agora olhava atentamente. Passado um instante, eles ouviram a voz trepidante
do halfling.
- ... é mesmo uma linda jóia - eles ouviram, e concluíram imediatamente que Régis estava usando o pingente para se livrar de alguma encrenca.
A gravidade da situação ficou evidente no mesmo instante, pois Drizzt havia distinguido algo por entre o borrão de imagens que via através de uma fileira
de árvores, cerca de trinta metros a oeste.
- Um verme! - ele sussurrou para os companheiros. - Mais descomunal que qualquer coisa que eu já tenha visto! - Ele indicou a Wulfgar uma árvore alta,
depois estabeleceu um trajeto para flanquear a laguna pelo sul, tirando a estátua de ônix da mochila e chamando por Guenhwyvar. Eles precisariam de toda a ajuda
possível contra aquele monstro.
Mergulhando na água, Wulfgar chegou facilmente à fileira de árvores e começou a subir por uma delas, a cena agora clara diante dele. Bruenor o seguiu, mas
esgueirou-se por entre as árvores, afundando-se cada vez mais no brejo, e posicionou-se do outro lado.
- E tem mais - negociava Régis, alteando a voz, esperando que seus amigos o ouvissem e salvassem. Mantinha o rubi hipnótico girando na ponta da corrente.
Ele não pensou nem por um instante que o monstro primitivo fosse capaz de entendê-lo, mas a criatura parecia fascinada o bastante pelas cintilações da jóia para
se abster de devorá-lo, ao menos momentaneamente.
Na verdade, a magia do rubi era de pouca utilidade contra a criatura. Os vermes gigantes não possuíam mentes dignas de menção e os encantos não exerciam qualquer
efeito sobre eles. Mas o imenso verme, como se não estivesse realmente faminto, ficou fascinado pela dança da luz e permitiu que Régis continuasse com a brincadeira.
Drizzt se colocou em posição um pouco abaixo da fileira de árvores, o arco agora em suas mãos, enquanto Guenhwyvar sorrateiramente contornava a retaguarda
do monstro. Drizzt viu Wulfgar equilibrado no alto da árvore acima de Régis, pronto para saltar e agir. O drow não via Bruenor, mas sabia que o astucioso anão encontraria
uma maneira de se tornar eficaz.
Por fim, o verme se cansou da brincadeira com o halfling e sua jóia rodopiante. Ouviu-se uma repentina inspiração e o chiado do ar entrando em contato com
a saliva ácida.
Reconhecendo o perigo, Drizzt agiu primeiro, conjurando um globo de escuridão ao redor do tronco do halfling. Régis, a princípio, pensou que as trevas repentinas
sinalizassem o fim de sua vida, mas compreendeu tudo assim que a água gelada lhe atingiu o rosto e o envolveu quando ele rolou languidamente para longe do tronco.
O globo confundiu o monstro por um instante, mas a fera expeliu uma golfada de seu ácido mortífero assim mesmo; a substância repulsiva chiou ao atingir a
água e fez o tronco irromper em chamas.
Wulfgar saltou, lançando-se intrepidamente no ar e gritando "Tempus!", as pernas em movimento, mas tendo o braço erguido e o martelo de guerra inteiramente
sob controle e pronto para atacar.
O verme desviou a cabeça para escapar ao bárbaro, mas não reagiu rápido o bastante. Garra de Palas despedaçou-lhe o lado da cara, rasgou-lhe o couro violáceo
e arrancou-lhe o perímetro externo da boca, esmigalhando dentes e ossos. Wulfgar dera tudo de si naquele golpe poderoso e não podia imaginar a enormidade de seu
sucesso ao cair de barriga na água gelada, sob a escuridão do drow.
Enfurecido pela dor e subitamente mais ferido do que jamais estivera, o grande verme emitiu um rugido que rachou árvores e fez com que criaturas dos urzais
há quilômetros dali corressem em busca de abrigo. Um arco percorreu-lhe o corpo de quinze metros de comprimento, para cima e para baixo, num furor contínuo que lançou
grandes jatos d'água no ar.
Drizzt se revelou então, a quarta flecha já pronta na corda do arco antes que a primeira sequer tivesse atingido o alvo. O verme urrou de agonia mais uma
vez e atacou o drow, liberando uma segunda golfada de ácido.
Mas o elfo ágil desaparecera muito antes que o ácido se espalhasse com um chiado pela água. Bruenor, enquanto isso, afundara completamente na água, caminhando
às cegas em direção à fera. Quase esmagado na lama pelas revoluções frenéticas do verme, ele emergiu logo atrás de uma das voltas do corpo da criatura. A largura
do torso compacto da criatura tinha o dobro da sua altura, mas o anão não hesitou e deu com o machado no couro resistente.
Guenhwyvar, então, saltou sobre as costas do monstro e percorreu sua extensão, empoleirando-se sobre a cabeça da criatura. As garras do gato se enterraram
nos olhos do verme antes que este tivesse tempo de reagir aos novos atacantes.
Drizzt retesou o arco, mas sua aljava estava quase vazia e uma dezena de hastes emplumadas se projetava da boca e da cabeça do verme. A fera decidiu se concentrar
em Bruenor, pois o machado selvagem do anão infligia as feridas mais graves. Mas antes que o verme conseguisse se revirar sobre o anão, Wulfgar emergiu da escuridão
e arremessou seu martelo de guerra. Garra de Palas atingiu novamente a bocarra com um baque surdo, e o osso enfraquecido rachou. Ossos e gotas ácidas de sangue chiaram
ao cair no brejo e o verme rugiu de agonia e protesto uma terceira vez.
Os amigos não se compadeceram. As flechas do drow atingiram o alvo numa série contínua. As garras do gato se enterravam cada vez mais fundo na carne. O
machado do anão cortava e talhava, fazendo com que pedaços de couro flutuassem para longe. E Wulfgar batia continuamente.
O verme gigante vacilou. Não conseguia retaliar. Em meio à onda de vertiginosa escuridão que rápido se precipitou sobre ele, o monstro estava demasiado ocupado
em meramente manter seu teimoso equilíbrio. Tinha a boca escancarada e um olho havia sido arrancado. Os golpes implacáveis do anão e do bárbaro haviam atravessado
seu couro protetor, e Bruenor grunhiu com prazer selvagem quando seu machado finalmente se enterrou na carne exposta.
Um súbito espasmo do monstro fez Guenhwyvar cair no brejo e arremessou Bruenor e Wulfgar longe. Os amigos nem mesmo tentaram voltar, sabendo que a tarefa
fora completada. O verme estremeceu e se contorceu em seu último afã de vida.
Então, tombou no brejo, para dormir o sono mais longo que jamais conhecera: o sono infinito da morte.


12. A ÚLTIMA MARCHA

O globo de escuridão que se dissipava encontrou Régis mais uma vez agarrado ao seu tronco - que agora não passava de um pedaço negro de carvão - e a chacoalhar
a cabeça.
- Está além de nossas forças - ele suspirou. - Não vamos conseguir.
-Tenha fé, Ronca-bucho - consolou-o Bruenor, chapinhando pela água para se juntar ao halfling. - A gente 'tá fazendo história, prá contar aos filhos dos nossos
filhos, e prá outras pessoas contarem quando a gente morrer!
- Você quer dizer hoje, então? - cortou Régis. - Ou talvez sobreviva mos hoje para morrermos amanhã.
Bruenor riu e agarrou o tronco.
- Ainda não, meu amigo - ele tranqüilizou Régis com um sorriso audaz.
- Não até eu resolver meus assuntos!
Drizzt, ao tomar providências para recuperar suas flechas, notou o abandono com que Wulfgar se recostava ao corpo do verme. De longe, achou que o jovem bárbaro
estava simplesmente exausto, mas, ao se aproximar, começou a desconfiar de algo mais sério. Wulfgar claramente poupava uma perna, como se esta - ou talvez a região
lombar - estivesse machucada.
Assim que notou o olhar preocupado do drow, Wulfgar se endireitou estoicamente.
- Vamos andando - ele sugeriu, afastando-se na direção de Bruenor e Régis e fazendo o possível para disfarçar o fato de que coxeava.
Drizzt não o questionou. O rapaz era feito de uma substância tão inflexível quanto a tundra no meio do inverno, demasiado altruísta e orgulhoso para admitir
um ferimento quando nada se ganharia com tal admissão. Seus amigos não poderiam esperar até que ele sarasse e certamente não conseguiriam carregá-lo, e assim ele
afastava a dor com um esgar e seguia adiante penosamente.
Mas Wulfgar estava realmente ferido. Ao espadanar na água depois de cair da árvore, torcera gravemente as costas. No calor da batalha, a adrenalina correndo
nas veias, ele não sentira a dor excruciante. Mas, agora, todo passo era difícil.
Drizzt o notou com a mesma clareza com que via o desespero no rosto normalmente jovial de Régis, ou a exaustão que fazia o anão trazer baixo o machado,
apesar da fanfarronice otimista de Bruenor. Com os olhos, ele percorreu os urzais, que pareciam se estender pela eternidade em todas as direções, e perguntou-se,
pela primeira vez, se ele e seus companheiros haviam realmente encontrado um desafio além das próprias forças.
Guenhwyvar não havia se ferido na batalha - estava só um pouco abalada -, mas Drizzt, reconhecendo a amplitude limitada de movimento da pantera naquele brejo,
mandou-a de volta ao seu próprio plano. Ele teria preferido manter a circunspecta pantera naquele momento. Mas a água era profunda demais para o gato, e a única
maneira de Guenhwyvar continuar em movimento teria sido saltando de uma árvore a outra. Drizzt sabia que não daria certo. Ele e os amigos teriam de continuar, sozinhos.
Recorrendo ao próprio âmago para fortalecer sua determinação, os companheiros completaram o serviço, o drow a inspecionar a cabeça do verme para recuperar
qualquer uma das vinte flechas que havia disparado, sabendo muito bem que provavelmente precisaria delas de novo antes de saírem dos urzais, enquanto os outros três
recuperavam o resto dos troncos e das provisões.
Pouco depois, os amigos flutuavam pelo brejo com o mínimo tolerável de esforço físico, lutando a cada minuto para manter suas mentes alertas ao perigoso ambiente.
Com o calor do dia, porém - o mais quente até então -, e o embalo suave dos troncos na água tranqüila, todos, à exceção de Drizzt, pegaram no sono, um a um.
O drow manteve a jangada improvisada em movimento e permaneceu vigilante. Eles não poderiam se permitir o menor atraso ou lapso. Por sorte, o alagado se abriu
depois da laguna e Drizzt teve de lidar com poucas obstruções. Depois de algum tempo, o brejo se tornou um grande borrão para ele, e seus olhos cansados registravam
poucos detalhes, só os contornos gerais e os movimentos inesperados nos juncos.
Mas ele era um guerreiro, com reflexos rápidos e excepcional disciplina. Os trolls aquáticos atacaram novamente e o minúsculo lampejo de consciência que restava
a Drizzt Do'Urden o convocou de volta à realidade a tempo de negar aos monstros a vantagem da surpresa.
Assim que ele os chamou, Wulfgar e Bruenor também despertaram, sobressaltados, as armas nas mãos. Apenas dois trolls se ergueram para enfrentá-los dessa vez,
e os três os despacharam em poucos e breves segundos.
Régis dormiu durante todo o incidente.
E veio o frescor da noite, dispersando misericordiosamente as ondas de calor. Bruenor tomou a decisão de seguir em frente, sempre com dois deles de pé, empurrando,
enquanto os outros dois descansavam.
- Régis não consegue empurrar - ponderou Drizzt. - Ele é baixo demais para o brejo.
- Então, deixe-o sentado e de guarda enquanto eu empurro - ofereceu Wulfgar estoicamente. - Não preciso de ajuda.
- Então 'cês dois ficam com o primeiro turno - disse Bruenor. - Ronca-bucho dormiu o dia inteiro. Ele deve dar pro gasto durante uma ou duas horas!
Drizzt subiu aos troncos pela primeira vez naquele dia e repousou a cabeça sobre a mochila. Contudo, não fechou os olhos. O plano de Bruenor de trabalhar
em turnos parecia razoável, mas pouco prático. Na noite escura, somente ele seria capaz de guiá-los e de se manter alerta à aproximação do perigo. Várias vezes,
enquanto Wulfgar e Régis cumpriam seu turno, o drow ergueu a cabeça e deu ao halfling algumas dicas sobre os arredores e conselhos quanto ao melhor rumo a se tomar.
Seria mais uma noite sem sono para Drizzt. Ele jurou descansar pela manhã, mas, ao romper da aurora, descobriu que as árvores e os juncos novamente se debruçavam
sobre eles. A própria ansiedade dos urzais os encurralava, como se um único ser consciente os vigiasse e tramasse contra sua passagem.
A vasta extensão de água se mostrou, na verdade, uma vantagem para os companheiros. O deslocamento sobre a superfície vítrea era mais fácil que caminhar e,
apesar dos perigos que os espreitavam, nada encontraram de hostil depois da segunda confusão com os trolls aquáticos. Quando o caminho que seguiam finalmente retornou
à terra enegrecida, após dias e noites de deriva, eles desconfiaram que poderiam ter percorrido a maior parte da distância até o outro lado dos Pântanos Eternos.
Assim que Régis subiu na árvore mais alta que foram capazes de encontrar - pois o halfling era o único leve o bastante para chegar aos galhos mais elevados (principalmente
desde que a viagem praticamente dissipara a obesidade de seu ventre) -, suas esperanças se confirmaram. Bem longe, no horizonte oriental, mas não mais do que a um
ou dois dias de viagem, Régis viu árvores: não os pequenos bosques de bétulas ou as árvores pantaneiras cobertas de musgo dos urzais, mas uma floresta densa de carvalhos
e olmos.
Eles seguiram em frente com um vigor renovado nos passos, apesar da exaustão. Caminhavam em terra firme mais uma vez e sabiam que teriam de acampar novamente
com as hordas de trolls errantes a espreitá-los, mas, agora, também sabiam que a provação dos Pântanos Eternos estava quase no fim. Não tinham a intenção de deixar
que os abomináveis habitantes do lugar viessem a derrotá-los naquela última etapa da viagem.
- Devíamos interromper nossa jornada por hoje - sugeriu Drizzt, embora o sol estivesse a mais de uma hora do horizonte ocidental. O drow já percebera
a presença que se congregava, pois os trolls despertavam de seu des- canso diurno e captavam os estranhos odores dos visitantes. - Devemos escolher cuidadosamente
o local do acampamento. Os urzais ainda não nos libertaram de seu domínio.
A gente vai perder uma hora ou mais - declarou Bruenor, mais para revelar o lado negativo do plano do que para discutir. O anão se lembrava muito
bem da terrível batalha no outeiro e não tinha o menor desejo de repetir aquele esforço colossal.
- Recuperaremos o tempo perdido amanhã - ponderou Drizzt. - Nossa necessidade no momento é sobreviver.
Wulfgar concordava inteiramente.
- O cheiro dessas feras hediondas fica mais forte a cada passo - disse ele -, de todos os lados. Não podemos fugir. Então, vamos lutar.
- Mas nos nossos termos - acrescentou Drizzt.
- Lá - sugeriu Régis, apontando um cômoro densamente coberto de vegetação à esquerda deles.
- É exposto demais - disse Bruenor. - Os trolls vão escalar aquilo com a mesma facilidade que a gente, e serão muitos de uma vez só para que a gente
impeça eles!
- Não enquanto estiver queimando - rebateu Régis, com um sorriso furtivo, e seus companheiros acabaram concordando com a lógica simples.
Eles passaram o restante das horas de luz preparando suas defesas. Wulfgar e Bruenor trouxeram tantos galhos secos quanto conseguiram encontrar, dispondo-os
em linhas estratégicas para estender o diâmetro da área-alvo, enquanto Régis limpava um aceiro no topo do cômoro e Drizzt mantinha cautelosa vigilância. O plano
de defesa era simples: deixar que os trolls chegassem até eles e então atear fogo a todo o cômoro fora dos limites do acampamento.
Somente Drizzt reconheceu o ponto fraco do plano, apesar de não ter nada melhor a oferecer. Ele combatera trolls antes dos urzais e compreendia a teimosia
dos monstros perversos. Quando as chamas da emboscada finalmente se extinguissem - muito antes do raiar do novo dia -, ele e seus amigos ficariam indefesos contra
os trolls remanescentes. Sua única esperança era a carnificina das chamas dissuadir outros inimigos.
Wulfgar e Bruenor teriam preferido fazer algo mais, pois as lembranças do outeiro ainda eram demasiadamente vividas para que se satisfizessem com qualquer
tipo de defesa erguida contra os urzais. Mas o crepúsculo chegou, trazendo consigo olhos ávidos que se fixavam neles. Juntaram-se a Régis e a Drizzt no acampamento
no topo do cômoro e agacharam-se em ansiosa espera.
Passou-se uma hora - que, aos amigos, pareceram dez - e a noite ficou mais escura.
- Onde estão eles? - indagou Bruenor, batendo o machado nervosamente na palma da mão, traindo uma impaciência atípica no veterano combatente.
- Por que eles não atacam? - concordou Régis, e sua ansiedade beirava o pânico.
- Tenha paciência e considere-se feliz - ofereceu Drizzt. - Quanto mais tempo se passar antes da batalha, melhores serão nossas chances de ver o amanhecer.
Pode ser que ainda não nos tenham encontrado.
- 'Tá mais com jeito de estarem se reunindo prá atacar a gente todos ao mesmo tempo - disse Bruenor sombriamente.
- Isso é bom - disse Wulfgar, confortavelmente agachado e a perscrutar a obscuridade. - Que o fogo prove o quanto puder dessa raça imunda!
Drizzt notou o efeito tranqüilizante que a força e a determinação do homenzarrão tinham sobre Régis e Bruenor. O machado do anão interrompeu seu salutar nervoso
e veio descansar serenamente ao lado de Bruenor, preparado para a tarefa por vir. Mesmo Régis, o mais relutante dos guerreiros, ergueu sua pequena maça com um rosnado,
os nós dos dedos a empalidecer com a pressão.
Mais uma hora se passou.
A demora não relaxou totalmente a guarda dos companheiros. Eles sabiam que o perigo agora estava muito próximo: sentiam o fedor que se concentrava nas brumas
e nas trevas além do alcance da visão.
- Acenda as tochas - Drizzt disse a Régis.
- Vamos atrair todos os monstros a quilômetros daqui prá cima da gente! - argumentou Bruenor.
- Eles já nos encontraram - respondeu Drizzt, apontando a base do cômoro, apesar de os trolls que ele via a se mover nas trevas estarem além da limitada
visão noturna de seus amigos. - A visão das tochas pode mantê-los longe e nos ganhar algum tempo.
Enquanto ele falava, entretanto, o primeiro troll escalou o cômoro. Bruenor e Wulfgar aguardaram, agachados, até que o monstro estivesse praticamente em cima
deles, então saltaram com fúria inesperada, machado e martelo de guerra à frente, numa rajada brutal de golpes bem colocados. O monstro caiu na mesma hora.
Régis acendera uma das tochas. Ele a jogou para Wulfgar e o bárbaro ateou fogo ao corpo caído do troll. Dois outros trolls que haviam chegado ao pé do cômoro
correram de volta à bruma ao ver as odiadas chamas.
- Ah, foi muito cedo! - gemeu Bruenor. - A gente não vai pegar um que seja com as tochas bem à vista!
- Se as tochas os mantiverem longe, então as chamas terão nos servido muito bem - insistiu Drizzt, apesar de saber que não deveria esperar por esse
acontecimento.
De repente, como se os próprios urzais tivessem cuspido sua peçonha, um imenso exército de trolls cobriu toda a base do cômoro. Eles avançavam de modo hesitante,
nada entusiasmados com a presença do fogo. Mas avançavam inexoravelmente, subindo de rastos a colina, salivando de desejo.
- Paciência - Drizzt disse aos companheiros, sentindo a inquietação deles. - Mantenham-nos atrás do aceiro, mas deixem tantos quantos quiserem penetrar
os círculos de acendalha.
Wulfgar correu até a orla do círculo, brandindo sua tocha ameaçadoramente.
Bruenor se posicionou mais atrás, com os dois últimos frascos de óleo nas mãos, trapos embebidos em óleo a pender das biqueiras, e um sorriso selvagem no
rosto.
- A estação 'tá um pouco verde pr'uma queimada - ele disse a Drizzt com uma piscadela. - Pode ser que o fogo precise de uma mãozinha prá começar!
Os trolls se apinharam sobre o cômoro em volta deles; a horda salivante avançava com determinação e as fileiras se engrossavam a cada passo.
Drizzt agiu primeiro. Com a tocha na mão, ele correu até a acendalha e a incendiou. Wulfgar e Régis juntaram-se a ele logo atrás, interpondo o maior número
possível de focos de fogo entre eles e os trolls que avançavam. Bruenor atirou sua tocha sobre as primeiras fileiras de monstros, esperando surpreendê-los em meio
a dois incêndios, depois arremessou seus frascos de óleo nos grupos de maior concentração.
As chamas saltaram no céu noturno, iluminando a área próxima, mas aumentaram a escuridão além de sua zona de influência. Amontoados como estavam, os trolls
não conseguiam facilmente virar e fugir, e o fogo, como se o compreendesse, precipitava-se sobre eles metodicamente.
Quando um deles começou a arder, sua dança frenética espalhou ainda mais a luz pelos limites do cômoro.
Por todos os vastos urzais, as criaturas interromperam suas atividades noturnas e repararam na crescente coluna de chamas e nos gritos agudos dos trolls agonizantes
transportados pelo vento.
Acuados no topo do cômoro, os companheiros se viram praticamente sobrepujados pelo grande calor. Mas o fogo definhou rapidamente com seu banquete de volátil
carne de troll e começou a diminuir, deixando um fedor revoltante no ar e mais uma cicatriz enegrecida de carnificina nos Pântanos Eternos.
Os companheiros prepararam mais tochas para a fuga. Restavam muitos trolls para lutar, mesmo depois do fogo, e os amigos não tinham a menor esperança de
resistir consumido o combustível das chamas. Devido à insistência de Drizzt, eles aguardaram pela primeira rota de fuga livre na encosta oriental do cômoro e, quando
esta se abriu, arremeteram noite adentro, atravessando intempestivamente os grupos iniciais de trolls desavisados com um assalto inesperado que dispersou os monstros
e deixou vários em chamas.
Noite adentro eles correram, atravessando às cegas a lama e a sarça, esperando que a pura sorte evitasse que fossem engolidos por algum brejo sem fundo. Tão
completa fora a surpresa da emboscada no cômoro que, durante vários minutos, não ouviram sinais de perseguição.
Mas os urzais não levaram muito tempo para responder. Gemidos e gritos agudos logo ecoavam ao redor deles.
Drizzt assumiu a liderança. Confiando em seus instintos tanto quanto na visão, ele desviava seus amigos para a esquerda e para a direita, seguindo pelas áreas
de menor resistência aparente, embora mantivesse o curso rumo ao leste. Esperando tirar proveito do único medo dos monstros, iam ateando fogo a qualquer coisa que
queimasse.
Não encontraram nada diretamente ao longo da noite, mas os gemidos e os passos surdos logo atrás deles não cederam. Logo começaram a desconfiar que uma inteligência
coletiva agia contra eles, pois, embora estivessem obviamente superando os trolls que os cercavam por trás e pelos lados, mais monstros estavam sempre aguardando
para se juntar à perseguição. Algo maligno impregnava a região, como se os próprios Pântanos Eternos fossem os verdadeiros inimigos. Os trolls estavam por toda a
parte, e esse era o perigo imediato, mas mesmo que todos os trolls e outros habitantes dos urzais fossem mortos ou repelidos, os amigos desconfiavam que o lugar
continuaria desagradável.
Rompeu o dia, mas isso não trouxe alívio.
- A gente irritou os próprios urzais! -Bruenor gritou ao perceber que desta vez a perseguição não terminaria com tanta facilidade. - A gente não vai ter descanso
até deixar prá trás este lugar imundo!
Seguiram em frente, vendo, enquanto ziguezagueavam pelo lugar, as formas esguias e trôpegas que se atiravam sobre eles e aquelas que corriam lado a lado ou
logo atrás, assustadoramente visíveis e à espera apenas de que alguém tropeçasse. Brumas densas se fecharam sobre eles, dificultando-lhes a orientação, mais uma
prova, para seus temores, de que os próprios urzais haviam se erguido contra eles.
Além de todo o pensamento racional, além de toda a esperança, eles continuaram, forçando a si próprios a ultrapassar seus limites físicos e emocionais por
falta de alternativas.
Quase inconsciente de suas ações, Régis tropeçou e caiu. Sua tocha rolou para longe, mas ele nem reparou. Ele sequer era capaz de imaginar como se levantar,
ou mesmo conceber que havia caído! Bocas famintas precipitaram-se sobre ele, um banquete certo.
O monstro esfaimado foi frustrado, porém, quando Wulfgar passou e tomou o halfling em seus braços. O imenso bárbaro chocou-se com o troll, derrubando-o, mas
manteve o equilíbrio e seguiu em frente.
Drizzt agora abandonava todas as táticas sutis, compreendendo a situação que se desenvolvia rapidamente atrás dele. Era obrigado, inúmeras vezes, a diminuir
o passo para ajudar Bruenor, que tropeçava, e ele duvidava da capacidade de Wulfgar de seguir em frente carregando o halfling.
O bárbaro exausto obviamente não cogitaria erguer Garra de Palas para se defender. Sua única chance era correr direto até a fronteira. Um brejo extenso os
derrotaria, uma ravina de buxos os aprisionaria e, mesmo que nenhuma barreira natural lhes bloqueasse o caminho, eram poucas as esperanças de escapar aos trolls
por muito mais tempo. Drizzt temia a difícil decisão que ele via próxima: salvar a si mesmo, pois somente ele parecia ter alguma possibilidade de escapar, ou permanecer
ao lado de seus amigos condenados numa batalha que não conseguiriam vencer.
Eles seguiram em frente e fizeram progresso consistente durante mais uma hora, mas o próprio tempo começou a afetá-los. Drizzt ouvia Bruenor murmurando atrás
dele, perdido em algum delírio de sua infância no Salão de Mitral. Wulfgar, com o halfling inconsciente, seguia logo atrás, recitando uma oração para um de seus
deuses, usando o ritmo dos cânticos para manter os pés numa cadência constante.
Então Bruenor caiu, derrubado por um troll que havia se aproximado inconteste.
A decisão fatal se revelou facilmente para Drizzt. Ele fez a volta, as cimitarras prontas. Não conseguiria carregar o anão robusto nem derrotar a horda de
trolls que se aproximava.
- E assim termina a nossa história, Bruenor Martelo de Batalha! - ele gritou. - Na batalha, como havia de ser!
Wulfgar, tonto e ofegante, não escolheu conscientemente sua ação seguinte. Foi simplesmente uma reação à cena diante dele, uma manobra perpetrada pelos instintos
teimosos de um homem que se recusava a ceder. Ele cambaleou até o anão caído, que a essa altura havia se erguido penosamente até se apoiar nas mãos e nos joelhos,
e o apanhou com o braço livre. Dois trolls os encurralavam.
Drizzt Do'Urden estava por perto, e o ato heróico do jovem bárbaro inspirou o drow. Chamas fervilhantes dançaram novamente nos seus olhos cor de lavanda,
e as espadas rodopiaram em sua própria dança de morte.
Os dois trolls esticaram os braços para usar as unhas em suas vítimas indefesas mas, depois de um único passe rápido da parte de Drizzt, não restavam braços
aos monstros com os quais agarrar.
- Continue correndo! - Drizzt gritou, protegendo a retaguarda do grupo e estimulando Wulfgar a seguir em frente com uma torrente constante de palavras
animadoras. Toda a fadiga abandonou o drow naquela última explosão de ânsia guerreira. Ele saltitava e lançava desafios aos trolls. Qualquer um que se aproximasse
demais encontrava a mordacidade de suas espadas.
Grunhindo a cada passo doloroso, os olhos a arder por causa do próprio suor, Wulfgar arremeteu adiante, às cegas. Não pensava em quanto tempo conseguiria
manter aquele ritmo com o peso que carregava. Não pensava na morte certa e horrível que o seguia de perto por todos os lados e provavelmente havia também lhe interceptado
a rota de fuga. Não pensava na dor terrível em suas costas machucadas nem na nova ardência que sentia agudamente no jarrete. Concentrava-se apenas em colocar uma
das botas pesadas diante da outra.
Eles pisotearam algumas sarças, desceram uma elevação e contornaram outra. Seus corações se animaram e esmoreceram, ao mesmo tempo pois diante deles assomava
a floresta imaculada que Régis avistara, o fim dos Pântanos Eternos. Mas, entre eles e as matas, aguardava uma densa linha de trolls, com três fileiras de largura.
O domínio dos Pântanos Eternos não era fácil de romper.
- Continue - Drizzt disse ao pé do ouvido de Wulfgar, num murmúrio baixo, como se temesse que os urzais pudessem ouvi-lo. - Ainda me resta um pequeno
truque.
Wulfgar viu a linha diante dele mas, mesmo em seu estado atual, a confiança que tinha em Drizzt sobrepujou todas as objeções de seu bom senso. Acomodando
Bruenor e Régis numa posição mais confortável, abaixou a cabeça e urrou para as feras, gritando com a fúria induzida pelo frenesi.
Quando ele já quase os tinha alcançado, com Drizzt alguns passos atrás - os trolls a salivar, acotovelados para refrear-lhe o ímpeto -, o drow deu sua última
cartada.
Chamas mágicas brotaram do bárbaro. Elas não eram capazes de queimar nem Wulfgar nem os trolls mas, para os monstros, o espectro de um selvagem descomunal
e envolto em chamas abatendo-se sobre eles levou o pânico aos seus corações normalmente destemidos.
Drizzt cronometrou o encanto com precisão, permitindo aos trolls apenas uma fração de segundo para reagir ao imponente adversário. Como as águas diante da
proa de um navio de grande calado, eles se separaram, e Wulfgar, quase perdendo o equilíbrio devido às suas expectativas de impacto, passou aos trambolhões, com
Drizzt a saltitar junto aos seus calcanhares.
Quando os trolls se reagruparam para a perseguição, as vítimas já escalavam a última elevação que levava para fora dos Pântanos Eternos e para dentro da
floresta - um bosque sob o olhar protetor da Senhora Alustriel e dos garbosos Cavaleiros em Prata.
Drizzt voltou-se sob os ramos da primeira árvore, atento aos sinais de perseguição. Uma neblina densa retornava aos urzais num movimento rodopiante, como
se aquela região abominável tivesse batido a porta logo que passaram. Nenhum troll apareceu.
O drow se afundou contra a árvore, demasiado exausto para sorrir.

13. Lá no Céu tem Mil Estrelas

Wulfgar depositou Régis e Bruenor sobre um leito de musgos numa pequena clareira um pouco além da orla da floresta e tombou por causa da dor. Drizzt o alcançou
alguns minutos depois.
- Devemos acampar aqui - foi dizendo o drow -, mas eu preferia que nos afastássemos mais... - Ele se deteve ao ver o jovem amigo a se contorcer no
solo, levando as mãos à perna ferida, quase sobrepujado pela dor. Drizzt correu para o lado dele a fim de examinar-lhe o joelho, e seus olhos se arregalaram de espanto
e asco.
A mão de um troll, provavelmente de um dos que ele retalhara quando Wulfgar resgatou Bruenor, havia se agarrado ao bárbaro enquanto ele corria, encontrando
um nicho em seu jarrete. Um dedo provido de garra já tinha se enterrado profundamente na perna e dois outros abriam caminho naquele exato momento.
- Não olhe - Drizzt aconselhou Wulfgar. Ele procurou pelo isqueiro em sua mochila e acendeu um graveto, depois o usou para espetar a mão perversa.
Assim que a coisa começou a fumegar e a se contorcer, Drizzt a retirou da perna e a atirou ao chão. A coisa tentou fugir, mas Drizzt saltou sobre ela, espetando-a
com uma de suas cimitarras e incendiando-a completamente com o graveto incandescente.
Ele voltou a olhar para Wulfgar, admirado com a absoluta determinação que permitira ao bárbaro prosseguir com um ferimento tão feio. Mas, então, a fuga chegara
ao fim, e Wulfgar já sucumbira à dor e à exaustão. Ele jazia escarrapachado e inconsciente no chão, ao lado de Bruenor e Régis.
- Durmam bem - Drizzt disse aos três, baixinho. - Vocês merecem - Verificou cada um deles para se certificar de que não estavam gravemente feri dos.
Então, satisfeito com o fato de que todos se recuperariam, ele deu início à sua guarda vigilante.
No entanto, até mesmo o valente drow havia ultrapassado os limites de seu vigor durante a marcha através dos Pântanos Eternos, e não demorou muito para
que ele também cabeceasse de sono e se juntasse aos amigos.
Ao fim da manhã seguinte, foram despertados pelos resmungos de Bruenor.
- 'Cê esqueceu meu machado! - o anão gritava, irritado. - Não posso cortar os malditos trolls sem o meu machado!
Drizzt se espreguiçou confortavelmente, um tanto quanto revigorado, mas ainda longe de estar recuperado.
- Eu disse a você que pegasse o machado - ele disse a Wulfgar, que também se livrava do sono profundo.
- Eu fui bem claro - Drizzt ralhou, de brincadeira. - Pegue o machado e deixe o anão ingrato.
- Foi o nariz que me confundiu - replicou Wulfgar. - Mais parecido com a cabeça de um machado do que qualquer outro nariz que eu já tenha visto!
Bruenor inconscientemente olhou para a ponta de seu narigão.
- Ora! - ele resmungou. - Vou arranjar uma clava! - e, com passos pesados, sumiu floresta adentro.
- Um pouco de silêncio, por favor! - disse Régis, ríspido, quando o último vestígio de seus sonhos agradáveis esvoaçou para longe. Aborrecido por ser
despertado tão cedo, ele rolou de lado e cobriu a cabeça com o manto.
Poderiam ter chegado a Lua Argêntea naquele mesmo dia, mas uma única noite de descanso não apagaria a fadiga dos dias que haviam passado nos Pântanos Eternos
e numa estrada difícil antes disso. Wulfgar, por exemplo, com a perna e as costas machucadas, era obrigado a usar uma bengala, e o sono que Drizzt conciliara na
noite anterior fora o primeiro em quase uma semana. Ao contrário dos urzais, aquela floresta parecia bastante incorrupta. E, embora soubessem que ainda estavam nos
ermos, sentiram-se suficientemente seguros para alongar a estrada até a cidade e desfrutar, pela primeira vez desde que haviam deixado Dez-Burgos, de uma caminhada
tranqüila.
Eles deixaram a floresta no zênite do dia seguinte e cobriram as últimas milhas até Lua Argêntea. Antes do pôr do sol, venceram a última subida e, lá do alto,
avistaram o Rio Rauvin e os incontáveis torreões da cidade encantada.
Todos eles experimentaram uma sensação de esperança e alívio ao vislumbrarem aquele cenário magnífico, mas ninguém a sentiu mais intensamente que Drizzt Do'Urden.
Desde que haviam se sentado pela primeira vez para planejar a aventura, o drow alimentara a esperança de que viessem a passar por Lua Argêntea, apesar de nada fazer
para influenciar a decisão de Bruenor na escolha do trajeto.
Drizzt ouvira falar de Lua Argêntea depois de sua chegada a Dez-Burgos e, não fosse pelo fato de que encontrara um certo grau de tolerância na rude comunidade
de fronteira, ele teria retraçado seus passos imediatamente até o lugar. Famoso por aceitar todos os que ali chegassem em busca de conhecimento, não importava a
raça, o povo de Lua Argêntea oferecia ao elfo negro renegado uma verdadeira oportunidade de encontrar um lar. Inúmeras vezes ele havia considerado viajar até o lugar,
mas algo dentro dele, talvez o medo da falsa esperança e de expectativas não cumpridas, manteve-o na segurança do Vale do Vento Gélido. Portanto, quando a decisão
fora tomada em Sela Longa de que Lua Argêntea seria seu próximo destino, Drizzt se surpreendeu encarando diretamente a utopia que nunca ousara sonhar. Observando
agora, lá do alto, sua única esperança de verdadeira aceitação na superfície do mundo, ele corajosamente afastou suas apreensões.
- A Ponte da Lua - comentou Bruenor quando uma carroça lá embaixo cruzou o Rauvin, aparentemente flutuando em pleno ar. Bruenor ouvira falar da estrutura
invisível quando menino, mas nunca a tinha visto pessoalmente.
Wulfgar e Régis assistiram ao espetáculo da carroça voadora com absoluto assombro. O bárbaro sobrepujara muitos de seus medos em relação à magia durante a
estada em Sela Longa e estava verdadeiramente ansioso por explorar aquela cidade lendária. Régis ali estivera uma vez anteriormente, mas sua familiaridade com o
lugar em nada ajudava a diminuir seu alvoroço.
Apesar do cansaço, eles se aproximaram ansiosamente do posto avançado sobre o Rauvin, o mesmo posto pelo qual o grupo de Entreri passara quatro dias antes,
com os mesmos guardas que haviam dado permissão ao grupo maligno para entrar na cidade.
- Saudações - ofereceu Bruenor, num tom de voz que poderia ser considerado jovial para o austero anão. - E saibam que a visão da sua bela cidade trouxe
nova vida pro meu coração cansado.
Os guardas mal lhe deram ouvidos, concentrados no drow, que havia recolhido o capuz. Pareciam curiosos, pois nunca tinham visto realmente um elfo negro, mas
não aparentaram muita surpresa com a chegada de Drizzt.
- Vocês podem nos escoltar até a Ponte da Lua agora? - Régis perguntou depois de um período de silêncio que foi se tornando cada vez mais incômodo.
- Vocês não fazem idéia de como estamos ansiosos para ver Lua Argêntea. Ouvimos falar tanto da cidade!
Drizzt desconfiou do que estava por vir. Um nó colérico se formou em sua garganta.
- Vão embora - o guarda disse tranqüilamente. - Vocês não podem passar.
O rosto de Bruenor ficou vermelho de raiva, mas Régis interrompeu-lhe a explosão.
- Certamente nada fizemos para motivar um julgamento tão severo o halfling protestou com toda a calma. - Somos simples viajantes, não procuramos
encrenca. - A mão dele se moveu em direção ao paletó e ao rubi hipnótico, mas o cenho franzido de Drizzt pôs fim ao seu plano.
- Sua reputação parece ter mais valor que suas ações - Wulfgar observou aos guardas.
- Sinto muito - um deles replicou -, mas tenho meus deveres e costumo cumpri-los.
- Nós ou o drow? - indagou Bruenor.
- O drow - respondeu o guarda. - O resto de vocês pode ir à cidade, mas o drow não pode passar!
Drizzt sentiu as muralhas da esperança desmoronando ao seu redor. As mãos, largadas ao lado do corpo, tremiam. Ele nunca tinha experimentado tamanha dor,
pois jamais chegara a um lugar sem a expectativa da rejeição. Mesmo assim, ele conseguiu sublimar sua raiva imediata e lembrar a si mesmo de que, para todos os efeitos,
esta era a demanda de Bruenor, não a sua.
- Canalhas! - Bruenor gritou. - O elfo vale uns dez de vocês, mais até! Devo a ele minha vida umas cem vezes e 'cês acham que podem dizer que ele não
é bom o bastante prá sua maldita cidade! Quantos trolls cês já mataram com as próprias espadas?
- Acalme-se, meu amigo - Drizzt o interrompeu, completamente controlado. - Já esperava por isto. Eles não conhecem Drizzt Do'Urden. Apenas a reputação
de meu povo. E a culpa não é deles. Entrem vocês, então. Aguardarei seu retorno.
- Não! - Bruenor declarou num tom de voz que não admitiria discussões. - Se você não pode entrar, então nenhum de nós entra!
- Pense no seu objetivo, seu anão teimoso - ralhou Drizzt. - A Câmara dos Sábios fica na cidade. A nossa única esperança, quem sabe.
- Ora! - desdenhou Bruenor. - Pro Abismo com esta cidade amaldiçoada e todos os que nela vivem! Sundabar fica a menos de uma semana de caminhada. Helm,
o amigo dos anões, vai ser mais hospitaleiro, ou então sou um gnomo de barba!
- Você devia entrar - disse Wulfgar. - Não deixe sua raiva vencer nosso propósito. Mas eu fico com Drizzt. Aonde ele não puder ir, Wulfgar, filho de
Beornegar recusa-se a ir!
Mas os passos ruidosos e determinados das pernas atarracadas de Bruenor já o levavam estrada afora para longe da cidade. Régis se virou para °s outros, deu
de ombros e seguiu atrás do anão, tão leal ao drow quanto qualquer um deles.
- Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum
monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros
em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela Longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - E a história se complica ainda mais, parece - Alustriel continuou. - Você sabe que tenho
duas irmãs?
Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Storm, uma barda de renome, e Dove Garra de Falcão, uma ranger. Ambas se interessaram pelo nome de Drizzt Do'Urden: Storm, como uma lenda em desenvolvimento
ainda carente de uma canção à sua altura, e Dove... Ainda preciso discernir seus motivos. Você se tornou um herói para ela, eu acho, o epítome das qualidades que
ela, como ranger, se esforça para aperfeiçoar. Ela entrou na cidade hoje de manhã e sabia de sua chegada iminente.
- Dove é muitos anos mais jovem que eu - continuou Alustriel. - E não tão experiente na política do mundo.
- Ela poderia ter me procurado - Drizzt concluiu, enxergando as implicações temidas por Alustriel.
- Ela o fará, um dia - a senhora respondeu. - Mas não posso permiti-lo agora, não em Lua Argêntea. - Alustriel fitou-o com atenção, e seu olhar insinuava
emoções mais profundas e pessoais. - E, além disso, eu mesma teria procurado uma audiência com você, como faço agora.
As implicações de um encontro como aquele no interior da cidade pareceram óbvias para Drizzt à luz dos conflitos políticos que Alustriel insinuara.
- Um outro dia, noutro lugar talvez - ele sugeriu. - Seria um incômodo muito grande?
Ela respondeu com um sorriso:
- De modo algum.
Satisfação e ansiedade se apossaram de Drizzt ao mesmo tempo. Ele voltou a olhar para as estrelas, imaginando se algum dia descobriria inteiramente a verdade
sobre sua decisão de vir ao mundo da superfície, ou se sua vida seria eternamente um tumulto de esperanças tentadoras e expectativas despedaçadas.
Eles permaneceram em silêncio durante um bom tempo até Alustriel falar novamente.
- Vocês vieram em busca da Câmara dos Sábios - disse ela -, para descobrir se algo ali menciona o Salão de Mitral.
- Eu exortei o anão a entrar - respondeu Drizzt. - Mas ele é teimoso.
- Foi o que imaginei - riu Alustriel. - Mas não quero que minhas ações interfiram com sua tão nobre demanda. Eu vasculhei o cofre pessoal mente. Você
não faz idéia do tamanho da biblioteca! Vocês não saberiam por onde começar a procurar entre os milhares de volumes que revestem as pare des. Mas conheço o cofre
melhor do que ninguém. Descobri coisas que você e seus amigos levariam semanas para encontrar. Mas, honestamente, muito pouco foi escrito sobre o Salão de Mitral
e nada, nada mesmo, oferece mais do que uma indicação passageira sobre a sua localização geral.
- Então, talvez tenha sido melhor sermos rechaçados.
Alustriel corou de constrangimento, embora Drizzt não tivesse a intenção de parecer sarcástico com sua observação.
- Meus guardas me informaram que vocês planejam seguir em frente até Sundabar - disse a dama.
- E verdade - respondeu Drizzt -, e de lá para a Cidadela Adbar, se necessário.
- Desaconselho esse curso - disse Alustriel. - Considerando tudo o que consegui encontrar no cofre e o meu próprio conhecimento das lendas sobre os
dias em que tesouros fluíam do Salão de Mitral, meu palpite é que fica no oeste, não no leste.
- Viemos do oeste e nossa trilha, em busca dos que detêm o conhecimento sobre os salões argênteos, tem nos conduzido continuamente para leste - opôs-se
Drizzt. - Além de Lua Argêntea, as únicas esperanças que temos são Helm e Harbromm, ambos no leste.
- Pode ser que Helm tenha algo a lhes contar - concordou Alustriel. - Mas pouco descobrirão com o Rei Harbromm e os anões de Adbar. Eles próprios empreenderam
a busca para encontrar a antiga terra natal da família de Bruenor há alguns anos apenas, e passaram por Lua Argêntea em sua jornada: rumo ao oeste. Mas eles nunca
encontraram o lugar e voltaram para casa, convencidos de que foi destruído e enterrado bem fundo em alguma montanha não assinalada ou que jamais tenha existido e
não passasse de um estratagema dos mercadores sulistas para negociar seus produtos no norte.
- Você não oferece muita esperança - comentou Drizzt.
- Pelo contrário - opôs-se Alustriel. - A oeste daqui, a menos de um dia de marcha, ao longo de uma trilha não assinalada que corre ao norte do Rauvin,
fica o Forte dos Arautos, um antigo bastião de saber acumulado. Se existe alguém nos dias de hoje que pode orientá-los, é o arauto, Noite Anciã. Eu o informei sobre
vocês e ele concordou em vê-los, mas ele não recebe visitas há décadas, além de mim e alguns seletos eruditos.
- Estamos em dívida com você - disse Drizzt, com uma reverência.
- Não espere muita coisa - avisou Alustriel. - O Salão de Mitral apareceu e desapareceu no conhecimento deste mundo num piscar de olhos. Dificilmente
três gerações de anões chegaram a minerar o lugar, apesar de eu admitir que uma geração dos anões é uma quantidade considerável de tempo, e eles não eram tão liberais
em seu comércio. Só raramente permitiam que alguém visitasse as minas, se as histórias forem verdadeiras. Eles apresentavam suas obras nas trevas da noite e, para
que chegassem aos mercados, supriam-nas por meio de uma rede secreta e intricada de agentes anões.
- Eles se defenderam muito bem contra a cobiça do mundo exterior - observou Drizzt.
- Mas sua ruína veio do interior das minas - disse Alustriel. - Um perigo desconhecido que talvez ainda se esconda por lá, você deve saber.
Drizzt assentiu.
- E, ainda assim, você quer ir até lá?
- Não me importo com os tesouros, apesar de que, se forem de fato tão esplêndidos quanto Bruenor os descreve, gostaria então de dar uma olhada neles.
Mas é a demanda do anão, sua grande aventura, e eu seria realmente um amigo deplorável se não o ajudasse a completá-la.
- Dificilmente tal rótulo lhe caberia, Drizzt Do'Urden - disse Alustriel. Ela retirou um pequeno frasco de uma dobra em seu vestido. -Leve isto com
você - instruiu ela.
- O que é isto?
- Uma poção de recordação - explicou Alustriel. - Dê isto ao anão quando as respostas parecerem próximas. Mas, cuidado, os poderes da poção são violentos!
Bruenor caminhará durante algum tempo entre as lembranças do passado distante tanto quanto entre as experiências do presente.
- E estes - ela disse, retirando uma pequena bolsa da mesma dobra e entregando-a a Drizzt - são para todos vocês. Ungüento para ajudar a cicatrizar
as feridas e biscoitos que revigoram um viajante cansado.
- Meus agradecimentos e os de meus amigos - disse Drizzt.
- Diante da terrível injustiça que lhe foi imposta, são uma pequena compensação.
- Mas a preocupação de quem os oferece não foi um presente insignificante - replicou Drizzt. Ele olhou diretamente nos olhos dela, absorvendo-a com
sua intensidade. - Você renovou minha esperança, Senhora de Lua Argêntea. Você me lembrou de que há realmente uma recompensa para os que seguem a senda da consciência,
um tesouro muito maior do que as ninharias materiais que com tanta freqüência são ofertadas a homens injustos.
- E há, de fato - ela concordou. - E seu futuro lhe mostrará muitas outras mais, orgulhoso ranger. Mas, agora, metade da noite já se foi e você precisa
descansar. Nada tema, pois há quem zele por vocês esta noite. Adeus, Drizzt Do'Urden, e que a estrada adiante seja veloz e desimpedida.
Com um aceno da mão, ela desvaneceu na luz das estrelas, deixando Drizzt a se perguntar se sonhara com aquele encontro. Mas, então, as últimas palavras dela
chegaram até ele pairando na brisa suave.
- Adeus, e não desanime, Drizzt Do'Urden. Sua honra e coragem não pas sam despercebidas!
Drizzt permaneceu em silêncio durante um bom tempo. Ele se abaixou e apanhou uma flor silvestre na margem do rio, girou-a entre seus dedos e imaginou se
ele a Senhora de Lua Argêntea poderiam realmente se encontrar de novo em condições mais transigentes. E aonde tal encontro poderia levar.
Então, ele atirou a flor no Rauvin.
- Deixemos os acontecimentos seguirem seu curso - ele disse, resoluto, olhando para o acampamento e para seus amigos mais chegados. - Não preciso de fantasias
para diminuir os grandes tesouros que já possuo. - Ele inspirou profundamente a fim de soprar para longe os restos de sua autopiedade.
E, com a fé restaurada, o estóico ranger foi dormir.

14. OS OLHOS DO GOLEM

Drizzt teve pouco trabalho para convencer Bruenor a reverter o curso deles e voltar para o oeste. Apesar de ansioso por chegar a Sundabar e descobrir o que
Helm sabia, a possibilidade de informações valiosas a menos de um dia de viagem dali deixou o anão alvoroçado.
Quanto a como conseguira a informação, Drizzt ofereceu poucas explicações, dizendo apenas que topara com um viajante solitário na estrada para Lua Argêntea
durante a noite. Apesar de a história soar inventada aos amigos, eles não questionaram o drow por respeitarem sua privacidade e confiarem inteiramente nele. Mas,
durante o desjejum, Régis chegou a esperar que outras informações viessem à tona, pois os biscoitos que o tal viajante dera a Drizzt eram verdadeiramente deliciosos
e incrivelmente revigorantes. Depois de apenas algumas mordidas, o halfling se sentia como se tivesse passado uma semana descansando. E a pomada mágica curou imediatamente
a perna e as costas machucadas de Wulfgar, que caminhou sem a bengala pela primeira vez desde que eles haviam deixado os Pântanos Eternos.
Wulfgar desconfiou que o encontro de Drizzt envolvera alguém de grande importância muito antes do drow revelar os presentes maravilhosos. Pois o brilho interior
de otimismo do drow, uma centelha sagaz em seus olhos a refletir o espírito indômito que o fazia sobreviver a provações que teriam esmagado a maioria dos homens,
retornara total e dramaticamente. O bárbaro não precisava conhecer a identidade da pessoa: estava simplesmente contente por seu amigo ter superado a depressão.
Quando eles se puseram a caminho, mais tarde naquela manhã, mais pareciam um grupo que acabava de dar início a uma aventura do que um bando fatigado pela
estrada. Assobiando e conversando, seguiram o fluxo do Rauvin em seu curso para oeste. Apesar de por um triz, haviam saído relativamente ilesos da marcha brutal
e tinham aparentemente feito bom progresso em direção ao seu objetivo. O sol do verão brilhava no céu e todas as peças do quebra-cabeça do Salão de Mitral pareciam
estar ao alcance da mão.
Jamais suspeitariam que olhos assassinos neles se fixavam.
Desde os contrafortes ao norte do Rauvin, muito acima dos viajantes, o golem pressentiu a passagem do elfo drow. Seguindo a atração dos encantos mágicos de
busca que Dendibar lançara sobre ele, Bok não demorou muito para avistar lá do alto o bando que percorria a trilha. Sem hesitação, o monstro obedeceu às suas diretrizes
e partiu em busca de Sidnéia.
Bok arremessou longe um matacão que jazia em seu caminho, depois escalou um outro que era grande demais, sem compreender as vantagens de simplesmente contornar
as pedras. O caminho de Bok estava claramente traçado e o monstro se recusava a se desviar daquele curso o mínimo que fosse.
- Esse é um dos grandes! - riu um dos guardas no posto sobre o Rauvin ao ver Bok do outro lado da clareira. Entretanto, mesmo enquanto as palavras
deixavam sua boca, o guarda percebeu o perigo iminente: aquele não era um viajante comum!
Corajosamente, ele saiu correndo para encarar o golem de frente, a espada desembainhada e o companheiro logo atrás.
Transfixado por seu objetivo, Bok não deu ouvidos aos alertas dos dois.
- Alto! - ordenou o guarda uma última vez enquanto Bok cobria a pequena distância entre eles.
O golem não conhecia emoções, de modo que não sentiu raiva dos guardas quando eles o atacaram. Postaram-se para bloquear o caminho e Bok os jogou longe com
um tapa, sem hesitação, e o incrível poder de seus braços fortalecidos pela magia atravessou-lhes as defesas e os arremessou pelos ares. Sem se deter, o golem seguiu
adiante até o rio e não diminuiu o passo, desaparecendo sob as águas impetuosas.
Alarmas soaram na cidade, pois os soldados ao portão, do outro lado do rio, assistiram ao espetáculo que se desenrolou no posto avançado. Os imensos portões
foram fechados e trancados, e os Cavaleiros em Prata puseram-se a vigiar o Rauvin, esperando pelo reaparecimento do monstro.
Bok seguiu em linha reta pelo leito do rio, singrando o lodo e a lama e mantendo o curso com facilidade apesar do pujante ímpeto das correntes. Quando o monstro
reemergiu diretamente do outro lado do posto avançado, os cavaleiros enfileirados diante do portão da cidade ficaram boquiabertos de incredulidade, mas mantiveram
suas posições, os rostos severos e as armas em prontidão.
O portão se situava um pouco mais rio acima a partir do ângulo da senda escolhida por Bok. O golem seguiu em frente até a muralha da cidade, mas não alterou
seu curso para se aproximar do portão.
Com um murro, ele abriu um buraco na muralha e a atravessou. Entreri andava ansiosamente de um lado para outro em seu quarto na Estalagem dos Sábios Geniosos,
perto do centro da cidade.
- Eles já deviam ter chegado - ele disse com aspereza para Sidnéia, sentando-se na cama e apertando as cordas que seguravam Cattiebrie.
Antes que Sidnéia conseguisse responder, um globo de chamas apareceu no centro da sala, não um fogo real, mas a imagem de chamas, ilusória, como algo ardendo
naquele determinado ponto em outro plano. As chamas tremularam e se transformaram na aparição de um homem de túnica.
- Morkai! - arquejou Sidnéia.
- Meus cumprimentos - replicou o espectro. - E os cumprimentos de Dendibar, o Variegado.
Entreri se esgueirou de volta a um dos cantos do quarto, desconfiado. Cattiebrie, indefesa, amarrada como estava, continuou sentada e imóvel.
Sidnéia, versada nas sutilezas da conjuração, sabia que o ser sobrenatural estava sob o controle de Dendibar e ela teve medo.
- Por que meu mestre mandou que viesse aqui? - ela perguntou audaciosamente.
- Trago notícias - respondeu o espectro. - O grupo que vocês procuram foi desviado para os Pântanos Eternos há uma semana, ao sul de Nesmé.
Sidnéia mordeu o lábio de expectativa pela próxima revelação do espectro, mas Morkai quedou-se mudo e também aguardou.
- E onde estão eles agora? - pressionou Sidnéia, impaciente.
Morkai sorriu.
- Perguntado fui duas vezes, mas ainda não obrigado! - As chamas se consumiram com estrépito novamente e o espectro desapareceu.
- Os Pântanos Eternos - disse Entreri. - Isso explicaria a demora.
Sidnéia concordou com um meneio da cabeça, distraída, pois ela tinha outras coisas em mente.
- Ainda não obrigado - ela murmurou consigo mesma, repetindo as últimas palavras do espectro. Perguntas perturbadoras a incomodavam. Por que Dendibar
esperara uma semana para enviar Morkai com as notícias? E por que o mago não teria conseguido forçar o espectro a revelar atividades mais recentes do grupo do drow?
Sidnéia conhecia os perigos e as limitações da invocação e compreendia a espantosa exaustão que o ato exercia sobre o poder de um mago. Dendibar havia conjurado
Morkai pelo menos três vezes recentemente: uma vez quando o grupo do drow entrara em Luskan, e ao menos duas vezes desde que ela e seus companheiros haviam partido
na caçada. Teria Dendibar abandonado toda a cautela em sua obsessão pela Estilha de Cristal?
Sidnéia sentiu que o domínio do mago variegado sobre Morkai havia diminuído imensamente e ela esperava que Dendibar fosse prudente com futuras invocações,
pelo menos até que tivesse descansado completamente.
- Podem se passar semanas até que cheguem! - disse Entreri, com veemência, considerando as notícias. - Se é que um dia virão.
- Talvez você tenha razão - concordou Sidnéia. - Eles poderiam ter tombado nos urzais.
- E se tiverem?
- Então, entraremos lá atrás deles - disse Sidnéia, sem hesitação. Entreri estudou-a por alguns instantes.
- O prêmio que você busca deve ser realmente vultoso - ele disse.
- Tenho o meu dever e não vou falhar com meu mestre - ela retrucou rispidamente. - Bok vai encontrá-los mesmo que estejam no fundo do brejo mais profundo!
- Temos de decidir nosso curso agora - Entreri insistiu. Ele voltou seu olhar maldoso para Cattiebrie. - Estou ficando cansado de vigiar essa aí.
- Eu tampouco confio nela - Sidnéia concordou. - Mas ela pode ser útil quando encontrarmos o anão. Esperaremos mais três dias. Depois disso, voltaremos
a Nesmé e entraremos nos Pântanos Eternos se for preciso.
Entreri relutantemente aprovou o plano com um aceno da cabeça.
- Ouviu? - ele sibilou para Cattiebrie. - Você tem mais três dias de vida, a menos que seus amigos cheguem. Se estiverem mortos nos urzais, você não
tem utilidade para nós.
Cattiebrie não demonstrou qualquer emoção durante toda a conversa, determinada a não deixar Entreri conquistar a menor vantagem descobrindo-lhe a fraqueza,
ou a força. Ela acreditava que seus amigos não estavam mortos. Tipos como Bruenor Martelo de Batalha e Drizzt Do'Urden não estavam destinados a morrer numa vala
indigente em algum pântano desolado. E Cattiebrie jamais aceitaria que Wulfgar estivesse morto até que a prova fosse irrefutável. Fiel à sua crença, seu dever para
com os amigos era manter uma fisionomia inexpressiva. Ela sabia que estava vencendo sua batalha pessoal, que o medo paralisante que Entreri provocava nela perdia
força a cada dia. Ela estaria pronta para agir quando chegasse a hora. Ela apenas precisava se certificar de que Entreri e Sidnéia não o percebessem.
Ela notara que o afã da estrada e os novos companheiros começavam a afetar o assassino. A cada dia, Entreri revelava mais emoções, maior desespero para terminar
o serviço. Seria possível que pudesse cometer um erro?
- Está aqui! - um grito ecoou desde o corredor e todos os três se sobressaltaram involuntariamente, depois reconheceram a voz como sendo a de Jierdan,
que ficara vigiando a Câmara dos Sábios. Um segundo depois, a porta se abriu com violência e o soldado entrou espalhafatosamente no quarto, a respiração desigual.
- O anão? - Sidnéia perguntou, segurando Jierdan para acalmá-lo.
- Não! - gritou Jierdan. - O golem! Bok entrou em Lua Argêntea! Eles o aprisionaram perto do portão oeste. Um mago foi chamado.
- Maldição! - Sidnéia disse com veemência e saiu do quarto.
Entreri deu um passo para segui-la, segurando o braço de Jierdan e forçando-o a dar meia-volta com um puxão, de modo que os dois ficassem cara a cara.
- Fique com a garota - ordenou o assassino. Jierdan o fulminou com o olhar.
- Ela é problema seu.
Entreri poderia facilmente ter matado o soldado bem ali, notou Cattiebrie, esperando que Jierdan houvesse interpretado o olhar mortífero do assassino tão
claramente quanto ela.
- Faça o que lhe mandam! - Sidnéia gritou com Jierdan, pondo fim à discussão. Ela e Entreri saíram, e o assassino bateu a porta.
- Ele teria matado você - Cattiebrie disse a Jierdan quando Entreri e Sidnéia se foram. - Você sabe disso.
- Quieta - rosnou Jierdan. - Estou cheio de suas palavras vis! - Ele se aproximou dela ameaçadoramente, os punhos cerrados.
- Pode bater - desafiou Cattiebrie, sabendo que mesmo que ele o fizesse, seu código de soldado não lhe permitiria continuar tal assalto a um adversário
indefeso. - Apesar de que, na verdade, eu sou sua única amiga nesta viagem amaldiçoada!
Jierdan estacou.
- Amiga? - enjeitou ele.
- E melhor amiga você não vai encontrar - respondeu Cattiebrie. - Você aqui é tão prisioneiro quanto eu. - Ela reconheceu a vulnerabilidade daquele
homem orgulhoso, reduzido à servidão pela arrogância de Sidnéia e Entreri, e atingiu-o com precisão cirúrgica. - Eles querem te matar, 'cê sabe disso agora, e mesmo
que 'cê escape do fio da espada, 'cê não tem prá onde ir. 'Cê abandonou seus colegas em Luskan e, de qualquer maneira, o mago na torre te daria um triste fim se
você voltasse lá um dia!
Jierdan se retesou de fúria frustrada, mas não atacou.
- Meus amigos 'tão por perto - continuou Cattiebrie, apesar dos sinais ameaçadores. - Eles 'tão vivos ainda, eu sei, e vamos encontrar eles qualquer
dia desses. Vai ser a nossa hora, soldado, de viver ou morrer. No meu caso, vejo uma oportunidade. Mas no seu, como a estrada parece escura! Se meus amigos vencerem,
vão te matar, e se seus camaradas vencerem... - Ela deixou as possibilidades sinistras em mudo suspense por alguns instantes para que Tierdan pudesse ponderá-las
em sua totalidade.
- Quando eles pegarem o que procuram, não vão mais precisar de você - ela disse sombriamente. Notou que ele tremia, não de medo, mas de raiva, e forçou-o
a perder o controle. - Pode ser que te deixem viver - ela disse sarcasticamente. - Quem sabe não estejam precisando de um lacaio!
Ele a esmurrou então, apenas uma vez, e recuou.
Cattiebrie aceitou o golpe sem se queixar e até mesmo sorriu em meio à dor, apesar de tomar o cuidado de esconder sua satisfação. A perda de autocontrole
de Jierdan provava que o contínuo desrespeito que Sidnéia e principalmente Entreri haviam demonstrado por ele alimentara as chamas da insatisfação, levando-as à
beira da explosão.
Ela também sabia que quando Entreri retornasse e visse a equimose que Jierdan lhe proporcionara, aquelas chamas arderiam com mais intensidade ainda.
Sidnéia e Entreri correram pelas ruas de Lua Argêntea, seguindo os óbvios ruídos de comoção. Quando chegaram à muralha, encontraram Bok enclausurado numa
esfera de luzes verdes e brilhantes. Cavalos sem cavaleiros andavam para lá e para cá, ao som dos gemidos de uma dezena de soldados feridos, e um velho - o mago
- se achava diante do globo de luz, cofiando a barba e estudando o golem aprisionado. Um Cavaleiro em Prata de considerável posição hierárquica se encontrava ao
lado dele, impaciente, crispando-se nervosamente e apertando com força o botão do punho de sua espada embainhada.
- Destrua essa coisa e acabe logo com isso - Sidnéia ouviu o cavaleiro dizer ao mago.
- Ah, não! - exclamou o mago. - É prodigioso!
- Você quer segurá-lo aqui para sempre? - devolveu o cavaleiro. - Dê uma olhada ao redor...
- Com licença, cavalheiros - Sidnéia interrompeu. - Sou Sidnéia da Torre das Hostes Arcanas de Luskan. Talvez eu possa ser de alguma ajuda.
- Bons olhos a vejam - disse o mago. - Sou Mizzen da Segunda Escola do Conhecimento. Você conhece o proprietário desta criatura magnífica?
- Bok é meu - ela admitiu.
O cavaleiro a fitou, admirado que uma mulher - ou qualquer pessoa, por falar nisso - controlasse o monstro que havia abatido alguns de seus melhores guerreiros
e derrubado uma seção da muralha da cidade.
- O preço há de ser alto, Sidnéia de Luskan - ele rosnou.
- A Torre das Hostes irá ressarci-los - ela concordou. - Agora, poderia libertar o golem e deixá-lo sob meu controle? - ela perguntou ao mago. -
Bok vai me obedecer.
- Não! - disse o cavaleiro, ríspido. - Não vou deixar essa coisa à solta novamente.
- Calma, Gavin - disse-lhe Mizzen. Ele se voltou para Sidnéia. - Eu gostaria de estudar o golem, se possível. É realmente a mais primorosa construção
que já vi, com uma força além das expectativas dos livros de criação.
- Sinto muito - Sidnéia respondeu -, mas tenho pouco tempo. E muitas estradas ainda a percorrer. Diga o valor dos prejuízos causados pelo golem e eu
o retransmitirei ao meu mestre. Dou-lhe minha palavra como membro da Torre das Hostes.
- Você vai pagar agora - argumentou o guarda.
Mais uma vez, Mizzen o silenciou.
- Perdoe a raiva de Gavin - disse ele a Sidnéia. Ele inspecionou a área. - Talvez possamos fazer um acordo. Ninguém parece ter sido ferido gravemente.
- Três homens saíram daqui carregados! - Gavin refutou. - E pelo menos um cavalo está estropiado e teremos de sacrificá-lo!
Mizzen acenou com a mão como se para minimizar as reclamações.
- Eles vão se recuperar - disse. - Eles vão se recuperar. E a muralha precisava mesmo de reparos. - Ele olhou para Sidnéia e cofiou a barba novamente.
- Eis a minha oferta, e você não vai encontrar outra mais razoável! Entregue-me o golem por uma noite, apenas uma, e eu ressarcirei o prejuízo que ele causou. Só
uma noite.
- Você não vai desmontar Bok - afirmou Sidnéia.
- Nem mesmo a cabeça? - implorou Mizzen.
- Nem mesmo a cabeça - insistiu Sidnéia. - E eu virei buscar o golem à primeira luz da manhã.
Mizzen cofiou a barba mais uma vez.
- Uma obra prodigiosa - ele murmurou, perscrutando o interior da prisão mágica. - Feito!
- Se esse monstro... - começou Gavin, furioso.
- Ah, onde está seu senso de aventura, Gavin? - devolveu Mizzen, antes mesmo que o cavaleiro conseguisse terminar sua ameaça. - Lembre-se dos preceitos
de nossa cidade, homem. Estamos aqui para aprender. Se você pudesse apenas compreender o potencial de uma criação como esta!
Eles se afastaram de Sidnéia, não lhe dando mais atenção, e o mago ainda tagarelava no ouvido de Gavin. Entreri se esgueirou desde as sombras de um edifício
próximo para o lado de Sidnéia.
- Por que a coisa veio até nós? - ele perguntou. Ela chacoalhou a cabeça.
- Só pode haver uma resposta.
- O drow?
- Sim - ela disse. - Bok deve tê-los seguido até a cidade.
- Improvável - concluiu Entreri -, mas é possível que o golem os tenha visto. Se Bok estivesse atrás do drow e seus valentes companheiros, eles estariam
aqui na batalha, ajudando a rechaçá-lo.
- Então, é possível que ainda estejam lá fora.
- Ou talvez estivessem deixando a cidade quando Bok os viu - disse Entreri. - Vou ver se descubro alguma coisa com os guardas do portão. Nada tema,
nossa presa está bem próxima!
Eles retornaram ao quarto umas duas horas depois. Com os guardas no portão, descobriram que o grupo do drow fora rechaçado e agora estavam ansiosos para recuperar
Bok e seguir caminho.
Sidnéia deu início a uma série de instruções para Jierdan referentes à partida pela manhã, mas o que atraiu a atenção imediata de Entreri foi o olho machucado
de Cattiebrie. Ele se aproximou para verificar as cordas e, satisfeito por estarem intactas, virou-se para Jierdan com o punhal desembainhado.
Sidnéia o interrompeu, rapidamente inferindo a situação.
- Agora não! - exigiu. - Nossas recompensas estão próximas. Não podemos nos permitir isto!
Entreri riu maldosamente e guardou o punhal.
- Ainda vamos discutir isso - ele prometeu a Jierdan, entre dentes. - Não toque na garota novamente.
Perfeito, pensou Cattiebrie. Do ponto de vista de Jierdan, era como se o assassino confessasse a intenção de matá-lo.
Mais combustível para as chamas.
Ao recuperar o golem com Mizzen na manhã seguinte, as suspeitas de Sidnéia de que Bok vira o grupo do drow foram confirmadas. Eles deixaram lua Argêntea imediatamente
e Bok os conduziu pela mesma trilha que Bruenor e seus amigos haviam tomado na manhã anterior.
Como o grupo anterior, eles também eram vigiados.
Alustriel afastou do rosto o cabelo ondulante e capturou o sol da manhã em seus olhos verdes enquanto observava aquele bando com curiosidade cada vez maior.
A dama descobrira com os porteiros que alguém estivera perguntando sobre o elfo negro.
Ela ainda não conseguia entender que papel aquele novo grupo que deixava Lua Argêntea representava na missão, mas ela desconfiava que suas intenções não
eram boas. Alustriel havia saciado a própria sede de aventura muitos anos antes, mas ela desejava agora que pudesse, de algum modo, ajudar o drow e seus amigos em
sua nobre missão. No entanto, os assuntos de estado a oprimiam e ela não tinha tempo para essas distrações. Pensou por um momento em despachar uma patrulha para
capturar aquele segundo grupo, para que, assim, pudesse lhes descobrir a intenção.
Então, ela se voltou para sua cidade, lembrando a si mesma de que era apenas uma personagem de menor importância na busca pelo Salão de Mitral. Só lhe restava
confiar nas habilidades de Drizzt Do'Urden e seus amigos.

CONTINUA

LIVRO 2
ALIADOS


Ele quer ir para casa. Quer encontrar um mundo que conheceu outrora. Não sei se é a promessa de riquezas ou a da simplicidade que agora impele Bruenor.
Ele quer encontrar o Salão de Mitral, livrá-lo de todos os monstros que possam agora habitar o lugar a fim de reclamá-lo em nome do Clã Martelo de Batalha.
Superficialmente, esse desejo parece uma coisa razoável, até mesmo nobre. Todos nós buscamos a aventura e, para aqueles cujas famílias vivem segundo a tradição
da nobreza, o desejo de vingar um agravo e restaurar o nome e a posição da família não pode ser subestimado.
Nossa estrada para o Salão de Mitral provavelmente não será fácil. Muitas terras perigosas e incivilizadas jazem entre o Vale do Vento Gélido e a região bem
a leste de Luskan e, sem dúvida, essa estrada promete tornar-se ainda mais sombria se de fato encontrarmos a entrada para as minas perdidas dos anões. Mas estou
cercado por amigos capazes e poderosos e, assim sendo, os monstros não me preocupam, não os que conseguimos combater com a espada. Não, meu único temor em relação
a esta jornada que empreendemos agora se refere a Bruenor Martelo de Batalha. Ele quer ir para casa e existem muitos bons motivos para tanto. Há apenas um bom motivo
para que ele não o faça e, se esse motivo, a nostalgia, for a fonte de seu desejo, então temo que ele venha a sofrer uma amarga decepção.
A nostalgia é, talvez, a maior das mentiras que todos nós contamos a nós mesmos. É o lustro do passado a se adaptar às sensibilidades do presente. Para alguns,
isso traz um certo consolo, um sentido de identidade e origem, mas outros, acho eu, exageram essas lembranças alteradas e, por causa disso, ficam paralisados diante
da realidade.
Quantas pessoas anelam por aquele "mundo passado, mais simples e melhor", eu me pergunto, sem jamais reconhecer a verdade de que talvez elas é que eram mais
simples e melhores, e não o mundo ao seu redor?
Como um elfo drow, espero viver vários séculos, mas aquelas primeiras décadas de vida para um drow, e para um elfo da superfície, não são tão diferentes,
no que se refere ao desenvolvimento emocional, das de um humano, ou de um halfling, ou de um anão. Eu também recordo esse idealismo e essa energia dos meus dias
de juventude, quando o mundo parecia um lugar descomplicado, quando o certo e o errado estavam claramente gravados no caminho diante de cada um dos meus passos.
Talvez, de alguma estranha maneira, devido ao fato de que meus primeiros anos foram tão repletos de experiências terríveis, tão repletos de um ambiente e de uma
experiência que eu simplesmente não conseguia tolerar, estou em melhor situação agora. Bois, ao contrário de tantos que conheci na superfície, minha vida tem melhorado
constantemente.
Teria isso contribuído para o meu otimismo, para a minha própria existência e para mundo inteiro ao meu redor?
Tantas pessoas, particularmente os humanos que passaram o ponto médio de sua expectativa de vida, continuam a procurar no passado o paraíso, continuam a alegar
que o mundo era um lugar muito melhor quando eram jovens.
Não acredito nisso. Pode haver ocasiões específicas em que isso seja verdade - um rei despótico que deixa em seu lugar um monarca piedoso, uma era de bem-estar
que envolve a terra depois de uma peste -, mas acredito, preciso acreditar, que as pessoas do mundo são um grupo em desenvolvimento, que a evolução natural das civilizações,
apesar de não ser necessariamente uma sucessão em linha reta, caminha rumo a melhoria do mundo. Pois cada vez que se encontra um caminho melhor, as pessoas naturalmente
gravitam naquela direção enquanto os experimentos fracassados são abandonados. Tenho ouvido, por exemplo, as interpretações de Wulfgar sobre a história do seu povo,
as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido, e fico atônito e horrorizado diante da brutalidade do seu passado, a luta constante de tribo contra tribo, o estupro
em massa das mulheres capturadas e a tortura dos homens aprisionados. Os homens das tribos do Vale do Vento Gélido são ainda um bando selvagem, sem dúvida, mas,
se dermos crédito às tradições orais, não na mesma medida que seus predecessores. E isso faz todo o sentido para mim e, assim, tenho esperança de que a tendência
continuará. Talvez, um dia, venha a surgir um grande líder bárbaro que encontre verdadeiramente o amor de uma mulher, que encontre uma esposa que arranque dele um
certo grau de respeito, praticamente desconhecido entre os bárbaros. Será que esse líder elevará, de algum modo, a posição das mulheres entre as tribos?
Se isso acontecer, as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido encontrarão uma força que simplesmente não compreendem em meio à metade de sua população. Se
isso acontecer, se as mulheres bárbaras sofrerem essa ascensão, então os homens das tribos nunca, jamais as forçarão de volta aos seus papéis atuais, que podem ser
descritos apenas como escravidão.
E todos eles, homens e mulheres, mudarão para melhor.
Para que a mudança dure entre criaturas racionais, essa mudança deve ser para melhor. E, desse modo, as civilizações, os povos evoluem para um melhor entendimento
e um lugar melhor.
Para as Matriarcas de Menzoberranzan, assim como no caso de muitas gerações de famílias despóticas e de ricos proprietários de terras, a mudança pode ser
encarada como uma ameaça clara à sua base de poder e, portanto, sua resistência parece lógica, até mesmo esperada. Como, então, podemos encontrar explicação no fato
de que tantas, tantas pessoas, até mesmo aquelas que vivem na miséria, como viveram seus pais e os pais de seus pais, e gerações e gerações antes deles, encarem
a mudança com o mesmo medo e a mesma repulsa? Por que o mais humilde camponês não desejaria a evolução da civilização se essa evolução pudesse levar a uma vida melhor
para seus filhos?
Isso pareceria lógico, mas, pelo que vejo, não é o caso. Para muitos, se não para a maioria dos humanos de vida breve que já ultrapassou a idade de maior
vigor e saúde, que já deixou para trás seus melhores dias, aceitar qualquer mudança não parece algo fácil. Não, tantos se agarram ao passado, quando o mundo era
"mais simples e melhor". Eles se ressentem da mudança num nível pessoal, como se as melhorias que seus sucessores possam implementar lançassem uma luz brilhante
e reveladora sobre seus próprios fracassos.
Talvez seja isso. Talvez seja um dos nossos medos mais fundamentais, o medo, criado pelo orgulho insensato, de que nossos filhos venham a saber mais do que
nós mesmos. Ao mesmo tempo em que tantas pessoas enaltecem as virtudes de seus filhos, existirá algum medo remoto dentro delas de que esses filhos venham a enxergar
os erros de seus pais?
Não tenho respostas para esse aparente paradoxo, mas, pelo bem de Bruenor, rezo para que ele procure o Salão de Mitral pelos motivos certos, em nome da aventura
e do desafio, em nome de sua herança e da restauração do nome de sua família, e não em nome do desejo de transformar o mundo naquilo que era antes.
A nostalgia é algo necessário, creio eu, e uma maneira de todos nós encontrarmos paz naquilo que realizamos, ou até mesmo no que não conseguimos realizar.
For outro lado, se a nostalgia precipitar nossas ações numa tentativa de retornar àquela época lendária e cor-de-rosa, particularmente no caso de alguém que acredita
que sua vida tenha sido um fracasso, então é algo vazio, condenado a gerar nada além de frustração e uma sensação ainda maior de fracasso.
Pior ainda, se a nostalgia colocar obstáculos no caminho da evolução, então se trata de algo realmente limitante.
Drizzt Do'Urden


7. PARA RISCO DAS AVES QUE VOAM BAIXO


Para o mais absoluto alívio dos companheiros, eles emergiram das curvas e depressões dos rochedos quase no fim da tarde. Levaram algum tempo para reunir as
montarias depois do encontro com o Pégaso, particularmente o pônei do halfling, que havia disparado no começo da luta, quando Régis caíra. Na verdade, seria impossível
montar o pônei novamente: estava arisco demais e Régis não se encontrava em condições de cavalgar. Mas Drizzt insistira que os dois cavalos e os dois pôneis fossem
encontrados, lembrando seus companheiros de sua responsabilidade para com os fazendeiros, considerando-se especialmente a maneira pela qual haviam se apropriado
dos animais.
Régis agora ia sentado diante de Wulfgar no garanhão do bárbaro, à frente do grupo, com o pônei amarrado logo atrás e Drizzt e Bruenor a uma pequena distância
deles, defendendo a retaguarda. Wulfgar mantinha os braços imensos em torno do halfling e seu abraço protetor oferecia segurança suficiente para permitir a Régis
o descanso justo.
- Mantenha o sol poente às nossas costas - Drizzt instruiu o bárbaro.
Wulfgar assentiu com um brado e olhou para trás a fim de confirmar sua posição.
- Ronca-bucho não poderia ter encontrado um lugar mais seguro em todos os Reinos - Bruenor comentou com o drow.
Drizzt sorriu:
- Wulfgar se saiu bem.
- É - concordou o anão, obviamente satisfeito. - Apesar de que eu me pergunto quanto tempo mais vou poder continuar chamando ele de garoto!
- 'Cê devia ter visto o Alfanje, elfo - casquinou o anão. - Um barco cheio de Piratas, que não vêem outra coisa além do oceano há um ano e um dia, não
seria capaz de causar tanta destruição!
- Quando deixamos o vale, minha preocupação era se Wulfgar estaria pronto para as várias sociedades do mundo - replicou Drizzt. - Agora minha preocupação
é que o mundo pode não estar preparado para ele. Você deve estar orgulhoso.
- Você tem tanto a ver com isso quanto eu - disse Bruenor. - Ele é meu garoto, elfo, quase como se fosse mesmo meu filho. Ele nem pensou nos próprios
temores no campo lá atrás. Nunca tinha visto tamanha coragem num ser humano como quando você foi pro outro plano. Ele esperou - contou com isso, 'tô te dizendo!
- que o desgraçado do bicho voltasse prá que pudesse tentar acertar em cheio, só prá vingar a mim e o halfling, os dois feridos.
Drizzt apreciava aqueles raros momentos de vulnerabilidade do anão. Poucas vezes antes vira Bruenor abandonar sua fachada empedernida, no topo da ladeira
no Vale do Vento Gélido, quando o anão pensava no Salão de Mitral e nas maravilhosas lembranças de sua infância.
- E, 'tô orgulhoso - continuou Bruenor. - E me pego agora disposto a seguir a liderança dele e a confiar nas suas decisões.
Drizzt podia apenas concordar, tendo chegado às mesmas conclusões muitos meses antes, quando Wulfgar unira os povos do Vale do Vento Gélido - bárbaros e deca-burgueses
- para que juntos se protegessem contra o rigoroso inverno da tundra. Ele ainda tinha algum receio em levar o jovem bárbaro a lugares como a zona portuária de Luskan,
pois sabia que muitas das melhores pessoas nos Reinos haviam pago caro por seus primeiros encontros com as guildas e as estruturas de poder clandestinas de uma cidade,
e que a profunda compaixão de Wulfgar e seu irredutível código de honra poderiam ser usados contra ele.
Mas na estrada, nos ermos, Drizzt sabia que nunca encontraria um companheiro mais valioso.
Não encontraram mais problemas no resto do dia ou da noite e, na manhã seguinte, chegaram à estrada principal, a rota comercial de Águas Profundas a Mirabar
que passava por Sela Longa no caminho. Nenhum ponto de referência surgiu para orientá-los como Drizzt previra, mas, devido ao seu plano de se manter mais para leste
do que numa linha reta para sudeste, a direção a partir dali era claramente o sul.
Régis parecia muito melhor naquele dia e estava ansioso por ver Sela Longa. Era o único membro do grupo a ter visitado o lar dos magos Harpells e aguardava
ansiosamente para rever o estranho e geralmente exótico lugar.
Sua exaltada tagarelice, porém, fez apenas aumentar os receios de Wulfgar, pois era profunda a desconfiança do bárbaro em relação às artes negras. Entre o
povo de Wulfgar, os magos eram vistos como covardes e vigaristas malignos.
Quanto tempo teremos de ficar nesse lugar? - ele perguntou a Bruenor e Drizzt, que, com os rochedos às suas costas, passaram a cavalgar ao lado dele na estrada
larga.
- Até a gente conseguir algumas respostas - respondeu Bruenor. - Ou até a gente pensar num lugar melhor prá ir.
Wulfgar teve de se satisfazer com a resposta.
Eles logo passaram por algumas fazendas periféricas, atraindo olhares curiosos dos homens nos campos, que se inclinavam sobre as enxadas e os ancinhos para
estudar o grupo. Pouco depois do primeiro desses encontros, foram recebidos na estrada por cinco homens armados, chamados Longinetes, representantes da guarda avançada
da vila.
- Saudações, viajantes - disse um deles, educadamente. - Posso perguntar quais são suas intenções por estas bandas?
- Você pode é... - começou Bruenor, mas Drizzt interrompeu-lhe o comentário sarcástico com uma palma esticada.
- Viemos ver os Harpells - respondeu Régis. - Nossos assuntos não envolvem sua cidade, mas procuramos o sábio conselho da família que vive na mansão.
- Bons olhos os vejam, então - respondeu o Longinete. - A colina da Mansão de Hera fica só algumas milhas estrada abaixo, antes de Sela Longa propriamente
dita. - Ele fez uma pausa brusca, notando a presença do drow. - Podemos escoltá-los, se desejarem - ofereceu ele, limpando a garganta numa tentativa educada de esconder
seu assombro diante do elfo negro.
- Não é necessário - disse Drizzt. - Asseguro-lhe que encontraremos o caminho e que não desejamos nenhum mal a qualquer pessoa de Sela Longa.
- Muito bem.
O Longinete fez sua montaria dar um passo para o lado e os companheiros seguiram em frente.
- Mas fiquem na estrada - ele ainda gritou. - Alguns dos fazendeiros ficam nervosos com pessoas próximas aos limites de suas terras.
- São uma gente afável - Régis explicou para os companheiros enquanto desciam a estrada -, e confiam em seus magos.
- Afáveis, mas precavidos - retorquiu Drizzt, apontando um campo distante onde a silhueta de um homem a cavalo mal e mal se fazia notar na longínqua fileira
de árvores. - Somos vigiados.
- Mas não incomodados - disse Bruenor. - E é mais do que se pode dizer sobre qualquer outro lugar por onde a gente tenha andado!
A colina da Mansão de Hera compreendia um pequeno outeiro com três edifícios, dois deles semelhantes ao padrão das casas de fazenda, baixas e feitas de madeira.
O terceiro, porém, era diferente de tudo o que os quatro companheiros já tinham visto. Suas paredes se encontravam em ângulos abruptos a cada poucos metros, criando
nichos dentro de nichos, e dezenas de torreões brotavam do teto anguloso, não havendo dois iguais. Mil janelas eram visíveis somente a partir daquela direção, algumas
delas imensas, outras não maiores do que uma seteira.
Era impossível encontrar ali um projeto único, um plano ou estilo arquitetônico global. A mansão dos Harpells era uma colagem de idéias e experimentos independentes
em criação mágica. Mas havia realmente uma certa beleza em meio ao caos, uma sensação de liberdade que desafiava o termo "estrutura" e trazia consigo um sentimento
de boa acolhida.
Uma cerca em balaustrada circundava o outeiro, e os quatro amigos se aproximaram com curiosidade, se não com alvoroço. Não havia porteira, só uma abertura
e a estrada que seguia através dela. Sentado num banquinho do lado de dentro da cerca, fitando estupidamente o céu, encontrava-se um homem gordo, barbudo, vestindo
uma túnica carmesim.
O homem se sobressaltou ao notar a chegada do grupo.
- Quem são vocês e o que querem? - indagou bruscamente, furioso por terem interrompido sua meditação.
- Viajantes cansados - respondeu Régis - que aqui chegam em busca da sabedoria dos afamados Harpells.
O homem não pareceu impressionado.
- E daí? - encorajou ele.
Régis, impotente, virou-se para Drizzt e Bruenor, mas só lhes restava dar de ombros como resposta, sem compreender o que mais lhes era exigido. Bruenor começava
a se adiantar com seu pônei para reiterar suas intenções quando outro homem de túnica saiu desajeitadamente da mansão para se juntar ao primeiro.
Ele trocou algumas palavras em voz baixa com o mago gordo, depois se voltou para a estrada.
- Saudações - ofereceu ele aos companheiros. - Perdoem o pobre Regweld aqui - ele deu uma palmadinha no ombro do mago gordo -, pois ele anda tendo
um tremendo azar com algumas experiências. Bem, não que as coisas não acabem dando certo... Podem apenas levar algum tempo.
- Regweld é realmente um mago excepcional - continuou, batendo-lhe no ombro mais uma vez. - E suas idéias sobre cruzar um cavalo com uma rã têm lá
o seu mérito; é só não se incomodar com a explosão! Os laboratórios de alquimia são substituíveis!
Os amigos, no alto de suas montarias, reprimiram o assombro diante do discurso desconexo.
- Ora, pensem nas vantagens ao se atravessar os rios! - gritou o homem de túnica. - Mas já chega dessa história. Eu sou Harkle. Em que posso ser útil?
- Harkle Harpell? - Régis perguntou, com uma risadinha.
O homem fez uma reverência.
- Bruenor do Vale do Vento Gélido, esse sou eu - proclamou Bruenor ao recuperar a voz. - Meus amigos e eu andamos centenas de quilômetros em busca dos conselhos
dos magos de Sela Longa...
Ele notou que Harkle, distraído pela presença do drow, já não lhe dava atenção. Drizzt deixara o capuz escorregar para trás de propósito, para julgar a reação
dos supostamente cultos homens de Sela Longa. O Longinete na estrada ficara surpreso, mas não furioso, e Drizzt precisava descobrir se a vila em geral seria mais
tolerante à sua raça.
- Fantástico - murmurou Harkle. - Simplesmente inacreditável! - Regweld também notara o elfo negro e parecia interessado pela primeira vez desde que o grupo
chegara.
- Teremos permissão para entrar? - perguntou Drizzt.
- Ah, sim, por favor, entrem - respondeu Harkle, tentando sem sucesso disfarçar sua agitação pelo bem da etiqueta.
Adiantando-se com seu cavalo, Wulfgar colocou-os em movimento estrada acima.
- Por aí, não - disse Harkle. - Não pela estrada; é claro, não é real mente uma estrada. Quer dizer, é, mas você não vai conseguir passar.
Wulfgar deteve sua montaria.
- Chega de tolices, mago! - exigiu ele, irritado, pois os anos de desconfiança em relação aos praticantes das artes mágicas transbordavam em meio à
sua frustração. - Podemos entrar ou não?
- Ninguém está com tolices, eu lhe asseguro - disse Harkle, esperando manter o encontro em termos amigáveis.
Mas Regweld interveio.
- É um daqueles - disse acusadoramente o mago gordo, levantando-se de seu banquinho.
Wulfgar fitou-o, curioso.
- Um bárbaro - explicou Regweld. - Um guerreiro treinado para odiar aquilo que não consegue compreender. Vá em frente, guerreiro. Tire esse martelão
aí das suas costas.
Wulfgar hesitou, dando-se conta da própria fúria irracional, e olhou para os amigos em busca de apoio. Ele não queria estragar os planos de Bruenor em nome
da própria estreiteza de espírito.
- Vá em frente - insistiu Regweld, colocando-se no centro da estrada.
- Pegue o seu martelo e o atire em mim. Satisfaça seu desejo sincero de des- mascarar a tolice de um mago! E aproveite para abater um deles! Isso é que
eu chamo de bom negócio! - Ele apontou o próprio queixo. - Bem aqui - admoestou ele.
- Regweld - suspirou Harkle, balançando a cabeça. - Por favor, faça- lhe a vontade, guerreiro. Faça aquele rosto abatido sorrir.
Wulfgar olhou mais uma vez para seus amigos, mas novamente eles não tinham as respostas. Regweld resolveu por ele:
- Filho bastardo de um caribu.
Garra de Palas já girava pelo ar antes que o homem gordo tivesse terminado o insulto, rumando direto para o alvo. Regweld não se esquivou e, pouco antes de
passar por cima da cerca, o martelo se chocou contra algo invisível, mas tão palpável quanto a rocha. Ressoando como um gongo cerimonial, o muro transparente estremeceu
e ondas percorreram toda a sua extensão, visíveis aos espectadores estarrecidos como meras distorções das imagens por trás do muro. Os amigos perceberam pela primeira
vez que a cerca não era real, e sim uma pintura sobre a superfície do muro transparente.
Garra de Palas caiu por terra, como se todo o seu poder tivesse se exaurido, e levou um bom tempo para reaparecer nas mãos de Wulfgar.
A gargalhada de Regweld foi mais de vitória que de graça, mas Harkle meneou a cabeça.
- Sempre às custas dos outros - ralhou. - Você não tinha o direito de fazer isso.
- Ele precisava de uma lição - retorquiu Regweld. - A humildade é sempre um bem valioso para um guerreiro.
Régis agüentou enquanto pôde. Sabia o tempo todo sobre o muro invisível e desatou a rir naquele instante. Drizzt e Bruenor não resistiram e acompanharam o
halfling, e até mesmo Wulfgar, recuperado do choque, sorriu de sua própria "tolice".
Obviamente, Harkle não teve escolha a não ser parar de repreender Regweld e se juntar a eles.
- Entrem - ele implorou aos amigos. - O terceiro mourão é real; ali encontrarão a porteira. Mas, primeiro, desmontem e tirem as selas de seus cavalos.
As suspeitas de Wulfgar retornaram repentinamente, e uma carranca sufocou-lhe o sorriso.
- Explique-se - ele exigiu de Harkle.
- Faça o que ele manda! - ordenou Régis. - Ou terá uma surpresa ainda maior que a última.
Drizzt e Bruenor já haviam escorregado de suas selas, intrigados, mas nem um pouco temerosos em relação ao hospitaleiro Harkle Harpell. Wulfgar ergueu os
braços, impotente, e fez o mesmo, tirou os arreios do ruão e conduziu o animal, junto com o pônei de Régis, atrás dos demais.
Régis encontrou a entrada facilmente e a abriu para os amigos. Entraram sem medo, mas foram subitamente assaltados por lampejos ofuscantes de luz.
Quando seus olhos voltaram a ver, eles descobriram que seus cavalos e pôneis haviam sido reduzidos ao tamanho de gatos!
- O quê? - deixou escapar Bruenor, mas Régis estava rindo novamente e Harkle agia como se nada de incomum tivesse acontecido.
- Peguem-nos e venham comigo - ele instruiu. - Está quase na hora da ceia e a comida d'0 Varapau de Pileque está particularmente deliciosa hoje à noite!
Ele os fez contornar o lado da estranha mansão até uma ponte que cruzava o centro do outeiro. Bruenor e Wulfgar se sentiam ridículos carregando suas montarias,
mas Drizzt aceitava o fato com um sorriso e Régis desfrutava completamente do espetáculo ultrajante; tendo aprendido em sua primeira visita que Sela Longa não era
um lugar para se levar a sério, ele apreciava as idiossincrasias e os hábitos singulares dos Harpells simplesmente em nome da diversão.
Régis sabia que a ponte em arco diante deles serviria como mais um exemplo. Embora o vão sobre o riacho não fosse grande, aparentemente nada sustentava a
ponte e suas pranchas estreitas não tinham adornos, a ponto de não apresentar corrimãos.
Mais um Harpell de túnica, este incrivelmente velho, estava sentado num banquinho, o queixo numa das mãos, resmungando consigo mesmo e aparentemente ignorando
por completo os forasteiros.
Quando Wulfgar, à frente do grupo e ao lado de Harkle, aproximou-se da margem do riacho, deu um salto para trás e pôs-se a ofegar e a gaguejar. Régis deu
uma risadinha, sabendo o que o homenzarrão tinha visto, e Drizzt e Bruenor logo compreenderam.
O riacho SUBIA a encosta da colina, depois desaparecia logo antes do cume, mas os companheiros ouviam a água passando veloz diante deles. Então o riacho reaparecia
sobre o cimo da colina e escorria pela outra encosta.
O velho pôs-se de pé com um salto repentino e correu em direção a Wulfgar.
- Qual o significado disto? - gritava, desesperado. - Como pode ser? - Esmurrou o imenso peito do bárbaro de pura frustração.
Wulfgar procurou uma escapatória, não desejando nem mesmo agarrar o velho para contê-lo, com medo de partir sua forma frágil. Tão abruptamente quanto viera,
o velho correu de volta ao banquinho e reassumiu sua atitude silenciosa.
- Coitado do Chardin - disse Harkle, melancólico. - Foi poderoso em sua época. Foi ele quem mudou o curso do rio. Mas já faz quase vinte anos que
ele está obcecado em descobrir o segredo da invisibilidade sob a ponte.
- E no que o riacho é diferente do muro? - especulou Drizzt. - Sem dúvida, esse encantamento não é desconhecido na comunidade de magos.
- Ah, mas existe uma diferença - foi a resposta rápida de Harkle, empolgado ao descobrir alguém de fora da Mansão de Hera aparentemente interessado
em suas obras. - Um objeto invisível não é tão raro, mas um campo de invisibilidade... - Com um gesto largo da mão, apontou o riacho. - Tudo o que entra no rio naquele
ponto assume a propriedade - ele explicou. - Mas apenas enquanto permanecer no campo. E, para uma pessoa na área encantada - sei disso porque eu mesmo fiz o teste
-, tudo além do campo fica invisível, apesar de a água e os peixes parecerem normais. Isso desafia nosso conhecimento das propriedades da invisibilidade e pode,
na verdade, refletir um rasgão na urdidura de um plano inteiro da existência, ainda desconhecido!
Ele viu que sua agitação excedera a compreensão ou o interesse dos companheiros do drow havia algum tempo, por isso ele se acalmou e educadamente mudou de
assunto.
- O alojamento para seus cavalos fica naquele edifício - disse ele, apontando uma das estruturas baixas de madeira. - A sob-ponte os levará até lá.
Devo cuidar de um outro assunto no momento. Talvez possamos nos encontrar mais tarde na taverna.
Wulfgar, sem entender completamente as indicações de Harkle, pisou de leve na primeira prancha de madeira da ponte e foi prontamente atirado para trás por
alguma força invisível.
- Eu disse a sob-ponte - gritou Harkle, apontando o lado de baixo da ponte. - Vocês não podem atravessar o rio deste lado pela sobreponte; ela é usada
para voltar! E para não haver discussões - ele explicou.
Wulfgar tinha suas dúvidas sobre uma ponte que não enxergava, mas não quis parecer covarde diante dos amigos e do mago. Colocou-se ao lado do arco ascendente
da ponte e cautelosamente esticou o pé em direção à parte de baixo da estrutura de madeira, tateando em busca da travessia invisível. Havia apenas ar e a corrente
imperceptível de água logo abaixo de seu pé, e ele hesitou.
- Vamos - estimulou Harkle.
Wulfgar mergulhou de cabeça, preparando-se para cair na água. Mas, para sua absoluta surpresa, ele não caiu para baixo. Ele caiu para cima!
- Aaah! - gritou o bárbaro, ao bater com a cabeça no fundo da ponte.
Ficou estendido ali durante um bom tempo, incapaz de se orientar, de costas sobre o fundo da ponte, olhando para baixo em vez de para cima.
- Viu! - foi o grito agudo do mago. - A sob-ponte!
Drizzt foi o seguinte, saltou para a área encantada com uma cambalhota fácil e pousou suavemente ao lado de seu amigo.
- Você está bem? - perguntou.
- A estrada, meu amigo - gemeu Wulfgar. - Tenho saudades da estrada e dos orcs. É mais seguro.
Drizzt o ajudou a se manter de pé, pois a mente do bárbaro protestou o caminho todo contra ficar de cabeça para baixo sob a ponte, com um riacho invisível
correndo sobre sua cabeça.
Bruenor também tinha lá suas reservas, mas uma provocação do halfling o fez seguir em frente e logo os companheiros pisavam a relva do mundo natural na outra
margem do riacho. Dois edifícios se erguiam adiante e eles se dirigiram para o menor deles, aquele que Harkle indicara.
Uma mulher de túnica azul os recebeu à porta.
- Quatro? - ela perguntou retoricamente. - Vocês deveriam ter mandado avisar.
- Harkle nos enviou - Régis explicou. - Não somos destas bandas. Desculpe-nos por ignorarmos os seus costumes.
- Muito bem, então - bufou a mulher. - Vamos entrando. Estamos, na verdade, excepcionalmente tranqüilos para esta época do ano. Estou certa de que
tenho espaço para seus cavalos. - Ela os conduziu ao interior da sala principal da estrutura, uma câmara quadrangular. Todas as paredes estavam recobertas, do chão
ao teto, por pequenas gaiolas, grandes o suficiente para um cavalo do tamanho de um gato esticar as pernas. Muitas estavam ocupadas, as placas de identificação indicavam
estarem reservadas para determinados membros do clã Harpell, mas a mulher encontrou quatro completamente vazias e dentro delas colocou os cavalos dos companheiros.
- Podem pegá-los quando quiserem - ela explicou, entregando a cada um deles uma chave para a gaiola de sua respectiva montaria. Ela se deteve quando
chegou a Drizzt, estudando-lhe os traços formosos. - O que temos aqui? - ela perguntou, sem perder o tom de voz calmo e monótono. - Não me informaram da sua chegada,
mas tenho certeza de que muitos desejarão uma audiência com você antes de partirem! Nunca vimos alguém da sua espécie.
Drizzt meneou a cabeça e não respondeu, sentindo-se cada vez mais desconfortável com esse novo tipo de atenção. De algum modo, aquilo parecia aviltá-lo ainda
mais que as ameaças dos camponeses ignorantes. Contudo, ele compreendia aquela curiosidade e imaginou que devia aos magos pelo menos algumas horas de conversa.
O Varapau de Pileque, nos fundos da Mansão de Hera, preenchia uma câmara circular. O bar ficava no meio, como o eixo de uma roda, e dentro de seu amplo
perímetro ficava outro cômodo, uma cozinha anexa. Um homem peludo, calvo e de braços descomunais esfregava incessantemente a superfície lustrosa do bar com um pano,
mais para passar o tempo que para limpar bebida derramada.
Mais ao fundo, num palco elevado, instrumentos musicais tocavam-se sozinhos, guiados pelas revoluções bruscas de um mago de cabelos brancos que portava uma
varinha e vestia calças pretas e um colete negro. Sempre que os instrumentos atingiam um crescendo, o mago apontava sua varinha e estalava os dedos da mão livre,
e uma explosão de centelhas coloridas irrompia de cada um dos quatro cantos do palco.
Os companheiros tomaram uma mesa à vista do mago que se apresentava. Tiveram liberdade para escolher o local, pois aparentemente eram os únicos fregueses
no recinto. As mesas também eram circulares, feitas de boa madeira, e ostentavam como peça central uma jóia imensa, verde e multifacetada sobre um pedestal de prata.
- Nunca tinha ouvido falar de um lugar mais esquisito - resmungou Bruenor, constrangido desde a sob-ponte, mas resignado diante da necessidade de falar
com os Harpells.
- Nem eu - disse o bárbaro. -Tomara que partamos em breve.
- Vocês dois estão presos nas câmaras estreitas de suas mentes - ralhou Régis. - É um lugar para se apreciar, e vocês sabem que aqui nenhum perigo
nos espreita. - Ele piscou quando seu olhar recaiu sobre Wulfgar. - Nada sério, de qualquer maneira.
- Sela Longa nos oferece um descanso há muito necessário - acrescentou Drizzt. - Aqui, podemos traçar o curso de nossa próxima jornada em segurança
e voltar à estrada revigorados. Foram duas semanas desde o vale até Luskan, e quase mais uma até aqui, sem descanso. A fadiga esgota a força e tira a vantagem de
um guerreiro habilidoso. - Ele olhou particularmente para Wulfgar ao completar o raciocínio. - Um homem cansado comete erros. E os erros cometidos nos ermos são,
geralmente, fatais.
- Então, vamos relaxar e desfrutar da hospitalidade dos Harpells - disse Régis.
- Concordo - disse Bruenor, olhando ao redor -, mas que seja breve esse descanso. E onde, nos nove infernos, se meteu a criada? Ou será que a gente
tem que se servir sozinho prá conseguir comida e bebida?
- Se quiser algo, basta pedir - veio uma voz do centro da mesa. Tanto Wulfgar quanto Bruenor se levantaram imediatamente, em guarda. Drizzt notou o
fulgor de luz no interior da pedra verde e estudou o objeto, adivinhando imediatamente a função do enfeite. Olhou por sobre o ombro, para o taverneiro, que tinha
ao seu lado uma jóia semelhante.
- Um dispositivo de cristalomancia - explicou o drow aos amigos, hora eles, àquela altura, tivessem chegado à mesma conclusão e se sentissem muito idiotas
ali de pé, no meio de uma taverna vazia, com as armas nas mãos.
Régis mantinha a cabeça abaixada, os ombros a estremecer com os soluços provocados pelo riso.
- Ora! 'Cê sabia o tempo todo! - Bruenor grunhiu para ele. - 'Cê 'tá se divertindo demais às nossas custas, Ronca-bucho - o anão avisou. - Por mim já 'tô
começando a me perguntar quanto tempo mais nossa estrada ainda vai ter lugar prá você.
Régis ergueu a cabeça diante do olhar feroz de seu amigo anão, igualando-o subitamente com uma firmeza toda própria nos olhos.
- Caminhamos e cavalgamos quase seiscentos e cinqüenta quilômetros juntos! - ele retorquiu. - Enfrentamos ventos frios e ataques de orcs, brigas e
batalhas com espíritos. Permita-me um pouco de diversão, meu bom anão. Se você e Wulfgar tirassem esse peso das costas e enxergassem o verdadeiro encanto do lugar,
também estariam dando risada!
Wulfgar, de fato, sorriu. Então, de repente, atirou a cabeça para trás e urrou, livrando-se de toda a sua raiva e de todo o seu preconceito, para que pudesse
aceitar o conselho do halfling e encarar Sela Longa com mente aberta. Até mesmo o mago-músico parou de tocar para observar o espetáculo proporcionado pelo grito
catártico do bárbaro.
E, ao terminar, Wulfgar riu. Não uma risadinha divertida, mas uma gargalhada estrondosa que brotou de seu ventre e explodiu em sua boca escancarada.
- Cerveja! - disse Bruenor à jóia. Quase imediatamente, um disco flutuante de luz azul passou por cima do bar, levando até eles cerveja forte em quantidade
suficiente para durar a noite toda. Alguns minutos depois, todos os vestígios das tensões da estrada haviam se desfeito e eles brindavam e sorviam a bebida de suas
canecas com entusiasmo.
Apenas Drizzt se manteve reservado, bebericando a cerveja e permanecendo alerta. Não pressentia o perigo ali, mas desejava manter o controle diante das inevitáveis
perguntas dos magos.
Daí a pouco, os Harpells e seus amigos começaram a entrar em profusão n'O Varapau de Pileque. Os companheiros eram os únicos recém-chegados naquela noite
e todos os comensais trouxeram suas mesas para perto, partilhando histórias de viagem e brindes de amizade eterna durante o excelente jantar e, mais tarde, ao lado
de uma cálida lareira. Muitos, liderados por Harkle, ocuparam-se de Drizzt e do interesse que nutriam pelas cidades escuras dos drow, e o elfo negro não se importou
muito em responder-lhes as Perguntas.
Então vieram as indagações sobre a jornada que trouxera os companheiros tão longe. Bruenor, na verdade, foi quem as incitou, saltando sobre a mesa e proclamando:
- Salão de Mitral, lar dos meus ancestrais, você vai ser meu novamente!
Drizzt ficou preocupado. A se julgar pela reação curiosa da assembléia, o nome da antiga terra natal de Bruenor era conhecido ali, ao menos nas lendas. O
drow não temia ações malévolas por parte dos Harpells, mas simplesmente não queria o propósito da aventura acompanhando, ou até mesmo precedendo, a ele e a seus
amigos na etapa seguinte da jornada. Outras pessoas poderiam muito bem ter algum interesse em descobrir a localização de uma antiga fortaleza dos anões, um lugar
a que as lendas faziam referência como "as minas cortadas por rios de prata".
Drizzt chamou Harkle de lado.
- Já se faz tarde. Há quartos disponíveis na aldeia?
- Bobagem - irritou-se Harkle. - Vocês são meus convidados e permanecerão aqui. Os quartos já foram preparados.
- E o preço por tudo isto?
Harkle afastou a bolsa de Drizzt.
- O preço na Mansão de Hera é uma ou duas boas histórias e trazer um pouco de entretenimento à nossa existência. Você e seus amigos já pagaram por
um ano ou mais!
- Nossos agradecimentos - replicou Drizzt. - Acho que é hora de meus companheiros descansarem. Temos uma longa jornada à nossa frente, e muito mais.
- Quanto à estrada adiante - disse Harkle -, arranjei uma reunião com DelRoy, o mais velho dos Harpells atualmente em Sela Longa. Ele, mais que qualquer
um de nós, pode ser capaz de ajudar a apontar o caminho.
- Ótimo - disse Régis, inclinando-se para ouvir a conversa.
- Essa reunião tem um pequeno preço - disse Harkle a Drizzt. - DelRoy deseja uma audiência privada com você. Há muitos anos ele estuda os drow, mas
pouca coisa chega até nós.
- Concordo - replicou Drizzt. - Agora, já é hora de irmos para a cama.
- Vou lhes mostrar o caminho.
- A que horas encontraremos DelRoy? - perguntou Régis.
- De manhã - respondeu Harkle.
Régis riu, depois se inclinou para o outro lado da mesa onde Bruenor se achava sentado com uma caneca imóvel em suas mãos nodosas, sem piscar os olhos. Régis
deu ao anão um empurrãozinho e Bruenor tombou, caindo no chão com um baque surdo e sem emitir um gemido sequer de protesto.
À noitinha seria melhor - observou o halfling, apontando para uma outra mesa do outro lado da sala.
Sob a qual se achava Wulfgar.
Harkle olhou para Drizzt.
- À noitinha - ele concordou. - Vou falar com DelRoy.
Os quatro amigos passaram o dia seguinte se recuperando e desfrutando das maravilhas sem fim da Mansão de Hera. Drizzt foi chamado logo cedo para uma reunião
com DelRoy, enquanto os demais eram guiados por Harkle numa excursão pela casa principal, passando por dúzias de laboratórios de alquimia, salas de cristalomancia,
câmaras de meditação e várias salas protegidas especificamente projetadas para a conjuração de seres de outros mundos. Uma estátua de um tal Matherly Harpell se
mostrou particularmente interessante, já que a estátua era, na verdade, o próprio mago. Um coquetel malsucedido de poções deixara-o petrificado, literalmente.
E havia Pau-mandado, o cão da família, que outrora fora o primo em segundo grau de Harkle: mais uma vez, um coquetel ruim.
Harkle não guardou segredos de seus convidados, recontou a história de seu clã, suas realizações e seus fracassos, em geral desastrosos. E ele falou sobre
as terras ao redor de Sela Longa, dos bárbaros uthgardt que os companheiros haviam encontrado, os Pôneis Celestes, e as outras tribos que poderiam ainda encontrar
ao longo do caminho.
Bruenor ficou feliz pelo fato de aquela parada para descanso trazer também informações valiosas. Seu objetivo de encontrar o Salão de Mitral o angustiava
a todo momento, todos os dias, e sempre que passava algum tempo sem fazer progressos, mesmo que simplesmente precisasse repousar, ele sentia a agonia da culpa.
- 'Cê tem que querer com todo o coração - ele se repreendia com freqüência.
Mas Harkle lhe fornecera dicas importantes sobre aquelas terras, o que, sem dúvida, ajudaria em sua causa no futuro, e ele estava satisfeito quando se sentou
para a ceia n'O Varapau de Pileque. Drizzt se juntou a eles, taciturno e silencioso, e recusou-se a falar quando questionado sobre sua discussão com DelRoy.
- Pense na reunião ainda por vir - foi a resposta do drow às perguntas de Bruenor. - DelRoy é muito velho e sábio. Talvez ele seja nossa melhor esperança
de algum dia encontrarmos a estrada para o Salão de Mitral.
Bruenor estava de fato pensando na reunião por vir.
E Drizzt permaneceu em silêncio durante o resto da refeição, considerando as histórias e as imagens de sua terra natal que ele dividira com DelRoy, recordando
a beleza única de Menzoberranzan.
E os corações malévolos que a haviam espoliado.
Pouco depois, Harkle levou Drizzt, Bruenor e Wulfgar para ver o velho mago. Régis pediu para não participar da reunião, dando preferência a uma outra festa
na taverna. Eles encontraram DelRoy numa câmara pequena, sombria, à luz de tochas, e os bruxuleios de luz aumentavam o ar de mistério no rosto envelhecido do mago.
Bruenor e Wulfgar concordaram imediatamente com as observações de Drizzt sobre DelRoy, pois décadas de experiência e incontáveis aventuras estavam visivelmente gravadas
nos traços de sua pele curtida e morena. Seu corpo agora lhe faltava, era visível, mas o brilho de seus olhos pálidos revelava uma vida interior e deixava pouca
dúvida quanto à lucidez de sua mente.
Bruenor abriu seu mapa sobre a mesa circular da sala, ao lado dos livros e rolos de pergaminho que DelRoy trouxera. O velho mago o estudou cuidadosamente
durante alguns segundos, traçando a linha que trouxera os companheiros até Sela Longa.
- Do que você se lembra sobre os antigos salões, anão? - ele perguntou.
- Marcos na paisagem ou povos vizinhos?
Bruenor chacoalhou a cabeça.
- As imagens na minha cabeça mostram os salões profundos e as oficinas, o som do ferro sobre a bigorna. A debandada do meu clã começou nas montanhas;
isso é tudo o que sei.
- O norte é um território vasto - comentou Harkle. - Muitas cordilheiras extensas poderiam abrigar uma fortaleza assim.
- E por isso que o Salão de Mitral, apesar de toda a sua suposta riqueza, nunca foi encontrado - replicou DelRoy.
- Daí o nosso dilema - disse Drizzt. - Decidir onde começar a procurar!
- Ah, mas vocês já começaram - respondeu DelRoy. - Foi uma sábia decisão vir para o interior; a maioria das lendas sobre o Salão de Mitral se origina
nas terras a leste daqui, ainda mais distantes da costa. Parece provável que seu objetivo esteja entre Sela Longa e o grande deserto; norte ou sul, não sei dizer.
Fizeram bem.
Drizzt assentiu e cortou a conversa quando o velho mago voltou a examinar silenciosamente o mapa de Bruenor, marcando os pontos estratégicos e consultando
com freqüência o monte de livros que havia empilhado ao lado da mesa. Bruenor rondava DelRoy, ansioso por qualquer conselho ou revelação. Os anões eram um povo paciente,
uma característica que permitia que sua arte eclipsasse as obras de outras raças, e Bruenor manteve a calma o melhor que pôde, sem querer pressionar o mago.
Algum tempo depois, satisfeito por ter completado a organização de todas as informações pertinentes, DelRoy falou mais uma vez.
Aonde iriam a seguir - ele perguntou a Bruenor -, se aqui não conseguissem aconselhamento?
O anão voltou a olhar o mapa, com Drizzt a espiar por sobre seu ombro, e traçou uma linha em direção ao leste com o dedo hirsuto. Olhou para Drizzt em busca
de anuência ao alcançar um certo ponto que eles já haviam discutido anteriormente na estrada. O drow assentiu.
Cidadela Adbar - declarou Bruenor, batendo com o dedo sobre o mapa.
- A fortaleza dos anões - disse DelRoy, não muito surpreso. - Excelente escolha. Pode ser que o Rei Harbromm e seus anões venham a ser de grande ajuda.
Estão lá, nas Montanhas de Mitral, há incontáveis séculos.
Sem dúvida, Adbar era antiga mesmo nos dias em que os martelos do Salão de Mitral repicavam com as canções dos anões.
- A Cidadela Adbar é o que nos aconselha, então? - perguntou Drizzt.
- E sua própria escolha, mas não posso oferecer um destino melhor - respondeu DelRoy. - Mas o trajeto é longo, cinco semanas pelo menos, se tudo correr
bem. E na estrada oriental além de Sundabar, isso é improvável. Ainda assim, pode ser que vocês cheguem lá antes das primeiras geadas do inverno, mas eu duvido que
sejam capazes de conseguir as informações com Harbromm e retomar sua jornada antes da próxima primavera!
- Então a escolha parece clara - declarou Bruenor. - Para Adbar!
- Há mais coisas que você deve saber - disse DelRoy. - E este é o verdadeiro conselho que darei a você: não deixe que a visão promissora ao fim da
estrada ofusque as possibilidades ao longo da estrada. Seu curso até aqui seguiu trajetos diretos, primeiro do Vale do Vento Gélido até Luskan, depois de Luskan
até aqui. Há pouca coisa, a não ser monstros, ao longo de qualquer uma dessas duas estradas para dar a um viajante motivo para se desviar. Mas, na jornada para Adbar,
vocês passarão por Lua Argêntea, cidade de sabedoria e tradição, e da Senhora Alustriel e a Câmara dos Sábios, a melhor biblioteca de todo o norte. Muitos naquela
bela cidade podem ser de mais assistência à sua demanda do que eu, ou até mesmo que o Rei Harbromm.
- E, além de Lua Argêntea, vocês encontrarão Sundabar, também uma antiga fortaleza dos anões, onde governa Helm, afamado amigo dos anões. Os laços
dele com sua raça são fortes, Bruenor, de muitas gerações atrás. Laços, talvez, com sua própria gente.
- Possibilidades! - disse Harkle, exultante.
Consideraremos seu sábio conselho, DelRoy - disse Drizzt.
- É - concordou o anão, animado. - Quando a gente deixou o vale, eu não tinha idéia do que fazer depois de Luskan. Minhas esperanças eram seguir
uma estrada de palpites, já esperando que mais da metade não tivesse valor. O halfling foi sábio trazendo a gente prá este lugar, pois encontramos uma trilha de
pistas! E pistas levam a mais pistas! - Ele olhou ao redor, para o grupo entusiasmado - Drizzt, Harkle e DelRoy - e então notou Wulfgar, ainda sentado em silêncio
em sua cadeira, os braços descomunais cruzados sobre o peito, assistindo a tudo sem emoção aparente. - E você, garoto? - indagou Bruenor. - Tem alguma idéia?
Wulfgar se inclinou, repousando os cotovelos sobre a mesa.
- Não é minha a demanda nem a terra - ele explicou. - Acompanho você, confiante em qualquer senda que escolher.
- E alegro-me com seu júbilo e seu arrebatamento - ele acrescentou baixinho.
Bruenor tomou a explicação como completa e virou-se novamente para DelRoy e Harkle, desejando algumas informações específicas sobre a estrada adiante. Drizzt,
porém, sem se convencer da sinceridade da última declaração de Wulfgar, deixou seu olhar persistir sobre o jovem bárbaro, notando a expressão nos olhos dele enquanto
observava Bruenor.
Arrependimento?
Passaram mais dois dias sossegados na Mansão de Hera, apesar de Drizzt ser acossado constantemente pelos curiosos Harpells, que queriam mais informações sobre
sua raça tão raramente vista. Ele aceitou as perguntas com cortesia, compreendendo-lhes as boas intenções, e respondeu da melhor maneira que pôde. Quando Harkle
veio escoltá-los para sair na quinta manhã, estavam descansados e prontos para dar prosseguimento aos seus negócios. Harkle prometeu arranjar a devolução dos cavalos
aos donos de direito, dizendo que era o mínimo que poderia fazer pelos estrangeiros que haviam trazido tamanho entretenimento à vila.
Mas, na verdade, os amigos haviam se beneficiado muito mais com a estada. DelRoy e Harkle haviam dado a eles informações valiosas e, talvez o mais importante,
haviam lhes restaurado a esperança na missão. Bruenor estava de pé e ativo antes da aurora daquela última manhã, a adrenalina a correr nas veias com a idéia de voltar
à estrada agora que ele sabia aonde ir.
Deixaram a mansão, lançando muitas despedidas e olhares tristonhos por sobre os ombros - até mesmo Wulfgar, que chegara ali tão inflexível em sua antipatia
para com os magos.
Eles cruzaram a sobreponte, despediram-se de Chardin, perdido demais em suas meditações sobre o riacho para sequer notá-los, e logo descobriram que a estrutura
ao lado do estábulo em miniatura era uma fazenda experimental.
- Isto mudará a fisionomia do mundo! - Harkle assegurou-lhes, desviando-os um pouco na direção do edifício para olhar mais de perto. Drizzt adivinhou
o que o mago quis dizer mesmo antes de entrarem, tão logo ouviu os balidos agudos e os trinados cricrilantes. Como o estábulo, a fazenda compreendia uma sala, embora
parte dela não tivesse telhado e fosse, na verdade, um pasto entre quatro paredes. Vacas e ovelhas do tamanho de gatos ruminavam por ali, enquanto galinhas do tamanho
de camundongos escapavam por entre as minúsculas pernas dos animais.
- É claro que esta é a primeira temporada e não vimos ainda os resultados - explicou Harkle -, mas esperamos uma alta produção, considerando-se a pequena
quantidade de recursos envolvida.
- Eficiência - riu Régis. - Menos comida, menos espaço e você pode fazê-los voltar ao tamanho normal quando quiser comê-los!
- Exatamente - disse Harkle.
A seguir, foram ao estábulo, onde Harkle escolheu excelentes montarias para eles, dois cavalos e dois pôneis. Eram presentes, Harkle explicou, a serem devolvidos
apenas ao bel-prazer dos companheiros.
- É o mínimo que podemos fazer para ajudar em tão nobre missão - disse Harkle, com uma reverência, para evitar os protestos de Bruenor e Drizzt.
A estrada serpenteava, seguindo em frente pela encosta atrás da colina. Harkle parou por um instante, coçando o queixo, uma expressão perplexa no rosto.
- O sexto mourão - disse a si mesmo -, mas o da esquerda ou o da direita?
Um homem que trabalhava no alto de uma escada (mais uma divertida curiosidade: ver uma escada se alçar acima da balaustrada falsa da cerca e descansar em
pleno ar contra o topo do muro invisível) veio em seu auxílio.
- Esqueceu de novo? - ele riu de Harkle. Apontou um dos lados da balaustrada. - Sexto mourão à sua esquerda!
Harkle afastou seu constrangimento com um encolher de ombros e seguiu em frente.
Os companheiros observaram o trabalhador, curiosos, enquanto deixavam a colina, as montarias ainda enfiadas debaixo dos braços. Ele trazia um balde e alguns
trapos e esfregava várias manchas castanho-avermelhadas no muro invisível.
- Aves que voam baixo - explicou Harkle, a título de desculpas. - Mas, nada temam. Regweld está tentando resolver o problema neste exato momento.
- Agora, chegamos ao final do nosso encontro, embora muitos anos venham a se passar antes que vocês sejam esquecidos na Mansão de Hera! A estrada
leva diretamente à aldeia de Sela Longa. Vocês podem reabastecer seus suprimentos por lá: tudo já foi arranjado.
- Meus mais profundos cumprimentos a você e a sua gente - disse Bruenor, com uma reverência. - Por certo que Sela Longa foi uma parada alegre numa
estrada triste! - Os demais rapidamente concordaram.
- Adeus, então, Companheiros do Salão - suspirou Harkle. - Os Harpells esperam receber um pequeno sinal de gratidão quando vocês finalmente encontrarem
o Salão de Mitral e colocarem as antigas forjas para arder novamente!
- O tesouro de um rei! - assegurou-lhe Bruenor quando se puseram a caminho.
Estavam de volta à estrada, além das fronteiras de Sela Longa, antes do meio-dia, e as montarias trotavam fácil e com os alforjes cheios.
- Bem, o que 'cê prefere, elfo - Bruenor perguntou mais tarde naquele mesmo dia -, as espetadelas da lança de um soldado enfurecido ou o nariz bisbilhoteiro
de um mago curioso?
Drizzt riu defensivamente ao pensar na pergunta. Sela Longa tinha sido tão diferente de qualquer outro lugar em que já estivera e, ainda assim, tão igual.
Em todo caso, sua cor o destacava como uma singularidade e não era tanto a hostilidade do tratamento que geralmente recebia que o incomodava, mas os lembretes constrangedores
de que seria sempre diferente.
Somente Wulfgar, que cavalgava ao lado dele, ouviu o murmúrio que lhe serviu de resposta:
- A estrada.

8. NÃO EXISTE HONRA

Por que vocês se aproximam da cidade antes do amanhecer? - o Guardião da Noite do Portão Norte perguntou ao emissário da caravana mercante que havia parado
pouco antes da muralha de Luskan. Jierdan, em seu posto ao lado do Guardião da Noite, assistia a tudo com especial interesse, certo de que aquele grupo viera de
Dez-Burgos.
- Não abusaríamos das leis da cidade se nosso assunto não fosse urgente - respondeu o representante. - Não descansamos há dois dias. - Outro homem
emergiu de um agrupamento de carroças e trazia um corpo flácido sobre os ombros.
- Assassinado na estrada - explicou o representante. - E outro membro do grupo foi seqüestrado. Cattiebrie, filha do próprio Bruenor Martelo de Batalha.
- Uma donzela anã? - deixou escapar Jierdan, suspeitando outra coisa, mas disfarçando sua agitação com medo de que isso pudesse implicá-lo.
- Não, não é anã. Uma mulher - lamentou o representante. - A mais bela em todo o vale, talvez em todo o norte. O anão acolheu a órfã ainda criança
e reclamou-a como sua filha.
- Orcs? - perguntou o Guardião da Noite, mais preocupado com os possíveis perigos na estrada do que com a sorte de uma única mulher.
- Não foi obra dos orcs - respondeu o representante. - Dissimulação e astúcia tiraram Cattiebrie de nós e mataram o condutor. Sequer descobrimos o
ato hediondo até a manhã seguinte.
Jierdan não precisou de mais explicações nem mesmo de uma descrição mais completa de Cattiebrie para juntar as peças do quebra-cabeça. A ligação da moça a
Bruenor explicava o interesse de Entreri por ela. Jierdan olhou para o horizonte oriental e para os primeiros raios da aurora que se aproximava, ansioso por se desembaraçar
de seus deveres na muralha para que pudesse relatar suas descobertas a Dendibar. Aquela notícia deveria ajudar a aplacar a ira do mago variegado por ter o soldado
perdido o rastro do drow ainda nas docas.
- Ele não os encontrou? - sibilou Dendibar para Sidnéia.
- Nada encontrou a não ser uma trilha fria - respondeu a feiticeira mais jovem. - Se ainda estiverem nas docas, estão bem disfarçados.
Dendibar fez uma pausa para considerar o relatório de sua aprendiza. Algo estava errado naquele cenário. Quatro personagens tão distintivos não poderiam ter.
simplesmente desaparecido.
- Descobriu alguma coisa sobre o assassino então, ou sobre a companheira dele?
- Os vagabundos nos becos o temem. Até mesmo os rufiões o evitam respeitosamente.
- Então nosso amigo é conhecido no submundo - refletiu Dendibar.
- Um assassino de aluguel, eu diria - raciocinou Sidnéia. - Provavelmente do sul. Talvez de Águas Profundas, mas deveríamos ter ouvido mais sobre ele
se esse fosse o caso. Talvez mais ao sul ainda, das terras fora do nosso alcance.
- Interessante - replicou Dendibar, tentando formular alguma teoria para satisfazer a todas as variáveis. - E a moça?
Sidnéia deu de ombros:
- Não acredito que ela o acompanhe de boa vontade, apesar de não ter tentado se livrar dele. E, quando você o viu na visão de Morkai, ele viajava só.
- Ele a adquiriu - veio uma resposta inesperada desde a porta. Jierdan entrou na sala.
- O quê? Sem ser anunciado? - escarneceu Dendibar.
- Tenho novidades que não poderiam esperar - respondeu Jierdan audaciosamente.
- Eles deixaram a cidade? - sugeriu Sidnéia, dando voz às suas suspeitas para aumentar a fúria que adivinhava no rosto pálido do mago variegado. Sidnéia
compreendia perfeitamente bem os perigos e as dificuldades das docas e quase tinha pena de Jierdan por incorrer na ira do implacável Dendibar numa situação completamente
fora de seu controle. Mas Jierdan ainda era seu rival pelas graças do mago variegado, e ela não deixaria a compaixão atrapalhar suas ambições.
Não - retrucou Jierdan. - A novidade que trago não se refere ao grupo do drow - Ele voltou a fitar Dendibar. - Uma caravana chegou a Luskan hoje, em busca
da mulher.
- Quem é ela? - perguntou Dendibar, de repente muito interessado, já esquecendo sua raiva por causa da intromissão.
¦ - A filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha - replicou Jierdan. - - Cattiebrie! É claro! - sibilou Dendibar, familiarizado com as pessoas mais
importantes de Dez-Burgos. - Eu devia ter adivinhado! - Ele se voltou para Sidnéia. - Meu respeito pelo nosso misterioso cavaleiro cresce a cada dia. Encontre-o
e traga-o de volta!
Sidnéia assentiu, embora temesse que o pedido de Dendibar se mostrasse mais difícil de realizar do que acreditava o mago variegado, provavelmente uma tarefa
muito além até mesmo de suas habilidades.
Ela passou aquela noite, até as primeiras horas da manhã seguinte, vasculhando as vielas e os pontos de encontro da zona portuária. Mas, mesmo usando seus
contatos nas docas e todos os truques mágicos à sua disposição, não encontrou sinal de Entreri e Cattiebrie, nem ninguém disposto ou capaz de fornecer qualquer informação
que pudesse ajudá-la na busca.
Cansada e frustrada, ela voltou à Torre das Hostes no dia seguinte, passando pelo corredor que levava ao quarto de Dendibar, muito embora o mago lhe tivesse
ordenado que se apresentasse diretamente a ele assim que retornasse. Sidnéia não tinha a menor disposição para ouvir a arenga do mago variegado a respeito de seu
fracasso.
Ela entrou no pequeno quarto, próximo ao tronco principal da Torre das Hostes, na ala norte, abaixo dos aposentos do Mestre do Torreão Norte, e aferrolhou
as portas, selando-as com um encantamento contra intromissões indesejadas.
Ela mal caíra na cama quando a superfície de seu cobiçado espelho de cristalomancia começou a remoinhar e a brilhar.
- Maldito seja, Dendibar - ela resmungou, supondo que a perturbação era obra de seu mestre. Arrastando o corpo cansado até o espelho, fitou as profundezas
do vidro, sintonizou-se ao turbilhão para que a imagem clareasse. Não foi Dendibar quem ela encarou, para seu alívio, mas um mago de uma vila distante, um pretendente
que a impassível Sidnéia mantinha suspenso por um fio de esperança para que pudesse manipulá-lo sempre que precisasse.
- Saudações, bela Sidnéia - disse o mago. - Espero não ter perturbado seu sono, mas é que tenho novidades incríveis!
Normalmente, Sidnéia teria diplomaticamente escutado o mago, fingido interesse na história e educadamente se eximido do encontro. Mas agora, com o peso das
exigências prementes de Dendibar sobre seus ombros, ela não tinha paciência para distrações.
- Não é uma boa hora! - retrucou.
O mago, tão enlevado estava com as próprias novidades, pareceu não lhe notar o tom conclusivo.
- A coisa mais maravilhosa aconteceu em nossa vila - foi dizendo ele.
- Harkle! - Sidnéia gritou para interromper-lhe o ímpeto de tagarelice. O mago se deteve, desconcertado.
- Mas, Sidnéia... - disse ele.
- Uma outra hora - ela insistiu.
- Mas com que freqüência, nos dias de hoje, alguém consegue realmente ver um elfo drow e falar com ele? - persistiu Harkle.
- Não posso... - Sidnéia interrompeu o que ia dizer, assimilando as últimas palavras de Harkle. - Um elfo drow? - ela balbuciou.
- Sim - foi a resposta exultante do orgulhoso Harkle, emocionado por terem as novidades aparentemente impressionado sua amada Sidnéia. - Drizzt Do'Urden
é o nome dele. Deixou Sela Longa há dois dias somente. Eu teria contado antes, mas a mansão andou simplesmente num alvoroço com essa coisa toda.
- Conte-me mais, meu querido Harkle - disse Sidnéia sedutoramente. - Conte-me tudo.
- Preciso de informações.
Sussurro ficou imóvel ao som da voz inesperada, adivinhando imediatamente de quem se tratava. Sabia que ele estava na cidade e sabia também que ele era o
único capaz de atravessar sorrateiramente suas defesas e entrar nos seus aposentos secretos.
- Informações - Entreri disse novamente, deixando as sombras atrás de um biombo.
Sussurro enfiou o pote de ungüento cicatrizante no bolso e fez uma avaliação do homem. Os boatos falavam dele como o mais mortífero dos assassinos e ela,
bastante familiarizada com essa gente, soube imediatamente que os boatos eram verdadeiros. Sentiu o poder de Entreri e a coordenação desembaraçada de seus movimentos.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - avisou ela, com valentia.
Entreri se moveu para um ponto de observação mais vantajoso a fim de estudar a audaciosa mulher. Ele também ouvira falar dela, uma sobrevivente das ruas violentas,
bela e mortal. Mas, aparentemente, Sussurro perdera um embate. O nariz estava quebrado e desarticulado, esborrachado em sua face.
Sussurro compreendeu o escrutínio. Aprumou os ombros e atirou orgulhosamente a cabeça para trás.
- Um acidente infeliz - ela sibilou.
- Não é da minha conta - Entreri devolveu. - Vim aqui atrás de informações.
Sussurro deu-lhe as costas para se ocupar de sua rotina, tentando não parecer incomodada.
- Meu preço é alto - ela disse com toda serenidade.
Voltou-se para Entreri e o intenso, porém assustador aspecto de calma no rosto dele lhe revelou, sem sombra de dúvida, que sua vida seria a única recompensa
por sua cooperação.
- Procuro quatro companheiros - disse Entreri. - Um anão, um drow, um rapaz e um halfling.
Sussurro não estava acostumada àquele tipo de situação. As bestas não estavam ali para apoiá-la, nenhum guarda-costas esperava pelo sinal dela atrás de uma
porta secreta nas proximidades. Tentou manter a calma, mas Entreri conhecia a profundidade de seu medo. Ela riu de leve e apontou o nariz quebrado.
- Encontrei o seu anão e o drow, Artemis Entreri. - Enfatizou o nome ao pronunciá-lo, esperando que o reconhecimento recolocasse o assassino na defensiva.
- Onde eles estão? - perguntou Entreri, ainda no controle. - E o que lhe pediram?
Sussurro deu de ombros:
- Se ainda estão em Luskan, não sei onde. É mais provável que já tenham partido; o anão tem um mapa das terras do norte.
Entreri considerou as palavras.
- Você não faz jus à sua reputação - disse ele sarcasticamente. - Aceita tamanha injúria e deixa que eles escapem por entre seus dedos?
Os olhos de Sussurro se estreitaram de fúria.
- Escolho cuidadosamente quando lutar - ela sibilou. - Os quatro eram perigosos demais para se tentar uma vingança frívola. Deixe-os ir aonde bem entenderem.
Não quero ter negócios com eles novamente.
A aparência calma de Entreri fraquejou um pouco. Ele já estivera no Alfanje e ouvira falar das façanhas de Wulfgar. E agora isto. Uma mulher como Sussurro
não era facilmente intimidada. Talvez ele devesse realmente reavaliar a força de seus oponentes.
- É destemido o anão - ofereceu Sussurro, percebendo-lhe o desalento e adorando aumentar-lhe o desconforto. - E cuidado com o drow, Artemis Entreri
- ela sibilou incisivamente, tentando, com a severidade de seu tom de voz, relegá-lo a um nível semelhante de respeito pelos companheiros. - Ele caminha por entre
as sombras invisíveis e ataca a partir das trevas. Ele conjura um demônio na forma de um grande gato e...
Entreri se virou e partiu, sem intenção de permitir que Sussurro ganhasse um pouco mais de vantagem.
Deleitando-se com sua vitória, Sussurro não conseguiu resistir à tentação de atirar um último dardo.
- Os homens não entram em meu quarto sem serem convidados - disse ela novamente, readquirindo, com a ameaça, um certo grau de orgulho.
Ela se voltou novamente para a pequena penteadeira e pegou o pote de ungüento, bastante contente consigo mesma. Examinou o ferimento no espelho da penteadeira.
Não estava tão ruim. A pomada o removeria como havia removido tantas cicatrizes, ossos do ofício.
Compreendeu sua estupidez ao ver a sombra deslizar por trás do próprio reflexo no espelho e sentir o ar lhe roçar as costas. Seu ramo de atividade não tolerava
erros e não oferecia uma segunda chance. Pela primeira e última vez na vida, Sussurro deixara o orgulho se elevar acima do discernimento.
Um último gemido lhe escapou dos lábios quando o punhal ajaezado se enterrou em suas costas.
- Eu também escolho com cuidado quando lutar - Entreri sussurrou- lhe ao pé do ouvido.
A manhã seguinte encontrou Entreri às portas de um lugar no qual ele não queria entrar: a Torre das Hostes Arcanas. Sabia que estava ficando sem opções. Convencido
agora de que os companheiros há muito haviam deixado Luskan, o assassino precisava de alguma ajuda mágica para reencontrar a trilha. Levara quase dois anos para
localizar o halfling em Dez-Burgos e sua paciência estava no fim.
Com Cattiebrie ao seu lado, relutante, mas obediente, ele se aproximou da estrutura e foi prontamente escoltado até a sala de audiências de Dendibar, onde
o mago variegado e Sidnéia aguardavam para saudá-lo.
- Eles deixaram a cidade - Entreri disse bruscamente, antes de qual quer troca de cumprimentos.
Dendibar sorriu para mostrar a Entreri que tinha a vantagem dessa vez.
- Pelo menos há uma semana - replicou tranqüilamente.
- E você sabe onde estão - raciocinou Entreri.
Dendibar assentiu e o sorriso ainda se enroscava em suas faces descarnadas.
O assassino não apreciava aquele jogo. Passou um bom tempo avaliando sua contraparte, em busca de alguma dica sobre as intenções do mago. Dendibar fez o mesmo,
ainda muito interessado numa aliança com o formidável matador, mas apenas se os termos lhe fossem favoráveis.
- O preço da informação? - perguntou Entreri.
- Eu nem mesmo sei o seu nome - foi a resposta de Dendibar.
É justo, pensou o assassino. Ele fez uma reverência.
- Artemis Entreri - disse ele, confiante o bastante para dizer a verdade.
- E por que você persegue os companheiros, com a filha do anão a tiracolo? - pressionou Dendibar, revelando suas cartas para dar ao assassino petulante
algo com que se preocupar.
- Isso é da minha conta - sibilou Entreri, e o estreitamento de seus olhos foi a única indicação de que o conhecimento de Dendibar o perturbara.
- Também o é da minha, se é que vamos ser aliados! - gritou Dendibar, levantando-se para parecer alto e ameaçador e intimidar Entreri.
O assassino, porém, pouco se importava com os contínuos esgares do mago, demasiado ocupado em estimar o valor de tal aliança.
- Nada pergunto sobre seus assuntos com eles - Entreri replicou, por fim. - Diga-me apenas a qual dos quatro se refere.
Foi a vez de Dendibar refletir. Ele queria Entreri em sua corte, se não por outra razão que o temor de que o assassino viesse a atrapalhá-lo. E gostava da
idéia de não precisar revelar nada sobre o artefato que procurava àquele homem tão perigoso.
- O drow tem algo que me pertence ou sabe onde posso encontrá-lo - disse ele. - Eu o quero de volta.
- E o halfling é meu - exigiu Entreri. - Onde estão eles?
Dendibar fez um sinal para Sidnéia.
- Eles passaram por Sela Longa - disse ela. - E estão a caminho de Lua Argêntea, mais de duas semanas a leste daqui.
Os nomes eram desconhecidos para Cattiebrie, mas ela estava feliz pelo fato de seus amigos levarem uma boa dianteira. Precisava de tempo para arranjar um
plano, mas questionava a própria eficiência cercada como estava por captores tão poderosos.
- E o que você propõe? - perguntou Entreri.
- Uma aliança - respondeu Dendibar.
- Mas eu já tenho a informação de que preciso - riu Entreri. - O que eu ganharia me aliando a você?
- Meus poderes levarão você até eles e o ajudarão a derrotá-los. Eles não são uma força desprezível. Considere a aliança como um benefício mútuo.
- Você e eu na estrada? Um livro e uma escrivaninha parecem lhe convir melhor, mago.
Dendibar fitou o assassino arrogante.
- Garanto-lhe que posso ir aonde desejar com uma eficiência além da sua imaginação - grunhiu ele. No entanto, desfez-se rapidamente da raiva, estando
mais interessado em completar a negociação. - Mas devo permanecer aqui. Sidnéia irá em meu lugar e Jierdan, o soldado, será sua escolta. Entreri não gostou da idéia
de viajar com Jierdan, mas decidiu não forçar a questão. Poderia ser interessante - e útil - dividir a caçada com a Torre das Hostes Arcanas. Ele concordou com os
termos.
- E quanto a ela? - Sidnéia perguntou, apontando Cattiebrie.
- Ela vai comigo - foi a resposta rápida de Entreri.
- É claro - concordou Dendibar. - Não há por que desperdiçar uma refém tão valiosa.
- Somos três contra cinco - raciocinou Sidnéia. - Se as coisas não se resolverem tão facilmente como vocês dois parecem esperar, a garota pode se mostrar
nossa ruína.
- Ela vai! - exigiu Entreri.
Dendibar já tinha a solução. Lançou um sorriso desfigurado para Sidnéia.
- Leve Bok - casquinou ele.
O rosto de Sidnéia se desfez com a sugestão, como se a ordem de Dendibar tivesse lhe roubado o desejo pela caçada.
Entreri não tinha certeza se gostava ou não da nova marcha dos acontecimentos.
Percebendo o desconforto do assassino, Dendibar, com um sinal, conduziu Sidnéia até um gabinete acortinado ao lado da sala.
- Bok - ela chamou baixinho assim que lá chegou, com um sinal de estremecimento na voz.
A coisa atravessou a cortina. Com dois metros e meio de altura e um metro de ombro a ombro, o monstro caminhou a passos rígidos até se colocar ao lado da
mulher. Parecia um homem descomunal e, de fato, o mago utilizara pedaços de corpos humanos para compor boa parte da coisa. Bok era maior e mais sólido que qualquer
homem vivo, quase do tamanho de um gigante, e fora envolvido, por meios mágicos, de uma força além dos padrões do mundo natural.
- Um golem - explicou Dendibar com orgulho. - Minha própria criação. Bok poderia nos matar a todos agora mesmo. Até mesmo sua espada cruel seria de
pouca utilidade contra ele, Artemis Entreri.
O assassino não estava tão convencido disso, mas não conseguiu disfarçar completamente seu constrangimento. Dendibar havia obviamente feito pender a balança
a seu favor naquela parceria, mas Entreri sabia que, caso voltasse atrás agora, estaria lançando o mago variegado e seus asseclas contra ele, em competição direta
pelo grupo do anão. Além do mais, levaria semanas, talvez meses, para alcançar os viajantes por meios normais e não duvidava que Dendibar pudesse chegar lá mais
rápido.
Cattiebrie partilhava dos mesmos pensamentos incômodos. Ela não tinha o menor desejo de viajar com o monstro horripilante, mas imaginava a carnificina que
encontraria quando finalmente alcançasse Bruenor e os demais caso Entreri decidisse romper a aliança.
- Nada tema - consolou-os Dendibar. - Bok é inofensivo, incapaz de qualquer pensamento independente, pois, vejam vocês, Bok não tem mente.
O golem atende aos meus comandos, ou aos de Sidnéia, e poderia se jogar numa fogueira até ser consumido se nós meramente pedíssemos que o fizesse!
-Tenho negócios a terminar na cidade - disse Entreri, sem duvidar das palavras de Dendibar e sem a menor intenção de ouvir mais detalhes sobre o golem. -
Quando partimos?
- A noite seria melhor - raciocinou Dendibar. - Volte ao jardim da Torre das Hostes assim que escurecer. Haveremos de nos encontrar lá e colocar vocês
a caminho.
Sozinho em seus aposentos, a não ser pela presença de Bok, Dendibar afagou os ombros musculosos do golem com profunda afeição. Bok era sua carta na manga,
sua proteção contra a resistência dos companheiros ou a traição de Artemis Entreri. Mas não era fácil para Dendibar separar-se facilmente do monstro, pois a coisa
representava também um papel importante como guardião contra os pretensos sucessores na Torre das Hostes. Dendibar havia sutilmente avisado os outros magos de que,
caso fosse atacado por qualquer um deles, teriam de lidar com Bok, mesmo que ele próprio estivesse morto.
Mas a estrada adiante talvez fosse longa, e o Mestre do Torreão Norte não poderia abandonar seus deveres e ainda assim esperar manter seu título. Principalmente
com o Arquimago à espera de apenas uma desculpa para se livrar dele, pois compreendia os riscos oferecidos pelas francas aspirações de Dendibar à torre central.
- Nada é capaz de deter você, meu animalzinho - Dendibar disse ao monstro. Na verdade, ele estava simplesmente reafirmando os próprios temores quanto
à decisão de enviar uma feiticeira inexperiente em seu lugar. Não duvidava da lealdade dela, nem da de Jierdan, mas Entreri e os heróis do Vale do Vento Gélido deviam
ser levados a sério.
- Dei a você o poder da caçada - explicou Dendibar enquanto atirava ao chão o invólucro do tomo e o pergaminho agora inutilizado. - O drow é o seu
objetivo e você agora é capaz de sentir a presença dele a qualquer distância. Encontre-o! Não retorne sem Drizzt Do'Urden!
Um rugido gutural saiu dos lábios azuis de Bok, o único som que o instrumento irracional era capaz de emitir.
Entreri e Cattiebrie encontraram o grupo do mago já reunido quando chegaram à Torre das Hostes mais tarde naquela noite.
Jierdan estava sozinho num canto, aparentemente nada entusiasmado quanto a tomar parte na aventura, mas sem muita escolha. O soldado temia o golem e não gostava
nada de Entreri, nem confiava nele. Contudo, temia Dendibar ainda mais e sua apreensão quanto aos possíveis riscos da estrada não se comparava aos perigos que certamente
enfrentaria nas mãos do mago variegado caso se recusasse a ir.
Sidnéia se afastou de Bok e Dendibar e atravessou a alameda para encontrar seus companheiros.
- Saudações - ela ofereceu, agora mais interessada na conciliação do que na competição com seu formidável parceiro. - Dendibar está preparando nossas
montarias. A viagem até Lua Argêntea será bem ligeira!
Entreri e Cattiebrie olharam para o mago variegado. Bok estava de pé ao lado dele, segurando um pergaminho desenrolado, enquanto Dendibar derramava o líquido
fumarento de um recipiente de boca larga sobre uma pena branca e entoava as runas de um encantamento.
Uma névoa surgiu aos pés do mago, remoinhou e depois se adensou, tomando uma forma definida. Dendibar deixou que a coisa continuasse a se transformar e deu
um ou dois passos para o lado a fim de repetir o ritual. Quando o primeiro cavalo mágico apareceu, o mago já criava o quarto e último.
Entreri ergueu as sobrancelhas.
- Quatro? - ele perguntou a Sidnéia. - Somos cinco agora.
- Bok não poderia cavalgar - ela respondeu, achando graça. - Ele vai correr. - Ela se virou e foi até onde estava Dendibar, deixando Entreri a sós
com a idéia.
- E claro - Entreri murmurou consigo mesmo, de certo modo mais desanimado do que nunca em relação à presença daquela coisa sobrenatural.
Mas Cattiebrie começara a ver as coisas por um outro ângulo. Dendibar obviamente enviara Bok junto com eles mais para ganhar uma vantagem sobre Entreri do
que para garantir a vitória sobre os amigos dela. Entreri também devia saber disso.
Sem percebê-lo, o mago criara justamente o tipo de ambiente nervoso que Cattiebrie pedira aos céus, uma situação tensa que ela poderia encontrar uma maneira
de explorar.

9. OS GRILHÕES DA REPUTAÇÃO

O sol brilhava na manhã do primeiro dia fora de Sela Longa. Os companheiros, revigorados pela estada com os Harpells, cavalgavam num ritmo forte, mas ainda
conseguiam desfrutar do tempo bom e da estrada desimpedida. A região era plana, sem marcos, nenhuma árvore ou colina à vista.
- Três dias até Nesmé, talvez quatro - Régis disse a eles.
- Está mais para três, se o tempo continuar assim - disse Wulfgar. Drizzt se inquietou sob o capuz do manto. Por mais agradável que a manhã pudesse
lhes parecer, ele sabia que ainda estavam nos ermos. Três dias poderiam se mostrar de fato uma longa viagem.
- O que 'cê sabe desse lugar, Nesmé? - Bruenor perguntou a Régis.
- Só o que Harkle nos contou - respondeu Régis. - Uma cidade de tamanho razoável, comerciantes. Mas são cautelosos. Nunca estive lá, mas as histórias
sobre o povo valente que vive na orla dos Pântanos Eternos são conhecidas em todo o norte.
- Estou intrigado com os Pântanos Eternos - disse Wulfgar. - Harkle pouco falava sobre o lugar, apenas chacoalhava a cabeça e se arrepiava todo sempre
que eu perguntava alguma coisa.
- Sem dúvida, um lugar cujo renome excede a verdade - disse Bruenor, rindo, sem se deixar impressionar por reputações. - Poderia ser pior que o vale?
Régis deu de ombros, sem se deixar convencer completamente pelo argumento do anão.
- As histórias sobre os Charcos dos Trolls, pois esse é o nome dado àquelas terras, podem ser exageradas, mas são sempre agourentas. Todas as cidades
do norte saúdam a bravura do povo de Nesmé por manter a rota comercial ao longo do Surbrin em face de tamanha provação.
Bruenor riu novamente.
- Será que as histórias não vêm da própria Nesmé, para pintar eles mais fortes do que realmente são?
Régis não discutiu.
Quando pararam para o almoço, uma cerração alta cobria o sol. Longe, ao norte, uma linha negra de nuvens aparecera e agora corria na direção deles. Drizzt
já esperava por isso. Nos ermos, até mesmo o tempo se revelava um inimigo.
Naquela tarde, a frente da borrasca se encrespou sobre eles, trazendo pancadas de chuva e pedras de granizo que retiniam ao bater no elmo amassado de Bruenor.
Repentinas vergastadas de raio cortavam o céu escuro e o trovão quase os derrubava das montarias. Mas eles continuavam a se arrastar pela lama cada vez mais profunda.
- Esta é a verdadeira provação da estrada! - berrou Drizzt por entre os uivos do vento. - Muito mais viajantes são derrotados pelas tempestades do
que pelos orcs porque não antevêem os perigos no início da jornada!
- Ora! É só uma chuvinha de verão! - desdenhou Bruenor, desafiador.
Como que em orgulhosa resposta, um raio explodiu a uma pequena distância dos cavaleiros. Os cavalos saltaram e escoicearam. O pônei de Bruenor caiu, tombando
de mau jeito na lama e quase esmagando o anão atordoado em seu desespero para ficar de pé.
Com sua montaria fora de controle, Régis conseguiu saltar da sela e rolar para longe.
Bruenor ficou de joelhos e limpou os olhos cobertos de lama, praguejando o tempo todo.
- Maldição! - disse com veemência, estudando os movimentos do pônei. - O bicho 'tá estropiado!
Wulfgar firmou o próprio cavalo e tentou partir atrás do pônei de Régis, que havia disparado, mas o granizo, impelido pelo vento, apedrejou-o, cegou-o e afligiu
seu cavalo, e novamente ele se viu lutando para se manter na sela.
Mais um raio caiu, acompanhado de trovoada. E mais outro.
Drizzt, murmurando baixinho e cobrindo a cabeça de seu cavalo com o manto para acalmá-lo, movia-se vagarosamente ao lado do anão.
- Estropiado! - Bruenor gritou novamente, apesar de Drizzt mal conseguir ouvi-lo.
Drizzt apenas chacoalhou a cabeça, impotente, e apontou o machado de Bruenor.
Vieram outros raios e mais uma rajada de vento. Drizzt deslizou para o lado da montaria a fim de se proteger, ciente de que não conseguiria manter o animal
calmo por muito mais tempo.
As pedras de granizo começaram a ficar maiores e a golpear com a força de projéteis.
O cavalo aterrorizado de Drizzt atirou-o ao chão e se afastou aos pinotes, tentando escapar do castigo da tempestade.
Drizzt logo estava de pé ao lado de Bruenor, mas os planos emergenciais que porventura os dois tivessem formulado foram imediatamente desencorajados, pois
então Wulfgar reapareceu, cambaleando na direção deles.
Ele caminhava - ou quase - apoiando-se na força do vento, utilizando-o para se manter ereto. Os olhos pareciam abatidos, o queixo se Crispava e o sangue e
a chuva se misturavam em suas faces. Fitou estupidamente os amigos, como se não compreendesse o que lhe acontecera.
Então, caiu de cara na lama aos pés deles.
Um assobio agudo atravessou a muralha insensibilizante de vento, um excepcional sinal de esperança em face da força crescente da tempestade. Os ouvidos aguçados
de Drizzt captaram-no assim que ele e Bruenor tiraram da lama o rosto do jovem amigo. Tão distante parecia o assobio, mas Drizzt sabia o quanto as tempestades eram
capazes de distorcer as percepções de alguém.
- O que foi? - Bruenor perguntou, percebendo a repentina reação do drow, pois não ouvira o chamado.
- Régis! - respondeu Drizzt. Ele começou a arrastar Wulfgar na direção do assobio, Bruenor logo atrás dele. Não tiveram tempo de discernir se o rapaz
ainda vivia.
O raciocínio rápido do halfling os salvou naquele dia. Completamente ciente do potencial assassino das borrascas que se precipitavam desde a Espinha do Mundo,
Régis rastejara de um lado a outro em busca de algum abrigo na região desabitada. Topou com um buraco na face de um pequeno cômoro, talvez o velho covil de um lobo,
agora desocupado.
Seguindo os assobios, Drizzt e Bruenor logo o encontraram.
- Vai encher de chuva e a gente vai se afogar! - berrou Bruenor, mas ajudou Drizzt a arrastar Wulfgar para dentro e a apoiá-lo contra a parede dos
fundos da caverna, depois assumiu seu lugar ao lado dos amigos, ocupados em construir, com terra e as mochilas remanescentes, uma barreira contra a temi da inundação.
Um gemido de Wulfgar fez com que Régis corresse para o lado dele.
- Está vivo! - proclamou o halfling. - E seus ferimentos não parecem tão feios!
Mais valente que um texugo acuado - comentou Bruenor. Não demorou muito para que tornassem o covil tolerável, se não confortável, e até mesmo Bruenor parou
de reclamar.
- A verdadeira provação da estrada - Drizzt disse novamente para Régis, tentando animar o amigo completamente desconsolado enquanto os três se sentavam
na lama para suportar a noite; os estrondos incessantes do trovão e as pancadas do granizo eram um lembrete constante da pequena margem de segurança.
Em resposta, Régis verteu uma torrente de água de sua bota.
- Quantos quilômetros 'cê acha que a gente percorreu? - Bruenor rezingou, questionando Drizzt.
- Quinze, talvez - respondeu o drow.
- Duas semanas até Nesmé nesse ritmo! - resmungou Bruenor, cruzando os braços sobre o peito.
- A tempestade vai passar - ofereceu Drizzt, esperançoso, mas o anão já não mais escutava.
O dia seguinte começou sem chuva, apesar das nuvens densas e cinzentas que pairavam baixo no céu. Wulfgar estava bem pela manhã, mas ainda não entendia o
que lhe acontecera. Bruenor insistiu para que partissem imediatamente, embora Régis tivesse preferido permanecer no buraco até que tivessem certeza de que a tempestade
passara.
- A maior parte das provisões se perdeu - Drizzt lembrou o halfling. - Pode ser que você não coma nada além de migalhas de pão duro até alcançar mos
Nesmé.
Régis foi o primeiro a sair do buraco.
A umidade insuportável e o solo lamacento impediam que acelerassem o ritmo, e os amigos logo descobriram que os joelhos doíam com os constantes desvios e
a patinhagem. As roupas encharcadas aderiam incomodamente a seus corpos e faziam peso a cada passo.
Encontraram o cavalo de Wulfgar, uma forma carbonizada e fumegante, semi-enterrada na lama.
- Um raio - observou Régis.
Os três olharam para o amigo bárbaro, admirados de que ele pudesse ter sobrevivido a tamanho impacto. Wulfgar também os fitava em estado de choque, dando-se
conta do que o derrubara da montaria na noite anterior.
- Mais valente que um texugo! - Bruenor bradou mais uma vez para Drizzt.
O sol provocativamente encontrava uma abertura no céu encoberto de vez em quando. Contudo, a luz era pouco substancial e, no zênite, o dia havia ficado mais
escuro na verdade. O trovão distante anunciava uma tarde lúgubre.
A tempestade já havia exaurido seu poderio mortífero, mas eles não encontraram outro abrigo naquela noite que não as próprias roupas molhadas e sempre que
o crepitar do relâmpago iluminava o céu, viam-se quatro formas encurvadas, sentadas na lama, cabisbaixas, como se aceitassem o destino com impotente resignação.
Durante outros dois dias eles continuaram a se arrastar em meio à chuva e ao vento, sem muita escolha nem outro lugar para ir a não ser avante.
Wulfgar se revelou o salvador do moral do grupo naqueles momentos de desânimo. Desatolou Régis do solo encharcado, atirando facilmente o halfling sobre suas
costas e explicando que precisava de um peso adicional para se equilibrar. Poupando desse modo o orgulho do halfling, o bárbaro conseguiu até mesmo convencer o anão
mal-humorado a ser carregado da mesma maneira durante algumas horas. E, todo o tempo, Wulfgar se mostrava indômito.
- Uma benção, digo eu - ele continuava gritando para os céus cinzentos. - A tempestade afasta os insetos e os orcs! E quantos meses vão se passar até que
venhamos a precisar de água?
Ele se esforçava bastante para manter os ânimos elevados. De certa feita, ele observou com cuidado os raios, calculando o intervalo entre o lampejo e o trovão
subseqüente. Quando se aproximaram do cadáver enegrecido de uma árvore morta havia tempos, o raio fulgurou e Wulfgar executou o truque. Ao brado de "Tempus!", ele
arremessou seu martelo de modo que a arma atingisse e derrubasse o tronco no exato momento em que o trovão explodia ao redor deles. Os amigos, entretidos, viraram-se
para encará-lo, apenas para encontrá-lo de pé, orgulhoso, os braços e os olhos erguidos para os deuses como se estes houvessem pessoalmente atendido ao seu chamado.
Drizzt, aceitando toda aquela provação com seu costumeiro estoicismo, aplaudiu silenciosamente seu jovem amigo e soube mais uma vez, ainda mais do que antes,
que fora sábia a decisão de trazê-lo. O drow compreendeu que seu próprio dever naquele momento difícil era continuar em seu papel de sentinela, mantendo diligente
vigília apesar da Proclamação de segurança do bárbaro.
Por fim, a tempestade foi soprada para longe pelo mesmo vento vigoroso que a havia anunciado. A brilhante luz do sol e o céu claro da manhã seguinte melhoraram
incomensuravelmente o humor dos companheiros e permitiram-lhes pensar mais uma vez no que tinham pela frente.
Principalmente Bruenor. O anão chegava a se dobrar em sua marcha urgente, exatamente como o fizera no início da jornada, ainda no Vale do Vento Gélido.
A barba ruiva a oscilar com a intensidade do passo vigoroso, Bruenor reencontrou seu estreito foco. Ele se retirou para os sonhos de sua terra natal, via
as sombras bruxuleantes da luz das tochas nas paredes raiadas de prata e os prodigiosos artefatos que resultavam do trabalho meticuloso de seu povo. Sua intensa
concentração no Salão de Mitral nos últimos meses trouxera lembranças novas e mais claras e, na estrada, ele se lembrava agora, pela primeira vez em mais de um século,
do Salão de Dumathoin.
Os anões do Salão de Mitral haviam ganhado bem a vida com o comércio de seus objetos manufaturados, mas eles sempre guardavam para si as melhores peças e
os regalos mais preciosos doados por forasteiros. Numa câmara grande e ornamentada, que deixava todos os visitantes de olhos arregalados, o legado dos ancestrais
de Bruenor se achava em exposição e servia de inspiração aos futuros artistas do clã.
Bruenor riu baixinho ao lembrar do prodigioso salão e daquelas peças maravilhosas, armas e armaduras em sua maioria. Olhou para Wulfgar caminhando ao lado
dele, e para o poderoso martelo de guerra que fabricara no ano anterior. Garra de Palas poderia ter sido pendurado no Salão de Dumathoin se o clã de Bruenor ainda
dominasse o Salão de Mitral, o que confirmaria a imortalidade de Bruenor no legado de seu povo.
Mas, observando Wulfgar manusear o martelo, brandindo-o com a mesma facilidade com que usaria o próprio braço, Bruenor não se arrependia.
O dia seguinte trouxe mais boas novas. Pouco depois de terem levantado acampamento, os amigos descobriram que haviam percorrido uma distância muito maior
do que a prevista durante as provações da tempestade, pois enquanto marchavam, a paisagem ao redor deles passava por transformações sutis, mas definitivas.
Onde antes o terreno se cobria de trechos esparsos de ervas silvestres e irregulares - um mar virtual de lama sob a torrente de chuva -, eles agora encontravam
luxuriantes relvados e bosques dispersos de olmos altaneiros. Ao galgar uma última serrania, confirmaram-se suas suspeitas, pois diante deles estava o Vale Dessarin.
Alguns quilômetros adiante, engrossado pelo degelo de primavera e a tempestade recente, e claramente visível da posição elevada em que se encontravam, o braço do
grande rio fluía constantemente em sua jornada para o sul.
O longo inverno dominava aquela região, mas quando as plantas finalmente floresciam, compensavam a estação curta com uma vivacidade sem igual em todo o mundo.
As cores magníficas da primavera começavam a cercar os amigos à medida que abriam caminho e desciam o declive até o rio. O tapete de relva era tão denso que eles
tiraram as botas e caminharam descalços por aquela maciez esponjosa. A vitalidade ali era verdadeiramente óbvia e contagiosa.
- 'Cês deviam ver os salões - comentou Bruenor, num impulso repentino. - Veios do mais puro mitral, mais largos que a sua mão! Rios de prata é o que são
e sobrepujados em beleza apenas pelo que a mão de um anão faz com eles.
- A privação de tal visão é o que nos faz atravessar todas as adversidades - replicou Drizzt.
- Ora! - Bruenor resmungou jovialmente. - 'Cê 'tá aqui porque eu te enganei, elfo. 'Cê não tinha mais motivo prá adiar minha aventura!
Wulfgar foi obrigado a rir. Ele tomara parte no engodo que havia feito Drizzt concordar em empreender aquela jornada. Depois da grande batalha com Akar Kessell
em Dez-Burgos, Bruenor fingira estar mortalmente ferido e, no seu aparente leito de morte, implorara ao drow que viajasse com ele até sua antiga terra natal. Pensando
que o anão estivesse às portas da morte, Drizzt não pôde recusar.
- E você! - Bruenor berrou para Wulfgar. - Já entendi porque é que 'cê veio, mesmo você sendo cabeçudo demais prá perceber isso!
- Por favor, diga-me - Wulfgar replicou, com um sorriso.
- 'Cê 'tá fugindo! Mas não vai escapar! - gritou o anão.
O júbilo de Wulfgar transformou-se em confusão.
- A menina assustou ele, elfo - Bruenor explicou para Drizzt. - Cattiebrie enredou ele de um jeito que esses músculos todos não vão ajudar em nada!
Wulfgar gargalhou com as conclusões rudes de Bruenor, sem se ofender. Mas, nas imagens engendradas pelas alusões de Bruenor a Cattiebrie, nas lembranças de
um pôr-do-sol sobre a face do Sepulcro de Kelvin, ou de horas passadas a conversar sobre a elevação rochosa denominada Ladeira de Bruenor, o jovem bárbaro encontrou
um perturbador elemento de verdade nas observações do anão.
- E quanto a Régis? - Drizzt perguntou a Bruenor. - Você já discerniu o motivo dele para vir conosco? Poderia ser o amor pela lama que lhe sobe pelos
tornozelos e traga suas perninhas até os joelhos?
Bruenor parou de rir e estudou a reação do halfling às perguntas do drow.
- Não, ainda não - ele respondeu, sério, depois de alguns momentos nada reveladores. - Só sei de uma coisa: se Ronca-bucho escolheu a estrada, isso
significa apenas que a lama e os orcs são melhores do que o que ele 'tá deixando prá trás - Bruenor manteve os olhos sobre o seu pequeno amigo, mais uma vez em busca
de alguma revelação na resposta do halfling.
Régis manteve a cabeça abaixada, observando os pés peludos, visíveis, pela primeira vez em muitos meses, abaixo do volume cada vez menor de seu ventre, enquanto
avançavam a custo pelas densas ondas de verde. O assassino, Entreri, estava a um mundo de distância, ele pensou. E ele não tinha a menor intenção de insistir num
perigo que fora evitado.
Alguns quilômetros rio acima, eles encontraram a primeira bifurcação importante, onde o Surbrin, vindo de nordeste, desaguava na corrente principal do braço
setentrional da bacia do grande rio.
Os amigos procuraram por um meio de atravessar o rio maior, o Dessarin, e chegar ao pequeno vale entre este e o Surbrin. Nesmé, sua próxima e última parada
antes de Lua Argêntea, ficava um pouco além, subindo o Surbrin, e, embora a cidade estivesse, na verdade, na margem oriental do rio, os amigos, seguindo o conselho
de Harkle Harpell, haviam decidido subir pela margem ocidental e evitar os perigos que se ocultavam nos Pântanos Eternos.
Cruzaram o Dessarin sem muita dificuldade graças à incrível agilidade do drow, que atravessou o rio correndo por um galho de árvore suspenso sobre o curso
d'água e dali saltou para um pouso semelhante no ramo de uma árvore na margem oposta. Logo depois, estavam todos caminhando tranqüilamente ao longo do Surbrin, aproveitando
o sol, a brisa cálida e a infindável canção do rio. Drizzt conseguiu até mesmo abater um gamo com seu arco, o que prometia uma excelente ceia com carne de caça e
mochilas reabastecidas para a estrada adiante.
Acamparam bem à beira d'água, sob a luz das estrelas pela primeira vez em quatro noites, sentados ao redor do fogo e a ouvir as histórias de Bruenor sobre
os salões argênteos e as maravilhas que encontrariam ao fim da estrada.
A serenidade da noite, porém, não persistiu na manhã seguinte, pois os amigos foram despertados por sons de batalha. Wulfgar imediatamente escalou uma árvore
próxima para descobrir quem eram os combatentes.
- Cavaleiros! - ele berrou, saltando e sacando seu martelo de guerra antes mesmo de atingir o chão. - Alguns caíram! Combatem monstros que não conheço! -
Ele saiu correndo em direção ao norte, com Bruenor em seu encalço e Drizzt contornando-lhes o flanco, rio abaixo. Menos entusiástico, Régis ficou para trás e sacou
sua pequena maça, mas dificilmente se preparava para o combate franco.
Wulfgar foi o primeiro a chegar. Sete cavaleiros ainda estavam de pé, tentando em vão manobrar suas montarias para formar algum tipo de linha defensiva. As
criaturas que combatiam eram rápidas e não tinham medo de correr sob os golpes das patas dos cavalos para fazer os animais tropeçarem. Os monstros tinham apenas
cerca de um metro de altura, com braços que chegavam ao dobro disso em comprimento. Lembravam pequenas árvores, apesar de inegavelmente vivazes, a correr de um lado
para outro freneticamente, golpeando com seus braços semelhantes a clavas ou, como mais um desafortunado cavaleiro descobriu assim que Wulfgar entrou na refrega,
envolvendo os adversários com seus membros flexíveis para derrubá-los das montarias.
Wulfgar passou rapidamente por duas das criaturas, atirando-as de lado, e abateu-se sobre a que acabara de derrubar o cavaleiro. O bárbaro, porém, subestimou
os monstros, pois os dedos dos pés das criaturas, semelhantes a raízes, rapidamente encontraram um novo ponto de equilíbrio, e os braços compridos o apanharam por
trás antes que ele tivesse dado dois passos, agarrando-o de ambos os lados e detendo-o imediatamente.
Bruenor investiu logo em seguida. O machado do anão atravessou um dos monstros, dividindo-o ao meio como lenha e depois se enterrou gravemente no outro, fazendo
com que um grande pedaço de seu tronco voasse longe.
Drizzt chegou ao local da batalha, ansioso, mas, como sempre, contido pela sensibilidade predominante que o fizera sobreviver a centenas de confrontos. Desceu
pelo flanco, abaixo do desnível da ribanceira, onde descobriu uma desengonçada ponte de troncos que atravessava o Surbrin. Os monstros a haviam construído, Drizzt
sabia. Aparentemente, não eram criaturas irracionais.
Drizzt espiou por sobre a ribanceira. Os cavaleiros tinham se reagrupado ao redor dos inesperados reforços, mas um deles, bem em frente ao drow, fora envolvido
por um monstro e era arrastado para longe do cavalo.
Notando a natureza vegetal de seus estranhos adversários, Drizzt compreendeu por que todos os cavaleiros empunhavam machados e imaginou se suas delgadas cimitarras
seriam de alguma ajuda.
Mas ele precisava agir. Saltando de seu esconderijo, enfiou as duas cimitarras na criatura. Elas atingiram o alvo, sem que provocassem maior efeito do que
se Drizzt tivesse apunhalado uma árvore.
Mesmo assim, a tentativa do drow salvara o cavaleiro. O monstro golpeou sua vítima uma última vez, para mantê-la atordoada, depois a soltou para enfrentar
Drizzt. Pensando rápido, o drow passou a um ataque alternativo, usando suas espadas ineficazes para aparar os golpes desferidos pelos braços do monstro. Então, quando
a criatura se precipitou sobre ele, mergulhou aos pés dela, desenraizando-a e lançando-a por cima dele em direção à margem do rio. Enfiou as cimitarras na pele semelhante
à casca de uma árvore e puxou, fazendo o monstro rolar, às cambalhotas, em direção ao Surbrin. A coisa conseguiu se segurar antes de cair n'água, mas Drizzt a atacou
novamente. Uma rajada de pontapés bem colocados lançou o monstro na corrente e o rio o arrastou para longe.
O cavaleiro, a essa altura, havia retornado à sela e ao domínio de suas faculdades mentais. Ele conduziu o cavalo em direção à ribanceira para agradecer seu salvador.
Então, ele viu a pele negra.
- Drow! - ele gritou e baixou o machado.
Drizzt foi pego de surpresa. Seus reflexos aguçados ergueram uma das espadas o suficiente para desviar o fio do machado, mas a parte embotada da arma atingiu-lhe
a cabeça e o fez cambalear. Ele mergulhou com o impulso do golpe e rolou, tentando se afastar o máximo possível do cavaleiro, pois percebeu que o homem o mataria
antes que conseguisse se recuperar.
- Wulfgar! - gritou Régis de seu esconderijo, um pouco mais atrás na ribanceira. O bárbaro deu cabo de um dos monstros com um estalo estrondoso que
provocou rachaduras por toda a extensão da coisa e virou-se no exato momento em que o cavaleiro dava a volta para alcançar Drizzt.
Wulfgar urrou de raiva e abandonou a própria luta, agarrou a rédea do cavalo enquanto este ainda fazia a volta e puxou com toda a sua força. Cavalo e cavaleiro
foram ao chão. O cavalo se levantou imediatamente e chacoalhou a cabeça, trotando nervosamente de um lado para outro, mas o cavaleiro ficou no chão, a perna esmagada
na queda sob o peso da montaria.
Os cinco cavaleiros remanescentes agora agiam em conjunto, investindo contra grupos de monstros e dispersando-os. O cruel machado de Bruenor continuava a
cortar, e o anão cantava o tempo todo uma canção de lenhador que aprendera quando menino:
- Guri, rache a lenha e acenda a lareira, Prá comer agora, aqueça a chaleira! - ele cantava enquanto abatia metodicamente um monstro após outro.
Wulfgar se postou defensivamente por sobre a forma de Drizzt, e seu poderoso martelo estilhaçava com um único golpe qualquer monstro que se aventurasse perto
demais.
A confusão estava formada e, em segundos, as poucas criaturas sobreviventes fugiram em pânico pela ponte sobre o Surbrin.
Três cavaleiros estavam caídos e mortos, um quarto se apoiava pesadamente contra o cavalo, quase sobrepujado pelos ferimentos, e aquele que Wulfgar havia
derrubado desmaiara de dor. Mas os cinco ainda sobre os cavalos não acudiram os feridos. Formaram um semicírculo em torno de Wulfgar e Drizzt - que só agora voltava
a ficar de pé -, encurralando os dois contra a ribanceira, os machados em prontidão.
- É assim que 'cês acolhem seus salvadores? - vociferou Bruenor, afastando um cavalo com um tapa para que pudesse se juntar aos amigos. - Aposto que
as mesmas pessoas não aparecem duas vezes prá socorrer vocês!
- Você anda em má companhia, anão! - retorquiu um dos cavaleiros.
- Seu amigo estaria morto não fosse a nossa má companhia! - replicou Wulfgar, indicando o cavaleiro que jazia num canto. - E ele agradeceu ao drow
com uma arma!
- Somos os Cavaleiros de Nesmé - o cavaleiro explicou. - Nossa sina é morrer no campo, protegendo nossa gente. Aceitamos esse destino de boa vontade.
- Dê mais um passo com esse cavalo e a gente vai realizar o seu desejo - avisou Bruenor.
- Mas vocês nos fazem uma grande injustiça - argumentou Wulfgar. - Estamos a caminho de Nesmé. Viemos em paz, como amigos.
- Vocês não entrarão, não com ele! - disse o cavaleiro com veemência. -Todos conhecem os métodos dos hediondos elfos drow. Você nos pede para acolhê-lo?
- Ora, 'cê é um idiota e a sua mãe também - grunhiu Bruenor.
- Meca as palavras, anão - avisou o cavaleiro. - Somos cinco contra três, e montados.
- Por que 'cê não tenta? - devolveu o anão. - Os abutres não vão conseguir muita comida com essas árvores bailarinas - Ele passou o dedo pelo fio do
machado. - Vamos dar a eles algo melhor prá bicar.
Wulfgar brandiu Garra de Palas de um lado para outro com apenas um braço. Drizzt não fez o menor gesto para sacar as armas, e sua calma inabalável foi, talvez,
a ação mais enervante de todas para os cavaleiros.
O porta-voz pareceu menos confiante depois do fracasso de sua ameaça, mas continuou agindo como se ainda fosse sua a vantagem.
- Mas não somos ingratos pela ajuda. Permitiremos que partam.
Desapareçam e nunca mais voltem às nossas terras.
- Ir ou vir é nossa opção - rosnou Bruenor.
- E optamos por não lutar - Drizzt acrescentou. - Não é o nosso objetivo nem o nosso desejo fazer mal a vocês ou a sua cidade, Cavaleiros de Nesmé.
Vamos passar, cuidaremos de nossas próprias vidas e deixaremos que vocês cuidem das suas.
- Você não vai chegar nem perto da minha cidade, elfo negro! - gritou um outro cavaleiro. - Vocês podem nos abater no campo, mas há outros cem atrás
de nós, e três vezes esse número atrás dos primeiros! Agora, sumam! - Seus companheiros pareceram readquirir a coragem com aquelas palavras audazes, os cavalos a
patear nervosamente com a súbita tensão das rédeas.
- Temos um trajeto a seguir - Wulfgar insistiu.
- Que se danem eles! - vociferou Bruenor, de repente. - Já agüentei o suficiente desse bando! Que se dane a vila deles. Que o rio varra eles da existência!
- Ele se virou para os amigos. - Estão fazendo um favor prá gente. Vamos poupar um dia ou mais indo direto até Lua Argêntea em vez de contornar pelo rio.
- Direto? - questionou Drizzt. - Os Pântanos Eternos?
- Será que é pior que o vale? - replicou Bruenor. Ele girou sobre os calcanhares e encarou os cavaleiros. - Fiquem com sua cidade e suas cabeças,
por enquanto - ele disse. - Vamos cruzar a ponte aqui e nos livrar de vocês e de toda a Nesmé!
- Coisas bem mais abomináveis que os homúnculos dos brejos vagam pelos Charcos dos Trolls, seu anão idiota - replicou o cavaleiro com um sorriso. -
Viemos destruir a ponte. Será queimada assim que vocês tiverem passado.
Bruenor assentiu e devolveu o sorriso.
- Continuem caminhando para leste - alertou o cavaleiro. - Avisaremos todos os outros cavaleiros. Se forem avistados perto de Nesmé, vocês serão mortos.
- Peguem seu amigo desprezível e sumam - provocou um outro cavaleiro - antes que o meu machado se banhe no sangue de um elfo negro! Embora eu tivesse
então que jogar fora a arma infectada!
Todos os cavaleiros se juntaram à gargalhada que se seguiu.
Drizzt sequer ouvira o insulto. Concentrava-se num cavaleiro na retaguarda do grupo, um tipo discreto que poderia aproveitar sua insignificância na conversa
para conseguir uma vantagem sem que os demais o percebessem. O cavaleiro havia sorrateiramente tirado o arco do ombro e agora levava com vagar a mão à aljava.
Bruenor nada mais tinha a dizer. Ele e Wulfgar deram as costas aos cavaleiros e partiram em direção à ponte.
- Venha, elfo - ele disse a Drizzt, ao passar. - Vou dormir melhor quando a gente estiver longe desses cães filhos de um orc.
Mas Drizzt tinha mais uma mensagem a enviar antes que desse as costas aos cavaleiros. Num movimento ofuscante, pegou o arco que trazia nas costas, retirou
uma flecha de sua aljava e a disparou com um silvo. Ela acertou o barrete de couro do suposto arqueiro, dividindo-lhe o cabelo ao meio, e engastou-se numa árvore
logo atrás dele, a haste a tremular um aviso claro.
- Seus insultos equivocados, eu aceito, até mesmo os espero - Drizzt explicou ao cavaleiro aterrorizado. - Mas não vou tolerar tentativas de ferir
meus amigos, e vou me defender. Considerem-se avisados, e aviso apenas uma vez: se tentarem qualquer outra coisa contra nós, vocês morrerão. - Ele se virou abruptamente
e desceu até a ponte, sem olhar para trás.
Os cavaleiros atordoados sem dúvida não tinham a intenção de retardar ainda mais o grupo do drow. O pretenso arqueiro nem mesmo procurou o barrete.
Drizzt sorriu diante da ironia de ser incapaz de se livrar das lendas sobre sua raça. Apesar de, por um lado, ser evitado e ameaçado, a aura de mistério
que cercava os elfos negros também lhe proporcionava um blefe poderoso o bastante para dissuadir os inimigos mais prováveis.
Régis se juntou a eles na ponte, brincando com uma pequena pedra.
- Eu os tinha na mira - foi explicando a arma improvisada. Ele lançou a pedra no rio. - Se a coisa começasse, o primeiro seria meu.
- Se a coisa começasse - Bruenor o corrigiu -, 'cê teria se borrado todo no buraco em que se escondeu!
Wulfgar refletiu sobre o aviso do cavaleiro em relação à senda que deveriam seguir.
- Charcos dos Trolls - ele repetiu sombriamente, percorrendo com os olhos o aclive do outro lado e a terra amaldiçoada diante deles. Harkle falara
sobre o lugar. A terra queimada e os brejos sem fundo. Os trolls e horrores piores que sequer possuíam um nome.
- Vamos ganhar um dia ou mais! - Bruenor repetiu teimosamente. Wulfgar não se convenceu.
- Está dispensado - Dendibar disse ao espectro.
Enquanto as chamas se refaziam no braseiro, despojando-o de sua forma material, Morkai considerava aquele segundo encontro. Com que freqüência Dendibar o
invocaria? - perguntou-se. O mago variegado ainda não havia se recuperado totalmente do último encontro, mas ousara convocá-lo novamente em tão pouco tempo. O assunto
de Dendibar com o grupo do anão devia ser realmente urgente! Essa suposição só fez Morkai desprezar ainda mais seu papel como espião do mago variegado.
Sozinho na sala novamente, Dendibar saiu de sua posição meditativa, espreguiçando-se, e sorriu perversamente ao considerar a imagem que Morkai lhe mostrara.
Os companheiros haviam perdido as montarias e marchavam em direção à área mais abominável de todo o Norte. Mais um ou dois dias e seu próprio grupo, voando nos cascos
de seus corcéis mágicos, viria a alcançá-los, embora cinqüenta quilômetros mais ao norte.
Sidnéia chegaria a Lua Argêntea muito antes do drow.


10. LUA ARGÊNTEA

A viagem desde Luskan foi realmente ligeira. Entreri e seu bando pareciam aos espectadores curiosos não mais que um borrão indistinto no vento noturno. As
montarias mágicas não deixavam rastro de sua passagem e nenhuma criatura viva conseguiria alcançá-las. O golem, como sempre, se arrastava incansavelmente na retaguarda
com grandes passos rígidos.
Tão macios e suportáveis eram os assentos sobre os corcéis conjurados de Dendibar que o grupo foi capaz de continuar a carreira depois do amanhecer e durante
todo o dia seguinte com apenas paradas breves para as refeições. Portanto, quando montaram acampamento depois do pôr do sol do primeiro dia de viagem, eles já haviam
deixado os rochedos para trás.
Cattiebrie travava uma batalha interior naquele primeiro dia. Ela não tinha dúvidas de que Entreri e a nova aliança alcançariam Bruenor. No pé em que estavam
as coisas, Cattiebrie seria apenas um empecilho para seus amigos, um joguete que Entreri poderia usar como melhor lhe aprouvesse.
Ela pouco podia fazer para remediar o problema, a menos que encontrasse algum modo de diminuir, se não sobrepujar, o aterrorizante domínio que o assassino
exercia sobre ela. Ela passou aquele primeiro dia concentrada, excluindo o mundo ao seu redor tanto quanto podia e procurando em seu espírito interior a força e
a coragem de que precisaria.
Bruenor, ao longo dos anos, havia armado a moça com muitos instrumentos para travar uma batalha como aquela, habilidades de disciplina e autoconfiança que
fizeram com que ela sobrevivesse a muitas situações difíceis. No segundo dia da viagem, então, mais confiante e mais à vontade com a situação, Cattiebrie foi capaz
de se concentrar em seus captores.
Extremamente interessantes eram os olhares que Jierdan e Entreri trocavam. O orgulhoso soldado obviamente não esquecera a humilhação que sofrera na noite
em que os dois se conheceram, no campo fora das muralhas de Luskan. Entreri - profundamente ciente do ressentimento, chegando mesmo a alimentá-lo, disposto como
estava a levar a questão a um confronto - vigiava o homem com desconfiança.
Essa rivalidade crescente poderia se revelar sua mais promissora, e talvez única esperança de escapar, pensou Cattiebrie. Ela tinha de admitir que Bok era
uma máquina de destruição irracional e indestrutível, imune à manipulação, e descobriu rapidamente que Sidnéia nada lhe oferecia.
Cattiebrie tentara engajar a jovem feiticeira numa conversa logo no segundo dia, mas o foco de Sidnéia era estreito demais para quaisquer distrações. Ela
não se deixaria desviar de sua obsessão, nem seria persuadida a abandoná-la. Ela nem mesmo respondeu à saudação de Cattiebrie quando as duas se sentaram para a refeição
do meio-dia. E quando Cattiebrie a importunou um pouco mais, Sidnéia instruiu Entreri a "manter a rameira longe dela".
No entanto, mesmo nessa tentativa fracassada, a feiticeira arredia ajudara Cattiebrie de uma maneira que nenhuma das duas conseguiria prever. O franco desdém
de Sidnéia e os insultos foram como um tapa no rosto de Cattiebrie e instilaram na moça mais um instrumento que a ajudaria a sobrepujar a paralisia provocada pelo
terror: a raiva.
Eles ultrapassaram o ponto médio de sua jornada no segundo dia - a paisagem passava por eles de uma maneira surreal à medida que seguiam a toda pressa - e
acamparam nas pequenas colinas a nordeste de Nesmé, com a cidade de Luskan agora duzentas milhas para trás.
Fogueiras piscavam ao longe. Uma patrulha de Nesmé, teorizou Sidnéia.
- Devemos ir até lá e descobrir o que pudermos - Entreri sugeriu, ansioso por notícias sobre seu alvo.
- Você e eu - concordou Sidnéia. - Podemos ir e voltar antes de se passar metade da noite.
Entreri olhou para Cattiebrie.
- E quanto a ela? - ele perguntou à feiticeira. - Eu não a deixaria com Jierdan.
- Você acha que o soldado se aproveitaria da garota? - Sidnéia replicou. - Garanto que ele é honrado.
- Não é isso que me preocupa - disse Entreri, com um sorriso pretensioso. - Não temo pela filha de Bruenor Martelo de Batalha. Ela se livraria do seu
soldado honrado e sumiria noite adentro antes do nosso retorno.
Cattiebrie não recebeu bem o elogio. Ela entendeu que o comentário de Entreri era antes um insulto a Jierdan, que estava longe, catando lenha, do que um reconhecimento
à sua própria competência, mas o inesperado respeito do assassino por ela tornaria sua tarefa duplamente difícil. Não queria que Entreri a julgasse perigosa, ou
mesmo engenhosa, pois isso o deixaria demasiado alerta para que ela agisse.
Sidnéia olhou para Bok.
- Vou sair - ela disse ao golem, alteando propositalmente a voz, o bastante para Cattiebrie ouvi-la com facilidade. - Se a prisioneira tentar fugir,
persiga-a e mate-a! - Ela lançou um sorriso maldoso para Entreri. - Satisfeito?
Ele devolveu o sorriso e fez um gesto largo com o braço na direção do acampamento distante.
Jierdan voltou então, e Sidnéia contou-lhe os planos. O soldado não pareceu entusiasmado com a idéia de Sidnéia e Entreri partirem juntos, apesar de nada
dizer para dissuadir a feiticeira. Cattiebrie o observou atentamente e inferiu a verdade. Ser deixado a sós com ela e o golem não o incomodava, ela conjeturou, mas
ele temia que um vínculo de amizade se formasse entre seus dois companheiros de estrada. Cattiebrie compreendia e até mesmo esperava por isso, pois Jierdan se encontrava
na posição mais vulnerável: subserviente a Sidnéia e com medo de Entreri. Uma aliança entre aqueles dois, talvez mesmo um pacto que excluísse completamente Dendibar
e a Torre das Hostes, no mínimo o deixaria de fora e, mais provavelmente, significaria seu fim.
- Por certo que a natureza desse negócio sombrio age contra eles mesmos - Cattiebrie murmurou quando Sidnéia e Entreri deixaram o acampamento, pronunciando
as palavras em voz alta para reforçar sua confiança cada vez maior.
- Eu podia te ajudar com isso aí - ela propôs a Jierdan enquanto ele dava os toques finais ao acampamento.
O soldado fulminou-a com o olhar.
- Ajudar? - zombou ele. - Eu devia era obrigá-la a fazer tudo sozinha.
- Entendo sua raiva - Cattiebrie rebateu, solidária. - Eu mesma sofri nas mãos imundas de Entreri.
A pena da moça enfureceu o soldado orgulhoso. Ele investiu contra ela, ameaçador, mas Cattiebrie manteve a compostura e não se esquivou.
- Este trabalho não condiz com o seu posto.
Jierdan se deteve de repente, a raiva dissipada pelo fato de estar intrigado com o elogio. Uma manobra evidente mas, para o ego ferido de Jierdan, o respeito
da moça era oportuno demais para se ignorar.
- O que sabe você sobre o meu posto? - ele perguntou.
- Sei que é um soldado de Luskan - Cattiebrie respondeu. - De um grupo temido em todo o norte. 'Cê não deveria fazer o trabalho braçal enquanto a feiticeira
e o caçador de sombras saem prá brincar de noite.
- Você está criando encrenca! - grunhiu Jierdan, mas ele se deteve para considerar o argumento. - Você monta o acampamento - ele ordenou, por fim,
readquirindo um certo grau de amor-próprio ao demonstrar sua superioridade em relação a ela. Entretanto, Cattiebrie não se importou. Ocupou-se da tarefa imediatamente,
interpretando seu papel subserviente sem reclamar. Um plano agora começava a tomar forma definida em sua mente, e essa fase exigia que ela fizesse um aliado entre
seus inimigos, ou pelo menos se colocasse numa posição que lhe permitisse plantar as sementes do zelo na mente de Jierdan.
Satisfeita, ela ouviu o soldado se afastar, resmungando a meia-voz.
Antes que Entreri e Sidnéia tivessem sequer se aproximado o suficiente para dar uma boa olhada no acampamento, um cântico ritualístico lhes revelou que não
se tratava de uma caravana de Nesmé. Eles se aproximaram com maior cautela para confirmar suas suspeitas.
Bárbaros de cabelos longos, morenos e altos, e envergando vestes cerimoniais emplumadas, dançavam em círculo em volta de um totem de madeira em forma de grifo.
- Uthgardt - explicou Sidnéia. - A tribo do Grifo. Estamos perto de Branco Reluzente, seu cemitério ancestral. - Ela se afastou vagarosamente da luminosidade
do acampamento. - Venha - ela sussurrou. - Não descobriremos nada de útil aqui.
Entreri a seguiu de volta ao acampamento.
- Não seria melhor montarmos agora? - ele perguntou quando se encontraram a uma distância segura. - Para nos afastarmos mais dos bárbaros?
- Não é necessário - respondeu Sidnéia. - Os uthgardt vão dançar a noite inteira. Toda a tribo toma parte no ritual. Duvido até que tenham postado
sentinelas.
- Você sabe muita coisa sobre eles - comentou o assassino num tom acusador, um sinal de suas repentinas suspeitas de que poderia haver alguma trama
ulterior a controlar os acontecimentos ao redor deles.
- Eu me preparei para esta jornada - rebateu Sidnéia. - Os uthgardt guardam poucos segredos; seus costumes são bastante conhecidos e documentados.
Aqueles que viajam pelo norte fariam bem em compreender essas pessoas.
-Tenho sorte por ter uma companheira de viagem tão instruída - disse Entreri, fazendo uma reverência sarcástica à guisa de desculpas.
Sidnéia, os olhos na estrada logo adiante, não respondeu.
Mas Entreri não deixaria a conversa morrer com tanta facilidade. Havia método em sua linha mestra de suspeitas. Ele havia conscientemente escolhido aquele
momento para revelar suas cartas e sua desconfiança, mesmo antes de descobrirem a natureza do acampamento. Pela primeira vez, os dois se encontravam a sós, sem Cattiebrie
ou Jierdan por perto para complicar a confrontação, e Entreri tinha a intenção de dar um fim às suas preocupações, ou dar um fim à feiticeira.
- Quando é que devo morrer? - ele perguntou bruscamente. Sidnéia sequer vacilou.
- Quando os fados assim o decretarem, como todos nós.
- Deixe-me reformular a pergunta - Entreri continuou agarrando-a pelo braço e virando-a para que ela o encarasse. - Quando você está instruída a tentar
me matar?
- Por que outro motivo Dendibar enviaria o golem? - raciocinou Entreri. - O mago não confia em pactos, nem na honra. Ele faz o que precisa fazer para
alcançar seus objetivos da maneira mais conveniente, e depois elimina aqueles que não são mais necessários. Quando eu não tiver mais valor, devo ser morto. Uma tarefa
que você pode achar mais difícil do que imagina.
- Você é perceptivo - Sidnéia respondeu tranqüilamente. - Avaliou muito bem o caráter de Dendibar. Ele teria matado você simplesmente para evitar possíveis
complicações. Mas você não considerou meu próprio papel nisso tudo. Devido à minha insistência, Dendibar colocou a decisão do seu destino nas minhas mãos. - Ela
fez uma pausa momentânea para deixar Entreri ponderar suas palavras. Ele poderia facilmente matá-la ali mesmo, ambos sabiam disso, de modo que a franqueza de sua
tranqüila confissão de uma trama para assassiná-lo impediu quaisquer ações imediatas e o forçou a ouvi-la até o fim.
- Estou convencida de que temos em mente desfechos distintos para o nosso confronto com o grupo do anão - explicou Sidnéia - e, portanto, não tenho
a intenção de destruir um aliado atual e, talvez, futuro.
A despeito de sua natureza sempre desconfiada, Entreri entendeu perfeitamente a lógica da linha de raciocínio da feiticeira. Reconheceu muitas de suas próprias
características em Sidnéia. Implacável, ela não deixaria que nada lhe atravancasse o caminho que escolhera, mas não se desviaria da trilha por qualquer distração,
não importando quão fortes fossem seus sentimentos. Ele soltou o braço dela.
- Mas o golem viaja conosco - disse ele distraidamente, voltando-se para a noite inane. - Dendibar acredita que precisaremos da coisa para derrotar
o anão e seus companheiros?
- Meu mestre me deixa pouca escolha - respondeu Sidnéia. - Bok foi enviado para ratificar a pretensão de Dendibar sobre aquilo que deseja. Proteção
contra dificuldades inesperadas oferecidas pelos companheiros. E contra você.
Entreri avançou mais um passo em sua linha de raciocínio.
- O objeto que o mago deseja deve ser realmente poderoso - concluiu. Sidnéia assentiu.
- Tentador para uma jovem feiticeira, talvez.
- O que você está insinuando? - Sidnéia exigiu, furiosa por Entreri questionar sua lealdade a Dendibar.
O sorriso confiante do assassino fez com que ela se contorcesse, incomodada.
- O propósito do golem é proteger Dendibar de dificuldades inesperadas oferecidas... por você!
Sidnéia gaguejou, mas não conseguiu encontrar as palavras para responder. Ela não havia considerado aquela possibilidade. Tentou rejeitar pela lógica a estranha
conclusão de Entreri, mas o comentário seguinte do assassino nublou sua capacidade de pensar.
- Simplesmente para evitar possíveis complicações - ele disse sombriamente, repetindo as palavras que ela pronunciara anteriormente.
Para Sidnéia, a lógica das suposições dele foi como um tapa na cara. Como ela pôde se imaginar acima da trama maliciosa de Dendibar? A revelação lhe deu calafrios,
mas ela não tinha a intenção de procurar a resposta com Entreri bem ao seu lado.
- Temos de confiar um no outro - ela disse. - Precisamos entender que ambos nos beneficiamos com a aliança e que isso não nos custa nada.
- Mande o golem embora, então - Entreri replicou.
Um alarme disparou na mente de Sidnéia. Estaria Entreri tentando instilar nela a dúvida meramente para ganhar uma vantagem na relação entre os dois?
- Não precisamos da coisa - disse ele. -Temos a garota. E, mesmo que os companheiros não cedam às nossas exigências, podemos tomar à força o que desejamos.
- Ele devolveu o olhar ressabiado da feiticeira. - Você fala em confiança?
Sidnéia não respondeu e pôs-se mais uma vez a caminho do acampamento. Talvez ela devesse mandar Bok embora. O ato aplacaria as dúvidas de Entreri em relação
a ela, embora isso certamente desse a ele uma vantagem caso algum problema viesse a surgir. Mas mandar o golem embora poderia também responder algumas das questões
ainda mais perturbadoras que lhe pesavam agora, as questões a respeito de Dendibar.
O dia seguinte foi o mais tranqüilo - e o mais produtivo - da viagem. Sidnéia se debatia com sua confusão em relação às razões para a presença do golem. Ela
chegara à conclusão de que deveria mandar Bok embora, mesmo que por nenhuma outra razão a não ser provar para si mesma a confiança de seu mestre.
Entreri observou com interesse os sinais reveladores daquela luta, sabendo que enfraquecera o elo entre Sidnéia e Dendibar o bastante para fortalecer sua
própria posição junto à jovem feiticeira. Agora ele devia simplesmente esperar e aguardar pela próxima chance de realinhar seus companheiros.
Do mesmo modo, Cattiebrie esperava por outras oportunidades de cultivar as sementes que plantara nos pensamentos de Jierdan. Os resmungos que ela via o soldado
esconder de Entreri e Sidnéia lhe revelavam que faltava pouco para seu plano ter um início promissor.
Eles chegaram a Lua Argêntea pouco depois do zênite do dia seguinte. Se tinha ainda qualquer dúvida quanto à decisão de se juntar ao grupo da Torre das Hostes,
Entreri a descartou assim que considerou a desmesura da proeza. Com os incansáveis corcéis mágicos, eles haviam percorrido quase oitocentos quilômetros em quatro
dias. E, depois de uma viagem sem esforço - a absoluta facilidade em conduzir as montarias -, eles dificilmente se consideravam cansados quando chegaram aos contrafortes
das montanhas logo a oeste da cidade encantada.
- O rio Rauvin - Jierdan, na vanguarda do grupo, informou-lhes. - E um posto avançado.
- Vamos dar a volta - replicou Entreri.
- Não - disse Sidnéia. - São os guias para a Ponte da Lua. Eles nos deixarão passar, e a ajuda deles facilitará bastante a nossa admissão na cidade.
Entreri olhou para Bok, que vinha subindo pesadamente pela trilha atrás deles.
- Todos nós? - ele perguntou, incrédulo.
Sidnéia não esquecera o golem.
- Bok - disse ela, assim que o golem os alcançou -, você não é mais necessário. Volte para Dendibar e diga a ele que tudo está correndo bem.
Os olhos de Cattiebrie se iluminaram com a possibilidade de mandarem o monstro de volta, e Jierdan, surpreso, olhou para trás com ansiedade crescente. Observando-o,
Cattiebrie viu mais uma vantagem naquela inesperada reviravolta. Ao mandar o golem embora, Sidnéia dava mais crédito aos temores de uma aliança entre ela e o assassino,
temores que Cattiebrie implantara no soldado.
O golem não se moveu.
- Eu disse para ir embora! - exigiu Sidnéia.
Ela percebeu com o canto do olho que Entreri a observava, nada surpreso.
- Maldito seja - ela murmurou consigo mesma. Ainda assim, Bok não se moveu.
- Você é realmente perceptivo - ela rosnou para Entreri.
- Fique aqui, então - ela sibilou para o golem. - Vamos ficar na cidade durante vários dias. - Deslizou da sela para o chão e saiu pisando duro,
humilhada pelo assassino que ria dela pelas costas.
- E as montarias? - Jierdan perguntou.
- Foram criadas para nos trazer a Lua Argêntea, e só - respondeu Sidnéia e, enquanto os quatro se afastavam pela trilha, as luzes bruxuleantes que
foram outrora os cavalos desvaneceram-se num brilho azul e suave, e então sumiram completamente.
Tiveram pouco trabalho para passar pelo posto avançado, principalmente quando Sidnéia se identificou como uma representante da Torre das Hostes Arcanas. Ao
contrário da maioria das cidades nas hostis terras do norte, que levavam seus temores em relação a forasteiros à beira da paranóia, Lua Argêntea não se encontrava
enclausurada por muralhas sinistras e fileiras de soldados desconfiados. O povo daquela cidade encarava os visitantes como um engrandecimento para sua cultura, e
não como uma ameaça ao seu modo de vida.
Um dos Cavaleiros em Prata, os guardas no posto sobre o Rauvin, conduziu os quatro viajantes à entrada da Ponte da Lua, uma estrutura em arco, invisível,
que cobria o vão do rio diante do portão principal da cidade. Os estrangeiros atravessaram hesitantes, incomodados com a falta de matéria visível sob seus pés. Mas
logo se viram descendo as ruas serpeantes da cidade mágica. O ritmo de seus passos se reduziu inconscientemente, apanhado pela indolência contagiosa, a atmosfera
relaxada e contemplativa que dissipou até mesmo a intensidade focalizada de Entreri.
Torres altas e retorcidas e estruturas de formas estranhas os saudavam a cada esquina. Nenhum estilo arquitetônico único dominava Lua Argêntea, a não ser
que este fosse a liberdade de um construtor, ou construtora, de exercer sua criatividade pessoal sem medo de críticas ou desprezo. O resultado era um lugar de esplendores
sem fim, não uma cidade rica em tesouros enumeráveis - como eram Águas Profundas e Mirabar, as duas vizinhas mais poderosas -, mas incomparável em beleza estética.
Um retrocesso aos primeiros dias dos Reinos, quando os elfos, os anões e os humanos tinham espaço suficiente para perambular sob o sol e as estrelas sem medo de
cruzar a fronteira invisível de algum reino hostil. Lua Argêntea existia em franco desafio aos conquistadores e tiranos do mundo, um lugar onde ninguém tinha direitos
sobre outra pessoa.
Ali pessoas de todas as raças virtuosas caminhavam livres e sem medo pelas ruas e vielas nas noites mais escuras e, se os viajantes passassem por alguém e
não fossem saudados com uma palavra de boa acolhida, era apenas porque a pessoa estava profundamente empenhada numa contemplação meditativa.
- O grupo do anão está a menos de uma semana de Sela Longa - Sidnéia mencionou enquanto eles andavam pela cidade. - Pode ser que tenhamos de esperar
vários dias.
- Aonde vamos? - Entreri perguntou, sentindo-se um peixe fora d'água.
Os valores que obviamente tinham precedência em Lua Argêntea eram diferentes dos de qualquer cidade em que ele já estivera e eram completamente estranhos
às suas próprias concepções do mundo como um lugar de cobiça e lascívia.
- Incontáveis estalagens enchem as ruas - Sidnéia respondeu. - Hóspedes são abundantes por aqui, e são acolhidos com sinceridade.
- Então, nossa tarefa de encontrar os companheiros, assim que chegarem, há de se mostrar realmente difícil - Jierdan resmungou.
- Nem tanto - replicou Sidnéia obliquamente. - O anão vem a Lua Argêntea em busca de informações. Logo depois de chegarem, Bruenor e seus amigos irão
à Câmara dos Sábios, a mais famosa biblioteca em todo o norte.
Entreri estreitou os olhos e disse:
- E nós estaremos lá para recebê-los.

11. OS CHARCOS DOS TROLLS

Era uma região de terra enegrecida e brejos nevoentos, onde a podridão e uma sensação impressionante de perigo sujeitavam até mesmo os céus mais ensolarados.
A paisagem subia e descia continuamente e o cimo de cada elevação, galgado por qualquer viajante na esperança de avistar o fim do lugar, trazia apenas desespero
e mais das mesmas cenas imutáveis.
Os valentes Cavaleiros de Nesmé se aventuravam nos urzais toda primavera para fazer grandes queimadas e expulsar os monstros daquela terra hostil dos limites
de sua vila. A estação ia longe e várias semanas haviam se passado desde o último incêndio, mas, mesmo então, os vales estreitos e baixos se achavam nublados pela
fumaça e as ondas de calor das grandes queimadas ainda tremeluziam no ar ao redor das maiores pilhas carbonizadas de madeira.
Bruenor conduzira seus amigos para os Charcos dos Trolls como teimosa afronta aos cavaleiros e estava determinado a marchar até Lua Argêntea. Mas, bastou
apenas o primeiro dia de viagem para que até ele começasse a duvidar de sua decisão.
O lugar exigia um estado de prontidão constante, e cada bosque de árvores queimadas pelo qual passavam os obrigava a parar, pois os cepos negros e desprovidos
de folhas e os troncos caídos assumiam uma incômoda semelhança com os homúnculos dos brejos. Inúmeras vezes, o terreno esponjoso sob seus pés se transformava subitamente
num fosso profundo de lama e somente a reação rápida de um companheiro próximo impedia que um deles descobrisse a verdadeira profundidade dos fossos.
Uma brisa contínua soprava pelos urzais, alimentada pelos trechos contrastantes de solo quente e brejos frios, e trazia um odor mais fétido que o da fumaça
e da fuligem das queimadas, um cheiro enjoativamente doce, perturbadoramente familiar para Drizzt Do'Urden: o fedor dos trolls.
Aquele era o domínio dos monstros, e todos os boatos sobre os Pântanos Eternos que os companheiros tinham ouvido - e descartado com uma risada no conforto
d'0 Varapau de Pileque - não poderiam tê-los preparado para a realidade que subitamente se abateu sobre eles ao entrarem no lugar.
Bruenor estimara que seu grupo conseguiria se livrar dos urzais em cinco dias se mantivessem um ritmo forte. Naquele primeiro dia, percorreram, na verdade,
a distância necessária, mas o anão não previra os contínuos desvios que teriam de empreender para evitar os brejos. Apesar de terem marchado mais de trinta quilômetros
naquele dia, estavam a menos de dez do ponto onde haviam entrado nos urzais.
Ainda assim, não encontraram trolls nem qualquer outro tipo de monstro, e montaram acampamento naquela noite sob a falsa aparência de silencioso otimismo.
- 'Cê vai ficar de guarda? - Bruenor perguntou a Drizzt, ciente de que somente o drow possuía os sentidos aguçados de que precisariam para sobre viver
àquela noite.
Drizzt assentiu.
- A noite toda - ele respondeu, e Bruenor não discutiu. O anão sabia que nenhum deles conseguiria dormir naquela noite, estando ou não de guarda.
As trevas chegaram súbita e completamente. Bruenor, Régis e Wulfgar não enxergavam as próprias mãos se as mantivessem a uma pequena distância do rosto. Com
a escuridão, ouviram-se os sons de um terrível pesadelo. Ruídos de passos chapinhando na lama se aproximavam de todos os lados. A fumaça se misturava à névoa noturna
e se enovelava em volta dos troncos das árvores desfolhadas. O vento não aumentou, mas a intensidade de seu fedor hediondo sim, e agora transportava os gemidos dos
espíritos atormentados dos desgraçados habitantes dos urzais.
- Peguem suas coisas - Drizzt sussurrou para os amigos.
- Que é que 'cê 'tá vendo? - Bruenor perguntou baixinho.
- Nada diretamente - veio a resposta. - Mas eu os sinto ao nosso redor, como todos vocês. Não podemos deixar que nos surpreendam aqui. Devemos andar
entre eles para evitar que se juntem à nossa volta.
- Minhas pernas doem - reclamou Régis. - E os meus pés estão inchados. Eu nem sei se consigo voltar a calçar as botas!
- Ajude ele, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - O elfo 'tá certo. A gente vai te carregar se for preciso, Ronca-bucho, mas não vamos ficar aqui.
Drizzt assumiu a liderança e, às vezes, precisava segurar a mão de Bruenor, que vinha logo atrás dele - e assim acontecia pela fila toda até Wulfgar, na retaguarda
-, para evitar que seus companheiros se extraviassem.
Todos pressentiam as formas escuras que se moviam ao redor deles e farejavam a vileza dos perversos trolls. Vendo claramente o exército se reunir ao seu redor,
somente Drizzt compreendeu a precariedade de suas posições e arrastou os amigos o mais rápido que pôde.
A sorte estava ao lado deles, pois a lua saiu naquele instante, transformando a névoa numa fantasmagórica manta prateada e revelando a todos os amigos o
perigo premente. Agora, com o movimento visível de todos os lados, os amigos corriam.
Formas esguias e trôpegas surgiam das brumas ao lado deles, dedos providos de garras se estendiam para puxar-lhes as roupas à medida que passavam correndo.
Wulfgar se colocou ao lado de Drizzt, afastando os trolls com grandes golpes de Garra de Palas, enquanto o drow se concentrava em mantê-los em movimento e na direção
correta.
Durante horas eles correram e, ainda assim, os trolls avançavam. Vencendo todas as sensações de exaustão, vencendo a dor e depois o entorpecimento dos membros,
os amigos correram, sabendo que encontrariam uma morte certa e horrível caso vacilassem por apenas um segundo, o medo a sobrepujar os gritos de derrota de seus corpos.
Mesmo Régis, gordo e indolente demais, e com as pernas curtas demais para a estrada, acompanhava o passo e instigava os que estavam à sua frente a correr ainda mais.
Drizzt compreendeu a futilidade da marcha. O martelo de Wulfgar invariavelmente perdia velocidade e todos vacilavam mais e mais a cada minuto que passava.
Restavam ainda muitas horas de treva, e mesmo o amanhecer não garantiria o fim da perseguição. Quantos quilômetros conseguiriam correr? Quando é que tomariam uma
trilha que daria num brejo sem fundo, com centenas de trolls às suas costas?
Drizzt mudou de estratégia. Não mais tentando apenas fugir, ele começou a procurar uma porção de terreno defensável. Ele avistou um pequeno outeiro, com três
metros de altura talvez, e um aclive íngreme, quase escarpado, dos três lados que ele enxergava a partir daquele ângulo. Uma árvore nova e solitária crescia na face
da colina. Ele apontou o lugar para Wulfgar, que compreendeu o plano imediatamente e mudou de direção. Dois trolls apareceram para lhes bloquear o caminho, mas Wulfgar,
urrando de fúria, arremeteu para enfrentá-los. Garra de Palas desferiu uma sucessão furiosa de golpes e os outros três companheiros foram capazes de se esgueirar
por trás do bárbaro e chegar ao outeiro.
Wulfgar abandonou a luta e correu para se juntar a eles, com os teimosos trolls no seu encalço e, agora, acompanhados por uma extensa formação de sua raça
perversa.
Surpreendentemente ágil, mesmo apesar da barriga, Régis trepou pela arvore até o topo do outeiro. Para Bruenor, porém, sem a constituição física adequada
para essa atividade, a escalada foi uma luta.
- Ajude-o! - Drizzt, de costas para a árvore e as cimitarras em prontidão, gritou para Wulfgar. - Depois é sua vez! Vou segurá-los.
A respiração de Wulfgar vinha em arquejos forçados e uma linha de sangue brilhante se desenhava em sua testa. Ele trombou contra a árvore e começou a subir
atrás do anão. As raízes se vergaram sob o peso combinado dos dois e eles pareciam não fazer muito progresso. Por fim, Régis conseguiu agarrar a mão de Bruenor e
ajudá-lo a galgar o topo, e Wulfgar, com o caminho livre diante dele, fez menção de se juntar aos outros dois. Com a própria segurança assegurada, eles olharam para
trás, preocupados com o amigo.
Drizzt combatia três dos monstros e outros faziam fila atrás dos primeiros. Wulfgar pensou em saltar de volta ao chão desde sua posição a meio caminho do
topo da árvore e morrer ao lado do drow, mas Drizzt, olhando de vez em quando por sobre o ombro para verificar o progresso de seus amigos, notou a hesitação do bárbaro
e leu a mente dele.
- Vá! - ele gritou. - Essa demora não ajuda em nada!
Wulfgar precisou parar e considerar a origem da ordem. Sua confiança em Drizzt e o respeito que nutria por ele sobrepujaram o desejo instintivo de voltar
à luta e, relutante, o bárbaro se alçou para se juntar a Régis e Bruenor no pequeno platô.
Os trolls se posicionaram para franquear o drow, e as garras imundas tentavam alcançá-lo por todos os lados. Ele ouviu os amigos, todos os três, implorando
que se desprendesse da luta e se juntasse a eles, mas sabia que os monstros já tinham se esgueirado por trás para lhe interceptar a retirada.
Um sorriso se espalhou por seu rosto. A luz em seus olhos cintilou.
Ele se lançou contra o exército principal dos trolls, afastando-se do outeiro inatingível e dos amigos horrorizados.
Os três companheiros, entretanto, tiveram pouco tempo para conjeturar sobre a sorte do drow, pois logo se viram atacados por todos os lados à medida que os
trolls avançavam implacavelmente, usando as garras para chegar até eles.
Cada amigo se posicionou para defender o próprio lado. Por sorte, a ladeira do lado de trás do outeiro se revelou ainda mais íngreme - em alguns pontos, o
aclive era negativo - e os trolls não conseguiam efetivamente chegar até eles por trás.
Wulfgar era o mais mortífero, derrubava um troll da encosta do outeiro a cada golpe de seu possante martelo. Mas, antes mesmo que o bárbaro conseguisse recuperar
o fôlego, um outro havia tomado o lugar do primeiro.
Régis, golpeando com sua pequena maça, era o menos eficiente. Ele martelava com toda a força os dedos, os cotovelos e mesmo as cabeças dos trolls que chegavam
mais perto, mas não conseguia desalojar os monstros que se agarravam às suas posições. Invariavelmente, à medida que cada um deles galgava a elevação, Wulfgar ou
Bruenor tinham de abandonar a própria luta e afugentar a fera com uma pancada.
Eles sabiam que, da primeira vez que um único golpe falhasse, encontrariam um troll de pé e pronto para atacar ao lado deles no topo do outeiro.
Deu-se a catástrofe depois de apenas alguns minutos. Bruenor girou para auxiliar Régis quando mais um monstro alçou o torso por sobre o topo. O machado do
anão penetrou a criatura com extrema perícia.
Com demasiada perícia. Entrou pelo pescoço do troll e o atravessou, decapitando a criatura. Mas embora a cabeça voasse do outeiro, o corpo continuou avançando.
Régis caiu de costas, horrorizado demais para reagir.
- Wulfgar! - gritou Bruenor.
O bárbaro girou sobre os calcanhares, sem que se detivesse tempo suficiente para se admirar com o adversário decapitado, e deu com Garra de Palas no peito
da coisa, fazendo-a voar pelos ares e cair do outeiro.
Duas outras mãos se agarraram à beirada. Do lado de Wulfgar, outro troll havia rastejado mais de meio caminho por sobre o topo. E atrás deles, onde Bruenor
estivera, um terceiro se achava de pé e sobre o halfling indefeso.
Eles não sabiam por onde começar. O outeiro fora tomado. Wulfgar chegou a pensar em saltar no meio da aglomeração lá embaixo para morrer como um verdadeiro
guerreiro, matando tantos inimigos quanto pudesse, e também para não precisar assistir ao despedaçamento dos dois amigos.
Mas, de repente, o troll por sobre o halfling lutou para se equilibrar, como se algo o puxasse por trás. Uma de suas pernas se dobrou e então ele caiu de
costas na escuridão.
Drizzt Do'Urden arrancou sua espada da panturrilha da coisa quando esta passou sobre ele, depois rolou habilmente para o topo do outeiro, erguendo-se bem
ao lado do halfling surpreso. Seu manto ondeava em farrapos e linhas de sangue escureciam suas vestes em muitos pontos.
Mas ele conservava o sorriso, e a chama em seus olhos cor de lavanda revelou aos amigos que ele ainda tinha muito para dar. Passou como um raio pelo anão
e pelo bárbaro admirado e talhou o troll seguinte, despachando-o rapidamente encosta abaixo.
- Como? - perguntou Bruenor, estupefato, embora soubesse, enquanto corria novamente para Régis, que nenhuma resposta viria do drow atarefado.
A manobra audaciosa de Drizzt lá embaixo lhe dera uma vantagem sobre os seus inimigos. Os trolls tinham o dobro da sua altura e os que estavam atrás daqueles
que combatiam não faziam idéia de que ele estava a caminho. Sabia que infligira pouco dano permanente aos monstros - os ferimentos das estocadas que ele cravava
ao passar cicatrizariam rápido, e os membros que ele decepava cresceriam novamente -, mas a ousada manobra ganhou-lhe o tempo de que precisava para se livrar da
horda impetuosa e contorná-la em meio às trevas. Uma vez livre na noite escura, ele prosseguiu com cautela de volta ao outeiro, passando pelos trolls distraídos
com a mesma intensidade flamejante. Apenas sua agilidade o salvou ao chegar à base, pois ele praticamente subiu correndo a encosta do outeiro, chegando a escalar
as costas de um troll, rápido demais para os monstros surpresos o agarrarem.
A defesa do outeiro agora se consolidava. Frente ao machado cruel de Bruenor, ao martelo esmagador de Wulfgar e às cimitarras sibilantes de Drizzt, cada um
a defender um lado, os trolls que subiam não encontravam uma única rota desimpedida até o topo. Régis ficou no meio do pequeno platô, correndo ora para um lado,
ora para outro, a fim de ajudar seus amigos sempre que um troll chegava perto demais e conseguia um ponto de apoio.
Mesmo assim, os trolls avançavam, e a aglomeração lá embaixo crescia a cada minuto que passava. Os amigos sabiam perfeitamente qual seria o resultado inevitável
daquele confronto. Sua única chance residia em desfazer a aglomeração de monstros lá embaixo para abrir uma rota de fuga, mas eles estavam empenhados demais em meramente
rechaçar os novos inimigos para procurar uma solução.
Exceto Régis.
Aconteceu quase por acidente. Um braço trépido, decepado por uma das espadas de Drizzt, rastejara até o centro das defesas. Régis, completamente enojado,
golpeava-o desvairadamente com sua maça.
- Esta coisa não morre! - ele gritava enquanto o braço continuava a se contorcer, tentando agarrar a pequena arma. - Não morre! Alguém aí acerte esta coisa!
Cortem! Botem fogo!
Os outros três estavam ocupados demais para reagir aos rogos desesperados, mas a última frase de Régis, berrada em total aflição, deu-lhe uma idéia. Ele pulou
em cima do membro trépido, imobilizando-o por um instante enquanto vasculhava sua mochila em busca da isca e da pederneira.
Suas mãos trêmulas mal conseguiam golpear a pedra, mas a mais minúscula centelha cumpriu seu papel assassino. O braço do troll pegou fogo e crepitou, transformando-se
numa bola friável. Nada disposto a perder a oportunidade diante dele, Régis apanhou o membro flamejante e correu até Bruenor. Ele refreou o machado do anão, dizendo
a Bruenor para deixar o novo oponente ultrapassar a borda do cômoro.
Quando o troll se içou, Régis ateou-lhe fogo à cara. A cabeça praticamente explodiu em chamas e, gritando de agonia, o troll despencou do outeiro, levando
as labaredas mortíferas aos próprios companheiros.
Os trolls não temiam a lâmina nem o martelo. Os ferimentos infligidos por essas armas cicatrizavam rapidamente e mesmo uma cabeça decepada logo voltava a
crescer. Esses confrontos, na verdade, ajudavam a propagar a maldita espécie, pois um troll costumava regenerar um braço decepado e um braço decepado costumava
regenerar um troll inteiro! Inúmeros felinos predadores e lobos haviam se banqueteado com a carcaça de um troll apenas para descobrir que haviam provocado a própria
morte quando um novo monstro crescesse em seu ventre.
Mas mesmo os trolls tinham algo a temer. O fogo era sua ruína, e os trolls dos Pântanos Eternos o conheciam muito bem. Era impossível regenerar queimaduras
e um troll destruído pelas chamas estava definitivamente morto. Quase como se isso tivesse um propósito no desígnio dos deuses, o fogo aderia à pele ressecada de
um troll tão prontamente quanto a gravetos secos.
Os monstros do lado de Bruenor fugiram ou tombaram, formando pilhas carbonizadas. Bruenor deu uma palmada nas costas do halfling ao observar o espetáculo
gratificante, e a esperança retornou aos seus olhos cansados.
- Lenha - concluiu Régis. - Precisamos de lenha.
Bruenor tirou a mochila das costas.
- 'Cê vai ter sua lenha, Ronca-bucho - ele gargalhou, apontando para a árvore nova que subia pela encosta do outeiro. - E tem óleo na minha bolsa!
- Ele correu até Wulfgar. - A árvore, garoto! Ajude o halfling - foi sua única explicação ao se colocar diante do bárbaro.
Assim que Wulfgar deu meia-volta e viu Régis manuseando desajeitadamente um frasco de óleo, ele compreendeu sua parte no plano. Nenhum troll havia ainda retornado
àquele lado do outeiro, e o fedor de carne queimada lá embaixo era quase insuportável. Com um único tranco, o musculoso bárbaro arrancou a árvore do solo e içou-a
até Régis. Depois, retrocedeu e rendeu o anão, permitindo a Bruenor colocar seu machado em ação para rachar a lenha.
Logo, projéteis incandescentes iluminavam o céu a toda volta do outeiro, caíam em meio à horda de trolls, e centelhas mortíferas irrompiam por todos os lados.
Régis correu para a beirada do outeiro com outro frasco de óleo e o aspergiu sobre os trolls mais próximos, provocando neles um frenesi de pânico. A confusão estava
formada e, entre a debandada e a rápida disseminação das chamas, a área abaixo do outeiro foi liberada em questão de minutos, e os amigos não avistaram nenhum outro
movimento durante as poucas horas que restavam à noite, a não ser os lamentáveis espasmos da massa de membros e torsos queimados. Fascinado, Drizzt se perguntou
quanto tempo as coisas sobreviveriam em face das feridas cauterizadas que jamais regenerariam.
Mesmo com a exaustão, nenhum dos companheiros conseguiu dormir naquela noite. Com o romper da aurora - e nenhum sinal de trolls nas redondezas, apesar da
fumaça asquerosa que pairava pesadamente no ar -, Drizzt insistiu para que prosseguissem.
Eles deixaram sua fortaleza e puseram-se a caminhar porque não tinham outra escolha e porque se recusavam a desistir num ponto em que outros poderiam ter
vacilado. Eles não encontraram nada de imediato, mas sentiam os olhos dos urzais ainda sobre eles, um silêncio abafado que antecipava a catástrofe.
Mais tarde, naquela manhã, enquanto caminhavam com dificuldade pela turfa musgosa, Wulfgar estacou de repente e arremessou Garra de Palas contra um pequeno
bosque de árvores enegrecidas.
O homúnculo dos brejos, pois esse era realmente o alvo do bárbaro, cruzou os braços defensivamente à sua frente, mas o martelo de guerra mágico o atingiu
com força suficiente para rachar o monstro ao meio. Seus companheiros assustados, quase uma dezena deles, abandonaram suas posições e desapareceram nos urzais.
- Como é que você sabia? - perguntou Régis, pois estava certo de que o bárbaro mal havia olhado para o arvoredo.
Wulfgar chacoalhou a cabeça, sinceramente ignaro do que o havia impelido. Drizzt e Bruenor compreenderam e aprovaram. Estavam todos operando por instinto
agora, e a exaustão levava suas mentes para muito além do pensamento racional e consistente. Os reflexos de Wulfgar continuavam no mesmo nível de delicada precisão.
Ele poderia ter captado uma insinuação de movimento com o canto dos olhos, tão minúscula que sua mente consciente sequer o teria registrado. Mas seu instinto de
sobrevivência reagira. O anão e o drow trocaram olhares de aprovação, dessa vez já não tão surpresos com a contínua demonstração de maturidade do bárbaro como guerreiro.
O dia foi ficando insuportavelmente quente, o que aumentava o desconforto. Tudo o que queriam fazer era desabar e deixar a fadiga dominá-los.
Mas Drizzt os impelia, sempre em frente, à procura de mais um ponto defensável, apesar de duvidar que eles conseguissem encontrar outro tão adequado quanto
o último. Mesmo assim, sobrara óleo suficiente para sobreviverem a mais uma noite caso conseguissem defender uma pequena trincheira tempo suficiente para tirar máximo
proveito das chamas. Qualquer elevação, até mesmo um bosque, já bastaria.
O que eles encontraram, porém, foi outro brejo, estendendo-se até onde a vista alcançava em todas as direções, quilômetros talvez.
- Poderíamos virar para o norte - Drizzt sugeriu a Bruenor. - É possível que, a essa altura, tenhamos seguido para leste o suficiente para nos livrarmos
dos urzais e deixarmos a zona de influência de Nesmé.
- A noite vai nos pegar ao longo da margem - Bruenor observou sombriamente.
- Poderíamos atravessar - Wulfgar sugeriu.
- Trolls gostam de água? - Bruenor perguntou a Drizzt, intrigado pelas possibilidades. O drow deu de ombros.
- Vale a pena tentar, então! - proclamou Bruenor.
- Juntem alguns troncos - instruiu Drizzt. - Não percam tempo amarrando-os: podemos fazer isso na água, se for preciso.
Fazendo os troncos flutuarem como bóias ao lado deles, deslizaram para dentro das águas frias e estagnadas do imenso brejo.
Apesar de não estarem entusiasmados com a sensação de que ventosas lamacentas os aspiravam a cada passo, Drizzt e Wulfgar descobriram que era possível caminhar
em muitos pontos e impelir a jangada improvisada num ritmo constante. Régis e Bruenor, baixos demais para a água, estendiam-se de través nos troncos. Por fim, eles
começaram a se sentir mais à vontade com a quietude lúgubre do brejo e aceitaram a rota aquática como um descanso tranqüilo.
O retorno à realidade foi repentino.
A água pareceu explodir, e três formas semelhantes a trolls os atacaram numa súbita emboscada. Régis, quase adormecido sobre seu tronco, foi atirado n'água.
Wulfgar tomou uma pancada no peito antes que conseguisse preparar Garra de Palas, mas ele não era um halfling e mesmo a força considerável do monstro não foi capaz
de atirá-lo para trás. O troll que se ergueu diante do vigilante drow encontrou as duas cimitarras em ação antes que sua cabeça tivesse sequer deixado a água.
A batalha se revelou tão furiosa quanto fora abrupto seu início. Exasperados pelas contínuas exigências dos implacáveis urzais, os amigos reagiram ao assalto
com um contra-ataque de fúria inigualável. O troll do drow foi feito em pedaços antes mesmo que conseguisse ficar de pé, e Bruenor teve tempo suficiente para se
preparar e atacar o monstro que derrubara Régis.
O troll de Wulfgar, embora desferisse uma segunda pancada logo depois da primeira, foi atingido por uma seqüência feroz de golpes que jamais teria esperado.
Não sendo uma criatura inteligente, seu raciocínio e sua experiência em batalha limitados levaram-no a acreditar que o adversário não deveria ter continuado de pé
e pronto para retaliar depois de ter recebido dois golpes pesados.
Sua percepção, porém, foi pequeno consolo quando Garra de Palas fez o monstro afundar novamente.
Régis retornou à superfície, depois lançou um braço por cima do tronco. Um dos lados de seu rosto brilhava com um vergão e uma esfoladura de aparência dolorosa.
- O que eram essas coisas? - Wulfgar perguntou ao drow.
- Algum tipo de troll - concluiu Drizzt, ainda desferindo estocadas na forma imóvel que jazia diante dele sob a água.
Wulfgar e Bruenor compreenderam por que o drow continuava atacando. Subitamente apavorados, eles voltaram a golpear as formas que jaziam ao lado deles, esperando
mutilar os cadáveres o bastante para que pudessem estar a quilômetros dali antes que as coisas ressuscitassem mais uma vez.
Sob a superfície do brejo, na serena solidão das águas escuras, as pancadas metódicas do machado e do martelo perturbaram o sono de outros habitantes. Um
deles, em particular, dormira durante mais de uma década, sem ser incomodado por nenhum dos potenciais perigos que se ocultavam nas redondezas, seguro por saber-se
supremo.
Tonto e extenuado pelo golpe que recebera, como se a inesperada emboscada tivesse forçado seu espírito para além do ponto de ruptura, Régis desabou indefeso
sobre o tronco e imaginou se ainda teria condições de lutar. Ele não percebeu quando o tronco começou a derivar de leve, impelido pela brisa quente dos urzais. Dirigido
pelas raízes expostas de uma pequena fileira de árvores, o tronco flutuou livremente rumo às águas cobertas de nenúfares de uma tranqüila laguna.
Régis se espreguiçou com indolência, consciente apenas em parte da mudança no ambiente. Ele ainda ouvia indistintamente, ao fundo, a conversa de seus amigos.
Entretanto, ele amaldiçoou seu descuido e lutou contra o domínio teimoso da letargia assim que a água começou a se agitar diante dele. Uma forma púrpura e
coriácea rompeu a superfície e, então, ele viu a imensa bocarra circular com as terríveis fileiras de dentes afiados.
Régis, agora ereto, não gritou nem esboçou a menor reação, fascinado pelo espectro da própria morte que pairava diante dele.
Um verme gigante.
- Achei que a água fosse ao menos nos oferecer alguma proteção contra aquelas coisas imundas - gemeu Wulfgar, dando uma última pancada no cadáver do
troll que jazia submerso diante dele.
- Pelo menos o deslocamento é mais fácil - Bruenor interveio. - Junte os troncos e vamos em frente. Não dá prá saber quantos parentes desses três aí
estão espreitando a área.
- Não tenho o menor desejo de ficar e contar - replicou Wulfgar. Ele olhou ao redor, perplexo, e perguntou - Onde está Régis?
Foi a primeira vez em meio à confusão da luta que um deles notou que o halfling flutuara para longe. Bruenor começou a chamar por ele, mas Drizzt tapou-lhe
a boca com a mão.
- Escute - ele disse.
O anão e Wulfgar ficaram imóveis e aguçaram os ouvidos na direção para a qual o drow agora olhava atentamente. Passado um instante, eles ouviram a voz trepidante
do halfling.
- ... é mesmo uma linda jóia - eles ouviram, e concluíram imediatamente que Régis estava usando o pingente para se livrar de alguma encrenca.
A gravidade da situação ficou evidente no mesmo instante, pois Drizzt havia distinguido algo por entre o borrão de imagens que via através de uma fileira
de árvores, cerca de trinta metros a oeste.
- Um verme! - ele sussurrou para os companheiros. - Mais descomunal que qualquer coisa que eu já tenha visto! - Ele indicou a Wulfgar uma árvore alta,
depois estabeleceu um trajeto para flanquear a laguna pelo sul, tirando a estátua de ônix da mochila e chamando por Guenhwyvar. Eles precisariam de toda a ajuda
possível contra aquele monstro.
Mergulhando na água, Wulfgar chegou facilmente à fileira de árvores e começou a subir por uma delas, a cena agora clara diante dele. Bruenor o seguiu, mas
esgueirou-se por entre as árvores, afundando-se cada vez mais no brejo, e posicionou-se do outro lado.
- E tem mais - negociava Régis, alteando a voz, esperando que seus amigos o ouvissem e salvassem. Mantinha o rubi hipnótico girando na ponta da corrente.
Ele não pensou nem por um instante que o monstro primitivo fosse capaz de entendê-lo, mas a criatura parecia fascinada o bastante pelas cintilações da jóia para
se abster de devorá-lo, ao menos momentaneamente.
Na verdade, a magia do rubi era de pouca utilidade contra a criatura. Os vermes gigantes não possuíam mentes dignas de menção e os encantos não exerciam qualquer
efeito sobre eles. Mas o imenso verme, como se não estivesse realmente faminto, ficou fascinado pela dança da luz e permitiu que Régis continuasse com a brincadeira.
Drizzt se colocou em posição um pouco abaixo da fileira de árvores, o arco agora em suas mãos, enquanto Guenhwyvar sorrateiramente contornava a retaguarda
do monstro. Drizzt viu Wulfgar equilibrado no alto da árvore acima de Régis, pronto para saltar e agir. O drow não via Bruenor, mas sabia que o astucioso anão encontraria
uma maneira de se tornar eficaz.
Por fim, o verme se cansou da brincadeira com o halfling e sua jóia rodopiante. Ouviu-se uma repentina inspiração e o chiado do ar entrando em contato com
a saliva ácida.
Reconhecendo o perigo, Drizzt agiu primeiro, conjurando um globo de escuridão ao redor do tronco do halfling. Régis, a princípio, pensou que as trevas repentinas
sinalizassem o fim de sua vida, mas compreendeu tudo assim que a água gelada lhe atingiu o rosto e o envolveu quando ele rolou languidamente para longe do tronco.
O globo confundiu o monstro por um instante, mas a fera expeliu uma golfada de seu ácido mortífero assim mesmo; a substância repulsiva chiou ao atingir a
água e fez o tronco irromper em chamas.
Wulfgar saltou, lançando-se intrepidamente no ar e gritando "Tempus!", as pernas em movimento, mas tendo o braço erguido e o martelo de guerra inteiramente
sob controle e pronto para atacar.
O verme desviou a cabeça para escapar ao bárbaro, mas não reagiu rápido o bastante. Garra de Palas despedaçou-lhe o lado da cara, rasgou-lhe o couro violáceo
e arrancou-lhe o perímetro externo da boca, esmigalhando dentes e ossos. Wulfgar dera tudo de si naquele golpe poderoso e não podia imaginar a enormidade de seu
sucesso ao cair de barriga na água gelada, sob a escuridão do drow.
Enfurecido pela dor e subitamente mais ferido do que jamais estivera, o grande verme emitiu um rugido que rachou árvores e fez com que criaturas dos urzais
há quilômetros dali corressem em busca de abrigo. Um arco percorreu-lhe o corpo de quinze metros de comprimento, para cima e para baixo, num furor contínuo que lançou
grandes jatos d'água no ar.
Drizzt se revelou então, a quarta flecha já pronta na corda do arco antes que a primeira sequer tivesse atingido o alvo. O verme urrou de agonia mais uma
vez e atacou o drow, liberando uma segunda golfada de ácido.
Mas o elfo ágil desaparecera muito antes que o ácido se espalhasse com um chiado pela água. Bruenor, enquanto isso, afundara completamente na água, caminhando
às cegas em direção à fera. Quase esmagado na lama pelas revoluções frenéticas do verme, ele emergiu logo atrás de uma das voltas do corpo da criatura. A largura
do torso compacto da criatura tinha o dobro da sua altura, mas o anão não hesitou e deu com o machado no couro resistente.
Guenhwyvar, então, saltou sobre as costas do monstro e percorreu sua extensão, empoleirando-se sobre a cabeça da criatura. As garras do gato se enterraram
nos olhos do verme antes que este tivesse tempo de reagir aos novos atacantes.
Drizzt retesou o arco, mas sua aljava estava quase vazia e uma dezena de hastes emplumadas se projetava da boca e da cabeça do verme. A fera decidiu se concentrar
em Bruenor, pois o machado selvagem do anão infligia as feridas mais graves. Mas antes que o verme conseguisse se revirar sobre o anão, Wulfgar emergiu da escuridão
e arremessou seu martelo de guerra. Garra de Palas atingiu novamente a bocarra com um baque surdo, e o osso enfraquecido rachou. Ossos e gotas ácidas de sangue chiaram
ao cair no brejo e o verme rugiu de agonia e protesto uma terceira vez.
Os amigos não se compadeceram. As flechas do drow atingiram o alvo numa série contínua. As garras do gato se enterravam cada vez mais fundo na carne. O
machado do anão cortava e talhava, fazendo com que pedaços de couro flutuassem para longe. E Wulfgar batia continuamente.
O verme gigante vacilou. Não conseguia retaliar. Em meio à onda de vertiginosa escuridão que rápido se precipitou sobre ele, o monstro estava demasiado ocupado
em meramente manter seu teimoso equilíbrio. Tinha a boca escancarada e um olho havia sido arrancado. Os golpes implacáveis do anão e do bárbaro haviam atravessado
seu couro protetor, e Bruenor grunhiu com prazer selvagem quando seu machado finalmente se enterrou na carne exposta.
Um súbito espasmo do monstro fez Guenhwyvar cair no brejo e arremessou Bruenor e Wulfgar longe. Os amigos nem mesmo tentaram voltar, sabendo que a tarefa
fora completada. O verme estremeceu e se contorceu em seu último afã de vida.
Então, tombou no brejo, para dormir o sono mais longo que jamais conhecera: o sono infinito da morte.


12. A ÚLTIMA MARCHA

O globo de escuridão que se dissipava encontrou Régis mais uma vez agarrado ao seu tronco - que agora não passava de um pedaço negro de carvão - e a chacoalhar
a cabeça.
- Está além de nossas forças - ele suspirou. - Não vamos conseguir.
-Tenha fé, Ronca-bucho - consolou-o Bruenor, chapinhando pela água para se juntar ao halfling. - A gente 'tá fazendo história, prá contar aos filhos dos nossos
filhos, e prá outras pessoas contarem quando a gente morrer!
- Você quer dizer hoje, então? - cortou Régis. - Ou talvez sobreviva mos hoje para morrermos amanhã.
Bruenor riu e agarrou o tronco.
- Ainda não, meu amigo - ele tranqüilizou Régis com um sorriso audaz.
- Não até eu resolver meus assuntos!
Drizzt, ao tomar providências para recuperar suas flechas, notou o abandono com que Wulfgar se recostava ao corpo do verme. De longe, achou que o jovem bárbaro
estava simplesmente exausto, mas, ao se aproximar, começou a desconfiar de algo mais sério. Wulfgar claramente poupava uma perna, como se esta - ou talvez a região
lombar - estivesse machucada.
Assim que notou o olhar preocupado do drow, Wulfgar se endireitou estoicamente.
- Vamos andando - ele sugeriu, afastando-se na direção de Bruenor e Régis e fazendo o possível para disfarçar o fato de que coxeava.
Drizzt não o questionou. O rapaz era feito de uma substância tão inflexível quanto a tundra no meio do inverno, demasiado altruísta e orgulhoso para admitir
um ferimento quando nada se ganharia com tal admissão. Seus amigos não poderiam esperar até que ele sarasse e certamente não conseguiriam carregá-lo, e assim ele
afastava a dor com um esgar e seguia adiante penosamente.
Mas Wulfgar estava realmente ferido. Ao espadanar na água depois de cair da árvore, torcera gravemente as costas. No calor da batalha, a adrenalina correndo
nas veias, ele não sentira a dor excruciante. Mas, agora, todo passo era difícil.
Drizzt o notou com a mesma clareza com que via o desespero no rosto normalmente jovial de Régis, ou a exaustão que fazia o anão trazer baixo o machado,
apesar da fanfarronice otimista de Bruenor. Com os olhos, ele percorreu os urzais, que pareciam se estender pela eternidade em todas as direções, e perguntou-se,
pela primeira vez, se ele e seus companheiros haviam realmente encontrado um desafio além das próprias forças.
Guenhwyvar não havia se ferido na batalha - estava só um pouco abalada -, mas Drizzt, reconhecendo a amplitude limitada de movimento da pantera naquele brejo,
mandou-a de volta ao seu próprio plano. Ele teria preferido manter a circunspecta pantera naquele momento. Mas a água era profunda demais para o gato, e a única
maneira de Guenhwyvar continuar em movimento teria sido saltando de uma árvore a outra. Drizzt sabia que não daria certo. Ele e os amigos teriam de continuar, sozinhos.
Recorrendo ao próprio âmago para fortalecer sua determinação, os companheiros completaram o serviço, o drow a inspecionar a cabeça do verme para recuperar
qualquer uma das vinte flechas que havia disparado, sabendo muito bem que provavelmente precisaria delas de novo antes de saírem dos urzais, enquanto os outros três
recuperavam o resto dos troncos e das provisões.
Pouco depois, os amigos flutuavam pelo brejo com o mínimo tolerável de esforço físico, lutando a cada minuto para manter suas mentes alertas ao perigoso ambiente.
Com o calor do dia, porém - o mais quente até então -, e o embalo suave dos troncos na água tranqüila, todos, à exceção de Drizzt, pegaram no sono, um a um.
O drow manteve a jangada improvisada em movimento e permaneceu vigilante. Eles não poderiam se permitir o menor atraso ou lapso. Por sorte, o alagado se abriu
depois da laguna e Drizzt teve de lidar com poucas obstruções. Depois de algum tempo, o brejo se tornou um grande borrão para ele, e seus olhos cansados registravam
poucos detalhes, só os contornos gerais e os movimentos inesperados nos juncos.
Mas ele era um guerreiro, com reflexos rápidos e excepcional disciplina. Os trolls aquáticos atacaram novamente e o minúsculo lampejo de consciência que restava
a Drizzt Do'Urden o convocou de volta à realidade a tempo de negar aos monstros a vantagem da surpresa.
Assim que ele os chamou, Wulfgar e Bruenor também despertaram, sobressaltados, as armas nas mãos. Apenas dois trolls se ergueram para enfrentá-los dessa vez,
e os três os despacharam em poucos e breves segundos.
Régis dormiu durante todo o incidente.
E veio o frescor da noite, dispersando misericordiosamente as ondas de calor. Bruenor tomou a decisão de seguir em frente, sempre com dois deles de pé, empurrando,
enquanto os outros dois descansavam.
- Régis não consegue empurrar - ponderou Drizzt. - Ele é baixo demais para o brejo.
- Então, deixe-o sentado e de guarda enquanto eu empurro - ofereceu Wulfgar estoicamente. - Não preciso de ajuda.
- Então 'cês dois ficam com o primeiro turno - disse Bruenor. - Ronca-bucho dormiu o dia inteiro. Ele deve dar pro gasto durante uma ou duas horas!
Drizzt subiu aos troncos pela primeira vez naquele dia e repousou a cabeça sobre a mochila. Contudo, não fechou os olhos. O plano de Bruenor de trabalhar
em turnos parecia razoável, mas pouco prático. Na noite escura, somente ele seria capaz de guiá-los e de se manter alerta à aproximação do perigo. Várias vezes,
enquanto Wulfgar e Régis cumpriam seu turno, o drow ergueu a cabeça e deu ao halfling algumas dicas sobre os arredores e conselhos quanto ao melhor rumo a se tomar.
Seria mais uma noite sem sono para Drizzt. Ele jurou descansar pela manhã, mas, ao romper da aurora, descobriu que as árvores e os juncos novamente se debruçavam
sobre eles. A própria ansiedade dos urzais os encurralava, como se um único ser consciente os vigiasse e tramasse contra sua passagem.
A vasta extensão de água se mostrou, na verdade, uma vantagem para os companheiros. O deslocamento sobre a superfície vítrea era mais fácil que caminhar e,
apesar dos perigos que os espreitavam, nada encontraram de hostil depois da segunda confusão com os trolls aquáticos. Quando o caminho que seguiam finalmente retornou
à terra enegrecida, após dias e noites de deriva, eles desconfiaram que poderiam ter percorrido a maior parte da distância até o outro lado dos Pântanos Eternos.
Assim que Régis subiu na árvore mais alta que foram capazes de encontrar - pois o halfling era o único leve o bastante para chegar aos galhos mais elevados (principalmente
desde que a viagem praticamente dissipara a obesidade de seu ventre) -, suas esperanças se confirmaram. Bem longe, no horizonte oriental, mas não mais do que a um
ou dois dias de viagem, Régis viu árvores: não os pequenos bosques de bétulas ou as árvores pantaneiras cobertas de musgo dos urzais, mas uma floresta densa de carvalhos
e olmos.
Eles seguiram em frente com um vigor renovado nos passos, apesar da exaustão. Caminhavam em terra firme mais uma vez e sabiam que teriam de acampar novamente
com as hordas de trolls errantes a espreitá-los, mas, agora, também sabiam que a provação dos Pântanos Eternos estava quase no fim. Não tinham a intenção de deixar
que os abomináveis habitantes do lugar viessem a derrotá-los naquela última etapa da viagem.
- Devíamos interromper nossa jornada por hoje - sugeriu Drizzt, embora o sol estivesse a mais de uma hora do horizonte ocidental. O drow já percebera
a presença que se congregava, pois os trolls despertavam de seu des- canso diurno e captavam os estranhos odores dos visitantes. - Devemos escolher cuidadosamente
o local do acampamento. Os urzais ainda não nos libertaram de seu domínio.
A gente vai perder uma hora ou mais - declarou Bruenor, mais para revelar o lado negativo do plano do que para discutir. O anão se lembrava muito
bem da terrível batalha no outeiro e não tinha o menor desejo de repetir aquele esforço colossal.
- Recuperaremos o tempo perdido amanhã - ponderou Drizzt. - Nossa necessidade no momento é sobreviver.
Wulfgar concordava inteiramente.
- O cheiro dessas feras hediondas fica mais forte a cada passo - disse ele -, de todos os lados. Não podemos fugir. Então, vamos lutar.
- Mas nos nossos termos - acrescentou Drizzt.
- Lá - sugeriu Régis, apontando um cômoro densamente coberto de vegetação à esquerda deles.
- É exposto demais - disse Bruenor. - Os trolls vão escalar aquilo com a mesma facilidade que a gente, e serão muitos de uma vez só para que a gente
impeça eles!
- Não enquanto estiver queimando - rebateu Régis, com um sorriso furtivo, e seus companheiros acabaram concordando com a lógica simples.
Eles passaram o restante das horas de luz preparando suas defesas. Wulfgar e Bruenor trouxeram tantos galhos secos quanto conseguiram encontrar, dispondo-os
em linhas estratégicas para estender o diâmetro da área-alvo, enquanto Régis limpava um aceiro no topo do cômoro e Drizzt mantinha cautelosa vigilância. O plano
de defesa era simples: deixar que os trolls chegassem até eles e então atear fogo a todo o cômoro fora dos limites do acampamento.
Somente Drizzt reconheceu o ponto fraco do plano, apesar de não ter nada melhor a oferecer. Ele combatera trolls antes dos urzais e compreendia a teimosia
dos monstros perversos. Quando as chamas da emboscada finalmente se extinguissem - muito antes do raiar do novo dia -, ele e seus amigos ficariam indefesos contra
os trolls remanescentes. Sua única esperança era a carnificina das chamas dissuadir outros inimigos.
Wulfgar e Bruenor teriam preferido fazer algo mais, pois as lembranças do outeiro ainda eram demasiadamente vividas para que se satisfizessem com qualquer
tipo de defesa erguida contra os urzais. Mas o crepúsculo chegou, trazendo consigo olhos ávidos que se fixavam neles. Juntaram-se a Régis e a Drizzt no acampamento
no topo do cômoro e agacharam-se em ansiosa espera.
Passou-se uma hora - que, aos amigos, pareceram dez - e a noite ficou mais escura.
- Onde estão eles? - indagou Bruenor, batendo o machado nervosamente na palma da mão, traindo uma impaciência atípica no veterano combatente.
- Por que eles não atacam? - concordou Régis, e sua ansiedade beirava o pânico.
- Tenha paciência e considere-se feliz - ofereceu Drizzt. - Quanto mais tempo se passar antes da batalha, melhores serão nossas chances de ver o amanhecer.
Pode ser que ainda não nos tenham encontrado.
- 'Tá mais com jeito de estarem se reunindo prá atacar a gente todos ao mesmo tempo - disse Bruenor sombriamente.
- Isso é bom - disse Wulfgar, confortavelmente agachado e a perscrutar a obscuridade. - Que o fogo prove o quanto puder dessa raça imunda!
Drizzt notou o efeito tranqüilizante que a força e a determinação do homenzarrão tinham sobre Régis e Bruenor. O machado do anão interrompeu seu salutar nervoso
e veio descansar serenamente ao lado de Bruenor, preparado para a tarefa por vir. Mesmo Régis, o mais relutante dos guerreiros, ergueu sua pequena maça com um rosnado,
os nós dos dedos a empalidecer com a pressão.
Mais uma hora se passou.
A demora não relaxou totalmente a guarda dos companheiros. Eles sabiam que o perigo agora estava muito próximo: sentiam o fedor que se concentrava nas brumas
e nas trevas além do alcance da visão.
- Acenda as tochas - Drizzt disse a Régis.
- Vamos atrair todos os monstros a quilômetros daqui prá cima da gente! - argumentou Bruenor.
- Eles já nos encontraram - respondeu Drizzt, apontando a base do cômoro, apesar de os trolls que ele via a se mover nas trevas estarem além da limitada
visão noturna de seus amigos. - A visão das tochas pode mantê-los longe e nos ganhar algum tempo.
Enquanto ele falava, entretanto, o primeiro troll escalou o cômoro. Bruenor e Wulfgar aguardaram, agachados, até que o monstro estivesse praticamente em cima
deles, então saltaram com fúria inesperada, machado e martelo de guerra à frente, numa rajada brutal de golpes bem colocados. O monstro caiu na mesma hora.
Régis acendera uma das tochas. Ele a jogou para Wulfgar e o bárbaro ateou fogo ao corpo caído do troll. Dois outros trolls que haviam chegado ao pé do cômoro
correram de volta à bruma ao ver as odiadas chamas.
- Ah, foi muito cedo! - gemeu Bruenor. - A gente não vai pegar um que seja com as tochas bem à vista!
- Se as tochas os mantiverem longe, então as chamas terão nos servido muito bem - insistiu Drizzt, apesar de saber que não deveria esperar por esse
acontecimento.
De repente, como se os próprios urzais tivessem cuspido sua peçonha, um imenso exército de trolls cobriu toda a base do cômoro. Eles avançavam de modo hesitante,
nada entusiasmados com a presença do fogo. Mas avançavam inexoravelmente, subindo de rastos a colina, salivando de desejo.
- Paciência - Drizzt disse aos companheiros, sentindo a inquietação deles. - Mantenham-nos atrás do aceiro, mas deixem tantos quantos quiserem penetrar
os círculos de acendalha.
Wulfgar correu até a orla do círculo, brandindo sua tocha ameaçadoramente.
Bruenor se posicionou mais atrás, com os dois últimos frascos de óleo nas mãos, trapos embebidos em óleo a pender das biqueiras, e um sorriso selvagem no
rosto.
- A estação 'tá um pouco verde pr'uma queimada - ele disse a Drizzt com uma piscadela. - Pode ser que o fogo precise de uma mãozinha prá começar!
Os trolls se apinharam sobre o cômoro em volta deles; a horda salivante avançava com determinação e as fileiras se engrossavam a cada passo.
Drizzt agiu primeiro. Com a tocha na mão, ele correu até a acendalha e a incendiou. Wulfgar e Régis juntaram-se a ele logo atrás, interpondo o maior número
possível de focos de fogo entre eles e os trolls que avançavam. Bruenor atirou sua tocha sobre as primeiras fileiras de monstros, esperando surpreendê-los em meio
a dois incêndios, depois arremessou seus frascos de óleo nos grupos de maior concentração.
As chamas saltaram no céu noturno, iluminando a área próxima, mas aumentaram a escuridão além de sua zona de influência. Amontoados como estavam, os trolls
não conseguiam facilmente virar e fugir, e o fogo, como se o compreendesse, precipitava-se sobre eles metodicamente.
Quando um deles começou a arder, sua dança frenética espalhou ainda mais a luz pelos limites do cômoro.
Por todos os vastos urzais, as criaturas interromperam suas atividades noturnas e repararam na crescente coluna de chamas e nos gritos agudos dos trolls agonizantes
transportados pelo vento.
Acuados no topo do cômoro, os companheiros se viram praticamente sobrepujados pelo grande calor. Mas o fogo definhou rapidamente com seu banquete de volátil
carne de troll e começou a diminuir, deixando um fedor revoltante no ar e mais uma cicatriz enegrecida de carnificina nos Pântanos Eternos.
Os companheiros prepararam mais tochas para a fuga. Restavam muitos trolls para lutar, mesmo depois do fogo, e os amigos não tinham a menor esperança de
resistir consumido o combustível das chamas. Devido à insistência de Drizzt, eles aguardaram pela primeira rota de fuga livre na encosta oriental do cômoro e, quando
esta se abriu, arremeteram noite adentro, atravessando intempestivamente os grupos iniciais de trolls desavisados com um assalto inesperado que dispersou os monstros
e deixou vários em chamas.
Noite adentro eles correram, atravessando às cegas a lama e a sarça, esperando que a pura sorte evitasse que fossem engolidos por algum brejo sem fundo. Tão
completa fora a surpresa da emboscada no cômoro que, durante vários minutos, não ouviram sinais de perseguição.
Mas os urzais não levaram muito tempo para responder. Gemidos e gritos agudos logo ecoavam ao redor deles.
Drizzt assumiu a liderança. Confiando em seus instintos tanto quanto na visão, ele desviava seus amigos para a esquerda e para a direita, seguindo pelas áreas
de menor resistência aparente, embora mantivesse o curso rumo ao leste. Esperando tirar proveito do único medo dos monstros, iam ateando fogo a qualquer coisa que
queimasse.
Não encontraram nada diretamente ao longo da noite, mas os gemidos e os passos surdos logo atrás deles não cederam. Logo começaram a desconfiar que uma inteligência
coletiva agia contra eles, pois, embora estivessem obviamente superando os trolls que os cercavam por trás e pelos lados, mais monstros estavam sempre aguardando
para se juntar à perseguição. Algo maligno impregnava a região, como se os próprios Pântanos Eternos fossem os verdadeiros inimigos. Os trolls estavam por toda a
parte, e esse era o perigo imediato, mas mesmo que todos os trolls e outros habitantes dos urzais fossem mortos ou repelidos, os amigos desconfiavam que o lugar
continuaria desagradável.
Rompeu o dia, mas isso não trouxe alívio.
- A gente irritou os próprios urzais! -Bruenor gritou ao perceber que desta vez a perseguição não terminaria com tanta facilidade. - A gente não vai ter descanso
até deixar prá trás este lugar imundo!
Seguiram em frente, vendo, enquanto ziguezagueavam pelo lugar, as formas esguias e trôpegas que se atiravam sobre eles e aquelas que corriam lado a lado ou
logo atrás, assustadoramente visíveis e à espera apenas de que alguém tropeçasse. Brumas densas se fecharam sobre eles, dificultando-lhes a orientação, mais uma
prova, para seus temores, de que os próprios urzais haviam se erguido contra eles.
Além de todo o pensamento racional, além de toda a esperança, eles continuaram, forçando a si próprios a ultrapassar seus limites físicos e emocionais por
falta de alternativas.
Quase inconsciente de suas ações, Régis tropeçou e caiu. Sua tocha rolou para longe, mas ele nem reparou. Ele sequer era capaz de imaginar como se levantar,
ou mesmo conceber que havia caído! Bocas famintas precipitaram-se sobre ele, um banquete certo.
O monstro esfaimado foi frustrado, porém, quando Wulfgar passou e tomou o halfling em seus braços. O imenso bárbaro chocou-se com o troll, derrubando-o, mas
manteve o equilíbrio e seguiu em frente.
Drizzt agora abandonava todas as táticas sutis, compreendendo a situação que se desenvolvia rapidamente atrás dele. Era obrigado, inúmeras vezes, a diminuir
o passo para ajudar Bruenor, que tropeçava, e ele duvidava da capacidade de Wulfgar de seguir em frente carregando o halfling.
O bárbaro exausto obviamente não cogitaria erguer Garra de Palas para se defender. Sua única chance era correr direto até a fronteira. Um brejo extenso os
derrotaria, uma ravina de buxos os aprisionaria e, mesmo que nenhuma barreira natural lhes bloqueasse o caminho, eram poucas as esperanças de escapar aos trolls
por muito mais tempo. Drizzt temia a difícil decisão que ele via próxima: salvar a si mesmo, pois somente ele parecia ter alguma possibilidade de escapar, ou permanecer
ao lado de seus amigos condenados numa batalha que não conseguiriam vencer.
Eles seguiram em frente e fizeram progresso consistente durante mais uma hora, mas o próprio tempo começou a afetá-los. Drizzt ouvia Bruenor murmurando atrás
dele, perdido em algum delírio de sua infância no Salão de Mitral. Wulfgar, com o halfling inconsciente, seguia logo atrás, recitando uma oração para um de seus
deuses, usando o ritmo dos cânticos para manter os pés numa cadência constante.
Então Bruenor caiu, derrubado por um troll que havia se aproximado inconteste.
A decisão fatal se revelou facilmente para Drizzt. Ele fez a volta, as cimitarras prontas. Não conseguiria carregar o anão robusto nem derrotar a horda de
trolls que se aproximava.
- E assim termina a nossa história, Bruenor Martelo de Batalha! - ele gritou. - Na batalha, como havia de ser!
Wulfgar, tonto e ofegante, não escolheu conscientemente sua ação seguinte. Foi simplesmente uma reação à cena diante dele, uma manobra perpetrada pelos instintos
teimosos de um homem que se recusava a ceder. Ele cambaleou até o anão caído, que a essa altura havia se erguido penosamente até se apoiar nas mãos e nos joelhos,
e o apanhou com o braço livre. Dois trolls os encurralavam.
Drizzt Do'Urden estava por perto, e o ato heróico do jovem bárbaro inspirou o drow. Chamas fervilhantes dançaram novamente nos seus olhos cor de lavanda,
e as espadas rodopiaram em sua própria dança de morte.
Os dois trolls esticaram os braços para usar as unhas em suas vítimas indefesas mas, depois de um único passe rápido da parte de Drizzt, não restavam braços
aos monstros com os quais agarrar.
- Continue correndo! - Drizzt gritou, protegendo a retaguarda do grupo e estimulando Wulfgar a seguir em frente com uma torrente constante de palavras
animadoras. Toda a fadiga abandonou o drow naquela última explosão de ânsia guerreira. Ele saltitava e lançava desafios aos trolls. Qualquer um que se aproximasse
demais encontrava a mordacidade de suas espadas.
Grunhindo a cada passo doloroso, os olhos a arder por causa do próprio suor, Wulfgar arremeteu adiante, às cegas. Não pensava em quanto tempo conseguiria
manter aquele ritmo com o peso que carregava. Não pensava na morte certa e horrível que o seguia de perto por todos os lados e provavelmente havia também lhe interceptado
a rota de fuga. Não pensava na dor terrível em suas costas machucadas nem na nova ardência que sentia agudamente no jarrete. Concentrava-se apenas em colocar uma
das botas pesadas diante da outra.
Eles pisotearam algumas sarças, desceram uma elevação e contornaram outra. Seus corações se animaram e esmoreceram, ao mesmo tempo pois diante deles assomava
a floresta imaculada que Régis avistara, o fim dos Pântanos Eternos. Mas, entre eles e as matas, aguardava uma densa linha de trolls, com três fileiras de largura.
O domínio dos Pântanos Eternos não era fácil de romper.
- Continue - Drizzt disse ao pé do ouvido de Wulfgar, num murmúrio baixo, como se temesse que os urzais pudessem ouvi-lo. - Ainda me resta um pequeno
truque.
Wulfgar viu a linha diante dele mas, mesmo em seu estado atual, a confiança que tinha em Drizzt sobrepujou todas as objeções de seu bom senso. Acomodando
Bruenor e Régis numa posição mais confortável, abaixou a cabeça e urrou para as feras, gritando com a fúria induzida pelo frenesi.
Quando ele já quase os tinha alcançado, com Drizzt alguns passos atrás - os trolls a salivar, acotovelados para refrear-lhe o ímpeto -, o drow deu sua última
cartada.
Chamas mágicas brotaram do bárbaro. Elas não eram capazes de queimar nem Wulfgar nem os trolls mas, para os monstros, o espectro de um selvagem descomunal
e envolto em chamas abatendo-se sobre eles levou o pânico aos seus corações normalmente destemidos.
Drizzt cronometrou o encanto com precisão, permitindo aos trolls apenas uma fração de segundo para reagir ao imponente adversário. Como as águas diante da
proa de um navio de grande calado, eles se separaram, e Wulfgar, quase perdendo o equilíbrio devido às suas expectativas de impacto, passou aos trambolhões, com
Drizzt a saltitar junto aos seus calcanhares.
Quando os trolls se reagruparam para a perseguição, as vítimas já escalavam a última elevação que levava para fora dos Pântanos Eternos e para dentro da
floresta - um bosque sob o olhar protetor da Senhora Alustriel e dos garbosos Cavaleiros em Prata.
Drizzt voltou-se sob os ramos da primeira árvore, atento aos sinais de perseguição. Uma neblina densa retornava aos urzais num movimento rodopiante, como
se aquela região abominável tivesse batido a porta logo que passaram. Nenhum troll apareceu.
O drow se afundou contra a árvore, demasiado exausto para sorrir.

13. Lá no Céu tem Mil Estrelas

Wulfgar depositou Régis e Bruenor sobre um leito de musgos numa pequena clareira um pouco além da orla da floresta e tombou por causa da dor. Drizzt o alcançou
alguns minutos depois.
- Devemos acampar aqui - foi dizendo o drow -, mas eu preferia que nos afastássemos mais... - Ele se deteve ao ver o jovem amigo a se contorcer no
solo, levando as mãos à perna ferida, quase sobrepujado pela dor. Drizzt correu para o lado dele a fim de examinar-lhe o joelho, e seus olhos se arregalaram de espanto
e asco.
A mão de um troll, provavelmente de um dos que ele retalhara quando Wulfgar resgatou Bruenor, havia se agarrado ao bárbaro enquanto ele corria, encontrando
um nicho em seu jarrete. Um dedo provido de garra já tinha se enterrado profundamente na perna e dois outros abriam caminho naquele exato momento.
- Não olhe - Drizzt aconselhou Wulfgar. Ele procurou pelo isqueiro em sua mochila e acendeu um graveto, depois o usou para espetar a mão perversa.
Assim que a coisa começou a fumegar e a se contorcer, Drizzt a retirou da perna e a atirou ao chão. A coisa tentou fugir, mas Drizzt saltou sobre ela, espetando-a
com uma de suas cimitarras e incendiando-a completamente com o graveto incandescente.
Ele voltou a olhar para Wulfgar, admirado com a absoluta determinação que permitira ao bárbaro prosseguir com um ferimento tão feio. Mas, então, a fuga chegara
ao fim, e Wulfgar já sucumbira à dor e à exaustão. Ele jazia escarrapachado e inconsciente no chão, ao lado de Bruenor e Régis.
- Durmam bem - Drizzt disse aos três, baixinho. - Vocês merecem - Verificou cada um deles para se certificar de que não estavam gravemente feri dos.
Então, satisfeito com o fato de que todos se recuperariam, ele deu início à sua guarda vigilante.
No entanto, até mesmo o valente drow havia ultrapassado os limites de seu vigor durante a marcha através dos Pântanos Eternos, e não demorou muito para
que ele também cabeceasse de sono e se juntasse aos amigos.
Ao fim da manhã seguinte, foram despertados pelos resmungos de Bruenor.
- 'Cê esqueceu meu machado! - o anão gritava, irritado. - Não posso cortar os malditos trolls sem o meu machado!
Drizzt se espreguiçou confortavelmente, um tanto quanto revigorado, mas ainda longe de estar recuperado.
- Eu disse a você que pegasse o machado - ele disse a Wulfgar, que também se livrava do sono profundo.
- Eu fui bem claro - Drizzt ralhou, de brincadeira. - Pegue o machado e deixe o anão ingrato.
- Foi o nariz que me confundiu - replicou Wulfgar. - Mais parecido com a cabeça de um machado do que qualquer outro nariz que eu já tenha visto!
Bruenor inconscientemente olhou para a ponta de seu narigão.
- Ora! - ele resmungou. - Vou arranjar uma clava! - e, com passos pesados, sumiu floresta adentro.
- Um pouco de silêncio, por favor! - disse Régis, ríspido, quando o último vestígio de seus sonhos agradáveis esvoaçou para longe. Aborrecido por ser
despertado tão cedo, ele rolou de lado e cobriu a cabeça com o manto.
Poderiam ter chegado a Lua Argêntea naquele mesmo dia, mas uma única noite de descanso não apagaria a fadiga dos dias que haviam passado nos Pântanos Eternos
e numa estrada difícil antes disso. Wulfgar, por exemplo, com a perna e as costas machucadas, era obrigado a usar uma bengala, e o sono que Drizzt conciliara na
noite anterior fora o primeiro em quase uma semana. Ao contrário dos urzais, aquela floresta parecia bastante incorrupta. E, embora soubessem que ainda estavam nos
ermos, sentiram-se suficientemente seguros para alongar a estrada até a cidade e desfrutar, pela primeira vez desde que haviam deixado Dez-Burgos, de uma caminhada
tranqüila.
Eles deixaram a floresta no zênite do dia seguinte e cobriram as últimas milhas até Lua Argêntea. Antes do pôr do sol, venceram a última subida e, lá do alto,
avistaram o Rio Rauvin e os incontáveis torreões da cidade encantada.
Todos eles experimentaram uma sensação de esperança e alívio ao vislumbrarem aquele cenário magnífico, mas ninguém a sentiu mais intensamente que Drizzt Do'Urden.
Desde que haviam se sentado pela primeira vez para planejar a aventura, o drow alimentara a esperança de que viessem a passar por Lua Argêntea, apesar de nada fazer
para influenciar a decisão de Bruenor na escolha do trajeto.
Drizzt ouvira falar de Lua Argêntea depois de sua chegada a Dez-Burgos e, não fosse pelo fato de que encontrara um certo grau de tolerância na rude comunidade
de fronteira, ele teria retraçado seus passos imediatamente até o lugar. Famoso por aceitar todos os que ali chegassem em busca de conhecimento, não importava a
raça, o povo de Lua Argêntea oferecia ao elfo negro renegado uma verdadeira oportunidade de encontrar um lar. Inúmeras vezes ele havia considerado viajar até o lugar,
mas algo dentro dele, talvez o medo da falsa esperança e de expectativas não cumpridas, manteve-o na segurança do Vale do Vento Gélido. Portanto, quando a decisão
fora tomada em Sela Longa de que Lua Argêntea seria seu próximo destino, Drizzt se surpreendeu encarando diretamente a utopia que nunca ousara sonhar. Observando
agora, lá do alto, sua única esperança de verdadeira aceitação na superfície do mundo, ele corajosamente afastou suas apreensões.
- A Ponte da Lua - comentou Bruenor quando uma carroça lá embaixo cruzou o Rauvin, aparentemente flutuando em pleno ar. Bruenor ouvira falar da estrutura
invisível quando menino, mas nunca a tinha visto pessoalmente.
Wulfgar e Régis assistiram ao espetáculo da carroça voadora com absoluto assombro. O bárbaro sobrepujara muitos de seus medos em relação à magia durante a
estada em Sela Longa e estava verdadeiramente ansioso por explorar aquela cidade lendária. Régis ali estivera uma vez anteriormente, mas sua familiaridade com o
lugar em nada ajudava a diminuir seu alvoroço.
Apesar do cansaço, eles se aproximaram ansiosamente do posto avançado sobre o Rauvin, o mesmo posto pelo qual o grupo de Entreri passara quatro dias antes,
com os mesmos guardas que haviam dado permissão ao grupo maligno para entrar na cidade.
- Saudações - ofereceu Bruenor, num tom de voz que poderia ser considerado jovial para o austero anão. - E saibam que a visão da sua bela cidade trouxe
nova vida pro meu coração cansado.
Os guardas mal lhe deram ouvidos, concentrados no drow, que havia recolhido o capuz. Pareciam curiosos, pois nunca tinham visto realmente um elfo negro, mas
não aparentaram muita surpresa com a chegada de Drizzt.
- Vocês podem nos escoltar até a Ponte da Lua agora? - Régis perguntou depois de um período de silêncio que foi se tornando cada vez mais incômodo.
- Vocês não fazem idéia de como estamos ansiosos para ver Lua Argêntea. Ouvimos falar tanto da cidade!
Drizzt desconfiou do que estava por vir. Um nó colérico se formou em sua garganta.
- Vão embora - o guarda disse tranqüilamente. - Vocês não podem passar.
O rosto de Bruenor ficou vermelho de raiva, mas Régis interrompeu-lhe a explosão.
- Certamente nada fizemos para motivar um julgamento tão severo o halfling protestou com toda a calma. - Somos simples viajantes, não procuramos
encrenca. - A mão dele se moveu em direção ao paletó e ao rubi hipnótico, mas o cenho franzido de Drizzt pôs fim ao seu plano.
- Sua reputação parece ter mais valor que suas ações - Wulfgar observou aos guardas.
- Sinto muito - um deles replicou -, mas tenho meus deveres e costumo cumpri-los.
- Nós ou o drow? - indagou Bruenor.
- O drow - respondeu o guarda. - O resto de vocês pode ir à cidade, mas o drow não pode passar!
Drizzt sentiu as muralhas da esperança desmoronando ao seu redor. As mãos, largadas ao lado do corpo, tremiam. Ele nunca tinha experimentado tamanha dor,
pois jamais chegara a um lugar sem a expectativa da rejeição. Mesmo assim, ele conseguiu sublimar sua raiva imediata e lembrar a si mesmo de que, para todos os efeitos,
esta era a demanda de Bruenor, não a sua.
- Canalhas! - Bruenor gritou. - O elfo vale uns dez de vocês, mais até! Devo a ele minha vida umas cem vezes e 'cês acham que podem dizer que ele não
é bom o bastante prá sua maldita cidade! Quantos trolls cês já mataram com as próprias espadas?
- Acalme-se, meu amigo - Drizzt o interrompeu, completamente controlado. - Já esperava por isto. Eles não conhecem Drizzt Do'Urden. Apenas a reputação
de meu povo. E a culpa não é deles. Entrem vocês, então. Aguardarei seu retorno.
- Não! - Bruenor declarou num tom de voz que não admitiria discussões. - Se você não pode entrar, então nenhum de nós entra!
- Pense no seu objetivo, seu anão teimoso - ralhou Drizzt. - A Câmara dos Sábios fica na cidade. A nossa única esperança, quem sabe.
- Ora! - desdenhou Bruenor. - Pro Abismo com esta cidade amaldiçoada e todos os que nela vivem! Sundabar fica a menos de uma semana de caminhada. Helm,
o amigo dos anões, vai ser mais hospitaleiro, ou então sou um gnomo de barba!
- Você devia entrar - disse Wulfgar. - Não deixe sua raiva vencer nosso propósito. Mas eu fico com Drizzt. Aonde ele não puder ir, Wulfgar, filho de
Beornegar recusa-se a ir!
Mas os passos ruidosos e determinados das pernas atarracadas de Bruenor já o levavam estrada afora para longe da cidade. Régis se virou para °s outros, deu
de ombros e seguiu atrás do anão, tão leal ao drow quanto qualquer um deles.
- Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum
monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - Acampem onde quiserem e sem medo - ofereceu o guarda, quase pedindo desculpas. - Os Cavaleiros
em Prata não incomodarão vocês nem deixarão nenhum monstro se aproximar dos limites de Lua Argêntea.
Drizzt assentiu pois, embora a dor lancinante da rejeição em nada tivesse diminuído, entendeu que o guarda nada podia fazer para alterar aquela situação lamentável.
Ele se afastou lentamente, e as questões perturbadoras que evitara durante tantos anos já começavam a oprimi-lo.
Wulfgar não perdoava com tanta facilidade.
- Vocês o trataram com injustiça - ele disse ao guarda quando Drizzt se afastou. - Ele nunca ergueu a espada contra quem não o tivesse merecido, e
este mundo, o seu e o meu, é um pouco melhor por ter Drizzt Do'Urden!
O guarda desviou os olhos, incapaz de responder à justificada repreensão.
- E eu questiono a honra de alguém que obedece a ordens injustas - declarou Wulfgar.
O guarda fulminou o bárbaro com um olhar.
- Não se questionam as razões da Senhora - ele respondeu, a mão sobre o punho da espada. Ele compreendia a fúria dos viajantes, mas não aceitaria críticas
à Grã-Senhora Alustriel, sua bem-amada líder. - As ordens dela são justas e julgá-las está além da minha capacidade, ou da sua! - vociferou ele.
Wulfgar não legitimou a ameaça com qualquer demonstração de preocupação. Ele deu meia-volta e partiu estrada afora atrás dos amigos.
Bruenor propositalmente situou o acampamento a apenas uma centena de metros descendo o Rauvin, bem à vista do posto avançado. Ele percebera o mal-estar do
guarda ao rechaçá-los e queria tirar proveito máximo daquele sentimento de culpa.
- Sundabar vai apontar o caminho prá gente - repetia ele, depois da ceia, tentando convencer a si mesmo tanto quanto aos demais de que o fiasco em
Lua Argêntea não prejudicaria a demanda. - E depois de Sundabar fica a Cidadela Adbar. Se alguém em todos os Reinos sabe algo sobre o Salão de Mitral é Harbromm
e os anões de Adbar!
- E longe - comentou Régis. - Pode ser que o verão acabe antes que cheguemos à fortaleza do Rei Harbromm.
- Sundabar - Bruenor reiterou teimosamente. - E Adbar, se for preciso!
Os dois foram e voltaram com aquela conversa durante algum tempo. Wulfgar não participou, concentrado demais no drow, que havia se distanciado um pouco do
acampamento logo depois da refeição - que Drizzt mal tocara - para fitar silenciosamente a cidade rio acima.
Daí a pouco, Bruenor e Régis se acomodaram para dormir, ainda irritados, mas tranqüilos o bastante na segurança do acampamento para sucumbir ao cansaço.
Wulfgar juntou-se ao drow.
- Haveremos de encontrar o Salão de Mitral - ele ofereceu como consolo, apesar de saber que a queixa de Drizzt não envolvia o objetivo atual do grupo.
Drizzt assentiu, mas não respondeu.
- Você ficou magoado com a rejeição deles - observou Wulfgar. - Achei que aceitasse sua sina de boa vontade. Por que dessa vez é tão diferente?
Mais uma vez, o drow não fez a menor menção de responder. Wulfgar respeitou-lhe a privacidade.
- Anime-se, Drizzt Do'Urden, nobre ranger e amigo de confiança.
Acredite que aqueles que o conhecem morreriam de boa vontade por você ou ao seu lado.
Ele pousou a mão sobre o ombro de Drizzt ao se virar para partir. Drizzt nada disse, embora realmente apreciasse a preocupação de Wulfgar. Contudo, a amizade
dos dois já não precisava mais de agradecimentos explícitos, e Wulfgar esperava apenas que tivesse proporcionado ao amigo algum consolo quando retornou ao acampamento,
deixando Drizzt com seus pensamentos.
As estrelas apareceram e encontraram o drow ainda sozinho, de pé à beira do Rauvin. Drizzt tornara-se vulnerável pela primeira vez desde seus primeiros dias
na superfície, e a decepção que agora sentia incitava as mesmas dúvidas que ele acreditara resolvidas anos atrás, antes que ele sequer tivesse deixado Menzoberranzan,
a cidade dos elfos negros. Como ele poderia ter esperanças de encontrar algum grau de normalidade no mundo da luz do dia dos elfos de pele clara? Em Dez-Burgos,
onde assassinos e ladrões geralmente ascendiam a posições de respeito e liderança, ele mal era tolerado. Em Sela Longa, onde o preconceito era secundário à curiosidade
fanática dos inabaláveis Harpells, ele fora colocado em exposição como algum animal doméstico modificado, mentalmente espicaçado e torturado. E, embora não lhe quisessem
fazer mal, os magos careciam de qualquer compaixão ou respeito por ele como algo além de uma singularidade a ser observada.
Agora, Lua Argêntea - uma cidade fundada e estruturada sobre princípios de individualidade e justiça, onde pessoas de todas as raças encontravam boa acolhida
se ali chegassem com boas intenções - o rechaçara. Todas as raças, aparentemente, exceto os elfos negros.
A inevitabilidade da vida de Drizzt como pária nunca antes fora tão claramente exposta diante dele. Nenhuma outra cidade em todos os Reinos, nem mesmo uma
aldeia remota, poderia oferecer a ele um lar ou uma existência - E a história se complica ainda mais, parece - Alustriel continuou. - Você sabe que tenho
duas irmãs?
Drizzt chacoalhou a cabeça.
- Storm, uma barda de renome, e Dove Garra de Falcão, uma ranger. Ambas se interessaram pelo nome de Drizzt Do'Urden: Storm, como uma lenda em desenvolvimento
ainda carente de uma canção à sua altura, e Dove... Ainda preciso discernir seus motivos. Você se tornou um herói para ela, eu acho, o epítome das qualidades que
ela, como ranger, se esforça para aperfeiçoar. Ela entrou na cidade hoje de manhã e sabia de sua chegada iminente.
- Dove é muitos anos mais jovem que eu - continuou Alustriel. - E não tão experiente na política do mundo.
- Ela poderia ter me procurado - Drizzt concluiu, enxergando as implicações temidas por Alustriel.
- Ela o fará, um dia - a senhora respondeu. - Mas não posso permiti-lo agora, não em Lua Argêntea. - Alustriel fitou-o com atenção, e seu olhar insinuava
emoções mais profundas e pessoais. - E, além disso, eu mesma teria procurado uma audiência com você, como faço agora.
As implicações de um encontro como aquele no interior da cidade pareceram óbvias para Drizzt à luz dos conflitos políticos que Alustriel insinuara.
- Um outro dia, noutro lugar talvez - ele sugeriu. - Seria um incômodo muito grande?
Ela respondeu com um sorriso:
- De modo algum.
Satisfação e ansiedade se apossaram de Drizzt ao mesmo tempo. Ele voltou a olhar para as estrelas, imaginando se algum dia descobriria inteiramente a verdade
sobre sua decisão de vir ao mundo da superfície, ou se sua vida seria eternamente um tumulto de esperanças tentadoras e expectativas despedaçadas.
Eles permaneceram em silêncio durante um bom tempo até Alustriel falar novamente.
- Vocês vieram em busca da Câmara dos Sábios - disse ela -, para descobrir se algo ali menciona o Salão de Mitral.
- Eu exortei o anão a entrar - respondeu Drizzt. - Mas ele é teimoso.
- Foi o que imaginei - riu Alustriel. - Mas não quero que minhas ações interfiram com sua tão nobre demanda. Eu vasculhei o cofre pessoal mente. Você
não faz idéia do tamanho da biblioteca! Vocês não saberiam por onde começar a procurar entre os milhares de volumes que revestem as pare des. Mas conheço o cofre
melhor do que ninguém. Descobri coisas que você e seus amigos levariam semanas para encontrar. Mas, honestamente, muito pouco foi escrito sobre o Salão de Mitral
e nada, nada mesmo, oferece mais do que uma indicação passageira sobre a sua localização geral.
- Então, talvez tenha sido melhor sermos rechaçados.
Alustriel corou de constrangimento, embora Drizzt não tivesse a intenção de parecer sarcástico com sua observação.
- Meus guardas me informaram que vocês planejam seguir em frente até Sundabar - disse a dama.
- E verdade - respondeu Drizzt -, e de lá para a Cidadela Adbar, se necessário.
- Desaconselho esse curso - disse Alustriel. - Considerando tudo o que consegui encontrar no cofre e o meu próprio conhecimento das lendas sobre os
dias em que tesouros fluíam do Salão de Mitral, meu palpite é que fica no oeste, não no leste.
- Viemos do oeste e nossa trilha, em busca dos que detêm o conhecimento sobre os salões argênteos, tem nos conduzido continuamente para leste - opôs-se
Drizzt. - Além de Lua Argêntea, as únicas esperanças que temos são Helm e Harbromm, ambos no leste.
- Pode ser que Helm tenha algo a lhes contar - concordou Alustriel. - Mas pouco descobrirão com o Rei Harbromm e os anões de Adbar. Eles próprios empreenderam
a busca para encontrar a antiga terra natal da família de Bruenor há alguns anos apenas, e passaram por Lua Argêntea em sua jornada: rumo ao oeste. Mas eles nunca
encontraram o lugar e voltaram para casa, convencidos de que foi destruído e enterrado bem fundo em alguma montanha não assinalada ou que jamais tenha existido e
não passasse de um estratagema dos mercadores sulistas para negociar seus produtos no norte.
- Você não oferece muita esperança - comentou Drizzt.
- Pelo contrário - opôs-se Alustriel. - A oeste daqui, a menos de um dia de marcha, ao longo de uma trilha não assinalada que corre ao norte do Rauvin,
fica o Forte dos Arautos, um antigo bastião de saber acumulado. Se existe alguém nos dias de hoje que pode orientá-los, é o arauto, Noite Anciã. Eu o informei sobre
vocês e ele concordou em vê-los, mas ele não recebe visitas há décadas, além de mim e alguns seletos eruditos.
- Estamos em dívida com você - disse Drizzt, com uma reverência.
- Não espere muita coisa - avisou Alustriel. - O Salão de Mitral apareceu e desapareceu no conhecimento deste mundo num piscar de olhos. Dificilmente
três gerações de anões chegaram a minerar o lugar, apesar de eu admitir que uma geração dos anões é uma quantidade considerável de tempo, e eles não eram tão liberais
em seu comércio. Só raramente permitiam que alguém visitasse as minas, se as histórias forem verdadeiras. Eles apresentavam suas obras nas trevas da noite e, para
que chegassem aos mercados, supriam-nas por meio de uma rede secreta e intricada de agentes anões.
- Eles se defenderam muito bem contra a cobiça do mundo exterior - observou Drizzt.
- Mas sua ruína veio do interior das minas - disse Alustriel. - Um perigo desconhecido que talvez ainda se esconda por lá, você deve saber.
Drizzt assentiu.
- E, ainda assim, você quer ir até lá?
- Não me importo com os tesouros, apesar de que, se forem de fato tão esplêndidos quanto Bruenor os descreve, gostaria então de dar uma olhada neles.
Mas é a demanda do anão, sua grande aventura, e eu seria realmente um amigo deplorável se não o ajudasse a completá-la.
- Dificilmente tal rótulo lhe caberia, Drizzt Do'Urden - disse Alustriel. Ela retirou um pequeno frasco de uma dobra em seu vestido. -Leve isto com
você - instruiu ela.
- O que é isto?
- Uma poção de recordação - explicou Alustriel. - Dê isto ao anão quando as respostas parecerem próximas. Mas, cuidado, os poderes da poção são violentos!
Bruenor caminhará durante algum tempo entre as lembranças do passado distante tanto quanto entre as experiências do presente.
- E estes - ela disse, retirando uma pequena bolsa da mesma dobra e entregando-a a Drizzt - são para todos vocês. Ungüento para ajudar a cicatrizar
as feridas e biscoitos que revigoram um viajante cansado.
- Meus agradecimentos e os de meus amigos - disse Drizzt.
- Diante da terrível injustiça que lhe foi imposta, são uma pequena compensação.
- Mas a preocupação de quem os oferece não foi um presente insignificante - replicou Drizzt. Ele olhou diretamente nos olhos dela, absorvendo-a com
sua intensidade. - Você renovou minha esperança, Senhora de Lua Argêntea. Você me lembrou de que há realmente uma recompensa para os que seguem a senda da consciência,
um tesouro muito maior do que as ninharias materiais que com tanta freqüência são ofertadas a homens injustos.
- E há, de fato - ela concordou. - E seu futuro lhe mostrará muitas outras mais, orgulhoso ranger. Mas, agora, metade da noite já se foi e você precisa
descansar. Nada tema, pois há quem zele por vocês esta noite. Adeus, Drizzt Do'Urden, e que a estrada adiante seja veloz e desimpedida.
Com um aceno da mão, ela desvaneceu na luz das estrelas, deixando Drizzt a se perguntar se sonhara com aquele encontro. Mas, então, as últimas palavras dela
chegaram até ele pairando na brisa suave.
- Adeus, e não desanime, Drizzt Do'Urden. Sua honra e coragem não pas sam despercebidas!
Drizzt permaneceu em silêncio durante um bom tempo. Ele se abaixou e apanhou uma flor silvestre na margem do rio, girou-a entre seus dedos e imaginou se
ele a Senhora de Lua Argêntea poderiam realmente se encontrar de novo em condições mais transigentes. E aonde tal encontro poderia levar.
Então, ele atirou a flor no Rauvin.
- Deixemos os acontecimentos seguirem seu curso - ele disse, resoluto, olhando para o acampamento e para seus amigos mais chegados. - Não preciso de fantasias
para diminuir os grandes tesouros que já possuo. - Ele inspirou profundamente a fim de soprar para longe os restos de sua autopiedade.
E, com a fé restaurada, o estóico ranger foi dormir.

14. OS OLHOS DO GOLEM

Drizzt teve pouco trabalho para convencer Bruenor a reverter o curso deles e voltar para o oeste. Apesar de ansioso por chegar a Sundabar e descobrir o que
Helm sabia, a possibilidade de informações valiosas a menos de um dia de viagem dali deixou o anão alvoroçado.
Quanto a como conseguira a informação, Drizzt ofereceu poucas explicações, dizendo apenas que topara com um viajante solitário na estrada para Lua Argêntea
durante a noite. Apesar de a história soar inventada aos amigos, eles não questionaram o drow por respeitarem sua privacidade e confiarem inteiramente nele. Mas,
durante o desjejum, Régis chegou a esperar que outras informações viessem à tona, pois os biscoitos que o tal viajante dera a Drizzt eram verdadeiramente deliciosos
e incrivelmente revigorantes. Depois de apenas algumas mordidas, o halfling se sentia como se tivesse passado uma semana descansando. E a pomada mágica curou imediatamente
a perna e as costas machucadas de Wulfgar, que caminhou sem a bengala pela primeira vez desde que eles haviam deixado os Pântanos Eternos.
Wulfgar desconfiou que o encontro de Drizzt envolvera alguém de grande importância muito antes do drow revelar os presentes maravilhosos. Pois o brilho interior
de otimismo do drow, uma centelha sagaz em seus olhos a refletir o espírito indômito que o fazia sobreviver a provações que teriam esmagado a maioria dos homens,
retornara total e dramaticamente. O bárbaro não precisava conhecer a identidade da pessoa: estava simplesmente contente por seu amigo ter superado a depressão.
Quando eles se puseram a caminho, mais tarde naquela manhã, mais pareciam um grupo que acabava de dar início a uma aventura do que um bando fatigado pela
estrada. Assobiando e conversando, seguiram o fluxo do Rauvin em seu curso para oeste. Apesar de por um triz, haviam saído relativamente ilesos da marcha brutal
e tinham aparentemente feito bom progresso em direção ao seu objetivo. O sol do verão brilhava no céu e todas as peças do quebra-cabeça do Salão de Mitral pareciam
estar ao alcance da mão.
Jamais suspeitariam que olhos assassinos neles se fixavam.
Desde os contrafortes ao norte do Rauvin, muito acima dos viajantes, o golem pressentiu a passagem do elfo drow. Seguindo a atração dos encantos mágicos de
busca que Dendibar lançara sobre ele, Bok não demorou muito para avistar lá do alto o bando que percorria a trilha. Sem hesitação, o monstro obedeceu às suas diretrizes
e partiu em busca de Sidnéia.
Bok arremessou longe um matacão que jazia em seu caminho, depois escalou um outro que era grande demais, sem compreender as vantagens de simplesmente contornar
as pedras. O caminho de Bok estava claramente traçado e o monstro se recusava a se desviar daquele curso o mínimo que fosse.
- Esse é um dos grandes! - riu um dos guardas no posto sobre o Rauvin ao ver Bok do outro lado da clareira. Entretanto, mesmo enquanto as palavras
deixavam sua boca, o guarda percebeu o perigo iminente: aquele não era um viajante comum!
Corajosamente, ele saiu correndo para encarar o golem de frente, a espada desembainhada e o companheiro logo atrás.
Transfixado por seu objetivo, Bok não deu ouvidos aos alertas dos dois.
- Alto! - ordenou o guarda uma última vez enquanto Bok cobria a pequena distância entre eles.
O golem não conhecia emoções, de modo que não sentiu raiva dos guardas quando eles o atacaram. Postaram-se para bloquear o caminho e Bok os jogou longe com
um tapa, sem hesitação, e o incrível poder de seus braços fortalecidos pela magia atravessou-lhes as defesas e os arremessou pelos ares. Sem se deter, o golem seguiu
adiante até o rio e não diminuiu o passo, desaparecendo sob as águas impetuosas.
Alarmas soaram na cidade, pois os soldados ao portão, do outro lado do rio, assistiram ao espetáculo que se desenrolou no posto avançado. Os imensos portões
foram fechados e trancados, e os Cavaleiros em Prata puseram-se a vigiar o Rauvin, esperando pelo reaparecimento do monstro.
Bok seguiu em linha reta pelo leito do rio, singrando o lodo e a lama e mantendo o curso com facilidade apesar do pujante ímpeto das correntes. Quando o monstro
reemergiu diretamente do outro lado do posto avançado, os cavaleiros enfileirados diante do portão da cidade ficaram boquiabertos de incredulidade, mas mantiveram
suas posições, os rostos severos e as armas em prontidão.
O portão se situava um pouco mais rio acima a partir do ângulo da senda escolhida por Bok. O golem seguiu em frente até a muralha da cidade, mas não alterou
seu curso para se aproximar do portão.
Com um murro, ele abriu um buraco na muralha e a atravessou. Entreri andava ansiosamente de um lado para outro em seu quarto na Estalagem dos Sábios Geniosos,
perto do centro da cidade.
- Eles já deviam ter chegado - ele disse com aspereza para Sidnéia, sentando-se na cama e apertando as cordas que seguravam Cattiebrie.
Antes que Sidnéia conseguisse responder, um globo de chamas apareceu no centro da sala, não um fogo real, mas a imagem de chamas, ilusória, como algo ardendo
naquele determinado ponto em outro plano. As chamas tremularam e se transformaram na aparição de um homem de túnica.
- Morkai! - arquejou Sidnéia.
- Meus cumprimentos - replicou o espectro. - E os cumprimentos de Dendibar, o Variegado.
Entreri se esgueirou de volta a um dos cantos do quarto, desconfiado. Cattiebrie, indefesa, amarrada como estava, continuou sentada e imóvel.
Sidnéia, versada nas sutilezas da conjuração, sabia que o ser sobrenatural estava sob o controle de Dendibar e ela teve medo.
- Por que meu mestre mandou que viesse aqui? - ela perguntou audaciosamente.
- Trago notícias - respondeu o espectro. - O grupo que vocês procuram foi desviado para os Pântanos Eternos há uma semana, ao sul de Nesmé.
Sidnéia mordeu o lábio de expectativa pela próxima revelação do espectro, mas Morkai quedou-se mudo e também aguardou.
- E onde estão eles agora? - pressionou Sidnéia, impaciente.
Morkai sorriu.
- Perguntado fui duas vezes, mas ainda não obrigado! - As chamas se consumiram com estrépito novamente e o espectro desapareceu.
- Os Pântanos Eternos - disse Entreri. - Isso explicaria a demora.
Sidnéia concordou com um meneio da cabeça, distraída, pois ela tinha outras coisas em mente.
- Ainda não obrigado - ela murmurou consigo mesma, repetindo as últimas palavras do espectro. Perguntas perturbadoras a incomodavam. Por que Dendibar
esperara uma semana para enviar Morkai com as notícias? E por que o mago não teria conseguido forçar o espectro a revelar atividades mais recentes do grupo do drow?
Sidnéia conhecia os perigos e as limitações da invocação e compreendia a espantosa exaustão que o ato exercia sobre o poder de um mago. Dendibar havia conjurado
Morkai pelo menos três vezes recentemente: uma vez quando o grupo do drow entrara em Luskan, e ao menos duas vezes desde que ela e seus companheiros haviam partido
na caçada. Teria Dendibar abandonado toda a cautela em sua obsessão pela Estilha de Cristal?
Sidnéia sentiu que o domínio do mago variegado sobre Morkai havia diminuído imensamente e ela esperava que Dendibar fosse prudente com futuras invocações,
pelo menos até que tivesse descansado completamente.
- Podem se passar semanas até que cheguem! - disse Entreri, com veemência, considerando as notícias. - Se é que um dia virão.
- Talvez você tenha razão - concordou Sidnéia. - Eles poderiam ter tombado nos urzais.
- E se tiverem?
- Então, entraremos lá atrás deles - disse Sidnéia, sem hesitação. Entreri estudou-a por alguns instantes.
- O prêmio que você busca deve ser realmente vultoso - ele disse.
- Tenho o meu dever e não vou falhar com meu mestre - ela retrucou rispidamente. - Bok vai encontrá-los mesmo que estejam no fundo do brejo mais profundo!
- Temos de decidir nosso curso agora - Entreri insistiu. Ele voltou seu olhar maldoso para Cattiebrie. - Estou ficando cansado de vigiar essa aí.
- Eu tampouco confio nela - Sidnéia concordou. - Mas ela pode ser útil quando encontrarmos o anão. Esperaremos mais três dias. Depois disso, voltaremos
a Nesmé e entraremos nos Pântanos Eternos se for preciso.
Entreri relutantemente aprovou o plano com um aceno da cabeça.
- Ouviu? - ele sibilou para Cattiebrie. - Você tem mais três dias de vida, a menos que seus amigos cheguem. Se estiverem mortos nos urzais, você não
tem utilidade para nós.
Cattiebrie não demonstrou qualquer emoção durante toda a conversa, determinada a não deixar Entreri conquistar a menor vantagem descobrindo-lhe a fraqueza,
ou a força. Ela acreditava que seus amigos não estavam mortos. Tipos como Bruenor Martelo de Batalha e Drizzt Do'Urden não estavam destinados a morrer numa vala
indigente em algum pântano desolado. E Cattiebrie jamais aceitaria que Wulfgar estivesse morto até que a prova fosse irrefutável. Fiel à sua crença, seu dever para
com os amigos era manter uma fisionomia inexpressiva. Ela sabia que estava vencendo sua batalha pessoal, que o medo paralisante que Entreri provocava nela perdia
força a cada dia. Ela estaria pronta para agir quando chegasse a hora. Ela apenas precisava se certificar de que Entreri e Sidnéia não o percebessem.
Ela notara que o afã da estrada e os novos companheiros começavam a afetar o assassino. A cada dia, Entreri revelava mais emoções, maior desespero para terminar
o serviço. Seria possível que pudesse cometer um erro?
- Está aqui! - um grito ecoou desde o corredor e todos os três se sobressaltaram involuntariamente, depois reconheceram a voz como sendo a de Jierdan,
que ficara vigiando a Câmara dos Sábios. Um segundo depois, a porta se abriu com violência e o soldado entrou espalhafatosamente no quarto, a respiração desigual.
- O anão? - Sidnéia perguntou, segurando Jierdan para acalmá-lo.
- Não! - gritou Jierdan. - O golem! Bok entrou em Lua Argêntea! Eles o aprisionaram perto do portão oeste. Um mago foi chamado.
- Maldição! - Sidnéia disse com veemência e saiu do quarto.
Entreri deu um passo para segui-la, segurando o braço de Jierdan e forçando-o a dar meia-volta com um puxão, de modo que os dois ficassem cara a cara.
- Fique com a garota - ordenou o assassino. Jierdan o fulminou com o olhar.
- Ela é problema seu.
Entreri poderia facilmente ter matado o soldado bem ali, notou Cattiebrie, esperando que Jierdan houvesse interpretado o olhar mortífero do assassino tão
claramente quanto ela.
- Faça o que lhe mandam! - Sidnéia gritou com Jierdan, pondo fim à discussão. Ela e Entreri saíram, e o assassino bateu a porta.
- Ele teria matado você - Cattiebrie disse a Jierdan quando Entreri e Sidnéia se foram. - Você sabe disso.
- Quieta - rosnou Jierdan. - Estou cheio de suas palavras vis! - Ele se aproximou dela ameaçadoramente, os punhos cerrados.
- Pode bater - desafiou Cattiebrie, sabendo que mesmo que ele o fizesse, seu código de soldado não lhe permitiria continuar tal assalto a um adversário
indefeso. - Apesar de que, na verdade, eu sou sua única amiga nesta viagem amaldiçoada!
Jierdan estacou.
- Amiga? - enjeitou ele.
- E melhor amiga você não vai encontrar - respondeu Cattiebrie. - Você aqui é tão prisioneiro quanto eu. - Ela reconheceu a vulnerabilidade daquele
homem orgulhoso, reduzido à servidão pela arrogância de Sidnéia e Entreri, e atingiu-o com precisão cirúrgica. - Eles querem te matar, 'cê sabe disso agora, e mesmo
que 'cê escape do fio da espada, 'cê não tem prá onde ir. 'Cê abandonou seus colegas em Luskan e, de qualquer maneira, o mago na torre te daria um triste fim se
você voltasse lá um dia!
Jierdan se retesou de fúria frustrada, mas não atacou.
- Meus amigos 'tão por perto - continuou Cattiebrie, apesar dos sinais ameaçadores. - Eles 'tão vivos ainda, eu sei, e vamos encontrar eles qualquer
dia desses. Vai ser a nossa hora, soldado, de viver ou morrer. No meu caso, vejo uma oportunidade. Mas no seu, como a estrada parece escura! Se meus amigos vencerem,
vão te matar, e se seus camaradas vencerem... - Ela deixou as possibilidades sinistras em mudo suspense por alguns instantes para que Tierdan pudesse ponderá-las
em sua totalidade.
- Quando eles pegarem o que procuram, não vão mais precisar de você - ela disse sombriamente. Notou que ele tremia, não de medo, mas de raiva, e forçou-o
a perder o controle. - Pode ser que te deixem viver - ela disse sarcasticamente. - Quem sabe não estejam precisando de um lacaio!
Ele a esmurrou então, apenas uma vez, e recuou.
Cattiebrie aceitou o golpe sem se queixar e até mesmo sorriu em meio à dor, apesar de tomar o cuidado de esconder sua satisfação. A perda de autocontrole
de Jierdan provava que o contínuo desrespeito que Sidnéia e principalmente Entreri haviam demonstrado por ele alimentara as chamas da insatisfação, levando-as à
beira da explosão.
Ela também sabia que quando Entreri retornasse e visse a equimose que Jierdan lhe proporcionara, aquelas chamas arderiam com mais intensidade ainda.
Sidnéia e Entreri correram pelas ruas de Lua Argêntea, seguindo os óbvios ruídos de comoção. Quando chegaram à muralha, encontraram Bok enclausurado numa
esfera de luzes verdes e brilhantes. Cavalos sem cavaleiros andavam para lá e para cá, ao som dos gemidos de uma dezena de soldados feridos, e um velho - o mago
- se achava diante do globo de luz, cofiando a barba e estudando o golem aprisionado. Um Cavaleiro em Prata de considerável posição hierárquica se encontrava ao
lado dele, impaciente, crispando-se nervosamente e apertando com força o botão do punho de sua espada embainhada.
- Destrua essa coisa e acabe logo com isso - Sidnéia ouviu o cavaleiro dizer ao mago.
- Ah, não! - exclamou o mago. - É prodigioso!
- Você quer segurá-lo aqui para sempre? - devolveu o cavaleiro. - Dê uma olhada ao redor...
- Com licença, cavalheiros - Sidnéia interrompeu. - Sou Sidnéia da Torre das Hostes Arcanas de Luskan. Talvez eu possa ser de alguma ajuda.
- Bons olhos a vejam - disse o mago. - Sou Mizzen da Segunda Escola do Conhecimento. Você conhece o proprietário desta criatura magnífica?
- Bok é meu - ela admitiu.
O cavaleiro a fitou, admirado que uma mulher - ou qualquer pessoa, por falar nisso - controlasse o monstro que havia abatido alguns de seus melhores guerreiros
e derrubado uma seção da muralha da cidade.
- O preço há de ser alto, Sidnéia de Luskan - ele rosnou.
- A Torre das Hostes irá ressarci-los - ela concordou. - Agora, poderia libertar o golem e deixá-lo sob meu controle? - ela perguntou ao mago. -
Bok vai me obedecer.
- Não! - disse o cavaleiro, ríspido. - Não vou deixar essa coisa à solta novamente.
- Calma, Gavin - disse-lhe Mizzen. Ele se voltou para Sidnéia. - Eu gostaria de estudar o golem, se possível. É realmente a mais primorosa construção
que já vi, com uma força além das expectativas dos livros de criação.
- Sinto muito - Sidnéia respondeu -, mas tenho pouco tempo. E muitas estradas ainda a percorrer. Diga o valor dos prejuízos causados pelo golem e eu
o retransmitirei ao meu mestre. Dou-lhe minha palavra como membro da Torre das Hostes.
- Você vai pagar agora - argumentou o guarda.
Mais uma vez, Mizzen o silenciou.
- Perdoe a raiva de Gavin - disse ele a Sidnéia. Ele inspecionou a área. - Talvez possamos fazer um acordo. Ninguém parece ter sido ferido gravemente.
- Três homens saíram daqui carregados! - Gavin refutou. - E pelo menos um cavalo está estropiado e teremos de sacrificá-lo!
Mizzen acenou com a mão como se para minimizar as reclamações.
- Eles vão se recuperar - disse. - Eles vão se recuperar. E a muralha precisava mesmo de reparos. - Ele olhou para Sidnéia e cofiou a barba novamente.
- Eis a minha oferta, e você não vai encontrar outra mais razoável! Entregue-me o golem por uma noite, apenas uma, e eu ressarcirei o prejuízo que ele causou. Só
uma noite.
- Você não vai desmontar Bok - afirmou Sidnéia.
- Nem mesmo a cabeça? - implorou Mizzen.
- Nem mesmo a cabeça - insistiu Sidnéia. - E eu virei buscar o golem à primeira luz da manhã.
Mizzen cofiou a barba mais uma vez.
- Uma obra prodigiosa - ele murmurou, perscrutando o interior da prisão mágica. - Feito!
- Se esse monstro... - começou Gavin, furioso.
- Ah, onde está seu senso de aventura, Gavin? - devolveu Mizzen, antes mesmo que o cavaleiro conseguisse terminar sua ameaça. - Lembre-se dos preceitos
de nossa cidade, homem. Estamos aqui para aprender. Se você pudesse apenas compreender o potencial de uma criação como esta!
Eles se afastaram de Sidnéia, não lhe dando mais atenção, e o mago ainda tagarelava no ouvido de Gavin. Entreri se esgueirou desde as sombras de um edifício
próximo para o lado de Sidnéia.
- Por que a coisa veio até nós? - ele perguntou. Ela chacoalhou a cabeça.
- Só pode haver uma resposta.
- O drow?
- Sim - ela disse. - Bok deve tê-los seguido até a cidade.
- Improvável - concluiu Entreri -, mas é possível que o golem os tenha visto. Se Bok estivesse atrás do drow e seus valentes companheiros, eles estariam
aqui na batalha, ajudando a rechaçá-lo.
- Então, é possível que ainda estejam lá fora.
- Ou talvez estivessem deixando a cidade quando Bok os viu - disse Entreri. - Vou ver se descubro alguma coisa com os guardas do portão. Nada tema,
nossa presa está bem próxima!
Eles retornaram ao quarto umas duas horas depois. Com os guardas no portão, descobriram que o grupo do drow fora rechaçado e agora estavam ansiosos para recuperar
Bok e seguir caminho.
Sidnéia deu início a uma série de instruções para Jierdan referentes à partida pela manhã, mas o que atraiu a atenção imediata de Entreri foi o olho machucado
de Cattiebrie. Ele se aproximou para verificar as cordas e, satisfeito por estarem intactas, virou-se para Jierdan com o punhal desembainhado.
Sidnéia o interrompeu, rapidamente inferindo a situação.
- Agora não! - exigiu. - Nossas recompensas estão próximas. Não podemos nos permitir isto!
Entreri riu maldosamente e guardou o punhal.
- Ainda vamos discutir isso - ele prometeu a Jierdan, entre dentes. - Não toque na garota novamente.
Perfeito, pensou Cattiebrie. Do ponto de vista de Jierdan, era como se o assassino confessasse a intenção de matá-lo.
Mais combustível para as chamas.
Ao recuperar o golem com Mizzen na manhã seguinte, as suspeitas de Sidnéia de que Bok vira o grupo do drow foram confirmadas. Eles deixaram lua Argêntea imediatamente
e Bok os conduziu pela mesma trilha que Bruenor e seus amigos haviam tomado na manhã anterior.
Como o grupo anterior, eles também eram vigiados.
Alustriel afastou do rosto o cabelo ondulante e capturou o sol da manhã em seus olhos verdes enquanto observava aquele bando com curiosidade cada vez maior.
A dama descobrira com os porteiros que alguém estivera perguntando sobre o elfo negro.
Ela ainda não conseguia entender que papel aquele novo grupo que deixava Lua Argêntea representava na missão, mas ela desconfiava que suas intenções não
eram boas. Alustriel havia saciado a própria sede de aventura muitos anos antes, mas ela desejava agora que pudesse, de algum modo, ajudar o drow e seus amigos em
sua nobre missão. No entanto, os assuntos de estado a oprimiam e ela não tinha tempo para essas distrações. Pensou por um momento em despachar uma patrulha para
capturar aquele segundo grupo, para que, assim, pudesse lhes descobrir a intenção.
Então, ela se voltou para sua cidade, lembrando a si mesma de que era apenas uma personagem de menor importância na busca pelo Salão de Mitral. Só lhe restava
confiar nas habilidades de Drizzt Do'Urden e seus amigos.

 

 

 

CONTINUA