Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.
CONTINUA
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.
CONTINUA
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.
CONTINUA
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.
CONTINUA
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.
CONTINUA
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.
CONTINUA
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.
CONTINUA
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o assunto com um aceno de mão.
- Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos - ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
- Para onde estamos indo? - Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
- Por que esse menino faz tantas perguntas? - Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da floresta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então resolveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobriria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
- Olá, Velho Bob! - ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na direção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
- Bom-dia, arqueiro! - o velho cumprimentou. - Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
- Este é Will, meu novo aprendiz - Halt disse. - Will, este é o Velho Bob.
- Bom-dia, senhor - Will cumprimentou educado, e o velho riu.
- Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lembrar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o arqueiro. Halt grunhiu impaciente:
- Eles estão prontos? - perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
- Estão mais que prontos! - ele respondeu. - Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra extremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sustentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
- Eles estão ali, está vendo? - falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se aproximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustrosos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou algumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
- Esse se chama Puxão - o velho homem contou. - Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segurou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
"Talvez eu não seja muito grande", os olhos dele pareciam dizer, "mas posso surpreender você."
- Bom - Halt disse. - O que você achou dele? - perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender ninguém.
- Ele é... meio... pequeno - disse finalmente.
- Você também é - Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? - o velho perguntou.
- Bem... não, não é - Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
- Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! - disse com orgulho. - Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia inteiro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deitaram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal desgrenhado.
- Tenho certeza que sim - ele disse com educação.
- Por que você não experimenta? - Halt perguntou, recostando-se na cerca. - Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pequeno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou devagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidativo.
- Venha, garoto - ele disse. - Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o outro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agilidade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que tinha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um cavalo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
- Venha, garoto - ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto - ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, trotou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
- Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do homem vestido de cinza.
- Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do cavalo e olhou para o velho.
- Por que o nome dele é Puxão? - ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase arrancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de repente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A gargalhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
- Vamos ver se você adivinha! - ele disse deliciado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Velho Bob e as campinas além.
- Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele - ele mandou. - Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você concordar - acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
- Vou gostar da companhia, arqueiro - o velho respondeu com prazer. - Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o observou com surpresa.
- Acho que chegamos na hora certa - ele murmurou secamente. - Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele - continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapareceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha cavalgado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando finalmente adormeceu, ainda se perguntava em que momento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.
- Então, você viu o que aconteceu. O que achou? - sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade - uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum enfeite.
- Sim, eu vi - Karel concordou. - Não sei se acreditei, mas vi.
- Você só o viu uma vez - Rodney disse. - Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
- Tão depressa quanto aquele que eu vi? - Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
- Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício - ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: - O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velocidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro potencial de genialidade.
- Tem certeza? - Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
- Tenho - ele disse simplesmente. - Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante - como Horace evidentemente era - ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Rodney tinha sugerido.
- Só depois disso? - ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. - Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as técnicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
- Ainda não avaliamos a personalidade - retrucou. - Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
- E tem outra coisa - Rodney acrescentou. - Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
- Tem toda a razão - Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. - Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
- E quem não tem? - perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. - Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. - Rodney comentou, fazendo Karel rir.
- Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
- Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
- Claro - Karel respondeu. - Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de especial - pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
- O bebê não sabe usar a espada - disse Alda.
- O bebê deixou o mestre de guerra zangado - Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. - O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
- O bebê devia jogar pedras, em vez disso - Jerome concluiu com sarcasmo. - Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
- Uma pedra pequena, não, bebê - Alda disse sorrindo maldosamente para ele. - Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
- Uma pedra muito grande - Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
- Vamos ver, bebê - Jerome disse. - Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
- Mais alto, bebê - Alda ordenou. - Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
- Muito bom, bebê - Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
- O que está fazendo? - Jerome perguntou zangado. - Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
- Agora você pode ficar aí e contar até 500 - Alda disse. - Depois pode voltar ao dormitório.
- Comece a contar - Bryn mandou, rindo da idéia.
- Um, dois, três... - Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
- Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
- Um... dois... três... - Horace contou e eles aprovaram.
- Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir - Alda disse.
- Não tente nos enganar, porque vamos descobrir - Jerome ameaçou. - E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.
"Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam," ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.
- Leve-o para dar uma volta - Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
- Vamos, garoto - ele chamou, puxando o cabresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
- Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
- Não olhe para ele - Halt ensinou com suavidade. - Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acompanhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
- Ponha os arreios nele - o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
- Puxe com bastante força - o Velho Bob aconselhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
- Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
- Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente - ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
- Vamos! - Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
"Por que você foi fazer uma coisa boba como essa?", ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
- O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
- Nada, se esse fosse um cavalo comum - ele respondeu. - Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
- Qual é a diferença? - Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
- A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez - Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas - Will disse, coçando a cabeça.
- Poucas pessoas ouviram - ele disse, sorrindo ao se aproximar. - É por isso que os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
- Bom - disse Will - o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
- Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente - ele fez um gesto na direção do cavalo maior. - O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
- Permettez-moi? - Will repetiu. - Que palavras são essas?
- Isso é galês e quer dizer: "Você me dá permissão?" É que os pais dele vieram da Gália, entende? - Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. - Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
- Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: "Tudo bem?"
- Tudo bem? - Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
- Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
- Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
- Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
- Vamos lá, garoto - disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
- Leve ele para fora, Will - mandou -, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galope rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
- Ele é fantástico! - disse sem fôlego. - É tão rápido quanto o vento!
- Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr - Halt disse sério. - Você fez um bom trabalho com ele, Bob - elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores que já tinha visto.
- Ele consegue manter esse ritmo o dia todo - garantiu orgulhoso. - Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
- Não foi tão mal - Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
- Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena naquele salto! - o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. - E também sabe usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
"Ele nunca sorri", Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
- Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
- Não, garoto - Bob garantiu rindo. - Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
- Posso dar outra para ele?
- Só mais uma - Halt respondeu. - Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço, ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
- Venha - ele disse. - Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado "à toa", como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
- Halt? - ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
- Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
- Acho que é Abelard - ele contou.
- Abelard? - Will repetiu. - Que raio de nome é esse?
- É gálico - o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
- Halt? - ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
- O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
- Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
- Hum - Halt grunhiu.
- Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? - o garoto quis saber.
- Nomes não são importantes - Halt disse. - E eu não lembro.
- Foi você? - Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
- Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
- Você sabe o que é importante?
Will sacudiu a cabeça.
- O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
- Vamos, Puxão! - Will estimulou. - Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um arqueiro!
Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
"Essa foi a melhor parte de todas", ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir - dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
- Só vai ganhar uma - ele disse. - Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
- Ora, é o jovem Will, não é mesmo? - perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
- Sim, senhor - Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. - Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
- Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem - o barão comentou. - Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
- É a capa, senhor - Will afirmou. - Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
- Só não a use para roubar mais bolos - ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça depressa.
- Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu trase... - ele parou envergonhado, pois não sabia se "traseiro" era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
- Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
- Acho que sim - ele disse hesitante. - É que... - a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com atenção.
- É que...? - ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
- É que... Halt nunca sorri - continuou pouco à vontade. - Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
- Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério - o barão falou. - Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
- O tempo todo - Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
- É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
- Sim, senhor. - Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
- Desculpe, senhor - ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
- Sim, Will?
Will mexeu os pés de novo e continuou.
- Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
- Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
- Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
- Isso é verdade - Arald confirmou.
- Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro - Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
- Halt não lhe contou? - o barão perguntou. Will deu de ombros.
- Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
- Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? - o barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
- Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
- Bem, você está certo, Will - ele confirmou. - Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de homenagem.
- Mas... - Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
- Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
- Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
- Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
- Will - ele chamou.
- Sim, senhor?
- Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comigo.
- Sim, senhor - Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
- Vamos! - George disse. - Estou morrendo de fome.
- Devemos esperar o Horace - Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
- Ah, vamos lá - George pediu. - Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
- Talvez a gente deva ir comendo - Alyss disse, revirando os olhos para o céu. - Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
- Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência - George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
- Há quanto tempo ele está assim? - Will perguntou para Alyss.
- Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal - ela respondeu sorrindo. - Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
- Ah, sente-se, George - Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita. - Você é mesmo um bobo.
- Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! - ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. - Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo - literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para atormentá-lo ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete. Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
- Bom, isso é muito legal, não é mesmo? - disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
- Horace! Finalmente você chegou! - ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
- Finalmente? - ele repetiu. - Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego aqui "finalmente"? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
- Não, não - ela disse depressa. - Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
- Bem - ele disse com a voz cheia de sarcasmo -, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
- Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
- Não há motivo para ser tão desagradável - ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
- Fique longe de mim - ele disse. - E veja bem como fala com um guerreiro!
- Você ainda não é um guerreiro - Will zombou. - Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
- Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
- Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o dedo.
- O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
- É uma capa de arqueiro - Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
- Não seja tão desagradável - George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
- Veja como fala, garoto! - ele disparou. - Você sabe que está falando com um guerreiro!
- Um aprendiz de guerreiro - Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra "aprendiz".
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
- E isso? Acha desagradável também? - ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
- Quieto, Puxão - Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
- O que é isso? - perguntou zombeteiro. - Alguém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
- Ele é o meu cavalo - Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
- Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. "Quem é esse cara irritante?", seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
- Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
- Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! - Horace retrucou rindo.
- Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa - Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
- Muito fácil - Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de Puxão. - Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida.
Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as traseiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
- Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? - perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto corria na direção de Puxão.
- Você vai ver, cavalo maldito! - ele gritou furioso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
"Sempre ataque primeiro", Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
- O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? - perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sentido também.
- Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado - sir Rodney disse zangado. - E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
- Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
- Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
- Só uma briga, senhor - Will murmurou depois de hesitar um pouco.
- Isso eu estou vendo! - o mestre de guerra berrou. - Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
- Muito bem - ele disse finalmente. - A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
- Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
"Nós vamos terminar isso outra hora", dizia o olhar zangado de Horace.
"Quando você quiser", os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e - era ali que estava a surpresa - Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
- Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
- Ali - Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
- Coelho - ele disse prontamente, e Halt olhou de lado.
- Coelho? - repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
- Coelhos - disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
- Isso mesmo - Halt murmurou. - Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
- Acho que sim - Will respondeu com humildade.
- Você acha que sim? - Halt retrucou sarcástico. - Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como "garoto". Naqueles dias, era sempre "Will". Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
- Pois bem... coelhos. Isso é tudo?
Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
- Um arminho! - disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
- Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
- Entendi - Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
- Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
- Olhe! - ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da trilha. - O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
- Hum - ele murmurou pensativo. - Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
- O que é? - o garoto quis saber.
- Porco selvagem - Halt disse apenas. - E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
- Relaxe - ele disse. - Ele não está por perto.
- Você consegue dizer isso por causa das pegadas? - Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
- Não - Halt respondeu com calma. - É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
- Ah - Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
- Halt? - ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
- Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses arbustos - ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
- Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
- Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
- Sou só eu - ele repetiu pela última vez.
Will não conseguiu evitar um sorriso, pois não pôde imaginar nada menos parecido com um porco feroz e selvagem.
- Como você sabia que ele estava ali? - perguntou a Halt em voz baixa, e o arqueiro sacudiu os ombros.
- Eu o vi alguns minutos atrás. Você vai acabar aprendendo a perceber quando alguém o estiver observando e então vai saber procurar a pessoa.
Will balançou a cabeça admirado. O poder de observação de Halt era excepcional. Não era de surpreender que as pessoas no castelo o admirassem tanto.
- Então me diga por que estava se escondendo ali. Quem mandou você nos espiar? - perguntou Halt.
O velho esfregou as mãos nervoso, os olhos passando da expressão séria de Halt para a ponta da flecha, agora abaixada, mas ainda posicionada na corda do arco de Will.
- Espiando, não, senhor! Não, não! Espiando, não! Ouvi vocês se aproximando e pensei que aquele porco selvagem monstruoso estivesse voltando!
- Você pensou que eu era um porco selvagem? - Halt perguntou desconfiado.
Novamente, o fazendeiro balançou a cabeça.
- Não, não, não - murmurou. - Pelo menos não depois que vi você! Mas eu não tinha certeza de quem eram. Podiam ser bandidos!
- O que você está fazendo aqui? - Halt quis saber. - Você não vive na região, vive?
O fazendeiro, ansioso por agradar, balançou a cabeça de novo.
- Vim de Willowtree Creek! Venho seguindo esse animal e esperando encontrar alguém para me ajudar a transformar ele em toicinho.
De repente, Halt ficou extremamente interessado no assunto e abandonou o tom sério em que vinha falando.
- Quer dizer que você viu o porco selvagem? - ele perguntou, e o fazendeiro esfregou as mãos de novo, olhando ao redor assustado, como se estivesse nervoso com a possibilidade de o animal aparecer a qualquer minuto.
- Vi e ouvi. Não quero ver mais. Ele é um bicho malvado, senhor, escute bem.
Halt observou as pegadas novamente.
- Ele é mesmo um dos grandes - comentou divertido.
- E malvado, senhor! - o fazendeiro repetiu. - Esse bicho tem o temperamento de um demônio. Ora, ele é capaz de despedaçar um homem ou um cavalo para o café-da-manhã, com certeza!
- Então, o que pensou em fazer com ele? - Halt perguntou. - Aliás, como você se chama?
O fazendeiro inclinou a cabeça e fez um cumprimento encostando os dedos na testa.
- Peter, senhor. Sal Peter é como me chamam, pois gosto de um pouco de sal na minha carne, senhor.
- Tenho certeza de que gosta - Halt concordou com paciência. - Mas o que pretendia fazer com esse porco selvagem?
Sal Peter coçou a cabeça, parecendo perdido.
- Não sei bem. Talvez esperasse encontrar um soldado, um guerreiro ou um cavaleiro para acabar com ele. Ou talvez um arqueiro - ele acrescentou depois de pensar.
Will sorriu. Halt se levantou de onde estava examinando as pegadas. Limpou a neve do joelho e voltou para onde Sal Peter estava parado nervoso, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro.
- Ele tem causado muitos problemas? - o arqueiro perguntou, recebendo sinais positivos de cabeça do velho fazendeiro.
- Se tem, senhor! Se tem! Matou três cachorros. Estragou campos e cercas, isso ele fez. E quase matou meu genro quando ele tentou parar a fera. Como eu disse, senhor, ele é um bicho malvado!
Pensativo, Halt esfregou o queixo.
- Hum. Bom, não tenho dúvidas sobre o que devemos fazer a respeito.
Ele olhou para o sol, que estava baixo no horizonte, e então se virou para Will.
- Quanta luz você acha que ainda temos, Will?
Will examinou a posição do sol. Naqueles dias, Halt nunca perdia uma oportunidade para ensinar alguma coisa, para questionar ou testar os conhecimentos e habilidades que Will estava desenvolvendo. Este sabia que era melhor pensar bem antes de responder. Halt preferia respostas precisas, não respostas rápidas.
- Pouco mais de uma hora?
Ele viu as sobrancelhas de Halt se juntarem numa expressão aborrecida e se lembrou de que o arqueiro também não gostava de receber uma pergunta como resposta.
- Você está perguntando ou respondendo? - ele retrucou. Will balançou a cabeça chateado consigo mesmo.
- Pouco mais de uma hora - respondeu com mais confiança e, desta vez, o arqueiro assentiu concordando.
- Certo.
Ele se virou para o fazendeiro outra vez.
- Muito bem, Sal Peter, quero que leve uma mensagem para o barão Arald.
- Barão Arald? - o fazendeiro perguntou nervoso, e Halt franziu a testa novamente.
- Viu o que você fez? - ele perguntou para Will. - Você o fez responder perguntas com perguntas!
- Desculpe - Will murmurou sorrindo, sem saber o que fazer.
Halt balançou a cabeça e continuou a conversar com Sal Peter. - Isso mesmo, o barão Arald. Você vai encontrar o castelo dele a alguns quilômetros desta trilha.
Sal Peter espiou a trilha com uma das mãos sobre os olhos, como se já pudesse enxergar o castelo.
- Você está falando de um castelo? - ele perguntou num tom sonhador. - Nunca vi um castelo!
Halt suspirou impaciente. Manter esse tagarela com o pensamento fixo no assunto estava começando a lhe tirar o bom humor.
- Isso mesmo, um castelo. Quando chegar, você fala com os guardas no portão...
- O castelo é grande? - o velho perguntou.
- É enorme! - Halt rugiu, e Sal Peter recuou assustado, com um olhar magoado.
- Não precisa gritar, meu jovem - ele disse ofendido. - Eu só estava perguntando, só isso.
- Bom, então pare de me interromper - o arqueiro ordenou. - Estamos perdendo tempo. Agora, está prestando atenção?
Sal Peter assentiu com um gesto.
- Ótimo. Fale com o guarda no portão e diga que você tem uma mensagem de Halt para o barão Arald.
Um olhar de reconhecimento brilhou no rosto do velho homem.
- Halt? - ele perguntou. - Não é o Halt, o arqueiro, é?
- Sim - Halt respondeu cansado. - Halt, o arqueiro. - Aquele que conduziu a emboscada para os Wargals de Morgarath? - Sal Peter perguntou.
- Esse mesmo - Halt respondeu com a voz perigosamente baixa.
Sal Peter olhou em volta.
- Bom, onde ele está? - o velho perguntou.
- Eu sou Halt! - o arqueiro trovejou, colocando o rosto a poucos centímetros do de Sal Peter.
Novamente, o velho fazendeiro recuou alguns passos; então, recuperou a coragem e sacudiu a cabeça, sem acreditar no que ouvia.
- Não, não, não - ele disse determinado. - Você não pode ser ele. Ora, o arqueiro Halt é tão alto e largo quanto dois homens. Ele é um gigante! Corajoso, determinado na batalha, isso sim. Você não pode ser ele.
Halt se virou, tentando recuperar o controle. Will não conseguiu evitar sorrir novamente.
- Eu... sou... Halt - o arqueiro disse, espaçando as palavras para que Sal Peter entendesse bem. - Eu era mais alto quando jovem e muito mais largo. Mas agora estou deste tamanho.
Ele olhou para o fazendeiro com os olhos semicerrados.
- Você entendeu?
- Bom, se você está dizendo... - Sal Peter replicou.
Ele ainda não acreditava no arqueiro, mas havia um brilho perigoso no olhar de Halt que o avisou que não seria sensato continuar discordando dele.
- Bom - Halt respondeu num tom gelado. - Então, diga ao barão que Halt e Will...
Sal Peter abriu a boca para fazer outra pergunta. Halt tapou a boca do velho com a mão imediatamente e apontou para onde Will estava parado, ao lado de Puxão.
- Aquele é Will.
Sal Peter assentiu com um gesto de cabeça, olhando a mão que lhe apertava a boca com os olhos muito abertos, sem mais perguntas ou interrupções.
- Diga a ele que Halt e Will estão seguindo um porco selvagem. Quando encontrarmos sua toca, vamos voltar ao castelo. Enquanto isso, o barão deve reunir seus homens para uma caçada amanhã cedo - continuou.
Lentamente, ele tirou a mão de cima da boca do fazendeiro.
- Você entendeu tudo o que eu disse? - o arqueiro perguntou.
Sal Peter balançou a cabeça afirmativamente. - Então repita o que eu disse - Halt mandou. - Ir para o castelo, dizer ao guarda do portão que tenho um recado de você... Halt... para o barão. Dizer ao barão que você... Halt... e ele... Will... estão seguindo um porco selvagem para encontrar sua toca. Dizer para ele para preparar seus homens para uma caçada amanhã.
- Ótimo - Halt disse.
Ele fez um gesto para Will, e os dois tornaram a subir em suas selas. Sal Peter ficou parado na trilha olhando para eles, sem saber bem o que fazer.
- Vá andando - Halt ordenou, apontando na direção do castelo. O velho fazendeiro deu alguns passos e, quando achou que estava numa distância segura, virou-se e chamou o arqueiro de expressão zangada.
- Não acredito em você, viu? Ninguém fica mais baixo e mais estreito!
Halt suspirou e virou o cavalo na direção da floresta.
Eles cavalgaram lentamente sob a luz que diminuía aos poucos, inclinando-se para os lados nas selas para acompanhar a trilha deixada pelo porco selvagem.
Os dois não tiveram problemas em segui-lo. O corpo enorme tinha deixado uma vala funda na neve alta. Will se deu conta de que teria sido fácil mesmo sem a neve. Era óbvio que o animal estava de péssimo humor. Ele tinha atacado as árvores e os arbustos com suas presas, deixando um caminho de destruição bem delineado na floresta.
- Halt? - Will chamou devagar, depois de terem entrado cerca de 1 quilômetro entre as árvores densas.
- Hum - Halt resmungou distraído.
- Por que incomodar o barão? Não podemos simplesmente matar o porco com nossas flechas?
Halt sacudiu a cabeça.
- Esse é dos grandes, Will. Veja o tamanho da trilha que ele deixou. Poderíamos usar umas seis flechas para atacá-lo e mesmo assim ele demoraria a morrer. Com um animal desses é melhor se garantir.
- E como fazemos isso?
- Acho que você nunca viu uma caçada a um porco selvagem - Halt comentou, olhando para Will.
Will sacudiu a cabeça negativamente. Halt parou e Will fez Puxão parar ao lado dele.
- Bem, primeiro precisamos de cães - Halt começou. - Esse é outro motivo pelo qual não podemos simplesmente acabar com ele com nossos arcos. Quando o encontrarmos, provavelmente terá entrado no bosque ou se escondido no meio de arbustos densos e não poderemos chegar perto dele. Os cães vão fazer que ele saia, e vamos ter um círculo de homens ao redor da toca com lanças especiais para porcos selvagens.
- E vão atirar as lanças nele? - Will perguntou.
- Não se usarem a cabeça. A lança para porcos selvagens tem mais de 2 metros de comprimento, uma lâmina de dois gumes e uma cruzeta atrás da lâmina. A idéia é fazer o animal atacar o lanceiro. Ele então enterra a base da lança na terra e deixa o porco correr por cima dela. A cruzeta impede o animal de correr por cima do cabo e atingir o lanceiro.
- Isso parece perigoso - Will respondeu hesitante.
- E é - Halt concordou. - Mas homens como o barão, sir Rodney e os outros cavaleiros adoram isso. Eles não perderiam a oportunidade de caçar um porco selvagem por nada neste mundo.
- E você? - Will perguntou. - Também vai usar uma lança para porcos selvagens?
- Eu vou ficar sentado bem aqui, em cima de Abelard. E você vai estar montado no Puxão, no caso de o porco selvagem atravessar o círculo de homens à sua volta. Ou no caso de ele ser ferido e escapar.
- O que vamos fazer se isso acontecer? - Will quis saber.
- Vamos derrubá-lo antes que ele fuja outra vez - Halt disse sombrio. - E então vamos matar ele com nossos arcos.
O dia seguinte era um sábado e, depois do café-da-manhã, os alunos da Escola de Guerra estavam livres para passar o dia como quisessem. No caso de Horace, isso geralmente significava desaparecer sempre que Alda, Bryn e Jerome vinham procurá-lo. Ultimamente, porém, eles tinham percebido que Horace os evitava e resolveram esperá-lo do lado de fora do refeitório. Quando saiu para a área de exercícios naquela manhã, lá estavam os três. Horace hesitou. Era tarde demais para voltar. Com o coração apertado, continuou a andar na direção deles.
- Horace!
Ele se assustou com a voz que vinha bem de trás dele. Virou-se e viu sir Rodney observando-o com curiosidade. Em seguida, o homem olhou rapidamente para os três cadetes do 2° ano. Horace se perguntou se o mestre de guerra sabia do tratamento que vinha recebendo. Provavelmente sim. Devia fazer parte do processo de fortalecimento da Escola de Guerra.
- Senhor! - ele respondeu, perguntando-se o que tinha feito de errado.
As feições de Rodney se suavizaram e ele sorriu para o jovem rapaz. Parecia muito satisfeito com alguma coisa.
- Relaxe, Horace. Afinal, hoje é sábado. Já participou de alguma caçada a um porco selvagem?
- Hum... Não, senhor.
Apesar do convite para que Horace relaxasse, ele continuou rígido na posição de sentido.
- Então está na hora de participar. Pegue uma lança e uma faca de caça na sala de armas, peça a Ulf para lhe preparar um cavalo e volte aqui em vinte minutos.
- Sim, senhor - Horace respondeu.
Sir Rodney esfregou as mãos com evidente prazer.
- Parece que Halt nos conseguiu um porco selvagem. É hora de todos termos um pouco de diversão!
Animado, o homem sorriu para o aprendiz e então se afastou entusiasmado para preparar o próprio equipamento. Quando Horace se virou para o pátio, percebeu que Alda, Bryn e Jerome não estavam em lugar nenhum. Ele deveria ter pensado melhor sobre por que os três encrenqueiros desapareciam quando sir Rodney estava por perto, mas naquele momento estava mais preocupado com a caçada ao porco selvagem.
A manhã já estava pela metade quando Halt conduziu o grupo de caça para a toca do porco selvagem.
O imenso animal tinha se escondido numas moitas densas no fundo da floresta. Halt e Will tinham encontrado o esconderijo logo depois que escureceu, na noite anterior.
Naquele momento, quando se aproximaram, Halt fez um sinal, e o barão e seus caçadores desmontaram, deixando os cavalos aos cuidados dos cavalariços que os tinham acompanhado. Eles cobriram as últimas centenas de metros a pé. Halt e Will eram os únicos que continuavam em seus cavalos.
Havia 15 caçadores ao todo, cada um armado com uma lança do tipo que Halt tinha descrito. Eles se espalharam em um grande círculo ao se aproximar da cova do porco selvagem. Will ficou um pouco surpreso ao reconhecer Horace como um dos participantes do grupo de caça. Ele era o único aprendiz de guerreiro. Todos os demais eram cavaleiros.
Quando ainda estava a centenas de metros do local, Halt levantou a mão, fazendo sinal para os caçadores pararem. Ele fez que Abelard trotasse e foi até onde Will se encontrava, sentado sobre Puxão. O pequeno cavalo se movia inquieto por sentir a presença do porco selvagem.
- Lembre-se - o arqueiro disse em voz baixa para Will -, se você tiver que atirar, mire num ponto bem atrás do ombro esquerdo. Se ele estiver atacando, atingir o coração é sua única chance de parar o animal.
Will assentiu, molhando os lábios secos nervosamente. Ele estendeu a mão e tranquilizou Puxão com um rápido afago no pescoço. O pequeno cavalo mexeu a cabeça em resposta ao toque do dono.
- E fique perto do barão - Halt lembrou, antes de se mover e retomar seu lugar no lado oposto do círculo de caçadores.
Halt estava na posição de maior perigo, acompanhando os caçadores menos experientes e, portanto, com maior probabilidade de cometer um erro. Se o porco selvagem atravessasse o círculo na sua direção, ele teria que caçá-lo e matá-lo. Tinha determinado que Will ficasse com o barão e os caçadores mais experientes, pois era mais seguro. Isso também o colocava junto de Horace. Sir Rodney tinha posicionado o aprendiz entre ele e o barão. Afinal, aquela era a primeira caçada do garoto, e o mestre de guerra não queria assumir nenhum risco indevido. Horace estava ali para ver e aprender. Se o porco selvagem disparasse na direção deles, devia deixar que o barão ou sir Rodney cuidassem do animal.
Horace olhou para cima uma vez, fazendo contato visual com Will Não havia animosidade no olhar. Na verdade, ele deu ao aprendiz de arqueiro um meio sorriso tenso. Will se deu conta, ao observar Horace molhando os lábios repetidas vezes, de que o outro garoto estava tão nervoso quanto ele.
Halt fez outro sinal, e o círculo começou a se fechar sobre a toca. Quando o círculo se tornou menor, Will perdeu seu mestre e os outros homens de vista. Ele sabia, por causa da contínua inquietação de Puxão, que o porco selvagem ainda devia estar no meio dos arbustos. Mas Puxão era bem treinado e continuava a andar sempre que seu cavaleiro o impelia delicadamente para a frente.
Um rugido forte veio de dentro da cova, e os cabelos de Will se arrepiaram. Ele nunca tinha ouvido o grito de um porco selvagem furioso antes. Por um instante, os caçadores hesitaram.
- Ele está lá! - o barão gritou, sorrindo animado para Will. - Vamos torcer para que ele venha para o nosso lado, não é, rapazes?
Will não tinha muita certeza de que queria que o porco selvagem viesse em disparada para o lado deles. Na verdade, gostaria muito que ele fosse para o lado oposto.
Mas o barão e sir Rodney riam como colegiais enquanto preparavam suas lanças. Eles estavam apreciando a caçada, como Halt tinha previsto. Depressa, Will tirou o arco do ombro e posicionou uma flecha na corda. Tocou a ponta por um momento, certificando-se de que ainda estava afiada como uma navalha. Sua garganta estava seca. Ele não tinha certeza de que poderia falar se alguém lhe dirigisse a palavra.
Os cães puxavam suas guias, enchendo a floresta com os ecos de seus latidos nervosos. Foi esse barulho que agitou o porco selvagem.
Naquele momento, enquanto eles continuavam a latir, Will ouviu o imenso animal derrubar com suas longas presas alguns arbustos que formavam seu esconderijo.
O barão se virou para Bert, que cuidava dos cães, e fez um sinal com a mão para que os animais fossem soltos.
Os cães grandes e fortes dispararam pelo espaço aberto até o esconderijo e desapareceram em meio às moitas. Eram animais robustos, criados especialmente para a caça ao porco selvagem.
O barulho vindo do esconderijo era indescritível. Os latidos furiosos dos cães foram acompanhados pelos gritos de gelar o sangue do porco selvagem enraivecido. Galhos de arbustos e árvores jovens se quebraram e estalaram, e a mata pareceu estremecer.
Então, de repente, o porco selvagem apareceu na clareira.
O bicho parou no meio do círculo, entre os locais em que estavam Will e Halt. Com um grito enfurecido, se livrou de um dos cães que ainda estava agarrado ao seu corpo e então disparou na direção dos caçadores com uma velocidade inacreditável.
O jovem cavaleiro diretamente na frente dele não hesitou: se apoiou num joelho, enterrou a base de sua lança no chão e direcionou a ponta cintilante para o animal que corria em sua direção.
O porco selvagem não teve chance de se virar. Sua pressa o fez cair sobre a cabeça da lança. Ele deu um salto para cima, gritando de dor e fúria, tentando arrancar o pedaço de aço mortal. Mas o jovem guerreiro o prendeu impiedosamente com a lança, segurando-o junto do chão e não dando nenhuma chance ao animal enraivecido de se libertar.
Assustado e de olhos arregalados, Will viu o cabo forte da lança se curvar como um arco sob o peso do porco selvagem, mas então a ponta cuidadosamente afiada penetrou no coração do animal e tudo terminou.
Com um último rugido lancinante, o enorme porco selvagem caiu para o lado e morreu.
O corpo manchado era quase tão grande quanto o de um cavalo e era todo formado de puro músculo. As presas, agora inofensivas, curvavam-se para trás sobre seu focinho feroz. Elas estavam sujas da terra que ele tinha revirado e do sangue de pelo menos um dos cães.
Will olhou para o corpo maciço e estremeceu. Se aquele era um porco selvagem, ele não tinha a menor pressa de ver outro.
Os outros caçadores se reuniram em volta do jovem cavaleiro que tinha matado o animal, cumprimentando-o e dando tapinhas em suas costas. O barão Arald começou a andar em sua direção, mas parou ao lado de Puxão, olhando para Will enquanto falava.
- Você não vai ver outro desse tamanho durante muito tempo, Will - ele disse de mau humor. - Pena que ele não veio na minha direção. Eu gostaria de um troféu desses para mim.
Ele continuou a andar até sir Rodney, que já estava com o grupo de guerreiros em volta do porco selvagem morto.
Consequentemente, Will se viu, pela primeira vez em algumas semanas, frente a frente com Horace. Houve uma pausa constrangedora em que nenhum dos garotos quis dar o primeiro passo. Horace, entusiasmado com os acontecimentos da manhã e o coração ainda batendo forte por causa da emoção causada pelo medo que tinha sentido quando o porco selvagem apareceu, queria partilhar o momento com Will. À luz do que tinham acabado de ver, sua briga infantil parecia sem importância e agora ele se sentia mal por seu comportamento naquele dia, seis semanas antes, mas não conseguia encontrar as palavras para expressar seus sentimentos e não se viu encorajado pela expressão sombria de Will. Então, com um leve dar de ombros, começou a passar por Puxão para cumprimentar o jovem caçador. Ao fazer isso, o pônei se enrijeceu e levantou as orelhas, relinchando levemente.
Will olhou para o matagal e seu sangue pareceu gelar nas veias.
Ali, parado bem ao lado da proteção dos arbustos, estava outro porco selvagem: maior até do que o que estava morto na neve.
- Cuidado! - ele gritou quando o enorme animal raspou a terra com as presas.
A situação era perigosa. A linha de caçadores tinha se desfeito; a maioria estava admirando o tamanho do porco selvagem e elogiando seu matador. Apenas Will e Horace ficaram no caminho da outra fera, Will percebeu que isso era principalmente porque Horace tinha hesitado por aqueles poucos segundos vitais.
Horace se virou de repente quando ouviu o grito de Will. Ele olhou para o colega e então para o novo perigo. O porco selvagem abaixou a cabeça, raspou o chão outra vez e atacou. Tudo aconteceu numa velocidade aterrorizante. Num momento, o imenso animal estava raspando o chão com as presas; no outro, disparava na direção deles. Colocando-se entre Will e o porco selvagem, Horace se virou sem hesitação para o animal, preparando a lança como sir Rodney e o barão tinham lhe mostrado.
Mas, ao fazer isso, seu pé escorregou na trilha gelada coberta de neve e ele caiu indefeso para o lado, soltando a lança no chão.
Não havia nenhum segundo a perder. Horace estava deitado desarmado na frente daquelas presas mortíferas. Will tirou os pés dos estribos e pulou no chão, no mesmo tempo em que preparava a flecha. Ele sabia que aquele pequeno arco não teria chance de parar a investida louca do porco selvagem. Só desejava poder distrair o animal enraivecido e fazer que se desviasse do garoto desprotegido no chão.
Ele atirou e no mesmo instante correu para o lado, para longe do aprendiz caído na neve. Em seguida, gritou com toda a força dos pulmões e atirou novamente.
As flechas ficaram espetadas na pele grossa do porco selvagem como agulhas numa almofada para alfinetes. Elas não provocaram grandes danos, mas a dor que causaram atravessava seu corpo como uma faca quente. Seus olhos vermelhos e zangados se prenderam na pequena figura saltitante, e o animal furioso saltou atrás de Will.
Não havia tempo para atirar novamente. Horace estava em segurança naquele momento. Agora era Will que estava em perigo. Ele procurou o abrigo de uma árvore e se agachou atrás dela bem a tempo.
O ataque enraivecido do porco selvagem o levou diretamente para o tronco da árvore. Seu corpo enorme se chocou contra ela, sacudiu-a até as raízes e mandou uma chuva de neve para o chão, caída dos galhos.
Surpreendentemente, o porco selvagem não pareceu ter sentido o choque. Ele recuou alguns passos e atacou Will novamente. O garoto se escondeu atrás do tronco outra vez, mal conseguindo evitar as presas cortantes quando o porco selvagem passou por ele feito um trovão.
Gritando furioso, o imenso animal se virou, deslizando na neve, e foi para cima do garoto novamente. Desta vez, não havia tempo de Will desviar para o lado no último instante. O porco selvagem veio trotando, a fúria visível em seus olhos vermelhos, seu hálito quente soltando vapor no ar gelado de inverno.
Atrás de si, Will ouviu os gritos dos caçadores, mas sabia que chegariam tarde demais para ajudá-lo. Ele preparou outra flecha, sabendo que não tinha chance de atingir um ponto vital. Então, o porco se aproximou de frente.
O rapaz escutou um trovejar abafado de cascos na neve, e um vulto pequeno e desgrenhado se atirou contra o monstro furioso.
- Não, Puxão! - Will gritou, temendo pela vida de seu cavalo.
Mas o pônei investiu contra o imenso porco selvagem, virou-se de costas e o atacou com as patas traseiras quando ele ficou ao seu alcance. Os cascos traseiros de Puxão atingiram o porco nas costelas com toda a força e fizeram a fera girar de lado na neve.
O porco selvagem se levantou no mesmo instante, ainda mais furioso do que antes. O pônei tinha feito que perdesse o equilíbrio, mas o chute não causou grandes danos. Agora, o animal selvagem cortava e derrubava o que via à sua frente para se aproximar de Puxão, enquanto o pequeno pônei se empinava assustado e dançava para os lados para escapar do alcance das presas cortantes.
- Puxão! Fuja! - Will gritou novamente com o coração na garganta.
Se aquelas presas atingissem os tendões sensíveis das pernas do cavalo, Puxão ficaria aleijado por toda a vida. Will não conseguia ficar ali e simplesmente ver seu cavalo se colocar em tal perigo para defendê-lo. Ele se preparou e atirou novamente, em seguida tirou a longa faca de arqueiro do cinturão e disparou pela neve na direção do animal imenso e furioso.
A terceira flecha atingiu o porco de lado. Mais uma vez, Will tinha perdido um ponto vulnerável e só feriu o animal. Ele gritou enquanto corria, insistindo para que Puxão se afastasse. O porco selvagem viu o cavalo se aproximar e reconheceu a pequena figura que o tinha feito ficar tão furioso. Seus olhos vermelhos cheios de ódio fixaram-se nele e sua cabeça se abaixou para um último ataque mortal.
Will viu os músculos das patas traseiras do animal se contraírem. Estava longe demais de um lugar para se proteger e teria que enfrentar o ataque em terreno aberto. Ele se ajoelhou e, sem esperanças, estendeu uma faca afiada na sua frente enquanto o animal corria para cima dele. Vagamente, ouviu o grito rouco de Horace quando o aprendiz de guerreiro se jogou para a frente com a lança em punho.
Então, ouviu-se um assobio agudo e profundo mais forte do que o dos cascos do porco selvagem, seguido por um som sólido e molhado. O porco selvagem torceu o corpo para trás, virou-se em agonia e caiu morto como uma pedra na neve.
A flecha de Halt, comprida e de haste pesada, estava enterrada no lado do corpo do animal depois de ser atirada com toda a força de seu poderoso arco. Ele tinha atingido o monstro em movimento bem atrás do ombro esquerdo, fazendo que a ponta da flecha penetrasse e atravessasse o grande coração do porco.
Um disparo perfeito.
Halt fez Abelard se aproximar e pulou para o chão, jogando os braços ao redor do garoto trêmulo. Will, tomado de alívio, enterrou o rosto no tecido áspero da capa do arqueiro. Ele não queria que ninguém visse as lágrimas que corriam em sua face.
Com delicadeza, Halt tirou a faca da mão de Will.
- Que raios você estava esperando fazer com isso?
Will apenas balançou a cabeça. Ele não conseguia falar. Sentiu o focinho macio de Puxão cutucando-o com delicadeza e encarou os olhos grandes e inteligentes do animal.
E então tudo foi barulho e confusão quando os caçadores se reuniram à volta deles, admirando o tamanho do segundo porco selvagem e batendo nas costas de Will por sua coragem. Ele ficou parado entre os homens, uma figura pequena ainda envergonhada das lágrimas que deslizavam por seu rosto, não importa quanto tentasse pará-las.
- Eles são gigantescos - sir Rodney disse, cutucando o porco selvagem morto com a bota. - Achamos que havia só um porque eles nunca deixam o esconderijo juntos.
Will se virou ao sentir alguém tocar seu ombro e encontrou o olhar de Horace. O aprendiz de guerreiro estava balançando a cabeça lentamente, admirado e incrédulo.
- Você salvou a minha vida - ele disse. - Foi a coisa mais corajosa que já vi.
Will tentou fazer que Horace parasse de agradecer, mas o colega continuou a falar. Ele se lembrou de todas as vezes no passado em que tinha provocado e agredido Will. Agora, agindo instintivamente, o garoto menor o tinha salvado das presas cortantes e assassinas. E Horace provou sua crescente maturidade quando esqueceu atitudes instintivas e se colocou entre o animal raivoso e o aprendiz de arqueiro.
- Mas por que, Will? Afinal, nós... - ele não conseguiu terminar a frase, mas Will sabia o que ele queria dizer.
- Horace, nós podemos ter brigado no passado, mas não odeio você. Nunca odiei.
Horace fez um gesto de cabeça, e uma expressão de entendimento tomou conta de seu rosto. Ele pareceu tomar uma decisão.
- Eu lhe devo minha vida, Will - ele disse num tom determinado. Nunca vou esquecer essa dívida. Se você alguma vez precisar de um amigo, se precisar de ajuda, pode me chamar.
Os dois garotos se encararam por um instante, então Horace estendeu a mão e Will a apertou. O círculo de cavaleiros em volta ficou em silêncio, testemunhando sem querer interromper aquele momento importante para os dois rapazes. O barão Arald se aproximou e pôs os braços ao redor dos garotos, um de cada lado.
- Belas palavras, as de vocês dois! - ele disse com entusiasmo, sendo seguido pelo coro animado dos cavaleiros.
O barão ria satisfeito. Pensando bem, tinha sido uma manhã perfeita. Um pouco de animação. Dois grandes porcos selvagens mortos. E agora dois de seus garotos formando o tipo de ligação especial que somente nascia do perigo partilhado.
- Temos dois ótimos jovens aqui! - ele disse para todo o grupo e novamente se ouviu o coro entusiasmado de concordância. - Halt, Rodney, vocês dois podem se orgulhar de seus aprendizes!
- Nós nos orgulhamos, senhor - sir Rodney respondeu, fazendo um gesto de aprovação para Horace.
Ele tinha visto como o garoto se virou sem hesitar para enfrentar o ataque e aprovou a oferta franca de amizade a Will. Ele se lembrava muito bem da briga dos dois no Dia da Colheita. Parecia que tinham deixado as discussões infantis para trás. Ficou profundamente satisfeito por ter escolhido Horace para a Escola de Guerra.
Halt, por sua vez, não disse nada, mas, quando Will se virou para seu mentor, os olhares de ambos se encontraram e ele simplesmente fez um gesto de cabeça.
Will sabia que isso equivalia a vários vivas de Halt.
Nos dias que se seguiram à caçada ao porco selvagem, Will percebeu uma mudança na forma como era tratado. Havia uma certa diferença, até respeito, no jeito como as pessoas falavam com ele e o olhavam quando passava. O fato era mais visível entre o povo da vila. Como eram pessoas simples, com o dia-a-dia bastante limitado, tendiam a glamourizar e exagerar qualquer acontecimento que, de alguma forma, escapava do comum.
No fim da primeira semana, os acontecimentos da caçada tinham sido aumentados de tal forma que diziam que Will tinha matado os dois porcos selvagens com uma só mão quando eles saíram em disparada do bosque. Alguns dias depois disso, ao ouvir contarem a história, era quase possível acreditar que ele tinha realizado o feito com uma única flecha que atravessou o primeiro porco selvagem e foi se alojar direto no coração do segundo.
- Na verdade, eu não fiz muita coisa - ele disse para Halt, numa noite, quando estavam sentados perto do fogo na pequena cabana aquecida que dividiam na beira da floresta. - Quer dizer, não planejei nem decidi o que fazer. A coisa simplesmente aconteceu. E, afinal, foi você quem matou o porco selvagem, não eu.
Halt apenas assentiu, olhando fixamente para as chamas amarelas e saltitantes na lareira.
- As pessoas pensam o que querem - ele disse devagar. - Nunca dê atenção demais a elas.
Mesmo assim, Will estava perturbado com a bajulação. Achava que as pessoas estavam dando importância exagerada aos fatos. Will sentia, em seu coração, que tinha feito uma coisa que valia a pena e, talvez, até honrosa. Mas estava sendo tratado como uma celebridade por acontecimentos totalmente fictícios e, como era uma pessoa essencialmente honesta, não conseguia sentir-se orgulhoso disso.
Will também se sentia um pouco constrangido porque era um dos poucos que tinha percebido o ato original de Horace, instintivamente corajoso, colocando-se em frente ao porco selvagem. Ele sentia que talvez o arqueiro tivesse a oportunidade de elogiar a ação altruísta de Horace para sir Rodney, mas seu professor simplesmente tinha assentido e dito apenas:
- Sir Rodney sabe. Ele não perde muita coisa. Está um pouco acima da média das outras pessoas.
E Will teve que se satisfazer com isso.
No castelo, com os cavaleiros da Escola de Guerra, os vários chefes de ofício e os aprendizes, as atitudes eram diferentes. Ali, Will apreciava a simples aceitação e o reconhecimento do fato de que tinha se saído bem. Percebeu que agora as pessoas geralmente sabiam seu nome e cumprimentavam Halt e ele quando os dois tinham trabalho a fazer na área do castelo. O próprio barão estava mais amistoso do que nunca. Era motivo de orgulho ver um dos garotos do castelo apresentar um bom desempenho.
Horace era a pessoa com quem Will gostaria de discutir o assunto. Mas, como seus caminhos raramente se cruzavam, a oportunidade não tinha surgido. Ele queria se certificar de que o aprendiz de guerreiro não tinha dado grande importância às histórias ridículas que tinham varrido a vila e esperava que seu antigo colega do castelo soubesse que ele não tinha feito nada para espalhar aqueles boatos.
Enquanto isso, as lições e o treinamento de Will continuavam num ritmo acelerado. Halt tinha lhe dito que no prazo de um mês eles partiriam para a Reunião: um acontecimento anual no calendário dos arqueiros.
Era nessa ocasião que todos os 50 arqueiros se reuniam para trocar informações, discutir quaisquer problemas que pudessem ter surgido no reino e fazer planos. O mais importante para Will era o fato de que também era época de avaliar os aprendizes e ver se eles estavam preparados para passar ao próximo ano do treinamento. Infelizmente, ele estava treinando somente há sete meses. Se não passasse na avaliação da Reunião daquele ano, teria que esperar mais um ano até que surgisse outra oportunidade. Como resultado, treinava incansavelmente, do nascer até o fim de cada dia. O descanso do sábado era um luxo há muito esquecido. Will atirava flechas e mais flechas em alvos de diferentes tamanhos, em diferentes condições, de pé, ajoelhado, sentado. Ele até atirava escondido nas árvores.
E praticava o uso das facas em pé, ajoelhado, sentado, lançando-se para a esquerda e para a direita. Ele treinava jogar a maior das duas facas para que ela atingisse o alvo primeiro com o cabo. Afinal, como Halt tinha dito, às vezes era preciso apenas assustar a pessoa em quem estava atirando, portanto era uma boa idéia saber como fazê-lo.
Will praticava andar furtivamente, ficar parado como uma estátua mesmo quando tinha certeza de que tinha sido descoberto e aprendeu que, com muita frequência, as pessoas simplesmente não o notavam até que ele realmente se mexia. Aprendeu o truque que os buscadores usavam, deixando que o olhar passasse de um determinado ponto e de repente voltasse a olhar para ele para captar qualquer movimento, por menor que fosse. Aprendeu sobre as sentinelas da retaguarda, que seguiam um grupo silenciosamente na esperança de pegar qualquer pessoa que não tivesse sido vista, e então saíam do esconderijo quando o grupo tivesse passado.
Ele trabalhava com Puxão, fortalecendo o elo e a afeição que tinham se formado muito depressa entre os dois. Aprendeu a usar os sentidos aguçados do faro e da audição do pequeno cavalo para o avisar de qualquer perigo e aprendeu a interpretar os sinais que o cavalo enviava para seu cavaleiro.
Assim, não era de surpreender que, no final do dia, Will não tivesse disposição para subir o caminho sinuoso que levava ao Castelo Redmont e procurar Horace para conversar. Will aceitava o fato de que, cedo ou tarde, a oportunidade surgiria. Enquanto isso, ele só podia esperar que o desempenho de Horace estivesse sendo reconhecido por sir Rodney e pelos outros membros da Escola de Guerra.
Infelizmente para Horace, parecia que nada estava mais longe da verdade.
Sir Rodney estava perplexo diante do jovem e musculoso aprendiz. Ele parecia ter todas as qualidades que a Escola de Guerra procurava: era corajoso, cumpria ordens imediatamente e mostrava enorme habilidade no treinamento com as armas. Mas seu trabalho de classe ficava abaixo da média. As tarefas eram entregues com atraso ou feitas com desleixo. Ele parecia ter problemas em prestar atenção nos instrutores - como se estivesse distraído o tempo todo. Além disso, suspeitava-se de que tinha uma preferência por brigas. Nenhum integrante da equipe o tinha visto brigando, mas frequentemente era visto com hematomas e contusões leves e parecia não ter feito amigos entre os colegas de classe. Tudo isso servia para criar a imagem de um recruta briguento, anti-social e preguiçoso que tinha uma certa habilidade com as armas.
Considerando todos os aspectos e com muita relutância, o mestre de guerra estava começando a sentir que teria que expulsar Horace da Escola de Guerra. Todos os fatos pareciam indicar isso. No entanto, seus instintos lhe diziam que estava enganado, que havia algum outro fator que ele desconhecia.
Na verdade, havia três outros fatores: Alda, Bryn e Jerome. E, no mesmo momento em que o mestre de Guerra estava pensando no futuro de seu recruta mais jovem, eles cercaram Horace mais uma vez.
Parecia que, cada vez que ele conseguia encontrar um lugar para escapar, os três alunos mais velhos descobriam seu paradeiro. É claro que isso não era difícil para eles, já que tinham uma rede de espiões e informantes entre os outros garotos mais jovens que tinham medo deles, dentro e fora da Escola de Guerra. Desta vez, encurralaram Horace atrás do depósito de armas, num local calmo que ele tinha descoberto alguns dias antes. Estava preso contra a parede de pedra do edifício do depósito de armas, e os três valentões estavam parados em meio círculo na sua frente. Cada um deles segurava uma bengala grossa, e Alda tinha um saco pesado dobrado sobre um braço. - Nós estávamos procurando você, bebê - Alda disse. Horace não respondeu. Seus olhos passavam de um para outro enquanto ele se perguntava quem faria o primeiro movimento.
- O bebê nos fez de bobos - Bryn falou.
- Fez toda a Escola de Guerra de boba - acrescentou Jerome. Horace franziu a testa confuso com as palavras dos garotos. Ele não tinha idéia do que eles estavam dizendo, mas Alda logo esclareceu sua dúvida.
- O bebê teve que ser resgatado do porco selvagem grande e malvado.
- Por um pequeno e rastejante aprendiz que vive se escondendo - Bryn acrescentou num tom claramente zombeteiro.
- E isso faz mal para a imagem de todos nós.
Jerome empurrou o ombro de Horace enquanto falava, fazendo que se chocasse contra a pedra áspera da parede. Seu rosto estava vermelho e zangado, e Horace sabia que ele estava se preparando para alguma coisa. Suas mãos se fecharam ao lado do corpo, e Jerome percebeu o movimento.
- Não me ameace, bebê! É hora de aprender uma lição.
Ele se aproximou ameaçador. Horace se virou para encará-lo e, no mesmo instante, sabia que tinha cometido um erro. O movimento de Jerome foi um artifício. O verdadeiro ataque veio de Alda, que jogou o pesado saco de estopa na cabeça de Horace antes que ele pudesse resistir e puxou uma corda com força para que ele ficasse imobilizado da cintura para cima, vendado e indefeso.
Horace sentiu várias voltas da corda caindo sobre seus ombros, amarrando-o, e então os golpes começaram.
Ele cambaleou às cegas sem poder se defender, enquanto os três garotos o atacavam com as pesadas bengalas que estavam carregando.
Ele se chocou contra a parede e caiu, incapaz de se proteger, com os braços imobilizados ao lado do corpo. Os golpes continuaram, recaindo na cabeça, nos braços e nas pernas desprotegidos. Os três garotos continuavam sua ladainha irracional de ódio.
- Chame o rastejador para salvar você agora, bebê.
- Isso é por nos fazer parecer idiotas.
- Aprenda a ter respeito por sua Escola de Guerra, bebê.
E eles continuaram sem parar enquanto Horace se retorcia no chão, tentando escapar dos golpes em vão. Foi a pior surra que já tinham lhe dado e continuaram até que, gradativamente, misericordiosamente, ele ficou imóvel e semiconsciente. Cada um bateu nele ainda algumas vezes, e então Alda retirou o saco. Horace respirou fundo e encheu o pulmão de ar fresco. Todo o seu corpo doía violentamente. De muito longe, ele ouviu a voz de Bryn.
- Agora vamos ensinar a mesma lição para o rastejador.
Os outros riram e Horace escutou quando se afastaram. Ele gemeu baixinho, desejando que a inconsciência o libertasse, querendo se deixar mergulhar em seus braços escuros e confortáveis para que a dor fosse embora, pelo menos durante um tempo.
Então ele compreendeu o significado das palavras de Bryn. Eles iam dar o mesmo tratamento a Will, simplesmente porque achavam que a atitude dele ao salvar Horace tinha, de certa forma, depreciado a Escola de Guerra. Com um esforço sobre-humano, ele empurrou as agradáveis dobras da escuridão para longe e se levantou com esforço, gemendo por causa da dor, respirando com dificuldade, apoiando-se na parede, a cabeça girando. Ele se lembrou da promessa que tinha feito a Will: "Se você precisar de um amigo, pode me chamar."
Tinha chegado a hora de cumprir a promessa.
Will estava treinando na vasta campina atrás da cabana de Halt. Ele tinha colocado quatro alvos em distâncias diferentes e estava alternando os tiros aleatoriamente entre os quatro, nunca atirando no mesmo duas vezes seguidas. Halt tinha preparado o exercício para ele antes de ir ao escritório do barão para discutir um comunicado do rei.
- Se você atirar duas vezes no mesmo alvo, vai começar a contar com o primeiro tiro para determinar sua direção e elevação. Dessa forma, nunca vai aprender a atirar instintivamente. Sempre vai precisar atirar primeiro num alvo visível.
Will sabia que seu mestre estava certo. Mas isso não tornou o exercício mais fácil. Para aumentar a dificuldade, Halt tinha determinado que ele não deveria deixar passar mais que cinco segundos entre um tiro e outro.
Com a testa franzida pela concentração, ele soltou as cinco últimas flechas de um conjunto. Uma após outra, numa sucessão rápida, elas dispararam pela campina, atingindo os alvos. Will, com a aljava vazia pela décima vez naquela manhã, parou para analisar os resultados e balançou a cabeça satisfeito. Todas as flechas tinham atingido o alvo, e a maioria estava amontoada no círculo central ou na mosca. Sua pontaria era excelente e o fez valorizar a prática constante. É claro que ele não sabia, mas havia poucos arqueiros no reino fora do Corpo de Arqueiros que podiam se comparar a ele. Até mesmo os arqueiros do exército do rei não eram treinados para atirar com essa velocidade e precisão individual. Eles eram treinados para atirar em grupo e mandar uma grande quantidade de flechas contra uma força atacante. Como resultado, o seu treinamento se concentrava mais em ações coordenadas para que todas as flechas fossem atiradas ao mesmo tempo.
Will tinha acabado de soltar o arco e estava se preparando para recuperar as flechas quando o som de passos atrás dele fez que se virasse. Ele ficou um pouco surpreso ao ver três aprendizes da Escola de Guerra observando-o, os casacos vermelhos indicando que eram alunos do 2° ano. Não reconheceu nenhum deles, mas acenou num cumprimento amistoso.
- Bom-dia. O que estão fazendo aqui?
Não era comum ver aprendizes da Escola de Guerra tão longe do castelo. Will notou as grossas bengalas que carregavam e imaginou que tinham saído para uma caminhada. O que estava mais perto, um garoto loiro e bonito, sorriu e disse:
- Estamos procurando o aprendiz de arqueiro.
Will não conseguiu evitar devolver o sorriso. Afinal, a capa que ele usava mostrava, sem possibilidade de erro, que era um aprendiz de arqueiro. Mas talvez o aprendiz da Escola de Guerra apenas estivesse sendo educado.
- Bom, vocês encontraram ele. O que posso fazer por vocês?
- Trouxemos um recado da Escola de Guerra para você - o garoto respondeu.
Como todos os alunos da Escola de Guerra, ele e os companheiros eram altos e musculosos. Os três se aproximaram, e Will recuou um passo instintivamente, pois achou que os garotos estavam próximos demais. Mais do que precisariam estar para dar um recado.
- É sobre o que aconteceu na caçada ao porco selvagem - começou um deles.
Era o garoto de cabelos ruivos, muitas sardas no rosto e um nariz que mostrava sinais claros de que tinha sido quebrado, provavelmente num dos treinos de combate em que os alunos da Escola de Guerra sempre participavam. Will deu de ombros, pouco à vontade. Havia alguma coisa no ar de que ele não gostava. O garoto loiro ainda estava sorrindo, mas nem o garoto ruivo nem o terceiro companheiro, um menino moreno que era o mais alto dos três, pareciam achar que havia motivos para sorrir.
- Vocês sabem que as pessoas estão falando um monte de bobagens sobre isso. Não fiz muita coisa - Will contou.
- Nós sabemos - o garoto ruivo disparou zangado, e novamente Will deu um passo atrás quando eles se aproximaram um pouco mais.
O treinamento de Halt estava fazendo soar um alarme de advertência em sua mente. "Nunca deixe as pessoas chegarem perto demais de você", ele tinha dito. "Se tentarem, fique atento, não importa quem sejam ou o quanto você ache que são amistosas."
- Mas, quando você sai por aí dizendo a todos que salvou um aprendiz grande e desajeitado da Escola de Guerra, você nos faz parecer idiotas - o garoto alto acusou.
Will olhou para ele de testa franzida.
- Eu nunca disse isso! - protestou. - Eu...
E nesse momento, enquanto estava sendo distraído por Bryn, Alda fez um movimento, aproximando-se rapidamente com o saco aberto para jogá-lo na cabeça de Will. Foi a mesma tática que usaram com sucesso com Horace, mas Will já estava em guarda, portanto pressentiu o ataque e reagiu.
Inesperadamente, ele mergulhou na direção de Alda e virou o corpo num salto mortal, passando por baixo do saco. Em seguida, com um rápido movimento circular das pernas, atingiu as pernas de Alda e derrubou o garoto maior na grama. Mas eles eram três, e Will não podia enfrentá-los ao mesmo tempo. Ele escapou de Alda e Bryn, mas, quando completou o movimento e se levantou, Jerome o atacou com a bengala, atingindo as suas costas na altura dos ombros.
Com um grito de dor e susto, Will cambaleou para a frente. Bryn deu novo impulso à bengala e bateu nele de lado. Nesse momento, Alda já tinha recuperado o equilíbrio, furioso com a forma como Will tinha escapado, e também o golpeou nos ombros.
A dor era insuportável e, com um soluço de agonia, Will caiu de joelhos.
No mesmo instante, os três aprendizes da Escola de Guerra se aproximaram e o cercaram, impedindo que fugisse, erguendo as pesadas bengalas para continuar a surra.
- Já chega!
A voz inesperada fez que parassem. Will, encolhido no chão com a cabeça coberta por um braço, esperando que o ataque começasse, olhou para cima e viu Horace, contundido e machucado, parado a alguns metros de distância. Ele segurava uma das espadas de exercício da Escola de Guerra na mão direita. Um de seus olhos estava preto e havia sangue escorrendo do seu lábio. Mas seu olhar mostrava um ódio e uma determinação que, por um momento, fez os três garotos mais velhos hesitarem. Então eles lembraram que eram maioria e que a espada de Horace não era, afinal, uma arma melhor do que as bengalas que usavam. Esquecendo Will por um instante, abriram o círculo e se moveram na direção de Horace com as bengalas prontas para o ataque.
- O bebê nos seguiu - Alda disse.
- O bebê quer outra surra - Jerome acrescentou.
- E o bebê vai ter o que quer - Bryn concluiu, sorrindo com confiança.
Mas então um grito de medo foi arrancado de seus lábios quando uma força repentina e incontrolável atingiu a bengala, arrancando-a de sua mão e fazendo-a voar para o chão a vários metros de distância.
Um grito parecido à sua direita lhe disse que a mesma coisa tinha acontecido com Jerome.
Confuso, Bryn olhou à sua volta e procurou as duas bengalas. Com uma sensação de desespero, viu que tinham sido atravessadas por flechas de haste preta.
- Acho que um de cada vez é mais justo, não é? - Halt perguntou.
Bryn e Jerome sentiram-se invadidos pelo terror quando olharam para cima e viram o rosto carrancudo do arqueiro parado nas sombras, a 10 metros de distância, com outra flecha já posicionada na corda do comprido arco.
Apenas Alda mostrou algum sinal de rebeldia.
- Isso é assunto da Escola de Guerra, arqueiro - ele disse, tentando resolver a situação com um tom ameaçador. - É melhor você ficar de fora.
Will, levantando-se vagarosamente, viu a raiva que queimava no fundo dos olhos de Halt diante daquelas palavras arrogantes. Por um momento, quase sentiu pena de Alda, mas então a dor lancinante nas costas e nos ombros fez que quaisquer pensamentos de simpatia fossem afastados no mesmo instante.
- Assunto da Escola de Guerra, garoto? - Halt disse numa voz perigosamente baixa.
Ele deu um passo à frente, cobrindo a distância que o separava de Alda com alguns passos rápidos. Antes que Alda se desse conta, Halt estava a menos de 1 metro dele. Mesmo assim, o aprendiz continuou com sua atitude desafiadora. O olhar sombrio no rosto de Halt era perturbador, mas, de onde estava, Alda concluiu que era bem mais alto que o arqueiro, e sua confiança voltou. O homem misterioso que agora estava à sua frente sempre o deixara inquieto. Alda nunca tinha percebido que figura insignificante ele era na realidade.
Esse foi o segundo erro do rapaz naquele dia. Halt era pequeno, mas insignificante não era uma palavra que se aplicava a ele. Além disso, Halt tinha passado a vida toda lutando contra adversários muito mais perigosos do que um aprendiz do 2° ano da Escola de Guerra.
- Parece que eu vi um aprendiz de arqueiro sendo atacado - Halt disse numa voz perigosamente baixa. - Acho que isso faz a coisa ser assunto meu também, não concorda?
Alda deu de ombros confiante de que agora poderia lidar com qualquer atitude que o arqueiro fosse tomar.
- Se quer que seja assunto seu, tudo bem - ele respondeu em tom zombeteiro. - Eu realmente não me importo.
Halt balançou a cabeça várias vezes enquanto digeria aquelas palavras.
- Bem, então acho que esse assunto é meu, sim, mas não vou precisar disto - ele respondeu, recolocando a flecha na aljava e jogando o arco para o lado enquanto se virava para trás.
Inadvertidamente, os olhos de Alda seguiram os movimentos do arqueiro, e o rapaz sentiu uma dor lancinante quando Halt deu um chute para trás e atingiu o pé do aprendiz com sua bota, ferindo-o entre o tornozelo e a canela. Quando Alda se dobrou para agarrar o pé machucado, o arqueiro girou sobre o calcanhar esquerdo e atingiu o nariz do aprendiz com o cotovelo. O golpe o jogou para cima novamente e o fez cambalear para trás, com os olhos marejados por causa da dor. Durante alguns segundos, a visão de Alda ficou embaçada e ele sentiu uma leve sensação de formigamento debaixo do queixo. Quando voltou a enxergar, viu que os olhos do arqueiro estavam somente a alguns centímetros dos seus. Não havia raiva neles, apenas desprezo e descaso que, de certa forma, eram muito mais assustadores.
A sensação de formigamento ficou um pouco mais pronunciada e, quando tentou olhar para baixo, Alda abafou um grito de medo. A faca maior de Halt, afiada e com uma ponta de agulha, estava encostada em seu queixo e pressionava levemente a carne macia de sua garganta.
- Nunca mais fale comigo desse jeito, garoto - o arqueiro recomendou em voz tão baixa que Alda teve que se esforçar para ouvir. - E nunca mais ponha as mãos no meu aprendiz. Entendeu?
Alda, esquecendo totalmente a arrogância e com o coração saltando de pavor, não conseguiu dizer nada. A faca espetou sua garganta com um pouco mais de força, e ele sentiu um fio quente de sangue escorrer por seu colarinho. De repente, os olhos de Halt faiscaram como brasas numa lareira.
- Entendeu?
- Sim... senhor - Alda grunhiu em resposta.
Halt deu um passo para trás, guardando a faca na bainha num movimento rápido. Alda caiu no chão, massageando o tornozelo dolorido. Ele tinha certeza de que tinha rompido os tendões. Ignorando-o, Halt se virou para os outros dois aprendizes do 2° ano. Instintivamente, tinham se aproximado um do outro e estavam olhando para o arqueiro assustados, sem saber o que ele faria em seguida.
- Você - ele disse, apontando para Bryn num tom cheio de desprezo -, pegue sua bengala.
Com medo, Bryn foi até onde estava a bengala. A flecha de Halt ainda estava enterrada na madeira. Sem tirar os olhos do arqueiro, temendo algum truque, ele caiu de joelhos e procurou a bengala na grama com a mão até encontrá-la. Em seguida se levantou, segurando-a com a mão esquerda trêmula.
- Agora me devolva a flecha - o arqueiro ordenou.
O garoto alto e moreno tirou a flecha da madeira com dificuldade e se aproximou de Halt com todos os músculos tensos, pois esperava algum movimento inesperado por parte do arqueiro. Ele, no entanto, simplesmente pegou a flecha e a colocou na aljava. Bryn se afastou apressado, e Halt soltou um leve riso de desprezo. Então se virou para Horace.
- Imagino que esses três foram os responsáveis pelos seus hematomas.
Horace não respondeu por um momento, e então se deu conta de que seu silêncio era ridículo. Não havia motivo para continuar a proteger os três valentões. Nunca tinha havido um motivo.
- Sim, senhor - disse determinado. Halt assentiu, esfregando o queixo.
- Foi o que pensei. Bem, ouvi dizer que você é muito bom com a espada. Que tal praticar com esse herói na minha frente?
Um leve sorriso se espalhou no rosto de Horace quando ele entendeu o que o arqueiro estava sugerindo.
- Acho que vou gostar disso - ele disse, andando para a frente.
- Espere um momento! - Bryn protestou recuando. - Você não pode querer que eu...
Ele não continuou. Os olhos do arqueiro cintilaram outra vez com aquela luz perigosa. Ele deu meio passo para a frente e colocou a mão no cabo da faca.
- Vocês dois tem uma arma. Agora, podem começar - ele mandou com a voz muito baixa e perigosa.
Percebendo que estava numa armadilha, Bryn se virou para encarar Horace. Agora que se tratava de um confronto individual, ele se sentia muito menos confiante para lidar com o garoto mais jovem. Todos tinham ouvido falar da fantástica habilidade de Horace com a espada.