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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SANGUE DA CONGREGAÇÃO - P.2 / Terry Goodkind
SANGUE DA CONGREGAÇÃO - P.2 / Terry Goodkind

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

 

... — Devemos nos apressar, Lunetta. O mensageiro falou que devemos escapar. — Ele agachou e rolou a figura inconsciente. — E então partiremos atrás da Madre Confessora.

Lunetta se inclinou chegando mais perto, olhando para ele. — Mas Lorde General, eu disse, a teia do mago esconde a identidade dela de nós. Não podemos ver os fios de uma teia como essa. Não vamos reconhecê-la.

Um sorriso distorceu a cicatriz no lado da boca de Tobias Brogan.

— Oh, mas eu vi os fios da teia. O nome da Madre Confessora ser Kahlan Amnell.

 

 

 

 

 

Como havia temido, ela era uma prisioneira. Virou outra página depois de fazer a escritura apropriada no livro. Uma prisioneira da mais alta posição, uma prisioneira por trás de uma fechadura de papel, mas uma prisioneira apesar de tudo.

Verna bocejou enquanto escaneava a página seguinte, verificando os registros dos gastos do Palácio. Cada relatório requeria sua aprovação e tinha que ser marcado com suas iniciais para mostrar que a própria Prelada havia certificado os gastos.

Porque isso era necessário por ser um mistério para si, mas depois de assumir o cargo por alguns dias ela preferia evitar declarar seria desperdício de seu tempo, apenas para que Irmã Leoma, Dulcinia, ou Philippa desviassem os olhos e explicassem com um suspiro, evitando causar embaraço para a Prelada, porque isso realmente era necessário; e continuassem a explicar em grandes detalhes as horríveis consequências de não fazer uma coisa tão simples que dificilmente iria requerer qualquer esforço da parte dela, e seria um grande benefício para outros.

Podia antecipar a reação se ela declarasse que não se preocuparia em checar as contas: Ora, Prelada, se as pessoas não temessem que a própria Prelada estivesse preocupada o bastante para observar o bom andamento do trabalho delas, ficariam encorajadas a fraudar o Palácio. As Irmãs poderiam ser consideradas como tolas esbanjadoras sem bom senso. E então, por outro lado, se os pagamentos não fossem efetuados esperando pela autorização da Prelada, as famílias dos pobres trabalhadores ficariam famintas. Não gostaria que aquelas crianças ficassem com fome, gostaria, simplesmente porque você não queria prestar a eles a cortesia de aprovar o pagamento do trabalho duro que já tinham feito? Apenas porque não quer olhar para o relatório e ter o trabalho de colocar suas iniciais nele? Realmente gostaria que eles considerassem a Prelada tão insensível?

Verna suspirou quando observava o relatório de gastos para os estábulos: feno e grama, o ferrador de cavalos, a manutenção, reposição de pregos perdidos, reparo do estábulo depois que um garanhão despedaçou parte dele, e reparo necessário depois que vários cavalos aparentemente entraram em pânico durante a noite, derrubaram uma cerca, e saíram em disparada pelo campo.

Ela teria que conversar com o pessoal do estábulo e insistir para que eles mantivessem uma ordem melhor debaixo do teto deles. Enfiou a pena no vidro de tinta, suspirou mais uma vez, e marcou suas iniciais na parte inferior da página.

Enquanto ela colocava as contas do estábulo no topo de uma pilha de outras contas que já havia conferido, marcado, e lançado no livro, alguém bateu na porta suavemente. Ela puxou outro papel da pilha de relatórios que ainda deveriam ser verificados, uma longa conta do açougueiro, e começou a verificar as figuras. Ela não tinha ideia do quanto era caro manter o Palácio dos Profetas.

Ouviu a batida suave novamente. Provavelmente era Irmã Dulcinia ou Phoebe querendo entregar outra pilha de relatórios.

Ela não estava colocando sua marca tão rápido quanto elas traziam. Como a Prelada Annalina conseguia fazer tudo isso? Verna esperava que não fosse Irmã Leoma, aparecendo novamente para relatar notícias de alguma calamidade que a Prelada havia causado por uma ação ou comentário não considerado. Talvez pensassem que ela estava ocupada demais e fossem embora se ela não atendesse.

Juntamente com sua antiga amiga, Phoebe, Verna havia nomeado Irmã Dulcinia como sua administradora. fazia sentido ter uma Irmã com a experiência de Dulcinia por perto. Isso também permitia que Verna ficasse de olho na mulher. A própria Dulcinia pediu o trabalho, citando seu... conhecimento dos assuntos do Palácio.

Ter as Irmãs Leoma e Philippa como... confiáveis conselheiras, pelo menos era útil para manter elas ao alcance da vista também.

Não confiava nelas. Na verdade, não confiava em nenhuma delas; não poderia se dar ao luxo de confiar. Verna tinha que admitir, porém, que elas provaram ser boas conselheiras que sempre mantiveram os melhores interesses da Prelada e do Palácio de forma meticulosa em primeiro lugar. Ela ficava irritada por não conseguir encontrar erro algum nos conselhos delas.

A batida veio novamente, educada, mas insistente.

— Sim! O que foi?

A grossa porta abriu o suficiente para deixar passar a cabeça loura de Warren. Ele sorriu quando viu a expressão de raiva no rosto dela. Verna podia ver Dulcinia esticando o pescoço para olhar por cima dele, verificando o progresso da Prelada nas pilhas de papel. Warren colocou o resto do corpo para dentro.

Olhou ao redor na sala sombria, examinando o trabalho feito nela. Depois da batalha perdida que a predecessora dela teve com as Irmãs do Escuro, o escritório foi deixado em ruínas. Uma equipe de trabalhadores havia feito reparos apressados, colocando ele de volta em ordem o mais rápido possível para que a nova Prelada não sofresse com o inconveniente por muito tempo. Verna sabia o custo; tinha visto a relação dos gastos.

Warren caminhou até o lado oposto da pesada mesa de nogueira. — Boa noite, Verna. Você parece estar trabalhando duro. Assuntos importantes do Palácio, eu presumo, para estar acordada tão tarde.

Os lábios dela apertaram. Antes que ela conseguisse responder, Dulcinia aproveitou a oportunidade para enfiar sua cabeça, antes de fechar a porta atrás do visitante.

— Acabei de arrumar os relatórios do dia, Prelada. Gostaria de receber eles agora? Você deve estar quase para terminar os outros.

Verna exibiu um sorriso terrível quando dobrou o dedo fazendo sinal para sua ajudante. Irmã Dulcinia ficou desconfiada com a expressão dela.

Seus penetrantes olhos azuis varreram a sala, pousando sobre Warren, antes que ela entrasse, alisando para trás o cabelo cinzento com um gesto de submissão.

— Posso ajudar em alguma coisa, Prelada?

Verna cruzou os braços sobre a mesa. — Ora, é claro, Irmã, você pode. Sua experiência seria valiosa nesse assunto. — Verna tirou um relatório da pilha. — Gostaria que você fosse em uma missão até os estábulos imediatamente. Parece que temos problemas lá, e um pouco de mistério.

A Irmã Dulcinia ficou radiante. — Problemas, Prelada?

— Sim. Parece que faltam alguns cavalos.

Irmã Dulcinia inclinou-se um pouco para frente, baixando a voz com aquele jeito tolerante dela. — Se lembro bem do relatório do qual você falou, Prelada, os cavalos ficaram assustados com alguma coisa durante a noite e correram. Eles apenas ainda não apareceram, só isso.

— Sei disso, Irmã. Gostaria que o Mestre Finch explicasse como os cavalos que derrubaram a cerca dele conseguiram fugir correndo, e não foram encontrados.

— Prelada?

Verna levantou as sobrancelhas com uma expressão de surpresa. — Nós vivemos em uma ilha, não é mesmo? Como os cavalos podem não estar mais na ilha? Nenhum guarda viu eles galoparem sobre uma ponte. Pelo menos eu não vi nenhum relatório sobre isso. Nessa época do ano os pescadores estão lá fora no rio dia e noite, pescando, e mesmo assim não viram nenhum cavalo atravessar nadando. Então onde eles estão?

— Bem, tenho certeza que eles simplesmente saíram correndo, Prelada. Talvez...

Verna sorriu de forma indulgente. — Talvez o Mestre Finch tenha vendido eles, e simplesmente falou que eles fugiram para cobrir a perda deles.

Irmã Dulcinia ficou ereta. — Certamente, Prelada, você não gostaria de acusar...

Verna bateu com uma das mãos na mesa e levantou rapidamente. — Também estão faltando pregos. Será que os pregos também fugiram correndo no meio da noite? Ou os cavalos decidiram colocá-los eles mesmos e dar um passeio?

Irmã Dulcinia ficou pálida. — Eu... bem, eu... eu vou...

— Você vai até os estábulos agora mesmo e diga ao Mestre Finch que se ele não tiver encontrado os cavalos do Palácio na hora em que eu decidir questionar sobre esse assunto novamente, o valor deles vai sair do pagamento dele e os pregos de seu esconderijo!

Irmã Dulcinia fez uma rápida reverência e saiu da sala apressada. Quando a porta fechou, Warren riu.

— Parece que está fazendo o trabalho muito bem, Verna.

— Não brinque comigo, Warren!

O sorriso desapareceu do rosto dele. — Verna, se acalme. São apenas um par de cavalos. O homem vai encontrá-los. Não vale a pena você ficar tão nervosa.

Verna piscou para ele. Encostou os dedos nas bochechas e realmente sentiu que elas estavam úmidas. Soltou um grunhido de cansaço e desabou na cadeira.

— Sinto muito, Warren. Não sei o que aconteceu comigo. Acho que estou apenas cansada e frustrada.

— Verna, nunca vi você assim, deixando que um monte de papéis idiotas façam você ficar tão nervosa.

— Warren, veja isso! — Ela mostrou o relatório. — Sou uma prisioneira aqui, aprovando o custo do reboque de estrume! Tem ideia de quanto estrume aqueles cavalos produzem? Ou de quanta comida eles comem, só para fazer todo aquele estrume?

— Bem, não, acho que teria que admitir que...

Ela pegou o relatório seguinte na pilha. — Manteiga...

— Manteiga?

— Sim, manteiga. — Verna observou o relatório. — Parece que ela estragou e tivemos que comprar noventa quilos para repor. Tenho que avaliar isso e determinar se o dono da leiteria pediu um preço justo e deve ser procurado no futuro.

— Deve ser importante checar esses assuntos.

Verna pegou o papel seguinte. — Pedreiros. Pedreiros para consertar o telhado sobre o salão de jantar que está com goteiras. E telhas. Um relâmpago quebrou telhas, disseram, e tiveram que arrancar dez metros quadrados e substituir. Foi preciso dez homens durante duas semanas, diz aqui. Eu tenho que decidir se esse foi o tempo certo, e aprovar o pagamento.

— Bem, se as pessoas fazem um trabalho, elas tem o direito de receber, não tem?

Ela esfregou um dedo no anel dourado. — Pensei que se algum dia eu tivesse o poder, haveria mudanças no modo como as Irmãs fazem o trabalho do Criador. Mas isso é tudo que faço, Warren: olhar relatórios. Estive aqui dia e noite lendo as coisas mais mundanas até que meus olhos ficarem dormentes.

— Isso deve ser importante, Verna.

— Importante? — Ela escolheu outro relatório com exagerada reverência. — Vamos ver... parece que dois de nossos rapazes ficaram bêbados e colocaram fogo em uma hospedaria... o fogo foi apagado... a hospedaria reclamou de alguns danos... gostariam que o Palácio os indenize. — Ela colocou o relatório de lado. — Vou ter uma conversa longa e bem alta com aqueles dois.

— Parece a decisão certa, Verna.

Ela escolheu outro relatório. — E o que temos aqui? Uma conta de costureira. Confecção de vestidos para as noviças. — Verna pegou outro. — Sal. Três tipos.

— Mas Verna...

Pegou outro. — E esse aqui? — Ela balançou o papel com falsa cerimônia. — Escavação de sepultura.

— O quê?

— Dois escavadores de sepultura. Querem receber por seu trabalho. — Ela escaneou a pilha. — E posso adicionar que eles consideram sua habilidade bem alta, pelo preço que estão pedindo.

— Olha, Verna, acho que ficou presa aqui tempo demais e precisa e um pouco de ar fresco. Porque não vamos dar uma caminhada.

— Uma caminhada? Warren, eu não tenho tempo...

— Prelada, você esteve sentada aqui tempo demais. Precisa de um pouco de atividade.— Ele inclinou a cabeça enquanto girava os olhos em um gesto exagerado na direção da porta. — Que tal isso?

Verna olhou para a porta. Se Irmã Dulcinia fez o que ela mandou, então apenas a Irmã Phoebe estaria no escritório externo. Phoebe era sua amiga. Ela lembrou a si mesma que não podia confiar em ninguém.

— Bem... sim, acho que eu gostaria de caminhar um pouco.

Warren marchou dando a volta na mesa e levantou-a segurando no braço dela. — Oh, bom, então. Podemos ir?

Verna afastou o braço e lançou para ele um olhar cruel. Ela cerrou os dentes quando falou com uma voz suave. — Ora, sim, porque não.

Com o som da porta, Irmã Phoebe rapidamente levantou para fazer uma reverência. — Prelada... precisa de alguma coisa? Talvez um pouco de sopa? Um pouco de chá?

— Phoebe, já falei para você uma dúzia de vezes que não precisa fazer reverência cada vez que coloca os olhos em mim.

Phoebe fez outra reverência. — Sim, Prelada. — O rosto redondo dela ficou vermelho. — Quer dizer... sinto muito, Prelada. Me perdoe.

Verna reuniu sua paciência soltando um suspiro. — Irmã Phoebe, nos conhecemos desde que éramos noviças.

Quantas vezes fomos até as cozinhas juntas para esfregar panelas para...? — Verna olhou para Warren.

— Bem, não lembro para quê, mas o fato é que somos velhas amigas. Por favor, você pode tentar lembrar disso?

As bochechas de Phoebe tufaram com um sorriso. — Claro... Verna. — Ela se encolheu ao chamar a Prelada — Verna — mesmo se fosse uma ordem. Lá fora, no corredor, Warren perguntou por que mandavam elas esfregarem panelas.

— Eu disse que não lembro. — ela disparou enquanto olhava para o corredor vazio. — Do que se trata tudo isso?

Warren encolheu os ombros. — Apenas uma caminhada. — Ele mesmo checou o corredor, e então lançou outro rápido olhar para ela. — Pensei que talvez a Prelada pudesse gostar de visitar a Irmã Simona.

Verna perdeu um passo. Irmã Simona estivera em estado de desordem durante semanas, alguma coisa sobre sonhos, e foi mantida em um quarto protegido por escudos para que não machucasse a si mesma, ou algum inocente.

Warren se aproximou e sussurrou. — Fui visitá-la mais cedo.

— Por quê?

Warren balançou o dedo para cima e para baixo, apontando para o chão. As câmaras. Ele queria se referir às câmaras. Ela fez uma careta para ele.

— E como estava a pobre Simona?

Warren verificou o corredor a esquerda e a direita quando eles chegaram a um cruzamento, então olhou para trás novamente. — Elas não deixariam que eu a visse — ele sussurrou.

Do lado de fora, a chuva rugia em um aguaceiro. Verna puxou o xale dela por cima da cabeça e mergulhou no dilúvio, dançando por cima de poças, tentando andar nas pontas dos pés sobre as pedras colocadas na grama encharcada. Luz amarela das janelas ondulavam nas poças de água. Os guardas nos portões que conduziam até a área da Prelada fizeram reverência quando ela e Warren passaram trotando, seguindo até uma passarela coberta.

Do lado de dentro, sob o teto baixo, ela balançou a água do xale e colocou ele em volta dos ombros enquanto os dois recuperavam o fôlego. Warren balançou a água da chuva do manto. Os lados arqueados da passarela estavam protegidos apenas por ripas de madeiras cruzadas com videiras, mas a chuva não estava sendo lançada pelo vento, então estava seco o bastante. Ela espiou dentro da escuridão, mas não conseguiu ver ninguém. Era uma passagem até o prédio seguinte: a pequena enfermaria.

Verna desabou sobre um banco de pedra. Warren estava pronto para continuar, mas quando ela sentou, ele também o fez. Estava frio e o calor dele perto dela parecia agradável. O forte cheiro de chuva e terra molhada era refrescante depois de estar lá dentro tanto tempo. Verna não estava acostumada a ficar tanto ali dentro. Gostava de ambientes externos, pensava que o chão podia ser uma boa cama, as árvores e campos um belo escritório, mas agora essa parte da vida dela tinha acabado. Havia um jardim do lado de fora do escritório da Prelada, mas ela não tinha tempo para colocar a cabeça para o lado de fora para ver ele.

Ao longe, as batidas incessantes dos tambores continuavam, como a batida que anunciava a desgraça.

— Usei o meu Han. — finalmente ele falou. — Não sinto a presença de ninguém mais por perto.

— E você consegue sentir a presença de alguém com Magia Subtrativa, não é? — ela sussurrou.

Ele levantou os olhos no escuro. — Nunca pensei nisso.

— Do que se trata tudo isso, Warren?

— Acha que estamos sozinhos?

— Como eu poderia saber? — ela disparou.

Ele olhou ao redor novamente e engoliu em seco. — Bem, estive lendo bastante ultimamente. — Ele apontou na direção das câmaras outra vez. — Só pensei que deveríamos ver a Irmã Simona.

— Você já falou isso. Ainda não disse por quê.

— Algumas das coisas sobre as quais estive lendo foram sobre sonhos. — ela disse de forma sombria.

Ela tentou olhar dentro dos seus olhos, mas só conseguiu ver a forma escura dele. — Simona teve sonhos.

A coxa dele estava encostando na dela. Ele estava tremendo de frio. Pelo menos ela pensou que fosse por causa do frio.

Antes de perceber o que estava fazendo, ela colocou o braço em volta dele e encostou a cabeça dele no ombro.

— Verna. — ele gaguejou. — Me sinto tão sozinho. Tenho medo de conversar com qualquer pessoa. Sinto como se todos estivessem me observando. Tenho medo que todos perguntem o que estou estudando, e porque, e sob as ordens de quem. Só consegui ver você uma vez em três dias, e não tem mais ninguém com quem posso conversar.

Ela deu tapinhas nas costas dele. — Eu sei. Warren. Também queria conversar com você, mas estive tão ocupada. Tenho tanto trabalho para fazer.

— Talvez elas estejam dando trabalho a você para mantê-la ocupada e fora do caminho enquanto cuidam de seus... negócios.

Verna balançou a cabeça na escuridão. — Talvez. Também estou com medo, Warren. Não sei como ser Prelada. Tenho medo de levar o Palácio dos Profetas à ruína se não fizer coisas que precisam ser feitas. Tenho medo de dizer não para Leoma, Philippa, Dulcinia, e Maren. Elas estão tentando me aconselhar sobre como ser Prelada, e se realmente estiverem do nosso lado, então seus conselhos são verdadeiros. Se eu não aceitar, poderia estar cometendo um grande erro. Se a Prelada cometer um erro todos pagam por isso. Se não estiverem do nosso lado, bem, as coisas que me pedem para fazer não parecem poder causar qualquer mal. Que problema ler relatórios poderia causar?

— A não ser que seja para manter você distraída de algo importante.

Ela esfregou a costa dele novamente antes de se afastar. — Eu sei. Tentarei sair para dar mais caminhadas com você. Acho que o ar fresco está me fazendo bem.

Warren apertou a mão dela. — Estou contente, Verna. — Ele levantou e alisou seu manto escuro. — Vamos ver como está Simona.

A enfermaria era um dos menores prédios na Ilha Halsband. As Irmãs podiam curar muitos dos ferimentos mais comuns com ajuda do Han, e doenças além do poder do dom delas geralmente terminavam rapidamente em morte, então a maioria da enfermaria hospedava alguns dos empregados mais velhos e fracos que passaram suas vidas trabalhando no Palácio dos Profetas, e agora não tinham mais ninguém para cuidar deles. Ali também era o lugar onde os insanos ficavam confinados. O dom tinha uso limitado nas doenças da mente.

Perto da porta, Verna enviou seu Han até uma lamparina e carregou-a com ela enquanto eles se moviam pelos simples corredores pintados em direção ao local onde Warren disse que Simona estava confinada. Apenas alguns dos quartos estavam ocupados, seus habitantes soltando roncos, respirações ofegantes, e tossidas que ecoavam pelos corredores sombrios.

Quando eles chegaram no fim do corredor que hospedava os velhos e fracos, tiveram que passar por uma série de três portas frágeis, cada uma protegida por teias poderosas de composição variada. Escudos, entretanto, poderiam ser quebrados por aqueles com o dom, até mesmo os insanos. A quarta porta era de ferro, com um ferrolho massivo protegido por um complexo escudo desenhado para desviar tentativas de abri-lo pelo outro lado com o uso de magia; quanto mais força aplicada, mais leve ficava a proteção do ferrolho. Havia sido colocado por três Irmãs, e assim não poderia ser quebrado por uma do outro lado.

Dois guardas ficaram atentos quando ela e Warren fizeram a curva no corredor. Eles baixaram as cabeças, mas não se afastaram da porta. Warren fez uma saudação para eles e fez um movimento com a mão para que eles levantassem o ferrolho.

— Sinto muito, filho, mas ninguém tem permissão para entrar.

Os olhos ferozes dela fixaram-se no guarda, Verna empurrou Warren para o lado. — É isso mesmo, filho? — Ele assentiu de modo confiante.

— E quem deu essas ordens?

— Meu comandante, Irmã. Não sei quem deu as ordens para ele, mas deve ter sido uma Irmã de certa autoridade.

Fazendo uma careta, ela colocou o anel dourado na frente do rosto dele. — Mais autoridade do que isso?

Os olhos dele ficaram arregalados. — Não, Prelada. É claro que não. Me perdoe, não reconheci você.

— Quantos estão atrás dessa porta?

O ferrolho gerou um som metálico que ecoou descendo o corredor. — Apenas uma Irmã, Prelada.

— Tem alguma Irmã cuidando dela?

— Não. Elas foram dormir.

Logo que estavam do outro lado e fora do alcance dos ouvidos, Warren riu. — Acho que finalmente você achou alguma utilidade para esse anel.

Verna diminuiu a velocidade até parar, confusa. — Warren, como você acha que o anel foi parar naquele pedestal depois do funeral?

O sorriso de Warren continuou, mas bem leve. — Bem, vamos ver... — O sorriso finalmente desapareceu. — Não sei. O que você acha?

Ela balançou a cabeça. — Tinha um escudo de luz em volta dele. Não são muitos que conseguem tecer uma teia assim. Se, como você diz, a Prelada Annalina não confiava em ninguém mais além de mim, então em quem ela confiou para colocar o anel ali, e tecer uma teia assim em volta dele?

— Não consigo imaginar. — Warren levantou seu manto úmido nos ombros. — Ela mesma poderia ter feito a teia?

Verna levantou uma sobrancelha. — De sua pira funerária?

— Não, eu queria dizer que ela poderia ter feito a teia, e então alguém simplesmente colocou lá. Você sabe, como botar um feitiço em uma vara, para que alguém posso acender uma lamparina com ela. Vi Irmãs fazerem isso para que os criados pudessem acender lamparinas sem ter que carregar uma vela derramando cera quente nos dedos, ou no chão.

Verna levantou a lamparina mais alto para olhar dentro dos olhos dele. — Warren, isso é brilhante.

Ele sorriu. O sorriso desapareceu. — A pergunta continua: quem?

Ela baixou a lamparina. — Talvez algum dos criados em quem ela confiava. Alguém sem o dom para que ela não tivesse que se preocupar que pudesse ser... — Ela olhou para trás, pelo escuro corredor vazio. — Você sabe o que eu quero dizer. — Ele balançou a cabeça confirmando que entendia enquanto ela continuava. — Terei que dar uma olhada nisso.

Clarões de luz estavam saindo por baixo da porta para o quarto da Irmã Simona: silenciosas fagulhas de raios deslizavam através da abertura debaixo da porta. O escudo cintilava quando as fagulhas de luz o alcançavam, dissipando o poder com forças contrárias, aterrando a magia com um oposto. Irmã Simona estava tentando quebrar o escudo.

Uma vez que Irmã Simona estava louca, isso deveria ser esperado. A pergunta era, porque não estava funcionando?

Verna reconheceu o escudo em volta da porta como um escudo simples usado para manter jovens magos confinados quando estavam sendo teimosos.

Verna usou o seu Han e caminhou através do escudo. Warren seguiu atrás quando ela bateu. As fagulhas de luz que vinham por baixo da porta sumiram.

— Simona? É Verna Sauventreen. Lembra de mim, não é, querida? Posso entrar?

Não escutou nenhuma resposta, então Verna girou a maçaneta e abriu a porta devagar. Segurou a lamparina na frente, lançando sua luz amarelada adiante para quebrar a escuridão no interior. O quarto estava vazio a não ser por uma bandeja com uma jarra, pão, e fruta, um palete, um pinico, e uma mulher suja encolhida em um canto.

— Me deixe em paz, demônio! — ela gritou.

— Simona, está tudo bem. Sou eu, Verna, e meu amigo, Warren. Não tenha medo.

Simona piscou com a luz, como se ela fosse o sol que tivesse acabado de levantar. Verna colocou a lamparina para trás, para não cegar a mulher.

Simona lançou um olhar. — Verna?

— Isso mesmo.

Simona beijou o dedo anelar dela uma dúzia de vezes, soltando agradecimentos e bênçãos ao Criador. Ela caiu de quatro no chão para agarrar a ponta do vestido de Verna, beijando também, várias vezes.

— Oh, obrigada por vir. — Ela levantou rapidamente. — Depressa! Temos que fugir!

Verna segurou os ombros da pequena mulher e fez ela sentar na cama. Com uma mão gentil ela empurrou para trás o tufo de cabelo cinzento.

A mão dela congelou.

Simona estava com uma coleira no pescoço. Era por isso que ela não conseguia quebrar o escudo. Verna nunca tinha visto uma Irmã usando um Rada'Han. Tinha visto centenas de garotos e homens jovens usando, mas nunca uma Irmã. Essa visão embrulhou o seu estômago. Ensinaram a ela que no passado sombrio, Rada'Han era colocado nos pescoços de Irmãs que perderam suas mentes. Ter alguém com o dom atormentado pela insanidade era como soltar um raio em uma praça de mercado lotada. Tinham que ser controlados. Mas assim mesmo...

— Simona, você está em segurança. Está no Palácio, sob o olho do Criador. Nada de mal vai acontecer a você.

Simona explodiu em lágrimas. — Tenho que fugir. Por favor, deixe que eu vá. Tenho que fugir.

— Porque você precisa fugir, minha querida?

A mulher enxugou lágrimas da sujeira em seu rosto. — Ele está vindo.

— Quem?

— Aquele que aparece nos meus sonhos. O Andarilho dos Sonhos.

— Quem é o Andarilho dos Sonhos?

Simona se encolheu. — O Guardião.

Verna fez uma pausa. — Esse Andarilho dos Sonhos é o Guardião?

Ela assentiu com tanta força que Verna pensou que o pescoço dela pudesse quebrar. — Às vezes. Às vezes, ele é o Criador.

Warren se aproximou. — O quê?

Simona se encolheu. — É você? Você é o escolhido?

— Eu sou Warren, Irmã. Um estudante, isso é tudo.

Simona encostou um dedos nos lábios rachados dela. — Vocês também deveriam fugir. Ele está vindo. Ele quer aqueles que tem o dom.

— Aquele nos seus sonhos? — Verna perguntou. Simona assentiu energicamente. — O que ele faz nos seus sonhos?

— Me atormenta. Me machuca. Ele.. .— Ela beijou o dedo anular freneticamente, pedindo a proteção do Criador.

— Ele diz que devo abandonar meu juramento. Ele me diz para fazer coisas. Ele é um demônio. Às vezes ele finge ser o Criador, para me enganar, mas sei que é ele. Eu sei.

Ele é um demônio.

Verna abraçou a mulher assustada. — É apenas um pesadelo, Simona. Não é real. Tente enxergar isso.

Simona quase balançou a cabeça quase separando-a do corpo. — Não! É um sonho, mas é real. Ele está vindo! Temos que fugir!

Verna sorriu de modo acolhedor. — O que faz você pensar isso?

— Ele me falou, ele falou. Ele está vindo.

— Não está vendo, querida? Isso foi apenas no sonho, não quando você está acordada. Não é real.

— Os sonhos são reais. Quando acordo, eu sei também.

— Você está acordada agora. Agora você sabe, querida? — Simona assentiu. — Como você sabe, quando está acordada, se ele não está dentro de sua cabeça para falar, como quando você sonha?

— Posso ouvir o alerta dele. — Ela olhou do rosto de Verna para o de Warren, e de volta para o dela. — Não estou louca. Não estou.

Não consegue ouvir os tambores?

— Sim, Irmã, nós ouvimos os tambores. — Warren sorriu. — Mas isso não é o seu sonho. São apenas tambores anunciando a chegada do Imperador.

Simona encostou o dedo no lábio novamente. — Imperador?

— Sim. — Warren a confortou. — o Imperador do Mundo Antigo. Ele está vindo fazer uma visita, só isso. É isso que são os tambores.

A sobrancelha dela curvou de preocupação. — Imperador?

— Sim. — Warren disse. — Imperador Jagang.

Com um grito selvagem Simona pulou para um canto. Gritou como se tivesse sendo esfaqueada. As mãos delas tremeram. Verna correu até ela, tentando segurar seus braços e acalmá-la.

— Simona, você está segura conosco. O que é isso?

— É ele! — ela gritou. — Jagang! Esse é o nome do Andarilho dos Sonhos! Me solte! Por favor deixe que eu vá antes que ele chegue!

Simona se afastou, correndo pelo quarto, lançando clarões de luz por toda parte. Isso rasgou a pintura das paredes como garras cintilantes. Verna e Warren tentou acalmá-la, tentou alcançá-la, tentou fazer ela parar.

Quando Simona não conseguiu encontrar jeito de sair do quarto, começou a bater a cabeça na parede. Simona era uma mulher pequena, mas parecia ter a força de dez homens.

No final, e com grande relutância, Verna foi forçada a usar o Rada'Han para obter o controle.

Warren curou a testa de Simona que sangrava depois que acalmaram ela. Verna lembrou de um feitiço que aprendeu para suar em garotos recém chegados ao Palácio, quando eles tinham pesadelos por terem sido tirados de seus pais, um feitiço para acalmar os medos e deixar a criança assustada dormir sem sonhar. Verna segurou o Rada'Han entre as mãos e enviou uma onda de seu Han dentro de Simona. Finalmente, a respiração ofegante dela diminuiu, ela ficou mole, e dormiu. Verna esperava que fosse um sono sem sonho.

Abalada, Verna encostou na porta depois que a fechou no quarto escuro. — Descobriu o que queria saber?

Warren engoliu em seco. — Temo que sim.

Essa não era a resposta que Verna esperava. Ele não falou mais nada. — Bem?

— Bem, não tenho tanta certeza de que Irmã Simona esteja louca. Não no sentido convencional, de qualquer modo. — Ele segurou na faixa na manga de seu manto. — Terei que ler mais. Poderia não ser nada. Os livros são complexos.

Avisarei a você o que eu encontrar.

Verna beijou o dedo dela, mas sentiu o estranho toque do anel da Prelada sob os lábios. — Querido Criador, — ela rezou bem alto, — mantenha esse jovem tolo em segurança, pois eu poderia agarrar sua cabeça calva e estrangulá-lo apenas com as mãos.

Warren girou os olhos. — Olha, Verna...

— Prelada. — ela corrigiu.

Warren suspirou e finalmente assentiu. — Acho que deveria contar a você, mas entenda que essa é uma ramificação muito antiga e obscura. As profecias estão cheias de ramificações falsas. Esta está duplamente comprometida, por causa de sua idade, e sua raridade. Isso a torna suspeita mesmo se não fosse o resto dela. Tem cruzamentos e recuos abundantes em tomos tão velhos, e não posso verificar eles sem meses de trabalho. Algumas das ligações estão obstruídas por ramificações triplas.

Recuar traçando por uma ramificação tripla enquadra falsas bifurcações nos galhos, e se alguma delas for tripla, bem, então o enigma criado pelas progressões geométricas por causa...

Verna colocou uma das mãos no braço dele para fazer ele ficar em silêncio. — Warren, eu sei disso. Entendo os graus de progressão e regressão enquanto eles se relacionam com variáveis randômicas em bifurcações de uma ramificação tripla.

Warren balançou a mão. — Sim, é claro. Esqueço que bom aluno você foi. Sinto muito. Acho que só estou falando bobagens.

— Fale logo, Warren. O que Simona disse que faz você pensar que ela pode não estar louca, no sentido convencional?

— Esse Andarilho dos Sonhos que ela mencionou. Em dois dos livros mais antigos tem algumas referências a Andarilho dos Sonhos.

Esses livros estão em péssimo estado, raramente são mais do que poeira, mas a coisa que me preocupa é que porque os livros são antigos, a menção do Andarilho dos Sonhos pode parecer rara para nós apenas porque temos somente dois dos textos, quando na verdade pode não ser nenhum pouco rara na época deles. A maioria dos livros daquele tempo foi perdido.

— Quanto tempo?

— Mais de três mil anos.

Verna levantou uma sobrancelha. — Da época da grande guerra? — Warren confirmou. — E quanto ao Andarilho dos Sonhos?

— Bem, é difícil entender. Quando eles mencionam isso, não é como uma pessoa, mas uma arma.

— Uma arma? Que tipo de arma?

— Não sei. O contexto também não é exatamente o de um objeto, é mais como uma entidade, embora pudesse ser uma pessoa.

— Talvez signifique o modo como uma pessoa é muito bom em alguma coisa; como um mestre da lâmina, da forma que geralmente são descritos, como uma arma, com respeito ou reverência?

Warren levantou um dedo. — É isso. É um jeito muito bom de descrever, Verna.

— O que os livros dizem que essa arma fez com essa habilidade?

Warren suspirou.— Não sei. Mas sei que o Andarilho dos Sonhos tem alguma ligação com as Torres da Perdição que finalmente dividiram os Mundos Antigo e Novo e os mantiveram separados pelos últimos três mil anos.

— Você quer dizer que os Andarilhos dos Sonhos construíram as torres?

Warren se aproximou. — Não. Acho que as torres foram construídas para deter eles.

Verna ficou rígida. — Richard destruiu as torres. — ela falou bem alto, sem querer. — O que mais?

— É tudo que sei, até agora. Até mesmo o que falei para você é amplamente conjectura. Não sabemos muito sobre livros do tempo da guerra. Por tudo que sei, isso poderia ser apenas uma história, e não algo real.

Verna girou os olhos para a porta atrás dela. — O que eu vi ali dentro pareceu real para mim.

Warren fez uma careta. — Para mim também.

— O que você queria dizer sobre ela não estar louca no sentido convencional?

— Não acho que Irmã Simona tenha sonhos desordenados e esteja imaginando coisas; acho que alguma coisa real aconteceu e foi isso que fez ela ficar do jeito que nós a vimos. Os livros insinuam ocorrências onde esse tipo de mestre da lâmina escorregou, e deixou o sujeito incapaz de separar os sonhos dele da realidade, como se a mente não conseguisse despertar completamente dos pesadelos, ou escapar do mundo ao redor quando dormia.

— Isso parece insanidade para mim, não ser capaz de distinguir o que é real do que não é.

Warren virou sua palma para cima. Uma chama surgiu logo acima da carne. — O que é realidade? Imaginei que havia uma chama, e meu sonho tornou-se real. Meu intelecto governa o que eu faço enquanto estou acordado.

Ela empurrou para trás uma mecha de cabelo castanho enquanto pensava alto. — Assim como o véu separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, existe uma barreira em nossas mentes que separa a realidade da imaginação, dos sonhos. Através da disciplina e nossa força de vontade nós controlamos o que é realidade para nós.

De repente ela levantou os olhos. — Querido Criador, essa barreira em nossas mentes é o que nos impede de usar nosso Han quando dormimos. Se não houvesse barreira, então a pessoa não teria controle intelectual do seu Han quando dorme.

Warren assentiu. — Nós temos o controle de nosso Han. Quando imaginamos, isso pode se tornar real. Mas a imaginação consciente é coberta pelas limitações do intelecto. — Ele se inclinou na direção dela, seus olhos azuis intensos. — A imaginação adormecida não possui virtualmente nenhuma dessas limitações. Um Andarilho dos Sonhos pode torcer a realidade. Aqueles que possuem o dom podem fazer acontecer.

—Uma arma, realmente. — ela sussurrou.

Ela segurou o braço de Warren e começou a descer o corredor. não importa o quanto o desconhecido fosse assustador, era um conforto ter pelo menos um amigo para ajudar. A cabeça dela girou com uma confusão de dúvidas e perguntas. Agora ela era a Prelada, dependia dela encontrar algumas respostas antes que os problemas chegassem ao Palácio.

— Quem morreu? — Warren perguntou finalmente.

— A Prelada e Nathan. — Verna falou distraidamente, porque era assim que os pensamentos dela estavam.

— Não, eles tiveram o ritual de funeral. Eu quero dizer, além deles.

Verna voltou de suas viagens mentais. — Além da Prelada e Nathan? Ninguém. Ninguém morreu faz um bom tempo.

A luz da lamparina dançou nos olhos azuis dele. — Então porque o Palácio contrata os serviços de cavadores de covas?

 

Richard passou a perna por cima do flanco do cavalo dele, pousou sobre a neve pisoteada do terreno do estábulo, e entregou as rédeas para um soldado que esperava enquanto a companhia de duzentos soldados galopava atrás dele. Ele deu um tapinha no pescoço do cavalo enquanto os cansados Ulic e Egan desmontavam logo atrás. O ar frio da tarde estava cheio de nuvens geradas pela respiração de homens e cavalos. Os homens silenciosos estavam frustrados e desencorajados; Richard estava com raiva.

Ele tirou uma grossa luva e coçou a barba crescida de quatro dias enquanto bocejava. Estava cansado, sujo, e faminto, mas acima de tudo estava furioso. Os rastreadores que tinha levado com ele eram bons homens, General Reibisch falou para ele, e Richard não tinha motivo algum para contestar a palavra do General, mas não importava o quanto fossem bons, não eram bons o bastante. Richard também era um ótimo rastreador, e muitas vezes ele tinha descoberto rastros que outros deixaram passar, mas dois dias de forte tempestade tornaram o trabalho impossível e no final eles falharam.

Em primeiro lugar, isso não deveria ter sido necessário, mas havia deixado que fosse enganado. Seu primeiro pequeno desafio como um líder, e ele havia estragado isso. Nunca deveria ter confiado nos homens. Porque ele sempre estava pensando que as pessoas veriam o lado da razão e fariam a coisa certa? Porque ele sempre achava que as pessoas tinham o bem em seu interior e, se recebessem a chance, isso viria até a superfície?

Enquanto eles avançavam com dificuldade através da neve na direção do Palácio, suas paredes brancas e torres exibindo uma cor cinza no crepúsculo, ele pediu a Ulic e Egan que encontrassem o General Reibisch e perguntassem sobre qualquer outro desastre que poderia ter ocorrido enquanto ele estava fora. A Fortaleza observava ele do meio das sombras das montanhas, a neve parecia um escuro manto de aço azul em volta de seus ombros de granito.

Richard encontrou a Senhora Sanderholt ocupada com seu grupo de ajudantes no meio do barulho da cozinha e perguntou se ela conseguiria alguma coisa para ele e seus dois guardas enormes comerem, um pedaço de pão seco, algum resto de sopa, qualquer coisa. Ela percebeu que ele não estava com humor para conversa e ofereceu um silencioso aperto em seu braço quando falou para ele descansar os pés enquanto ela providenciava. Ele seguiu até uma sala tranquila não muito longe da cozinha para sentar e descansar enquanto esperava que os outros voltassem.

Fazendo a curva no corredor até a porta da sala, Berdine caminhou até a frente dele. Ela estava usando sua roupa vermelha de couro. — E onde você esteve? — ela perguntou com um tom frio de Mord-Sith.

— Perseguindo fantasmas nas montanhas. Cara e Raina não disseram onde eu iria?

— Você não disse. — Os duros olhos azuis dela não se afastaram do olhar dele. — Isso é o que conta. Você não vai mais ficar perambulando sem me dizer para onde vai. Você entendeu?

Richard sentiu um calafrio percorrer sua medula. Não havia dúvida alguma sobre quem estava falando: não era Berdine, a mulher, e sim a Senhora Berdine, uma Mord-Sith. E não era uma pergunta; era uma ameaça.

Richard procurou recompor sua mente. Estava apenas cansado e ela estava preocupada com o Lorde Rahl. Estava imaginando coisas. Qual era o problema com ele? Provavelmente deu um susto nela quando ela acordou para descobrir que ele havia partido atrás de Brogan e sua irmã feiticeira. Ela possuía um péssimo senso de humor, talvez essa fosse a sua ideia de uma piada. Ele forçou um sorriso, e pensou em aliviar a preocupação dela.

— Berdine, sabe que gosto mais de você. Não pensei em outra coisa o tempo todo a não ser nos seus lindos olhos azuis.

Richard deu um passo na direção da porta. O Agiel dela levantou. Ela encostou a ponta dele no lado do portal, bloqueando o caminho dele. Nunca tinha visto Berdine mostrar um semblante tão sinistro.

— Fiz uma pergunta. Espero uma resposta. Não me faça perguntar novamente.

Dessa vez não havia desculpa para o seu tom ou suas ações. O Agiel estava bem na frente do rosto dele, e não estava ali por acaso. Pela primeira vez ele estava vendo a verdadeira personalidade Mord-Sith dela, a personalidade que suas vítimas viram, o núcleo da natureza de sua terrível doutrinação, e não gostou nem um pouco. Por um instante, ele enxergou através dos olhos daquelas vítimas indefesas que ela teve na ponta de seu Agiel. Nenhum deles teve uma morte fácil como prisioneiro de uma Mord-Sith, e nenhum além dele sobreviveu a essa experiência.

De repente ele viu com arrependimento sua fé nessas mulheres, e sentiu uma pontada de desapontamento em sua confiança nelas.

Ao invés de um calafrio, dessa vez foi o calor da fúria que se espalhou pelos seus ossos. Percebeu que estava prestes a fazer algo do que poderia se arrepender, e imediatamente assumiu o controle de sua raiva, mas podia sentir a força da fúria em seu olhar.

— Berdine, tive que ir atrás de Brogan logo que descobri que ele tinha escapado, se eu queria ter alguma chance de encontrá-lo. Falei para Cara e Raina onde iria e levei Ulic e Egan comigo por causa da insistência delas. Você estava dormindo. Não vi necessidade de acordar você.

Ela continuou imóvel. — Você era necessário aqui. Temos muitos rastreadores e soldados. Temos apenas um líder. — A ponta do Agiel dela girou, parando na frente dos olhos dele. — Não me desaponte outra vez.

Foi preciso toda sua força de vontade para não se esticar e quebrar o braço dela. Ela afastou seu Agiel, junto com seu olhar zangado, e foi embora.

Dentro da pequena sala escura, ele jogou seu pesado manto de pele na parede ao lado da lareira estreita. Como ele poderia ser tão ingênuo? Elas eram víboras com presas, e ele permitiu que elas se enrolassem em seu pescoço. Estava cercado por estranhos. Não, não estranhos. Ele sabia o que eram as Mord-Sith; sabia algumas das coisas que os D'Harans tinham feito; sabia algumas das coisas que os representantes de algumas terras aqui tinham feito; e mesmo assim era tolo o bastante para acreditar que eles podiam fazer a coisa certa se tivessem chance.

Ele apoiou uma das mãos na moldura da janela e olhou para a escuridão lá fora, para as paisagens montanhosas, enquanto deixava o calor do fogo pequeno aquecê-lo. Ao longe, a Fortaleza do Mago parecia cair sobre ele. Sentia falta de Gratch. Sentia falta de Kahlan. Queridos espíritos, ele queria abraçá-la.

Talvez ele devesse desistir dessa coisa toda. Poderia encontrar algum lugar nas Florestas onde nunca seriam encontrados. Os dois poderiam simplesmente desaparecer e deixar o resto do mundo defender-se por conta própria. Porque ele deveria se importar, eles não se importavam.

Zedd, preciso de você aqui para me ajudar.

Richard viu a luz espalhar-se pela sala na direção dele quando a porta abriu. Olhou por cima do ombro para ver Cara parada no portal. Raina estava logo atrás. As duas usavam suas roupas de couro e os sorrisos perversos. Ele não estava feliz.

— Lorde Rahl, fico feliz em ver sua bela pele de volta, inteira. — Com um sorriso forçado, ela jogou a trança loura para trás, por cima do ombro. — Sentiu saudade de nós? Espero que você não...

— Saiam.

O sorriso dela diminuiu. — O quê?

Ele caminhou em volta dela. — Eu disse, saiam. Ou vieram me ameaçar com um Agiel? Não quero olhar para suas caras de Mord-Sith agora. Saiam!

Cara engoliu em seco. — Não estaremos longe, se precisar de nós. — ela falou com uma voz baixa. Parecia que ele havia batido nela. Ela virou e levou Raina com ela rapidamente.

Assim que elas foram embora, Richard desmoronou em uma cadeira de couro estofado atrás de uma pequena mesa escura lustrosa com pernas em forma de garras. O cheiro amargo e fumacento da lareira disse a ele que aquilo era carvalho, uma escolha que ele mesmo teria feito em uma noite fria como essa. Ele empurrou a lamparina para o lado perto da parede onde estavam penduradas um grupo de pequenas pinturas de cenas do campo. A mais larga não era maior do que sua mão, mesmo assim cada uma delas conseguia retratar grandes vistas. Ele ficou olhando fixamente para suas cenas pacíficas, desejando que a vida pudesse ser tão simples quanto parecia nas pinturas idílicas.

Foi arrancado de seus pensamentos quando Ulic e Egan apareceram na porta junto com o General Reibisch.

O General bateu com um punho sobre o coração. — Lorde Rahl, estou aliviado em ver que voltou em segurança. Teve algum sucesso?

Richard balançou a cabeça. — Os homens que você enviou comigo eram tão bons quanto disse, mas as condições eram impossíveis. Conseguimos rastreá-los por alguns caminhos, mas eles subiram pela Rua Stentor, dentro do centro da cidade. Logo que fizeram isso, não havia como dizer que direção eles tomaram. Provavelmente para nordeste, de volta a Nicobarese, mas nós demos uma volta circulando toda a cidade de qualquer maneira, caso eles seguissem outra direção, e não conseguimos encontrar nenhum traço deles. Uma busca meticulosa de todas as possibilidades levou bastante tempo e deu bastante tempo para que a tempestade cobrisse os rastros deles.

O General soltou um grunhido enquanto pensava. — Interrogamos aqueles que eles deixaram para trás no Palácio. Ninguém sabia para onde Brogan foi.

— Eles poderiam estar mentido.

O dedão de Reibisch encostou na cicatriz no lado de seu rosto. — Aceite minha palavra, eles não sabiam para onde ele foi.

Richard não quis saber os detalhes do que ele tinha feito em seu nome. — Pelos sinais iniciais nós conseguimos identificar que havia apenas, sem dúvida o Lorde General Brogan, a irmã dele, e aquele outro.

— Bem, se ele não levou seus homens, então poderia parecer que ele simplesmente estava fugindo. Provavelmente você o assustou bastante, e ele só estava correndo para salvar sua vida.

Richard encostou um dedo na mesa. — Talvez. Mas gostaria de saber para onde ele foi, só para ter certeza.

O General encolheu os ombros. — Porque não colocou uma nuvem rastreadora nele, ou usou sua magia para seguir o rastro dele? Era isso que Darken Rahl fazia quando queria seguir alguém.

Richard sabia muito bem disso. Sabia o que era uma nuvem rastreadora, por ter sido perseguido. Tudo isso tinha começado quando Darken Rahl colocou uma nuvem rastreadora nele para que pudesse chegar e capturá-lo para recuperar o Livro das Sombras Contadas. Zedd colocou Richard sobre a pedra do mago para remover a nuvem. Embora tivesse sentido a magia fluindo através de si mesmo, Richard não sabia como ela funcionava.

Também tinha visto Zedd usar um pouco do seu pó mágico para cobrir os rastros dele, para impedir que Darken Rahl fosse atrás deles, mas também não sabia como aquilo funcionava.

Richard realmente não queria abalar a fé do General Reibisch nele admitindo que não sabia a primeira coisa sobre magia; no momento ele não estava sentindo-se confortável com seus aliados.

— Você não pode colocar uma nuvem rastreadora em alguém quando tem um céu cheio de nuvens de tempestade. Não conseguiria identificar qual era a sua, para conseguir seguir ela. Lunetta, a irmã de Brogan, é uma feiticeira; ela usaria magia para obscurecer os rastros deles.

— Isso é uma pena. — O General coçou a barba, aparentemente acreditando no blefe. — Bem, a magia não é minha especialidade. Temos você para cuidar desse tipo de coisa.

Richard mudou o assunto. — Como estão as coisas por aqui?

O General sorriu maldoso. — Não tem uma espada na cidade que não seja nossa. Alguns deles não gostaram, mas logo que as alternativas foram explicadas claramente, todos nos acompanharam sem briga.

Bem, isso seria o bastante. — O Sangue da Congregação no Palácio em Nicobarese também?

— Eles terão que comer com os dedos. Não deixamos eles ficarem nem com uma colher.

Richard esfregou os olhos. — Bom. Você fez bem, General. E quanto aos Mriswith? Aconteceu mais algum ataque?

— Não desde aquela primeira noite sangrenta. Esteve realmente tranquilo Ora, até consegui dormir melhor do que tenho feito durante semanas. Desde que você assumiu, nem mesmo tive qualquer um daqueles sonhos.

Richard levantou os olhos. — Sonhos? Que tipo de sonhos?

— Bem... — O General coçou a cabeça de cabelos cor de ferrugem. — Isso é estranho. Agora eu realmente não lembro. Eu tive esses sonhos que me deixavam muito inquieto, mas desde que você chegou eu não tive eles. Você sabe como acontece com sonhos, depois de algum tempo eles desaparecem e você não consegue lembrar deles.

— Eu acho. — Essa coisa toda estava começando a parecer como um sonho: um sonho ruim. Richard queria que tudo fosse isso mesmo. — Quantos homens perdemos quando os Mriswith atacaram?

— Aproximadamente trezentos.

Richard colocou a mão na testa quando sentiu seu estômago revirar. — Não pensei que fossem tantos corpos. Não tinha pensado que fossem tantos assim.

— Bem, isso inclui os outros.

Richard afastou a mão do rosto. — Outros? Que outros?

O General Reibisch apontou pela janela. — Aqueles lá em cima. Cerca de oitenta homens também foram cortados na estrada subindo perto da Fortaleza do Mago.

Richard girou e olhou pela janela. Apenas a silhueta da Fortaleza estava visível contra o profundo céu violeta. Será que os Mriswith estariam tentando entrar na Fortaleza? Queridos espíritos, se estivessem, o que ele poderia fazer a respeito? Kahlan disse que a Fortaleza estava protegida por feitiços poderosos, mas ele não sabia se as teias poderiam manter afastadas criaturas como os Mriswith. Porque eles poderiam querer entrar na Fortaleza?

Ele falou para si mesmo que não deveria deixar sua imaginação tomar conta; os Mriswith mataram soldados e outras pessoas por toda a cidade. Zedd estaria de volta em poucas semanas e saberia o que fazer. Semanas? Não, seria mais do que um mês, talvez dois. Ele conseguiria esperar tanto tempo?

Talvez ele devesse ir dar uma olhada. Mas isso também poderia ser tolice. A Fortaleza era um lugar de magia poderosa, e ele não sabia nada sobre magia, a não ser que ela era perigosa. Ele estaria apenas procurando mais problemas.

Já tinha problema bastante. Mesmo assim, talvez ele devesse dar uma olhada. Isso poderia ser a melhor coisa a fazer.

— Seu jantar está aqui. — Ulic disse.

Richard virou. — O quê? Oh, obrigado.

A Senhora Sanderholt estava com uma bandeja de prata cheia de vegetais cozidos fumegantes, pão escuro com bastante manteiga, ovos temperados, arroz com creme, pedaços de carneiro, peras, molho branco, e uma caneca de chá com mel.

Com uma piscadela amigável, ela baixou a bandeja. — Como todo o seu jantar, vai fazer bem, e então descanse bem, Richard.

Na única noite que passou no Palácio das Confessoras ele havia dormido na câmara do Conselho, na cadeira de Kahlan. — Onde?

Ela encolheu os ombros. — Bem, você poderia ficar no... Ela fez uma pausa, recompondo-se. — Poderia ficar no quarto da Madre Confessora. É o melhor quarto no Palácio.

Ali era onde ele e Kahlan passariam sua lua de mel. — Não me sentiria bem com isso, nesse momento. Tem alguma outra cama que eu poderia usar?

A Senhora Sanderholt fez um gesto com uma das mãos enfaixadas. Agora as bandagens estavam menos volumosas, e mais limpas. — Subindo aquela ala, no final, pegue a direita e lá estão vários quartos para convidados. Não temos nenhum convidado agora, então pode escolher qualquer um.

— Onde estão as Mord... Onde Cara e suas duas amigas estão dormindo?

Ela fez uma careta e apontou na direção oposta. — Eu as conduzi até os quartos dos servos. Elas dividem um quarto lá.

Pelo que ele imaginava, quanto mais longe melhor. — Isso é muito bom, Senhora Sanderholt. Ficarei com um dos quartos de convidados.

Ela deu uma cotovelada em Ulic. — O que vocês, grandes rapazes, gostariam de comer?

— O que você tem? — Egan perguntou, com uma rara mostra de entusiasmo.

Ela curvou uma sobrancelha. — Porque vocês mesmos não vão até a cozinha e escolhem? — Ela viu os olhares deles para Richard. — É bem pertinho. Não ficarão longe dele.

Richard jogou os lados da capa negra de Mriswith para trás, por cima dos braços da cadeira. Fez sinal com a mão para que eles fossem enquanto tomava uma colher do cozido de vegetais e um gole do chá. O General Reibisch bateu com um punho sobre o coração e desejou boa noite. Richard agradeceu a saudação balançando o pão.

 

Foi um alívio estar sozinho finalmente. Estava cansado das pessoas ficarem prontas para saltar se ele desse um comando.

Ainda que ele tivesse tentado deixar os soldados à vontade, eles estiveram apreensivos com ele por perto, parecendo temer que ele os derrubasse com magia se falhassem em encontrar os rastros de Brogan. Mesmo quando não conseguiram e ele falou que entendia, isso não os fez relaxar. Somente perto do fim eles relaxaram um pouco, mas ainda observavam ele constantemente para o caso dele sussurrar uma ordem que pudessem deixar passar. Ficar cercado por pessoas que tinham tanto medo dele o deixava inquieto.

Sua mente fervia pensando em problemas enquanto engolia o cozido. Mesmo se ele não estivesse com a metade da fome que tinha isso não poderia ter gosto melhor; não havia sido preparado recentemente, mas ficou fervendo em fogo brando por um bom tempo, concedendo a ele a rica mistura de sabores que ingrediente algum, a não ser o tempo, poderia adicionar.

Quando ele levantou os olhos de sua caneca de chá, Berdine estava na porta. Os músculos dele ficaram tensos. Antes que pudesse dizer a ela para ir embora, ela falou.

— A Duquesa Lumholtz, de Kelton, está aqui para falar com Lorde Rahl.

Richard sugou um pouco de cozido de seus dentes enquanto mantinha os olhos em Berdine. — Não estou interessado em falar com peticionários.

O avanço de Berdine foi bloqueado pela mesa. Ela jogou a trança castanha para trás por cima do ombro. — Você vai falar com ela.

As pontas dos dedos de Richard tocaram nas familiares fendas e arranhões no cabo de sua faca, no cinto.

— Os termos de rendição não estão abertos para discussão.

Berdine plantou os punhos na mesa e inclinou na direção dele. O Agiel dela, na ponta da fina corrente em seu pulso, girou em volta da sua mão. Os olhos azuis dela estavam frios. — Você vai falar com ela.

Richard podia sentir o rosto esquentando. — Já dei minha resposta. Não vai ter nenhuma outra.

Ela não recuou. — E eu dei minha palavra de que você falaria com ela. Você vai falar com ela.

— A única que escutarei de representantes de Kelton é uma rendição incondicional.

— E isso é o que você deverá escutar. — A voz melodiosa veio de uma silhueta logo atrás do portal. — Se você concordar em me escutar. Não vim aqui fazer nenhuma ameaça, Lorde Rahl.

No tom suave e humilde dela, Richard podia notar a hesitação causada pelo medo. Isso fez ele sentir uma leve pontada de compaixão.

— Faça a Senhora entrar... — O olhar dele voltou para Berdine. — e feche a porta quando for seguir seu caminho para cama. — Ele não deixou nenhuma dúvida em seu tom de que aquilo era uma ordem, e não aceitaria transgressão.

Sem mostrar emoção, Berdine seguiu até a porta e esticou o braço como um convite. Quando a Duquesa caminhou para dentro do brilho da luz do fogo, Richard levantou. Berdine lançou um olhar vazio para ele e então fechou a porta, mas ele mal notou.

— Por favor, Duquesa Lumholtz, entre.

— Obrigada por me receber, Lorde Rahl.

Ele ficou mudo durante um momento, olhando para os olhos castanhos dela, seus lábios vermelhos curvilíneos, e sua espessa juba de cabelo negro, cachos dele emolduravam seu rosto liso brilhante. Richard sabia que em Midlands o comprimento do cabelo de uma mulher denotava sua posição social. O longo cabelo dessa mulher indicava uma alta posição. O único cabelo que ele tinha visto que era maior foi o de uma Rainha, e acima desse, o da Madre Confessora.

Tonto, ele deu um suspiro, e de repente lembrou de sua educação. — Aqui, deixe que eu pegue uma cadeira.

Ele não lembrava da Duquesa ter essa aparência, possuindo tanta elegância pura e cativante, mas naquele momento, ele não estava tão perto. Lembrava dela pomposa, com brilho e pintura desnecessários, e um vestido que não era de modo algum simples e delicado, como aquele que ela usava agora, de seda cor de rosa suave fluindo levemente sobre os contornos de suas formas, complementando sua forma voluptuosa, apertado logo abaixo dos seios.

Richard grunhiu quando lembrou do último encontro deles. — Duquesa, sinto muito ter falado coisas cruéis para você na câmara do conselho. Você pode me perdoar? Eu deveria ter escutado; você só estava tentando me avisar sobre o General Brogan.

Quando mencionou o nome, pensou ter visto um flash de medo nos olhos dela, mas aquilo desapareceu tão rápido que não teve certeza. — Sou eu, Lorde Rahl, quem deveria pedir desculpas. Foi imperdoável interromper você diante dos representantes reunidos.

Richard balançou a cabeça. — Estava apenas tentando me avisar sobre aquele homem, e como acabou acontecendo, você estava certa. Gostaria de ter escutado.

— Foi erra de minha parte expressar minha opinião da maneira que fiz. — Um leve sorriso enfeitou os traços dela. — Apenas o mais galante dos homens tentaria fazer parecer o contrário.

Richard ficou vermelho quando ela o chamou de galante. Seu coração estava batendo tão rápido que teve medo que ela conseguisse ver as veias em seu pescoço pulsarem. Por alguma razão, ele imaginou seus lábios tocando o tufo solto de cabelo sedoso pendurado na frente da orelha delicada dela. Afastar seus olhos do rosto dela era quase doloroso.

Uma pequena voz de aviso estava soando no fundo de sua mente, mas ela estava sendo afogada no rugido da inundação de um rio de fortes sensações. Com uma das mãos, ele segurou a gêmea de sua cadeira estofada e empurrou-a até a frente da mesa, oferecendo-a para ela.

— Você é muito gentil. — a Duquesa afirmou. — Me perdoe, por favor, se minha voz está menos firme. Esses dias tem sido difíceis. — Enquanto ela se movia na frente da cadeira, os olhos dela giraram para encontrar com os dele novamente. — E só estou um pouco nervosa. Nunca estive diante de um homem tão importante quanto você, Lorde Rahl.

Richard piscou, incapaz de desviar do olhar dela quando pensou que havia tentado. — Sou apenas um guia florestal que está muito longe de casa.

Ela riu, um som suave que transformou a sala em um agradável lugar aconchegante.

— Você é o Seeker. Você é o Mestre de D'Hara. — A expressão dela deslizava do divertimento para a reverência.

— Um dia você poderá governar o mundo.

Richard reagiu encolhendo os ombros. — Não quero governar nada, só que... — Ele pensou que poderia parecer um idiota. — Não vai sentar, por favor, minha Senhora?

O sorriso dela voltou, radiante, caloroso, e com tanto charme e ternura que ele ficou congelado em seu brilho. Podia sentir o doce calor da respiração dela no rosto dele.

O olhar dela continuava firme. — Me perdoe por ser tão apressada, Lorde Rahl, mas você deve saber que seus olhos deixam as mulheres loucas de desejo. Eu arriscaria dizer que você partiu o coração de cada mulher na câmara do conselho. A Rainha de Galea é uma mulher extremamente afortunada.

A testa de Richard franziu. — Quem?

— A Rainha de Galea. Aquela que será sua esposa. Tenho inveja dela.

Ele virou para longe dela quando ela sentou suavemente na ponta da cadeira dela. Richard deu um forte suspiro, tentando clarear sua cabeça zonza, e deu a volta na mesa para mergulhar em sua própria cadeira.

— Duquesa, fiquei muito triste ao ouvir sobre a morte de seu marido.

Ela desviou os olhos. — Obrigada, Lorde Rahl, mas não se preocupe comigo; eu sofro pouco pelo homem.

Não me entenda mal, não desejava nada de ruim para ele, mas...

O sangue de Richard esquentou. — Ele feriu você?

Quando ela olhou para longe com um balançar de ombros consciente, Richard teve que resistir com muito esforço contra a compulsão de segurá-la em seus braços e confortá-la. — O Duque tinha um temperamento horrível. — Os dedos graciosos dela esfregaram a pele macia na borda do manto felpudo. — Mas não era ruim quanto deve parecer. Raramente tinha que encará-lo; ele estava longe a maior parte do tempo, em uma cama ou outra.

Richard ficou de boca aberta. — Ele abria mão de você para ficar com outras mulheres? — O balançar de cabeça relutante dela confirmou que era verdade.

— Era um casamento arranjado. — ela explicou. — Embora ele tivesse sangue nobre, para ele isso significava uma ascensão em sua posição. Ele ganhou seu título ao se casar com o meu.

— O que você ganhou?

Os cachos ao lado do rosto dela balançaram quando ela levantou os olhos. — Meu pai ganhou um genro cruel para cuidar das propriedades da família, e ao mesmo tempo livrou-se de uma filha inútil.

Richard levantou parcialmente da cadeira. — Não diga tal coisa sobre si mesma. Se eu soubesse, teria providenciado para que o Duque tivesse uma lição... — Ele mergulhou na cadeira novamente. — Perdoe minha ousadia, Duquesa.

A língua dela molhou os cantos da boca distraidamente. — Se conhecesse você, quando ele me bateu, talvez eu tivesse sido ousada o bastante para buscar sua proteção.

Bateu nela? Richard queria ardentemente ter estado lá, para ter feito alguma coisa a respeito.

— Porque não deixou ele? Porque aguentaria isso?

O olhar dela buscou o fogo baixo na lareira. — Não podia. Sou a filha do irmão da Rainha. O divórcio em posições tão altas não é permitido. — De repente ela ficou vermelha com um sorriso proposital. — Mas escute minha conversa ridícula sobre meus problemas insignificantes. Me perdoe, Lorde Rahl. Outros tiveram problemas muito maiores em suas vidas do que um marido infiel com a mão pesada. Eu não sou uma mulher infeliz. Tenho responsabilidades com meu povo que me deixam ocupada.

Ela levantou um dedo fino, apontando. — Será que eu poderia tomar um pouco de chá? Minha garganta está seca por ficar preocupada pensando que você... — O vermelho surgiu outra vez nas bochechas dela. — Pensando que você cortaria minha cabeça por vir falar com você contra suas ordens.

Richard levantou rapidamente. — Vou pegar para você um pouco de chá que esteja quente.

— Não, por favor, não quero incomodá-lo. E apenas um gole é tudo que preciso, verdade.

Richard agarrou a caneca e ofereceu para ela.

Observou os lábios dela em volta da borda da caneca. Olhou para a bandeja, fazendo um esforço para colocar sua mente de volta ao trabalho.

— E qual é o assunto que você queria falar comigo. Duquesa?

Depois que ela tomou um gole, baixou a caneca, virando a alça de volta na frente dele, do jeito que ela estivera. Havia uma leve marca dos lábios dela na borda. — Essas responsabilidades sobre as quais falei para você. Você entende, a Rainha estava em seu leito de morte quando o Príncipe Fyren foi morto, e pouco tempo mais tarde ela morreu. O Príncipe, embora tivesse incontáveis descendentes bastardos, não era casado e assim não tinha como manter a sucessão.

Richard nunca tinha visto olhos de um castanho tão suave. — Não sou um especialista em questões da realeza, Duquesa. Eu temo não ter acompanhado.

— Bem, o que estou tentando dizer é que com a Rainha e seu único descendente morto, Kelton está sem um monarca. Sendo a próxima na linha de sucessão, a filha do irmão morto da Rainha, eu vou substituir a Rainha de Kelton. Não há ninguém a quem eu precise consultar, para buscar conselho na questão de nossa rendição.

Richard se esforçou para manter sua mente nas palavras dela e não em seus lábios. — Quer dizer que você tem o poder de entregar Kelton?

Ela assentiu. — Sim, Vossa Eminência.

Ele sentiu os ouvidos ficarem quentes com o título que ela lhe deu. Ele pegou a caneca, tentando esconder o máximo de seu rosto vermelho quanto possível. Richard percebeu que havia colocado seus lábios onde os dela estiveram quando sentiu a marca apimentada na borda da caneca. Deixou a caneca parada durante algum tempo quando sentiu o suave sabor do mel deslizar por sua língua. Com a mão trêmula, ele colocou a caneca sobre a bandeja prateada.

Richard esfregou as palmas suadas nos joelhos. — Duquesa, você ouviu o que eu tinha para dizer. Nós lutamos pela liberdade. Se você se render a nós, não estará perdendo alguma coisa, mas ganhando. Sob nosso governo, por exemplo, seria um crime para um homem ferir sua esposa, do mesmo jeito que seria se ele ferisse um estranho na rua.

O sorriso dela teve uma ponta de censura. — Lorde Rahl, não tenho certeza se até mesmo você algum dia terá poder bastante para proclamar que isso seja uma lei. Em alguns lugares de Midlands é considerado natural que um homem mate sua esposa se ela o provocar com qualquer um dos pecados de uma lista. A liberdade apenas daria aos homens em toda parte o mesmo direito.

Richard passou um dedo pela borda de sua caneca. — Ferir um inocente, quem quer que ele seja, é errado. A liberdade não é um encorajamento para fazer o que é errado. As pessoas em alguma terras não deveriam ter que sofrer com atos que em uma terra vizinha são crime. Quando estivermos unidos, não haverá esses tipos de injustiças. Todas as pessoas terão as mesmas liberdades, e as mesmas responsabilidades, para viver por uma lei justa.

— Mas certamente você não pode esperar que ao proclamar tais costumes permitidos como fora da lei, eles vão parar.

— A moralidade vem de cima, como dos pais para uma criança. Então, o primeiro passo, é estabelecer leis justas e mostrar que todos nós devemos viver pelas suas máximas. Você nunca conseguirá acabar com todas as coisas erradas, mas se não houver punição, elas vão se proliferar até que a anarquia vestirá as roupas da tolerância e da compreensão.

Ela esfregou os dedos pelo delicado espaço na base do pescoço. — Lorde Rahl, as coisas que você diz me enchem de esperança pelo futuro. Rezo aos bons espíritos que você tenha sucesso.

— Então vai se juntar a nós? Vai entregar Kelton?

Os suaves olhos castanhos dela levantaram como se estivesse fazendo uma súplica. — Tem uma condição.

Richard engoliu em seco. — Eu disse que não haveria condições. Todos serão tratados do mesmo jeito, como eu falei. Como posso prometer igualdade se eu não viver de acordo com minha palavra e governo?

Ela molhou os lábios novamente enquanto o medo visitava seus olhos. — Entendo. — ela falou em um sussurro quase perdido em meio ao silêncio. — Me perdoe por pensar de forma egoísta em obter algo para mim mesma. Um homem de honra como você não poderia entender como uma simples mulher como eu poderia descer a tal nível.

Richard desejou enfiar sua faca no próprio peito por deixar que o medo assombrasse ela.

— Qual é a sua condição?

O olhar dela desviou para o colo junto com suas mãos cruzadas. — Depois do seu discurso, meu marido e eu estávamos quase em casa, e... — Ela fez uma careta enquanto engolia em seco. — Estávamos quase em casa em segurança quando fomos atacados por aquele monstro. Não consegui ver ele se aproximando. Estava segurando o braço de meu marido. Houve um brilho de aço. — Um gemido escapou da garganta dela. Richard teve que se conter para ficar em sua cadeira. — As entranhas do meu marido saltaram na minha frente. — Ela engoliu o choro. — A faca que o matou deixou três cortes em minha manga quando passou.

— Duquesa, eu entendo, não há necessidade de...

Ela ergueu uma mão trêmula, implorando silêncio para que pudesse terminar. Levantou a manga de seda do vestido para mostrar três cortes no antebraço. Richard reconheceu os três cortes da lâmina de um Mriswith. Nunca desejou saber usar o seu dom para curar tanto quanto naquele momento. Teria feito qualquer coisa para remover os terríveis cortes vermelhos do braço dela.

Ela baixou a manga, parecendo ler a preocupação no rosto dele. — Isso não é nada. Alguns dias e estará curado. — Ela tocou no peito, entre os seios. — É o que fizeram comigo aqui que não vai curar. Meu marido era um espadachim experiente, mas não teve mais chance do que teria contra aquelas criaturas. Nunca vou esquecer a sensação e ver o sangue quente dele escorrer na minha frente. Fico envergonhada em admitir que chorei inconsolavelmente até conseguir arrancar o vestido do meu corpo e lavar o sangue da minha carne. Desde então, com medo de acordar e pensar que ainda estou naquele vestido, tenho que dormir sem qualquer roupa de cama.

Richard desejou que ela tivesse usado palavras que não tivessem colocado ima imagem tão explícita em sua cabeça. Observou o subir e descer do vestido de seda. Fez um esforço para tomar um gole de chá, apenas para ser confrontado inesperadamente pela marca do lábio dela. Enxugou uma gota de suor atrás de sua orelha.

— Você estava falando sobre uma condição?

— Me perdoe, Lorde Rahl. Queria que entendesse meu temor, para que pudesse considerar minha condição. Eu fiquei tão assustada. — Ela abraçou o próprio corpo, fazendo o vestido dobrar entre os seios dela quando eles se juntaram.

Richard olhou para a bandeja de jantar enquanto esfregava as pontas dos dedos na testa. — Entendo. A condição?

Ela se encheu de coragem. — Entregarei Kelton se você me oferecer sua proteção pessoal.

Richard levantou os olhos. — O quê?

— Você matou aquelas criaturas que estão lá na frente. Isso mostrou que ninguém além de você pode matá-los. Estou apavorada com aqueles monstros.

— Se eu me aliar a você, então a Ordem pode enviar eles atrás de mim. Se permitir que eu fique aqui sob a sua proteção até que o perigo acabe, então Kelton é sua.

Richard inclinou-se para frente. — Você só quer se sentir segura?

Ela assentiu recuando levemente, como se tivesse medo que ele cortasse sua cabeça por causa do que ela falasse em seguida. — Devo receber um quarto perto do seu, para que se eu gritar, você esteja perto o bastante para me ajudar.

— E...

Finalmente ela teve coragem para olhar nos olhos dele.

— E... nada. Essa é a condição.

Richard riu. A ansiedade parou de comprimir o peito dele. — Você só quer ficar protegida, do mesmo modo que meus guardas me protegem? Duquesa, isso não é uma condição, é simplesmente um mero favor, um desejo de abrigo contra nossos inimigos impiedosos perfeitamente razoável e adequado. Concedido. — Ele apontou. — Estou nos quartos de convidados, por aquele caminho. Todos estão vazios. Como nossa aliada, você é uma convidada honrada, e pode escolher. Pode ficar com algum bem ao lado do meu, se isso fizer você se sentir mais segura.

Antes ela nem ao menos tinha sorrido, em comparação com o brilho que agora surgia em seu rosto. As mãos dela cruzaram sobre os seios. Ela soltou um forte suspiro como se ficasse livre do maior dos medos. — Oh, Lorde Rahl, obrigada.

Richard afastou o cabelo da testa. — Como a primeira coisa amanhã, uma delegação, escoltada por nossas tropas, partirá para Kelton. Suas forças devem ser colocadas sob nosso comando.

— Colocadas sob... Sim, é claro. Amanhã. Eles receberão uma carta pessoal minha, e os nomes de todos os nossos oficiais serão informados. Assim Kelton se transforma em parte de D'Hara. — Ela baixou a cabeça, seus cachos negros deslizando pelas bochechas rosadas. — Estamos honrados em ser os primeiros a nos aliar. Kelton lutará pela liberdade.

Richard soltou um forte suspiro. — Obrigado. Duquesa... ou deveria chamá-la de Rainha Lumholtz?

Ela recostou na cadeira, os pulsos apoiados nos braços da cadeira, suas mãos penduradas. — Nenhum dos dois. — Uma perna subiu quando ela cruzou-a por cima da outra. — Deveria me chamar de Cathryn, Lorde Rahl.

— Cathryn, então, e por favor, me chame de Richard. Para ser franco, estou ficando cansado de todos me chamarem... — Quando olhou nos olhos dela, esqueceu o que iria dizer.

Com um leve sorriso, ela se inclinou para frente, um dos seios passando pela borda da mesa. Richard percebeu que ela estava sentada na beira da cadeira dele novamente enquanto ele observava ela enrolar um cacho de cabelo negro em um dedo. Ele se concentrou na bandeja de comida na sua frente em uma tentativa de controlar seus olhos.

— Richard, então. — Ela riu, um som que não era o de uma moça, mas rouco e feminino ao mesmo tempo, e de modo algum refinado. Ele prendeu a respiração, caso contrário soltaria um suspiro bem alto. — Não sei se conseguirei me acostumar em me dirigir a um homem tão poderoso quanto o Mestre de toda D'hara de modo tão íntimo.

Richard sorriu. — Talvez só precise de prática, Cathryn.

— Sim, prática. — ela falou com uma voz suave. De repente ela ficou vermelha. — Olhe para mim, tagarelando de novo. Esses seus belos olhos cinzentos realmente fazem uma mulher esquecer de si mesma. É melhor deixar você continuar seu jantar antes que ele fique frio. — O olhar dela fixou na bandeja entre eles. — Isso parece delicioso.

Richard deu um pulo. — Permita que eu mande trazer um pouco para você.

Ela afastou da borda da mesa, colocando os ombros de volta na cadeira. — Não, eu não poderia. Você é um homem muito ocupado, e você já foi tão gentil.

— Não estou ocupado. Só estava comendo um pouco antes de ir para cama. Pelo menos poderia sentar comigo enquanto eu como, e talvez dividir um pouco comigo? Aqui tem mais do que eu consigo comer, o resto simplesmente seria jogado no lixo.

Ela se aproximou dele outra vez, encostando na mesa. — Bem, isso realmente parece suntuoso... e se você não vai comer tudo... talvez só um pouquinho, então.

Richard sorriu. — Do que você gostaria? Cozido, ovos temperados, arroz, carneiro?

Com a menção de carneiro ela soltou um murmúrio de prazer. Richard empurrou o prato branco com bordas douradas pela bandeja. Ele não tinha nenhuma intenção de comer o carneiro; uma vez que quando o dom havia despertado, ele não conseguia comer carne. Alguma coisa a ver com a magia na hora em que o dom se manifestava, ou talvez fosse como as Irmãs disseram: toda magia deve ficar em equilíbrio. Já que ele era um mago guerreiro, talvez não conseguisse comer carne para compensar a matança que às vezes tinha que fazer.

Richard ofereceu a ela a faca e o garfo. Sorrindo outra vez, ela balançou a cabeça e com os dedos pegou um pedaço do carneiro. — Os Kelteanos possuem um ditado que diz que se algo for bom, nada deveria ficar entre você e a experiência.

— Então espero que esteja bom. — Richard ouviu a si mesmo falando. Pela primeira vez durante dias ele não se sentiu sozinho.

Com os olhos castanhos fixos nos dele, ela inclinou para frente sobre os cotovelos e deu uma delicada mordida. Hipnotizado, Richard esperou.

— Então... está bom?

Em resposta, os olhos dela giraram e as pálpebras dela fecharam enquanto ela encolhia os ombros e gemia em perfeito êxtase. Os olhos dela baixaram, restaurando a forte conexão. Sua boca envolveu a carne, e os dentes brancos perfeitos arrancaram um pedaço suculento. Os lábios dela estavam molhados. Ele imaginou que nunca tinha visto alguém mastigar tão lentamente.

Richard partiu o centro pastoso do pão em duas partes, dando a ela aquela que tinha mais manteiga. Com a casca, ele tirou um pouco de arroz. A mão dele fez uma pausa diante da boca quando ela tirou a manteiga com uma longa lambida.

Ela soltou um gemido de aprovação. — Adoro como ela fica macia e escorregadia na minha língua. — ela explicou em pouco mais do que um sussurro. Com os dedos brilhantes, ela colocou o pedaço de pão na bandeja.

Ela observou os olhos dele enquanto deslizava os dentes pelo osso, mordendo pela borda. Com pequenas mordidas e sugando, ela limpou o osso. O pedaço de pão esperava na frente da boca de Richard.

A língua dela deslizou pelos lábios. — O melhor que já provei.

Richard percebeu que seus dedos estavam vazios. Pensou que deveria ter comido o arroz até que viu a massa branca esparramada na bandeja abaixo dele. Ele caiu.

Ela tirou um ovo da tigela, pressionando seus lábios vermelhos em volta dele, e mordeu tirando a metade. — Humm. Delicioso. — Ela colocou a parte arredondada da outra metade nos lábios dele. — Aqui, experimente.

Sua superfície lisa tinha um gosto levemente amargo contra a língua dele e uma flexível sensação elástica. Ela o empurrou para dentro da boca dele com um dedo. Era mastigar ou engasgar. Ele mastigou.

O olhar dela desviou dos olhos dele pousando na bandeja. — O que temos aqui? Oh, Richard, não me diga que... — Ela passou dois dedos em volta da tigela com as peras. Chupou o molho branco grosso do seu dedo indicador.

Um pouco da camada no outro dedo deslizou pela mão dela até o pulso. — Oh, sim. Oh, Richard, isso é fabuloso. Aqui.

Ela colocou o segundo dedo nos lábios dele. Antes que percebesse, ela estava com o dedo enfiado na boca dele. — Deixe ele limpo. — ela insistiu. — Esse não é o melhor que já experimentou? — Richard assentiu, tentando recuperar o fôlego depois que ela tirou o dedo. Ela inclinou o pulso. — Oh, por favor, lamba isso antes que caia no meu vestido. — Ele segurou a mão dela e colocou-a em sua boca. O gosto dela o deixava eletrizado. Encostar seus lábios na carne dela fez o coração dele bater dolorosamente.

Ela soltou uma risada. — Isso faz cócegas. Sua língua é áspera.

Ele soltou a mão dela, afastando-se da conexão íntima. — Sinto muito. — ele sussurrou.

— Não seja tolo. Eu não disse que não gostei. — Os olhos dela encontraram os dele. A luz da lamparina brilhou suavemente em um lado do rosto dela, a luz do fogo no outro. Ele viu a si mesmo passando os dedos pelo cabelo dela. A respiração dela combinava com a dele. — Eu gostei, Richard.

Ele também. A sala parecia estar girando. O som do nome dele nos lábios dela causaram ondas de euforia através dele. Com o maior dos esforços, ele levantou.

— Cathryn, está tarde, e eu realmente estou cansado.

Ela levantou lentamente, um movimento gracioso que evidenciou suas formas através do vestido sedoso. O controle dele ameaçou desmoronar completamente quando ela passou o braço em volta do dele, encostando bem. — Você mostre qual é o seu quarto?

Ele podia sentir o seio firme dela apertado contra seu braço enquanto a conduzia para o corredor. Ulic e Egan não estavam muito longe com seus braços cruzados. Um pouco mais adiante, de cada um dos lados do corredor, Cara e Raina levantaram. Nenhum dos quatro mostraram qualquer reação ao ver ele com Cathryn no seu braço. Richard não falou nada para eles enquanto seguiu para os quartos dos convidados.

Com grande insistência, a mão livre de Cathryn esfregava o ombro dele. O calor da carne dela contra ele o aquecia até os ossos. Ele não sabia se as suas pernas aguentariam o caminho todo.

Quando encontrou a ala com os quartos dos convidados, fez um gesto para que Ulic e Egan se aproximassem. — Façam turnos. Quero ter sempre um de vocês vigiando. Não quero que ninguém, ou qualquer coisa, entre nesse corredor esta noite. — Olhou para as duas Mord-Sith esperando no outro lado do corredor. — Isso inclui elas. — Eles não fizeram perguntas e juraram que assim seria antes que ficassem plantados.

Richard levou Cathryn descendo o corredor até a metade do caminho. Ela ainda estava acariciando seu braço. O seio dela ainda estava encostado nele.

— Acredito que este quarto servirá.

Os lábios dela se abriram enquanto seu peito pulsava. Seus dedos delicados agarraram a camisa dele. — Sim. — ela sussurrou ofegante. — este quarto.

Richard invocou cada pouquinho de força. — Ficarei com aquele do lado direto dele. estará segura aqui.

— O quê? — O sangue desapareceu do rosto dela. — Oh, por favor, Richard...

— Durma bem, Cathryn.

Ela aumentou a força do aperto no braço dele. — Mas... mas, você tem que entrar. Oh, por favor, Richard. Vou ficar com medo.

Ele apertou a mão dela quando retirou-a do seu braço. — Seu quarto é seguro, Cathryn, não fique preocupada.

— Poderia haver alguma coisa lá dentro, esperando. Por favor, Richard, entre comigo?

Richard sorriu de forma tranquilizadora — Não tem nada lá dentro. Eu poderia sentir se houvesse perigo por perto.

— Sou um mago, lembra? Está perfeitamente segura, e eu estarei apenas a alguns passos. Nada vai perturbar seu descanso, eu juro.

Ele abriu a porta, entregou a ela um lampião que estava em um suporte ao lado da porta, e colocou uma das mãos nas costas dela, fazendo ela entrar.

Ela virou e passou um dedo no meio do peito dele. — Verei você amanhã?

Ele afastou a mão dela e beijou-a do modo mais educado que conseguiu imaginar. — Conte com isso. Temos muito trabalho para fazer amanhã.

Fechou a porta do quarto dela e foi para o quarto seguinte. Os olhos das duas Mord-Sith não desviavam dele. Ele observou quando elas encostaram as costas na parede e escorregaram para sentar no chão. Cada uma delas cruzou as pernas, como se desejassem dizer que pretendiam ficar ali a noite toda, e cada uma segurou o Agiel com as duas mãos.

Richard olhou para a porta do quarto de Cathryn, seu olhar permaneceu por algum tempo. A pequena voz no fundo de sua cabeça estava gritando freneticamente. Ele abriu a porta de seu quarto puxando com violência. Lá dentro, encostou o rosto na porta fechada enquanto recuperava o fôlego. Ele se esforçou para fechar o ferrolho.

Desabou na beira da cama, colocando o rosto nas mãos. Qual era o problema com ele? Sua camisa estava molhada de suor. Porque ele teria esses pensamentos sobre essa mulher? Mas ele tinha. Queridos espíritos, ele tinha. Lembrou que as Irmãs da Luz acreditavam que os homens sofriam de necessidades incontroláveis.

Com esforço impressionante, ele tirou a Espada da Verdade de sua bainha, espalhando seu suave e claro som pelo quarto escuro. Richard encostou a ponta no chão e com as duas mãos segurou o cabo em sua testa, deixando a fúria inundar ele. Sentiu sua tempestade de fúria através de sua alma, e desejou que isso fosse o bastante.

Em um canto escuro de sua mente, Richard sabia que estava em uma dança com a morte, e dessa vez sua espada não poderia salvá-lo. Também sabia que não tinha escolha.

 

Irmã Philippa aumentou ainda mais a sua grande altura quando enrijeceu a costas, enquanto tentava olhar para baixo com seu fino nariz levantado sem fazer parecer que realmente estava fazendo isso. Mas ela estava.

— Certamente, Prelada, você não considerou esse assunto com profundidade bastante. Talvez se refletisse sobre ele mais um pouco perceberia que trezentos mil anos de resultados confirmam a necessidade.

Com o cotovelo sobre a mesa, Verna descansou o queixo sobre o punho enquanto estudava um relatório, tornando impossível olhar para ela sem ver o anel dourado com a figura de um raio de sol de seu cargo. Levantou os olhos só para ter certeza que Irmã Philippa estava, de fato, olhando para ela.

— Obrigada, Irmã, pelo seu sábio conselho, mas eu já considerei bastante o assunto. Não há necessidade de cavar mais dentro de um poço seco; isso apenas vai deixar você com mais sede, o que faz subir suas expectativas, mas não a água.

Os olhos escuros da Irmã Philippa e seus traços exóticos raramente mostravam emoção, mas Verna detectou a tensão nos músculos em sua mandíbula estreita.

— Mas, Prelada... não seremos capazes de verificar se um jovem está progredindo adequadamente, ou se aprendeu o bastante para ser liberado de seu Rada'Han. É o único jeito.

Verna fez uma careta para o relatório que estava lendo. Colocou ele de lado para tomar uma ação mais tarde e concentrou sua atenção totalmente em sua conselheira. — Quantos anos você tem, Irmã?

O olhar sombrio de Irmã Philippa não vacilou. — Quatrocentos e setenta e nove, Prelada.

Verna teve que admitir para si mesma que sentiu um pouco de inveja. A mulher raramente parecia mais velha do que ela, e ainda assim estava na casa de trezentos anos mais velha. Os vinte anos longe do feitiço do Palácio custou a Verna um tempo que jamais poderia recuperar. Ela nunca teria o tempo de vida para aprender o que essa mulher aprenderia.

— Quantos desses anos no Palácio dos Profetas?

— Quatrocentos e setenta, Prelada. — A inflexão no título era difícil de detectar, a não ser que alguém estivesse escutando atentamente. Verna estivera escutando atentamente.

— Então, você está dizendo, que o Criador concedeu a você cerca de quatrocentos e setenta anos para aprender o trabalho dele, para trabalhar com jovens e ensiná-los a controlar seu dom e tornaram-se magos, e em todo esse tempo, você falhou em conseguir definir a natureza de seus alunos?

— Bem, não, Prelada, isso não é exatamente o que...

— Está tentando me dizer, Irmã, que um Palácio todo cheio de Irmãs da Luz não é esperto o suficiente para determinar se um jovem, que esteve sob nossa responsabilidade e abrigo por quase duzentos anos, está pronto para avanço, sem sujeitá-lo a um brutal teste de dor? Você tem tão pouca fé nas Irmãs? Na sabedoria do Criador em nos escolher para fazer esse trabalho? Está tentando me dizer que o Criador nos escolhe, nos dá, coletivamente, milhares de anos de experiência, e ainda somos estúpidas demais para fazer o trabalho?

— Acho que talvez a Prelada esteja...

— Permissão negada. Esse é um uso obsceno do Rada'Han, causar esse tipo de dor. Pode despedaçar a mente de uma pessoa. Ora, jovens até mesmo morreram no teste.

— Vá dizer para aquelas Irmãs que eu espero que elas apresentem uma estratégia para realizar a tarefa sem sangue, vômito, ou gritos. Você pode até mesmo sugerir que elas tentem algo revolucionário, como... oh, não sei, talvez conversar com os jovens? A não ser que as Irmãs considerem que seriam enganadas, e nesse caso eu gostaria que elas admitissem para mim em um relatório, para o registro.

Irmã Philippa ficou em silêncio durante um momento, provavelmente considerando se valia a pena mais discussão. De modo relutante, ela finalmente fez uma reverência. — Muito sábio, Prelada. Obrigada por esclarecer.

Ela virou para ir embora, mas Verna chamou-a de volta. — Irmã, eu sei como você se sente. Fui ensinada da mesma maneira que você, e acreditava assim como você. Um jovem com apenas cerca de vinte anos me ensinou o quanto eu estava errada.

— Às vezes o Criador escolhe trazer sua luz de modos que não esperamos, mas Ele realmente espera que estejamos prontas para receber sua sabedoria quando ela nos é apresentada.

— Você fala do jovem Richard?

Verna encostou um dedão nas bordas desordenadas da pilha de relatórios esperando por sua atenção. — Sim.

Ela abandonou seu tom oficial. — O que eu aprendi, Philippa, é que esses jovens, esses magos, serão lançados dentro de um mundo que irá testá-los. O Criador quer que determinemos se ensinamos eles a suportar com integridade a dor que eles verão, e sentirão. — Ela deu um tapinha no peito. — Aqui dentro. Devemos determinar se eles conseguem fazer as escolhas dolorosas que a luz do Criador às vezes exige. Esse é o significado do teste da dor. Então, a habilidade de suportar a tortura não nos diz nada sobre o coração deles, sua coragem, ou sua compaixão.

— Você mesma, Philippa, passou por um teste de dor. Você teria lutado para ser Prelada. Trabalhou centenas de anos na direção do objetivo de estar ao menos na disputa. Os eventos tiraram de você essa chance, e ainda assim você não me falou nenhuma palavra de amargura, embora deva sentir a dor toda vez que olha para mim. Ao invés disso, tem feito o melhor para me aconselhar no posto, e tem trabalhado no interesse do Palácio, independente dessa dor.

— Eu receberia um serviço melhor se tivesse insistido que você fosse testada pela tortura para se tornar minha conselheira? Isso teria provado alguma coisa?

As bochechas da Irmã Philippa estavam vermelhas. — Não vou mentir fingindo concordar, mas pelo menos agora entendo que você realmente esteve tirando terra do buraco, e não está simplesmente abandonando ele considerando que está seco porque não queria suar. Vou transmitir sua diretriz imediatamente, Verna.

Verna sorriu. — Obrigada, Philippa.

Philippa deixou transparecer um leve sorriso. — Richard criou mesmo uma onda de mudanças por aqui. Pensei que ele tentaria matar nós todas, e acabou se mostrando um amigo do Palácio maior do que qualquer mago em três mil anos.

Verna soltou uma risada. — Se ao menos soubesse quantas vezes tive que rezar para ter forças e não estrangular você.

Quando Philippa partiu, Verna conseguiu ver através da porta no escritório externo que Millie estava esperando permissão para entrara e fazer a limpeza. Verna se espreguiçou com um bocejo, pegou o relatório que tinha colocado de lado, e seguiu até a porta. Ela fez sinal para que Millie entrasse em seu escritório enquanto voltava sua atenção para suas duas administradoras, Irmãs Dulcinia e Phoebe.

Antes que Verna conseguisse falar, Irmã Dulcinia levantou com uma pilha de relatórios. — Se estiver pronta. Prelada, colocamos esses em ordem para você.

Verna pegou a pilha, aproximadamente com o peso de um recém nascido, e encostou-a em uma coxa. — Sim, está certo, obrigada. está tarde.

Porque vocês duas não vão dormir.

Irmã Phoebe balançou a cabeça. — Eu não me importo, Prelada. Gosto do trabalho, e...

— E amanhã tem outro longo dia dele. Não quero que vocês fiquem cochilando porque não dormiram o bastante.

Agora, vão, as duas.

Phoebe juntou um monte de papéis, provavelmente para levar até seu próprio escritório e continuar trabalhando.

Phoebe parecia pensar que elas estavam em uma corrida de papel; sempre que suspeitava que havia ao menos uma chance remota de Verna alcançá-la, ela trabalhava freneticamente, produzindo mais daquelas coisas, quase parecendo que fazia com magia. Dulcinia pegou sua xícara de chá da mesa, deixando os papéis. Ela trabalhava em um ritmo calculado, nunca fazendo grandes esforços para ficar na frente de Verna, mas ainda conseguia produzir pilhas de relatórios, organizados e com notas, quase ao mesmo tempo. Nenhuma elas precisava ter medo que Verna as alcançasse; cada dia deixava ela mais atrás.

As duas Irmãs se despediram, afirmando esperar que o Criador providenciasse um sono reparador para a Prelada.

Verna esperou que elas chegassem até a porta externa. — Oh, Irmã Dulcinia, tenho um pequeno assunto que gostaria que você cuidasse amanhã.

— É claro, Prelada. O que é?

Verna colocou o relatório que havia trazido sobre a mesa de Dulcinia onde ele pudesse ser a primeira coisa que ela veria quando sentasse de manhã. — Um pedido de auxílio de uma jovem e sua família. Um de nossos jovens magos está prestes a se tornar um pai.

Phoebe gritou. — Oh, isso é maravilhoso! Rezamos para que, com a bênção do Criador, ele seja um garoto, e tenha o dom. Não nasceu ninguém na cidade com o dom desde... Bem, nem consigo lembrar da última vez. Talvez dessa vez...

A expressão séria de Verna finalmente fez ela ficar em silêncio. Verna voltou sua atenção para Irmã Dulcinia. — Quero ver essa jovem, e o jovem responsável pela condição dela. Amanhã, você vai arrumar um encontro. Talvez os pais dela pudessem estar lá também, já que eles estão fazendo o pedido de auxílio.

Irmã Dulcinia, com uma expressão vazia no rosto, aproximou-se um pouco. — Tem algum problema, Prelada?

Verna levantou mais um pouco na coxa o monte de relatórios. — Eu diria que tem. Um de nossos jovens deixou a mulher grávida.

Irmã Dulcinia colocou a xícara de chá na ponta da mesa quando deu um passo chegando mais perto. — Mas Prelada, nós permitimos que nossos pupilos vão até a cidade exatamente por essa razão. Isso não apenas reduz seus impulsos para que possam se devotar aos estudos, mas também, na ocasião, gera alguém com o dom.

— Não vou encorajar que o Palácio se intrometa na criação e nas vidas de pessoas inocentes.

Os olhos azuis de Irmã Dulcinia observaram Verna dos pés até a cabeça. — Prelada, os homens tem desejos incontroláveis.

— Eu também, mas com a ajuda do Criador consegui até agora me controlar para não estrangular ninguém.

A risada de Phoebe foi cortada por um olhar ardente da Irmã Dulcinia. — Prelada, os homens são diferentes. Não conseguem se controlar. Permitir essa simples diversão mantém suas mentes focadas em suas lições. O Palácio pode muito bem arcar com a recompensa. É um preço pequeno a pagar em vista do fato de que isso pode fazer que ganhemos um jovem mago.

— A tarefa do Palácio é ensinar nossos homens jovens a usar seu dom de uma maneira responsável, com moderação, e conhecer muito bem as consequências de utilizar sua habilidade. Quando encorajamos que eles a agir de maneira exatamente oposta sem considerar os outros aspectos de suas vidas, isso prejudica nossas lições.

— Quanto ao resultado ocasional de alguém com o dom nascer como resultado dessas uniões indiscriminadas, não há evidência alguma de que isso seja proveitoso. Quem pode afirmar que se eles agissem com mais responsabilidade e controle, os resultados de uniões significativas no futuro não produziria mais do que uma simples porcentagem de descendentes com o dom. Pelo que eu sei, a imprudência libidinosa deles poderia estar enfraquecendo sua habilidade de passar em frente o dom.

— Ou aumentando as suas chances, não importa o quanto elas sejam baixas.

Verna encolheu os ombros. — Talvez. Mas sei que aqueles pescadores lá fora no rio não passam sua vida toda pescando exatamente no mesmo lugar porque um dia eles pegaram um peixe ali. Uma vez que estamos conseguindo pegar poucos peixes, acredito que seja hora de mudar.

Irmã Dulcinia cruzou as mão fazendo um esforço para ser paciente. — Prelada, o Criador abençoou as pessoas com sua natureza, desse jeito, e não há como alterar isso. Homens e mulheres vão continuar fazendo o que lhes dá prazer.

— É claro que vão, mas enquanto continuarmos pagando o preço pelos resultados, nós encorajamos mais isso. Se não houver consequências, então não haverá autocontrole. Quantas crianças cresceram sem o benefício de um pai porque damos ouro para as mulheres jovens grávidas? Esse ouro substitui a educação? Quantas vidas nós alteramos, em detrimento delas, com nosso ouro?

Dulcinia afastou as mãos, assustada. — Nosso ouro os ajuda.

— Nosso ouro encoraja as mulheres na cidade a agir de forma irresponsável, e deitar com nossos jovens porque isso significa uma vida de auxílio sem qualificações. — Verna balançou a mãos livre, indicando a cidade. — Estamos rebaixando essas pessoas com nosso ouro. Transformamos eles em pouco mais do que reprodutores.

— Mas temos usado esse método por milhares de anos para ajudar a aumentar aqueles com o dom que conseguimos encontrar.

— Dificilmente nasce alguém com o dom.

— Eu percebo isso, ma estamos no negócio de ensinar pessoas, não de procriação delas. Nosso ouro reduz eles a criaturas agindo pelo desejo do ouro, ao invés de pessoas tendo crianças por amor.

Irmã Dulcinia ficou muda por um momento com o golpe. — Como podemos ser vistas de forma tão cruel e sem coração ao negar a ajuda de um pouco de nosso ouro? Vidas são mais importantes do que ouro.

— Tenho visto os relatório; dificilmente podemos chamar de um pouco de ouro. Mas isso não é a questão; a questão é que estamos reproduzindo as crianças do Criador como animais em uma fazenda, e fazendo isso, estamos reproduzindo o desprezo pelos valores.

— Mas nós ensinamos valores aos nossos jovens! Como a mais alta criação do Criador, as pessoas respondem ao ensinamento de valores porque possuem o intelecto para entender sua importância.

Verna suspirou. — Irmã, suponha que nós preguemos a honestidade, e ao mesmo tempo entreguemos alegremente uma moeda para cada mentira contada. Você arrisca dizer qual seria o resultado?

Irmã Phoebe cobriu a boca quando riu. — Eu arriscaria dizer que logo estaríamos sem moedas.

Os olhos azuis de Irmã Dulcinia estavam frios como gelo. — Não percebi que você era tão cruel, Prelada, para deixar as crianças recém nascidas do Criador ficarem famintas.

— O Criador deu seios para as mães delas para que pudessem alimentar suas crianças, não para que pudessem ganhar ouro do Palácio.

O rosto da Irmã Dulcinia ficou vermelho. — Mas, os homens tem desejos incontroláveis!

A voz de Verna baixou. — O único momento em que os desejos dos homens realmente são incontroláveis é quando uma feiticeira lança um encanto. Nenhuma Irmã lançou um feitiço de encanto sobre qualquer uma das mulheres na cidade. Preciso lembrar a você que se uma Irmã fizesse isso, com sorte ela seria colocada para fora do Palácio, se não fosse enforcada? Como você bem sabe, um encanto é o equivalente moral para um estupro.

O rosto de Dulcinia ficou branco. — Eu não estou dizendo...

Verna olhou para o teto, pensativa. — Como eu lembro, a última vez em que uma Irmã foi pega lançando um encanto, foi... o quê? Faz cinquenta anos?

O olhar da Irmã Dulcinia buscou refúgio mas não encontrou. — Foi uma noviça, Prelada, não uma Irmã.

Verna manteve os olhos em Dulcinia. — Você estava no tribunal, como eu também lembro. — Dulcinia assentiu. — E votou para enforcá-la. Uma pobre jovem que esteve aqui apenas durante poucos anos, e você votou para condená-la a morte.

— É a lei, Prelada. — ela falou sem levantar os olhos.

— É a máxima da lei.

— Outras deram o mesmo voto.

Verna assentiu. — Sim, elas votaram. Um empate, seis a seis. Prelada Annalina quebrou o impasse votando que a jovem fosse banida.

Os olhos azuis penetrantes de Irmã Dulcinia finalmente levantaram. — Eu ainda digo que ela estava errada. Valdora jurou uma vingança eterna. Jurou destruir o Palácio dos Profetas. Cuspiu no rosto da Prelada e prometeu que algum dia a mataria.

Verna curvou a sobrancelha. — Sempre imaginei, Dulcinia, porque você foi escolhida para estar no tribunal.

Irmã Dulcinia engoliu em seco. — Porque eu era instrutora dela.

— Verdade. Professora dela. — Verna estalou a língua. — Onde você imagina que a jovem aprendeu a lançar um encanto?

A cor voltou ao rosto da Irmã Dulcinia rapidamente. — Nunca conseguimos determinar isso com certeza.

Provavelmente com a mãe dela. Uma mãe geralmente ensina uma jovem feiticeira essas coisas.

— Sim, ouvi falar disso, mas eu não saberia. Minha mãe não era dotada; ela foi pulada. Sua mãe era dotada, se eu me lembro...

— Sim, ela era. — Irmã Dulcinia beijou seu dedo anelar enquanto sussurrava uma oração para o Criador, um ato particular de súplica e devoção feito frequentemente, mas raramente na frente de outros. — Está ficando tarde, Prelada. Não queremos segurar mais você.

Verna sorriu. — Sim, então, boa noite.

Irmã Dulcinia curvou-se fazendo uma reverência formal. — Como você ordenar, Prelada, amanhã cuidarei da questão da mulher grávida e do jovem mago, depois que esclarecer isso com Irmã Leoma.

Verna levantou uma sobrancelha. — Oh? E agora a Irmã Leoma está acima da Prelada, não é?

— Bem, não, Prelada. — Irmã Dulcinia gaguejou. — É só que Irmã Leoma gosta que eu... só pensei que você iria querer que eu informasse sua conselheira de sua ação... para que ela não fosse pega... desprevenida.

— Irmã Leoma é minha conselheira, Irmã, eu informarei a ela minhas ações, se eu considerar necessário.

O rosto redondo de Phoebe virou de uma mulher para a outra enquanto ela observava silenciosamente o intercâmbio.

— Como desejar, Prelada, assim será feito. — Irmã Dulcinia falou. — Por favor perdoe meu... entusiasmo, em assistir minha Prelada.

Verna encolheu os ombros, o melhor que podia com o monte de relatórios. — É claro, Irmã. Boa noite.

Felizmente, as duas partiram sem mais discussão. Resmungando consigo mesma, Verna carregou a pilha de relatórios para dentro de seu escritório e jogou na mesa ao lado daqueles que ainda tinha que verificar. Olhou para Millie, em um canto esfregando com um trapo um local onde ninguém jamais perceberia se ficasse assim pelas próximas centenas de anos.

O escritório fracamente iluminado estava silencioso a não ser pelo som do trapo de Millie e o resmungo dela mesma. Verna caminhou lentamente até a estante perto de onde a mulher estava de joelhos trabalhando e passou um dedo pelos volumes sem realmente ver os títulos dourados nas lombadas gastas das capas antigas de couro.

— Como estão os seus velhos ossos esta noite, Millie?

— Oh, não me deixe assustada, Prelada, ou logo terei suas mãos em cima de mim tentando curar o que não pode ser curado. A idade, você sabe. — O joelho dela empurrou o balde mais perto enquanto sua mão continuava a esfregar outro ponto no tapete. — Todos nós envelhecemos. O próprio Criador deve ter feito isso intencionalmente, já que nenhum mortal pode curar isso.

Embora eu tenha mais tempo do que a maioria recebe, trabalhando aqui no Palácio, eu quero dizer. — A língua dela saltou no canto da boca quando ela aplicou mais força no pano. — Sim, o Criador me abençoou com mais anos do que eu saberei usar.

Verna nunca tinha visto a pequena mulher robusta de outro modo além de um firme estado de movimento. Mesmo enquanto ela falava, seu trapo esfregava a sujeira constantemente, ou um dedão esfregava um cantinho, ou uma das unhas coletava um fragmento de sujeira que ninguém mais conseguia ver.

Verna tirou um volume e abriu. — Bem, eu sei que a Prelada Annalina gostava de ter você por perto todos esses anos.

— Oh, sim, foram muitos anos. Minha nossa, muitos anos.

— Uma Prelada, eu acabei descobrindo, tem poucas oportunidades preciosas para fazer amizade. Foi bom que ela tivesse a sua. Tenho certeza que não encontrarei menor conforto em ter você por perto.

Millie resmungou uma praga para um relutante pedaço de sujeira. — Oh, sim, tivemos muitas conversas durante a noite. Minha nossa, mas ela era uma mulher maravilhosa. Sábia, e bondosa. Ora, ela escutava todos, até mesmo a velha Millie.

Verna sorriu enquanto virava distraidamente uma página no livro, um volume das leis arcanas de um reino morto fazia muito tempo. — Foi muita bondade sua ajudá-la, com o anel dela e a carta, eu quero dizer.

Millie levantou os olhos, um sorriso surgindo nos seus lábios finos. A mão dela havia parado de esfregar. — Ah, então você vai querer saber sobre isso, como todas as outras.

Verna fechou o livro rapidamente. — Outras? Que outras?

Millie mergulhou o trapo na água ensaboada. — As Irmãs. Leoma, Dulcinia, Maren, Philippa, essas outras. Você as conhece, eu tenho certeza. — Ela lambeu a ponta de um dedo e esfregou ele na madeira escura, concentrando-se em um ponto. — Acho que teve mais algumas, não lembro. A idade, você sabe. Todas vieram atrás de mim depois do funeral. Não juntas, se você quer saber. — ela falou com uma risada. — Sabe, cada uma delas sozinha, seus olhos observando as sombras enquanto perguntavam o mesmo que você.

Verna tinha esquecido seu fingimento com a estante. — E o que você falou para elas?

Millie enrolou o pano. — A verdade, é claro, do mesmo jeito que digo a você, se você se importar em escutar.

— Sim. — Verna disse, lembrando a si mesma para manter a ansiedade longe de sua voz. — Já que agora sou a Prelada, acho que deveria saber sobre isso. Porque não descansa um pouco, e me conta a história.

Com um grunhido de dor, Millie fez um esforço para levantar e virou os olhos para Verna. — Ora, obrigada, Prelada. Mas tenho trabalho para fazer, você sabe. Não gostaria que você ficasse pensando que sou uma preguiçosa, procurando trabalhar com minha língua ao invés do pano.

Verna deu um tapinha no ombro magro da mulher. — Não tenha medo disso, Millie. Conte sobre a Prelada Annalina.

— Bem, ela estava em seu leito de morte quando eu a vi. Também limpei o quarto de Nathan, você sabe, então foi quando a vi, quando fui até o quarto de Nathan. A Prelada não confiava em mais ninguém além de mim para entrar ali.

Não posso dizer que a culpo, embora o Profeta sempre fosse gentil comigo. A não ser quando ele começava a falar sobre uma coisa ou outra, gritando, você sabe. Não comigo, entenda, mas por causa de sua condição e tudo, por estar trancado em seus aposentos durante todos aqueles anos. Isso cobra seu preço em um homem, eu suponho.

Verna limpou a garganta. — Imagino que foi difícil para você ver a Prelada naquela condição.

Millie colocou uma das mãos no braço de Verna. — Você não sabe. Partiu meu coração. Mas ela estava com seu estado de humor costumeiro, independente da dor.

Verna estava mordendo o lábio. — Você estava falando sobre o anel, e a carta.

— Oh, sim. — Millie girou os olhos, então se esticou e tirou um fio do ombro do vestido da Irmã Verna. — Deveria deixar que eu limpasse ele para você. Isso realmente não faz as pessoas pensarem...

Verna segurou a mão calejada da mulher. — Millie, isso é muito importante para mim. Poderia me falar sobre como você pegou o anel, por favor?

Millie sorriu como se pedisse desculpas. — Ann falou que estava morrendo. Ela foi bem direta. Millie, estou morrendo. Bem, eu estava chorando. Ela foi minha amiga por um longo tempo. Ela sorriu e segurou minha mão, do jeito que você fez agora, e disse que tinha uma última tarefa para mim. Tirou o anel do dedo e me entregou. Na minha outra mão, ela colocou aquela carta selada com cera e gravada com a marca do raio de sol do anel.

— Falou que quando o funeral dela estivesse acontecendo, eu deveria colocar o anel sobre a carta, no pedestal. Eu tinha que entrar ali. Ela falou para ter cuidado e não encostar o anel na carta até o último momento, ou a magia que ela colocou ao redor poderia me matar. Ela me avisou várias vezes para lembrar de ter cuidado para não encostar os dois até que tudo estivesse certo. Falou exatamente o que fazer, em qual ordem. Então foi o que fiz.

— Nunca mais a vi, depois que ela me deu o anel.

Verna ficou olhando fixamente através da portas abertas para o jardim que nunca teve tempo de visitar. — Quando foi isso?

— Essa é uma pergunta que nenhuma das outras vez. — Millie resmungou consigo mesma. Ela passou um dedo fino para frente e parar trás em seu lábio inferior. — Deixe-me ver. Faz um bom tempo. Foi antes do solstício de inverno. Sim, foi logo depois do ataque, no dia em que você partiu com o jovem Richard. Ele era um bom rapaz.

Agradável como um dia ensolarado, ele era. Sempre mostrava um sorriso de como você está para mim. A maioria dos outros rapazes nem me enxergavam, bem ali na frente dos seus olhos, mas o jovem Richard sempre me enxergava, ele enxergava, e também tinha palavras agradáveis para mim.

Verna escutava apenas parcialmente. Lembrou do dia que Millie falou. Ela e Warren saíram com Richard para ajudá-lo a atravessar o escudo que o mantinha preso ao Palácio. Depois que eles passaram através do escudo, foram até o povo Baka Ban Mana, e levaram todos eles até o Vale dos Perdidos, sua terra natal ancestral, uma terra natal da qual eles foram retirados três mil anos antes para que as torres que separavam o Mundo Antigo do Novo fossem erguidas. Richard precisou da ajuda da mulher espírito deles.

Richard tinha usado um poder inimaginável, não apenas Magia Aditiva, mas Subtrativa também, para destruir as torres, e limpar o vale, devolvendo ele para os Baka Ban Mana antes de seguir em uma desesperada missão para impedir o Guardião dos mortos de escapar através do portal e entrar no mundo dos vivos. O solstício de inverno veio e foi, então ela soube que ele teve sucesso.

De repente, Verna virou para Millie. — Isso foi quase um mês atrás. Bem antes dela morrer.

Millie assentiu. — Parece que é isso mesmo.

— Você quer dizer que ela entregou o anel quase três semanas antes que ela morresse? — Millie assentiu. — Porque tanto tempo?

— Ela disse que queria entregar ele para mim antes que ela fosse mais adiante, e não pudesse dizer adeus, ou não conseguisse fornecer as instruções adequadas.

— Entendo. E quando você voltou depois disso, antes que ela morresse, ela realmente foi tão rápido quanto imaginou?

Millie encolheu os ombros enquanto soltava um suspiro. — Aquela foi a única vez que eu a vi. Quando voltei para visitá-la, e para limpar, os guardas disseram que Nathan e a Prelada deixaram ordens estritas de que ninguém teria permissão para entrar.

Alguma coisa sobre Nathan não ser incomodado enquanto tentava fazer o melhor que podia para curá-la. Eu não queria que ele falhasse, então me afastei, tão silenciosamente quanto pude.

Verna suspirou. — Bem, obrigada por me contar, Millie. — Verna olhou para sua mesa, e a pilha de relatórios que esperava. — É melhor voltar para o meu trabalho também, ou todos pensarão que sou preguiçosa.

— Oh, isso é uma pena, Prelada. Uma noite tão linda e quente, você deveria desfrutar do seu jardim particular.

Verna grunhiu. — Tenho tanto trabalho a fazer que nunca coloquei o nariz lá fora para olhar o jardim particular da Prelada.

Millie andou na direção do balde, mas de repente virou. — Prelada! Acabei de lembrar de outra coisa que Ann falou.

Verna alisou o vestido nos ombros. — Ela falou mais alguma coisa? Alguma coisa que falou para as outras que esqueceu de me contar?

— Não, Prelada. — Millie sussurrou enquanto chegou mais perto. — Não, ela falou para mim, e disse para não contar para mais ninguém a não ser a nova Prelada. Por alguma razão, isso estava completamente fora de minha memória até esse momento.

— Junto com todo o resto, ela deve ter enfeitiçado a mensagem, para fazer você esquecer diante de todos a não ser a nova Prelada.

— Poderia ser isso. — Millie falou enquanto esfregava o lábio. Olhou dentro dos olhos de Verna. — Ann faria coisas desse tipo, às vezes. Às vezes, ela podia ser muito cuidadosa.

Verna sorriu sem humor. — Sim, eu sei. Eu também estive no lado que recebeu suas manipulações. Qual é a mensagem?

— Ela falou para dizer a você para ter certeza de não trabalhar duro demais.

Verna descansou uma das mãos na cintura. — Essa é a mensagem?

Millie assentiu quando inclinou chegando mais perto e baixou a voz. — E ela falou que deveria usar o jardim para relaxar. Mas então ela segurou meu braço e fez com que eu me aproximasse, olhando dentro dos meus olhos, e falou para também dizer a você para ter certeza de visitar o santuário da Prelada.

— Santuário? Que santuário?

Millie virou e apontou através das portas abertas. — Lá fora no jardim tem uma pequena construção aninhada nas árvores e arbustos. Ela chamava de santuário. Nunca estive lá dentro. Ela nunca permitia que eu entrasse ali para limpar. Ela mesma limpava, ela disse, porque um santuário era um lugar sacrossanto onde um corpo poderia ficar em paz, e onde mais ninguém colocava os pés. Ela entrava lá, de vez em quando, acho que para rezar pedindo orientação do Criador, ou talvez apenas para ficar sozinha. Ela falou para me certificar de dizer a você para ir até lá e visitá-lo.

Verna soltou um suspiro exasperado. — Parece a maneira dela dizer que eu precisaria da ajuda do Criador para vencer todo o trabalho com papéis. Ela realmente tinha um senso de humor distorcido, às vezes.

Millie riu. — Sim, Prelada, tinha mesmo. Distorcido. — Millie colocou as mãos nas bochechas vermelhas. — Que o Criador me perdoe. Ela era uma mulher bondosa. O senso de humor dela nunca pretendia causar mal.

— Não, acho que não.

Verna esfregou as têmporas enquanto andava até a mesa. estava cansada, e assustada com a possibilidade de ler mais daqueles relatórios adormecedores de mente. Ela parou e virou para Millie. As portas para o jardim estavam totalmente abertas, deixando entrar o ar fresco da noite.

— Millie, está tarde, porque não vai jantar, e descansa um pouco. O descanso é bom para ossos cansados.

Millie sorriu. — Verdade, Prelada? Não se importa que o seu escritório fique cheio de pó?

Verna riu. — Millie, estive em ambientes abertos durante tantos anos que acabei me acostumando com o pó.

— Está tudo bem, verdade. Tenha um bom descanso.

Enquanto Verna ficou em pé no portal para o jardim, olhando para a noite lá fora, para a luz da lua banhando o chão entre as árvores e videiras, Millie recolheu seus panos e o balde. — Então, boa noite para você, Prelada. Aproveite a visita ao seu jardim.

Ela escutou as portas fechando e a sala ficou silenciosa. Ficou sentindo a brisa morna úmida e inalou o aroma agradável das folhas, flores e da terra.

Verna deu uma última olhada para o seu escritório, e então deu um passo dentro da noite que aguardava.

 

Verna respirou profundamente o ar úmido refrescante da noite. Era como um tônico. Podia sentir seus músculos relaxando enquanto andava por um caminho sinuoso estreito, entre montes de lírios, arbustos brilhantes, e arbustos com amoras, enquanto esperava que seus olhos se ajustassem com a luz da lua. Árvores espalhavam seus galhos densos, parecendo oferecer os galhos para que ela os tocasse, ou a doce fragrância de suas folhagens e flores para que ela cheirasse.

Embora fosse cedo demais para que a maioria das árvores estivesse com flores, no jardim da Prelada havia algumas raras que sempre floresciam. Árvores baixas, retorcidas, que ficavam cheias de flores durante o ano todo, ainda que tivessem frutos apenas na estação apropriada. No Mundo Novo ela havia encontrado uma pequena floresta com árvores sempre floridas, e descobriu ser ali o lugar preferido dos esquivos fogos fátuos, frágeis criaturas que pareciam não ser nada mais do que fagulhas de luz, e que só eram visíveis durante a noite.

Depois que os fogos fátuos foram convencidos de suas intenções benignas, ela e as duas Irmãs com quem ela estivera naquele tempo passaram várias noites lá, conversando com os fogos fátuos sobre coisas simples e aprendendo sobre a natureza benevolente dos magos e Confessoras que guiavam a aliança de Midlands. Verna ficou feliz em aprender que o povo de Midlands protegia os lugares de magia, e permitia que as criaturas que habitavam neles vivessem suas vidas em solidão sem serem molestados.

Enquanto houvesse lugares intocados no Mundo Antigo onde criaturas mágicas residiam, eles não eram nem de perto tão numerosos ou tão variados quanto aqueles lugares maravilhosos no Mundo Novo. Verna aprendeu um pouco de tolerância com algumas daquelas criaturas. Que o Criador havia pulverizado o mundo com muitas maravilhas frágeis, e às vezes o maior desejo da humanidade era simplesmente deixar eles em paz.

No Mundo Antigo essa visão não era apoiada amplamente, e havia muitos lugares onde a magia foi colocada sob controle para que pessoas não fossem feridas ou mortas por coisas não influenciáveis pela razão. Muitas vezes a magia podia ser... inconveniente. Durante muitos anos, o Mundo Novo ainda era um lugar selvagem, como o Mundo Antigo havia sido milhares de anos atrás, antes que o homem o tornasse um lugar seguro, um tanto quanto estéril, através de suas noções de gerenciamento.

Verna sentia saudade do Mundo Novo. Nunca sentiu-se tão em casa quanto sentiu lá.

Patos dormindo com suas cabeças dobradas para trás enfiadas debaixo das asas flutuavam na margem de um lago perto do caminho, enquanto sapos invisíveis coaxavam no meio dos juncos. Verna enxergava de vez em quando um morcego descer até a superfície da água para arrancar um inseto do ar. Sombras geradas pela lua dançavam pelos bancos gramados enquanto a brisa suave acariciava as árvores lá no alto.

Logo depois do lago, uma pequena trilha lateral seguia na direção de um grupo de árvores entre um bosque de arbustos que mal recebiam a luz da lua. De algum modo Verna sentiu que esse era o lugar que procurava, e saiu do caminho principal, na direção das sombras. O terreno aqui parecia ser governado pela natureza selvagem, em oposição ao visual bem cuidado da maior parte do jardim.

Através de uma abertura estreita na parede de espinhos, Verna encontrou uma pequena construção encantadora com quatro cumeeiras, a inclinação de cada um dos telhados descendo em uma curva suave até calhas que não ficavam mais altas do que sua cabeça. Uma enorme árvore Ginkgo Biloba projetava-se perto de cada cumeeira, seus galhos se entrelaçando logo acima. Uma roseira chegava até o chão perto das paredes, enchendo aquela aconchegante área delimitada com um odor perfumado. Havia uma janela redonda, alta demais para que fosse possível olhar através dela, sobre cada cumeeira.

Em um muro com formato triangular, onde o caminho terminava, Verna encontrou uma porta talhada de forma grosseira, com o topo arredondado, que exibia a figura de um raio de sol entalhado no centro. Havia um puxador, mas nenhuma fechadura. Um puxão não produziu movimento, nem mesmo um balançar. A porta estava protegida.

Verna passou os dedos pela borda, procurando sentir a natureza do escudo, ou sua fechadura. Sentiu apenas um calafrio que a fez recuar.

Ela liberou o seu Han, deixando que a luz a inundasse com seu calor e conforto familiar. Ela quase arfou com a glória de estar tão perto ao Criador. De repente o ar ficou cheio de milhares de odores; contra a pele dela parecia umidade, poeira, pólen, e sal do oceano; em seus ouvidos aquilo carregava os sons de um mundo de insetos, pequenos animais, e fragmentos de palavras carregadas por milhas em seus dedos voláteis. Ela escutou cuidadosamente buscando por quaisquer sons que pudessem entregar alguém perto, pelo menos alguém com nada mais do que Magia Aditiva. Não escutou ninguém.

Verna concentrou seu Han na porta diante dela. Sua sondagem lhe informou que toda a construção estava envolvida em uma teia, mas nenhuma que ela já tivesse sentido antes: tinha elementos de gelo entrelaçados com espírito. Ela nem ao menos sabia que gelo poderia ser entrelaçado com espírito. Os dois lutavam um contra o outro como gatos em um saco, mas ali estavam eles, os dois ronronando contentes, como se fosse natural que estivessem juntos. Ela não tinha nenhuma ideia de como esse tipo de escudo poderia ser rompido, muito menos desfeito.

Ainda unida com seu Han, um impulso lhe ocorreu, e ela se esticou, encostando a figura do raio de sol do anel naquela que estava na porta. A porta abriu silenciosamente.

Verna entrou e encostou o anel na figura do raio de sol entalhada na parte interna da porta. Ela fechou obedientemente. Com o Han ela conseguiu sentir o escudo fechar ao redor dela. Verna nunca tinha se sentido tão isolada, tão sozinha, tão segura.

Velas acenderam. Ela concluiu que deveriam estar ligadas ao escudo. A luz das dez velas, cinco em cada um dos castiçais em suportes, era mais do que suficiente para iluminar a parte interna do pequeno santuário. Os castiçais estavam cada um de um lado de um pequeno altar guarnecido com um pano branco costurado com linha dourada. Sobre o tecido branco repousava uma tigela perfurada, provavelmente para queimar plantas aromáticas. Uma almofada com bordados de ouro e franjas douradas estava no chão diante do altar.

Cada uma das quatro alcovas formadas pelas cumeeiras era apenas grande o bastante para a cadeira de aparência confortável que ocupava uma delas. Uma das outras guardava o altar, outra uma pequena mesa com um banco de três pernas, e a última, junto com a porta, um banco quadrado com uma almofada um pano cuidadosamente dobrado, provavelmente para o colo, já que deitar parecia estar fora de questão; a área no centro não era muito maior do que as alcovas.

Verna girou olhando ao redor, imaginando o que ela deveria fazer aqui. A Prelada Annalina havia deixado uma mensagem para certificar-se de que ela visitasse o lugar, mas por quê? O que ela deveria fazer aqui?

Ela desabou na cadeira, seus olhos varrendo as paredes facetadas que seguiam as entradas e saídas das pontas das cumeeiras. Talvez ela devesse vir até aqui para relaxar. Annalina conhecia o trabalho de ser Prelada; talvez ela simplesmente quisesse que sua sucessora conhecesse um lugar onde poderia ficar sozinha, um lugar para se afastar das pessoas que ficavam sempre trazendo relatórios. Verna tamborilou com os dedos no braço da cadeira. Provavelmente não.

Ela não estava com vontade de ficar sentada ali. Tinha coisas mais importantes para fazer. Havia relatórios esperando, e dificilmente eles começariam a ler a si mesmos. Com as mãos cruzadas atrás das costas, Verna caminhou, o melhor que podia, ao redor da pequena sala. Isso certamente era um desperdício de tempo. Finalmente ela soltou um suspiro exasperado e levantou a mão na direção da porta, mas parou antes de encostar o anel na figura do raio de sol.

Verna virou, observando por um momento, então levantou a saia e ajoelhou sobre a almofada. Talvez Annalina desejasse que ela rezasse por orientação. Uma Prelada deveria ser uma pessoa devota, embora fosse um absurdo pensar que alguém precisava de um lugar especial para rezar ao Criador. O Criador tinha criado tudo, todos os lugares eram seu lugar especial, então porque alguém precisaria de um lugar especial para buscar orientação? Um lugar especial jamais poderia se aproximar do significado do próprio coração. Nenhum lugar poderia se comparar com o ato de se unir ao Han dela.

Com um suspiro irritado, Verna juntou as mãos. Ela esperou, mas não estava com humor para rezar ao Criador em um lugar no qual ela estava com obrigação de fazer isso. Sentiu-se inquieta ao pensar que Annalina estava morta e ainda assim a manipulava. Os olhos de Verna giraram pelas paredes nuas enquanto as pontas dos pés tocaram no chão. Aquela mulher estava se esticando do mundo do além para se aproveitar de um momento final de controle. Será que ela não teve o bastante disso durante todos os anos em que foi Prelada? Alguém pensaria que isso seria o bastante, mas não, ela precisava ter tudo planejado para que até mesmo depois que estivesse morta, ela ainda pudesse...

Os olhos de Verna pousaram na tigela. Tinha alguma coisa no fundo, e não eram cinzas.

Ela se esticou e pegou um pequeno pacote enrolado em um papel e amarrado com um pedaço de fio. Girou ele nos dedos, inspecionando-o. Tinha que ser isso. Tinha que ser por causa disso que ela foi enviada aqui. Mas porque deixar isso aqui dentro? O escudo. Ninguém além da Prelada poderia entrar. Esse era o único lugar para colocar algo se você não quisesse que ninguém mais além da Prelada pudesse pegar.

Verna puxou as pontas e colocou o fio de volta na tigela. Colocando em sua palma, levantou o papel e olhou para o que estava dentro.

Era um livro de jornada.

Finalmente, o movimento retornou aos seus dedos e ela retirou o livro do papel para folhear as páginas. Brancas.

Livros de jornada eram objetos de magia, como a Dacra, que foram criados pelos mesmos magos que banharam o Palácio dos Profetas com a Magia Aditiva e Subtrativa. Ninguém desde, três mil anos, a não ser Richard, tinha nascido com Magia Subtrativa. Alguns aprenderam isso através da vocação, mas ninguém além de Richard havia nascido com ela.

Livros de jornada tinham a habilidade de transmitir mensagens; o que era escrito em um com a pena guardada na lombada dele apareceria em seu livro gêmeo por meio de magia. Tanto quanto elas podiam determinar, a mensagem escrita em um aparecia no gêmeo simultaneamente. Já que pena também podia ser usado para apagar mensagens antigas, os livros nunca acabavam, e podiam ser usados repetidas vezes.

Eles foram carregados por Irmãs que saíram em jornadas para recolher garotos nascidos com o dom. Na maioria das vezes, as Irmãs tiveram que viajar através da barreira, através do Vale dos Perdidos, seguindo até o Mundo Novo para encontrar o garoto e colocar um Rada'Han em volta de seu pescoço para que o dom não o machucasse enquanto aprendia a controlar sua magia. Uma vez além da barreira não havia retorno para receber instruções ou orientações; uma jornada para fora e outra de volta era tudo que era possível para cada uma das Irmãs. Até agora. Richard havia destruído as torres e suas tempestades de feitiços.

Um garoto sem entendimento algum do dom não podia controlá-lo, e sua magia enviava sinais que podiam ser detectados por Irmãs no Palácio que eram sensitivas a esses tipos de distúrbios no fluxo do poder.

Não havia Irmãs suficientes com esse talento para arriscar enviá-las em jornadas, então outras eram enviadas, e elas carregavam um livro de jornada para conseguirem se comunicar com o Palácio. Se Irmãs fossem atrás do garoto, e alguma coisa acontecesse, se ele se mudasse, por exemplo, elas precisariam de orientação para encontrá-lo em sua nova posição.

É claro, um mago poderia ensinar o garoto a controlar o dom para evitar seus muitos perigos, e de fato esse era o melhor método, mas os magos nem sempre estavam disponíveis, ou dispostos. Há muito tempo as Irmãs estabeleceram um acordo com os magos no Mundo Novo. Na ausência de um mago, as Irmãs da Luz tinham permissão para salvar a vida de um garoto levando-o para o Palácio dos Profetas para treinamento no uso do seu dom.

Da parte delas, as Irmãs fizeram um juramento de nunca levar um garoto que tivesse um mago disposto a ensiná-lo.

Era uma trégua mantida por uma sentença de morte para qualquer Irmã que algum dia entrasse no Mundo Novo se o acordo fosse violado. A Prelada Annalina tinha violado esse acordo para trazer Richard até o Palácio. Verna foi o instrumento inconsciente da violação.

A qualquer momento poderia haver várias Irmãs saindo em uma jornada para buscar um garoto. Verna tinha encontrado uma caixa cheia de livros de jornada em seu escritório, amarrados juntos em pares. Os livros de jornada combinavam, cada um trabalhando apenas com o seu correspondente. Precauções sempre eram tomadas antes que uma jornada fosse iniciada; os dois livros eram levados até locais afastados e testados, apenas para ter certeza que uma Irmã não fosse enviada com o livro errado. Jornadas eram perigosas, era por isso que as Irmãs também sempre carregavam uma Dacra em sua manga.

Geralmente, uma jornada durava poucos meses, e em raras ocasiões elas duraram aproximadamente um ano. A jornada de Verna durou cerca de vinte anos. Nada assim já tinha acontecido, mas então, fazia três mil anos que alguém como Richard havia nascido. Verna perdeu vinte anos que jamais poderia recuperar. Tinha envelhecido no mundo exterior. Os vinte anos de envelhecimento que seu corpo sofreu representaria aproximadamente trezentos anos no Palácio dos Profetas. Não tinha entregue vinte anos na missão para a Prelada Annalina; na verdade foram cerca de trezentos anos.

Pior. Annalina sabia o tempo todo onde Richard estava. Mesmo que ela tivesse feito o que fez com objetivo de permitir que as profecias apropriadas pudessem ocorrer impedindo o Guardião, o fato de nunca ter falado para Verna de ser enviada para jogar fora todo esse tempo de sua vida como uma isca.

Verna censurou a si mesma. Ela não havia jogado nada fora. Estava fazendo o trabalho do Criador. Só porque ela não sabia de todos os fatos naquele tempo isso não se transformava em algo menos importante. Muitas pessoas trabalhavam em coisas sem sentido durante todas as suas vidas. Verna havia trabalhado em algo que salvou o mundo dos vivos.

Além disso, aqueles vinte anos talvez fossem os melhores anos de sua vida. Ela esteve lá fora no mundo por sua própria conta, com duas outras Irmãs da Luz, aprendendo sobre lugares estranhos e pessoas estranhas. Dormiu sob as estrelas, viu montanhas distantes, campos, rios, colinas, vilarejos e cidades que outras poucas pessoas tinham visto. Havia tomado suas próprias decisões e aceito as consequências Nunca teve que ler relatórios; nunca tinha vivido no meio desse monte de relatórios. Não, não tinha perdido nada. Havia ganho mais do que qualquer uma das Irmãs plantadas aqui durante trezentos anos jamais ganharia.

Verna sentiu uma lágrima cair em sua mão. Levantou o braço e enxugou a bochecha. Sentiu saudades de sua jornada. Todo aquele tempo que pensou que odiava ela, e somente agora percebeu o quanto aquilo significou. Virou o livro de jornada em suas mãos trêmulas, sentindo o tamanho e o peso familiares, a textura familiar do couro, as três pequenas protuberâncias familiares na parte superior da capa dianteira.

Levantou livro na altura dos olhos, observando sob a luz da vela. As três protuberâncias, o arranhão profundo na parte inferior da lombada, era o mesmo livro. Não podia se enganar com seu livro de jornada, não depois de carregá-lo durante vinte anos. Era o mesmo livro. Tinha olhado todos os livros na caixa em seu escritório, procurando por este, e não encontrou. Ele estava aqui.

Mas por quê? Levantou o papel no qual ele estivera embrulhado e tinha alguma coisa escrita nele. Segurou-o perto da vela para ler.

Proteja isso com sua vida.

Ela virou o papel, mas isso era tudo que dizia. Proteja isso com sua vida.

Verna conhecia a escrita da Prelada. Quando estivera em sua jornada para buscar Richard, e depois que o encontrou mas foi proibida de interferir com ele de qualquer maneira, ou usar sua coleira para ajudar a controlá-lo, e mesmo assim deveria trazê-lo de volta, um homem crescido, diferente de todos que já tinha recolhido, ela havia enviado uma mensagem furiosa para o Palácio: Eu sou a Irmã encarregada por esse rapaz. Essas diretrizes estão além da razão se não forem absurdas. Exijo saber o significado dessas instruções. Exijo saber sob que autoridade elas são dadas.

Tinha recebido de volta uma mensagem: Você fará como foi instruída, ou sofrerá as consequências Não pense em questionar as ordens do Palácio novamente.

De minha própria mão, a Prelada.

A mensagem de reprimenda que a Prelada enviou para ela estava gravada em sua memória. A letra dela estava gravada em sua memória. A mão que escreveu no pedaço de papel era a mesma.

Aquela mensagem tinha sido um espinho em sua carne, proibindo-a e fazer exatamente as coisas para as quais havia sido treinada.

Foi apenas quando estava de volta ao Palácio que descobriu que Richard tinha Magia Subtrativa, e se tivesse usado a coleira ele a mataria. A Prelada estava salvando sua vida, mas o fato de não ter sido informada a irritou novamente. Verna imaginou que isso era o que lhe incomodava mais: a Prelada não dizer por quê.

Ela entendeu, é claro. Havia Irmãs do Escuro no Palácio, e a Prelada não podia arriscar ou o mundo todo poderia ser consumido; mas emocionalmente isso ainda lhe atormentava. Razão e paixão nem sempre estavam em acordo. Como Prelada, estava começando a ver que às vezes você não conseguia convencer as pessoas da necessidade de algo, e a única opção era simplesmente dar uma ordem. Às vezes tinha que usar pessoas para fazer o que era preciso ser feito.

Verna jogou o papel na tigela e colocou fogo nele usando o Han. Observou ele queimar, apenas para ter certeza que foi totalmente reduzido a cinzas.

Verna apertou o livro de jornada, seu livro de jornada, com força em sua mão. Era bom tê-lo de volta. É claro, não era realmente dela, pertencia ao Palácio, mas tinha carregado ele por tantos anos que parecia ser dela, como um amigo antigo e familiar.

De repente o pensamento lhe ocorreu, onde estava o outro? Esse livro tinha um gêmeo. Onde estava o seu par? Quem estava com ele?

Olhou para o livro com um temor súbito. Estava segurando algo potencialmente perigoso, e mais uma vez Annalina não estava contando tudo. Era inteiramente possível que o par dele estivesse em posse de uma Irmã do Escuro. Poderia ser a maneira de Annalina dizer a ela para encontrar o seu gêmeo, e encontraria uma Irmã do Escuro. Mas como? Não poderia simplesmente escrever, Quem é você, e onde você está? no livro.

Verna beijou o dedo anelar, seu anel, e então levantou.

Proteja isso com sua vida.

Jornadas eram perigosas. Irmãs foram capturadas, e algumas vezes mortas, por pessoas hostis que estavam protegidas por sua própria magia. Nessas circunstâncias, apenas sua Dacra, uma arma semelhante a uma faca com habilidade de extinguir a vida instantaneamente, poderia protegê-la, se ela fosse rápida o bastante. Verna ainda estava com a sua na manga. Na parte de trás e seu cinto, Verna havia costurado uma bolsa para esconder o livro de jornada e manter ele em segurança.

Enfiou o pequeno livro em sua bolsa. Verna deu um tapinha no cinto. Era bom ter o livro de jornada de volta ali.

Proteja isso com sua vida.

Querido Criador, quem estava com o outro?

Quando Verna passou rapidamente pela porta até seu escritório externo, Irmã Phoebe deu um pulo como se alguém tivesse espetado uma varinha afiada em seu traseiro.

O rosto redondo dela ficou vermelho. — Prelada... você me assustou. Não estava em seu escritório... Pensei que tinha ido para cama.

O olhar de Verna observou a mesa cheia de relatórios. — Pensei ter dito a você que tinha trabalhado o bastante para um dia, e que fosse descansar um pouco.

Phoebe entrelaçou os dedos enquanto recuava. — Você disse, mas lembrei de algumas contas que tinha esquecido de verificar, e estava com medo que você as visse e me chamasse para prestar contas, então voltei correndo para checar os números.

Verna tinha que ir para um certo lugar, mas repensou em como planejava chegar ir até lá. Cruzou as mãos.

— Phoebe, como você faria uma tarefa que a Prelada Annalina sempre confiava para suas administradoras?

Os dedos da Irmã Phoebe se acalmaram. — Verdade? O que é?

Verna fez um gesto apontando na direção de seu escritório. — Estava lá ora no jardim, rezando por orientação, e me ocorreu que nesses dias de provação eu deveria consultar as profecias. Sempre que a Prelada Annalina fazia a mesma coisa, pedia às suas administradoras uma limpeza das câmaras para que não ficasse se sentindo incomodada por olhos curiosos observando sua leitura. Como você providenciaria que as câmaras fossem limpas para mim, como suas administradoras faziam para ela?

A jovem saltou nas pontas dos pés. — Verdade, Verna? Isso seria esplêndido.

Uma jovem certamente, Verna pensou, aborrecida, elas eram da mesma idade, mesmo que não aparentassem.

— Então, vamos lá. Eu tenho assuntos do Palácio para tratar.

Irmã Phoebe agarrou seu xale branco, jogando-o sobre os ombros enquanto corria para a porta.

— Phoebe. — O rosto redondo surgiu de volta no portal. — Se Warren estiver nas câmaras, diga para ele ficar. Tenho algumas perguntas, e ele seria a melhor pessoa para me indicar os volumes adequados. Isso vai economizar meu tempo.

— Está bem Verna. — Phoebe falou com uma voz sem fôlego. Ela gostava de trabalhar com papéis provavelmente porque isso fazia ela se sentir importante de um jeito que jamais sentiria até que tivesse outros cem anos de experiência, mas Verna tinha encurtado esse tempo indicando-a para ser administradora da Prelada. A possibilidade de cumprir ordens, porém, parecia ser muito mais interessante do que o trabalho com papéis. — Vou correndo na frente e farei com que elas estejam limpas no momento em que você chegar lá. — Ela sorriu. — Estou feliz em estar aqui, ao invés de Dulcinia.

Verna lembrou como ela e Phoebe costumavam ter essa disposição. Verna imaginou se realmente teve um temperamento tão imaturo quando Annalina enviou-a em sua jornada. Parecia que nos anos passados fora, havia ficado mais velha que Phoebe em algo mais além da aparência. Talvez ela simplesmente tenha tivesse aprendido mais no mundo lá fora, do que na vida enclausurada do Palácio dos Profetas.

Verna sorriu. — Quase parece uma de nossas antigas travessuras, não é?

Phoebe riu. — Com certeza parece, Verna. A não que não vai acabar com nós duas fazendo mil orações de penitência. — Ela disparou pelo corredor, sua saia e o xale esvoaçando.

No momento em que Verna chegou até coração do Palácio, até a porta arredondada de pedra com seis pés de espessura que conduzia até as câmaras entalhadas nas rochas sobre as quais estava o Palácio, Phoebe estava acabando de levar para fora seis Irmãs, duas noviças, e três rapazes. Noviças e homens jovens recebiam lições durante todas as horas do dia e da noite. Às vezes eram acordados nomeio da noite para assistir aulas, como aquelas lá embaixo nas câmaras. O Criador não s importava com horas; esperava-se que eles aprendessem que ao fazer o trabalho Dele, eles também não deveriam. Todos fizeram reverência juntos.

— As bênçãos do Criador sobre vocês. — Verna falou para o grupo. Estava prestes a pedir desculpas por expulsá-los das câmaras quando estavam ocupados, mas ela se conteve, lembrando a si mesma que era a Prelada e não precisava dar desculpas para ninguém. A palavra da prelada era lei, e era seguida sem questionamento. Mesmo assim, era difícil não explicar.

— Tudo limpo, Prelada. — Irmã Phoebe falou com um tom imponente. Phoebe inclinou a cabeça na direção da sala além. — A não ser aquele que você pediu para ver. Ele está em uma das salas menores.

Verna assentiu para sua assistente e então voltou sua atenção para as noviças, que estavam em um estado de surpresa, com os olhos arregalados. — E como vão os seus estudos?

Tremendo como as folhas de um Aspen trêmulo, as duas garotas fizeram reverência. Uma engoliu em seco. — Muito bem, Prelada. — ela gaguejou, seu rosto ficando vermelho.

Verna lembrou da primeira vez em que a Prelada falou com ela diretamente. Foi como se o próprio Criador tivesse falado. Lembrou do quanto o sorriso da Prelada significou para ela, como isso tinha apoiado e inspirado.

Verna se abaixou e, com cada um dos braços, abraçou uma das garotas. Ela beijou a testa de cada uma.

— Se algum dia precisarem de alguma coisa, não tenham medo de vir até mim, é para isso que estou aqui, e amo vocês como todas as crianças do Criador.

As duas garotas ficaram cheias de alegria, e fizeram reverências mais firmes na segunda vez. Os olhos arredondados delas observaram o anel de ouro no dedo dela. Como se isso tivesse feito com que lembrassem, elas beijaram seus dedos anelares, sussurrando uma oração ao Criador. Verna fez o mesmo. Os olhos delas ficaram arregalados com a visão.

Ela esticou a mão. — Gostariam de beijar o anel que simboliza a Luz que todas nós seguimos? — Elas assentiram com entusiasmo, ficando sobre um joelho, cada uma beijou o anel com a imagem do raio de sol.

Verna apertou cada um dos pequenos ombros. — Quis são os seus nomes?

— Helen, Prelada. — uma disse.

— Valery, Prelada. — falou a outra.

— Helen e Valery. — Verna não precisou lembrar de sorrir. — Lembrem, noviças Helen e Valery, enquanto houver outros, assim como as Irmãs, que sabem mais do que vocês, e ensinarão muitas coisas, não há ninguém mais perto do Criador do que vocês, nem mesmo eu. Todos somos crianças Dele.

Verna sentiu-se mais do que um pouco desconfortável por ser um objeto de veneração, mas sorriu e acenou enquanto o grupo descia pelo corredor de pedra.

Depois que tinham feito a curva em um canto, Verna pressionou a mão na fria placa de metal na parede, a placa que era a chave para o escudo protegendo as câmaras. O chão tremeu sob os pés dela enquanto a enorme porta arredondada começou a se mover. Era raro que a porta principal das câmaras estivesse fechada; a não ser em circunstâncias especiais, somente a Prelada já havia selado a entrada. Ela entrou nas câmaras enquanto a porta fechava logo atrás, deixando-a no meio de um silêncio semelhante ao de uma tumba.

Verna olhou para as mesas gastas com papéis espalhados por cima, junto com alguns dos outros livros de profecias mais simples. As Irmãs estavam dando aulas. As lamparinas dispostas nas paredes de pedra entalhada faziam pouco para diminuir uma sensação de noite perpétua. Longas colunas de estantes espalhavam-se em ambas as direções entre pilares massivos que suportavam o teto com abóbada.

Warren estava em uma das salas dos fundos. As pequenas alcovas esburacadas eram restritas, e desse modo, tinham portas e escudos separados. A sala onde ele estava era uma que tinha as profecias mais antigas escritas em Alto D'Haran. Poucas pessoas conheciam Alto D'Haran, entre elas Warren, e a predecessora de Verna.

Quando entrou na luz das lamparinas, Warren, debruçado na mesa com os braços curvados, apenas levantou os olhos. — Phoebe falou que você queria usar as câmaras. — ele falou com uma voz distraída.

— Warren, preciso falar com você. Aconteceu alguma coisa.

Ele virou uma página no livro que estava na sua frente. Não levantou os olhos. — Sim, está certo.

Ela franziu a testa e puxou uma cadeira até a mesa ao lado dele, mas não sentou. Com um giro do pulso, Verna fez surgir uma Dacra em sua mão esquerda. A Dacra, com uma varinha prateada no lugar da lâmina, era usada do mesmo modo que uma faca, mas não era o ferimento que ela causava que matava; a Dacra era uma arma possuidora de magia antiga. Usada em conjunto com o Han de quem a empunhava, ela sugava a força de vida da vítima, independente da natureza do ferimento. Não havia defesa contra sua magia.

Warren olhou para cima com olhos vermelhos cansados e ela se inclinou chegando mais perto. — Warren, quero que fique com isso.

— Essa é uma arma das Irmãs.

— Você tem o dom, vai funcionar com você tão bem quanto funciona comigo.

— O que você quer que eu faça com isso?

— Proteja-se.

Ele fez uma careta. — O que você quer dizer?

— As Irmãs do... — Ela olhou para trás, para a sala principal. Mesmo se ela estivesse vazia, não havia como dizer o quão longe alguém com Magia Subtrativa podia ouvir. Ouviram a Prelada Annalina falar o nome delas. — Você sabe. — Ela baixou a voz. — Warren, embora tenha o dom, isso não vai proteger você contra elas. Isso vai. Não há proteção contra isso. Nenhuma. — Ela virou a arma em sua mão com graciosa habilidade, passando-a sobre os dedos enquanto girava. A cor prateada era um borrão na luz da lamparina. Ela segurou a lâmina parecida com um espeto e ofereceu o cabo para ele. — Achei algumas extras no meu escritório. Quero que fique com uma.

Ele balançou a mão mostrando desinteresse. — Não sei como manusear essa coisa. Só sei como ler os livros antigos.

Verna agarrou a gola do manto violeta dele e aproximou o seu rosto. — Apenas enfia isso nelas. Na barriga, no peito, costas, pescoço, braços, mãos, pés, não importa. Apenas enfia nelas enquanto estiver coberto pelo sei Han, e elas estarão mortas antes que consiga piscar.

— As minhas mangas não são tão apertadas quanto as suas. Ela vai cair.

— Warren, a Dacra não sabe onde você a guarda, ou se importa com isso. As Irmãs praticam horas seguidas, e carregam elas nas mangas para que rapidamente estejam ao alcance da mão. Fazemos isso para ter proteção quando estamos em jornadas. Não importa onde você a carrega, apenas que carregue. Guarde em um bolso, se quiser. Apenas não sente em cima dela.

Com um suspiro, ele pegou a Dacra. — Se isso vai deixar você feliz. Mas não acredito que conseguiria esfaquear alguém.

Ela soltou o manto dele enquanto olhava para longe. — Ficaria surpreso com aquilo que consegue fazer, quando precisa.

— Foi por isso que você veio? Encontrou uma Dacra extra?

— Não.— Ela tirou o pequeno livro da bolsa atrás do cinto e jogou sobre a mesa na frente dele. — Eu vim por causa disso.

Ele olhou para ela com o canto do olho. — Vai para algum lugar, Verna?

Fazendo uma careta, ela bateu no ombro dele. — Qual é o problema com você?

Ele afastou o livro. — Só estou cansado. O que é tão importante sobre um livro de jornada?

Ela baixou a voz. — Prelada Annalina deixou uma mensagem de que eu deveria visitar o santuário particular dela, em seu jardim. Ele estava protegido com uma teia de gelo e espírito. — Warren levantou uma sobrancelha. Ela mostrou o anel para ele.

— Isso aqui abre ele. Lá dentro encontrei esse livro de jornada. Estava embrulhado em um pedaço de papel que dizia apenas Proteja isso com sua vida.

Warren pegou o livro de jornada e folheou as páginas em branco. — Provavelmente ela só quer mandar instruções para você.

— El está morta!

Warren levantou uma sobrancelha. — Você acha que isso a impediria?

Verna sorriu. — Talvez você tenha razão. Talvez tenhamos queimado o outro junto com ela, e ela pretendia governar minha vida do mundo dos mortos.

A expressão de Warren ficou mal humorada de novo. — Então, quem tem o outro?

Verna alisou o vestido atrás dos joelhos e sentou, arrastando a cadeira para mais perto. — Não sei. Estou com medo de que seja algum tipo de código. Ela poderia ter a intenção de dizer que se eu encontrar o outro, identificaria nosso inimigo.

A testa lisa de Warren ficou enrugada. — Isso não faz sentido algum. Porque você pensaria isso?

— Eu não sei, Warren. — Verna passou a mão pelo rosto. — Foi a única coisa que consegui pensar. Consegue imaginar alguma coisa que faria mais sentido? Porque mais ela não me diria quem tem o outro? Se fosse alguém que estivesse disposto a nos ajudar, alguém do nosso lado, então só faria sentido se ela tivesse informado o nome, ou pelo menos se era um amigo que tinha o outro.

Warren voltou os olhos para a mesa. — Suponho que sim.

Verna tomou cuidado com o tom antes de falar. — Warren, qual é o problema? Nunca vi você assim.

Ela trocou um longo olhar com os olhos azuis preocupados dele. — Eu li algumas profecias que não gostei.

Verna avaliou seu rosto. — O que elas dizem?

Depois de uma longa pausa, ele abaixou o braço, e com dois dedos virou um pedaço de papel e empurrou na direção dela. Finalmente, ela pegou e leu bem alto.

— Quando a Prelada e o Profeta forem entregues para a Luz no ritual sagrado, as chamas farão ferver um caldeirão de trapaça e causarão a ascensão de uma falsa Prelada, que reinará sobre a morte do Palácio dos Profetas. Ao norte, aquele que está ligado à lâmina abandonará ela por causa da Sliph prateada, aquela que o encherá de uma nova vida, e ela o entregará aos braços dos malignos.

Verna engoliu em seco, com medo de encarar os olhos de Warren. Colocou o papel sobre a mesa e cruzou as mãos no colo para fazer com que elas parassem de tremer. Ficou olhando silenciosamente para baixo, sem saber o que dizer.

— Essa é uma profecia em uma ramificação verdadeira. — Warren falou, finalmente.

— Essa é uma declaração audaciosa, Warren, mesmo para alguém com tanto talento em profecias quanto você. Qual a idade dessa profecia?

— Ainda não tem um dia.

Os olhos arregalados dela levantaram. — O quê? — ela sussurrou. — Warren, está dizendo que... que ela se mostrou a você? Que finalmente você recebeu uma profecia?

Os olhos vermelhos de Warren abaixaram. — Sim. Entrei em um tipo de transe, e nesse estado de êxtase, tive uma visão de fragmentos dessa profecia, junto com as palavras. Era desse jeito que acontecia com Nathan também, eu acredito.

— Lembra quando eu falei que estava começando a entender profecia de um jeito que nunca tinha experimentado? É através das visões que as profecias realmente devem ser reveladas.

Verna fez um movimento com a mão. — Mas os livros guardam profecias, não visões. As palavras profetizam.

— As palavras são apenas uma maneira de transmiti-las, e são apenas pistas que confundem a visão em alguém que tem o dom para profecia. Todo o estudo que as Irmãs fizeram durante os últimos três mil anos são apenas uma compreensão parcial delas. As palavras escritas estão destinadas a passar o conhecimento para os magos através das visões.

— Foi o que aprendi quando esta veio para mim. Foi como uma porta abrindo em minha mente. Todo esse tempo, e a chave estava dentro da minha própria cabeça.

— Quer dizer que pode ler qualquer uma dessas, e ter a visão que vai revelar o seu verdadeiro significado?

Ele balançou a cabeça. — Eu sou uma criança, que deu seu primeiro passo. Tenho um longo caminho a seguir antes de pular por cima de cercas.

Ela olhou para a página em cima da mesa e então desviou o olhar para longe enquanto girava o anel no dedo várias vezes. — E essa, a que veio para você, significa o que parece?

Warren lambeu os lábios. — Como o primeiro passo de uma criança, que não é muito estável, essa não é a mais estável das profecias. Você pode dizer que é filha de uma profecia de treino. Encontrei outras que acho serem do mesmo tipo de primeiras tentativas, como esta aqui...

— Warren, ela é verdadeira ou não!

Ele puxou as mangas dos braços. — É tudo verdade, mas as palavras, como em todas as profecias, enquanto verdadeiras, não são necessariamente o que poderiam parecer.

Verna inclinou chegando mais perto enquanto cerrava os dentes. — Responda a pergunta, Warren. Estamos nisso juntos. Eu tenho que saber.

Ele balançou a mão, como sempre fez quando tentava diminuir a importância de algo. Para Verna, porém, aquele movimento com a mão era como uma bandeira de aviso. — Olhe, Verna, vou dizer o que sei, o que eu vi na visão, mas sou novo nisso, e não entendo tudo, mesmo que seja minha profecia.

Ela manteve um olhar firme sobre ele. — Diga-me, Warren.

— A Prelada na profecia não é você. Não sei quem é, mas não é você.

Verna fechou os olhos enquanto suspirava. — Warren, isso não é tão ruim quanto eu pensei. Pelo menos não sou eu quem faz essa coisa terrível. Podemos trabalhar para transformar essa profecia em uma ramificação falsa.

Warren se afastou. Enfiou o papel com sua profecia dentro de um livro aberto e o fechou.

— Verna, para que outra pessoa seja Prelada, tem que significar que você estará morta.

 

Quando todo o seu corpo repentinamente foi inundado com a doce agonia do desejo, ele soube, mesmo que não conseguisse vê-la, que ela havia entrado no quarto. Suas narinas se encheram com o cheiro inconfundível dela, e ele já sofria com a vontade de se entregar. Como um movimento furtivo no meio da neblina ele, ele não conseguia discernir a essência da ameaça, mas de alguma forma, nos vagos recessos de sua consciência ele sabia sem dúvida que ali estava uma, e a sensação do perigo também o excitava.

Com o desespero de um homem sendo atacado por um inimigo mais forte, ele agarrou o cabo da sua espada, esperando reduzir sua determinação e afastar a mão da submissão. Porém, não era o aço que ele buscava, mas os dentes afiados da raiva, uma fúria que o manteria firme e lhe forneceria a força de vontade para resistir. Podia fazer isso. Tinha que fazer; tudo se resumia a isso.

Sua mão ancorou no cabo em seu cinto, e ele sentiu o fluxo da fúria perfeita espalhando-se através de seu corpo e mente.

Quando Richard levantou os olhos, conseguiu ver a aproximação das cabeças de Ulic e Egan por cima grupo de pessoas diante dele. Mesmo se não tivesse visto eles, para enxergar o espaço entre eles onde ela estaria, sabia que ela estava lá. Soldados e dignitários começaram a se afastar para abrir caminho para os dois homens enormes e sua carga. Cabeças surgiam em ondas, fazendo ele lembrar dos anéis formados nas ondulações em um lago, enquanto elas sussurravam para outros. Richard lembrou que a profecia também o chamava, a pedra no lago, o gerador de ondas no mundo dos vivos.

E então ele a viu.

Seu peito apertou de desejo. Ela estava usando o mesmo vestido cor de rosa de seda que tinha usado na noite anterior, pois não trouxe roupa com ela para trocar. Richard recordou vividamente como ela falou que dormiu nua. Podia sentir o seu coração pulsando forte.

Com grande esforço, ele lutou para concentrar sua mente na tarefa próxima. Ela olhou com olhos arregalados para os soldados que conhecia; eram seus guardas do palácio Kelteano. Agora eles vestiam uniformes D'Haran.

Richard tinha levantado cedo, preparando tudo. De qualquer modo, não tinha conseguido dormir muito, e o tempo que conseguiu dormir foi agitado por sonhos sobre o desejo.

Kahlan, meu amor, será que poderá perdoar os meus sonhos?

Com tantas tropas D'Haran em Aydindril, ele sabia que haveria suprimentos de todos os tipos disponíveis, então tinha ordenado que uniformes reserva fossem trazidos. Os Kelteanos, desarmados como estavam, não estavam em posição de discutir, mas depois que vestiram o couro escuro e a cota de malha, e tiveram a chance de ver o quanto pareciam ferozes com as novas roupas, começaram a sorrir com aprovação. Disseram a eles que agora Kelton era uma parte de D'Hara, e suas armas foram devolvidas. Agora eles estavam em fileiras, orgulhosos e eretos enquanto mantinham um olho nos representantes das outras terras que ainda deveriam se render.

Como acabou acontecendo, a má sorte da tempestade que permitiu que Brogan escapasse também carregou boa sorte para equilibrar as coisas; os dignitários quiseram esperar que o tempo melhorasse antes de partir, então Richard pegou o que o destino lhe ofereceu e trouxe eles de volta ao Palácio antes que partissem mais tarde naquela manhã. Apenas os oficiais de maior posto, os mais importantes, daqueles oficiais estavam presentes. Ele queria que eles testemunhassem a rendição de Kelton: uma das terras mais poderosas de Midlands. Queria que eles tivessem uma lição final.

Richard ficou em pé quando Cathryn começou a subir os degraus ao lado da plataforma, o olhar dela percorrendo os rostos que a observavam. Berdine deu um passo para o lado para dar espaço. Richard havia posicionado as três Mord-Sith no lado mais afastado da plataforma, onde elas não ficariam perto demais dele. Não estava interessado em nada que elas pudessem querer dizer.

Quando os olhos castanhos de Cathryn finalmente pousaram sobre ele, teve que encostar os joelhos para evitar que suas pernas curvassem. Sua mão esquerda, segurando o cabo da espada, estava começando a latejar. Lembrou que não precisava estar segurando a espada para comandar sua magia e experimentou remover sua mão para fazer retornar um pouco da sensibilidade em seus dedos enquanto pensava nas tarefas diante dele.

Quando as Irmãs da Luz tentaram ensiná-lo a tocar seu Han, elas o fizeram usar uma imagem mental para concentrar sua vontade interior. Richard havia escolhido uma imagem da Espada da Verdade para ser o seu foco, e agora tinha ela fixada em sua mente.

Mas para a batalha com as pessoas reunidas na sua frente hoje, sua espada não teria utilidade alguma. Hoje ele precisaria das habilidosas táticas criadas com a ajuda do General Reibisch, de seus oficiais, e dos capacitados membros da equipe do Palácio, que também ajudaram com os preparativos. Esperava ter entendido tudo muito bem.

— Richard, o quê...

— Bem-vinda, Duquesa. Tudo foi preparado. — Richard levantou a mão dela e beijou-a de uma maneira que julgava adequada para saudar uma Rainha antes de uma audiência, mas tocá-la apenas aumentou seu calor.

Eu sabia que desejaria que esses representantes testemunhassem sua bravura ao ser a primeira a se unir a nós contra a Ordem Imperial, a primeira a abrir o caminho para Midlands.

— Mas eu... bem, sim... é claro.

Ele virou para os rostos que observavam. Formavam um grupo consideravelmente mais calmo e complacente do que na última vez, quando esperavam com tensa ansiedade.

— Duquesa Lumholtz, que todos sabem em breve será nomeada Rainha de Kelton, comprometeu o seu povo com a causa da liberdade, e queria que vocês estivessem aqui para testemunhar enquanto ela assina os documentos de rendição.

— Richard. — ela sussurrou quando se inclinou chegando um pouco mais perto. — Eu preciso... que eles sejam verificados por nossos advogados primeiro... apenas para ter certeza de que tudo está claro, e que não haverá nenhum mal-entendido.

Richard sorriu de modo tranquilizador — Embora tenha certeza de que vai achar eles bem claros, antecipei sua preocupação e tomei a liberdade de convidá-los para a assinatura. — Richard apontou uma das mão para a outra ponta da plataforma. Raina agarrou o braço de um homem e fez ele subir os degraus. — Mestre Sifold, daria sua opinião profissional para sua futura Rainha?

Ele fez uma reverência. — Como Lorde Rahl diz, Duquesa, os papéis estão bem claros. Não há espaço para má interpretação.

Richard pegou o documento enfeitado da mesa. — Com sua permissão, Duquesa, gostaria de ler para os representantes reunidos, para que eles possam ver que Kelton deseja que essa união de nossas forças seja bastante clara. Assim eles poderão ver sua bravura.

A cabeça dela levantou com orgulho diante dos olhos dos representantes das outras terras. — Sim. Por favor faça isso, Lorde Rahl.

Richard olhou para os rostos que aguardavam. — Por favor, sejam pacientes comigo; isso não vai demorar. — Levantou o papel na sua frente e leu bem alto. — Saibam todos os povos, que por meio deste Kelton entrega-se a D'Hara incondicionalmente.

— Assinado, por minha mão, como a pessoa nomeada líder do povo Kelteano, a Duquesa Lumholtz.

Richard colocou o documento de volta sobre a mesa e enfiou a pena em um vidro com tinta antes de oferecê-la para Cathryn. Ela ficou imóvel. Seu rosto estava pálido.

Temendo que ela fosse recusar, ele não teve escolha. Invocando força que sabia estar roubando daquela que precisaria mais tarde, colocou os lábios perto do ouvido dela, suportando silenciosamente a onda de desejo torturante causada pela fragrância daquela carne.

— Cathryn, depois que terminarmos aqui, faria uma caminhada comigo, apenas nós dois? Não sonhei com outra coisa além de você.

Uma cor radiante surgiu nas bochechas dela. Pensou que ela poderia colocar um dos braços em volta de seu pescoço e agradeceu aos espíritos por ela não ter feito isso.

— É claro, Richard. — ela sussurrou em resposta. — Eu também não sonhei com outra coisa além de você. Vamos acabar logo com essa formalidade.

— Faça com que eu fique orgulhoso de você, de sua força.

Richard pensou que, certamente, o sorriso dela faria outras pessoas na sala ficarem com o rosto vermelho. Podia sentir suas orelhas ardendo com o significado que o sorriso dela transmitia.

Ela pegou a pena, acariciando a mão dele quando o fez, e levantou-a. — Assino essa rendição com a pena de um pombo, para mostrar que aquilo que faço é feito de boa vontade, em paz, e não como alguém derrotada. Faço isso por amor ao meu povo, e esperança pelo futuro. Essa esperança é esse homem aqui, Lorde Rahl. Juro a vingança imortal de meu povo sobre qualquer um de vocês que pensar em causar mal a ele.

Ela se curvou e rabiscou sua assinatura sinuosa na parte inferior do documento de rendição.

Antes que ela pudesse levantar o corpo, Richard enfiou mais papéis embaixo dela.

— O quê...

— As cartas das quais falou, Duquesa. Não queria sobrecarregar você com o tédio de ter que fazer o trabalho você mesma, quando poderíamos aproveitar melhor o tempo. Seus assistentes me ajudaram a escrevê-las. Por favor, verifique, só para ter certeza de que tudo está como pretendia quando fez a oferta na última noite.

— O Tenente Harrington, da guarda do seu Palácio, me ajudou com os nomes do General Baldwin, comandante de todas as forças Kelteanas, Os Generais de Divisão Cutter, Leiden, Nesbit, Bradford, e Emerson, e alguns dos comandantes da guarda. Tem uma carta para cada um, para que você assine, ordenando a eles que transfiram todo o comando para meus oficiais D'Haran. Alguns dos oficiais da guarda do seu Palácio acompanharão um destacamento dos meus homens junto com os novos oficiais.

— O seu assistente, Mestre Montleon, foi de ajuda inestimável com as instruções para o Ministro das Finanças Pelletier. Mestre Carlisle, o sub-administrador do planejamento estratégico, os governadores responsáveis pela comissão de comércio, Cameron, Tuck, Spooner, Ashmore, assim como Levardson, Doudiet, e Faulkingham do escritório de comércio.

— O assistente Schaffer, é claro, fez uma lista de seus prefeitos. Não queríamos ofender ninguém deixando-os de fora, é claro, então ele teve vários ajudantes para auxiliar a trabalhar em uma lista completa. Tem cartas aqui para todos eles, mas é claro que as cartas de instruções são as mesmas, apenas com o nome apropriado de cada um, então você só precisa verificar uma, e simplesmente assinar o resto. Depois disso cuidaremos do resto. Tenho homens prontos para cavalgar com as bolsas de documentos oficiais. Um homem da sua guarda acompanhará cada um deles, só para ter certeza de que não haverá nenhuma confusão. Estamos com todos os homens da sua guarda aqui para testemunhar a sua assinatura.

Richard soltou um suspiro e endireitou o corpo enquanto Cathryn, ainda segurando a pena no meio do ar, piscou para todos os papéis que Richard empurrou para ela. Todos os assistentes dela subiram para ficar ao redor dela, orgulhosos do trabalho que fizeram em tão pouco tempo.

Richard aproximou-se dela novamente. — Espero ter preparado tudo como você queria, Cathryn. Você disse que cuidaria disso, mas não quero ficar longe de você enquanto fica mergulhada no trabalho, então eu levantei cedo e cuidei disso para você. Espero que esteja satisfeita.

Ela olhou para as cartas, empurrando-as para o lado, para ver outras embaixo delas. — Sim... é claro.

Richard arrastou uma cadeira. — Porque você não senta?

Quando sentou, e começou a assinar o nome dela, Richard afastou a espada do caminho e sentou ao lado dela, na cadeira da Madre Confessora. Ele concentrou seu olhar nas pessoas que observavam, e assim continuou enquanto escutava o som da pena. Ele manteve a fúria em um nível mais leve para se concentrar.

Richard virou para os sorridentes oficiais Kelteanos logo atrás e de cada um dos lados da cadeira dela. — Todos vozes executaram um valioso serviço esta manhã, e eu ficaria honrado se estivessem dispostos a continuar com capacidade oficial. Tenho certeza que poderia usar os seus talentos para administrar o crescimento de D'Hara.

Depois que todos tinham feito reverência e agradecido a ele por sua generosidade, mais uma vez ele voltou sua atenção par o grupo silencioso que observava os procedimentos. Os soldados D'Haran, especialmente os oficiais, por terem passado meses situados em Aydindril, aprenderam muito sobre o comércio em Midlands. Nos quatro dias em que ele esteve com eles procurando por Brogan, Richard aprendeu tudo que podia, e tinha somado isso com o conhecimento que adquiriu mais cedo nessa manhã. Quando ele soube quais perguntas fazer, a Senhora Sanderholt provou ser uma mulher de vasto conhecimento acumulado durante anos ao ter preparado os pratos de muitas terras. Comida, como ele acabou descobrindo, era um reservatório de conhecimento sobre um povo. O ouvido aguçado dela também não machucava ninguém.

— Alguns dos papéis que a Duquesa está assinando são instruções de comércio. — Richard falou para os oficiais enquanto Cathryn se debruçava no trabalho. Seus olhos pousaram nos ombros dela. Ele os afastou. — Uma vez que agora Kelton é parte de D'Hara, vocês devem entender que não pode haver comércio entre Kelton e aqueles de vocês que não se unirem a nós.

Ele direcionou seu olhar para um homem gordo baixo, com cabelo negro cacheado e barba cinzenta. — Eu percebo, Representante Garthram, que isso vai colocar Lifany em uma posição desconfortável. Agora, com as fronteiras de Galea e Kelton fechadas para qualquer um que não faça parte de D'Haran, você terá um tempo muito difícil com o comércio.

— Com Galea e Kelton ao norte, D'Hara ao leste, e as Montanhas Rang'Shada ao oeste, você sofrerá muita pressão para encontrar uma fonte de ferro. A maioria que você comprava vinha de Kelton, e eles compravam seus grãos, mas agora Kelton simplesmente terá que comprar seus grãos dos armazéns Galeanos. Já que agora as duas são D'Haran não há mais qualquer razão de manter a hostilidade para atrapalhar o comércio, e seus exércitos estão sob meu comando, então não irão desperdiçar esforços preocupando-se uns com os outros e ao invés disso, devotarão sua atenção para o isolamento das fronteiras.

— D'Hara, é claro, tem uma aplicação para o ferro e o aço Kelteano. Sugiro que encontre outra fonte, e rápido, já que provavelmente a Ordem Imperial atacará pelo sul. Possivelmente diretamente através de Lifany, eu suspeitaria. Não deixarei que nenhum homem derrame sangue para proteger terras que ainda não se juntaram a nós, nem recompensarei a hesitação com privilégios comerciais.

Richard virou os olhos para um homem magro alto com um anel de finos cabelos brancos em volta da base de seu crânio. — Embaixador Bezancort, lamento informar sobre esta carta aqui, para o Comissionário Cameron de Kelton. A carta o instrui que todos os acordos com sua terra natal de Sanderia estão cancelados até, e a não ser que, vocês também sejam parte de D'Hara. Quando a primavera chegar, Sanderia não terá permissão de conduzir os rebanhos dos seus campos até as terras mais altas de Kelton para que passem a primavera e o verão.

O homem alto perdeu a pouca cor que tinha rosto. — Mas, Lorde Rahl, não temos para onde levá-los durante a primavera e o verão; enquanto aqueles campos são pastos ricos no inverno, eles se transformam em uma terra árida e queimada no verão. O que você acha que poderíamos fazer?

Richard encolheu os ombros. — Suponho que abaterão seus rebanhos para salvar o que puderem antes que eles morram de fome.

O Embaixador engoliu em seco. — Lorde Rahl, esses acordos estiveram valendo durante séculos. Toda nossa economia está baseada na administração de nossas ovelhas.

Richard levantou uma sobrancelha. — Isso não é problema meu; minha preocupação é com aqueles que estão do nosso lado.

O Embaixador Bezancort implorou levantando as mãos. — Lorde Rahl, meu povo estaria arruinado.

— Todas as nossas terras seriam devastadas se fossemos forçados a matar nossos rebanhos.

O Representante Theriault deu um passo apressado adiante. — Não pode permitir que aqueles rebanhos sejam abatidos.

— Herjborgue depende daquela lã. Ora, ora... isso acabaria com nossa indústria.

Outro falou. — E então eles não poderiam negociar conosco, e não teríamos como comprar colheitas daquilo que não cresce em nossa terra.

Richard se inclinou para frente. — Então recomendo que discutam isso com seus líderes, e façam o melhor que puderem para convencê-los que a rendição é o único jeito. Quanto mais cedo melhor. — Olhou para os outros dignitários.

— Tão interdependentes quanto são, tenho certeza de que todos em breve perceberão o valor da unidade. Agora Kelton é parte de D'Hara. As rotas de comércio serão fechadas para qualquer um que não ficar conosco. Eu falei antes, não haverá nenhum espectador.

Um turbilhão de protestos, apelos, e súplicas encheu a câmara do Conselho. Richard levantou, e as vozes silenciaram.

O Embaixador Sanderiano levantou um dedo magro fazendo uma acusação. — Você é um homem sem compaixão.

Richard assentiu, a magia deixando seu olhar feroz. — Certifique-se de falar isso para a Ordem Imperial, se escolher se unir a eles. — Olhou para os outros rostos. — Todos vocês tinham paz e unidade através do Conselho e da Madre Confessora. Enquanto ela estava longe, lutando por vocês e seu povo, vocês colocaram essa unidade de lado por causa da ambição, por pura ganância. Agiram como crianças brigando por um bolo. Tiveram a chance de compartilhar isso, mas ao invés disso escolheram tentar roubar tudo de seus irmãos menores. Se vierem até a minha mesa, terão que melhoras seu comportamento, mas cada um de vocês terá pão.

Dessa vez ninguém discutiu. Richard esticou sua capa de Mriswith nos ombros quando percebeu que Cathryn tinha acabado de assinar e estava observando ele com aqueles grandes olhos castanhos. Não conseguia manter o controle da fúria da espada com o brilho do olhar doce dela.

Virou novamente para os representantes, a fúria desaparecendo do seu tom. — O clima está limpo. É melhor vocês partirem. Quanto mais cedo convencerem os seus líderes em concordar com meus termos, menos inconveniência o seu povo sofrerá. Não quero que ninguém sofra... — Sua voz desapareceu.

Cathryn estava em pé perto dele e olhou para o povo que conhecia tão bem. — Façam como Lorde Rahl pede. Ele já concedeu bastante do seu tempo. — Ela virou e falou com um de seus assistentes. — Providencie para que minhas roupas sejam trazidas imediatamente. Ficarei esperando aqui, no Palácio das Confessoras.

— Porque ela fica aqui. — um dos Embaixadores perguntou enquanto sua testa enrugava mostrando suspeita.

— O marido dela, como vocês sabem, foi morto por um Mriswith. — Richard disse. — Ela está aqui para ter proteção.

— Você quer dizer que há perigo para nós?

— Muito possivelmente. — Richard falou. — O marido dela era um espadachim habilidoso, e mesmo assim ele... bem, espero que vocês sejam cuidadosos. Se vocês se juntarem a nós então serão considerados convidados do Palácio, e terão a proteção de minha magia.

— Tem muitos quartos de convidados vazios, mas eles continuarão vazios até que vocês façam sua rendição.

Acompanhados por conversas preocupadas, eles seguiram na direção das portas.

— Podemos ir? — Cathryn perguntou com uma voz suave.

Com sua tarefa realizada, Richard sentiu o repentino vazio sendo preenchido com a presença dela. Quando ela segurou o seu braço e eles começaram a se afastar, ele invocou a última parte restante de sua força de vontade para conseguir parar no final da plataforma, onde estavam Ulic e Cara.

— Fiquem de olho em nós o tempo todo. Entenderam?

— Sim, Lorde Rahl. — Ulic e Cara disseram como um só.

Cathryn deu um tapinha no braço dele, pedindo que ele aproximasse o ouvido. — Richard. — A respiração quente dela espalhou um tremor de desejo através dele. — Você falou que ficaríamos sozinhos. Quero ficar sozinha com você. Muito.

— Por favor?

Foi a partir desse momento que Richard pegou emprestado um pouco de força. Não conseguia mais manter a imagem da espada em sua mente. Ao invés disso, no desespero, colocou ali o rosto de Kahlan.

— Tem perigo nas proximidades, Cathryn. Posso sentir. Não vou arriscar sua vida sendo descuidado.

— Quando eu não sentir o perigo, então poderemos ficar sozinhos. Por favor tente entender, por enquanto.

Ela pareceu distraída, mas assentiu. — Por enquanto.

Quando eles saíram da plataforma, o olhar de Richard encontrou os olhos de Cara. — Não permita que fiquemos fora de sua vista por motivo algum.

 

Phoebe colocou os relatórios em um pequeno espaço vago na mesa polida de nogueira. — Verna, posso fazer uma pergunta pessoal?

Verna rabiscou suas iniciais na parte inferior de um relatório das cozinhas pedindo a substituição dos grandes caldeirões que haviam queimado bastante. — Somos amigas por muito tempo, Phoebe; pode perguntar qualquer coisa que desejar. — Mais uma vez ela examinou o pedido, e então, acima de suas iniciais, escreveu uma nota negando a permissão e dizendo que ao invés disso fizessem reparos nos caldeirões. Verna lembrou a si mesma de mostrar um sorriso. — Pergunte.

As bochechas redondas de Phoebe ficaram vermelhas enquanto ela cruzava os dedos. — Bem, não quero ofender, mas você está em uma posição especial, e jamais poderia perguntar a ninguém mais a não ser uma amiga como você. — Ela limpou a garganta. — Como é ficar velha?

Verna soltou uma risada. — Temos a mesma idade, Phoebe.

Ela esfregou as palmas nos quadris do vestido verde enquanto Verna esperava. — Sim... mas você esteve longe por mais de vinte anos. Envelheceu durante esse tempo, exatamente como aqueles do lado de fora do Palácio. Vai levar cerca de trezentos anos para que eu envelheça tanto quanto você agora. Ora, você parece uma mulher de quase... quarenta.

Verna suspirou. — Sim, bem, uma jornada fará isso com você. Pelo menos a minha fez.

— Não quero nunca sair em uma jornada e envelhecer. Você sente dor, ou alguma coisa assim, envelhecendo tão repentinamente? Você sente... Eu não sei, como se não fosse mais atraente e a vida não fosse mais doce? Gosto quando os homens me enxergam como algo desejável. Não quero envelhecer como... Isso me preocupa.

Verna afastou da cadeira e recostou na cadeira. A sua maior vontade foi de estrangular a mulher, mas ela respirou fundo e lembrou a si mesma que essa era uma pergunta sincera de uma amiga feita por ignorância.

— Eu poderia supor que cada um enxerga isso da sua própria maneira, mas posso dizer o que isso significa para mim. Sim, machuca um pouco, Phoebe, saber que alguma coisa se foi e nunca mais poderá ser recuperada, como se de algum modo eu não estivesse prestando atenção e minha juventude fosse roubada enquanto eu estava esperando que minha vida começasse, mas o Criador também equilibra isso com algo bom.

— Bom? Que coisa boa poderia surgir disso?

— Bem, por dentro ainda sou eu mesma, mas com maior sabedoria. Descobri que tenho uma compreensão mais clara de mim mesma e do que eu quero. Valorizo coisas que nunca valorizei. Vejo melhor o que é realmente importante ao fazer o trabalho do Criador. Suponho que poderia dizer que me sinto mais satisfeita, e menos preocupada com o que os outros pensão de mim.

— Embora eu tenha envelhecido, isso não diminui meu carinho pelos outros. Encontro conforto nos amigos, e sim, para responder o que você está pensando, eu ainda sinto desejo por homens do mesmo jeito que sempre senti, mas agora tenho maior apreço por eles. Considero a juventude imatura menos interessante. Os homens não precisam apenas ser jovens para mexer com meus sentimentos, e os simplórios possuem menor apelo.

Os olhos de Phoebe estavam arregalados quando ela se inclinou para frente, atenta. — Verdade. Homens mais velhos despertam desejo em você?

Verna tomou cuidado com a língua. — O que eu quis dizer com mais velhos, Phoebe, foi homens na mesma idade que eu. Quais são os homens que chamam sua atenção agora? Quinze anos atrás você não consideraria caminhar com um homem com a idade que tem agora, mas isso parece natural porque está nessa idade, e os homens da idade que você tinha naquela época lhe parecem imaturos. Entende o que eu quero dizer?

— Bem... Acho que sim.

Verna podia ler nos olhos dela que não entendeu. — Quando chegamos aqui como jovens garotas, como as duas lá nas câmaras na noite passada, as noviças Helen e Valery, o que você pensava e mulheres que tinham a idade que você tem agora?

Phoebe escondeu uma risada com a mão. — Pensava que eram impossivelmente velhas. Nunca pensei que estaria com essa idade.

— E, agora, como você se sente com sua idade?

— Oh, não me sinto tão velha. Acho que eu simplesmente era tola naquela época. Gosto de ter essa idade. Ainda sou jovem.

Verna encolheu os ombros. — Acontece coisa parecida comigo. Vejo a mim mesma de forma semelhante ao modo como você vê a si mesma. Não vejo mais as pessoas mais velhas simplesmente como velhas, porque agora eu sei elas são parecidas com você ou comigo; elas enxergam a si mesmas do mesmo jeito que você ou eu enxergamos a nós mesmas.

A jovem torceu o nariz. — Acho que entendo o que você quer dizer, mas ainda não quero envelhecer.

— Phoebe, no mundo exterior agora você teria vivido aproximadamente três vidas. Você, nós, recebemos o presente do Criador de, tendo tantos anos quanto tivermos, viver aqui no Palácio, para conseguirmos ter o tempo necessário para treinar jovens magos com seus dons. Fique feliz com o que recebeu; é uma benevolência rara que alcança apenas alguns.

Phoebe assentiu lentamente e por trás de um leve movimento de seus olhos Verna quase conseguiu ver o indício de um pensamento meditativo. — Isso é muito sábio, Verna. Nunca imaginei que você fosse tão sábia. Sempre soube que era esperta, mas para mim, você nunca pareceu sábia.

Verna sorriu. — Essa é uma das outras vantagens. Aqueles que são mais jovens que você pensam que você é sábia. Em uma terra de cegos, uma mulher com um olho poderia ser Rainha.

— Mas isso parece tão assustador, ter sua carne flácida e enrugada.

— Isso acontece gradualmente; de certa forma você se acostuma em ficar mais velha. Para mim, o pensamento de ter a sua idade novamente parece assustador.

— Por quê?

Verna queria dizer que era porque temia andar por aí com um intelecto tão desenvolvido, mas lembrou a si mesma outra vez que ela e Phoebe compartilharam uma boa parte de suas vidas como amigas.

— Oh, acho que é porque passei por alguns dos espinhos que você ainda vai encarar, e conheço a dor que eles causam.

— Que tipo de espinhos?

— Acho que eles são diferentes para cada pessoa. Cada um tem que seguir seu próprio caminho.

Phoebe cruzou as mão enquanto se curvava ainda mais. — Quais foram os espinhos no seu caminho, Verna?

Verna levantou e colocou a rolha de volta no vidro de tinta. Baixou os olhos observando sua mesa, sem enxergá-la. — Eu acho... — ela falou com um tom distante. — que o pior foi voltar para ver Jedidiah olhar para mim da mesma forma que você, com olhos que enxergam uma velha enrugada e sem atrativos.

— Oh, por favor, Verna, nunca quis sugerir que...

— Você entende o espinho que isso representa, Phoebe?

— Ora, ser considerada velha e feia, é claro, ainda que você não seja tão...

Verna balançou a cabeça. — Não.— Olhou dentro dos olhos da outra. — Não, o espinho foi descobrir que a aparência era tudo que importava, e que aquilo que estava por dentro... — ela tocou em sua cabeça... — não tinha qualquer significado para ele, apenas a embalagem.

— Porém, pior ainda do que ver aquele olhar nos olhos de Jedidiah, foi descobrir que ele havia se entregado ao Guardião. Para salvar a vida de Richard quando Jedidiah estava prestes a matá-lo, ela enterrou sua Dacra nas costas dele. Jedidiah tinha sido traído apenas ela, mas também ao Criador. Uma parte dela morreu com ele.

Phoebe endireitou o corpo, parecendo um pouco confusa. — Sim, acho que sei o que você quer dizer, quando homens...

Verna balançou a mão fazendo um gesto de desinteresse. — Espero ter ajudado, Phoebe. Sempre é bom conversar com um amigo. — A voz dela assumiu o claro tom de autoridade. — Tem algum peticionário querendo falar comigo?

Phoebe piscou. — Peticionários? Não, hoje não.

— Bom. Gostaria de rezar e buscar a orientação do Criador. Será que você e Dulcinia poderiam, por favor, levantar um escudo na porta; gostaria de não ser incomodada.

Phoebe fez uma reverência. — É claro, Prelada. — Ela sorriu calorosamente. — Obrigada pela conversa, Verna. Foi como nos velhos tempos em nosso quarto depois que nos mandavam dormir. — O olhar dela desviou para as pilhas de papéis. — Mas e quanto aos relatórios? Elas estão caindo para trás.

— Como Prelada, não posso ignorar a Luz que dirige o Palácio e as Irmãs. Também devo rezar por nós, e pedir a orientação Dele. Afinal de contas, nós somos Irmãs da Luz.

A aparência de admiração voltou aos olhos de Phoebe. Phoebe parecia acreditar que ao assumir o posto, de alguma forma Verna havia se tornado mais do que humana, e de algum modo podia tocar a mão do Criador de um jeito miraculoso. — É claro. Prelada. Vou providenciar a colocação do escudo. Ninguém vai incomodar a meditação da Prelada.

Antes que Phoebe saíssem pela porta, Verna chamou seu nome com um tom suave. — Já aprendeu alguma coisa sobre Christabel?

Os olhos de Phoebe afastaram com súbita inquietação. — Não. Ninguém sabe onde ela foi. Também não tivemos notícia sobre onde Amelia ou Janet desapareceram.

As cinco, Christabel, Amelia, Janet, Phoebe, e Verna foram amigas, cresceram juntas no Palácio, mas Verna estivera mais próxima de Christabel, embora todas tivessem um pouco de inveja dela. O Criador tinha abençoado ela não apenas com um maravilhoso cabelo louro e belos traços, mas também com uma natureza gentil e calorosa.

Era perturbador que suas três amigas parecessem ter desaparecido. Irmãs às vezes deixavam o Palácio para visitas ao lar, enquanto suas famílias ainda estavam vivas, mas primeiro elas solicitavam permissão, e além disso, as famílias daquelas três já teriam feito a passagem por causa da idade fazia muito tempo. Às vezes, Irmãs também se afastavam por algum tempo, não apenas para refrescar suas mentes no mundo exterior, mas também para simplesmente terem uma pausa após décadas no Palácio. Mesmo assim, elas quase sempre diriam a outras que precisavam partir por algum tempo, e onde estavam indo.

Nenhuma das suas três amigas tinha feito isso; elas simplesmente desapareceram depois que a Prelada morreu. O coração de Verna estava machucado com a preocupação de que elas simplesmente não poderiam aceitá-la como Prelada, e ao invés disso tinham escolhido deixar o Palácio, mas não importava o quanto machucasse, rezava para que fosse isso mesmo, e não algo mais sombrio que tivesse acontecido com elas.

— Se escutar alguma coisa, Phoebe... — Verna disse, tentando esconder sua preocupação. — por favor, venha falar comigo.

Depois que a mulher foi embora, Verna colocou seu próprio escudo do lado de dentro das portas, um escudo que ela mesma criou; os delicados filamentos fluíram do espírito de seu próprio Han, magia que ela reconheceria como dela mesma. Se alguém tentasse entrar, provavelmente não iria detectar o escudo transparente, e rasgaria os fios frágeis. Mesmo se conseguissem detectá-lo, sua mera presença e a ação de sondar procurando um escudo ainda iria inevitavelmente rasgá-lo, e se reparassem o entrelaçado com seu próprio Han, Verna também saberia disso.

A luz do sol espalhava-se através das árvores perto do muro do jardim, banhando a tranquila área cheia de árvores do retiro como a luz de um sonho. O pequeno trecho arborizado terminava em um grupo de magnólias, seus galhos pesados com flores brancas. A trilha adiante serpenteava em um caminho bem cuidado de chão coberto de flores azuis e amarelas cercando ilhas de samambaias altas e rosas. Verna arrancou um ramo de uma das magnólias e saboreou seu aroma apimentado inspecionando o muro enquanto caminhava pelo caminho.

Por trás das plantas estava um bosque cerrado de Sumagres brilhantes, a faixa de pequenas árvores foi colocada deliberadamente para cobrir o alto muro protegendo o jardim da Prelada e dava a ilusão de um terreno maior. Ela observou os troncos baixos e galhos espalhados de modo crítico; eles deverão servir, se nada melhor puder ser encontrado. Ela continuou andando; já estava atrasada.

Em uma pequena trilha lateral ao redor da parte traseira do local onde o santuário da Prelada ficava escondido, ela encontrou um ponto promissor. Logo que havia levantado seu vestido e caminhado através dos arbustos para chegar até o muro, ela consegui ver que era perfeito. Abrigada por todos lados por pinheiros havia uma área iluminada pelo sol onde pereiras foram encostadas no muro. Enquanto todas estavam podadas e recortadas, mas uma parecia ser particularmente adequada; seus galhos de cada lado estavam alternados como os degraus em uma escada de uma perna.

Pouco antes de Verna levantar a saia e começar a subir, a textura da casca da árvores chamou sua atenção. Ela esfregou um dedo pela margem superior dos galhos robustos, percebendo que eles tinham marcas e estavam ásperos. Parecia que ela não era a primeira Prelada a querer sair do terreno da Prelada de forma sorrateira.

Assim que tinha subido até o topo do muro e não avistando nenhum guarda, descobriu um suporte bastante conveniente de uma pilastra reforçada para descer, uma telha posicionada estrategicamente, uma pedra decorativa fixada, um galho baixo de um carvalho escuro. Então uma pedra redonda que não ficava a dois pés de distância do muro e depois bastava um salto fácil para o chão. Ela esfregou o corpo tirando restos de casca da árvore e folhas e então alisou seu vestido cinzento nos quadris e ajeitou o colarinho simples. Enfiou o anel da Prelada em um bolso. Enquanto jogava o seu grosso xale negro sobre a cabeça e amarrava suas pontas embaixo do queixo, Verna sorriu com a excitação de ter encontrado um caminho secreto para escapar de sua prisão de papel.

Ficou surpresa em encontrar os terrenos do Palácio incomumente desertos. Guardas patrulhavam seus postos, e Irmãs, noviças, e homens jovens com coleiras enchiam os caminhos e passeios feitos com pedras enquanto tratavam de seus assuntos, mas havia poucas pessoas da cidade, a maioria delas mulheres idosas.

Todo dia, durante as horas do dia, pessoas da cidade de Tanimura espalhavam-se pelas pontes para a Ilha Halsband em busca do conselho das Irmãs, pedindo intervenção em disputas, solicitando caridade, em busca orientação na sabedoria do Criador, e para rezar nos pátios espalhados pela ilha toda. Porque elas pensavam que precisavam vir até aqui para rezar sempre pareceu estranho para Verna, mas ela sabia que essas pessoas enxergavam o lar das Irmãs da Luz como solo sagrado. Talvez elas simplesmente gostassem da beleza dos terrenos do Palácio.

Agora elas não estavam apreciando isso; não havia virtualmente nenhuma das pessoas da cidade ao alcance dos olhos. Noviças designadas a guiar visitantes caminhavam lentamente. Guardas nos portões para áreas restritas conversavam entre si, e aqueles que olhavam na direção dela viam apenas outra Irmã cuidando de seus assuntos. Os gramados estavam sem visitantes, os jardins oficias não mostravam sua beleza para ninguém, e as fontes lançavam jato sem o acompanhamento da admiração dos adultos ou os gritos de alegria das crianças. Até mesmo os bancos das praças estavam vazios.

Ao longe, os tambores continuavam.

Verna encontrou Warren sentado em uma escura pedra plana no seu local de encontro no lado do rio onde ficava a cidade. Ele estava atirando pedras dentro das águas ondulantes agitadas por um solitário barco de pesca. Warren deu um pulo quando escutou ela se aproximando.

— Verna! Não sabia se você viria.

Verna observou como o velho pescador preparava seu anzol enquanto se equilibrava no suave balanço do barco com suas pernas firmes. — Phoebe queria saber como era ficar velha e enrugada.

Warren limpou a poeira do seu manto violeta. — Porque ela faria essa pergunta para você?

Verna apenas suspirou ao ver a expressão vazia dele. — Vamos lá.

A jornada pela cidade na direção da periferia provou ser tão estranha quanto os terrenos do Palácio. Enquanto algumas das lojas nas seções abastadas estavam abertas e fazendo algum comércio com algumas pessoas dispersas, o mercado na seção indigente estava vazio, suas mesas vazias, fogueiras apagadas, e janelas de lojas fechadas. Os abrigos estavam desertos, os aparelhos de tecelagem nas fábricas estavam abandonados, e as ruas silenciosas a não ser pela constante presença dos tambores.

Warren agia como se não houvesse nada incomum a respeito das ruas fantasmagóricas. Quando os dois viraram descendo por uma rua poeirenta estreita e bastante escura, ladeada por construções destruídas, Verna chegou ao limite e finalmente perguntou furiosa.

— Onde estão todos! O que está acontecendo!

Warren parou e virou para lançar um olhar confuso enquanto ela ficava parada, com os punhos nos quadris, no meio da rua vazia. — É o dia Ja'La.

Ela olhou fixamente para ele fazendo uma careta. — Dia Ja'La.

Ele assentiu, a expressão de confusão aumentando. — Sim. O dia Ja'La. O que acha que aconteceu com todas as...

Warren deu um tapa na testa. — Sinto muito, Verna; Pensei que você soubesse. Ficamos tão acostumados com isso que simplesmente esqueci que você não saberia.

Verna cruzou os braços. — Saberia o quê?

Warren voltou para segurar o braço dela e fazer ela começar a andar novamente. — Ja'La é um jogo de competição. — Ele apontou por cima do ombro. — Construíram um grande campo de jogo no espaço entre duas colinas na periferia da cidade, seguindo aquele caminho, faz cerca de... oh, acho que deve ter sido quinze ou vinte anos, quando o Imperador começou a governar.

Todos adoram isso.

— Um jogo? A cidade toda fica vazia para assistir um jogo?

Warren assentiu. — Eu temo que sim. A não ser alguns. A maioria pessoas mais velhas; eles não entendem e não ficam muito interessados, mas todo os outros ficam. Isso se transformou na paixão das pessoas. Crianças começaram a jogar ele nas ruas quase logo que começam a andar.

Verna olhou para uma rua lateral e olhou para trás, pelo caminho por onde vieram. — Que tipo de jogo é esse?

Warren encolheu os ombros. — Nunca estive em um jogo oficial; passei a maior parte do meu tempo lá embaixo nas câmaras, mas estudei um pouco o assunto. Sempre fiquei interessado em jogos e como eles se encaixam na estrutura de diferentes culturas. Estudei povos antigos e seus jogos, mas isso proporciona a chance de observar um jogo ativo com meus próprios olhos, então eu li sobre ele e fiz perguntas.

— Ja'La é jogado por dois times em um campo quadrado demarcado com redes. Em cada canto tem um gol, dois para cada time. Os times tentam colocar a Broc, uma pesada bola coberta de couro um pouco menor do que a cabeça de um homem, em um dos gols de seus oponentes. Se conseguirem, então marcam um ponto, e o outro time tem que escolher um dos cantos para iniciar sua rodada no ataque.

— Não entendo a estratégia, ela fica complexa, mas parece que garotos com cinco anos de idade conseguem dominar em pouco tempo.

— Provavelmente porque eles querem jogar, e você não. — Verna desamarrou o xale e balançou as pontas, tentando esfriar seu pescoço. — O que tem de tão interessante nisso para que todos se amontoassem debaixo do sol para ver.

— Acho que um dia de festividade os afasta do trabalho. Isso cria uma desculpa para animação e gritaria, e para beber e comemorar se o time deles vencer, ou beber e consolar uns aos outros se o time deles perder.

Todos ficam bastante emocionados com isso. Mais emocionados do que deveriam.

Verna pensou naquilo por um momento enquanto sentia uma brisa refrescante esfriar seu pescoço. — Bem, acho que isso parece inofensivo.

Warren lançou um olhar com o canto do olho. — É um jogo sangrento.

— Sangrento?

Warren desviou de uma pilha de estrume. — A bola é pesada e as regras são poucas. Os homens que jogam Ja'La são selvagens. É claro que devem ter habilidade em manusear a Broc, mas são escolhidos principalmente por causa de sua força e agressividade brutal. Não são muitos os jogos que terminam sem que pelo menos um dente seja arrancado, ou um osso quebrado. Também não é raro quebrar algum pescoço.

Verna ficou olhando para ele sem acreditar. — E as pessoas gostam de assistir isso?

Warren soltou um grunhido confirmando. — Pelo que os guardas me contam, a multidão fica furiosa se não houver sangue, porque pensam que isso significa que o time deles não é... durão o bastante.

Verna balançou a cabeça. — Bem, não parece algo que eu gostaria de assistir.

— Essa não é a pior parte. — Warren manteve seus olhos voltados para frente enquanto caminhava pela rua cheia de sombras. Dos dois lados, persianas tão desbotadas que era difícil dizer que já foram pintadas, estavam fechadas sobre janelas estreitas.

— Quando o jogo termina o time perdedor é levado para o campo, e cada um deles é açoitado. Uma chicotada com um grande chicote de couro para cada ponto marcado contra eles, aplicada pelo time vencedor. E a rivalidade entre os times é forte; não é raro ouvir falar que homens morreram por causa das chicotadas.

Verna caminhou em silêncio impressionada enquanto eles faziam a curva em uma esquina. — As pessoas ficam para ver o açoite?

— Acho que é para isso que eles comparecem. Toda a multidão que apoia o time vencedor conta o número de chicotadas enquanto elas são aplicadas. As emoções ficam bem altas. O povo fica bem agitado com o Ja'La. Às vezes acontecem tumultos. Mesmo com dez mil tropas tentando manter a ordem, as coisas podem ficar fora de controle. Algumas vezes os jogadores começam a briga. Os homens que jogam Ja'La são violentos.

— As pessoas realmente gostam de torcer por um time de brutamontes?

— Os jogadores são heróis. Jogadores de Ja'La virtualmente dominam a cidade, e não podem fazer nada de errado. Regras e leis raramente se aplicam a jogadores de Ja'La. Multidões de mulheres seguem os jogadores por toda parte, e depois de um jogo geralmente acontece uma orgia com o time. Mulheres brigam para decidir quem vai ficar com um jogador de Ja'La. A farra continua durante dias. Estar com um jogador é uma honra da mais alta ordem, e é tão disputada que para exigir o direito é necessário testemunhas.

— Por quê? — foi tudo que ela conseguiu pensar para dizer.

Warren jogou as mãos para cima. — Você é uma mulher; você deveria explicar! Ainda que eu tenha sido o primeiro durante três mil anos a esclarecer uma profecia, nunca tive uma mulher com os braços ao redor do meu pescoço, ou querendo lamber o sangue das minhas costas.

— Elas fazem isso?

— Brigam por isso. Se ele ficar contente com sua língua, pode escolher ela. Ouvi falar que os jogadores são bastante arrogantes, e gostam de fazer as mulheres mais ávidas conquistarem a honra de ficar debaixo deles.

Verna olhou para ele e viu que o rosto de Warren estava vermelho. — Elas desejam ficar até mesmo com os perdedores?

— Isso é irrelevante. Ele é um jogador de Ja'La: um herói. Quanto mais brutal, melhor. Aqueles que mataram um oponente com uma bola de Ja'La são famosos, e são mais procurados pelas mulheres. Pessoas dão aos bebês os nomes deles. Simplesmente não entendo isso.

— Você só está vendo uma pequena amostra das pessoas, Warren. Se você fosse até a cidade ao invés de passar todo o seu tempo nas câmaras, as mulheres também iriam querer ficar com você.

Ele tocou em seu pescoço. — Ela ficariam se eu ainda tivesse uma coleira, porque veriam o ouro do Palácio em volta do meu pescoço, só isso; não iriam querer ficar comigo por causa de quem eu sou.

Verna apertou os lábios. — Algumas pessoas são atraídas pelo poder. Quando você não tem poder algum, ele pode ser bastante sedutor. A vida simplesmente é assim.

— Vida. — ele repetiu com um grunhido amargo. — Ja'La é como todos o chamam, mas o nome completo é Ja'La dh Jin, o Jogo da Vida, na língua antiga de Altur'Rang, a terra natal do Imperador, mas todos simplesmente chamam de Ja'La: o Jogo.

— O que significa Altur'Rang?

— Altur'Rang também é da língua antiga deles. Isso não é bem traduzido, mas significa, aproximadamente, os escolhidos do Criador, ou as pessoas do destino, alguma coisa assim. Por quê?

— O Mundo Novo é cortado por uma cadeia de montanhas chamada Rang'Shada. Parece a mesma língua.

Warren assentiu. — Uma Shada é uma luva de batalha com espinhos. De modo grosseiro, Rang'Shada significaria punhos de batalha dos escolhidos.

— Um nome da guerra antiga, eu imagino. Espinhos certamente combinam com aquelas montanhas. — A cabeça de Verna ainda estava girando com a história de Warren. — Não posso acreditar que esse jogo é permitido.

— Permitido? Ele é encorajado. O Imperador tem o seu próprio time de Ja'La. Foi anunciado esta manhã que quando ele vier para sua visita, vai trazer o seu time para jogar com o melhor time de Tanimura. Uma verdadeira honra, pelo que pude entender, já que todos estão bastante excitados com essa possibilidade. — Warren olhou ao redor, e então virou para ela outra vez. — O time do Imperador não recebe chicotadas se perder.

Ela levantou uma sobrancelha. — O privilégio dos poderosos?

— Não exatamente. — Warren disse. — Se eles perderem, serão decapitados.

As mãos de Verna afastaram das pontas do xale. — Porque um jogo desse tipo seria encorajado pelo Imperador?

Warren mostrou um leve sorriso. — Não sei, Verna, mas tenho minhas teorias.

— Que são?

— Bem, se você conquistou uma terra, que problemas você acha que poderiam acontecer?

— Está querendo dizer, uma revolta?

Warren afastou para trás um tufo de seu cabelo louro. — Tumulto, protestos, inquietação civil, brigas, e sim, uma revolta. Lembra quando o Rei Gregory governava?

Verna assentiu enquanto observava uma velha longe em uma estrada lateral colocando roupas molhadas no gradil de uma sacada. Era a única pessoa que tinha visto na última hora. — O que aconteceu com ele?

— Não muito depois que você partiu, a Ordem Imperial dominou e essa foi a última vez que ouvimos dele. O Rei era muito bem visto, e Tanimura prosperava, junto com as outras cidades no norte sob o seu governo. Desde então, os tempos ficaram difíceis para o povo. O Imperador permitiu que a corrupção florescesse e ao mesmo tempo ignorou questões importantes de comércio e justiça. Todas aquelas pessoas que você viu vivendo na pobreza refugiados que vieram para Tanimura de pequenas vilarejos, e cidades que foram saqueadas.

— Eles parecem um grupo de refugiados tranquilo e contente.

Uma sobrancelha levantou sobre um olho azul. — Ja'La.

— O que você quer dizer?

— Eles tem pouca esperança de uma vida melhor sob o governo da Ordem Imperial. A única coisa pelo que podem esperar, com a qual podem sonhar, é se tornarem jogadores de Ja'La player.

— Os jogadores são selecionados pelo seu talento no jogo, não porque possuem nível de poder. A família de um jogador nunca mais precisa desejar alguma coisa novamente; ele pode fornecer para eles, em abundância. Os pais encorajam suas crianças a jogar Ja'La, esperando que eles se tornem jogadores pagos. Times amadores, classificados por grupo de idade, começam com cinco anos de idade. Qualquer um, não importa sua origem, pode virar um jogador de Ja'La. Jogadores vieram até mesmo dos grupos de escravos do Imperador.

— Mas isso ainda não explica a paixão por isso.

— Agora todos são uma parte da Ordem Imperial. Nenhuma devoção a uma terra anterior é permitida. Ja'La permite que o povo seja devotado a alguma coisa, aos seus vizinhos, suas cidades, através dos seus times. O Imperador pagou pela construção do campo de Ja'La, um presente para o povo. O povo está com sua atenção desviada das condições de suas vidas, sobre as quais eles não possuem controle algum, e envolvidos em algo que serve para canalizar sua energia e não ameaça o Imperador.

Verna balançou as pontas do xale novamente. — Não acho que sua teoria tenha fundamento, Warren. Desde a juventude, as crianças gostam de jogos. Fazem isso o dia todo. As pessoas sempre jogaram. Quando envelhecem, eles passam a ter disputas com arco, com cavalos, com dados. Jogar faz parte da natureza humana.

— Por aqui. — Warren segurou na manga dela e apontou com um dedão, fazendo ela virar em um beco estreito. — E o Imperador está direcionando essa tendência para algo mais do que natural. Ele não precisa se preocupar que as mentes deles fiquem livres para pensar em liberdade, ou até mesmo em simples questões de justiça. Agora, a paixão deles é Ja'La. Suas mentes estão entorpecidas para todas as outras coisas.

— Ao invés de ficar imaginando porque o Imperador está vindo, e o que isso vai significar para as vidas deles, todos estão ansiosos por causa do Ja'La.

Verna sentiu seu estômago revirar. Estava justamente imaginando porque o Imperador viria. Tinha que haver uma razão para ele percorrer toda essa distância, e ela não achava que fosse apenas para ver o seu time jogar Ja'La. Ele queria alguma coisa.

— De qualquer modo, as pessoas não estão preocupadas em derrotar um homem tão poderoso, ou seu time?

— O time do Imperador é muito bom, ouvi dizer, mas eles não tem qualquer privilégio especial ou vantagem. O Imperador não considera afronta o seu time perder, a não ser é claro, por parte de seus jogadores. Se um oponente for melhor que eles, o imperador reconhecerá sua habilidade e dará os parabéns a eles e sua cidade. As pessoas desejam essa honra, de superar o renomado time do Imperador.

— Estou de volta faz uns dois meses, e nunca tinha visto a cidade ficar vazia para esse jogo.

— A temporada está apenas começando. Os jogos oficiais são permitidos apenas na temporada do Ja'La.

— Então isso não se encaixa com sua teoria. Se o jogo é uma distração das questões mais importantes da vida, porque não deixar eles jogarem o tempo todo?

Warren mostrou um sorriso orgulhoso. — A ansiedade deixa o fervor mais forte. As possibilidades da temporada que está por vir são comentadas incansavelmente. Quando a temporada finalmente chega as pessoas já estão com uma febre de agitação, como jovens amantes se encontrando novamente depois de um período de ausência, suas mentes estão ofuscadas para todas as outras coisas. Se o jogo acontecesse o tempo todo, a paixão pode esfriar.

Warren obviamente tinha pensado bastante em sua teoria. Ela não pensava que acreditava nisso, mas ele parecia ter uma resposta para tudo, então ela mudou o assunto.

— Onde ouviu isso, sobre ele trazer o time?

— Mestre Finch.

— Warren, enviei você até os estábulos para descobrir algo sobre aqueles cavalos, não para tagarelar sobre Ja'La.

— Mestre Finch é um grande entusiasta do Ja'La e estava todo excitado sobre o jogo de abertura de hoje, então deixei ele continuar falando sobre isso para que eu pudesse descobrir o que você queria saber.

— E você conseguiu?

Eles fizeram uma parada repentina, olhando para a placa entalhada com a imagem de uma lápide, uma pá, e os nomes BENSTENT e SPROUL.

— Sim. Entre o momento quando falava quantas chicotadas o outro time receberia, e quando falava como ganhar dinheiro apostando no resultado, ele me falou que os cavalos que faltavam estavam desaparecidos faz bastante tempo.

— Logo depois do solstício de inverno, eu apostaria.

Warren protegeu os olhos com uma das mãos enquanto olhava para a janela. — Você venceria a aposta. Quatro dos cavalos mais fortes dele, mas tachas apenas para dois deles, estão desaparecidos. Ele ainda está procurando pelos cavalos, e jura que vai encontrá-los, mas acha que as tachas foram roubadas.

Por trás da porta no fundo da sala escura, ela podia ouvir o som de uma pedra de amolar no aço.

Warren tirou a mão do rosto e checou a rua. — Parece que tem alguém aqui que não é um entusiasta do Ja'La.

— Bom. — Verna amarrou o xale debaixo do queixo e então abriu a porta. — Vamos ouvir o que esse cavador de covas tem a dizer.

 

Apenas a pequena janela coberta pelas antigas camadas de poeira no lado da rua, e uma porta aberta nos fundos, iluminavam a sombria sala empoeirada, mas foi o bastante para enxergar um caminho através dos montes desordenados de panos sujos enrolados, frágeis bancadas de trabalho, e caixões simples. Alguns serrotes rústicos e plainas estavam pendurados em uma parede, e uma pilha de tábuas de pinho encostadas em outra.

Enquanto pessoas de recursos consultavam coveiros que forneciam orientação na seleção de caros caixões ornamentados para seus entes queridos, pessoas com pouquíssimo dinheiro não podiam pagar por mais do que os serviços de simples cavadores de covas que forneciam uma caixa lisa e um buraco para colocá-la dentro. Enquanto os entes queridos que partiam daqueles que procuravam os cavadores de covas eram menos preciosos para eles, eles precisavam se preocupar em alimentar os vivos. As lembranças de seus mortos, entretanto, não possuía menor brilho.

Verna e Warren fizeram uma pausa em uma porta que conduzia até uma pequena área em um pátio, sua bordas inclinadas e altas com tábuas amontoadas com as pontas para cima contra uma cerca nos fundos e estruturas estucadas de cada lado. No centro, de costas para eles, um homem magro descalço com roupas esfarrapadas estava olhando para longe enquanto afiava sua pá.

— Minhas condolências pela perda de seus entes queridos. — ele falou com uma voz firme mas surpreendentemente sincera. Voltou a esfregar o amolador contra o aço. — Criança, ou adulto?

— Nenhum dos dois. — Verna disse.

O homem de bochechas fundas olhou para trás por cima do ombro. Não usava barba, mas parecia que seus esforços ao se barbear eram raros o bastante para que estivesse quase para cruzar essa linha. — No meio do caminho então? Se disser o tamanho daquele que partiu, posso montar uma caixa adequada.

Verna cruzou as mãos. — Não temos ninguém para enterrar. Estamos aqui para fazer algumas perguntas.

Ele parou de mover as mãos e virou para olhar para eles dos pés a cabeça. — Bem, posso ver que conseguem pagar por mais do que eu.

— Você não está interessado em Ja'La? — Warren perguntou.

Os olhos caídos do homem ficaram um pouco mais alertas quando deu mais uma olhada para o manto violeta de Warren. — As pessoas não gostam muito que alguém como eu esteja perto em ocasiões festivas. Olhar para o meu rosto estraga o bom momento deles, como se ele fosse o rosto da própria morte caminhando entre eles. Também não ficam envergonhados em dizer para mim que não sou bem vindo. Mas eles aparecem quando precisam de mim. Então, eles chegam e agem como se nunca tivessem virado os olhos para mim. Eu poderia deixar que eles fossem pagar por uma caixa bonita que o morto não poderá ver, mas eles não podem pagar, e as moedas deles não me farão bem algum se eu tiver ressentimento por causa dos medos deles.

— Qual deles é você... — Verna perguntou. — Mestre Benstent, ou Sproul?

As pálpebras flácidas dele enrugaram quando seus olhos viraram para ela. — Eu sou Milton Sproul.

— E o Mestre Benstent? Ele está por aqui também?

— Ham não está aqui. Qual é o assunto?

Verna curvou a boca em uma expressão fria. — Somos do Palácio, e queremos perguntar sobre uma conta que recebemos. Só precisamos ter certeza de que ela está correta, e tudo está em ordem.

O homem magro virou sua pá e esfregou a pedra de amolar pela borda. — A conta está certa. Não tentamos enganar as Irmãs.

— É claro que não estamos sugerindo uma coisa assim, apenas não conseguimos encontrar nenhum registro de quem você enterrou. Só precisamos verificar os mortos, e então podemos autorizar o pagamento.

— Não sei. Ham fez o trabalho e a conta. Ele é um homem honesto. Não enganaria um ladrão para ter de volta o que foi roubado dele. Ele fez a conta e pediu que eu enviasse, isso é tudo que sei.

— Entendo. — Verna encolheu os ombros. — Então acho que precisaremos falar com Mestre Benstent para esclarecer isso. Onde podemos encontrá-lo?

Sproul esfregou novamente a pedra de amolar. — Não sei. Ham estava ficando velho. Disse que queria passar o pouco tempo que lhe resta com sua filha e netos. Ele partiu para encontrar com eles. Eles vivem em algum lugar lá embaixo no campo. — Ele fez um círculo no ar com a pedra. — Deixou sua parte no lugar, do jeito que está, para mim. Deixou sua parte do trabalho também. Acho que terei que contratar um homem jovem para fazer a escavação; Estou ficando velho para isso.

— Mas você deve saber para onde ele foi, e sobre essa conta.

— Falei que não sei. Ele arrumou todas as coisas, não que fosse muito, e comprou um asno para a jornada, então calculo que deve ser uma boa distância. — Ele apontou a pedra de amolar por cima do ombro, na direção do sul.

— Como eu falei, descendo pelo campo. — A última coisa que ele falou foi para ter certeza de enviar a conta para o Palácio, porque ele fez o trabalho e era justo que pagassem por aquilo que foi feito. Perguntei a ele para onde enviar o pagamento, já que ele fez o trabalho, mas ele disse para usar contratando um novo homem. Falou que era justo uma vez que estava partindo de modo tão repentino sem ter avisado antes.

Verna considerou suas opções. — Entendo. — Observou ele esfregar doze vezes a pá, e então virou para Warren. — Vá lá fora e espere por mim.

— O quê! — ele sussurrou fervorosamente. — Porque você...

Verna levantou um dedo para silenciá-lo. — Faça como eu digo. Dê uma caminhada pela área para ter certeza... de que nossos amigos não estão procurando por nós. — Ela se inclinou chegando um pouco mais perto com um olhar sério. — Podem estar imaginando se precisamos de alguma assistência.

Warren endireitou o corpo e olhou para o homem afiando sua pá. — Oh. Sim, está certo, vou dar uma olhada para ver onde foram nossos amigos. — Ele remexeu nos fios de ouro da manga. — Não vai demorar, vai?

— Não. Vou sair logo. Agora vá, e veja se enxerga eles em alguma parte.

Depois que Verna escutou a porta da frente fechar, Sproul olhou por cima do ombro. — A resposta ainda é a mesma. Eu falei o que...

Verna exibiu uma moeda de ouro em seus dedos. — Agora, Mestre Sproul, você e eu vamos ter uma conversa bem justa. Quer dizer que você vai responder minhas perguntas com sinceridade.

Ele franziu a testa desconfiado. — Porque mandou ele sair?

Ela não fez mais esforço para mostrar um sorriso agradável. — O garoto tem um estômago fraco.

Ele deu uma esfregada despreocupada com sua pedra. — Falei a verdade. Se quiser uma mentira, então diga e vou inventar uma adequada.

Verna lançou um olhar ameaçador para ele. — Jamais pense em mentir para mim. Pode ter falado a verdade, mas não toda a verdade que há para dizer. Agora, vai contar o resto, seja em troca da minha gratidão... Verna usou o Han para arrancar a pedra da mão dele e lançar ela flutuando no ar, subindo até desaparecer da vista. ...ou em agradecimento por eu poupar você de qualquer sensação desagradável.

Assobiando com a velocidade, a pedra desceu do céu e bateu no chão, enterrando a cerca de uma polegada dos pés do cavador de covas. Apenas uma ponta dela ficou acima da terra, e ela estava vermelha, brilhando. Com furioso esforço mental, ela ergueu o aço quente formando uma fina linha de metal derretido. Seu brilho branco quente iluminou a expressão chocada dele, e ela também podia sentir o calor em seu rosto. Os olhos dele estavam arregalados.

Ela balançou um dedo, e a linha maleável de aço cintilante ondulou diante dos olhos dele, dançando de acordo com o movimento dos seus dedos. Ela girou o dedo e o aço quente serpenteou ao redor do homem, distante apenas algumas polegadas da carne dele.

— Um movimento do meu dedo, Mestre Sproul, e você ficará ligado ao metal. — Ela abriu a mão, mantendo a palma para cima. Um rugido de chamas acendeu, pairando obedientemente no ar. — Depois que eu tiver você preso, então começarei pelos seus pés, e vou cozinhar você uma polegada de cada vez, até que diga toda a verdade.

Os dentes tortos dele bateram. — Por favor...

Ela levantou a moeda na outra mão, e mostrou um sorriso sem humor. — Ou, como eu disse, pode escolher dizer a verdade em troca dessa pequena amostra de minha gratidão.

Ele engoliu em seco, observando o metal quente em volta dele, e a chama sibilante na mão dela. — Parece que realmente estou lembrando mais alguma coisa. Ficaria muito feliz se você permitisse que eu complete a história com o resto que estou lembrando agora.

Verna apagou a chama em sua mão, e com um esforço repentino, transformou o calor do Han em seu oposto, em frio extremo. O brilho desapareceu do metal como a chama de uma vela sendo abafada. O aço foi do vermelho quente para o negro gelado, e despedaçou, os fragmentos caindo ao redor do cavador de covas como granizo.

Verna levantou a mão dele e colocou o ouro nela, fechando os dedos dele sobre a moeda. — Sinto muito. Parece que quebrei sua pedra de amolar. Tenho certeza que isso vai cobrir.

Ele assentiu. Parecia mais ouro do que o homem conseguiria ganhar em um ano. — Eu tenho mais pedras. Não tem importância.

Ela colocou uma das mãos no ombro dele. — Ah, certo, Mestre Sproul, porque não tenta dizer o que mais você lembra sobre aquela conta. — Ela apertou com mais força. — Cada parte, não importa o quanto você considere sem importância.

— Entendeu?

Ele lambeu os lábios. — Sim. Vou contar cada parte. Como eu falei, Ham fez o trabalho. Não sabia nada sobre isso.

— Falou que tinha alguma escavação a fazer para o Palácio, mas não disse nada mais. Ham é do tipo calado, e não me preocupei com isso.

— Logo depois, ele jogou isso em cima de mim, foi realmente repentino, que ele estava saindo, e partindo para viver com sua filha, exatamente como eu falei. Ele sempre ficava falando sobre ir morar com sua filha, antes que tivesse de cavar seu próprio buraco, mas não tinha dinheiro algum e ela não está em melhor posição, então nunca prestei muita atenção nele. Então ele trouxe o asno, um muito bom, então eu percebi que ele não estava sonhando acordado dessa vez. Falou que não queria o dinheiro do trabalho para o Palácio. Disse para contratar um homem para me ajudar.

— Bem, na noite seguinte, antes que partisse, ele trouxe uma garrafa de licor. Coisa boa que custa mais do que as garrafas que sempre compramos. Ham nunca conseguiu esconder um segredo de mim quando ele fica bêbado, todos sabem que isso é verdade. Ele não conta para outros o que não deveria, entenda, ele é um homem confiável, mas fala tudo para mim, se tiver bebido.

Verna afastou a mão. — Entendo. Ham é um bom homem, e seu amigo. Não quero que você se preocupe em trair sua confiança, Milton. Eu sou uma Irmã. Não está fazendo nada de errado confiando em mim, e não precisa ter medo que eu vá causar problemas para você por causa disso.

Ele assentiu, claramente aliviado, e conseguiu mostrar um fraco sorriso. — Bem, como eu disse, nós tínhamos uma garrafa, e ele estava falando sobre os velhos tempos. Ele estava partindo, e eu sabia que sentiria falta dele. Você sabe. Nós estivemos juntos por muito tempo, não que nós...

— Vocês eram amigos. Eu entendo. O que ele disse?

Ele afrouxou o colarinho. — Bem, nós estávamos bebendo, e nos sentindo muito sentimentais por causa da separação. Aquela garrafa era mais forte do que as que estávamos acostumados. Perguntei para ele onde sua filha morava, para que pudesse enviar o pagamento da conta para ajudar com as coisas. Afinal de contas, tenho esse lugar, e posso me virar. Tenho trabalho. Mas Ham disse não, ele não precisava. Não precisava! Bem, eu estava muito curioso depois que ele falou aquilo. Perguntei onde ele conseguiu dinheiro, e ele disse que economizou. Ham nunca economizava nada. Se tinha aquilo, era porque tinha conseguido, isso é tudo, e ainda não tinha gastado.

— Bem, foi quando ele falou para ter certeza de enviar a conta para o Palácio. Ele foi realmente insistente, acho que porque ele estava se sentindo mal em me deixar sem ajuda. Então, perguntei para ele, Ham, quem você enterrou para o Palácio?

Milton inclinou na direção dela, baixando a voz para um sussurro. — Não enterrei ninguém, Ham disse, Eu tirei eles.

Verna agarrou o colarinho sujo do homem. — O quê! Ele cavou para tirar alguém? Foi isso que ele quis dizer? Ele cavou para tirar alguém?

Milton assentiu. — Isso mesmo. Você já ouviu uma coisa assim? Cavar para retirar os mortos? Colocar eles no chão não me incomoda, é o que eu faço, mas a ideia de cavar para tirar eles me dá calafrios. Parece uma profanação. Claro, na hora, nós estávamos bebendo aos velhos tempos e tudo, e estávamos rindo muito disso.

A mente de Verna estava correndo em todas as direções ao mesmo tempo. — Quem fez a exumação? E com ordens de quem?

— Tudo que ele disse foi, para o Palácio.

— Faz quanto tempo?

— Bastante tempo. Eu não lembro... espere, foi depois do solstício de inverno, não muito tempo depois, talvez apenas uns dois dias.

Ela o balançou pelo colarinho. — Quem foi? Quem fez ele cavar!

— Eu perguntei para ele. Perguntei quem eles queriam de volta. Ele falou, Eles não se importavam quem eram, eu só tenho que tirar eles, enrolados em panos limpos.

Verna apertou os dedos no colarinho dele. — Tem certeza? Vocês estavam bebendo. Ele poderia apenas estar inventando uma história.

Ele balançou a cabeça como se estivesse com medo que ela fosse arrancá-la. — Não. Juro que Ham não inventa histórias, ou mente, quando ele bebe. Quando bebe tudo que fala é verdade. Não importa qual seja o pecado tenha cometido, quando bebe ele confessa. E eu lembro o que ele falou; foi a última noite em que vi meu amigo, lembro do que disse.

— Disse para ter certeza de mandar a conta ao Palácio, mas que esperasse algumas semanas, pois estavam ocupados, disseram-lhe.

— O que ele fez com o corpo? Para onde levou? Para quem ele entregou?

Milton tentou recuar um pouco, mas a mão firme dela em seu colarinho não permitiu. — Não sei. Ele disse que levou eles para o Palácio em uma carroça muito bem coberta e falou que deram a ele um passe especial para que os guardas não checassem sua carga. Ele precisava usar suas melhores roupas para que as pessoas não o reconhecessem pelo que ele era, para não assustar as pessoas elegantes do Palácio, e especialmente para não incomodar as delicadas sensibilidades das Irmãs, que conversavam com o Criador. Ele disse que fez como mandaram, e estava orgulhoso de ter feito tudo certo, pois ninguém ficou incomodado com sua ida até lá com os corpos. Foi tudo que ele falou sobre isso. Eu não sei mais, juro pela minha esperança de ir para a luz do Criador depois que essa vida estiver acabada.

— Corpos? Você disse corpos. Mais de um? — Ela fixou um olhar ameaçador enquanto apertava mais.

— Quantos? Quantos corpos ele retirou e entregou no Palácio?

— Dois.

— Dois... — ela repetiu com um sussurro, de olhos arregalados. Ele assentiu.

A mão de Verna afastou do colarinho dele.

Dois.

Dois corpos, enrolados em panos limpos.

Os punhos dela apertaram com força enquanto gritava furiosa.

Milton engoliu em seco, levantando uma das mãos. — Mais uma coisa. Não sei se isso importa.

— O quê? — Ela perguntou com os dentes cerrados.

— Ele disse que eles queriam os corpos frescos, e um era pequeno, e não foi muito ruim mas o outro deu bastante trabalho, porque era bem grande. Não pensei em perguntar a ele mais sobre isso. Sinto muito.

Com grande esforço, ela conseguiu mostrar um sorriso. — Obrigada, Milton, você foi de grande ajuda para o Criador.

Ele arrumou o colarinho da camisa. — Obrigada, Irmã. Irmã, nunca tive coragem de ir ao Palácio, sendo o que eu sou. Sei que as pessoas não gostam de me ver por perto. Bem, eu nunca fui. Irmã, você poderia me dar a bênção do Criador?

— É claro, Milton. Você fez o trabalho dele.

Ele fechou os olhos murmurando uma oração.

Verna tocou a testa dele gentilmente. — As bênçãos do Criador sobre a sua criança. — ela sussurrou enquanto deixou o calor do seu Han fluir para dentro da mente dele. Ele gemeu de êxtase. Verna deixou o seu Han espalhar-se através da mente dele. — Não vai lembrar nada do que Ham falou sobre a conta enquanto estavam bebendo. Vai lembrar apenas que ele falou que fez o trabalho, mas você não sabe nada sobre a natureza dele. Depois que eu partir, não vai lembrar da minha visita.

Os olhos dele giraram sob as pálpebras por algum tempo antes de abrirem. — Obrigado, Irmã.

Warren estava caminhando na rua do lado de fora. Ela passou por ele apressada sem parar para dizer nada. Ele correu para alcançá-la.

Verna parecia uma nuvem de tempestade. — Vou estrangular ela. — ela grunhiu furiosa. — Vou estrangular ela apenas com as mãos. Não me importo se o Guardião me levar, terei a garganta dela nas minhas mãos.

— Do que você está falando? O que descobriu? Verna, devagar!

— Não fale comigo agora, Warren. Não diga uma palavra!

Ela deslizou palas ruas, seus punhos balançando de acordo com os seus passos furiosos, uma tempestade se espalhando pela terra. O nó de fúria em seu estômago ameaçava explodir soltando raios. Ela não enxergava as ruas ou casas, nem escutava os tambores trovejando no fundo. Esqueceu de Warren que trotava atrás dela. Não conseguia ver nada a não ser uma visão de vingança.

Estava cega para onde estava, perdida em um mundo de raiva. Sem saber como tinha chegado lá, encontrou-se cruzando uma das pontes para a Ilha Halsband. No meio da ponte acima do rio ela parou tão bruscamente que Warren quase colidiu com ela.

Ela agarrou as faixas prateadas no colarinho dele. — Você vai descer até as câmaras e fazer as ligações naquela profecia.

— Do que você está falando?

Ela balançou ele segurando no seu manto. — Aquela que diz: Quando a Prelada e o Profeta forem entregues para a Luz no ritual sagrado, as chamas farão ferver um caldeirão de trapaça e causarão a ascensão de uma falsa Prelada, que reinará sobre a morte do Palácio dos Profetas. Encontre as ramificações. Faça as ligações. Descubra tudo que puder. Você entendeu?

Warren conseguiu soltar o manto e alisou ele. — O que significa isso? O que o cavador de covas falou?

Ela levantou um dedo como aviso. — Agora não, Warren.

— Nós somos amigos, Verna. estamos nisso juntos, lembra? Quero saber...

A voz dela foi como um trovão no horizonte. — Faça como eu digo. Se me pressionar agora, Warren, vai nadar um pouco. Agora vá fazer a ligação naquela profecia, e logo que encontrar alguma coisa, venha me contar.

Verna sabia a respeito das profecias nas câmaras. Sabia que poderia facilmente levar anos para ligar ramificações. Poderia levar séculos. Que escolha havia?

Ele limpou a poeira do manto, dando uma desculpa para que seus olhos olhassem para outro lugar. — Como quiser, Prelada.

Quando virou para ir, ela conseguiu ver que os olhos dele estavam vermelhos e inchados. Ela queria segurar o braço dele e fazer ele parar, mas ele já estava longe demais. Queria chamar ele e dizer que não estava com raiva dele, que não era culpa dele que ela fosse a falsa Prelada, mas a voz dela falhou.

Ela encontrou a pedra arredondada embaixo do tronco e subiu o muro. Preocupando-se apenas com dois galhos na pereira, ela desceu até o chão dentro do terreno da Prelada e, quando recuperou o equilíbrio, começou a correr. Ofegante com a dor, ela bateu a mão repetidamente na porta do santuário da Prelada, mas ela não abriu. Lembrando porque, ela enfiou a mão no bolso e encontrou o anel. Lá dentro, ela encostou ele na imagem do raio de sol da porta para fechá-la, e então com toda sua raiva e angústia, jogou o anel pela sala, escutando ele bater contra as paredes e rolar pelo chão.

Verna tirou o livro de jornada da bolsa secreta costurada atrás do cinto e sentou no banco de três pernas. Tentando recuperar o fôlego, tirou a pena da lombada do pequeno livro. Ela o abriu, colocando ele sobre a pequena mesa, e ficou olhando para a página em branco.

Tentou pensar no meio da fúria e do ressentimento. Tinha que considerar a possibilidade de que poderia estar enganada. Não. Não estava enganada. Ainda assim, era uma Irmã da Luz, se é que isso significava algo, e sabia que era melhor pensar bem antes de arriscar tudo por causa da presunção. Tinha que pensar em uma maneira de verificar quem estava com o outro livro, e também precisava fazer isso de um jeito que não entregasse sua identidade se estivesse enganada. Mas não estava enganada. Sabia quem estava com ele.

Verna beijou o dedo anelar enquanto sussurrava uma oração pedindo orientação do Criador, e pedindo força também.

Queria botar para fora sua raiva, mas antes de tudo, tinha que ter certeza. Com dedos trêmulos, ela levantou a pena e começou a escrever.

Primeiro você deve dizer a razão pela qual me escolheu da última vez. Lembro de cada palavra. Um erro, e esse livro de jornada alimenta o fogo.

Verna fechou o livro e enfiou ele de volta em sua bolsa secreta no cinto. Tremendo, ela puxou a almofada de seu local de descanso sobre o banco e arrastou até a cadeira larga. Sentindo-se mais solitária do que já tinha sentido em toda sua vida, ela se enrolou na cadeira.

Verna lembrou de seu último encontro com a Prelada Annalina, quando Verna voltou com Richard depois de todos aqueles anos, Annalina não quis falar com ela, e levou semanas para finalmente conseguir uma audiência.

Não importa o quanto vivesse, não importa quantas centenas de anos fossem, jamais esqueceria aquele encontro, ou as coisas que a Prelada disse.

Verna estava furiosa ao descobrir que a Prelada havia guardado informações valiosas. A Prelada usou ela e nunca falou as razões. A Prelada perguntou se Verna sabia por que tinha sido escolhida para ir atrás de Richard. Verna falou ter pensado que foi um voto de confiança. A Prelada disse ser pela suspeita de que as Irmãs Grace e Elizabeth, que estiveram na jornada com ela e foram as duas primeiras a serem escolhidas, eram Irmãs do Escuro. Ela possuía informação privilegiada da profecia de que as duas primeiras Irmãs morreriam. A Prelada falou que tinha usado sua prerrogativa para escolher Verna como a terceira Irmã a ir.

Verna perguntou. — Você me escolheu, porque tinha fé que eu não fosse uma delas?

— Escolhi você, Verna... — a Prelada disse. — porque estava bem abaixo na lista, e porque, entre todas, você não tem destaque algum. Duvidei que fosse uma delas. Você é uma pessoa de pouca expressão. Tenho certeza de que Grace e Elizabeth abriram caminho para o topo da lista porque qualquer um que dirija as Irmãs do Escuro as considera dispensáveis. Eu dirijo as Irmãs da Luz. Escolhi você pela mesma razão.

— Tem Irmãs que são valiosas para nossa causa; não poderia arriscar uma delas nessa tarefa. O rapaz deve provar ser valioso para nós, mas ele não é tão importante quanto outros assuntos no Palácio. Ele pode ser de grande ajuda. Foi simplesmente uma oportunidade que eu pensei em aproveitar.

— Se houvesse algum problema, e nenhuma de vocês retornasse, bem, tenho certeza que pode entender que um General não gostaria de perder suas melhores tropas em uma missão de baixa prioridade.

A mulher que sorriu para ela quando ela era pequena, que encheu seu coração de inspiração, tinha partido seu coração.

Verna levantou a almofada enquanto piscava olhando para as paredes do santuário. Tudo que ela sempre quis foi ser uma Irmã da Luz. Queria ser uma daquelas mulheres maravilhosas que usavam seu dom para fazer o trabalho do Criador aqui nesse mundo. Entregou sua vida e seu coração ao Palácio dos Profetas.

Verna lembrou do dia em que elas apareceram e disseram que sua mão tinha morrido. De velhice, elas disseram.

A mãe dela não tinha o dom, e então não tinha utilidade alguma para o Palácio. Sua mãe não morava perto, e Verna apenas raramente falava com ela. Quando sua mãe viajava até o Palácio para fazer uma visita, ela ficava assustada porque Verna não envelhecia perante os seus olhos, do jeito que uma pessoa normal envelhecia. Ela nunca conseguiria entender, não importava quantas vezes Verna tentasse explicar o feitiço. Verna sabia que era porque na verdade sua mãe tinha medo de escutar. Tinha medo de magia.

Embora as Irmãs não tentassem esconder a existência do feitiço no Palácio que reduzia sua velocidade de envelhecimento, as pessoas sem o dom tinham dificuldade de entender isso profundamente. Era magia que não tinha significado para as vidas delas. As pessoas tinham orgulho de morar perto do Palácio, perto de seu esplendor e magnificência, e embora enxergassem o Palácio com reverência, essa reverência era margeada por uma temerosa cautela. Elas não ousavam focar suas mentes em coisas com tanto poder, do mesmo modo que aproveitavam o calor do sol, mas não ousavam olhar para ele.

Quando sua mãe morreu, Verna estivera no Palácio por quarenta e sete anos, e ainda parecia ter envelhecido apenas até a adolescência.

Verna lembrou do dia em que elas apareceram e disseram que Leitis, sua filha, tinha morrido. De velhice, elas disseram.

A filha de Verna, a filha de Jedidiah, não tinha o dom, e assim não tinha utilidade para o Palácio. Seria melhor, elas disseram, se ela fosse criada por uma família que a amasse e lhe desse uma vida normal; uma vida no Palácio não era vida para alguém sem o dom. Verna tinha o trabalho do Criador para fazer, e então concordou.

Unir o dom do macho e da fêmea criava uma chance melhor, ainda que remota, de que o descendente tivesse o dom. Desse modo, Irmãs e magos poderiam contar com a aprovação, se não houvesse encorajamento oficial, para que eles concebessem uma criança.

Conforme o arranjo que o Palácio sempre fazia em tais circunstâncias, Leitis não sabia que as pessoas que a criaram não eram seus pais verdadeiros. Verna acreditava que era para seu bem. Que tipo de mãe uma Irmã da Luz poderia ser? O Palácio havia cuidado da família, para ter certeza de que Verna não ficasse preocupada com o bem-estar de sua filha.

Diversas vezes Verna tinha feito visitas, como uma Irmã meramente trazendo a bênção do Criador para uma família de honestas pessoas trabalhadoras, e Leitis parecia feliz. Da última vez que Verna fez uma visita, Leitis estava com os cabelos grisalhos e curvada, e conseguia andar apenas com ajuda de uma bengala. Leitis não lembrou de Verna como a mesma Irmã que tinha visitado eles quando ela estava brincando de pega-pega com suas jovens amigas, sessenta anos antes.

Leitis sorriu para Verna, para a bênção, e disse... — Obrigada, Irmã. Tão talentosa, para alguém tão jovem.

— Como você está, Leitis? Tem uma vida boa?

A filha de Verna mostrou um sorriso distante. — Oh, Irmã, Tive uma vida longa e feliz. Meu marido morreu faz cinco anos, mas independente disso, o Criador me abençoou. Ela riu. — Só gostaria de ainda ter meu cabelo castanho cacheado. Uma vez ele foi tão bonito quanto o seu, sim, ele foi, eu juro.

Querido Criador, quanto tempo fazia desde que Leitis morreu? Tinha que ser cinquenta anos. Leitis teve crianças, mas de forma escrupulosa Verna evitou saber mais do que os nomes delas.

O bolo em sua garganta quase a sufocou enquanto ela chorava.

Havia desistido de tantas coisas para ser uma Irmã. Só queria ajudar as pessoas. Nunca pediu nada.

E tinha feito papel de tola.

Não queria ser Prelada, mas estava começando a pensar que poderia usar o posto para melhorar as vidas das pessoas, para fazer o trabalho pelo qual tinha sacrificado tudo. Ao invés disso, novamente estava sendo tratada como uma tola.

Verna abraçou bem forte a almofada enquanto chorava com fortes soluços até que a luz tivesse desaparecido das pequenas janelas e sua garganta estivesse ardendo.

No meio da noite, finalmente ela decidiu ir para cama. Não queria ficar dentro do santuário da Prelada; ele parecia estar zombando dela. Ela não era a Prelada. Finalmente tinha esgotado todas as suas lágrimas, e sentiu apenas uma humilhação entorpecente. Não conseguiria abrir a porta, e teve que rastejar pelo chão até encontrar o anel da Prelada.

Depois que tinha fechado a porta, colocou o anel de volta no dedo, um farol, um lembrete, da farsa que ela representava.

Entrou no escritório da Prelada lentamente, seguinte até a cama da Prelada. A vela tinha derretido e apagado, então ela acendeu outra na mesa ainda cheia de relatórios que aguardavam. Phoebe trabalhava duro para garantir que continuasse assim. O que Phoebe pensaria quando descobrisse que não era realmente a administradora da Prelada? Que tinha sido nomeada por uma Irmã sem destaque algum: de pouca expressão?

Amanhã, teria que pedir desculpas a Warren. Isso não era culpa dele. Não deveria jogar isso em cima dele.

Pouco antes de cruzar a porta para o escritório externo, ela pareou repentinamente.

Seu escudo transparente estava fragmentado. Olhou para a mesa lá atrás. Nenhum relatório novo havia sido adicionado nas pilhas.

Alguém esteve bisbilhotando.

 

Jatos de chuva banhavam o convés do navio. Os homens descalços se agachavam, tensos e preparados, seus músculos salientes cintilando na fraca luz amarela da lamparina enquanto observavam a distância diminuir, e então, com um esforço repentino, saltaram na escuridão. Depois que aterrissaram, correram para agarrar as pontas das linhas que balançavam sobre o abismo escuro. Lentamente, os homens arrastaram as pesadas cordas de atracação presas nas amarras que balançavam.

Movendo-se com ligeira eficiência, enrolaram as grossas cordas de atracação em volta dos sólidos pilares, plantaram os pés, e curvaram suas costas resistindo contra o empuxo, usando os pilares como apoio. Madeira molhada estalou e rangeu enquanto as cordas recebiam a tensão. As colunas de homens fazendo força contra o peso resistiram até conseguirem fazer o lento, mas aparentemente inexorável, movimento do Lady Sefa cessar. Grunhindo em conjunto, começaram a recuperar o terreno que recuaram, e o navio lentamente deslizou na direção do píer molhado pela chuva enquanto homens a bordo lançavam cordas enroladas nas laterais para proteger o casco.

Irmã Ulicia, junto com as Irmãs Tovi, Cecilia, Armina, Nicci, e Merissa debaixo de um tecido impermeável na chuva, observavam enquanto o Capitão Blake caminhava pelo convés, gritando ordens furiosamente para homens que corriam para que elas fossem executadas. Ele não queria levar o Lady Sefa para dentro do cais estreito com essas condições climáticas, isso para não falar da escuridão, mas ao invés disso, ancorar no porto e levar as mulheres para terra em um bote grande. Ulicia não estava com humor para ficar ensopada enquanto eles remavam cerca de meia milha até a terra, e havia decididamente ignorado os apelos dele sobre ter que lançar todos os botes para rebocar o navio. Um olhar dela interrompeu suas afirmações dos perigos, e fez ele cuidar da tarefa de boca fechada.

O Capitão tirou o chapéu ensopado da cabeça quando parou na frente delas. — Levaremos vocês para terra em breve, senhoras.

— Não pareceu tão difícil quando fez parecer, Capitão. — Ulicia falou.

Ele torceu o chapéu. — Conseguimos fazer ela entrar. Embora o motivo para vocês desejarem descer a costa até o Porto Grafan esteja além da minha compreensão. Voltar para Tanimura pela terra saindo desse posto avançado militar abandonado não será fácil como teria sido se tivessem deixado que levássemos vocês até lá diretamente pelo mar.

Ele não disse que isso teria feito com que elas estivessem fora do seu navio alguns dias mais cedo, o que sem dúvida era a razão pela qual ele tinha feito a sugestão, com efusiva delicadeza, de levá-las de volta até Tanimura diretamente como elas queriam inicialmente. Ulicia não teria achado nada melhor do que isso, mas não teve escolha no assunto. Tinha feito como foi ordenada.

Ela levantou os olhos, além do cais, para o lugar onde ela sabia que ele esperava. Os olhos de suas companheiras também observavam a mesma escuridão.

As colinas com vista para o porto só ficavam visíveis com o brilho dos relâmpagos, aparecendo subitamente no meio do vazio, e exceto quando os relâmpagos revelavam esporadicamente as formas do terreno elevado, o fraco brilho das luzes que vinham da fortaleza de pedra massiva encravada sobre uma alta colina distante parecendo flutuar no céu escuro. Apenas com a breve iluminação ela conseguia ver os frios muros de pedra molhados pela chuva.

Jagang estava ali.

Estar diante dele no sonho era uma coisa. Em algum momento ela acordaria, mas estar na frente dele em carne e osso era bem diferente. Agora não haveria como acordar. Ela procurou reforçar mais ainda a ligação. Para Jagang, também não haveria como acordar. O verdadeiro Mestre dela teria ele, e faria ele pagar.

— Parece que vocês estão sendo esperadas.

Ulicia foi retirada de seus pensamentos e redirecionou sua atenção para o Capitão. — O quê?

Ele apontou com o chapéu. — Aquela carruagem deve ser para vocês, senhoras; certamente não tem mais ninguém por perto a não ser todos aqueles soldados.

Observando dentro da escuridão, finalmente ela viu a carruagem negra, com seu grupo de seis garanhões enormes, esperando na estrada no topo do muro acima do cais. Sua porta aberta. Ulicia teve que lembrar a si mesma de soltar o ar de seus pulmões.

Logo estaria acabado. Jagang pagaria. Elas só precisavam cuidar disso.

Assim que seus olhos perceberam as formas escuras imóveis, ela foi capaz de começar a reconhecer soldados. Estavam por toda parte. Tochas formavam pontos nas colinas mais próximas por todo o porto, e ela sabia que para cada tocha que conseguia resistir sob a chuva, havia vinte ou trinta que não acenderia. Sem contar as tochas que conseguia ver, ela poderia facilmente concluir que havia milhares.

O passadiço fez barulho pelo convés enquanto os marinheiros faziam ele deslizar pela abertura no local. Com um som abafado, uma ponta caiu na doca. Logo que ela tocou o chão, marinheiros trotaram descendo pela prancha com as bagagens das Irmãs e seguiram pelo píer na direção da carruagem.

— Foi um prazer negociar com você, Irmã. — O Capitão Blake mentiu. Ele remexeu no chapéu enquanto esperava que elas seguisse o seu caminho. Virou para os homens nas cordas. — Fiquem preparados para soltar as cordas,rapazes! Não queremos perder a maré!

Ninguém comemorou, mas apenas porque tinham medo do resultado caso mostrassem sua felicidade em se livrar de suas passageiras. Em sua viagem de volta para o Mundo Antigo foi necessário que compartilhassem mais algumas lições de disciplina. Lições que nenhum deles jamais esqueceria.

Enquanto aguardavam silenciosamente que a ordem fosse dada, nenhum dos marinheiros ao menos olhava para as seis mulheres. No final do passadiço quatro homens permaneciam preparados, com os olhos fixos no chão, cada um deles segurava uma vara, que sustentava a ponta de uma lona suspensa acima das cabeças das Irmãs para evitar que elas ficassem ensopadas.

Com todo aquele poder que estava estalando em volta de Ulicia e suas cinco companheiras, ela poderia facilmente ter usado o Han para proteger a si mesma e suas cinco Irmãs da chuva, mas não queria usar a ligação até que chegasse a hora; não queria arriscar dando qualquer aviso para Jagang. Além disso, fazer esses vermes insignificantes carregarem a lona sobre as suas cabeças lhe agradava. Todos tinham muita sorte que ela não desejasse revelar a ligação, ou teria acabado com todos eles. Lentamente.

Quando Ulicia começou a se mover, podia sentir cada uma das suas Irmãs se mover também. Cada uma delas não tinha apenas o dom com o qual nasceram, o Han feminino. Cada uma passou pelo ritual, e possuía o seu oposto: o Han masculino que tinham retirado de jovens magos. Além do dom Aditivo com o qual nasceram, cada uma também tinha o oposto: Magia Subtrativa.

E agora elas estavam todas ligadas.

Ulicia não tinha certeza se isso funcionaria; Irmãs do Escuro, e além disso, Irmãs do Escuro que tiveram sucesso em absorver o Han masculino, jamais tentaram ligar seus poderes. Foi uma coisa muito arriscada, mas a alternativa era inaceitável. O fato disso ter funcionado deu a todas elas uma grande onda de alívio. Aquilo ter funcionado além de suas maiores expectativas deixou Ulicia intoxicada com o fluxo ligeiro e violento de magia ondulando através dela.

Ela jamais imaginou que um poder tão surpreendente pudesse ser acumulado. Além do Criador ou do Guardião, não havia poder algum na face da terra que pudesse se aproximar daquilo que agora elas controlavam.

Ulicia era o nó dominante da ligação, e aquela que comandaria e direcionaria a força. Isso era tudo que ela podia fazer para conter a chama de Han interior. Em qualquer lugar onde seu olhar repousasse, ele rugia para ser liberado. Em breve isso aconteceria.

Ligados como estavam, o Han feminino e o masculino, a Magia Aditiva e Magia Subtrativa, eles tinham força destrutiva suficiente para fazer o Fogo do Mago parecer uma simples vela em comparação. Com um mero pensamento, ela poderia alcançar a colina sobre a qual ficava a fortaleza. Com um mero pensamento, poderia instantaneamente alcançar tudo dentro de seu campo de visão, e possivelmente além.

Se pudesse ter certeza de que Jagang estava na fortaleza, ela já teria liberado a fúria cataclismática, mas se não estivesse, e elas não conseguissem matá-lo antes que dormissem novamente, então ele as teria. Primeiro precisavam encará-lo, para ter certeza de que estava lá, e então ela liberaria um poder como jamais foi visto nesse mundo, e transformaria Jagang em pó antes que ele pudesse piscar. O Mestre dela teria sua alma, e então garantiria que a punição de Jagang continuasse eternamente.

No final do passadiço os quatro marinheiros se moveram ao redor delas, protegendo-as da chuva. Ulicia podia sentir os músculos em cada uma de suas Irmãs flexionarem enquanto elas se moviam subindo o píer. Através da ligação, ela podia sentir cada pequena dor, ou prazer que elas sentiam. Em sua mente, elas eram apenas uma. Em sua mente, tinham apenas um pensamento, uma necessidade: livrar-se desse homem parasita.

Em breve, Irmãs, em breve.

E então iremos atrás do Seeker?

Sim, Irmãs, então iremos atrás do Seeker.

Enquanto marchavam subindo o píer, um grupo de soldados com aparência medonha passou trotando na direção oposta, suas armas retinindo quando passavam. Correram subindo pelo passadiço escorregadio sem parar. O grupo parou diante do Capitão do navio. Ela não conseguiu escutar as palavras do soldado, mas viu o Capitão Blake levantar os braços e conseguiu ouvir ele gritar. — O quê! — O Capitão jogou o chapéu, furioso, e começou a gritar um monte de reclamações que ela não conseguia entender. Se tivesse ampliado a ligação, poderia ser capaz, mas não ousava arriscar, ainda. Os soldados sacaram as espadas. O Capitão plantou os punhos nos quadris e depois de uma pequena pausa virou para os homens na doca.

— Amarrem as cordas, rapazes. — gritou para eles. — Não vamos partir esta noite.

Quando Ulicia chegou até a carroça, um soldado esticou a mão, ordenando que elas entrassem. Ulicia deixou as outras subirem primeiro. Podia sentir o alívio do peso saindo das pernas das duas mulheres mais velhas quando elas sentaram no banco de couro fino acolchoado. O soldado ordenou aos quatro marinheiros que acompanharam elas que ficassem ao lado e esperassem. Quando entrou e fechou a porta, Ulicia viu os soldados no navio conduzindo todos os marinheiros do Lady Sefa pelo passadiço.

Provavelmente o Imperador Jagang pretendia matá-los para eliminar qualquer testemunha que pudesse conectá-lo com as Irmãs do Escuro. Jagang estava fazendo a ela um favor. Ele não teria chance de matar a tripulação do navio, é claro, mas já que os marinheiros não teriam permissão para partir, ela mataria. Sorriu para as Irmãs. Através da ligação, cada uma delas conhecia seus pensamentos. Cada uma das outras cinco devolveram um sorriso satisfeito. A viagem pelo mar tinha sido miserável; os marinheiros pagariam.

Durante a viagem até a fortaleza, quando estavam em terreno elevado, Ulicia ficou surpresa ao ver, quando o relâmpago brilhou, a extensão do exército que Jagang tinha reunido. Toda vez que o relâmpago cruzava as colinas, ela podia ver tendas tão longe quanto havia terra. Elas cobriam as colinas como folhas de grama na primavera.

O número deles fazia a cidade de Tanimura parecer uma vila. Ela não sabia que havia tantos soldados assim em todo o Mundo Antigo. Bem, talvez eles também fossem úteis.

Quando os relâmpagos rasgaram sob as nuvens que ferviam e fizeram o chão tremer, ela também conseguiu ver a fortaleza terrível onde Jagang esperava. Através da ligação, ela também podia ver a fortaleza através dos olhos delas, e podia sentir seu medo. Todas elas queriam explodir o topo da colina enviando aquilo para o esquecimento, mas cada uma delas sabia que não podiam, ainda não.

Não haveria como se enganar com Jagang quando o vissem. Ninguém poderia falhar em reconhecer aquele rosto falso, mas precisavam ver ele primeiro, para ter certeza.

Quando enxergarmos ele, Irmãs, e soubermos que ele está ali, então ele morrerá.

Ulicia queria ver o medo nos olhos daquele homem, o tipo de medo que ele tinha colocado nos corações dela, mas não ousava arriscar dar a ele qualquer indicação do que elas estavam prestes a fazer. Ulicia não sabia do que ele era capaz; afinal de contas, elas nunca foram visitadas no sonho que não era sonho por qualquer outro além de seu Mestre, o Guardião, e ela não estava disposta a correr o risco de dar a ele qualquer aviso, apenas pela satisfação de ver ele tremer.

Ela havia esperado deliberadamente até que estivessem navegando dentro do Porto Grafan antes de revelar o plano para suas Irmãs, só por segurança. O Mestre delas cuidaria da punição de Jagang. O trabalho delas era simplesmente enviar a alma dele para o submundo e para as garras do Guardião.

O Guardião ficaria mais do que satisfeito quando elas restaurassem o poder Dele nesse mundo, e as recompensaria com a visão do tormento de Jagang, se elas desejassem. E elas desejariam.

A carruagem parou balançando diante da entrada imponente da fortaleza. As mulheres receberam ordem de um soldado forte, usando um manto de pele e armas suficientes para destruir um pequeno exército, para sair da carruagem. As seis marcharam silenciosamente pela chuva e lama e sob o telhado além da grade de ferro. Elas foram conduzidas para dentro de uma entrada escura onde receberam ordem de ficar em pé e esperar, como se qualquer uma delas tivesse qualquer intenção de sentar no chão de pedra frio e sujo.

Afinal de contas, estavam usando seus melhores vestidos: Tovi em um vestido escuro que a fazia parecer mais esbelta; Cecilia, seu cabelo cinzento penteado e arrumado complementando seu vestido verde escuro com um laço na gola; Nicci em um vestido simples, preto, como seus vestidos sempre foram, com laço no espartilho de um modo que acentuava as formas dos seios dela; Merissa em um vestido vermelho, a cor preferida dela, e com boa razão, pelo modo que ele contrastava com sua juba de cabelo negro, para não falar de como destacava suas curvas; Armina em um vestido azul escuro que revelava sua figura razoavelmente em boa forma e combinava com seus olhos azuis da cor do céu; e Ulicia com seu traje todo particular, uma tonalidade de azul mais clara que a de Armina e enfeitado com folheados no decote e pulsos, e sem adornos na cintura para não esconder seus quadris bem formados.

Todas queriam estar com seu melhor visual quando matassem Jagang.

As paredes com blocos de pedra da sala estavam vazias a não ser por duas tochas que chiavam em suportes. Enquanto esperavam, Ulicia podia sentir a raiva de cada uma das outras aumentando, junto com a dela, e a preocupação coletiva delas.

Quando os marinheiros, cercados pelos soldados, passaram pela grade de ferro, um dos dois guardas na sala de pedra abriu a porta interna que conduzia para dentro da fortaleza e com um rude balanço de cabeça ordenou que as Irmãs entrassem. Os corredores eram tão austeros quanto a sala de entrada; essa era uma fortaleza armada, não um palácio, apesar de tudo, e não tinha pretensão de mostrar conforto. Enquanto seguiam os guardas, Ulicia não viu mais do que rudes bancos de madeira e tochas em suportes de ferro enferrujados. As portas eram tábuas grosseiras com dobradiças de ferro, e não havia pelo menos uma lamparina a óleo ao alcance dos olhos enquanto seguiam seu caminho para dentro do coração da fortaleza. Parecia pouco mais do que um acampamento para tropas.

Os guardas chegaram até largas portas duplas e viraram as costas para as pedras de cada lado, depois de abrir as portas. Um deles levantou um dedão de forma orgulhosa, ordenando que elas entrassem na grande sala adiante. Ulicia jurou para suas Irmãs que lembraria do rosto dele, e ele pagaria o preço por sua arrogância. Ulicia levou as outras cinco mulheres para dentro enquanto os marinheiros subiam o corredor atrás, acompanhados pelo eco de botas nas pedras e o som de armas dos homens que as guardavam.

A sala era enorme. Janelas sem vidro lá no alto, nas paredes, revelavam os relâmpagos do lado de fora, e deixavam a chuva descer pela rocha escura em filetes cintilantes. Um poço de cada lado do chão continham fogueiras que rugiam. Suas centelhas e a fumaça subiam para sair pelas janelas abertas, mas ainda deixavam uma neblina fedorenta pairando no ar. Em um anel de suportes enferrujados ao redor da sala, tochas estalavam e chiavam, adicionando o cheiro de piche ao fedor de suor. Tudo na sala escura ondulava na luz do fogo.

Entre as fogueiras gêmeas que elas podiam ver, na escuridão adiante, uma grossa mesa de madeira cheia de comida. Apenas um homem estava sentado na mesa, no lado oposto, observando-as casualmente enquanto ele cortava um pedaço de carne de porco.

Na luz turva, ondulante, era difícil ter certeza. Precisavam ter certeza.

Por trás da mesa, contra a parede, estava em pé uma fileira de pessoas que obviamente não eram soldados. Os homens vestiam calças brancas e nada mais. As mulheres usavam roupas com as calças largas do tornozelo até o pescoço, até os pulsos e apertadas na cintura com uma corda branca. Exceto pelas cordas, as roupas eram tão finas que as mulheres descalças poderiam muito bem ficar nuas.

O homem levantou a mão e balançou os dois primeiros dedos, ordenando que elas se aproximassem. As seis mulheres avançaram pela sala cavernosa que, por causa de suas pedras escuras que engoliam a luz do fogo, parecia fechar-se em volta delas. Sobre uma enorme pele de urso diante da mesa estavam mais duas das escravas vestidas de modo absurdo. As mulheres atrás da mesa, contra a parede, estavam com as mãos nos lados do corpo, imóveis. Cada uma das jovens tinha um anel de ouro cravado através do centro do lábio inferior.

As fogueiras atrás delas estalavam e chiavam enquanto as seis Irmãs avançavam no meio das sombras. Um dos homens de calça branca derramou vinho dentro de uma caneca para o homem quando ele a levantou em sua direção. Nenhum dos escravos olhou para as seis mulheres. Sua atenção, estava no homem que sentava sozinho na mesa.

Agora, Ulicia e todas as suas Irmãs o reconheceram.

Jagang.

Ele tinha altura mediana, mas era vigoroso, com peito e braços musculosos. Seus ombros nus destacavam-se em sua vestimenta feita com pele de animal aberta no meio, exibindo uma dúzia de correntes de ouro e com joias que repousavam junto de seu cabelo, na profunda abertura entre os seus grandes músculos do peito. As correntes e joias pareciam algum dia ter pertencido a Reis e Rainhas. Faixas prateadas circundavam seus braços acima dos bíceps volumosos. Cada um dos dedos grossos tinha um anel de ouro ou de prata.

Cada Irmã conhecia muito bem a dor que aqueles dedos poderosos poderiam infligir.

Sua cabeça raspada brilhava na ondulante luz do fogo. Combinava com seus músculos. Ulicia não conseguia imaginar ele com cabelo sobre a cabeça; isso só poderia diminuir sua aparência ameaçadora. O pescoço dele parecia pertencer a um touro. Um anel dourado em sua narina esquerda tinha uma fina corrente de ouro que estava presa em outro anel no meio de sua orelha esquerda. Ele estava com a barba raspada a não ser por um bigode com duas polegadas crescendo apenas acima dos cantos de sua boca que mostrava um sorriso falso, e outra tira de cabelo no meio do queixo, debaixo do lábio inferior.

Seus olhos, entretanto, eram o que impressionava qualquer um sobre o qual eles pousavam. Não havia nenhum pedacinho branco neles.

Eram cinzentos, cobertos por formas escuras que ondulavam em um campo de obscuridade, e mesmo assim não havia dúvida sobre quando ele estava olhando para você.

Eles representavam janelas gêmeas para dentro de um pesadelo.

O sorriso falso desapareceu, deixando em seu lugar um olhar traiçoeiro. — Vocês estão atrasadas. — ele falou com uma voz áspera que elas reconheceram tão prontamente quanto seus olhos de pesadelo, Ulicia não perdeu tempo com uma resposta, nem traiu qualquer indicação do que pretendia fazer. Manuseando o fluxo do Han, ela até mesmo controlava o ódio delas, deixando que apenas uma faceta de seus sentimentos, o medo, tocasse seus rostos, para que elas não demonstrassem sua confiança, e acabassem revelando a razão dela.

Ulicia estava decidida a obliterar tudo ao redor, pelas próximas vinte milhas.

Com brusquidão violenta e sem cerimônia, ela recolheu os blocos de contenção da força furiosa presa dentro dela. Tão rápido quanto o pensamento, com fúria trovejante, a Magia Aditiva e a Magia Subtrativa explodiram para o exterior em uma explosão assassina. O próprio ar rugiu enquanto queimava. A sala incendiou com um brilho cegante das magias gêmeas. Opostos que se contorciam em uma descarga de fúria ensurdecedora.

Até mesmo Ulicia ficou surpresa com aquilo que havia liberado.

O tecido da realidade pareceu rasgar.

O último pensamento dela foi que, certamente, tinha destruído o mundo todo.

 

Como pequenos flocos de neve de um sonho sombrio caindo, tudo foi retornando lentamente em sua visão. Primeiro as fogueiras gêmeas, então as tochas, as escuras paredes de pedra, e finalmente as pessoas.

Todo o corpo dela estava dormente por um momento de surpresa antes que as sensações retornassem para sua carne em um milhão de dolorosas picadas de agulhas. Sentia dor em toda parte.

Jagang arrancou uma grande mordida de faisão assado. Mastigou durante um momento, e então jogou nela o osso da perna.

— Sabe qual é o seu problema, Ulicia? — ele perguntou, ainda mastigando. — Você usa magia que pode liberar tão rápido quanto um pensamento.

O sorriso falso retornou aos lábios engordurados dele. — Eu, por outro lado, sou um Andarilho dos Sonhos. Eu uso o tempo entre os fragmentos do pensamento, naquele momento silencioso quando não há nada, para fazer o que faço. Eu entro onde nenhum outro consegue ir.

Ele fez um gesto com o osso novamente enquanto engolia. — Entenda, para mim, naquele Espaço entre o pensamento, o tempo é infinito, e posso fazer o que eu quiser. Vocês poderiam muito bem ser como estátuas de pedra tentando me perseguir.

Ulicia sentiu suas Irmãs através da ligação. Ela ainda estava ali.

— Rude. Muito rude. — ele disse. — Já vi outros fazerem isso muito melhor, mas eles tinham treinado. Eu deixei a ligação... por enquanto. Por enquanto, quero que todas sintam as outras. Quebrarei ele depois. Assim como posso quebrar a ligação, também posso quebrar suas mentes. — Ele bebeu um gole de vinho. — Mas acho que isso é tão improdutivo. Como você pode ensinar uma lição para as pessoas, realmente ensinar a elas uma lição, se as mentes delas não entendem?

Através da ligação, Ulicia sentiu Cecilia perder o controle da bexiga, e a urina quente descendo pelas pernas dela.

— Como? — Ulicia ouviu a si mesma perguntando com uma voz rouca. — Como você consegue usar o tempo entre os pensamentos?

Jagang pegou sua faca e cortou uma fatia de carne sobre uma bandeja de prata ornamentada que estava ao seu lado. Ele espetou o centro da fatia sangrenta com a ponta da faca e apoiou os cotovelos na mesa. — O que nós todos somos?

Ele balançou o pedaço de carne enquanto o sangue escorria descendo pela faca. — O que é a realidade, a realidade de nossa existência?

Ele arrancou a carne da faca com os dentes e mastigou enquanto continuava. — Nós somos os nossos corpos? Então uma pessoa pequena é menos do que uma pessoa grande? Se fôssemos os nossos corpos, então quando perdemos um braço, ou uma perna, seríamos menos, começaríamos a desaparecer da existência? Não. Somos a mesma pessoa.

— Não somos os nossos corpos; nós somos nossos pensamentos. Enquanto eles se formam, definem quem nós somos, e criam a realidade de nossa existência. Entre esses pensamentos, não há nada, apenas o corpo, esperando que nossos pensamentos nos façam quem nós somos.

— Entre os seus pensamentos, eu apareço. Naquele espaço entre seus pensamentos o tempo não possui significado para vocês, mas tem significado para mim. — Ele tomou um gole de vinho. — Eu sou uma sombra, deslizando entre as fendas da sua existência.

Através da ligação, Ulicia podia sentir as outras tremerem. — Isso não é possível. — ela sussurrou. — O seu Han não pode esticar o tempo, quebrá-lo.

O sorriso condescendente dele tirou o fôlego dela. — Uma pequena, e simples cunha, inserida em uma rachadura em uma rocha enorme, pode quebrá-la. Destruir ela.

— Eu sou a cunha. Essa cunha agora está inserida dentro das rachaduras de suas mentes.

Ele levantou silenciosamente enquanto seu dedão arrancava uma longa tira de porco assado. — Quando vocês dormem, seus pensamentos flutuam e deslizam e vocês ficam vulneráveis. Quando dormem, são um farol que eu consigo encontrar. Então, meus pensamentos deslizam para dentro das rachaduras. Os espaços onde vocês entram e saem da existência são abismos para mim.

— E o que você quer de nós? — Armina perguntou.

Ele mordeu um pedaço do porco que estava pendurado em seus dedos melados de carne. — Bem, entre meus usos para vocês, nós temos um inimigo mútuo: Richard Rahl. Vocês o conhecem como Richard Cypher. — Ele curvou uma das sobrancelhas sobre um dos seus olhos escuros. — O Seeker. — Até agora ele tem sido de um valor incalculável. Ele me fez um enorme favor ao destruir a barreira, que me mantinha desse lado. Meu corpo, pelo menos. Vocês, as Irmãs do Escuro, o Guardião, e Richard Rahl tornaram possível que eu traga a raça dos homens para o predomínio.

— Não fizemos tal coisa. — Tovi protestou com uma voz fraca.

— Ah, mas vocês fizeram, entendam, o Criador e o Guardião lutam pelo domínio nesse mundo, o Criador simplesmente evita que o Guardião engula ele lançando-o para dentro do mundo dos mortos, e o Guardião simplesmente tem um insaciável apetite pelos vivos.

O olhar sombrio dele levantou para encontrar com o delas. — Em seu esforço para libertar o Guardião, para entregar a ele esse mundo, você dão poder ao Guardião aqui, e isso, em contrapartida, estimulou Richard Rahl na defesa dos vivos. Ele restaurou o equilíbrio.

— Nesse equilíbrio, justamente como no espaço entre os seus pensamentos, eu entro.

— A magia é o canal para esses outros mundos, dando a eles o poder aqui. Reduzindo a quantidade de magia no mundo vou diminuir a influência do Criador e do Guardião aqui. O Criador ainda vai enviar sua centelha da vida, e o Guardião ainda levará ela embora quando o fim dela chegar, mas além disso, o mundo pertencerá ao homem.

— A antiga religião da magia será transferida para o grande amontoado da história, e eventualmente, vai se tornar um mito.

— Eu sou um Andarilho dos Sonhos; tenho visto os sonhos dos homens, conheço o potencial deles. A magia anula essas visões sem fronteiras. Sem a magia, a mente do homem, sua imaginação, será liberada, e ele será todo poderoso.

— É por isso que tenho esse exército. Quando a magia estiver morta, ainda terei eles. Mantenho eles bem treinados para esse dia.

— E como Richard Rahl é seu inimigo? — Ulicia perguntou, esperando manter ele falando enquanto tentava pensar no que elas poderiam fazer.

— Ele teve que fazer o que fez, é claro, ou vocês teriam entregado o mundo ao Guardião. Isso me ajudou, mas agora ele interfere com meus planos. Ele é jovem, e ignorante quanto aos seus talentos. Eu, por outro lado, passei os últimos vinte anos aperfeiçoando minha habilidade.

Ele balançou a ponta da faca na frente dos olhos. — Somente no ano passado meus olho se transformaram, na marca de um Andarilho dos Sonhos. Apenas agora eu estou intitulado com o título mais temido no mundo antigo. Na língua antiga, Andarilho dos Sonhos é um sinônimo de Arma. Os magos que criaram essa arma acabaram se arrependendo.

Ele lambeu a gordura da faca enquanto as observava. — É um erro criar armas com vontade própria. Agora vocês são minhas armas. Eu não cometo o mesmo erro.

— Meu poder permite que eu entre nas mentes de qualquer um quando eles dormem. Naquele que não possuem o dom só posso exercer uma limitada quantidade de influência, e de qualquer maneira eles não tem utilidade para mim, mas aqueles que são dotados, como vocês seis, posso fazer qualquer coisa que eu desejar. Uma vez que a minha cunha está em sua mente, ela não pertence mais a você. É minha.

— A magia dos Andarilhos dos Sonhos era poderosa, mas instável. ninguém nasceu com a habilidade durante os últimos três mil anos, desde que a barreira foi erguida e nos prendeu aqui. Mas agora, um Andarilho dos Sonhos caminha nesse mundo novamente.

Ele tremeu soltando uma risada ameaçadora. As pequenas tranças nos cantos da boca dele dançaram. — Esse sou eu.

Ulicia quase falou para ele seguir direto ao ponto, mas conteve a si mesma bem a tempo. Não tinha nenhum desejo de ver o que ele faria quando acabasse de falar. Ela precisava de tempo para pensar em alguma coisa. — Como sabe tudo isso?

Jagang arrancou uma tira de carne torrada do assado e começou a dar pequenas mordidas enquanto continuava. — Em uma cidade enterrada na minha terra natal de Altur'Rang, encontrei um arquivo dos tempos antigos. É irônico, o valor de livros, para um guerreiro como eu. O Palácio dos Profetas também tem livros de imenso valor, se você souber como usá-los. É muito ruim que o profeta tenha morrido, mas tenho outros magos.

— Um fragmento de magia da guerra antiga, um tipo de escudo, foi passado de seu criador para todos aqueles descendentes com o dom nascidos na Casa de Rahl. Essa ligação protege a mente das pessoas e assim não posso entrar.

Richard Rahl possui essa habilidade, e começou a usá-la. Antes que ele aprenda demais, ele deve ser neutralizado.

— Junto com sua noiva.— Ele fez uma pausa com um olhar pensativo, distante. — A Madre Confessora causou um pequeno atraso, mas ela já está sendo controlada pelas minhas marionetes involuntárias do norte. Os tolos, em seu entusiasmo, criaram algumas complicações, mas ainda tenho que balançar as cordas deles de verdade. Quando eu fizer isso, eles dançarão de acordo com a minha música; tenho aquela cunha plantada bem fundo. Tenho feito grande esforço para alterar os eventos em meu benefício para colocar Richard Rahl e a Madre Confessora na palma da minha mão.

Ele arrancou um punhado de carne do porco assado. — Entendam, ele nasceu como um mago guerreiro, o primeiro em três mil anos, mas vocês sabiam disso. Um mago como esse provará ser uma arma inestimável para mim. Ele pode fazer coisas que nenhuma de vocês pode, então não quero matá-lo; quero controlar ele. Quando sua utilidade tiver acabado, então precisará ser morto.

Jagang sugou a gordura do porco dos seus anéis. — Entendam, controlar é mais importante do que matar. Poderia ter acabado com vocês, mas que bem isso faria? Enquanto estiverem sob meu domínio, não são ameaça para mim, e são úteis, oh, de tantas maneiras.

Jagang virou os pulsos para cima, apontando sua faca para Merissa. — Todas vocês juraram vingança contra mim, mas você, minha querida, jurou se banhar no sangue dele. Ainda posso dar essa chance a você.

O rosto de Merissa ficou pálido. — Como... poderia saber isso? Falei quando estava acordada.

Ele riu com o pânico estampado no rosto dela. — Se não quer que eu saiba alguma coisa, querida, então não deveria sonhar com o que disse enquanto estava acordada.

Através da ligação, Ulicia sentiu Armina quase desmaiando.

— É claro, primeiro vocês precisam receber uma lição. Devem aprender quem está no controle de suas vidas. — Com a faca ele apontou para os escravos silenciosos atrás dele. — Ficarão tão obedientes quanto esses aqui.

Pela primeira vez, Ulicia deu uma boa olhada para as pessoas vestidas parcialmente ao redor da sala. Ela quase sufocou. Todas as mulheres eram Irmãs. Pior, a maioria eram suas Irmãs do Escuro. Ela fez uma rápida avaliação; nem todas elas estavam aqui. Os homens, a maioria jovens magos que foram libertados após o seu treinamento no Palácio, também eram alguns que fizeram um juramento de alma para o Guardião.

— Algumas são Irmãs da Luz, e servem muito bem, com medo daquilo que eu farei com eles caso me desagradem.

Com o indicador e o dedão, Jagang tocou na fina corrente de ouro entre os anéis do seu nariz e orelha. — Mas eu gosto mais de suas Irmãs do Escuro; Dominei todas elas, até mesmo aquelas no Palácio.— Ulicia sentiu como se outra agulha fosse espetada nela. — Tenho negócios no Palácio dos Profetas. Negócios importantes.

As correntes de ouro no peito dele cintilaram na luz do fogo quando ele abriu os braços.— Todas são bastante obedientes. — Seu olhar sombrio virou para aquelas que estavam atrás dele. — Não são, queridas?

Janet, uma Irmã da Luz, beijou o dedo anelar dela enquanto lágrimas desciam por suas bochechas. Jagang riu. Seu anel brilhou na luz do fogo enquanto apontava um dedo grosso na direção dela.

— Estão vendo isso? Eu permito que ela faça isso. Isso a deixa cheia de falsas esperanças. Se eu impedisse, então talvez ela pudesse cometer suicídio, porque ela não tem o medo da morte como aqueles jurados ao Guardião. Não está certo, minha querida Janet?

— Sim, Excelência. — ela respondeu com uma voz assustada. — Você possui meu corpo nessa vida, mas a minha alma pertence ao Criador quando eu morrer.

Jagang riu, emitindo um som mórbido. Ulicia tinha ouvido isso antes, e ela sabia que seria motivo para que ele pudesse rir novamente.

— Estão vendo isso? Isso é o que eu tolero para manter meu controle. É claro que agora ela terá que servir nas tendas durante uma semana como punição. — Seu olhar fez Janet recuar. — Mas você sabia disso antes de falar, não sabia minha querida?

A voz da Irmã Janet tremeu. — Sim, Excelência.

Os olhos escuros nebulosos de Jagang voltara para as seis diante dele. — Gosto mais das Irmãs do Escuro porque elas tem fortes razões para temer a morte. — Ele partiu o faisão no meio. Ossos estalaram e quebraram.

— Elas falharam com o Guardião, para quem elas juraram suas almas. Se elas morrerem, não há escapatória. Se morrerem, o Guardião terá sua vingança pela sua falha. — Ele riu, com um som desdenhoso ressonante. — Assim como terá vocês, pela eternidade, se me desagradarem o bastante para merecer a morte.

Ulicia engoliu em seco. — Nós entendemos... Excelência.

O olhar de pesadelo de Jagang fez ela parar de respirar. — Oh, não, Ulicia, não acho que entenderam de verdade. Porém, quando suas aulas acabarem, vocês entenderão.

Com seu olhar sobre Ulicia, ele esticou o braço embaixo da mesa e arrastou uma mulher de corpo bem feito pelo cabelo louro. Ela gemeu de dor quando seus dedos poderosos a levantaram. Ela estava vestida do mesma maneira que as outras.

Pelo tecido fino, Ulicia conseguiu ver escoriações mais antigas, amareladas, e mais novas, roxas. Havia um machucado na bochecha direita dela, e um recente, enorme, azul escuro, no lado esquerdo da mandíbula, com uma linha de quatro cortes deixados pelos anéis dele.

Essa era Christabel, uma das Irmãs do Escuro que Ulicia tinha deixado no Palácio. As Irmãs do Escuro no Palácio teriam preparado o terreno para o retorno delas. Aparentemente, agora elas preparavam o terreno para a chegada de Jagang. O que ele poderia querer com o Palácio dos Profetas, ela não conseguia imaginar.

Jagang virou a mão, apontando. — Fique em pé na minha frente.

Irmã Christabel deu a volta n mesa rapidamente para ficar em pé diante de Jagang. Ela alisou o cabelo desarrumado apressadamente, e limpou a boca com a costa da mão antes de fazer uma reverência. — Como posso servi-lo, Excelência?

— Bem, Christabel, preciso ensinar a essas seis a primeira lição. — Ele arrancou a outra perna do faisão. — Para fazer isso, você deve morrer.

Ela fez uma reverência. — Sim, Excel... Ela congelou, percebendo o que ele tinha acabado de falar. Ulicia podia ver suas pernas tremendo quando ela levantou o corpo, mas assim mesmo, a mulher não ousou dizer nada.

Ele fez um gesto com a perna do faisão para as duas mulheres sentadas na frente dele sobre a pele de urso, e elas se afastaram. Jagang deu aquele terrível sorriso dele. — Adeus, Christabel.

Os braços dela levantaram no ar quando ela desabou no chão soltando um grito. Christabel debateu-se loucamente no chão, gritou tão alto que machucou os ouvidos de Ulicia. As seis mulheres em pé sobre ela na beira da pele de urso observaram com os olhos arregalados, prendendo a respiração delas. Jagang mastigou sua perna de faisão. Os gritos horríveis que faziam o sangue gelar continuaram e continuaram enquanto a cabeça de Christabel balançava de um lado para o outro, todo o seu corpo tremia e saltava enquanto ela se debatia violentamente.

Jagang ocupou-se com sua perna de faisão e tendo sua caneca de vinho abastecida novamente. Ninguém falou enquanto ele terminava a perna e virou para pegar algumas uvas.

Ulicia não conseguia mais suportar. — Quanto tempo até que ela morra? — ela perguntou com uma voz rouca.

Jagang levantou uma sobrancelha. — Até que ela morra? — Ela jogou a cabeça para trás enquanto soltava uma gargalhada. Seus punhos, com anéis enormes, bateram na mesa. Ninguém mais na sala mostrou ao menos um sorriso. Todo o corpo musculoso dele tremeu. A fina corrente entre o nariz e a orelha dele dançou enquanto sua risada morria.

— Ela estava morta antes de bater no chão.

— O quê? Mas ela... ela ainda está gritando.

De repente Christabel ficou em silêncio, seu peito tão imóvel quanto pedra.

— Ela estava morta desde o primeiro instante. — Jagang falou. Um leve sorriso surgiu em seus lábios enquanto ele fixava o vácuo negro de seu olhar em Ulicia. — Aquela cunha sobre a qual falei para vocês. Exatamente como aquela que tenho em suas mentes. O que vocês enxergam é a alma dela gritando. Estão vendo o tormento dela no mundo dos mortos. Parece que o Guardião está descontente com sua Irmã do Escuro.

Jagang levantou um dedo e Christabel voltou a se debater loucamente e gritar.

Ulicia engoliu em seco. — Quanto tempo... quanto tempo até que ela... pare?

Ele lambeu os lábios. — Até que ela apodreça.

Ulicia sentiu os joelhos tremendo, e através da ligação conseguiu sentir as outras cinco prestes a gritar de pânico, exatamente como Christabel gritava. Esse era o desprazer que o Guardião lançaria sobre elas se não restaurassem a influência dele nesse mundo.

Jagang estalou os dedos. — Slith! Eeris!

Luz cintilou contra a parede. Ulicia arfou quando duas formas de capa aparentemente brotaram da rocha escura.

As duas criaturas escamosas deslizaram silenciosamente em volta da mesa e fizeram reverência. — Simmmm, Andarilho dos Sonhossss?

Jagang balançou o dedo, apontando para a mulher que gritava no chão. — Jogue ela dentro do buraco.

Os Mriswith jogaram as capas para trás, por cima dos ombros, e se curvaram, levantando o corpo que se contorcia e gritava de uma mulher que Ulicia conheceu por mais de centenas de anos, uma mulher que havia lhe ajudado, e foi uma obediente serva dos desejos do Guardião. Ela deveria ter recebido um prêmio por seus serviços. Todas deveriam receber.

Ulicia olhou para Jagang enquanto os dois Mriswith deixavam a sala com sua carga para o buraco. — O que você quer que façamos?

Jagang levantou uma das mãos e com dois dedos lisos de gordura fez um sinal para um soldado ao lado da sala para que se adiantasse. — Estas seis pertencem a mim. Coloque os anéis nelas.

O homem rouco, enrolado em peles e carregado de armas, fez uma reverência. Ele foi até a que estava mais perto, Nicci, e com dedos sujos puxou o lábio inferior dela sem fazer cerimônia, esticando-o de forma grotesca. Seus olhos azuis arregalados se encheram de pânico. Ulicia arfou junto com Nicci. Através da ligação, ela podia sentir a dor da jovem e o terror quando o ferro enferrujado perfurou a beira do lábio com um movimento giratório. O soldado enfiou o furador com cabo de madeira de volta no cinto e tirou um anel de ouro do bolso enquanto segurava o lábio inferior dela.

Com ajuda dos dentes, ele aumentou a abertura no anel e então enfiou ele pelo ferimento sangrento. Girou o anel e usou os dentes para fechar a abertura.

O soldado sujo, fedorento, com a barba por fazer, deixou Ulicia para o final. Nesse momento ela estava tremendo incontrolavelmente, por ter sentido aquilo ser feito com cada uma das outras. Enquanto ele puxava o lábio inferior dela, ela tentou desesperadamente pensar em uma maneira de escapar.

Era como puxar um balde de um poço seco. Lágrimas de dor brotaram dos olhos dela quando o anel foi inserido.

Jagang limpou gordura da boca com a costa da mão enquanto observava com prazer o sangue escorrer pelos queixos de todas elas. — Agora vocês seis são minhas escravas. Se não me derem motivo para matá-las, tenho um trabalho para vocês no Palácio dos Profetas. Quando acabar com Richard Rahl, posso até deixar vocês matarem ele.

Os olhos dele levantaram outra vez, e as formas neles se moviam de uma maneira que tirou o fôlego dela. Todos os traços de alegria desapareceram, deixando em seu lugar uma ameaça desenfreada. — Mas primeiro, ainda não acabei com suas lições.

— Entendemos muito bem nossas alternativas. — Ulicia disse apressadamente. — Por favor, não precisa ter medo de nossa lealdade.

— Oh, eu sei disso. — Jagang sussurrou. — Mas ainda não acabei com suas lições. A primeira foi apenas o começo. As outras não serão nem um pouco tão rápidas.

As pernas de Ulicia estavam ameaçando fraquejar. Desde que Jagang começou a aparecer em seus sonhos, a sua vida acordada havia se transformado em um pesadelo. Deveria haver um jeito de parar com isso, mas não conseguia pensar em nenhum. Teve uma visão de si mesma, voltando ao Palácio dos Profetas como uma das escravas de Jagang, em uma daquelas roupas.

Jagang olhou além dela. — Os garotos estavam escutando?

Ulicia ouviu o Capitão Blake responder que sim. Ela tomou um susto. Tinha esquecido completamente dos trinta marinheiros em pé atrás dela, no fundo da sala.

Jagang fez um sinal com dois dedos para que eles se aproximassem. — Ao amanhecer vocês partirão. Entretanto, pensei que durante esta noite vocês gostariam de ficar com essas damas.

Cada uma das seis ficou rígida.

— Mas...

As palavras dela foram interrompidas pelo modo como as formas flutuantes agitaram-se repentinamente nos olhos escuros dele. — De agora em diante, se usarem sua magia contra meus desejos, mesmo que seja para fazer parar um espirro, irão compartilhar do destino de Christabel. Nos seus sonhos, eu mostrei uma pequena prova do que posso fazer com vocês enquanto estiverem vivas, e agora vocês viram uma pequena amostra daquilo que o Guardião fará com vocês se morrerem. Só há um caminho a seguir. Se eu fosse vocês, eu não daria um passo em falso.

Jagang voltou seu olhar para os marinheiros atrás delas. — Elas são suas durante a noite. Conhecendo essas seis pelos sonhos delas, eu sei que vocês tem contas a acertar. Façam com elas o que desejarem.

As vozes dos marinheiros se elevaram com gritos de alegria.

Através da ligação, Ulicia sentiu uma mão agarrar o seio de Armina, outra puxou a cabeça de Nicci para trás pelo cabelo enquanto o laço no espartilho dela foi desfeito, e outra mão deslizou pela própria coxa dela. Ela conteve um grito.

— Tem algumas pequenas regras. — Jagang disse, fazendo parar as mãos sobre elas. — Se violarem essas regras, vou estripar todos vocês como um monte de peixes.

— E quais seriam as regras, Imperador? — um marinheiro perguntou.

— Não podem matá-las. Elas são minhas escravas. Pertencem a mim. Quero que elas sejam devolvidas de manhã em boas condições para me servir. Isso significa nenhum osso quebrados e coisas assim. Vocês vão tirar na sorte quem vai ficar com cada uma. Sei o que vai acontecer se deixar vocês mesmos escolherem. Não quero que nenhuma delas seja desprezada.

Todos os marinheiros riram concordando, e todos disseram que era mais do que justo. Eles juraram que as regras seriam seguidas.

Jagang voltou sua atenção para as seis mulheres. — Tenho um grande exército de soldados fortes, e não tem prostitutas o bastante. Isso deixa meus homens com um humor terrível. Até que eu tenha outras tarefas para vocês, servirão nessa função para todos mas durante quatro horas por dia. Agradeçam por terem meus anéis em seus lábios; isso vai impedir que eles matem vocês enquanto aproveitam sua diversão.

Irmã Cecilia abriu os braços. Ela mostrou um sorriso delicado, inocente. — Imperador Jagang, seus homens são jovens e fortes. Eu temo que não sentirão diversão alguma ficando com uma mulher velha como eu. Sinto muito.

— Tenho certeza que eles vão sorrir de alegria em ficar com você. Você verá.

— Imperador, Irmã Cecilia está certa. Também temo que eu também seja velha demais e gorda. — Tovi falou com sua voz mais madura. — Não conseguiríamos dar nenhuma satisfação aos seus homens.

— Satisfação? — Ele deu uma mordida no assado na ponta da sua faca. — Satisfação? Você é estúpida? Isso não tem nada a ver com satisfação. Eu lhe asseguro, meus homens ficarão felizes com seu encantos. Mas você entendeu mal.

Balançou um dedo na direção delas, os anéis engordurados em seus dedos brilhando. — Vocês foram seis Irmãs da Light, e depois Irmãs do Escuro. Provavelmente são as feiticeiras mais poderosas no mundo. Isso é para ensinar a vocês, que vocês são pouco mais do que estrume debaixo das minhas botas. farei com vocês o que eu quiser. Agora aqueles com o dom são minhas armas.

— Isso é para ensinar a vocês uma lição. Vocês não tem voz nesse assunto. Até que eu decida o contrário, entrego vocês para meus homens. Se eles quiserem torcer os seus dedos e fazer apostas para ver quem consegue fazer vocês gritarem mais alto, então eles o farão. Se quiserem qualquer outro tipo de prazer de vocês, então eles terão. Eles possuem gostos bastante variados, e enquanto não matarem vocês, são livres para satisfazê-los.

Ele enfiou o resto do pedaço de carne na boca. — De qualquer modo, depois que esses colegas tiverem acabado com vocês. Aproveitem meu presente rapazes. Façam o que eu digo, sigam minhas regras, e poderei encontrar alguma utilidade para vocês no futuro. O Imperador Jagang trata os seus amigos muito bem.

Um grito de aclamação para o Imperador explodiu dos marinheiros.

Ulicia teria caído quando suas pernas dobraram se um braço não tivesse segurado a cintura dela e puxado para trás, bem apertado, contra um marinheiro ansioso. Ela podia sentir a respiração nojenta dele.

— Bem, bem, bem, moças. Parece que vão sair para brincar afinal de contas, e depois que foram tão más para nós.

Ulicia podia ouvir á si mesma choramingando. O lábio dela latejava de dor, mas ela sabia que era apenas o começo. Ela estava tão surpresa com aquilo que estava acontecendo que não conseguia formar um pensamento claro.

— Oh. — Jagang falou, parando todos. Fez um gesto com sua faca para Merissa. — Exceto essa aqui. Não podem ficar com ela. — ele falou para os marinheiros. Ele balançou dois dedos. — Aproxime-se, querida.

Merissa deu dois passos até a pele. Através da ligação, Ulicia sentiu as pernas dela tremendo.

— Christabel era minha, exclusivamente. Era minha favorita. Mas agora ela está morta, apenas para servir de lição para vocês. — Ele olhou para o local onde os marinheiros já deixaram a roupa dela aberta. — Você ficará no lugar dela.

Ele desviou o olhar para os olhos dela novamente. — Você disse, se eu lembro muito bem, que lamberia meus pés se tivesse que fazer isso. Você tem. — Jagang mostrou aquele sorriso mortal dele, emoldurado pelas pequenas tranças nas pontas, ao ver a expressão de surpresa no rosto de Merissa. — Eu falei, querida, você sonha coisas que falou quando estava acordada.

Merissa assentiu com voz fraca. — Sim, Excelência.

— Tire esse vestido. Pode precisar de alguma coisa melhor para mais tarde, se eu escolher deixar você matar Richard Rahl para mim.

Ela olhou para as outras mulheres quando Merissa fez como foi ordenada. — Eu vou deixar a ligação sobre vocês por enquanto para que cada uma sinta as lições que as outras receberem. Eu não gostaria que perdessem nenhuma delas.

Quando Merissa terminou, Jagang virou a faca entre o indicador e um dedão, e apontou para baixo. — Debaixo da mesa, querida.

Ulicia podia sentir a pele áspera nos joelhos de Merissa, e então a pedra debaixo da mesa.

Os marinheiros ficaram excitados com aquela visão.

Com grande força de vontade, de seu reservatório de ódio por esse homem, Ulicia retirou força e extraiu determinação. Era a líder das Irmãs do Escuro. Através da ligação, ela falou com as outras. — Nós todas passamos pelo ritual. Pior do que isso foi feito conosco. Nós somos Irmãs do Escuro; lembrem quem é o nosso verdadeiro Mestre. Por enquanto somos escravas desse parasita, mas ele cometeu um grande erro se pensa que não temos mentes. Ele não tem nenhum poder a não ser o de usar os nossos. Vamos pensar em alguma coisa, e então Jagang vai pagar. Oh, querido Mestre, ele vai pagar.

— Mas o que vamos fazer até lá! — Armina gritou.

— Silêncio! — Nicci ordenou. Ulicia podia sentir os dedos sobre Nicci, podia sentir o calor de sua fúria, e podia sentir o seu coração de gelo negro. — Lembrem de cada rosto. Cada um deles vai pagar. Escutem Ulicia. Vamos pensar em alguma coisa, e então vamos ensinar para eles todas as lições que apenas nós conseguiríamos imaginar.

— E que nenhuma de vocês ouse sonhar com isso. — Ulicia avisou. — A única coisa que não podemos permitir é deixar que Jagang nos mate, ou toda a esperança está perdida. Enquanto vivermos, temos chance de conquistar nosso caminho de volta aos bons olhos do Mestre. Uma recompensa por nossas almas nos foi prometida, e eu pretendo obter isso. Tenham força, minhas Irmãs.

— Mas Richard Rahl é meu. — Merissa sibilou. — Qualquer uma que pegar ele no meu lugar vai responder a mim, e ao Guardião. — Até mesmo Jagang, se fosse capaz de escutar, ficaria pálido com o veneno no aviso dela.

Através da ligação, Ulicia sentiu Merissa afastar o cabelo do caminho. Podia provar o que Merissa provava.

— Estou cansado de você... — Jagang fez uma pausa durante um momento enquanto soltava um suspiro. Ele balançou a faca. — Desapareça.

O Capitão Blake agarrou Ulicia pelo cabelo. — Hora do pagamento, moça.

 

Ela piscou enquanto olhava para toda a extensão da lâmina enferrujada perto do rosto dela. A ponta não estava a mais de uma polegada de distância.

— Isso realmente é necessário? Falei que poderiam roubar o que quisessem e não faríamos nada para impedir, mas sou obrigado a dizer que é o terceiro bando de perigosos foras-da-lei a nos roubam nas últimas duas semanas, e não temos mais nada de valor.

Pelo modo como a mão do rapaz estava tremendo, ele não parecia ter muita prática em sua arte. Pelo modo como sua pele estava colada nos ossos, também não parecia ter muito sucesso nela.

— Quieta! — Ele deu uma olhada na direção dos seus companheiros. — Encontraram alguma coisa?

O segundo jovem fora-da-lei, agachado entre as mochilas na neve, e tão magro quanto o primeiro, lançou olhares para a floresta sombria de cada lado da estrada pouco utilizada. Ele checou atrás, na curva da estrada não muito longe onde ela desaparecia por trás de uma tela de abetos cobertos de neve. No meio da curva, pouco antes da estrada desaparecer, havia uma ponte sobre uma corrente que ainda corria independente do fato de ser inverno. — Não. Apenas roupas velhas e lixo. Nenhum bacon, nem ao menos um pedaço de pão.

O primeiro dançava para frente e para trás sobre os calcanhares, pronto para correr ao primeiro sinal de problema. Ele levantou a outra mão até o cabo para ajudar a segurar o peso da espada feita de forma rude. — Vocês parecem bem alimentados. O que vocês dois comem, velha! Neve?

Ela cruzou as mãos sobre o cinto enquanto suspirava. Estava ficando cansada disso. — Trabalhamos por comida enquanto viajamos.

Deveriam tentar. Trabalhar, quero dizer.

— É mesmo? É inverno, velha, caso você não tenha notado. Não há trabalho. No último outono o exército levou nossas provisões. Meus pais não tem nada para ajudar a passar o inverno.

— Sinto muito, filho. Talvez...

— Ei! O que é isso, velho? — Ele estava com o dedo enfiado na coleira de prata. Deu um puxão nela. — Como tira essa coisa? Responda!

— Eu falei. — ela disse, evitando a fúria silenciosa dos olhos azuis do mago. — Meu irmão é surdo e mudo. Não entende suas palavras, e não pode responder.

— Suro e mudo? Então diga você, como tira essa coisa?

— É apenas uma lembrança que foi soldada faz muito tempo. Não tem valor.

Uma das mãos saiu da espada quando o assaltante dela se inclinou cuidadosamente na direção dela e empurrou a capa dela para o lado com um dedo.

— O que é isso? Uma bolsa! Encontrei a bolsa dela! — Ele arrancou a pesada bolsa com moedas de ouro do cinto dela. — Deve estar cheia de ouro!

Ela riu. — Temo que seja apenas uma bolsa com biscoitos duros. Fique à vontade para pegar um, se quiser, mas não tente morder ou vai quebrar os dentes. Chupe ele por algum tempo.

Ele retirou uma moeda de ouro e colocou entre os dentes. Fez uma careta mostrando uma expressão amarga. — Como vocês conseguem comer essas coisas? Já comi biscoitos ruins, mas esses não são nem bons o bastante para serem chamados de ruins.

É tão fácil com uma mente jovem, ela pensou. Muito ruim que não fosse tão fácil assim com adultos.

Ele cuspiu para o lado e jogou a bolsa de ouro na neve antes de tatear a capa dela, procurando por qualquer outra coisa que ela pudesse ter escondido.

Ela suspirou com impaciência. — Os garotos poderiam se apressar com esse assalto. Gostaríamos de chegar até a próxima cidade antes de escurecer.

— Nada. — o segundo disse. — Eles não tem nada que valha o trabalho de carregar.

— Eles tem cavalos. — o primeiro disse enquanto apertava a pesada capa dela, tentando sentir qualquer coisa que ela pudesse estar segurando. — Pelo menos podemos levar os cavalos. Eles valerão alguma coisa.

— Por favor, faça isso. — ela falou. — Estou cansada de ser atrasada arrastando esses cavalos velhos. estariam me fazendo um favor. Os quatro estão mancos e não tenho coração forte para acabar com o sofrimento deles.

— A velha está certa. — o segundo falou enquanto puxava um dos cavalos mancos, testando ele. — Todos os quatro. Podemos caminhar mais rápido. Se tentarmos levar esses sacos de ossos conosco seremos pegos com certeza.

O primeiro ainda estava passando a mão na capa dela. Ela parou no bolso dela. — O que é isso?

A voz dela assumiu um tom estranho. — Nada que interesse a você.

— É mesmo? — Ele tirou o livro de jornada do bolso dela.

Enquanto folheava as páginas em branco, ela avistou uma mensagem. Finalmente.

— O que é isso?

— Apenas um livro de notas. Consegue ler, filho?

— Não. De qualquer modo, isso dificilmente parece ser algo que valha a pena ler.

— Leve ele. — o segundo falou. — Pode valer alguma coisa se não tiver nada escrito.

Ela olhou novamente para o jovem segurando a espada no seu rosto. — Já estou cansada disso. Considerem o assalto terminado.

— Estará terminado quando eu disser que terminou.

— Devolvam isso. — Ann disse com uma voz firme quando esticou a mão. — E então sigam seu caminho antes que eu arraste vocês até a cidade pelas orelhas e faça os seus pais buscarem vocês.

Ele agitou a espada quando saltou para trás de forma defensiva. — Cuidado, não fique nervosa ou vai provar o aço!

— Eu sei como usar essa coisa!

De repente o ar parado do anoitecer trovejou com o som de cascos de cavalos. Ela estivera observando enquanto os soldados deslizavam subindo, pela curva e passando pela pequena ponte, sem serem notados pelos dois jovens por causa do som da água, até o último momento quando eles avançaram. Quando o assaltante dela virou, assustado, Ann arrancou a espada das mãos dele. Nathan tirou a faca do outro.

Soldados D'Haran montados aproximaram-se rapidamente deles. — O que está acontecendo aqui? — o Sargento perguntou com uma voz calma e firme.

Os dois jovens ficaram imóveis, congelados pelo pânico. — Bem... — Ann falou. — esbarramos nesses dois aqui, e eles estavam dizendo como deveríamos ter cuidado com foras-da-lei. Eles moram na vizinhança. Estavam mostrando como nos proteger e dando uma demonstração de seu trabalho com a espada.

O Sargento cruzou as mãos sobre o cabeçote da sela. — É isso mesmo, rapaz?

— Eu... nós... — Os olhos desesperados dele viraram para ela. — Está certo. Moramos aqui perto, e estávamos acabando de falar para esses dois viajantes para serem cuidadosos pois ouvimos falar que tem foras-da-lei por aqui.

— E que show de habilidade com a espada. Como eu prometi, meu jovem, você vai ganhar um biscoito pela apresentação. Pegue o meu saco de biscoitos, ali.

Ele se curvou e pegou a pesada bolsa com ouro, entregando-a para ela. Ann tirou duas moedas e enfiou uma na mão de cada um dos jovens.

— Como prometi, um biscoito para cada um. Agora é melhor que os rapazes voltem para casa antes que escureça, ou seus pais ficarão preocupados.

Entreguem para eles meus biscoitos como agradecimento por enviar vocês para nos avisar para ter cuidado.

Ele assentiu meio sem jeito. — Está bem. Então, boa noite. Tomem cuidado.

Ann esticou a mão. Observou o jovem com um olhar ameaçador. — Se tiver acabado de olhar meu caderno de notas, gostaria de ter ele de volta.

Os olhos dele ficaram arregalados com a expressão nos olhos dela, e então ele enfiou o livro de jornada na mão dela como se ele estivesse queimando seus dedos, e realmente estava.

Ann sorriu. — Obrigada, filho.

Ele esfregou a mão no casaco esfarrapado. — Então, adeus. E cuidado.

Ele virou para ir embora. — Não esqueça isso. — Ele virou cuidadosamente. Ela ofereceu o cabo da espada para ele. — Seu pai ficaria muito zangado se esquecesse de levar de volta a espada dele.

Ele segurou-a com cuidado. Nathan, não estando disposto a deixar isso acabar sem um pouco de teatro, fez a faca deslizar por entre os dedos. atirou a faca no ar, segurando-a atrás das costas, e então girou-a por baixo da axila e pegou com a outra mão. Ann girou os olhos quando ele bateu na lâmina, revertendo o seu giro. Segurou a faca pela lâmina e entregou-a com o cabo voltado para o outro jovem que ficou com os olhos arregalados.

— Onde aprendeu a fazer isso, velho? — o Sargento perguntou.

Nathan exibiu uma expressão de raiva. Se havia uma coisa que Nathan não gostava, era ser chamado de... velho. Ele era um mago, um profeta, de habilidade inigualável, e pensava que deveria ser visto com admiração, se não com temor. Ela estava reprimindo o dom dele com o Rada'Han, ou sem dúvida a sela do Sargento estaria em chamas nesse momento. Ela também estava impedindo ele de falar. A língua de Nathan era pelo menos tão perigosa quanto seu poder.

— Eu temo que meu irmão seja surdo e mudo. — Ela fez um sinal para os dois foras-da-lei com um movimento da mão. Eles acenaram e entraram na floresta, chutando neve enquanto seguiam. — Meu irmão sempre se divertiu praticando truques com as mãos.

— Madame, tem certeza que aqueles dois não estão causando nenhum problema para você?

— Oh, não. — ela brincou.

O Sargento levantou as rédeas, os vinte homens atrás dele fazendo a mesma coisa em resposta, prontos para seguir atrás dele. — Bem, acho que teremos uma pequena conversa com eles de qualquer modo. Uma pequena conversa sobre roubo.

— Se fizer isso, certifique-se de pedir a eles para contar sobre como os soldados D’Haran roubaram as provisões de comida das suas famílias, e como estão passando fome por causa disso.

O soldado de mandíbula quadrada baixou as rédeas. — Não sei nada a respeito do que foi feito antes, mas o novo Lorde Rahl deu ordens explícitas que não haverá o roubo de nada pelo exército.

— O novo Lorde Rahl?

Ele assentiu. — Richard Rahl, o Mestre de D’Hara.

Com o canto do olho, ela viu um sorriso se formar nos lábios de Nathan. Era o sorriso que indicava uma ramificação apropriada em uma profecia. Embora fosse assim, que eles tivessem obtido sucesso, isso não gerou nenhum sorriso nela, mas uma pontada de agonia pelo caminho adiante que agora estava confirmado. Somente a alternativa era pior. — Sim, acredito já ter ouvido o nome, agora que você o mencionou.

O Sargento levantou nos estribos e virou para trás, para seus homens. — Ogden, Spaulding! — Eles se adiantaram. — Vão atrás daqueles garotos e levem eles até suas famílias. Descubram se o que ele falou sobre as suas provisões serem roubadas por tropas é verdade. Se for, descubra o número de pessoas nas famílias deles e se tem mais alguém na vizinhança sob as mesmas circunstâncias. Leve um relatório de volta para Aydindril imediatamente e providencie que eles recebam o que precisam para comer, para que passem o inverno.

Os dois homens fizeram uma saudação com um punho em cima do couro escuro e cota de malha sobre os corações e galoparam seguindo os rastros que conduziam para dentro da floresta. O Sargento virou para ela novamente. — As ordens de Lorde Rahl. — ele explicou. — estão seguindo para Aydindril?

— Sim, esperamos encontrar segurança lá, como os outros viajando para o norte.

— Então encontrarão, mas isso tem um preço. Vou dizer o mesmo que foi dito a todos os outros. Seja qual for sua terra natal anterior, agora estarão sujeitos a D’Hara. Sua fidelidade é exigida, junto com uma pequena parte do que ganham com seu trabalho, se desejarem entrar em território mantido por D’Hara.

Ela levantou uma sobrancelha. — Pareceria que o exército ainda está roubando do povo?

— Pode parecer para você, mas não para Lorde Rahl, e a palavra dele é lei. Todos pagam o mesmo para manter as tropas que foram encarregadas com a proteção de nossa liberdade. Se não quiserem pagar, estão livres para não buscar essa proteção e liberdade.

— Parece que Lorde Rahl está com as coisas sob controle.

O Sargento assentiu. — Ele é um mago poderoso.

Os ombros de Nathan balançaram com uma risada silenciosa.

Os olhos do Sargento estreitaram. — Do que ele está rindo, se ele deveria ser surdo e mudo?

— Oh, ele é, mas ele também é doente mental. — Ann caminhou na direção dos cavalos. Quando passou na frente do mago de ombros largos, bateu com um cotovelo em seu estômago. — Ele ri desse jeito nos momentos mais estranhos. — Ela levantou os olhos, com uma expressão zangada, enquanto Nathan tossia. — É possível que ele comece a babar daqui a pouco, se continuar assim.

Ann passou uma das mãos suavemente no flanco lustroso, dourado, poderoso, de Bella. Bella se agitou de prazer com o toque. A grande égua colocou a língua para fora; ela não gostava de nada mais do que se alguém fizesse um carinho nela.

— Você estava falando, Sargento, sobre como Lorde Rahl é um mago poderoso?

— Isso mesmo. Ele matou as criaturas que vocês verão em piques na frente do palácio.

— Criaturas?

— Ele as chama de Mriswith. Horríveis coisas escamosas que parecem lagartos. Mataram várias pessoas, mas o próprio Lorde Rahl cortou eles em pedaços.

Mriswith. Isso certamente não era boa notícia.

— Tem uma cidade perto, onde poderíamos encontrar comida e alojamento para passar a noite?

— Ten Oaks fica logo depois da próxima colina, talvez a duas milhas. Tem uma pequena hospedaria lá.

— E qual a distância até Aydindril?

Ele avaliou os quatro cavalos deles enquanto ela acariciava a orelha de Bella. — Com animais tão bons como esses, duvido que leve mais de sete ou oito dias.

— Obrigada, Sargento. É bom saber que tem soldados por perto caso tenha foras-da-lei na vizinhança.

Ele olhou para Nathan, observando sua forma alta, seu comprido cabelo branco que tocava os ombros, sua mandíbula forte raspada, e seus penetrantes olhos azuis escuros. Nathan era um homem belo cheio de vigor, independente do fato de que ele estivesse quase com mil anos de idade.

O Sargento olhou de volta para ela, claramente preferindo trocar olhares com uma mulher velha baixinha do que com Nathan. Mesmo com seu poder sufocado, Nathan exibia uma presença intimidadora. — Estamos procurando por alguém: o Sangue da Congregação.

— Sangue da Congregação? Quer dizer aqueles tolos pomposos de Nicobarese com capas vermelhas?

O Sargento balançou levemente as rédeas quando seu cavalo tentou andar para o lado. Outros dos vinte cavalos bateram com as patas na neve, procurando por grama, ou mordiscaram cheios de esperança os arbustos secos na beira da estrada, as caudas balançando preguiçosamente no ar frio do anoitecer. — São eles. Dois homens, um é o Lorde General da Congregação, outro oficial, e uma mulher.

Eles escaparam de Aydindril, e Lorde Rahl ordenou que eles fossem levados de volta. Temos homens por toda parte vasculhando os campos.

— Sinto muito, mas não vi sinal deles. O Lorde Rahl está na Fortaleza do Mago?

— Não, no Palácio das Confessoras.

Ann suspirou. — Isso é bom, pelo menos.

As sobrancelhas dele levantaram. — Porque isso é bom?

Ela não percebeu que tinha expressado seu alívio em voz alta. — Oh, bem, apenas estou com esperança de ver esse grande homem, e se ele ficar na Fortaleza, então eu não poderia. Ela é protegida por magia, ouvi dizer. Se ele sair em uma sacada no Palácio para cumprimentar o povo, posso conseguir ver ele.

— Bem, obrigada por sua ajuda, Sargento. Acho que é melhor irmos para Ten Oaks antes que fique muito escuro. Não quero que nenhum dos cavalos pise em um buraco e quebre uma perna.

O Sargento desejou boa noite para ela e conduziu sua coluna de homens subindo a estrada, para longe de Aydindril. Somente depois que eles estavam mais do que fora do alcance da voz, ela removeu o bloqueio da voz de Nathan. Era difícil manter esse tipo de controle durante longos períodos. Ann preparou-se para receber os inevitáveis insultos enquanto começava a juntar suas mochilas da neve.

— É melhor continuarmos. — ela falou para ele.

Nathan levantou com uma expressão arrogante. — Você daria ouro para ladrões? Você deveria ter...

— Eram apenas garotos, Nathan. Estavam famintos.

— Tentaram nos roubar!

Ann sorriu enquanto colocava uma mochila em cima de Bella. — Você sabe tão bem quanto eu que isso não aconteceria, mas dei a eles um pouco mais do que ouro. Não acredito que eles tentem isso de novo.

Ele grunhiu. — Espero que o feitiço que você colocou nisso queime os dedos deles até os ossos.

— Me ajude com nossas coisas. Quero chegar até a hospedaria. Havia uma mensagem no livro de jornada.

Nathan ficou sem voz por um instante. — Ela já teve tempo bastante. Nós deixamos pistas o bastante para que uma criança de dez anos já tivesse descoberto muito antes. Fizemos tudo menos deixar um bilhete colado no vestido dela que dizia, A propósito, a Prelada e o Profeta não estão mortos de verdade, sua tola.

Ann apertou a correia do cinturão de Bella bem forte. — Tenho certeza que não foi tão fácil para ela como você faz parecer. Parece óbvio para nós apenas porque estávamos sabendo. Ela não tinha razão alguma para suspeitar. Verna descobriu; isso é tudo que importa.

Nathan respondeu com uma bufada alta antes de finalmente começar a ajudar juntando o resto das mochilas. — Bem, o que ela falou?

— Ainda não sei. Quando estivermos instalados para passar a noite vamos descobrir.

Nathan levantou um dedo na direção dela. — Faça aquele truque do surdo e mudo comigo novamente e vai viver para se arrepender.

Ela virou para ele com uma expressão de raiva. — E se encontrarmos alguém novamente e você começar a gritar que foi raptado por uma bruxa louca e mantido prisioneiro em uma coleira mágica, farei você ficar surdo e mudo de verdade!

Nathan bufou com mau humor quando voltou ao trabalho. Quando virou para o cavalo dele, ela viu ele sorrir de satisfação consigo mesmo.

Na hora que eles encontraram a hospedaria, e depois que deixaram seus cavalos com um garoto no estábulo lá atrás, as estrelas tinham aparecido e a pequena lua de inverno estava visível sobre uma montanha distante. A fumaça de lenha que se espalhava também carregava o aroma de cozido. Ela deu ao cavalariço uma moeda para carregar as coisas deles.

Ten Oaks era uma pequena comunidade, e a hospedaria tinha apenas uma dúzia de nativos em poucas mesas, a maioria bebendo e fumando cachimbos contando histórias de soldados que tinham visto, e rumores de alianças forjadas pelo novo Lorde Rahl, o qual nem todos tinham certeza de que estivesse realmente no comando de Aydindril, como ele proclamava. Outros pediam a eles que explicassem porque as tropas D'Haran repentinamente ficaram tão disciplinadas, se não fosse pelo fato de alguém finalmente ter ensinado a eles uma boa lição.

Nathan, usando botas altas, calças marrons, uma camisa branca com folheados abotoada até o pescoço, sobre o seu Rada'Han, uma camisa verde escura aberta, e uma pesada capa marrom escura que chegava quase até o chão, caminhou até o pequeno balcão montado diante de algumas garrafas e barris. Com um ar nobre, ele atirou a capa para trás, por cima de um ombro quando colocou uma das botas no rodapé de um balcão. Nathan adorava usar outras roupas além dos mantos negros que sempre usava no Palácio. Ele chamava isso de, trabalhar a importância.

O dono da hospedaria sorriu apenas depois que Nathan havia empurrado uma moeda de prata em sua direção e avisou que pelo alto preço do alojamento, era melhor que incluísse uma refeição. O dono da hospedaria encolheu os ombros e concordou.

Antes que ela percebesse, Nathan já estava contando uma história de que ele era um mercador viajando com sua patroa enquanto sua esposa estava em casa cuidando dos seus doze filhos. O homem queria saber com que tipo de mercadoria Nathan trabalhava. Nathan inclinou, chegando mais perto, baixou sua voz de comando, e piscou para o homem quando falou para ele que seria mais seguro se ele não soubesse.

O dono da hospedaria impressionado endireitou o corpo e entregou para Nathan uma caneca por conta da casa. Nathan bebeu em nome da hospedaria Ten Oaks, do dono da hospedaria, e dos clientes antes de seguir até as escadas, dizendo para o dono da hospedaria levar uma caneca para sua mulher quando levasse o cozido. Cada um dos olhos o seguiram, maravilhados com o impressionante estranho entre eles.

fechando bem os lábios, Ann jurou não se distrair novamente, dando tempo bastante para que Nathan inventasse a desculpa para que estivessem ali. Foi o livro de jornada que causou sua distração. Queria saber o que ele dizia, mas ela também estava preocupada com isso. Alguma coisa poderia facilmente ter dado errado, e uma das Irmãs do Escuro poderia ter o livro e ter descoberto que os dois ainda estavam vivos. Eles não podiam permitir isso. Ela pressionou os dedos sobre uma dor em seu estômago. Pelo que ela sabia, o Palácio dos Profetas já estava nas mãos do inimigo.

O quarto era pequeno, mas limpo, com duas camas estreitas, um suporte pintado de branco segurando uma pia de metal e uma jarra lascada, e uma mesa quadrada sobre a qual Nathan colocou uma lamparina a óleo que pegou do suporte ao lado da porta. O dono da hospedaria não estava muito longe, lá atrás, com tigelas de carneiro, cozido e pão marrom, seguido pelo cavalariço com as mochilas deles. Depois que os dois foram embora e fecharam a porta, Ann sentou e arrastou sua cadeira até a mesa.

— Bem... — Nathan falou. — você não vai me dar um sermão?

— Não, Nathan, estou cansada.

Ele fez um movimento com a mão. — Pensei apenas que fosse justo, considerando aquela história de surdo e mudo. — A expressão dele ficou sombria.

— Estou preso nessa coleira durante todos os anos de minha vida a não ser os quatro primeiros. Como você se sentiria, sendo uma prisioneira durante toda sua vida?

Ann pensou consigo mesma que, sendo guardiã dele, ela também era uma prisioneira. Encarou o olhar dele.

— Embora você nunca acredite nisso quando eu digo, Nathan, vou falar mais uma vez que gostaria que não fosse assim. Não tenho nenhum prazer em manter uma das crianças do Criador prisioneira sem cometer crime algum desde o seu nascimento.

Depois de um longo silêncio, ele desviou o olhar. Suas mãos cruzaram atrás das costas, Nathan caminhou pelo quarto, fazendo uma avaliação crítica dele. As botas dele faziam barulho no chão de tábuas. — Nada com o que eu esteja acostumado. — ele falou para ninguém em particular. Ann afastou a tigela de cozido e colocou o livro de jornada em cima da mesa, olhando para a capa de couro negro por algum tempo antes de finalmente abrir e folhear as páginas até o local da escrita.

— Primeiro você deve dizer a razão pela qual me escolheu da última vez. Lembro de cada palavra. Um erro, e esse livro de jornada vai alimentar o fogo.

— Ora, ora, ora. — ela murmurou. — Ela está sendo bastante cautelosa. Bom. — Nathan espiou por cima do ombro de Ann enquanto ela apontava. — Veja os traços, como ela apertou com força. Verna parece estar zangada.

Ann olhou fixamente para as palavras. Ela sabia o que Verna queria dizer.

— Ela deve me odiar mesmo. — Ann sussurrou enquanto as palavras na página ondulavam em seus olhos úmidos.

Nathan endireitou o corpo. — E daí? Eu odeio você, e parece que isso nunca lhe incomoda.

— Odeia, Nathan? Realmente me odeia?

A única resposta dele foi um grunhido. — Já falei que esse seu plano é loucura?

— Não desde o café da manhã.

— Bem, ele é, você sabe disso.

Ann ficou olhando para as palavras no livro de jornada. — Você trabalhou antes para influenciar qual ramificação na profecia deve ocorrer, Nathan, porque sabe o que pode no caminho errado, e também sabe o quanto as profecias são vulneráveis para corrupção.

— Que bem vai fazer para todos se você acabar morrendo com esse plano apressado? E eu junto com você! Eu gostaria de viver para ver os mil anos, você sabe. Vai fazer com que nós dois sejamos mortos.

Ann levantou da cadeira. Ela colocou uma das mãos suavemente no braço musculoso dele. — Então diga, Nathan, o que você faria. Conhece as profecias; conhece a ameaça. Foi você mesmo quem me avisou. Diga o que você faria, se dependesse de você.

Ele trocou um olhar com ela durante um momento. O fogo desapareceu dos olhos dele quando colocou uma grande mão em cima da mão dela. — O mesmo que você, Ann. É a nossa única chance. Mas isso não faz com que eu me sinta nem um pouco melhor conhecendo o perigo para você.

— Eu sei, Nathan. Eles estão lá? Estão em Aydindril?

— Um está. — ele falou tão suavemente quanto apertava a mão dela. — e o outro estará lá quando nós chegarmos; eu vi isso na profecia.

— Ann, esta era que está sobre nós possui um emaranhado de profecias. Guerra atrai profecias como o estrume atrai moscas. As ramificações vão em todas as direções. Cada uma delas deve ser tratada adequadamente. Se pegarmos o caminho errado em qualquer uma delas, caminhamos para o esquecimento. Pior, tem lacunas onde eu não sei o que deve ser feito.

Pior ainda, tem outros envolvidos que devem seguir a ramificação correta, e não temos nenhum controle sobre eles.

Ann não conseguiu encontrar palavras, e ao invés disso balançou a cabeça. Ela encostou na mesa e arrastou a cadeira para mais perto.

Nathan straddled the other chair and broke off a chunk of brown bread, chewing while he watched her draw the stylus from the spine of the journey book.

Ann escreveu, — Amanhã a noite, quando a lua estiver alta, vá até o lugar onde você encontrou isso. — Ela fechou o livro e colocou ele de volta em um bolso no vestido cinzento.

Nathan falou com a boca cheia de pão. — Espero que ela seja esperta o bastante para justificar sua fé.

— Nós a treinamos o melhor que pudemos, Nathan; mandamos ela para longe do Palácio por vinte anos para que pudesse aprender a usar se bom senso. Fizemos tudo que pudemos. Agora devemos ter fé nela. — Ann beijou o dedo anelar onde o anel da Prelada estivera durante todos esses anos. — Querido Criador, dê forças a ela também.

Nathan soprou em cima de uma colher cheia de cozido quente. — Eu quero uma espada. — ele anunciou.

A sobrancelha dela levantou. — Você é um mago com total controle do seu dom. Em nome da Criação, porque poderia querer uma espada?

Ele olhou a observou como se ela fosse uma tola. — Porque eu ficaria muito bem com uma espada na cintura.

 

Por favor? — Cathryn sussurrou. Richard olhou dentro dos suaves olhos castanhos enquanto tocava gentilmente o lado do rosto radiante dela, afastando um cacho de cabelo negro da bochecha dela. Quando eles olhavam dentro dos olhos um do outro, era quase impossível para ele afastar os olhos a não ser que ela o fizesse primeiro. Ele estava tendo essa dificuldade agora. A mão dela na cintura dele enviou calorosas sensações de desejo através dele. Ele lutou desesperadamente para colocar uma imagem de Kahlan em sua mente para resistir a compulsão de tomar em seus braços e dizer, sim. O corpo dele estava ardendo de vontade para fazer isso.

— Estou cansado. — ele mentiu. Dormir era a última coisa que ele queria. — Foi um longo dia. Amanhã estaremos juntos novamente.

— Mas eu quero...

Ele tocou nos lábios dela para fazer ela ficar em silêncio. Sabia que se escutasse aquelas palavras dela outra vez, seria demais. A oferta implícita dos lábios dela enquanto eles sugavam a ponta do dedo dele com um beijo quente foi quase impossível de resistir assim como o claro convite de suas palavras. no nevoeiro em sua mente, ele mal conseguia formar pensamentos coerentes.

Conseguiu formar um: Queridos espíritos, me ajudem. Me forneçam força. Meu coração pertence a Kahlan.

— Amanhã. — ele conseguiu dizer.

— Você falou isso ontem, e levou horas para encontrar você. — ela sussurrou quando beijou a orelha dele.

Richard estivera usando a capa de Mriswith para ficar invisível. Era apenas um pouco mais fácil resistir quando ela não podia apelar para ele diretamente, mas isso apenas atrasou o inevitável. Quando viu o desespero dela para encontrá-lo, não conseguiu suportar ver ela nervosa enquanto procurava, e acabaria falando com ela.

Quando a mão dela subiu na direção do pescoço dele, ele a segurou e deu um rápido beijo nela. — Durma bem, Cathryn. Vejo você de manhã.

Richard lançou um olhar para Egan que estava parada a dez pés de distância, com as costas voltadas para a parede e seus braços cruzados enquanto olhava fixamente para frente, como se não enxergasse nada. Além dali, nas sombras no final do corredor, Berdine também montava guarda.

Ela não fingiu não estar vendo ele na porta com Cathryn colada nele. Ela observava sem mostrar emoção. Seus outros guardas, Ulic, Cara, e Raina estavam dormindo.

Richard deslizou uma das mãos por trás das costas e girou a maçaneta da porta. O peso dele contra a porta fez com que ela abrisse repentinamente, e quando isso aconteceu ele deu um passo para o lado e Cathryn tropeçou para dentro do quarto dela. Ela evitou a queda segurando na mão dele. Olhando dentro dos olhos dele, ela beijou sua mão. Os joelhos dele quase dobraram.

Sabendo que não poderia resistir muito mais tempo se não se afastasse da visão dela, ele afastou a mão. Estava criando desculpas para si mesmo mentalmente sobre porque estaria tudo bem se entregar. Que mal poderia fazer? Porque isso era tão ruim? O que ele pensava que poderia ser tão errado?

Parecia haver um grosso cobertor sobre os seus pensamentos, sufocando-os antes que conseguissem chegar até a superfície.

Vozes em sua cabeça tentavam racionalizar porque ele deveria parar com essa tola resistência e simplesmente aproveitar os encantos dessa criatura maravilhosa que estava deixando óbvio que o queria, na verdade estava implorando. Sentiu um nó em sua garganta com seu desejo por ela. Estava quase chorando por causa do esforço para encontrar razões para se conter.

O pensamento dele mergulhou em um torpor mental. Parte dele, a maior parte, lutava desesperadamente para fazê-lo abandonar sua resistência, mas uma pequena e obscura parte de sua mente lutava ferozmente, tentando mantê-lo afastado, tentando avisá-lo de algo estava errado. Isso não fazia sentido algum. O que poderia estar errado? Porque isso era errado? O que era isso nele que estava tentando fazer ele parar?

Queridos espíritos, me ajudem.

Uma imagem de Kahlan surgiu para ele, e viu aquele sorriso, aquele sorriso que ela não dava para ninguém mais além dele. Viu os lábios dela se movendo. Ela disse que o amava.

— Preciso ficar sozinha com você, Richard. — Cathryn falou. — Não posso esperar mais.

— Boa noite, Cathryn. Durma bem. Vejo você de manhã. — Ele fechou a porta.

Ofegando de exaustão pelo esforço, ele fechou a porta do quarto dele depois que entrou. Sua camisa estava molhada de suor. Com um braço fraco, ele se esticou e empurrou o trinco da porta. Ele quebrou quando fechou. Ficou olhando para o suporte do trinco enquanto ele balançava, pendurado por um parafuso. Na luz fraca que vinha do fogo na lareira, ele não conseguia enxergar os outros parafusos nos tapetes enfeitados.

Ele estava tão quente que mal conseguia respirar. Richard passou o boldrié por cima da cabeça e jogou sua espada no chão no caminho até a janela. Com o esforço de um homem que se afogava, ele girou o trinco e abriu a janela, arfando como se não conseguisse recuperar o fôlego. O ar frio encheu seus pulmões, mas fez pouco para esfriar ele.

O quarto dele era no andar térreo, e por um momento pensou em pular o peitoril da janela e rolar na neve.

Decidiu não fazer isso, e escolheu deixar o ar frio soprar sobre ele enquanto olhava para fora dentro da noite, para o jardim isolado banhado pela luz do luar.

Alguma coisa estava errada, mas não conseguia definir o que era. Queria ficar com Cathryn, mas alguma coisa dentro dele estava lutando contra isso. Por quê? Não conseguia entender porque ele poderia querer combater o seu desejo por ela.

Pensou em Kahlan novamente. Era por isso.

Mas se ele amava Kahlan, porque teria um desejo tão intenso por Cathryn? Conseguia pensar em pouca coisa além dela. Estava sentindo dificuldade em manter a lembrança de Kahlan em sua cabeça, Richard se arrastou até a cama. Instintivamente ele sabia que havia atingido o limite de sua habilidade de resistir ao seu desejo por Cathryn. Sentou na beira da cama, no meio de um nevoeiro enquanto sua cabeça girava.

A porta abriu. Richard levantou os olhos. Era ela. Estava vestindo alguma coisa tão fina que a fraca luz no corredor permitia ver a silhueta do seu corpo. Ela cruzou o quarto na direção dele.

— Richard, por favor. — ela falou com aquela voz suave que o paralisou. — Não me mande embora dessa vez. Por favor. Vou morrer se não ficar com você agora mesmo.

Morrer? Queridos espíritos, ele não queria que ela morresse. Richard quase explodiu em lágrimas com o simples pensamento.

Ela deslizou chegando mais perto, até a luz do fogo. A camisola macia chegava até o chão, mas não escondia o que estava por baixo dela, meramente transformando seu corpo em uma visão da beleza além de tudo que ele poderia ter imaginado. A visão acendeu um fogo nele. Não conseguia pensar em mais nada a não ser o que estava vendo, e quanto ele a queria. Se não a tivesse, ele morreria por causa do desejo não realizado.

Quando se aproximou dele, com uma das mãos atrás das costas, ela sorriu enquanto acariciava o rosto dele com a outra.

Podia sentir o calor da carne dela. Ela se inclinou e esfregou os lábios nos dele. Ele pensou que morreria de prazer. A mão dela foi até o peito dele.

— Deite-se, meu amor. — Cathryn sussurrou enquanto empurrava ele para trás.

Ele caiu de costas na cama, olhando para ela através da entorpecedora agonia do desejo.

Richard pensou em Kahlan. Ele estava impotente. Richard lembrou vagamente de algumas das coisas que Nathan tinha falado para ele sobre usar o seu dom: estava dentro dele, e a raiva poderia trazê-lo para fora. Mas ele não sentia raiva alguma. Através do instinto, era como um mago guerreiro usava seu dom, Nathan falou para ele. Lembrou de entregar-se para aquele instinto quando estava prestes a morrer nas mãos de Liliana, a Irmã do Escuro. Tinha liberado o poder interior. Havia deixado seu uso instintivo da necessidade dar vida ao seu poder.

Cathryn colocou um joelho sobre a cama. — Finalmente, meu amor.

Com indefeso abandono, Richard entregou-se para aquele centro de calmaria, o instinto além do véu dentro de sua mente. Deixou-se cair dentro do vácuo escuro. Ele cedeu o controle de suas ações do que deveria ser feito. Estava perdido de qualquer maneira.

A clareza acendeu, afastando o nevoeiro em ondas ardentes.

Levantou os olhos para ver uma mulher por quem não tinha paixão alguma. Com fria lucidez, ele entendeu. Richard havia sido tocado por magia antes; conhecia a sensação. A mortalha foi despedaçada. Havia magia em volta dessa mulher. Com o desaparecimento do nevoeiro, podia sentir os dedos frios dela em sua mente. Mas por quê?

Então ele a faca dela.

A lâmina cintilou na luz do fogo quando ela a levantou acima da cabeça. Com uma súbita explosão de força, ele se jogou no chão enquanto Cathryn enterrava a faca na cama. Levantou-a novamente quando seguiu na direção dele.

Agora era tarde demais para ela. Ele dobrou as pernas para chutá-la para trás, mas no meio de uma confusão de sensações e percepções, Richard sentiu a presença de um Mriswith, e quase ao mesmo tempo, viu ele se materializar enquanto saltava através do ar acima dele.

E então o mundo ficou vermelho. Sentiu o sangue quente espirrar no seu rosto quando viu a camisola cortada; partes cortadas do material quase transparente flutuaram como se fossem sopradas pelo vento. As três lâminas quase rasgaram Cathryn ao meio. O Mriswith caiu no chão mais adiante.

Richard rolou saindo debaixo dela e levantou enquanto ela caia para trás, as entranhas dela espalhando-se pelo tapete. Os terríveis esforços ofegantes dela para respirar morreram.

Richard agachou, seus pés e mãos afastados, encarando o Mriswith do outro lado dela. O Mriswith tinha uma faca de três lâminas em cada mão. Entre eles, Cathryn se contorcia na agonia da morte.

O Mriswith deu um passo para trás na direção da janela, seus olhos brilhantes concentrados em Richard. Deu outro passo, jogando sua capa negra por cima de um braço escamoso enquanto seus olhos varriam o quarto.

Richard mergulhou tentando pegar sua espada. Ele parou quando o Mriswith plantou um pé sobre a bainha, segurando ela no chão.

— Não. — ele sibilou. — Ela iria matarrrrr você.

— Do mesmo jeito que você!

— Não. Eu protejooooo você, irmão de pele.

Espantado, Richard ficou olhando para a forma escura. O Mriswith jogou a capa em volta de si e mergulhou pela janela dentro da noite, desaparecendo quando saltou. Richard pulou na direção da janela para agarrá-lo. Seus braços agarraram apenas o ar quando atingiu o peitoril da janela, ficando parcialmente pendurado para fora. O Mriswith se foi. Não conseguia mais sentir a presença dele em sua mente.

no vazio deixado pela partida do Mriswith, a mente de Richard se encheu com a imagem de Cathryn se contorcendo em uma massa formada por suas entranhas. Ele vomitou pela janela.

Quando suas ondas de náusea acabaram, e sua cabeça parou de girar, ele voltou até onde ela estava deitada para se ajoelhar ao seu lado. Agradeceu aos espíritos que ela estivesse morta, e não estivesse mais sofrendo. Mesmo que ela tivesse tentado matá-lo, não conseguia suportar vê-la sofrendo nos espasmos de morte.

Olhou para o rosto dela. Não conseguia imaginar os sentimos que teve por ela que agora lembrava apenas vagamente. Era apenas uma mulher comum. Mas estava coberta por magia. Foi algum tipo de feitiço que havia dominado sua razão. Tinha recuperado os sentidos em cima da hora. Seu dom quebrou o feitiço.

A parte superior da camisola cortada dela estava enrolada no pescoço. Uma sensação fria que lhe causou arrepios atraiu sua atenção para os seios dela. Os olhos de Richard estreitaram, e ele se aproximou, observando. Esticou o braço e tocou o mamilo direito dela. Tocou o esquerdo. A sensação não era a mesma.

Levou uma lamparina até o fogo e acendeu-a com um pedaço de madeira comprido. Voltou até o corpo e segurou a lamparina perto do seio esquerdo dela. Richard molhou o dedo na língua e esfregou o mamilo liso. Ele saiu.

Com a camisola dela, limpou a tinta do seio dela, para deixar um volume de pele lisa.

Cathryn não tinha o mamilo esquerdo.

O centro de calmaria dentro dele irradiou uma aura de compreensão. Isso estava conectado com o feitiço que ela possuía sobre ele. Não sabia como, mas estava.

De repente Richard sentou sobre os cotovelos. Ficou sentado um momento, de olhos arregalados, e então levantou rapidamente, correndo até a porta. Ele parou. Porque deveria estar pensando isso? Tinha que estar errado.

E se não estivesse?

Abriu a porta apenas o bastante para deslizar para fora e então fechou-a atrás de si. Egan olhou na direção dele, seus braços ainda cruzados, e retornou à sua posição. Richard olhou descendo o corredor, para Berdine, na roupa de couro vermelha dela, encostada na parede. Ela estava observando ele.

Richard curvou o dedo, fazendo um sinal para que ela se aproximasse dele. Ela afastou da parede e então caminhou subindo o corredor. Berdine olhou para a porta quando parou diante dele. Ela fez uma careta para ele.

— A Duquesa deseja ficar com você. Volte para ela.

— Vá buscar Cara e Raina, e as três voltem aqui. — A voz dele assumiu o calor de seu olhar furioso. — Agora mesmo.

— Tem alguma coisa...

— Agora mesmo!

Ela olhou para a porta novamente e então se afastou sem falar mais nenhuma palavra. Quando ela desapareceu dobrando no final do corredor, Richard virou para Egan, que estava olhando para ele outra vez.

— Porque deixou ela entrar no meu quarto?

Egan franziu a testa, confuso. Levantou uma das mãos na direção da porta. — Bem... pelo modo como ela está... vestida.

— Ela disse que você a queria esta noite, e que você falou para ela vestir aquilo e encontrar com você.— Egan limpou a garganta. — Era óbvio porque você a queria. Pensei que ficaria com raiva se eu a impedisse de encontrar com você depois que falou para ela procurar você durante a noite.

Richard girou a maçaneta e abriu a porta. Esticou o braço convidando ele a entrar. Egan hesitou e então entrou.

Ficou rígido quando viu os restos dela. — Lorde Rahl, sinto muito. Não vi nenhum Mriswith. Teria impedido ele se tivesse visto, ou pelo menos tentaria avisá-lo, eu juro. — Ele grunhiu. — Queridos espíritos, que jeito de morrer. Lorde Rahl.

— Eu falhei com você.

— Olhe na mão dela, Egan.

Ele moveu os olhos pelo braço dela, para ver a faca ainda em seu punho. — Mas o que...?

— Não pedi que ela viesse até mim. Ela entrou no meu quarto para me matar.

Os olhos de Egan desviaram. Ele conhecia claramente as implicações. Qualquer Lorde Rahl anterior executaria um guarda por tal falha.

— Ela também me enganou, Egan. Não é culpa sua. Mas nunca mais deixe uma mulher, que não seja minha futura esposa, entrar no meu quarto novamente. Entendeu? Se uma mulher vier até meu quarto, deve pedir minha permissão para deixar ela entrar, não importa o que aconteça.

Ele bateu com um punho sobre o coração. — Sim, Lorde Rahl.

— Egan, por favor enrole-a naquele tapete e tire ela daqui. Coloque-a no quarto dela, por enquanto. Volte ao seu posto no corredor, e quando as três Mord-Sith voltarem, mande elas entrarem.

Sem questionar as instruções, Egan foi cuidar da tarefa. Com sua força e tamanho, era apenas um pequeno esforço.

Depois que tinha inspecionado a tranca quebrada da porta, Richard puxou uma cadeira da mesa e virou-a, colocando-a perto da lareira, e sentou de frente para a porta. Esperava que estivesse errado. O que ele faria se não estivesse? Ficou sentado no silêncio, escutando o estalar do fogo, e esperou pelas três mulheres.

— Entrem. — ele falou em resposta para a batida.

Cara entrou, seguida por Raina, ambas usando o couro marrom, com Berdine logo atrás. As duas primeiras olharam as redor casualmente enquanto cruzavam o quarto.

Berdine varreu o quarto fazendo uma busca mais concentrada. As três pararam na frente dele.

— Sim, Lorde Rahl? — Cara perguntou sem emoção. — Deseja alguma coisa?

Richard cruzou os braços. — Mostrem os seios. Todas as três.

A boca de Cara abriu para dizer alguma coisa, mas ela fechou, apertando com força a mandíbula, e começou a desabotoar os botões que subiam ao lado das costelas dela. Raina olhou para Cara e viu que ela estava fazendo o que foi ordenado. Relutante, no início, ela começou a desabotoar a roupa também. Berdine observou as outras duas. Lentamente, ela começou a desabotoar o lado de sua roupa de couro vermelho.

Quando acabou, Cara segurou a parte superior no lado da roupa de couro, mas não abriu. Um ressentimento ardente dominava sua expressão. Richard ajeitou a espada que estava fora da bainha no colo e cruzou as pernas.

— Estou esperando. — ele falou.

Cara deu um último suspiro de resignação e abriu a frente da roupa de couro. Na luz bruxuleante que vinha do fogo recentemente alimentado na lareira, Richard estudou cada mamilo e a sombra ondulante lançada por cada bico. Os dois tinham os contornos de carne apropriados, e não aquele perfil de tinta colocado ali para imitar.

Ele desviou os olhos para Raina em um comando silencioso. Não disse nada enquanto esperava. Podia ver que ela lutava para ficar em silêncio, e ao mesmo tempo lutava para decidir o que fazer. Ela apertou os lábios de indignação, mas finalmente levantou o braço e abriu o couro. Richard fez a mesma avaliação cuidadosa nos seios dela. Os mamilos dela também eram verdadeiras.

Os olhos dele desviaram para Berdine. Foi ela quem ameaçou ele. Foi ela que levantou o Agiel para ele.

Não foi humilhação, mas raiva que deixou o rosto dela tão vermelho quanto sua roupa. — Você disse que não precisávamos fazer isso! Você prometeu! Disse que não iria...

— Mostre.

Cara e Raina se agitaram com desconforto, não gostando daquilo nem um pouco, com se imaginassem que ele estava escolhendo uma delas para passar a noite, mas ao mesmo tempo nenhuma delas estava disposta a fazer qualquer coisa que fosse contra os desejos de Lorde Rahl. Ainda assim, Berdine não se moveu.

Ele endureceu o olhar. — Isso é uma ordem. Você fez um juramento de me obedecer. Faça como eu digo.

Lágrimas de raiva desceram dos olhos dela. Ela levantou o braço e abriu a roupa.

Ela só tinha um mamilo. O seio esquerdo era liso. O peito dela pulsava de raiva.

As outras duas olharam fixamente para o seio esquerdo liso dela com grande espanto. Pelas expressões em seus rostos, Richard sabia que já tinham visto os seios dela. Quando o Agiel delas repentinamente levantaram em suas mãos, ele soube que isso não era o que elas esperavam ver dessa vez.

Richard levantou, falando para Cara e Raina. — Perdoem-me por fazer isso com vocês. — Fez um gesto pedindo que elas fechassem as roupas. Berdine ficou tremendo de raiva, parada no lugar, enquanto as outras duas começaram a abotoar o lado das roupas.

— O que está acontecendo? — Cara perguntou a ele, seus olhos ameaçadores em Berdine o tempo todo em que ela cuidava dos botões apertados.

— Vou contar a vocês mais tarde. Vocês duas podem ir embora.

— Não vamos a lugar algum. — Raina falou com um tom sério enquanto seus olhos também permaneciam em Berdine.

— Sim, vocês irão. — Richard apontou na direção da porta. Levantou um dedo para Berdine. — Você fica aqui mesmo.

Cara deu um passo chegando mais perto dele de modo protetor. — Não vamos...

— Não discuta comigo, não estou com paciência! Fora!

Cara e Raina recuaram, surpresas. Com um suspiro final furioso, Cara fez sinal para Raina e elas deixaram o quarto, fechando a porta atrás delas.

O Agiel de Berdine apareceu em sua mão. — O que fez com ela?

— Quem fez isso com você, Berdine? — ele falou com uma voz gentil.

Ela deu passo, chegando mais perto. — O que fez com ela!

Richard, agora com sua mente clara, podia sentir o feitiço em volta dela quando se aproximou dele. Podia sentir a inconfundível vibração da magia, sua desconfortável sensação de formigamento em suas entranhas. Essa não era magia benevolente.

Nos olhos dela, ele podia ver mais do que magia; podia ver a fúria de uma Mord-Sith sendo liberada.

— Ela morreu tentando me matar.

— Sabia que deveria ter feito isso eu mesma. — Ela balançou a cabeça com desgosto. — Ajoelhe-se. — ela ordenou com dentes cerrados.

— Berdine, eu não...

Ela golpeou com o Agiel, acertando ele no ombro, jogando ele para trás. — Não ouse falar comigo usando meu nome!

Ela foi mais rápida do que ele esperava. Ele arfou de dor enquanto segurava o ombro. Cada lembrança de um Agiel sendo usado contra ele surgiu fresca de maneira impressionante em sua mente.

De repente ele foi invadido pela dúvida. Não sabia se conseguiria fazer isso. Mas sua única alternativa era matá-la, e tinha jurado que não faria isso. A tortura ardente no osso espalhando-se pelo ombro fez a determinação dele fraquejar.

Berdine chegou mais perto. — Pegue sua espada.

Ele endureceu sua força de vontade quando ficou de pé outra vez. Berdine encostou o Agiel no ombro dele, forçando-o a ajoelhar.

Ele lutou para manter a concentração. Denna ensinou a suportar isso. Deveria fazer isso agora. Ele pegou a espada e levantou novamente.

— Tente usá-la contra mim. — Ela ordenou.

Richard olhou nos frios olhos azuis dela, combatendo a pontada de pânico dentro de sua alma. — Não. — Atirou a espada em cima da cama. — Eu sou Lorde Rahl. Você está ligada a mim.

Ela gritou de fúria quando mergulhou o Agiel no estômago dele. O quarto girou enquanto ele percebia que estava deitado sobre as costas.

Sem fôlego, ele se esforçou outra vez para ficar em pé quando ela deu o comando.

— Use a sua faca! Lute comigo!

Com os dedos trêmulos, Richard pegou sua faca do cinto e segurou-a com o cabo voltado para ela. — Não. Mate-me, se é isso que você realmente quer.

Ela arrancou a faca da mão dele. — Você deixa isso fácil para mim. Pretendia fazer você sofrer, mas a sua morte é tudo que foi exigido.

Richard, as entranhas em agonia com a lenta dor ardente, usou toda sua força para estufar o peito. Ele apontou. — Aqui está meu coração, Berdine. O coração do Lorde Rahl.

— O coração do Lorde Rahl ao qual você está ligada. — Ele bateu no peito outra vez. — Acerte com a faca aqui se quer me matar.

Ela mostrou um sorriso repulsivo. — Certo. Terá seu desejo atendido.

— Não, não o meu desejo. O seu. Não quero que você me mate.

Ela hesitou. Sua sobrancelha levantou. — Proteja-se.

— Não, Berdine. Se é isso que você quer, então você deve escolher.

— Lute comigo! — Ela bateu no rosto dele com o Agiel.

Parecia que sua mandíbula foi despedaçada e todos os seus dentes arrancados. A dor atingiu dentro de seu ouvido, quase cegando-o. Arfando, com suor frio, ele endireitou o corpo.

— Berdine, tem duas magias sobre você. Uma é a sua ligação comigo, a outra é a que foi colocada quando arrancaram seu mamilo. Não pode continuar a carregar as duas. Uma tem que ser quebrada. Eu sou o seu Lorde Rahl. Você está ligada a mim. O único modo para você conseguir me matar é quebrando essa ligação. Minha vida está nas suas mãos.

Ela pulou nele. Ele sentiu a cabeça bater no chão. Berdine estava em cima dele, gritando de fúria.

— Lute comigo, seu bastardo! — Ela golpeou o peito dele com uma das mãos enquanto segurava a faca levantada na outra. Lágrimas desciam dos seus olhos. — Lute comigo! Lute comigo! Lute comigo!

— Não. Se você quer me matar, então faça por sua própria vontade.

— Lute comigo! — Ela bateu no rosto dele. — Posso matá-lo se não lutar comigo! Defenda-se!

Richard envolveu-a nos braços e apertou-a contra o peito. Ele empurrou os calcanhares contra o tapete e se empurrou escorregando para trás, levando-a com ele enquanto sentava encostado na cama.

— Berdine, assim como você está ligada a mim, eu a protejo. Não vou deixar você morrer assim. Quero você viva. Quero você como minha protetora.

— Não! — ela gritou. — Devo matar você! Tem que lutar comigo para que eu consiga! Não posso fazer isso a não ser que você tente me matar! Você tem que lutar!

Chorando com furiosa frustração, ela encostou a faca na garganta dele. Richard não fez nada para impedir.

Ele passou a mão pelo cabelo castanho dela. — Berdine, jurei lutar para proteger aqueles que querem viver livres. Essa é minha ligação com você. Não farei nada para machucá-la. Sei que não quer me matar; jurou pela sua vida me proteger.

— Vou matar você! Eu vou! Vou matar você!

— Acredito em você, Berdine, em seu juramento para mim. Coloco minha vida em sua palavra e na sua ligação.

Ela arfou com fortes gemidos enquanto olhava nos olhos dele. Tremia enquanto chorava incontrolavelmente. Richard não fez nenhum movimento contra a lâmina em sua garganta.

— Então você deve me matar. — ela gritou. — Por favor... Não consigo mais suportar isso. Por favor... me mate.

— Nunca farei nada para ferir você, Berdine. Dei a você sua liberdade. Você é responsável por si mesma.

Berdine soltou um longo gemido de sofrimento e então jogou a faca no chão. Desabou encostando nele, jogando os braços em volta do pescoço dele.

— Oh, Lorde Rahl. — ela soluçou. — Me perdoe. Me perdoe. Oh, queridos espíritos, o que eu fiz?

— Você testou sua ligação. — ela sussurrou enquanto ele a segurava.

— Eles me feriram. — ela chorou. — Eles me feriram tanto. Nada nunca machucou tanto assim. Dói tanto lutar contra isso agora.

Ele abraçou-a com força. — Eu sei, mas deve lutar.

Ela colocou uma das mãos no peito dele e empurrou-o para trás. — Não consigo. — Richard pensou nunca ter visto ninguém com tanta agonia. — Por favor, Lorde Rahl. Me mate. Não consigo suportar a dor. Eu imploro, por favor, me mate.

Richard, com forte empatia pelo sofrimento dela, puxou-a de volta contra o peito e abraçou-a, acariciando sua cabeça, tentando confortá-la. Não fez bem algum; ela apenas chorou com mais força.

Ele encostou as costas dela na cama enquanto ela tremia e chorava. Sem pensar no que estava fazendo, ou ao menos entender a razão, ele colocou a mão sobre o seio esquerdo dela.

Richard buscou o centro de calmaria, o lugar sem pensamentos, a fonte de paz interior, e cobriu-se com o instinto. Sentiu a dor abrasadora fluindo através dele. A dor dela. Sentiu o que havia sido feito a ela, e o que a magia estava fazendo com ela agora. Como tinha feito com a magia do Agiel, ele suportou aquilo.

Em sua empatia, sentiu o tormento da vida dela, a tortura de se tornar uma Mord-Sith, e a angústia do eu anterior perdido dela. Os olhos dele fecharam, absorveu isso dentro dele. Embora não enxergasse os eventos envolvidos, ele compreendeu a trilha de cicatrizes que eles deixaram em sua alma. Endureceu sua força de vontade para suportar o sofrimento. Ficou firme, uma rocha, em uma torrente de dor que fluía dentro de sua própria alma.

Ele foi essa rocha para ela. Deixou sua consideração por esta inocente, essa vítima companheira do sofrimento, espalhar-se dentro dela.

Sem compreender totalmente as sensações que estava sentindo, deixou seu instinto guiá-lo. Sentiu a si mesmo absorvendo o sofrimento dela para que ela não tivesse que suportá-lo, para que pudesse ajudá-la, e ao mesmo tempo ele sentiu o calor interior fluindo para fora, através de sua mão sobre a carne dela. Através daquela mão pareceu que estava conectado com a centelha de vida dela, com sua alma.

O choro de Berdine diminuiu, sua respiração se equilibrou, e seus músculos ficaram relaxados quando ela encostou na cama.

Richard sentiu a dor que havia entrado nele, vindo dela, começar a se dissipar. Apenas então ele percebeu que estava prendendo o fôlego com a agonia daquilo, e respirou profundamente.

O calor fluindo de dentro dele começou a desaparecer também, e finalmente se foi. Richard retirou a mão, e afastou o cabelo dela do rosto. Os olhos azuis dela abriram, seu olhar estupefato encontrando com o dele.

Os dois olharam para baixo. Ela estava completa novamente.

— Sou eu mesma outra vez. — ela sussurrou. — Sinto como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo.

Richard levantou o couro vermelho por cima dos seios dela, cobrindo-a. — Eu também.

— Nunca houve um Lorde Rahl como você. — ela falou, maravilhada. — Que os espíritos sejam louvados, nunca houve.

— Verdade maior nunca foi dita. — uma voz atrás dele falou.

Richard virou para ver os rostos das outras duas mulheres ajoelhadas atrás dele.

— Você está bem, Berdine? — Cara perguntou.

Berdine, ainda parecendo um pouco impressionada, assentiu. — Sou eu mesma outra vez.

Nenhum deles estava tão surpreso quanto Richard.

— Poderia ter matado ela. — Cara disse. — Se tivesse tentado usar sua espada ela teria sua magia, mas poderia ter usado sua faca. Para você, isso teria sido fácil. Não precisava sofrer com o Agiel dela.

— Simplesmente poderia matar ela.

Richard assentiu. — Eu sei. Mas essa dor teria sido pior.

Berdine jogou o Agiel no chão diante dele. — Eu entrego isso a você, Lorde Rahl.

As outras duas removeram as correntes de ouro das mãos e jogaram o Agiel no chão junto com o de Berdine.

— Eu também entrego o meu para você, Lorde Rahl. — falou Cara.

— E eu, Lorde Rahl.

Richard olhou fixamente para os bastões no chão diante dele. Pensou em sua espada, e o quanto odiava as coisas feitas com ela, o quanto odiava a matança feito com ela, e a matança que sabia que faria novamente. Mas ainda não podia desistir da espada.

— Isso significa mais para mim do que vocês podem imaginar. — ele disse, incapaz de encarar os olhos delas. — Terem feito isso é o que importa. Isso prova seus corações e sua ligação. Me perdoem, todas vocês, mas devo pedir que continuem com eles por enquanto. — Ele entregou de volta o Agiel delas. — Quando isso acabar, quando estivermos livres da ameaça, então todos poderemos desistir dos fantasmas que nos assombram, mas por enquanto devemos lutar por aqueles que contam conosco. Nossas armas, terríveis como sejam, nos permitem continuar a batalha.

Cara colocou suavemente uma das mãos no ombro dele. — Nós entendemos, Lorde Rahl. Será como você diz. Quando estiver acabado, poderemos ser livres não apenas daqueles inimigos de fora, mas dos interiores também.

Richard assentiu. — Até lá, devemos ser fortes. Devemos ser o Vento da Morte.

No silêncio, Richard imaginou o que os Mriswith estavam fazendo em Aydindril. Pensou naquele que matou Cathryn. Estava protegendo ele, ele disse. Protegendo ele? Impossível.

Porém, enquanto pensava sobre isso, na verdade não conseguia lembrar de um Mriswith atacar ele, pessoalmente. Lembrou do primeiro ataque, do lado de fora do Palácio das Confessoras, com Gratch. Gratch atacou eles, e Richard ajudou seu amigo. Estavam querendo matar, olhos verdes, como chamaram o gar, mas não atacaram ele especificamente.

Aquele esta noite teve a melhor chance de todas. Richard estava sem a sua espada. Mesmo assim ele não o atacou, e ao invés disso fugiu sem lutar. Chamou ele de, irmão de pele. Somente imaginar o que aquilo poderia significar causava arrepios.

Richard coçou o pescoço distraidamente.

Cara esfregou um dedo na parte de trás do pescoço dele, onde ele acabou de coçar. — O que é isso?

— Não sei. Apenas um lugar que está sempre coçando.

 

Verna andava para frente e para trás indignada dentro do pequeno santuário. Como a Prelada ousa fazer isso? Verna havia dito para ela que precisava dizer as palavras para provar que realmente era ela, dizer novamente que considerava Verna uma Irmã de pouca expressão. Verna queria que a Prelada usasse aquelas palavras cruéis outra vez. Assim saberia que Verna tinha conhecimento de estar sendo usada, e era de pouco valor para o Palácio, aos olhos da Prelada.

Se ela seria usada, e seguiria as ordens da Prelada como uma Irmã fervorosa estava comprometida a fazer, seria conscientemente, dessa vez.

Verna estava cansada de chorar. Não iria pular sempre que aquele mulher arrogante tocasse um sino.

Verna não tinha devotado toda sua vida para ser uma Irmã da Luz, trabalhado tão duro, por tantos anos, para ser tratada com esse desrespeito.

A coisa que a deixava com mais raiva era que ela fez de novo. Verna havia dito para a Prelada que primeiro teria que dizer as palavras para provar que era realmente ela, ou Verna jogaria o Livro de Jornada no fogo. Verna estabeleceu regras: prove primeiro. Ao invés disso, a Prelada havia balançado o dedo, e Verna tinha pulado.

Deveria simplesmente jogar o Livro de Jornada no fogo, destruí-lo. Deixar que a Prelada tentasse usá-la então. Deixar ela ver que Verna estava farta de ser tratada como uma tola. Ver como ela gostava de ter seus desejos negligenciados. Isso serviria muito bem.

Era o que deveria ter feito, mas não fez. Ainda tinha o livro enfiado em seu cinto. Independente da mágoa, ainda era uma Irmã. Tinha que ter certeza. A Prelada ainda não havia provado a ela que estava realmente viva, e tinha o outro livro. Quando tivesse certeza, então Verna jogaria o livro no fogo.

Verna parou de andar e olhou por uma das janelas no final da cumeeira. A lua estava alta. Dessa vez, não haveria graça alguma se as instruções dela não fossem seguidas. Jurou que ou a Prelada faria como foi pedido, e provaria sua identidade, ou Verna queimaria o livro. Essa era a última chance da Prelada.

Verna tirou o castiçal do pequeno altar coberto com pano branco com costura de linha de ouro, e colocou ao lado da pequena mesa. A tigela perfurada, na qual Verna tinha encontrado o Livro de Jornada, estava sobre o pano branco no altar. Ao invés do Livro de Jornada, agora ela continha uma pequena chama. Se a Prelada falhasse novamente em fazer como foi instruída, o Livro de Jornada voltaria para dentro daquela tigela, para dentro do fogo.

Tirou o pequeno livro negro de sua bolsa no cinto e colocou sobre a pequena mesa enquanto puxava o banquinho de três pernas. Verna beijou o anel da Prelada no seu dedo anelar, deu um suspiro profundo, fez uma oração buscando a orientação do Criador, e abriu o livro.

Havia uma mensagem. Páginas, na verdade.

— Minha querida Verna, ela começava. Verna cerrou os lábios. Querida, com certeza.

— Minha querida Verna. Primeiro, a parte fácil. Pedi a você para ir até o Santuário por causa do perigo envolvido.

— Não podemos arriscar que outros leiam minhas mensagens, muito menos descubram que Nathan e eu estamos vivos. O Santuário é o único lugar em que eu poderia ter certeza que ninguém mais leria isso, e essa é a única razão pela qual eu falhei em seguir sua sensata precaução antes. Você, é claro, deveria esperar-me provar que sou eu mesma, e agora posso ter certeza que está sozinha e segura de ser descoberta, fornecerei a prova.

— De acordo com essa precaução de usar apenas o Santuário para comunicação, dever certificar-se de apagar todas as mensagens antes de deixar a proteção do Santuário.

— Antes que eu continue, a prova. Como você pediu, isso foi o que eu disse para você no meu escritório na primeira vez que a vi depois que voltou de sua jornada para buscar Richard:

— Escolhi você, Verna, porque estava bem abaixo na lista, e porque, entre todas, você não tem destaque algum. Duvidei que fosse uma delas. Você é uma pessoa de pouca expressão. Tenho certeza de que Grace e Elizabeth abriram caminho para o topo da lista porque qualquer um que dirija as Irmãs do Escuro as considera dispensáveis. Eu dirijo as Irmãs da Luz. Escolhi você pela mesma razão.

— Tem Irmãs que são valiosas para nossa causa; não poderia arriscar uma delas nessa tarefa. O rapaz deve provar ser valioso para nós, mas ele não é tão importante quanto outros assuntos no Palácio. Ele pode ser de grande ajuda. Foi simplesmente uma oportunidade que eu pensei em aproveitar.

— Se houvesse algum problema, e nenhuma de vocês retornasse, bem, tenho certeza que pode entender que um General não gostaria de perder suas melhores tropas em uma missão de baixa prioridade.

Verna virou o livro sobre a mesa e colocou o rosto nas mãos. Não havia dúvida, era a Prelada Annalina quem tinha o outro Livro de Jornada. Ela estava viva, assim como provavelmente Nathan.

Olhou para o fogo ardendo na tigela. A mágoa daquelas palavras ardiam no seu peito. Relutante, com dedos trêmulos, ela virou novamente o livro, e continuou lendo.

— Verna, sei que ouvir aquelas palavras deve ter partido seu coração. Sei que partiu meu coração dizê-las, porque não eram verdade. Para você deve parecer que está sendo usado de um modo abominável. É errado mentir, mas é pior deixar os malignos triunfarem porque você usa a verdade em detrimento do bom senso. Se as Irmãs do Escuro me perguntassem quais eram os meus planos, eu mentiria. Fazer o contrário é permitir que a malevolência triunfe.

— Agora vou dizer a verdade, consciente de que você não tem razão alguma para acreditar nisso dessa vez, minhas palavras são verdadeiras, mas acredito em sua inteligência e sei que se pesar minhas palavras, será capaz de enxergar a verdade nelas.

— A verdadeira razão porque escolhi você para ir atrás de Richard é porque de todas as Irmãs, você foi aquela para quem confiei o destino do mundo. Você sabe, agora, da batalha que Richard venceu contra o Guardião. Sem ele, todos nós estaríamos perdidos para o mundo dos mortos. Essa não era uma missão de baixa prioridade. Era a jornada mais importante na qual qualquer Irmã já foi enviada. Confiei somente em você.

— Mais de três mil anos antes que você nascesse, Nathan me avisou do perigo para o mundo dos vivos. Quinhentos anos antes que Richard nascesse, Nathan e eu sabíamos que um mago guerreiro surgiria nesse mundo.

— As profecias nos disseram algumas das coisas que deveriam ser realizadas. O desafio foi muito diferente de qualquer outro que já encaramos.

— Quando Richard nasceu, Nathan e eu viajamos de navio, ao redor da grande barreira, até o Mundo Novo. Retiramos um livro de magia da Fortaleza do Mago em Aydindril para mantê-lo longe das mãos de Darken Rahl e demos o livro ao pai adotivo de Richard, assegurando ter sua promessa de que ele faria Richard aprender tudo nele. Somente através dessas provações, e eventos na vida dele em sua casa, esse jovem poderia ser transformado no tipo de pessoa com capacidade para deter a primeira ameaça, Darken Rahl, o pai verdadeiro dele, e mais tarde restaurar o equilíbrio no mundo dos vivos. Talvez ele seja a pessoa mais importante nascida nos últimos três mil anos.

— Richard é o mago guerreiro que irá nos liderar na batalha final. As profecias nos dizem isso, mas não se vamos vencer. Agora essa é uma batalha pela humanidade. Nossa única chance era ter certeza, acima de tudo, que ele não fosse corrompido em seu treinamento como homem. Nessa batalha, a magia e necessária, mas o coração deve governá-la.

— Enviei você para trazê-lo até o Palácio porque você era a única em quem eu podia confiar para realizar a tarefa. Conheço seu coração e sua alma, e sabia que não era uma Irmã do Escuro.

— Tenho certeza que agora está imaginando como deixei você procurar por ele por mais de vinte anos quando eu sabia onde ele estava o tempo todo. Eu também poderia ter esperado, e enviado você atrás dele quando estivesse crescido, e finalmente revelado seu paradeiro quando ele finalmente ativasse o seu dom. Tenho vergonha em admitir que estava usando você também assim como usei Richard.

— Para os desafios que estão adiante, precisava ensinar a você coisas que não poderia aprender no Palácio dos Profetas, enquanto Richard crescia e aprendia algumas das coisas essenciais que precisava. Precisava que você estivesse capaz de usar seu bom senso, e não os conjuntos de regras que as Irmãs no Palácio utilizam. Tive que deixar você desenvolver suas habilidades inatas no mundo real. A batalha adiante encontra-se no mundo real; o mundo enclausurado do Palácio não é um lugar para aprender sobre a vida.

— Não espero que algum dia você me perdoe. Isso também é um dos fardos que uma Prelada deve carregar: o ódio de alguém que ela ama como sua própria filha.

— Quando falei aquelas palavras terríveis, isso também foi por um propósito. Tive que finalmente libertá-la do ensinamento do Palácio que diz que sempre deve fazer como foi treinada, e seguir ordens cegamente. Tive que deixar você zangada o bastante para fazer o que julgava ser o certo. Dede que você era pequena, sempre pude contar com seu temperamento.

— Não podia confiar que você entenderia, ou faria o que era necessário se eu falasse as razões. Às vezes, uma pessoa só consegue afetar os eventos adequadamente usando sua própria capacidade moral, e não cumprindo ordens. Isso está declarado na profecia. Confiei que você escolheria o que era certo acima do treinamento, se chegasse a essa conclusão por si mesma.

— A outra razão pela qual eu falei para você aquelas coisas em meu escritório foi porque suspeitava que uma das minhas administradoras era uma Irmã do Escuro. Sabia que meu escudo não protegeria minhas palavras dos ouvidos dela. Deixei minhas palavras me traírem para que ela pudesse me atacar, e forçar o movimento delas. Sabia que possivelmente eu poderia ser morta, mas escolhi esse destino no lugar da possibilidade do mundo ser lançado nas garras do Guardião. Às vezes, uma Prelada deve usar até a si mesma.

— Até agora, Verna, correspondeu a todas as minhas expectativas. Executou um papel vital no salvamento do mundo. Com sua ajuda, conseguimos ter sucesso.

— Na primeira vez em que coloquei meus olhos em você, eu sorri, porque você tinha uma expressão furiosa no rosto. Lembra por quê? Vou dizer a você, se não lembrar. Cada noviça trazida até o Palácio passava por um teste. Cedo ou tarde, culpávamos ela por uma pequena ofensa da qual era inocente. A maioria chorava.

— Algumas faziam cara feia. Algumas carregavam a vergonha da culpa com estoica resignação. Só você ficou furiosa com a injustiça. Fazendo isso, provou sua capacidade.

— Nathan tinha encontrado uma profecia que dizia que a pessoa de quem precisávamos seria entregue a nós não com um sorriso, tristeza, ou um rosto resignado, mas com expressão de raiva. Quando vi aquela expressão no seu rosto, e seus braços cruzados, eu quase ri bem alto. Finalmente, você foi entregue em nossas mãos. A partir daquele dia estive usando você no trabalho mais importante do Criador.

— Escolhi você para ser a Prelada na ilusão de minha morte porque ainda é a única Irmã em quem confio acima de todas. Há mais do que uma boa chance de que eu seja morta na minha presente jornada com Nathan, e se eu realmente morrer, você será a Prelada de verdade. Esse é o modo como eu gostaria.

— Seu ódio justificado pesa em meu coração, mas é o perdão do Criador que é importante, e sei que o terei, pelo menos. Sofrerei com seu desprezo como meu fardo nessa vida, assim como sofro com outros fardos para os quais não existe alívio. Esse é o preço de ser Prelada do Palácio dos Profetas.

Verna afastou o livro, incapaz de ler mais das palavras. Sua cabeça caiu sobre os braços cruzados enquanto chorava. Embora não lembrasse a natureza da injustiça da qual a Prelada falou, lembrou da sensação dela, e de sua raiva. Em maior parte, lembrou do sorriso da Prelada, e como isso fez o mundo parecer correto novamente.

— Oh, querido Criador. — Verna falou bem alto. — Você realmente tem uma tola como serva.

Se ela sentiu a dor antes, por pensar ter sido usada pela Prelada, agora sentia a agonia sobre a angústia que a Prelada teve que suportar. Quando ela finalmente conseguiu conter as lágrimas, puxou o pequeno livro de volta e continuou a ler.

— Mas o passado é passado, e agora devemos seguir em frente com o que deve ser feito. As profecias dizem que o perigo maior agora jaz diante de nós. As provações que vieram anteriormente teriam acabado com o mundo dos vivos em um terrível flash final. Em um instante, todos estariam perdidos irrecuperavelmente. Richard passou naquelas provações, e nos salvou daquele destino.

— Agora uma provação muito maior está sobre nós. Ela não vem de outros mundos, mas do nosso próprio. Essa é uma batalha pelo futuro do nosso mundo, pelo futuro da humanidade, e pelo futuro da magia. Nisso, na luta pelas mentes e corações dos homens, não há um flash, nenhum instante final, mas a inexorável opressão da guerra, enquanto a sombra da escravidão rasteja pelo mundo, e lança escuridão sobre a centelha da magia, através da qual flui a luz do Criador.

— A antiga guerra, iniciada milhares de anos atrás, está reacesa. Nós, ao protegermos esse mundo de outros, inevitavelmente fizemos isso acontecer. Dessa vez, não haverá o fim da guerra por causa dos esforços de centenas de magos. Dessa vez, temos apenas um mago guerreiro para nos conduzir. Richard.

— Não posso contar tudo sobre isso agora. Algumas coisa, eu simplesmente não sei, e independente do quanto seja doloroso para mim ter que deixá-la no escuro sobre algumas coisas do meu conhecimento, entenda que para permitir que as ramificações nas profecias sejam seguidas corretamente, é necessário a algumas das pessoas envolvidas executem suas ações instintivamente, e não através de instruções. Agir de outra forma faria com que as ramificações corretas não ocorressem. Parte de nosso trabalho é desejar ensinar as pessoas a agir da maneira correta, para que assim, quando a provação vier, elas façam o que deve ser feito. Perdoe-me, Verna, mas devo novamente confiar algumas coisas ao destino.

— Espero que esteja aprendendo, como Prelada, o fato de não poder explicar tudo para os outros sempre, mas às vezes deve simplesmente lhes dar uma tarefa, e esperar que elas a cumpram.

Verna suspirou. Sabia a verdade daquilo. Ela mesma havia desistido de tentar explicar tudo o tempo todo, e tinha começado a simplesmente pedir que instruções fossem realizadas como eram ditas.

— Entretanto, algumas coisas eu posso e devo dizer a você para que possa nos ajudar. Nathan e eu partimos em uma missão de vital importância. Por enquanto, apenas ele e eu podemos saber sua natureza.

— Caso eu viva, pretendo retornar ao Palácio. Antes disso, você deve descobrir quem é leal às Irmãs da Luz, noviças, e homens jovens. Deve também identificar todos que entregaram suas almas ao Guardião.

— O quê! — Verna ouviu a si mesma falando bem alto. — Como posso fazer isso!

— Deixo por sua conta descobrir uma maneira. Não tem muito tempo. Isso é importante, Verna; isso deve ser feito antes que o Imperador Jagang chegue.

— Nathan e eu acreditamos que Jagang é o que na antiga guerra era chamado de, Andarilho dos Sonhos.

Verna sentiu o suor entre suas omoplatas descer pela espinha. Lembrou de sua conversa com Irmã Simona, e como a mulher tinha gritado incontrolavelmente com a simples menção do nome de Jagang. Irmã Simona disse que Jagang surgiu para ela nos sonhos. Todos pensaram que Irmã Simona estava louca.

Warren também tinha falado no Andarilho dos Sonhos, e que na guerra antiga eles eram um tipo de arma. A visita deles para Irmã Simona confirmou o que ele acreditava.

— Acima de tudo mais, lembre disso: Não importa o que aconteça, sua única salvação é continuar leal a Richard. Um Andarilho dos Sonhos pode invadir a mente de qualquer um e escravizá-lo para que cumpra sua vontade. E a mente daqueles que possuem o dom mais do que os outros. Só existe uma proteção... Richard. Um ancestral dele criou uma magia que os protege e a qualquer um que seja leal a eles, comprometidos com eles em uma causa, do poder dos Andarilhos dos Sonhos. Essa magia é passada para qualquer Rahl nascido com o dom. Nathan, é claro, tem esse mesmo elemento protetor em seu dom, mas ele não é aquele que pode nos conduzir. Ele é um profeta, e não um mago guerreiro.

Verna conseguiu ler nas entrelinhas que ser um seguidor leal de Nathan seria loucura. O homem era como um relâmpago em uma coleira.

— Ao se opor às leis do Palácio por sua própria vontade e ajudar Richard a escapar, você tornou-se ligada a ele.

— Essa ligação a protege do poder do Andarilho dos Sonhos, mas não das suas forças militares e servos. Essa é uma parte da razão para que eu tivesse que enganá-la naquele dia em meu escritório. Isso fez você, por sua própria vontade, escolher ajudar Richard independente do seu treinamento e ordens.

Calafrios percorreram os braços de Verna. Se tivesse convencido a Prelada a revelar os planos dela, e falar que Verna deveria ajudar Richard a fugir, então ela estaria tão vulnerável ao Andarilho dos Sonhos quanto a Irmã Simona.

— Nathan está protegido, é claro, e eu tenho a ligação com Richard... por bastante tempo. Eu me comprometi com ele quando o vi pela primeira vez. De meu próprio modo, estive deixando que ele determinasse suas próprias regras sobre como lutar por nós. Às vezes, devo dizer, isso é difícil. Embora ele faça todo o necessário para proteger pessoas inocentes necessitadas de sua ajuda, possui uma mente própria, e faz coisas que se eu tivesse que escolher, ele não faria. Às vezes ele pode ser uma provação tão grande quanto Nathan. Assim como a vida.

— Acabei de dizer o que tinha para revelar. Estou sentada aqui dentro de um quarto em uma hospedaria confortável, esperando que leia isso. Quando tiver lido essa mensagem quantas vezes desejar, estarei esperando aqui caso você queira perguntar algo. Deve entender que eu tive centenas de anos trabalhando em eventos e profecias, e não tenho como transmitir todo esse conhecimento em uma noite, muito menos através de um Livro de Jornada, mas direi o que puder sobre o que quiser saber.

— Também deve entender que há certas coisas que não posso contar por medo de corromper a profecia e eventos. Cada palavra que digo carrega um pouco desse perigo, e algumas mais do que outras, mas é necessário a você conhecer um pouco disso.

Com essas coisas em mente, aguardo por suas perguntas. Pergunte.

Verna endireitou o corpo ao terminar a leitura. Pergunte? Levaria centenas de anos para perguntar tudo que ela queria saber. Por onde deveria começar? Querido Criador, quais eram as perguntas importantes?

Leu toda a mensagem outra vez, para ter certeza de não ter deixado passar nada, e então ficou sentada, olhando para as páginas em branco. Finalmente, ela pegou a pena.

— Minha querida Mãe, imploro que perdoe as coisas que pensei sobre você. Estou impressionada com sua força, e envergonhada pelo meu orgulho tolo. Por favor não vá se matar. Não tenho valor suficiente para ser Prelada. Sou como um boi que você pede para voar como um pássaro.

Verna ficou parada, esperando que a mensagem de resposta aparecesse se a Prelada realmente estivesse esperando.

— Obrigada, criança. Você iluminou meu coração. Pergunte o que precisa saber e, se eu puder, responderei suas perguntas. Ficarei sentada aqui a noite toda, se eu puder ajudar com seu fardo.

Verna sorriu pela primeira vez durante dias. Dessa vez, as lágrimas eram doces, e não amargas. Prelada, você está realmente segura? está tudo bem com você e Nathan?

— Verna, talvez você goste que seus amigos a chamem de Prelada, mas eu não. Por favor, me chame pelo meu nome, assim como todos os meus verdadeiros amigos fazem.

Verna riu. Ela também ficava frustrada que as pessoas insistissem em chamá-la de Prelada. Palavras continuaram aparecendo enquanto a mensagem de Ann continuava.

— E sim, eu estou bem, assim como Nathan, que neste momento está ocupado. Hoje ele comprou para si mesmo uma espada, e agora está travando uma luta de espadas contra inimigos invisíveis em nosso quarto. Ele acha que uma espada fará com que ele pareça... arrojado. Ele é uma criança com mil anos de idade, e, nesse momento, está sorrindo como uma criança enquanto corta as cabeças de seus inimigos invisíveis.

Verna leu a mensagem novamente, só para ter certeza de que estava lendo direito. Nathan, com uma espada? O homem era mais maluco ainda do que ela pensava. A Prelada deve estar com bastante trabalho.

— Ann, você disse que devo descobrir quem fez juramento para o Guardião. Não tenho ideia de como fazer isso. Pode ajudar?

— Se eu soubesse como fazer isso, Verna, eu diria. Algumas me causaram suspeitas, mas a maioria não. Nunca fui capaz de descobrir um jeito de adivinhar quem trabalha para o Guardião.

— Tenho outras questões com as quais devo lidar, então deixo isso para que você resolva. Tenha em mente que elas podem ser tão astutas quanto o próprio Guardião. Algumas, que eu tinha certeza que estavam contra nós, por causa de suas naturezas rebeldes, eram leais a nós. Para algumas que se revelaram e fugiram naquele navio, eu teria confiado minha vida. Agora estaria morta, se tivesse feito isso.

— Ann, eu não sei como fazer isso. E se eu falhar?

— Você não deve falhar.

Verna esfregou as palmas suadas no vestido.

— Mas mesmo se eu conseguir encontrar uma maneira de identificá-las, então o que devo fazer com essa informação? Não posso lutar contra as Irmãs com o poder que elas possuem.

— Uma vez que você efetue a primeira parte, Verna, direi a você. Saiba que as profecias são vulneráveis, e estão em perigo. Assim como Nathan e eu as usamos para influenciar os eventos para que a ramificação correta seja seguida, nossos inimigos também podem usá-las.

Verna suspirou de frustração.

— Como posso trabalhar para identificar nossos inimigos, quando há tanto trabalho para fazer como Prelada? Tudo que faço é ler relatórios, e ainda assim eles se acumulam e acumulam. Todos estão dependendo de mim, e contando comigo. Como você encontra tempo para fazer qualquer coisa, com todos os relatórios?

— Você lê os relatórios? Minha nossa, Verna, mas você é ambiciosa. Certamente você é mais consciente como Prelada do que eu.

Verna ficou de boca aberta.

— Quer dizer que eu não tenho que ler os relatórios?

— Bem, Verna, veja o valor de ler eles. Porque leu os relatórios, você descobriu que os cavalos estavam desaparecidos dos estábulos. Poderíamos facilmente ter comprado cavalos depois que deixamos o Palácio, mas ao invés disso levamos aqueles para deixar um sinal. Poderíamos ter pago pelos corpos ao invés de fazer os arranjos complicados que fizemos, mas então você não falaria com o cavador de covas. Tivemos o cuidados de deixar sinais que você pudesse seguir para descobrir a verdade. Alguns dos sinais que deixamos eram bastante complicados, como aquele com a descoberta de nossos... corpos, mas eram necessários, e você fez um bom trabalho descobrindo isso.

Verna sentiu o rosto ficar vermelho. Nunca tinha pensado no fato dos corpos serem descobertos já preparados e enrolados em panos. Tinha perdido completamente aquela pista.

— Mas devo confessar, — Ann continuou, — que eu dificilmente me preocupava em ler relatórios. É para isso que servem as assistentes.

— Eu simplesmente falava para elas que deveriam usar seu julgamento e sabedoria e, pensando nos interesses do Palácio, cuidar das questões envolvidas nos relatórios. Então, de vez em quando, eu parava diante delas e tirava alguns relatórios dos quais elas trataram e lia suas observações. Isso sempre as manteve diligentes em suas tarefas, por causa do medo de que eu lesse as instruções delas dadas em meu nome, e as considerasse insatisfatórias.

Verna estava impressionada. — Quer dizer que eu posso simplesmente dizer para minhas assistentes, ou conselheiras, como quero que as questões sejam tratadas, e então deixar elas cuidarem dos relatórios? Não tenho que ler todos eles? Não tenho que colocar minhas iniciais em todos?

— Verna, você é a Prelada. Pode fazer como desejar. Você governa o Palácio, ele não governa você.

— Mas, as Irmãs Leoma e Philippa, minhas conselheiras, e Dulcinia, uma das minhas administradoras, todas disseram como deveria ser feito. Elas possuem muito mais experiência do que eu.

— Fizeram parecer que estaria arruinando com o Palácio se não cuidasse dos relatórios eu mesma.

— Disseram isso? Ann escreveu quase instantaneamente. — Minha nossa. Acho que se eu fosse você, Verna, escutaria menos e falaria mais. Você tem uma ótima expressão de raiva. Use-a.

Verna sorriu com aquilo. Já estava imaginando a cena. Haveria algumas mudanças no escritório da Prelada na manhã seguinte.

— Ann, qual é a sua missão? O que você está tentando fazer?

— Tenho uma pequena tarefa em Aydindril, depois espero retornar.

Estava claro que Ann não contaria para ela, então Verna pensou sobre o que mais queria saber, e no que precisava dizer para a Prelada. Uma coisa importante surgiu na mente dela.

— Warren me entregou uma profecia. A sua primeira, ele disse.

Houve uma longa pausa. Verna esperou. Quando a mensagem finalmente veio, sua escrita pareceu um pouco mais caprichada.

— Você lembra dela, palavra por palavra?

Verna não conseguia esquecer uma só palavra daquela profecia. Sim.

Antes que Verna pudesse começar a escrever a profecia, uma mensagem começou a surgir na página repentinamente. Os rabiscos eram enormes e furiosos, as letras escritas em grandes blocos.

— Tire aquele rapaz do Palácio. Tire ele de lá!

Uma linha serpenteou pela página. Verna endireitou o corpo. Era óbvio que Nathan havia arrancado a pena da mão de Ann e tinha escrito a mensagem, e Ann estava tentando pegar de volta. Houve outra pausa longa, e finalmente a letra de Ann apareceu novamente.

— Sinto muito. Verna, se tem certeza que lembra da profecia, palavra por palavra, então escreva para que possamos ver. Se não tiver certeza sobre alguma parte, diga. Isso é importante.

— Lembro dela palavra por palavra, já que ela está relacionada comigo, Verna escreveu. Ela diz:

— Quando a Prelada e o Profeta forem entregues para a Luz no ritual sagrado, as chamas farão ferver um caldeirão de trapaça e causarão a ascensão de uma falsa Prelada, que reinará sobre a morte do Palácio dos Profetas. Ao norte, aquele que está ligado à lâmina abandonará ela por causa da Sliph prateada, aquela que o encherá de uma nova vida, e ela o entregará aos braços dos malignos.

Houve outra pausa.

— Espere, por favor, enquanto Nathan e eu conversamos sobre isso.

Verna relaxou e esperou. Os insetos do lado de fora faziam barulho, e os sapos coaxavam. Verna levantou, mantendo os olhos no livro, e esticou suas costas enquanto bocejava. Ainda não havia mensagem alguma. Sentou e encostou o queixo no punho, e seus olhos baixaram enquanto ela esperava.

Finalmente, uma mensagem começou a aparecer.

— Nathan e eu estivemos estudando isso, e Nathan diz que essa é uma profecia imatura, e por causa disso, não pode decifrá-la completamente.

— Ann, eu sou a falsa Prelada. Me incomoda muito que essa profecia diga que eu reinarei sobre a morte do Palácio.

Uma mensagem imediata retornou. Você não é a falsa Prelada nessa profecia.

— Então o que isso significa?

Dessa vez houve uma pausa mais curta. — Não sabemos todo o significado, mas sabemos que você não é a falsa Prelada mencionada nela.

— Verna, preste muita atenção. Warren deve sair do Palácio. É perigoso demais para ele ficar mais tempo. Ele deve se esconder. Poderia ser visto ao partir durante a noite. Amanhã de manhã, leve ele até a cidade com a desculpa de um passeio. No meio da confusão de pessoas será difícil para que alguém o siga. Faça ele escapar no meio da confusão. Entregue ouro a ele para que não tenha problemas em fazer o que precisa.

Verna colocou uma das mãos sobre o coração enquanto tentava respirar. Curvou-se novamente sobre o livro. — Mas Prelada, Warren é o único em quem eu posso confiar. Preciso dele. Não conheço profecias como ele, e ficarei perdida sem ele.

Ela não falou que ele era seu único amigo, o único amigo em quem podia confiar.

— Verna, as profecias estão em perigo. Se elas colocarem as mão em um profeta. — A escrita apressada parou subitamente. Depois de um momento ela continuou, escrita de forma mais cuidadosa. — Ele deve fugir. Você entendeu?

— Sim, Prelada. Será a primeira coisa de que cuidarei de manhã. Warren fará como eu pedir. Confiarei em suas instruções, de que é mais importante que ele vá embora do que me ajudar.

— Obrigada, Verna.

— Ann, qual é o perigo com as profecias?

Ela esperou um momento na tranquilidade do Santuário, até que a escrita recomeçou. — Exatamente como tentamos auxiliar nosso esforço sabendo do perigo que há em várias ramificações de uma profecia, aqueles que querem governar a humanidade usam essa informação para guiar os eventos pelas ramificações melhores para as suas intenções.. Usadas dessa maneira, as profecias podem nos derrotar. Se tiverem um profeta, eles podem ter uma compreensão melhor das profecias, e de como direcionar os eventos para obter vantagem.

— Interferir com ramificações pode invocar o caos que nem mesmo eles esperam ou podem controlar. Isso é perigoso ao extremo. Eles podem inadvertidamente atirar todos nós de um penhasco.

— Ann, você está dizendo que Jagang vai tentar se apoderar do Palácio dos Profetas, e as profecias nas câmaras?

Pausa.

— Sim.

Verna também fez uma pausa. A percepção da natureza da batalha adiante faz com que ela sentisse calafrios.

— Como podemos deter ele?

O Palácio dos Profetas não pode cair tão fácil quanto Jagang pensa. Embora ele seja um Andarilho dos Sonhos, temos controle de nosso Han. O poder também é uma arma. Ainda que sempre usemos nosso dom para preservar a vida e ajudar a trazer a luz do Criador ao mundo, pode chegar um tempo em que teremos de usar nosso dom para lutar. Por isso, devemos saber quem é leal a nós. Você deve descobrir quem não está corrompido.

Verna pensou cuidadosamente antes de começar a escrever. Ann, pretende pedir que nos tornemos guerreiras, para usar nosso dom para eliminar as crianças do Criador?

Estou dizendo, Verna, que terá que usar o seu conhecimento para evitar que o mundo seja lançado para sempre dentro da escuridão da tirania. Embora lutemos para ajudar as crianças do Criador, também carregamos uma Dacra, não é mesmo? Não podemos ajudar pessoas se estivermos mortas.

Verna esfregou as coxas quando percebeu que elas estavam tremendo. Ela matou pessoas, e a Prelada sabia. Matou Jedidiah. Desejou ter trazido alguma coisa para beber; a garganta dela parecia estar ficando seca como terra.

— Entendo. — Finalmente ela escreveu. — Farei o que for necessário.

Gostaria de poder dar a você melhor orientação, Verna, mas nesse momento eu não sei o bastante. Os eventos já estão fluindo adiante em uma torrente. Sem direção, e provavelmente por completo instinto, Richard já tomou uma ação precipitada. Não temos certeza do que ele é capaz, mas pela informação que consegui obter, ele já deixou Midlands em tumulto. O rapaz não descansa por um minuto. Parece que ele cria suas próprias regras conforme avança.

— O que ele fez? Verna perguntou, temendo a resposta.

— De algum modo ele assumiu o comando de D'Hara, e capturou Aydindril. Ele declarou que a Aliança de Midlands está dissolvida, e exigiu a rendição de todas as terras.

Verna arfou. — É Midlands que deve lutar contra a Ordem Imperial! Ele perdeu a razão? Não podemos permitir que ele faça D'Hara e Midlands entrarem em guerra!

— Ele já fez isso.

— Midlands não vai se render a ele.

— Pelo que consegui descobrir, Galea e Kelton já estão nas mãos dele.

— Ele deve ser impedido! A Ordem Imperial é a ameaça. São eles que devem ser combatidos. Não podemos permitir que ele comece uma guerra no Mundo Novo... a distração poderia ser fatal.

— Verna, a magia está conectada a Midlands de forma parecida com a gordura em um suculento assado. A Ordem Imperial vai roubar esse assado uma fatia por vez, como fizeram com o Mundo Antigo. Tímidas alianças se negarão a iniciar uma batalha por causa de uma fatia, e ao invés disso deixarão que seja levada, então a fatia seguinte será tomada em nome da conciliação e da paz, e então a seguinte, com o passar do tempo enfraquecendo Midlands e fortalecendo a Ordem. Enquanto você esteve fora em sua jornada, eles dominaram todo o Mundo Antigo, em menos de vinte anos.

— Richard é um mago guerreiro. São os seus instintos que o guiam, e tudo que aprendeu e estima forja suas ações. Não temos escolha a não ser confiar nele.

— No passado, a ameaça era apenas um indivíduo, como Darken Rahl. Dessa vez, é uma ameaça monolítica. Mesmo se de alguma forma conseguíssemos eliminar Jagang, outro tomaria seu lugar. Essa é uma batalha de crenças, temores, e ambições de todo povo, não de apenas um líder.

— É algo muito parecido com o modo como as pessoas temem o Palácio. Se um líder se apresentasse, não conseguiríamos eliminar a ameaça eliminando o líder; o medo ainda estaria nas cabeças das pessoas, e tirar o seu líder apenas intensificaria sua crença de que estão com razão em ter medo.

— Querido Criador, Verna escreveu de volta, então o que faremos?

Houve uma pausa durante algum tempo. — Como eu disse, criança, não tenho todas as respostas. Mas posso dizer isso: Dessa vez, na provação final, todos nós temos um papel, mas é Richard quem é a chave. Richard é nosso líder. Não concordo com todas as coisas que ele faz, mas ele é o único que pode nos conduzir até a vitória. Se tivermos que prevalecer, devemos segui-lo. Não estou dizendo que não podemos tentar aconselhar e guiá-lo naquilo que conhecemos, mas ele é um mago guerreiro, e essa é a guerra para a qual ele nasceu para lutar.

— Nathan avisou que tem um lugar nas profecias chamado de Grande Vazio. Se terminarmos nessa ramificação, ele acredita que não há nada além para a magia, e dessa forma nenhuma profecia que a ilumine. A humanidade mergulhará para sempre nesse espaço desconhecido sem magia, Jagang deseja lançar o mundo dentro desse vazio.

— Lembre-se disso acima de tudo: Não importa o que aconteça, você deve permanecer leal a Richard. Pode conversar com ele, aconselhá-lo, pensar com ele, mas não deve lutar contra ele. A lealdade a Richard é a única coisa que mantém Jagang afastado de sua mente. Uma vez que um Andarilho dos Sonhos dominar sua mente, você estará perdida.

Verna engoliu em seco. A pena tremeu em sua mão. — Entendo. Tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

— Por enquanto, as coisas que já falei. Deve agir rapidamente. A guerra já está correndo na nossa frente.

— Ouvi dizer que tem Mriswith em Aydindril.

Os olhos de Verna ficaram arregalados com a última parte da mensagem. — Querido Criador. — ela falou bem alto. — dê forças para Richard.

 

Verna fechou os olhos com a luz. O sol estava alto. Ela grunhiu quando levantou da cadeira estofada demais e esticou seus músculos doloridos. Ela se correspondeu com a Prelada até tarde da noite, e então, cansada demais para ir para a cama, tinha se enrolado na cadeira e caiu no sono. Depois que Verna ficou sabendo sobre Richard e os Mriswith em Aydindril, as duas ficaram escrevendo sobre assuntos do Palácio.

A Prelada respondeu incontáveis questões de Verna sobre a condução do Palácio, a maneira como as coisas funcionavam, e como lidar com suas conselheiras, administradoras, e outras Irmãs. As lições que Ann transmitiu foram esclarecedoras.

Verna nunca tinha percebido a extensão da política do Palácio e como quase todas as facetas da vida no Palácio e da lei circulavam ao redor dela. o poder de uma Prelada era derivado, em parte, por formar as alianças certas, e usar obrigações e poder cuidadosamente designado para controlar a oposição. Divididas em facções, responsáveis por seus próprios nichos e recebendo ampla liberdade em áreas muito restritas, as Irmãs mais influentes ficavam distraídas da ação de se unir para formar oposição contra a Prelada. A informação era fornecida ou mantida em sigilo em um processo cuidadosamente controlado, mantendo grupos opostos equilibrados em influência e poder. Esse equilíbrio mantinha a Prelada como o ponto central, e no controle dos objetivos do Palácio.

Ainda que as Irmãs não pudessem remover uma Prelada do cargo, a não ser por traição contra o Palácio e o Criador, elas podiam prejudicar os trabalhos do Palácio com pequenas disputas e lutas por poder. A Prelada precisava controlar essa energia e direcioná-la para objetivos mais proveitosos.

Parecia que governar o Palácio, fazendo o trabalho do Criador, na verdade era mais lidar com personalidades, seus sentimentos e sensibilidades do que simplesmente delegar tarefas que precisavam ser feitas. Verna nunca tinha visto o gerenciamento do Palácio dessa maneira. Sempre as tinha visto como uma família feliz, todas concentradas no trabalho do Criador, seguindo tranquilamente a orientação da Prelada. Isso, ela aprendeu, acontecia por causa do habilidoso controle da Prelada sobre as Irmãs. Por causa dela, todas trabalhavam em prol de um objetivo, parecendo estarem satisfeitas com sua parcela no esquema das coisas.

Depois da conversa com Annalina, Verna sentiu-se ainda mais inadequada no posto dela, mas ao mesmo tempo mais preparada para cuidar da tarefa. Nunca soubera da vasta extensão do conhecimento da Prelada sobre as questões mais triviais do Palácio. Não era surpresa que a Prelada Annalina tivesse feito o trabalho parecer tão fácil; ela era mestra nisso. Uma equilibrista que conseguia manter doze bolas no ar ao mesmo tempo enquanto sorria e dava tapinhas na cabeça de uma noviça.

Verna esfregou os olhos quando bocejou. Dormiu apenas algumas horas, mas tinha trabalho a fazer, e não poderia perder mais tempo. Enfiou o Livro de Jornada, com todas suas páginas limpas, de volta no cinto e seguiu para o seu escritório, parando no caminho para jogar água do lago no rosto.

Um par de patos verdes nadou chegando mais perto, interessados no que ela estava fazendo interferindo em seu mundo. Eles circularam um pouco antes de decidirem limpar suas penas, aparentemente contentes que ela não tivesse outro interesse além de compartilhar da água deles. O céu estava com uma gloriosa coloração rosada e violeta no dia novo, o ar limpo e fresco.

Embora estivesse profundamente preocupada a respeito do que havia aprendido, também estava sentindo-se otimista. Como tudo mais ao redor dela sob a luz do novo dia, sentia como se tivesse sido iluminada também.

Verna balançou as mãos para retirar a água enquanto pensava como descobriria quais Irmãs estavam juradas ao Guardião. Só porque a Prelada tinha fé nela, e tinha ordenado, não significava que ela conseguiria. Suspirou, e então beijou o anel da Prelada, pedindo ao Criador para que ajudasse a encontrar um caminho.

Verna não conseguia esperar para contar a Warren sobre a Prelada, e todas as coisas que tinha aprendido ao conversar com ela, mas também estava com o coração pesado, porque teria que pedir a ele para se esconder. Não sabia como conseguiria sem ele. Talvez se ele conseguisse encontrar um lugar seguro não muito longe, ainda pudesse visitá-lo ocasionalmente, e não se sentiria sozinha.

No escritório dela, Verna sorriu quando viu as pilhas ondulantes de relatório que aguardavam. Deixou as portas do jardim abertas para deixar entrar o ar frio da manhã, e deixar sair o ar do escritório. Ela começou a arrumar os relatório, remexendo nos papéis para colocá-los em ordem e deixando as pilhas retas, alinhando-as pela borda. Pela primeira vez ela consegui ver um pouco da madeira do tampo da mesa.

Verna levantou os olhos quando a porta abriu. Phoebe e Dulcinia, cada uma carregando mais relatórios em um dos braços, ficaram assustadas quando avistaram ela.

— Bom dia. — Verna falou com uma voz alegre.

— Nos perdoe, Prelada. — Dulcinia falou. Seus olhos azuis penetrantes surpresos quando ela viu as pilhas de relatórios arrumadas. — Não percebemos que a Prelada estaria trabalhando tão cedo. Não tivemos intenção de interromper. Podemos ver que tem muito trabalho a fazer. Vamos apenas colocar estes aqui junto com os outros, se nos permitir.

— Oh, sim, por favor, façam isso. — Verna disse, levantando uma das mãos na direção da mesa de modo convidativo. — Leoma e Philippa ficarão contentes que tenham trazido eles para mim.

— Prelada? — Phoebe falou, seu rosto arredondado com uma expressão de confusão.

— Oh, você sabe o que eu quero dizer. É claro que minhas conselheiras gostam de ter certeza de que o Palácio funcione tão bem quanto uma roda recém lubrificada. Leoma e Philippa ficam preocupadas com a tarefa.

— Tarefa? — Dulcinia perguntou, a expressão confusa no rosto dela aumentando.

— Os relatórios. — Verna disse, como se aquilo fosse óbvio. — Elas não iriam querer que pessoas tão jovens quanto vocês duas assumissem tal responsabilidade. Talvez, se continuarem a trabalhar duro, e provarem que merecem, algum dia eu os confiarei a vocês. Se elas considerarem isso algo sábio, é claro.

O rosto de Dulcinia ficou sombrio. — O que Philippa disse, Prelada? Que aspecto da minha experiência ela considera inadequado?

Verna encolheu os ombros. — Não me entenda mal, Irmã. Minhas conselheiras não ridicularizaram você de modo algum; na verdade, elas elogiam vocês. É que elas deixaram claro que os relatórios são importantes, e recomendaram que eu mesma os visse. Tenho certeza que elas virão, em alguns anos, e terão confiança em me informar quando vocês estiverem prontas.

— Prontas para quê? — Phoebe perguntou, perplexa.

Verna balançou a mão na direção das pilhas de relatórios. — Bem, é obrigação das administradoras da Prelada ler os relatórios e cuidar deles. A Prelada só precisa supervisionar ocasionalmente, para confirmar que suas administradoras estão fazendo um trabalho adequado. Uma vez que minhas conselheiras indicaram que eu mesma deveria cuidar dos relatórios, considerei que era óbvio que elas... bem, tenho certeza que não pretendiam ofender, vendo como elas sempre elogiam vocês duas. — Verna estalou a língua. — Embora elas continuem a me lembrar que eu mesma deveria cuidar dos relatórios, pensando nos interesses do palácio.

Dulcinia ficou rígida de indignação. — Nós já lemos aqueles relatórios, cada um deles, para ter certeza que estão em ordem. Sabemos mais sobre eles do que qualquer pessoa. O Criador sabe que vejo aqueles relatórios em meus sonhos! Sabemos quando alguma coisa está fora de ordem, e anotamos para você, não é mesmo? Trazemos contas para sua atenção quando elas não estão exatas, não é mesmo? Aquelas duas não deveriam dizer que você mesma deve fazer isso.

Verna caminhou até uma estante de livros, ocupando-se com uma procura fictícia de um volume em particular. — Tenho certeza de que elas só estão com os interesses do Palácio em mente, Irmã. Você é tão nova no cargo e tudo mais. Imagino que vocês escutam muitos conselhos delas.

— Eu sou tão velha quanto Philippa! Tenho tanta experiência quanto ela!

— Irmã, ela não fez nenhuma acusação. — Verna falou com seu tom mais humilde quando olhou por cima do ombro.

— Ela aconselhou você a cuidar dos relatórios, não foi?

— Bem, sim, mas...

— Ela está errada. As duas estão erradas.

— Estão? — Verna perguntou, afastando-se da estante.

— É claro. — Dulcinia olhou para Phoebe. — Nós poderíamos ordenar, avaliar e cuidar de todos eles em cerca de uma ou duas semanas, não é mesmo, Irmã Phoebe.

Phoebe levantou o nariz. — Acredito que poderíamos fazer isso em uma semana. Sabemos mais sobre como cuidar desses relatórios do que qualquer pessoa. — O rosto dela ficou vermelho quando olhou para Verna. — A não ser você Prelada, é claro.

— Verdade? É uma responsabilidade enorme. Eu não gostaria de sobrecarregar suas cabeças. Estão a pouco tempo nesse trabalho. Vocês acham que já estão preparadas?

Dulcinia bufou. — Eu diria que estamos. — Ela marchou até a mesa e pegou uma grande pilha. — Nós cuidaremos disso. Você verifica qualquer um que tivermos tratado, e descobrirá que teria cuidado dos assuntos do mesmo jeito que nós. Sabemos o que estamos fazendo. Você vai ver. — Ela fez uma careta. — E aquelas duas também.

— Bem, se realmente acham que conseguem cuidar disso, estou disposta a dar uma chance. Afinal de contas, vocês são minhas administradoras.

— Eu diria que somos. — Dulcinia inclinou a cabeça na direção da mesa. — Phoebe, pegue uma pilha.

Phoebe levantou uma grande coluna de relatórios, dando um passo para trás para equilibrá-los. — Tenho certeza que a Prelada tem assuntos mais importantes para cuidar do que o trabalho que suas administradoras podem fazer tão facilmente.

Verna cruzou as mãos sobre o cinto. — Bem, eu nomeei vocês porque acreditei em suas habilidades. Acho que é justo que eu permita que provem isso. Além disso, as administradoras da Prelada são de vital importância para o funcionamento do Palácio.

Os lábios de Dulcinia formaram um largo sorriso. — Verá o quanto somos importantes para ajudar você, Prelada. Assim como suas conselheiras.

Verna levantou as sobrancelhas. — Já estou impressionada, Irmãs. Bem, realmente tenho que cuidar de alguns assuntos. Estando tão ocupada com relatórios , não tive chance de checar minhas conselheiras, e me certificar de que estão cuidando das suas obrigações adequadamente. Acho que já é hora de fazer isso.

— Sim. — Dulcinia falou enquanto seguia Phoebe saindo pela porta. — Acho que isso seria sábio.

Verna soltou um grande suspiro quando a porta fechou. Tinha pensado que nunca veria o fim daqueles relatórios. Agradeceu mentalmente a Prelada Annalina. Ela percebeu que estava sorrindo, e endureceu o rosto.

Warren não respondeu sua batida, e quando olhou dentro do quarto dele viu que sua cama não parecia ter sido usada.

Verna estremeceu quando lembrou que ordenou a ele que fosse até as câmaras para ligar aquelas profecias.

O pobre Warren provavelmente dormiu com seus livros, fazendo o que ela ordenou. Lembrou com vergonha como tinha falado com ele quando estava com tanta raiva depois de ter falado com o cavador de covas. Agora, ela estava aliviada e feliz em saber que a Prelada e Nathan estavam vivos, mas ao mesmo tempo estava lívida e tinha descarregado isso em Warren.

Para evitar causar tumulto, ela desceu as escadas e corredores sem uma escolta para esvaziar as câmaras. Pensou que seria mais seguro se ela simplesmente fizesse uma rápida visita até as câmaras em uma pequena inspeção e falasse para Warren encontrá-la perto do rio. Essa informação era perigosa demais para confiar até mesmo na segurança das câmaras vazias.

Talvez Warren pudesse ter uma ideia de como eles poderiam desmascarar as Irmãs do Escuro. Às vezes, a inteligência de Warren era surpreendente. Ela beijou seu anel em uma tentativa de afastar a angústia quando lembrou de sua obrigação de mandá-lo embora. Precisava tirar ele dali imediatamente.

Com um sorriso triste, ela pensou que talvez ele pudesse ganhar algumas rugas no seu rosto irritantemente liso, e alcançasse ela enquanto ela permanecia sob o feitiço do Palácio.

Irmã Becky, com sua gravidez tornando-se óbvia para todos, estava dando aula para um grupo de noviças mais velhas sobre a complexidade da profecia. Ela estava falando sobre o perigo de uma falsa profecia como resultado de ramificações que haviam sido tomadas no passado. Uma vez que um evento em uma profecia havia tomado lugar, e se isso carregasse uma ramificação disjuntiva, tipo A ou B, então a profecia tinha sido decidida pelos eventos; uma ramificação provou ser verdadeira, e assim outra tornou-se uma falsa profecia.

A dificuldade é que mesmo assim outras profecias estavam ligadas a cada ramificação, mas quando elas eram fornecidas ainda não estava decidido qual ramificação aconteceria. Uma vez determinada, qualquer profecia ligada com a ramificação morta tornava-se falsa também, mas porque geralmente era impossível determinar a qual ramificação muitas profecias estavam ligadas, as câmaras estavam entupidas com essa madeira morta.

Verna foi até a parede nos fundos e escutou por algum tempo enquanto as noviças faziam perguntas.

Era frustrante para elas aprender o escopo dos problemas que se apresentavam para alguém que tentava trabalhar com profecia, e como muitas das coisas que perguntavam não tinha resposta. Pelo que Warren falou para ela, agora Verna sabia que as Irmãs tinham ainda menos entendimento das profecias do que elas pensavam.

Profecias realmente deveriam ser interpretadas por magos cujo dom possuísse essa habilidade. Nos últimos mil anos, Nathan foi o único mago que eles encontraram que tinha a habilidade de fornecer profecias.

Agora ela sabia que ele as entendia de um modo que nenhuma Irmã jamais soube, a não ser talvez a Prelada Annalina. Agora ela sabia que Warren também tinha aquele talento para a profecia.

Enquanto a Irmã prosseguia com uma explanação da conexão através de eventos chave e cronologia, Verna moveu-se lentamente na direção das salas dos fundos onde Warren geralmente trabalhava, mas encontrou-as todas vazias, e com seus livros de volta nas estantes. Verna ficou confusa pensando onde procurar em seguida. Nunca tinha sido difícil encontrar Warren, mas isso porque ele sempre estava nas câmaras.

Irmã Leoma a encontrou quando ela estava voltando subindo os corredores entre as longas colunas de estantes. A conselheira dela sorriu em saudação e baixou a cabeça com longo cabelo branco liso, amarrado atrás com uma fita dourada. Verna detectou preocupação nas rugas do rosto dela.

— Bom dia, Prelada. A bênção do Criador sobre esse novo dia.

Verna devolveu o sorriso caloroso. — Obrigada, Irmã. Esse é um belo dia. Como estão as noviças?

Leoma lançou um olhar na direção das mesas com as jovens concentradas sentadas ao redor. — Elas serão boas Irmãs. Estive observando as lições, e não tem uma desatenta no grupo. — Sem retornar o olhar para Verna, ela perguntou. — Veio encontrar Warren?

Verna girou o anel em seu dedo. — Sim. Tem alguns assuntos que pensei em pedir que ele verifique para mim. Viu ele por perto?

Quando Leoma finalmente virou para ela, suas rugas estavam mais profundas com verdadeira preocupação. — Verna, eu temo que Warren não esteja aqui.

— Entendo. Bem, sabe onde poderia encontrá-lo?

Ela soltou um suspiro profundo. — O que eu quero dizer, Verna, é que Warren foi embora.

— Embora? O que você quer dizer com embora?

O olhar da Irmã Leoma deslizou para as sombras entre as estantes. — Quero dizer que ele deixou o Palácio. Para sempre.

A boca de Verna ficou aberta. — Tem certeza? Deve estar enganada. Talvez você...

Leoma afastou um tufo de cabelo branco do rosto. — Verna, ele me procurou, na noite antes da última, e disse que estava partindo.

Verna molhou os lábios. — Porque ele não me procurou? Porque ele não diria para a Prelada que estava partindo?

Leoma apertou mais o xale. — Verna, sinto muito em ser aquela que vai dizer isso a você, mas ele falou que você e ele conversaram, e ele decidiu que seria melhor se deixasse o Palácio. Por enquanto, pelo menos. Ele me fez prometer que não diria a você por uns dois dias para que ele pudesse se afastar. Não queria que fosse atrás dele.

— Fosse atrás dele! — Os punhos de Verna ficaram apertados. — O que faz ele pensar... — A cabeça de Verna estava girando, tentando entender, e de repente tentando lembrar de palavras que foram ditas dias atrás. — Mas... ele falou quando voltaria? o Palácio precisa do talento dele.

— Ele conhece os livros aqui embaixo. Não pode simplesmente levantar e ir embora!

Leoma afastou os olhos novamente. — Sinto muito, Verna, mas ele se foi. Disse que não sabia quando, ou se, voltaria. Falou que achava que seria melhor assim, e que você também veria isso.

— Ele disse mais alguma coisa? — ela sussurrou esperançosa.

Ela balançou a cabeça.

— E você simplesmente deixou ele ir? Não tentou impedir ele?

— Verna. — Leoma disse com um tom gentil. — Warren estava sem a sua coleira. Você mesma o libertou de seu Rada'Han. Não podemos forçar um mago a ficar no Palácio contra sua vontade quando ele é solto. Ele é um homem livre. É a escolha dele, não nossa.

Tudo lhe ocorreu em uma onda gelada de temor que causava formigamento. Ela o libertou. Como poderia esperar que ele ficasse para ajudá-la quando o tratou de um modo tão humilhante? Ele era seu amigo, e ela falou com ele como se fosse um garoto em seu primeiro ano. Ele não era um garoto. Era um homem. Um homem com sua própria vontade.

E agora ele se foi.

Verna fez um esforço para falar. — Obrigada, Leoma, por me contar.

Leoma assentiu e depois de dar um aperto confortador no ombro de Verna, caminhou de volta na direção das aulas.

Warren foi embora.

A razão dizia que as Irmãs do Escuro poderiam ter levado ele, mas em seu coração ela só conseguia culpar a si mesma.

Os passos vacilantes de Verna a levaram até uma das pequenas salas, e depois que a porta de pedra fechou, ela desabou enfraquecida em uma cadeira. Sua cabeça caiu sobre os braços, e ela começou a chorar, somente agora percebendo o quanto Warren significava para ela.

 

Kahlan pulou para fora da cama da carroça, rolando pela neve quando pousou. Levantou rapidamente e seguiu na direção dos gritos enquanto pedras ainda caiam ao redor dela, batendo nas árvores na parte baixa da trilha estreita, quebrando galhos e chocando-se nos galhos enormes dos velhos pinheiros.

Ela pressionou as costas no lado da carroça. — Me ajudem! — ela gritou para um homem que já estava correndo na direção dela.

Chegando apenas segundos depois dela, eles se atiraram contra a carroça, suportando o peso. O homem gritou bem alto.

— Espere, espere, espere! — Soava como se estivessem prestes a matá-lo. — Apenas aguente firme. Não levante mais.

A meia dúzia de jovens soldados fizeram esforço para manter a carroça onde ela estava. A pedra que caiu em cima dela havia adicionado um peso considerável.

— Orsk! — ela gritou.

— Sim, minha Senhora?

Kahlan tomou um susto. Na escuridão, não tinha visto o grande soldado D'Haran com um olho só parado logo atrás dela.

— Orsk, me ajude a segurar a carroça. Não levante. Apenas mantenha ela imóvel. — Ela virou para a trilha escura lá atrás enquanto Orsk assumia lugar ao lado dos outros e colocava suas mãos na parte inferior da carroça.

— Zedd! Alguém vá buscar Zedd! Rápido!

Jogando seu longo cabelo negro para trás por cima de seu manto de pele de lobo, Kahlan ajoelhou ao lado do jovem debaixo do eixo. Estava escuro demais para ver a gravidade de seus ferimentos, mas pelos seus grunhidos ofegantes, ela temia que fosse sério.

Não conseguiu entender porque ele gritou mais alto quando eles começaram a tirar o peso de cima dele.

Kahlan encontrou a mão dele e a segurou com as duas mãos. — Aguente firme, Stephens. A ajuda está chegando.

Ela fez uma careta quando ele apertou sua mão enquanto soltava um gemido. Ele agarrou a mão dela como se estivesse pendurado em um penhasco e ela fosse a única coisa que o impedia de cair nas garras sombrias da morte. Ela jurou que não afastaria sua mão mesmo se ele a quebrasse.

— Me perdoe... minha rainha... por nos atrasar.

— Foi um acidente. Não foi culpa sua. — As pernas dele tremiam na neve. — Tente ficar parado. — Com sua mão livre, ela afastou o cabelo da testa dele. Ele se acalmou um pouco com o toque dela, então ela manteve a mão no lado do rosto gelado dele. — Por favor, Stephens, tente ficar parado. Não vou deixar eles soltarem o peso sobre você. Eu prometo. Vamos tirar você aí debaixo daqui a pouco, e o mago vai dar um jeito em você.

Ela conseguiu sentir ele fazer um sinal balançando a cabeça em sua mão. Ninguém perto tinha uma tocha, e sob a débil luz da lua que cruzava os galhos espessos ela não conseguia ver qual era o problema. Parecia que levantar a carroça causava mais dor do que quando ela ficava em cima dele.

Kahlan escutou um cavalo galopando e viu uma figura escura saltar quando o cavalo parou deslizando, virando sua cabeça contra o puxão das rédeas. Quando o homem atingiu o chão, uma chama acendeu na palma de sua mão virada para cima, iluminando seu rosto magro e a massa de cabelo branco desgrenhado.

— Zedd! Rápido!

Quando Kahlan olhou para baixo com a luz repentina, viu a extensão do problema, e sentiu uma onda de náusea golpear como um martelo quente.

Os calmos olhos cor de avelã de Zedd observaram a cena fazendo uma rápida avaliação enquanto ajoelhava do outro lado de Stephens.

— A carroça bateu em um monte de madeira, que impediram que as pedras soltas da ladeira caíssem. — ela explicou.

A trilha era estreita e traiçoeira, e na escuridão, na curva, eles não viram o monte na neve. A madeira devia estar velha e podre. Quando o eixo da roda bateu nele, a madeira quebrou, e a viga que ele suportava caiu, deixando uma avalanche de pedras cair sobre eles.

Quando a pedra levou a traseira da carroça para o lado, o aro de ferro da roda traseira engatou em uma vala congelada debaixo da neve e os raios da roda traseira partiram. O eixo atingiu Stephens e caiu em cima dele.

Agora Kahlan podia ver, na luz, que um dos raios quebrados que projetava-se do eixo da roda inclinando na ponta do eixo partido havia empalado o jovem. Quando eles tentavam erguer a carroça, ela o levantava por aquele raio enfiado em um ângulo sob as costelas dele.

— Sinto muito, Kahlan. — Zedd falou.

— O que você quer dizer com sinto muito? Você tem que...

Kahlan percebeu que embora sua mão ainda estivesse latejando, o aperto nela tinha afrouxado. Ela olhou para baixo e viu a máscara da morte. Agora ele estava nas mãos dos espíritos.

O manto da morte causou um tremor no seu corpo. Ela sabia qual era a sensação do toque da morte. Sentiu isso agora. Sentia em cada momento acordada. Durante o sono, ela saturava os seus sonhos com seu toque adormecedor. Os dedos gelados dela tocavam seu rosto, tentando afastar o sempre presente formigamento, quase como o de um cabelo espetando sua carne, mas nunca havia nada ali para afastar. Era o perturbador toque da magia, do feitiço da morte, que ela sentia.

Zedd levantou, deixando a chama flutuar até uma tocha que um homem ali perto estava segurando, fazendo ela arder com uma chama ondulante. Enquanto Zedd levantava uma das mãos para a carroça, como se desse um comando, fez sinal para que os homens se afastassem com a outra. Eles afastaram cuidadosamente, mas continuaram preparados para segurar a carroça se repentinamente ela caísse de novo. Zedd virou a palma para cima, em harmonia com o movimento de seu braço, a carroça obedientemente flutuou no ar subindo uma altura de mais dois pés.

— Tirem ele. — Zedd ordenou com um tom triste.

Os homens agarraram Stephens pelos ombros e puxaram do raio. Quando ele havia sido retirado debaixo do eixo, Zedd virou sua mão e permitiu que a carroça fosse até o chão.

um homem caiu de joelhos ao lado de Kahlan. — A culpa é minha. — ele chorou de angústia. — Sinto muito. Oh, queridos espíritos, a culpa é minha.

Kahlan segurou o casaco do cocheiro e fez ele levantar. — Se isso fosse culpa de alguém, então eu deveria ser culpada. Não deveria tentar ganhar distância no escuro. Deveria ter... Não é culpa sua. Foi um acidente, só isso.

Ela virou para outro lado, fechando os olhos, ainda escutando os gritos fantasmagóricos dele. Como era rotina deles, não usaram tochas para não revelar sua presença. Não havia como saber que olhos poderiam avistar uma força de homens movendo-se através das passagens. Mesmo que não houvesse nenhuma evidência de perseguição, seria tolice ficar confiante demais. A furtividade era vida.

— Enterrem ele da melhor maneira que puderem. — Kahlan falou para os homens. Não cavariam no chão congelado, mas pelo menos poderiam usar as pequenas pedras soltas para cobri-lo. A alma dele estava com os espíritos, e segura, agora. O sofrimento dele estava terminado.

Zedd pediu aos oficiais para limparem a trilha e então foi junto com os homens encontrar um lugar para colocar Stephens para descansar.

No meio do barulho e da atividade, de repente Kahlan lembrou de Cyrilla, e subiu na carroça. Sua meia irmã estava enrolada em uma grossa camada de cobertores e aninhada entre pilhas de roupas. A maior parte das pedras tinha caído na parte de trás da carroça, sem atingir ela, e os cobertores a protegeram das pedras menores que a pilha de roupas não deteve. Foi incrível que ninguém tivesse sido esmagado por uma das rochas maiores que caíram na escuridão.

Eles colocaram Cyrilla na carroça ao invés da carruagem porque ela ainda estava inconsciente, e pensaram que na carroça poderiam deitá-la para que ficasse mais confortável. A carroça provavelmente estava além da possibilidade de reparo. Agora teriam que colocá-la na carruagem, mas ela não estava longe.

Na parte mais estreita da trilha, os homens começaram a se reunir, alguns se espremendo entre os colegas para cumprir as instruções dos oficiais. Movendo-se adiante dentro da noite, enquanto outros pegavam machados para cortar árvores e reparar o muro de contenção. Outros receberam a tarefa de jogar as pedras pequenas e rolar as maiores da trilha e assim abrir caminho para a carruagem passar.

Kahlan estava aliviada de ver que Cyrilla não ficou ferida por nenhuma das pedras, e aliviada também que ainda estivesse em seu quase constante torpor. Não precisavam dos gritos e do choro de terror de Cyrilla nesse momento; havia trabalho a ser feito.

Kahlan esteve viajando na carroça com ela caso ela acordasse. Depois do que fizeram com ela em Aydindril, Cyrilla ficava em pânico ao ver homens, ficando aterrorizada e inconsolável se Kahlan, Adie, ou Jebra não estivesse ali para acalmá-la.

Em seus raros momentos de lucidez, Cyrilla fez Kahlan prometer, de novo e de novo, que ela seria Rainha. Cyrilla se preocupava com seu povo, e sabia que não estava em condições para ajudá-lo. Amava Galea o bastante para se recusar a prejudicar sua terra com uma Rainha sem condições de liderá-la. Kahlan assumiu a responsabilidade de modo relutante.

O meio irmão de Kahlan, Príncipe Harold, não queria ter nada a ver com um fardo monárquico. Ele era um soldado, como foi o pai dele e de Cyrilla, Rei Wyborn. Depois que Cyrilla e Harold nasceram, a mãe de Kahlan tomou o Rei Wyborn como seu companheiro, e Kahlan nasceu. Ela nasceu Confessora; a magia das Confessoras tinha precedência sobre questões insignificantes de realeza.

— Como ela está? — Zedd perguntou enquanto soltava seu manto que ficou preso quando estava subindo na carroça.

— Do mesmo jeito. Ela não ficou ferida com a queda das pedras.

Zedd colocou os dedos nas têmporas dela por um momento. — Não há nada errado com seu corpo, mas a doença ainda reina em sua mente. — Ele balançou a cabeça com um suspiro enquanto descansava um braço sobre o joelho. — Gostaria que o dom pudesse curar enfermidades da mente.

Kahlan viu a frustração nos olhos dele. Ela sorriu. — Fique agradecido. Se pudesse você nunca teria tempo para comer.

Quando Zedd riu, ela olhou para os homens ao redor da carroça, e viu o Capitão Ryan. Fez um sinal para que ele se aproximasse.

— Sim, minha Rainha?

— Quanto tempo até Ebinissia?

— Quatro, talvez seis horas.

Zedd inclinou na direção dela. — Não é um lugar que desejamos alcançar no meio da noite.

Kahlan entendeu a mensagem e assentiu. Para que eles reclamassem a cidade Coroa de Galea, tinham bastante trabalho a fazer; o primeiro era cuidar dos milhares de cadáveres espalhados pela cidade. Não era uma cena que eles queriam encontrar no meio da noite depois de um duro dia de marcha. Ela não estava ansiosa para voltar a ter aquela visão do massacre, mas era um lugar onde ninguém esperaria encontrá-los, e poderiam ficar em segurança ali por algum tempo. Dessa base, eles poderiam começar a juntar Midlands novamente.

Ela virou de volta para o Capitão Ryan. — Tem algum lugar aqui perto onde podemos montar acampamento para passar a noite?

O Capitão apontou subindo a estrada. — Os batedores disseram que tem um pequeno planalto não muito longe adiante. Tem uma fazenda abandonada lá onde Cyrilla ficará confortável para passar a noite.

Ela afastou um pouco de cabelo do rosto e o prendeu atrás de uma orelha, notando que Cyrilla não era mais chamada de Rainha. Agora Kahlan era a Rainha, e o Príncipe Harold havia garantido que todos soubessem disso. — Está bem, mande uma mensagem adiante. Que protejam o vale e montem acampamento. Posicionem sentinelas e explorem a área. Se os terrenos próximos estiverem desertos, e o vale estiver fora de vista, então diga para os homens acenderem fogueiras, mas que as mantenham pequenas.

O Capitão Ryan sorriu e bateu com um punho no coração fazendo uma saudação. Fogueiras seriam maravilhosas, e comida quente faria muito bem aos homens. Eles mereciam, depois da árdua marcha. Estavam quase em casa; amanhã estariam lá. Então a pior parte do trabalho começaria: cuidar dos mortos, e colocar Ebinissia em ordem novamente.

Kahlan não deixaria a vitória da Ordem Imperial sobre Ebinissia continuar. Midlands teria a cidade de volta, e ela viveria novamente para contra atacar.

— Você cuidou de Stephens? — ela perguntou ao Capitão.

— Zedd nos ajudou a encontrar um lugar, e os homens estão cuidando disso. Pobre Stephens. Ele lutou durante todas as batalhas contra a Ordem, quando começamos com quinhentos homens, viu quatro de cada cinco de seus companheiros serem mortos, e ele acabou morrendo em um acidente depois que estava acabado. Sei que ele gostaria de morrer defendendo Midlands.

— Ele fez isso. — Kahlan disse. — Não acabou; vencemos apenas uma batalha, embora tenha sido importante. Ainda estamos em guerra com a Ordem Imperial, e ele era um soldado naquela guerra.

— Ele estava ajudando em nossos esforços, e morreu no cumprimento do dever, assim como a maioria daqueles homens mortos em combate.

— Não há diferença. Morreu como um herói de Midlands.

O capitão Ryan enfiou as mãos nos bolsos de seu grosso casaco marrom de lã. — Acho que os homens gostariam de ouvir essas palavras, e encontrariam coragem nelas. Antes de seguirmos em frente, você poderia dizer alguma coisa sobre o túmulo dele? Significaria muito para os homens saber que sua Rainha sentirá falta dele.

Kahlan sorriu. — É claro. Capitão. Seria uma honra. — Kahlan ficou olhando fixamente para o vazio depois que o Capitão partiu para cuidar das coisas. — Eu não deveria ter continuado depois de escurecer.

Zedd passou a mão atrás da cabeça dela procurando confortá-la. — Acidentes podem acontecer até mesmo na luz do dia. Isso poderia muito bem ter acontecido de manhã, se tivéssemos parado mais cedo, e então culparíamos o fato de ainda estarmos meio sonolentos. — Ainda me sinto culpada. Simplesmente não parece justo. — O sorriso dele não exibiu humor algum. — O destino não pede nosso consentimento.

 

Se houvesse algum corpo na fazenda, os homens os teriam removido na hora em que Kahlan chegasse lá. Eles acenderam o fogo na lareira rudemente construída, mas ele não teve tempo de afastar o frio da casa abandonada.

Cyrilla foi carregada cuidadosamente até os restos de um colchão feito com palha em um quarto nos fundos. Havia outro quarto apertado com dois colchões, provavelmente para crianças, e a sala principal com uma mesa e mais algumas coisas. Pelos fragmentos de um armário e de um baú, e os restos de itens pessoais, Kahlan soube que a Ordem passou por aqui em seu caminho até Ebinissia. Ficou imaginando outra vez o que os homens teriam feito com os corpos; não queria encontrá-los durante a noite se tivesse que sair para se aliviar.

Zedd olhou em volta da sala enquanto esfregava as mãos no estômago.

— Quanto tempo até que o jantar esteja pronto? — ele perguntou com um tom bem humorado.

Ele vestia um grosso manto marrom com mangas negras e capuz sobre os ombros. Três linhas de bordado prateado circulavam os punhos das mangas dele. Um bordado dourado, mais grosso, descia em volta do pescoço e pela frente, a roupa estava apertada na cintura por um cinto vermelho de cetim com uma fivela dourada. Zedd odiava os acessórios chamativos que Adie tinha insistido em usar como disfarce. Preferia o seu manto simples, mas ele se foi fazia muito tempo, assim como seu chapéu com a longa pena que ele havia perdido em algum lugar pelo caminho.

Kahlan sorriu. — Não sei. O que você está cozinhando?

— Eu? Cozinhar? Bem, eu suponho...

— Queridos espíritos, nos poupe desse homem cozinhando. — Adie falou da porta. — Estaríamos melhor servidos comendo cascas de árvore e insetos.

Adie mancou entrando no quarto, seguida por Jebra, a vidente, e Ahern, o cocheiro que tinha levado Zedd e Adie em suas jornadas recentes. Chandalen, que tinha acompanhado Kahlan saindo da terra do Povo da Lama meses atrás, tinha partido depois que Kahlan estivera com Richard naquela noite maravilhosa em um lugar entre os mundos. Ele queria voltar para sua casa e para seu povo. Ela não poderia culpá-lo; sabia como era sentir falta de amigos e pessoas amadas.

Com Zedd e Adie, sentia como se estivessem quase todos juntos. Quando Richard encontrasse com eles, então todos estariam realmente juntos novamente. Embora provavelmente isso ainda levasse semanas, Kahlan ainda não conseguia evitar ficar excitada a cada respirar, pois cada respirar fazia com que ela estivesse um momento mais próxima de colocar os braços em volta dele.

— Meus ossos realmente estar velhos demais para esse clima. — Adie falou enquanto atravessava a sala.

Kahlan pegou uma cadeira de madeira e arrastou-a enquanto segurava o braço de Adie e a conduzia até o fogo. Colocou a cadeira perto das chamas e fez com que a feiticeira sentasse para se aquecer. Diferente das roupas originais de Zedd, o manto simples de linho, com faixas amarelas e vermelhas costuradas no pescoço como símbolos antigos da profissão dela, havia sobrevivido na jornada deles. Zedd fazia uma careta sempre, ao ver aquilo, pensando ser um pouco estranho que o manto dela tivesse conseguido escapar na jornada e o dele se perdesse.

Adie sempre sorria e dizia que era um mistério e insistia que ele parecia muito bem em suas roupas finas. Kahlan suspeitava de que ela realmente gostava mais dele em sua nova roupa. Kahlan também pensou que Zedd parecia magnífico, embora não tão parecido com um mago quanto sua roupa tradicional fazia com que ele parecesse. Magos de um nível tão alto quanto o dele vestiam os mantos mais simples.

Não havia posição acima de Zedd: Primeiro Mago.

— Obrigada, criança. — Adie falou enquanto esquentava as mãos perto das chamas.

— Orsk. — Kahlan chamou.

O grande homem deu um passo adiante. A cicatriz sobre o olho que faltava estava branca sob a luz do fogo. — Sim, minha Senhora? — Ele estava pronto para executar as instruções dela. Quais seriam não tinha importância para ele, sua única preocupação era que tinha uma chance de agradá-la. — Não tem panela aqui. Pode conseguir uma, para preparar alguma coisa para jantar?

Seu uniforme de couro escuro rangeu quando ele fez uma reverência e virou para sair da sala rapidamente. Orsk foi um soldado D'Haran do acampamento da Ordem Imperial. Tentou matá-la, e durante esse esforço ela o tocou com seu poder, a magia das Confessoras destruindo para sempre quem ele tinha sido e enchendo-o com cega lealdade a ela. Esta cega lealdade e devoção era uma forte presença para Kahlan, uma lembrança constante do que, e quem ela era.

Ela tentava não ver o homem que ele foi: um soldado D'Haran que havia se juntado com a Ordem Imperial, um dos assassinos que participaram no massacre das mulheres e crianças inocentes de Ebinissia. Como a Madre Confessora ela jurou não ter misericórdia com nenhum dos homens da Ordem, e não houve nenhuma. Apenas Orsk ainda vivia. Embora ele vivesse, o homem que tinha lutado pela Ordem estava morto.

Por causa do feitiço da morte que Zedd lançou sobre ela para ajudar na fuga deles de Aydindril, poucos conheciam Kahlan como a Madre Confessora. Orsk apenas a conhecia como sua Senhora. Zedd, é claro; Adie; Jebra; Ahern; Chandalen; seu meio irmão, o Príncipe Harold; e o Capitão Ryan conheciam sua verdadeira identidade, mas todos os outros pensavam que a Madre Confessora estava morta. Os homens ao lado dos quais ela lutou a conheciam apenas como sua Rainha. Suas lembranças de quando ela era Madre Confessora estavam confusas e abafadas pela lembrança dela como Rainha Kahlan, nada menos do que sua líder, mas não a Madre Confessora.

Depois que a neve tinha derretido, Jebra e Kahlan colocaram feijões e bacon, cortaram algumas raízes doces dentro da panela, e adicionaram um pouco de melado. Zedd ficava esfregando as mãos enquanto observava os ingredientes sendo misturados. Kahlan sorriu por causa daquela ânsia infantil e, de uma mochila, tirou um pouco de pão para ele.

Ele ficou feliz, e comeu o pão enquanto os feijões ferviam. Enquanto o jantar estava no fogo, Kahlan tirou um resto de sopa que eles trouxeram em uma pequena panela e levou para Cyrilla.

Colocou uma vela em um pedaço de madeira que enfiou em uma rachadura na parede e sentou na beira da cama no quarto silencioso.

Esfregou um pano quente na testa de sua meia irmã por algum tempo, e ficou feliz em ver os olhos de Cyrilla abertos.

Um olhar de pânico dardejou ao redor do quarto pouco iluminado. Kahlan segurou a mandíbula de Cyrilla e forçou-a a olhar dentro de seus olhos.

— Sou eu, Kahlan, minha irmã. Está segura, sozinha comigo. Está segura. Fique calma. Está tudo bem.

— Kahlan? — Cyrilla agarrou o manto e pele branco de Kahlan. — Você prometeu. Não vai voltar atrás com sua palavra.

— Você não pode.

Kahlan sorriu. — Eu prometi, e eu manterei a promessa. Sou a Rainha de Galea, e serei a Rainha até o dia em que você desejar a coroa de volta.

Cyrilla recostou-se aliviada, ainda segurando o manto de pele. — Obrigada, minha Rainha.

Kahlan fez ela sentar. — Agora vamos lá. Trouxe para você um pouco de sopa quente.

Cyrilla afastou o rosto da colher. — Não estou com fome.

— Se quer que eu seja a Rainha, então deve começar a me tratar como Rainha. — Uma expressão de confusão surgiu no rosto de Cyrilla. Kahlan sorriu. — Essa é uma ordem de sua Rainha. Vai tomar a sopa.

Somente assim Cyrilla comeu. Quando tinha acabado, e começou a tremer e chorar novamente, Kahlan abraçou-a bem apertado até que ela entrou em um estado semelhante a um transe, olhando cegamente para o nada. Kahlan enfiou os cobertores em volta dela e beijou sua testa.

Zedd tinha arrumado um par de barris, um banco do celeiro, e achou outra cadeira em algum lugar. Ele pediu ao Príncipe Harold e ao Capitão Ryan que se juntassem com Adie, Jebra, Ahern, Orsk, Kahlan, e com ele para o jantar. Estavam perto de Ebinissia, e tinham que conversar sobre os seus planos. Todos se amontoaram em volta da pequena mesa enquanto Kahlan partia o pão e Jebra servia tigelas fumegantes de feijões da panela que estava no fogo. Quando a vidente terminou, ela sentou no pequeno banco ao lado de Kahlan, lançando olhares admirados para Zedd o tempo todo.

O Príncipe Harold, um homem com peito largo e uma cabeça com longos cabelos negros, fazia Kahlan lembrar de seu pai.

Harold tinha voltado de Ebinissia nesse mesmo dia com seus batedores.

— Que notícias você tem do seu lar. — ela perguntou.

Ele partiu seu pão com os dedos grossos. — Bem. — ele suspirou. — Estava do mesmo jeito que você descreveu. Parece que ninguém mais esteve lá. Acredito que será bastante seguro para nós. Com o exército da Ordem destruído...

— O que estava nessa área. — Kahlan corrigiu.

Ele concordou com a observação balançando o seu pão. — Não acho que teremos qualquer problema por enquanto. Ainda não temos muitos homens, mas eles são bons homens, e temos o bastante para proteger a cidade lá de cima nas passagens pelas montanhas ao redor, contanto que eles não venham em número tão grande quanto antes. Até que a Ordem traga mais homens, acredito que podemos manter a cidade. — Ele fez um sinal na direção de Zedd. — E nós temos o mago.

Zedd, ocupado enfiando feijões em sua boca, diminuiu a velocidade apenas para soltar um grunhido concordando.

O Capitão Ryan engoliu um punhado de feijões. — O Príncipe Harold está certo. Conhecemos estas montanhas. Podemos defender a cidade até que eles tragam uma força grande. Até lá, talvez tenhamos mais homens se juntando a nós, e podemos começar a nos mover.

Harold mergulhou o pão em sua tigela, capturando um pedaço de bacon. — Adie, qual a sua opinião sobre as nossas chances de conseguir ajuda de Nicobarese?

— Minha terra natal está tumultuada. Quando Zedd e eu estivemos lá, descobrimos que o Rei estar morto. O Sangue da Congregação tinha se movido para conquistar o poder, mas nem todas as pessoas estar contente com isso. As feiticeiras estar mais desgostosas. Se a Congregação assumir o poder, aquelas mulheres serão caçadas e mortas. Espero que elas apoiem as forças no exército que resiste ao Sangue da Congregação.

— Com guerra civil... — Zedd falou, interrompendo seu trabalho veloz com a colher. — não há chance de enviar tropas para ajudar Midlands.

Adie suspirou. — Zedd estar certo.

— Talvez alguma das feiticeiras pudesse ajudar? — Kahlan perguntou.

Adie mexeu a colher nos feijões. — Talvez.

Kahlan olhou para seu meio irmão. — Mas vocês tem tropas de outras áreas que podem convocar.

Harold assentiu. — Certamente temos. Pelo menos sessenta ou setenta mil, talvez cerca de cem mil poderiam ser preparados, embora não sejam todos que estarão bem treinados ou bem armados. Vai levar algum tempo para organizá-los, mas quando o fizermos, então Ebinissia será uma força que poderá ser reconhecida.

— Nós tivemos quase essa quantidade aqui antes... — O Capitão Ryan lembrou sem levantar os olhos da tigela. — e não foi o bastante.

— Verdade. — Harold falou fazendo um floreio com seu pão. — Mas isso é apenas para começar. — Ele olhou para Kahlan. — Você pode juntar mais terras, não pode?

— Essa é a nossa esperança. — ela falou. — Devemos reunir Midlands ao nosso redor, se quisermos ter uma chance.

— E quanto a Sanderia? — O Capitão Ryan perguntou. — Suas lanças são as melhores em Midlands.

— E Lifany. — Harold disse. — Eles fazem um monte de armas, e sabem como usá-las.

Kahlan arrancou um pedaço macio do meio do pão dela. — Sanderia depende de Kelton para ter pastos para seus rebanhos de ovelhas durante o verão. Lifany compra ferro de Kelton, e vende grãos para eles. Herjborgue conta com a lã de Sanderia. Acredito que todos irão para onde Kelton for.

Harold enfiou a colher nos feijões. — Havia Kelteanos mortos entre aqueles que atacaram Ebinissia.

— E Galeanos. — Kahlan colocou o pão na boca e mastigou por um momento enquanto observava ele usar sua colher como se fosse uma faca. Ele olhava fixamente dentro de sua tigela.

— Havia insurgentes e assassinos de muitas terras que se juntaram a eles. — ela falou depois que tinha engolido. — Isso não significa que a terra natal deles fará isso. O Príncipe Fyren de Kelton tinha comprometido sua terra com a Ordem Imperial, mas agora ele está morto. Não estamos em guerra com Kelton; eles são parte de Midlands. Estamos em guerra com a Ordem Imperial. Precisamos ficar unidos. Se Kelton se juntar a nós, os outros praticamente serão obrigados, mas se ficar com a Ordem, então teremos problemas para convencer os outros. Precisamos ter o apoio de Kelton e que fiquem ligados a nós.

— Eu apostaria que Kelton vai e juntar com a Ordem. — Ahern disse. Todos viraram na direção dele. Ele encolheu os ombros. — Sou Kelteano. Posso dizer a vocês que eles irão aonde a Coroa for; é o costume de nosso povo. Com Fyren morto, então isso faria a Duquesa Lumholtz a próxima na fila. Ela e seu marido, o Duque, irão para o lado que acham que vencerá, não importa qual seja ele. Pelo menos essa é a minha opinião pelo que ouvi falar dela.

— Isso é tolice! — Harold baixou sua colher. — Independente do quanto eu não confie em Kelteanos, sem querer ofender, Ahern, e conheça os costumes ardilosos deles, no fundo, eles são de Midlands. Podem querer pegar qualquer pedaço de fazenda que estiver em uma fronteira disputada e chamá-lo de Kelteana, mas o povo ainda é de Midlands.

— Os espíritos sabem que Cyrilla e eu tivemos nossas brigas, mas quando havia problema, ficávamos juntos. O mesmo acontece com nossas terras; quando D'Hara atacou no verão passado, lutamos para proteger Kelton, independente de algumas de nossas diferenças. Se isso significar o futuro de Midlands, eles irão conosco. Midlands significa mais do que qualquer um que seja novo na coroa passa dizer sobre ela. — Harold pegou sua colher e balançou-a para Ahern. — O que você tem a dizer sobre isso?

Ahern encolheu os ombros. — Nada, eu acho.

Os olhos de Zedd se moveram entre os dois homens. — Não estamos aqui para discutir. Estamos aqui para lutar em uma guerra. Fale aquilo que acredita, Ahern, você é Kelteano, e saberia mais sobre isso do que nós.

Ahern coçou seu rosto queimado pelo vento enquanto pensava nas palavras de Zedd. — O General Baldwin, o comandante de todas as forças Kelteanas, e seus Generais, Bradford, Cutter, e Emerson, irão aonde a Coroa for. Não conheço os homens, sou apenas um cocheiro, mas vou para muitos lugares e escuto muitas conversas, e isso é o que sempre foi dito a respeito deles. As pessoas falam a piada de que se a Rainha jogasse sua Coroa pela janela e ela ficasse presa no chifre de um gamo, todo o exército estaria pastando na grama dentro de um mês.

— E pela conversa que você escuta, você realmente acredita que essa Duquesa transformada em Rainha seguirá com a Ordem apenas pela chance de poder, mesmo que isso signifique romper com Midlands? — Zedd perguntou.

Ahern encolheu os ombros novamente. — É apenas minha opinião, entendam, mas acho que seria assim.

Enquanto Kahlan pegava uma raiz doce com a colher sem levantar os olhos, ela falou. — Ahern está certo. Conheço Cathryn Lumholtz, e o marido dela, o Duque. Ela será Rainha, e mesmo que receba conselhos de seu marido, ela tem esse tipo de pensamento. O Príncipe Fyren teria sido Rei, e acredito que ele ficaria conosco não importa o que acontecesse, mas alguém da Ordem o levou para o lado deles, e ele nos traiu. Tenho certeza de que a Ordem fará ofertas semelhantes para Cathryn Lumholtz. Ela verá poder nessas ofertas.

Harold se esticou pela mesa e pegou mais um pouco de pão. — Se ela enxergar isso, e Ahern estiver certo, então perdemos Kelton. Se perdermos Kelton, então teremos a primeira rachadura da ruína.

— Isso não ser bom. — Adie observou. — Nicobarese estar com problemas, Galea ficar enfraquecida quando tantos do seu exército ser mortos em Ebinissia, e Kelton estar seguindo na direção da Ordem, e junto com ela irá um grande número de terras que ser parceiros de comércio.

— E então tem alguns dos outros que quando...

— Chega. — O suave, e claro tom de autoridade na voz de Kahlan fez descer uma mortalha de silêncio sobre a mesa. Lembrou do que Richard sempre dizia quando estavam com mais problemas do que conseguiam lidar: pense na solução, não no problema. Se a sua mente estiver cheia apenas com os pensamentos de porque perderia, então não conseguiria pensar em como vencer.

— Parem de falar porque não podemos unir Midlands novamente, e porque não podemos vencer. Já sabemos que há problemas. Precisamos discutir as soluções.

Zedd sorriu por cima de sua colher. — Bem colocado, Madre Confessora. Acho que devemos ter algumas ideias. Como uma delas, tem muitas terras menores que continuarão leais a Midlands não importa o que aconteça. Devemos reunir seus representantes em Ebinissia e começar a reconstruir o conselho.

— Está certo. — Kahlan disse. — Elas podem não ser tão poderosas quanto Kelton, mas tem uma qualidade nos números que possui influência.

Kahlan abriu o manto de pele. O fogo que estalava estava aquecendo a sala um pouco e a comida estava esquentando seu estômago, mas era a preocupação que estava começando a fazer ela suar. Não conseguia esperar para que Richard se juntasse a eles; ele teria ideias. Richard nunca ficava sentado deixando que os eventos ditassem o que aconteceria. Ela observou os outros enquanto eles se curvavam sobre as suas tigelas, cada um deles com uma expressão preocupada enquanto ponderavam suas opções.

— Bem. — Adie falou quando baixava sua colher. — Eu estar certa que poderíamos conseguir que algumas feiticeiras de Nicobarese se juntassem a nós. Elas seriam uma poderosa ajuda. Enquanto algumas se recusariam a lutar, pois isso ser contra suas convicções, não negariam ajudar de outras maneiras. Nenhuma delas quer ver a Congregação, ou seus aliados, a Ordem Imperial, tomar Midlands. A maioria conhece o terror dos tempos passados, e não gostariam que eles se repetissem.

— Bom. — Kahlan disse. — Isso é bom. Você acha que conseguiria ir até lá e convencê-las a se unir a nós, talvez conseguir alguns do exército ajudem também? Afinal de contas, a guerra civil é uma parte da guerra maior, e isso não estaria acontecendo se pelo menos alguns não desejassem ajudar Midlands.

Os olhos completamente brancos de Adie observaram Kahlan por um momento. — Por algo tão importante, é claro que tentarei.

Kahlan assentiu. — Obrigada, Adie. — Ela olhou para os outros. — O que mais? Alguma ideia?

Harold descansou um cotovelo sobre a mesa enquanto pensava. Ele balançou a colher. — Acredito que se eu enviar alguns oficiais, como uma delegação oficial, para algumas das terras menores, eles poderiam ser convencidos a enviar representantes para Ebinissia. Muitos possui alto respeito por Galea, e sabem como Midlands tem protegido sua liberdade. Eles nos ajudarão.

— E talvez... — Zedd falou com um leve sorriso. — se eu for visitar essa Rainha Lumholtz, como Primeiro Mago, vejam bem, eu pudesse convencê-la que Midlands não está sem o seu próprio poder.

Kahlan conhecia Cathryn Lumholtz, mas não queria estragar a calorosa esperança da ideia de Zedd. Afinal de contas, foi ela quem disse que eles precisavam pensar nas soluções ao invés dos problemas.

O que a mantinha nas garras do terror, era o pensamento de ter sido a Madre Confessora quem perdeu Midlands.

Quando o jantar terminou, o Príncipe Harold e o Capitão Ryan foram falar com os homens. Ahern jogou seu casaco longo em volta dos ombros largos e disse que tinha que checar seus cavalos.

Depois que eles se foram, Zedd segurou o braço de Jebra quando ela estava ajudando Kahlan a juntar as tigelas.

— Você quer me dizer agora, o que você está vendo sempre que olha na minha direção?

Jebra afastou seus olhos azuis do olhar dele e colocou outra colher dentro de sua mão junto com as outras. — Não é nada.

— Eu gostaria de julgar isso, se você não se importa.

Ela parou, e finalmente olhou para ele. — Asas.

Zedd levantou uma sobrancelha. — Asas?

Ela assentiu. — Vejo você com asas. Está vendo? Isso não faz sentido algum. Tem que ser uma visão que não tem significado. Eu falei, eu tenho desses tipos às vezes.

— É isso? Apenas asas?

Jebra mexeu no seu cabelo curto cor de areia. — Bem, você está bem alto no ar, com essas asas, e você é jogado dentro de uma enorme bola de fogo. — As pequenas rugas nos cantos dos olhos dela se aprofundaram. — Mago Zorander, eu não sei o que isso significa. Não é um evento, você sabe como as minhas visões funcionam de vez em quando, mas uma sensação de eventos. Não sei o que eles significam, todos misturados desse jeito.

Zedd soltou o braço dela. — Obrigado, Jebra. Se você enxergar mais alguma coisa, vai me contar? — Ela assentiu. — E imediatamente. Precisamos de toda ajuda que pudermos conseguir.

Os olhos dela procuraram o chão quando ela assentiu novamente. A cabeça dela inclinou na direção de Kahlan. — Círculos. Eu vejo a Madre Confessora correndo em círculos.

— Círculos? — Kahlan perguntou quando se aproximou. — Porque estou correndo em círculos?

— Não sei dizer.

— Bem, sinto como se eu estivesse correndo em círculos agora mesmo, tentando encontrar um jeito de reunir Midlands outra vez.

Jebra levantou os olhos, esperançosa. — Poderia ser isso.

Kahlan mostrou um sorriso. — Talvez seja isso. As suas visões nem sempre são sobre calamidades.

Quando todos começaram a voltar a fazer a limpeza, Jebra falou outra vez. — Madre Confessora, não deveríamos deixar sua irmã sozinha perto de nenhuma corda.

— O que você quer dizer?

Jebra soltou um suspiro. — Ela esta sonhando em se enforcar.

— Quer dizer que você teve uma visão dela se enforcando?

Jebra colocou uma das mãos no braço de Kahlan. — Oh, não. Madre Confessora, eu não vi isso. É que eu consigo ver a aura, vejo que ela está sonhando em fazer isso. Não significa que ela fará, apenas que devemos ficar de olho nela, assim não terá chance antes que consiga se recuperar.

— Isso parece um bom conselho. — Zedd declarou.

Jebra amarrou o pão que sobrou em um pano. — Vou dormir com ela esta noite.

— Obrigada. — Kahlan falou. — Porque não deixa que eu termine com a limpeza, e vai para a cama agora, caso ela acorde.

Zedd, Adie, e Kahlan dividiram o trabalho depois que Jebra levou seu colchão para dentro do quarto de Cyrilla. Quando eles terminaram, Zedd colocou uma cadeira na frente do fogo para Adie. Kahlan cruzou os dedos e ficou olhando para as chamas.

— Zedd, quando enviarmos as delegações até as terras menores para pedir a eles que venham participar de um conselho em Ebinissia, seria mais fácil convencê-los se fosse uma delegação oficial da Madre Confessora.

Zedd finalmente quebrou o silêncio. — Todos pensam que a Madre Confessora está morta. Se deixarmos eles saberem que você está viva, então você será um alvo, e isso faria com que a Ordem caísse sobre nós antes que pudéssemos reunir uma força forte o bastante.

Kahlan virou a agarrou o manto dele. — Zedd, estou cansada de estar morta.

Ele deu um tapinha na mão dela no braço dele. — Você é a Rainha de Galea, e pode usar sua influência desse jeito, por enquanto. Se a Ordem Imperial descobrir que você está viva, então teremos mais problemas do que estamos preparados para lidar.

— Se vamos unir Midlands, então eles precisarão de uma Madre Confessora.

— Kahlan, eu sei que não quer fazer nada que coloque em risco as vidas daqueles lá fora. Eles acabaram de vencer uma batalha a grande custo; eles ainda não estão suficientemente fortes. Precisamos reunir mais pessoas para nosso lado. Se alguém souber que você é a Madre Confessora então você se torna um alvo e eles terão que lutar para protegê-lo. Se precisa lutar, deve ser pelas razões certas. Não precisamos de mais problemas do que conseguiremos resolver nesse momento.

Kahlan apertou as pontas dos dedos enquanto olhava para o fogo. — Zedd, eu sou a Madre Confessora.

Tenho medo de ser a Madre Confessora que permitirá a destruição de Midlands. Eu nasci Confessora. É mais do que meu trabalho. É quem eu sou.

Zedd apertou os ombros dela. — Minha querida, você ainda é a Madre Confessora. É por isso que devemos esconder a sua identidade por enquanto. Precisamos da Madre Confessora. Quando a hora chegar, você governará Midlands outra vez, uma Midlands mais forte do que já foi. Tenha paciência.

— Paciência. — ela murmurou.

— Ah, bem. — ele falou com um sorriso. — Também existe magia na paciência, você sabe.

— Zedd estar certo. — Adie falou de sua cadeira. — O lobo não sobrevive se anuncia para o rebanho que ele ser um lobo. Ele faz seus planos de ataque, e somente no último momento, deixa que sua presa saiba que ele ser ele, o lobo, que estar caçando eles.

Kahlan esfregou os braços. Tinha mais coisa... outra razão.

— Zedd. — ela sussurrou com aquela dor. — Não consigo mais suportar esse feitiço. Está me deixando louca. Consigo sentir o tempo todo, como se a morte caminhasse junto comigo dentro de minha carne.

Zedd puxou a cabeça dela até o ombro dele. — Minha filha costumava dizer a mesma coisa. Essas mesmas palavras, na verdade, como se a morte caminhasse junto comigo dentro de minha carne.

— Como ela suportou durante todos aqueles anos?

Zedd suspirou. — Bem, quando Darken Rahl a estuprou, eu sabia que se ele pensasse que ela estava viva, viria atrás dela. Não havia escolha. Queria protegê-la mais do que queria ir atrás dele. Levei-a para Midlands, onde Richard nasceu, e então ela estava com outra razão para se esconder. Se Darken Rahl algum dia soubesse, ele poderia vir atrás de Richard também, então ela teve que suportar.

Kahlan estremeceu. — Todos aqueles anos. Eu não teria essa força. Como ela conseguiu aguentar?

— Bem, não havia nenhuma alternativa, para uma coisa, e para outra, ela disse que depois de um tempo ela se acostumou um pouco com isso, e não era tão ruim quanto no início. A sensação vai aliviar um pouco com o tempo. Vai se acostumar, e com sorte, não vai ter que continuar muito tempo assim.

— Espero que não. — Kahlan disse.

A luz do fogo estava ondulando sobre o rosto fino de Zedd. — Ela também disse que ter Richard aliviava o fardo.

O coração de Kahlan saltou com a simples menção em voz alta do nome dele. Ela sorriu. — Isso com certeza vai ajudar. — Ela agarrou o braço de Zedd. — Ele estará aqui em breve. Não vai deixar que nada o atrase. Estará aqui em duas semanas no máximo. Queridos espíritos, como vou esperar tanto tempo?

Zedd riu. — Você tem uma paciência tão pequena quanto a daquele rapaz. Vocês foram feitos um para o outro. — Ele passou a mão no cabelo dela. — Seus olhos já estão com melhor aparência, minha querida.

— Então quando Richard estiver conosco, e começarmos a reunir Midlands, você poderá tirar esse feitiço da morte de mim. Assim Midlands terá uma Madre Confessora outra vez.

— Para mim também, quanto mais cedo melhor.

Kahlan franziu a testa. — Zedd, se você for encontrar a Rainha Cathryn, e eu precisar tirar esse feitiço de mim, como posso fazer isso?

Zedd olhou para as chamas novamente. — Você não pode. Se você anunciasse que era a Madre Confessora, as pessoas não acreditariam mais do que se Jebra falasse que era a Madre Confessora. O feitiço não é desfeito simplesmente porque declara quem você é.

— Então como eu tiro ele?

Zedd suspirou. — Somente eu posso fazer isso.

Kahlan sentiu uma súbita onda de medo. Não queria dizer aquilo, mas ela ficaria presa no feitiço se alguma coisa acontecesse com Zedd.

— Mas certamente deve haver outra maneira de remover o feitiço. Talvez Richard?

Zedd balançou a cabeça. — Mesmo se Richard soubesse como ser um mago, ele não poderia remover a teia. Só eu posso fazer isso.

— E esse é o único jeito.

— Sim. — Ele olhou nos olhos dela novamente. — A não ser, é claro, se outro com o dom deduzisse a sua verdadeira identidade. Se um homem assim enxergasse você, entendesse quem você era, e falasse o seu nome bem alto, então isso quebraria o feitiço, e todos saberiam sua identidade outra vez.

Não havia esperança alguma disso. Ela sentiu suas esperanças afundarem. Kahlan agachou e enfiou outro pedaço de lenha no fogo. A única maneira para que ela se livrasse do feitiço da morte era se Zedd o retirasse, e ele não faria isso até que estivesse bem e pronto.

Como Madre Confessora, ela não ordenaria que um mago fizesse algo que ambos sabiam ser errado.

Kahlan observou as centelhas subirem rodopiando. Ela se iluminou. Logo Richard estaria com ela, e então não seria tão ruim. Quando Richard estivesse com ela, não pensaria no feitiço; estaria ocupada demais beijando ele.

— O que é engraçado? — Zedd perguntou.

— O quê? Oh, nada. — Ela levantou e esfregou as mãos nas calças. — Acho que vou dar uma olhada nos homens.

— Talvez um pouco de ar frio tire esse feitiço da minha mente.

O ar frio realmente parecia bom. Ela ficou parada na clareira do lado de fora da pequena casa e inspirou profundamente.

A fumaça da madeira tinha um cheiro bom. Lembrou dos dias anteriores quando estavam em marcha, e seus pés e dedos pareciam congelados, quando suas orelhas queimavam com a mordida do frio, e seu nariz escorria, como ela sonhava acordada com a fumaça de madeira pois isso significava o calor de uma fogueira. Kahlan caminhou pelo campo do lado de fora da casa. Olhou para as estrelas lá em cima, sua respiração espalhando-se lentamente no ar parado. Ela podia ver pequenas fogueiras pontilhando o vale além, e podia ouvir os murmúrios das conversas dos homens sentados ao redor delas. Ela estava feliz que eles também pudessem ter fogueiras esta noite. Logo estariam em Ebinissia e poderiam se aquecer novamente.

Kahlan respirou profundamente o ar frio, tentando esquecer do feitiço. O céu todo estava cintilando com o brilho das estrelas, como centelhas de uma fogueira enorme. Ficou imaginando o que Richard estava fazendo agora, e se estava cavalgando arduamente, ou dormindo. Queria muito ver ele, mas também queria que ele dormisse o bastante. Quando ele finalmente encontrasse com ela, ela poderia dormir nos seus braços.

Ela sorriu pensando nisso.

Kahlan ficou surpresa ao ver um grupo de estrelas ficarem negras. Quase tão rápido quanto elas escureceram, voltaram a mostrar brilhantes pontos de luz. Será que realmente viu elas escurecerem por um instante? Deve ser a sua imaginação, ela pensou.

Ela ouviu um som abafado quando alguma coisa bateu no chão. Nenhum alarme foi dado. Apenas uma coisa poderia passar pelo anel de sentinelas e não gerar um alarme. Ela sentiu um calafrio repentino, e não foi por causa do feitiço.

Kahlan pegou sua faca.

 

Ela viu olhos verdes cintilando. No meio da fraca luz que vinha da pequena lua de inverno e das estrelas, ela viu alguma coisa grande caminhar na direção dela. Kahlan queria gritar, mas sua voz havia desaparecido.

Quando os lábios da besta enorme afastaram, viu as suas grandes presas. Ela recuou um passo. Estava apertando o cabo da faca tão forte que seus dedos estavam doendo. Se fosse rápida, e se não entrasse em pânico, poderia ter uma chance. Se gritasse, será que Zedd escutaria? Alguém escutaria?

Mesmo se escutassem, estavam longe demais. Não conseguiriam chegar até ali em tempo.

Sob a luz fraca ela conseguiu ver pelo tamanho que era um Gar de cauda curta. Tinha que ser um Gar de cauda curta; eles eram os menos inteligentes, os maiores, os mais mortais. Queridos espíritos, porque não podia ser um Gar de cauda longa?

Kahlan tomou um susto quando ele levantou alguma coisa do peito. Porque ele apenas ficava parado ali? Onde estavam suas moscas de sangue? Ele olhou para baixo, olhou para ela, e olhou para baixo novamente. Os olhos brilharam com um brilho verde ameaçador. Seus lábios se abriram mais ainda, uma nuvem de vapor espalhou no ar quando ele soltou um som de gorgolejo.

Os olhos de Kahlan ficaram arregalados. Poderia ser? — Gratch?

De repente o Gar começou a dar pulos, uivando de alegria e batendo as asas.

Kahlan relaxou sentindo grande alívio. Guardou a faca e se aproximou da grande besta, mas ainda foi cautelosa.

— Gratch? É você, Gratch?

O Gar balançou sua grande cabeça grotesca vigorosamente. — Grrratch! — Ele gritou com um rugido que ressoou no osso esterno dela. Ele bateu no peito com as duas patas. — Grrratch!

— Gratch, Richard enviou você?

As asas do Gar bateram com mais energia com a menção do nome de Richard.

Ela chegou mais perto. —Richard enviou você?

— Grrratch ammm Raaaach aaarg.

Kahlan piscou. Richard disse que Gratch tentou falar. De repente ela sorriu. — Kahlan ama Richard também. — Ela bateu no peito. — Eu sou Kahlan, Gratch, estou tão feliz em conhecer você.

Ela arfou quando o Gar deu um passo adiante e agarrou-a nos braços peludos, levantando ela do chão. O primeiro pensamento dela foi que ele com certeza a esmagaria, mas ele foi surpreendentemente gentil enquanto a segurava contra o peito liso. Kahlan esticou os braços ao redor do grande corpo e abraçou os lados do gar. Os braços dela não conseguiam alcançar nem a metade do corpo dele.

Kahlan nunca poderia ter imaginado que faria tal coisa, mas agora ela estava quase chorando, porque Gratch era amigo de Richard, e Richard tinha enviado o Gar até ela. Era quase como se fosse um abraço enviado pelo próprio Richard.

O Gar colocou-a no chão cuidadosamente. Avaliou ela com seus olhos verdes cintilantes. Ela passou uma das mãos no pelo do lado do peito dele enquanto a grande criatura acariciava suavemente o cabelo dela com uma enorme pata.

Kahlan sorriu para o rosto enrugado cheio de presas. Gratch soltou um leve gorgolejo. Suas asas se moveram em lentas batidas enquanto ela acariciava seu pelo, e ele acariciava o cabelo dela.

— Você está em segurança aqui conosco, Gratch. Richard falou tudo sobre você. Não sei o quanto você consegue entender, mas está entre amigos.

Quando os lábios dele recuaram, novamente expondo suas presas, ela percebeu de repente que isso era um sorriso. Era o sorriso mais horroroso que ela já tinha visto, mas tinha uma qualidade inocente que a fez sorrir também. Nunca em sua vida imaginou que um Gar pudesse sorrir. Isso realmente era uma maravilha.

— Gratch, Richard enviou você?

— Raaaach aaarg. — Gratch bateu no peito. Ele bateu as asas com bastante força que seus pés levantaram do chão por um momento. Então ele se esticou a tocou no ombro de Kahlan.

Kahlan ficou de boca aberta. O Gar estava dizendo alguma coisa para ela, e ela entendeu. — Richard enviou você para me encontrar?

Gratch ficou louco de alegria ao perceber que ela entendeu. Segurou-a nos braços novamente. Ela riu com a natureza maravilhosa de tudo aquilo.

Quando ele a colocou no chão outra vez, ela perguntou. — Foi difícil me encontrar?

Ele soltou um gemido e encolheu os ombros. — Foi um pouco difícil?

Gratch assentiu. Kahlan conhecia uma grande variedade de línguas, mas não conseguia evitar de rir com a simples ideia de se comunicar com um gar. Ela balançou a cabeça admirada. Quem, a não Richard, pensaria em se tornar amigo de um Gar?

Kahlan segurou uma das patas dele. — Venha para dentro da casa. Tem alguém que eu quero que você conheça.

Gratch gorgolejou concordando.

Kahlan fez uma pausa no portal. Zedd e Adie olharam para ela de suas cadeiras ao lado do fogo.

— Gostaria de apresentar um amigo. — ela disse enquanto puxava Gratch por uma das patas para dentro. Ele abaixou ao cruzar o portal, fechando as asas para conseguir passar, e então, uma vez lá dentro, levantou o corpo ficando quase totalmente em pé atrás dela, ainda um pouco curvado para não bater no teto.

Zedd caiu para trás em sua cadeira, suas pernas e braços finos balançando no ar.

— Zedd, pare. Você vai assustar ele. — ela o censurou.

— Assustar ele! — Zedd murmurou. — Você falou que Richard disse que era um bebê Gar! Essa coisa está quase adulta!

As sobrancelhas grossas de Gratch curvaram enquanto ele observava o mago levantar e arrumar seu manto amassado.

Kahlan levantou uma das mãos. — Gratch, esse é o avô de Richard, Zedd.

Os lábios dele afastaram, mostrando as presas novamente. Gratch levantou as patas e começou atravessar a sala. Zedd se encolheu e deu um passo para trás.

— Porque ele está fazendo isso? Ele jantou?

Kahlan riu tão forte que mal conseguiu pronunciar as palavras. — Ele está sorrindo. Gosta de você. Ele quer um abraço.

— Um abraço! Certamente que não!

Era tarde demais. Com apenas três passos, o Gar havia cruzado a distância na pequena sala e já estava apertando o mago em seus braços peludos. Zedd soltou um grito abafado. Gratch gorgolejou quando levantou Zedd do chão.

— Maldição! — Zedd tentou se afastar do hálito do Gar inutilmente. — Esse tapete voador comeu! E não vai querer saber o quê!

Gratch finalmente colocou Zedd no chão. O mago cambaleou para trás alguns passos e balançou um dedo para a besta.

— Agora, olhe aqui, não vamos mais fazer isso! mantenha seus braços em você mesmo.

Gratch murchou, outra vez soltando um gemido.

— Zedd! — Kahlan o repreendeu. — Feriu os sentimentos dele. Ele é amigo de Richard, e nosso também, e ele teve muita dificuldade para nos encontrar. O mínimo que você poderia fazer é ser gentil com ele.

Zedd bufou. — Bem... talvez você esteja certa. — Olhou para a besta esperançosa. — Sinto muito, Gratch. Quando for adequado, suponho que estaria tudo bem me dar um abraço.

Antes que o mago pudesse levantar seus braços para tentar manter o Gar afastado, Gratch tinha agarrado ele novamente e levantado, abraçando-o como uma boneca de pano. Os pés de Zedd balançaram para frente e para trás. Finalmente Gratch colocou o mago sem fôlego no chão.

Adie esticou uma das mão para que ele apertasse. — Eu ser Adie, Gratch. Eu estar feliz em conhecer você.

Gratch ignorou a mão e lançou os braços peludos em volta dela também. Kahlan tinha visto Adie sorrir diversas vezes, mas raramente escutava ela soltar sua risada rouca. Agora ela estava rindo. Gratch riu junto com ela, do seu próprio jeito gutural.

Quando a ordem estava restaurada na sala, e todos recuperaram seu fôlego, Kahlan viu os olhos arregalados de Jebra espiando por uma brecha na porta do quarto. — Está tudo bem, Jebra. Esse é Gratch, um amigo nosso. — Kahlan segurou no pelo do braço de Gratch. — Você pode abraçá-la mais tarde.

Gratch encolheu os ombros, balançando a cabeça. Kahlan virou ele em sua direção e segurou uma das suas patas nas duas mãos. Olhou dentro dos olhos verdes cintilantes.

— Gratch, enviou você na frente para nos dizer que estará aqui em breve? — Gratch negou balançando a cabeça. Kahlan engoliu em seco. — Mas ele está vindo? Ele deixou Aydindril, e está vindo para encontrar conosco?

Gratch estudou o rosto dela. Sua pata levantou e acariciou o cabelo dela. Kahlan viu que ele tinha um tufo do cabelo dela em uma tira de couro pendurada em sua garganta, junto com o dente de dragão. Ele balançou a cabeça outra vez, lentamente.

O coração de Kahlan afundou como uma pedra em um poço. — Ele não está a caminho? Mas ele enviou você para encontrar comigo?

Gratch assentiu, adicionando uma pequena batida de suas asas.

— Por quê? Você sabe por quê?

Gratch assentiu. Ele esticou o braço por cima do ombro e pegou alguma coisa que estava presa em sua costa por outra tira de couro. Ele passou um objeto vermelho comprido por cima do ombro e ofereceu a ela segurando na ponta da tira de couro.

— O que é isso? — Zedd perguntou.

Kahtan começou a desatar o nó. — É um estojo para documentos. Talvez seja uma carta de Richard.

Gratch assentiu confirmando a suposição. Quando o nó estava solto, ela pediu que Gratch sentasse. Ele agachou com satisfação de um lado enquanto Kahlan tirava a carta enrolada e achatada do recipiente.

Zedd sentou ao lado de Adie perto do fogo. — Vamos ouvir as desculpas do rapaz, e é melhor que sejam boas, ou ele vai ter muitos problemas.

— Concordo com você a respeito disso. — ela falou entre os dentes. — Tem cera o bastante nessa coisa para duas dúzias de cartas. Precisamos ensinar Richard como selar um documento. — Ela virou a carta na luz. — É a espada. Ele pressionou o cabo da Espada da Verdade na cera.

— Para que soubéssemos que era realmente dele. — Zedd observou enquanto alimentava o fogo com um pedaço de lenha.

Quando ela terminou de quebrar toda a cera, Kahlan desenrolou a carta e virou-a para o fogo para conseguir ler.

— Minha querida Rainha... — ela leu bem alto. — rezo aos bons espíritos que essa carta chegue em suas mãos...

Zedd levantou rapidamente. — Isso é uma mensagem.

Kahlan fez uma careta para ele. — Bem, claro que é. É a carta dele.

Ele balançou a mão fina. — Não, não. Quero dizer que ele está nos dizendo alguma coisa. Conheço Richard. Conheço o modo como ele pensa. Está dizendo que tem medo que se alguém colocasse as mãos nessa carta, ela poderia nos trair... ou a ele, então ele está nos avisando que não pode dizer tudo que poderia querer dizer.

Kahlan enfiou o lábio inferior entre os dentes. — Sim, isso faria sentido. Richard geralmente pensa bastante nas coisas.

Zedd fez um gesto enquanto virava para certificar-se de que seu traseiro acertaria a cadeira enquanto sentava. — Continue.

— Minha querida Rainha, rezo aos bons espíritos que essa carta chegue em suas mãos, e ela encontre você e seus amigos bem e seguros. Muita coisa aconteceu, e devo implorar sua compreensão.

— A aliança de Midlands está acabada. Lá em cima, Magda Searus, a primeira Madre Confessora, e seu mago, Merritt, olham para mim zangados, porque testemunharam esse fim, e porque fui eu quem causou esse fim.

— Perceba que eu reconheço muito bem o peço de milhares de anos de história me observando lá de cima, mas por favor tente entender que se eu não tivesse feito algo, então nosso único futuro seria como escravos da Ordem Imperial, e então essa história seria esquecida.

Kahlan colocou uma das mãos no peito, sobre o coração que batia forte, e fez uma pausa para recuperar o fôlego antes de prosseguir.

— Meses atrás, a Ordem Imperial começou a destruição da aliança, fazendo com que alguns se convertessem para o lado deles, e desfiando a unidade que Midlands representava. Assim como lutamos contra o Guardião, eles lutam para roubar a segurança do nosso lar. Talvez houvesse uma chance de trazer a unidade de volta mais uma vez, se tivéssemos o luxo do tempo, mas a Ordem apressa os seus planos, e nos nega esse luxo. Com a Madre Confessora morta, fui forçado a fazer o que deveria ser feito para forjar a unidade.

— O quê? O que ele fez? — Zedd resmungou.

Kahlan lançou para ele um olhar pedindo silêncio por cima da carta que tremia, e então continuou.

— O atraso é fraqueza, e a fraqueza é a morte nas mãos da Ordem. Nossa amada Madre Confessora conhecia o custo do fracasso, e nos transmitiu a obrigação de lutar nessa guerra até a vitória; ela declarou essa guerra sem misericórdia contra a Ordem Imperial. Sua sabedoria quanto a isso foi infalível. A aliança, entretanto, estava fragmentada com interesses próprios. Isso era o prelúdio para a ruína. Fui forçado a agir.

— Minhas tropas capturaram Aydindril.

Zedd explodiu. — Maldição e dupla maldição! Do que ele está falando! Ele não tem tropa alguma! Ele só tem sua espada e esse tapete voador com presas.

Gratch levantou soltando um rosnado. Zedd se encolheu.

Kahlan enxugou as lágrimas. — Fiquem quietos, vocês dois.

Zedd olhou para ela e depois para o gar. — Sinto muito, Gratch, não queria ofender.

Os dois sentaram novamente enquanto ela continuava.

— Hoje eu reuni os representantes das terras aqui em Aydindril e informei a eles que a aliança de Midlands está dissolvida. minhas tropas cercaram os Palácios deles e em breve desarmarão os seus soldados. Eu disse a eles, assim como direi a você, que só há dois lados nessa guerra: o nosso lado, e o da Ordem Imperial. Não haverá nenhum espectador. Teremos unidade, de um jeito, ou de outro. Todas as terras de Midlands devem se render a D'Hara.

— D'Hara! Maldição!

Kahlan não levantou os olhos enquanto lágrimas rolavam por seu rosto. — Se eu tiver que falar para ficar quieto outra vez, você vai esperar do lado de fora enquanto eu leio essa carta.

Adie segurou no manto de Zedd e fez ele sentar na cadeira. — Continue lendo.

Kahlan limpou a garganta. — Eu expliquei aos representantes que você, a Rainha de Galea, casaria comigo, e através da sua rendição e nossa união, isso mostrará que essa é uma união forjada na paz, com objetivos comuns e respeito mútuo, e não uma questão de conquista. As terras terão permissão para manter seu patrimônio e tradições legais, mas não sua soberania. A magia de todas as formas será protegida. Seremos um povo, com um exército, sob um comando, e sob uma lei. Todas as terras que se unirem a nós através de sua rendição terá participação na formulação dessas leis.

A voz e Kahlan falhou. — Devo pedir a você que retorne imediatamente para Aydindril e entregar Galea. Eu preciso lidar com questões de várias terras, e o seu conhecimento e assistência seria inestimável.

— Informei aos representantes que a rendição é obrigatória. Não haverá nenhum favoritismo. Qualquer um que falhar em se render será colocado sob cerco. Não terão permissão para negociar conosco até que entreguem sua rendição. Se eles não se renderem de boa vontade, com todos os benefícios que isso fornece, e formos compelidos a obter sua rendição através da força militar, então eles não perderão apenas esses benefícios, mas sofrerão sansões também. Como eu disse, não haverá espectadores. Seremos um.

— Minha Rainha, eu daria minha vida por você, e não quero nada mais do que ser o seu marido, mas se minhas ações fizerem o seu coração se voltar contra mim, não forçarei a ceder sua mão em casamento. Entenda, porém, que a rendição de sua terra é necessária e vital. Devemos viver por uma lei. Não posso mostrar nenhum favor especial para qualquer terra, ou estaremos perdidos antes de começarmos.

Kahlan teve que fazer uma pausa para conter um soluço. Ela mal conseguia ler as letras turvas diante de seus olhos.

— Mriswith atacaram a cidade. — Um assobio saiu entre os dentes de Zedd. Ela ignorou e continuou lendo. — Com a ajuda de Gratch, eu coloquei os restos deles em postes para decorar a frente do Palácio das Confessoras para que todos possam ver o destino de nossos inimigos.

Mriswith podem ficar invisíveis de acordo com sua vontade. Além de mim, somente Gratch pode detectá-los quando estão cobertos com suas capas. Eu temo que eles sigam atrás de você, então enviei Gratch como proteção.

— Temos que lembrar de uma coisa acima de todas: a Ordem deseja destruir a magia. Porém, eles não possuem vergonha de usá-la. É nossa magia que eles querem destruir.

— Por favor, diga ao meu avô que ele também deve retornar imediatamente. O lar ancestral dele está em perigo. Foi por isso que tive que tomar Aydindril, e não posso partir; tenho medo de deixar que o inimigo tenha o lar ancestral de meu avô, e as terríveis consequências que isso representaria.

Zedd não conseguiu ficar em silêncio. — Maldição — ele sussurrou para si mesmo quando levantou outra vez. — Richard está falando sobre a Fortaleza do Mago. Não queria escrever isso, mas é dela que ele está falando. Como eu pude ser tão estúpido? O rapaz está certo; não podemos deixar eles tomarem a Fortaleza. Tem coisas de magia poderosa lá dentro pelas quais a Ordem pagaria muito bem para botar as mãos. Richard não sabe sobre a magia lá dentro, mas ele é esperto o bastante para entender o perigo. Eu fui um tolo cego.

Com um súbito calafrio de horror Kahlan também percebeu a verdade naquilo. Se a Ordem tomasse a Fortaleza, eles teriam acesso a uma magia imensamente poderosa.

— Zedd, Richard está sozinho lá. Não sabe quase nada sobre magia. Não sabe nada sobre os tipos de pessoas em Aydindril que podem usar magia. Ele é um cervo na caverna de um urso. Queridos espíritos, ele não tem ideia alguma do perigo no qual está envolvido.

Zedd assentiu de modo sombrio. — O rapaz não sabe com o quê está lidando.

Adie soltou uma risada zombeteira. — Não sabe com o quê está lidando? Ele roubou Aydindril e o acesso para a Fortaleza debaixo do nariz da Ordem. Eles enviaram Mriswith contra ele, e ele os colocou em postes do lado de fora do Palácio. Provavelmente ele está com aterras prestes a se renderem para formar uma união que pode lutar contra a Ordem, exatamente a coisa que estávamos tentando pensar como conseguir. Ele estar usando a mesma coisa que ser nosso problema. Comércio, e usa isso até mesmo como uma arma para forçar a mão deles. Ele não estar esperando tentar entrar em entendimento com eles. Simplesmente colocou uma faca nas gargantas deles. Se eles começarem a ceder, logo ele poderá muito bem ter toda Midlands nas mãos. As terras importantes, de qualquer modo.

— E com todas elas unidas com D'Hara, como uma força, um comando. — Zedd falou. — Poderia ser uma força capaz de enfrentar a Ordem. — Ele virou para Kahlan. — Tem mais alguma coisa?

Ela assentiu. — Um pouco. — Embora eu tema grandemente por meu coração, temo também os resultados se eu falhar em agir, pela sombra de tirania que vai escurecer o mundo para sempre. Se não fizermos isso, então o destino de Ebinissia será apenas o começo.

— Depositarei minha fé em seu amor, ainda que não consiga evitar temer o teste que ele enfrenta.

— Ainda que eu esteja cercado de guarda-costas, e uma já tenha perdido sua vida por mim, a presença deles não é o que preciso para me sentir seguro. Todos vocês devem retornar para Aydindril imediatamente. Não demorem. Gratch manterá você segura protegida os Mriswith até que esteja comigo. Assinado, o seu nesse mundo, e naqueles além, Richard Rahl, Mestre de D'Hara.

Zedd assobiou através dos dentes outra vez. — Mestre de D'Hara. O que aquele rapaz fez?

Kahlan baixou a carta nas mãos trêmulas. — Ele me destruiu, foi isso que ele fez.

Adie levantou um dedo fino na direção dela. — Agora, me escute, Madre Confessora. Richard sabe muito bem o que ele estar fazendo com você, e abriu seu coração a você por causa disso. Disse que escreve essa carta sob a imagem de Magda Searus porque estar sofrendo com o que deve fazer, e também entende o que isso significa para você. Ele preferiria perder seu coração do que deixar você ser morta pelo que acontecerá se ele se curvar ao passado ao invés de pensar no futuro. Ele fez o que nós não conseguiríamos fazer. Nós pediríamos por unidade, ele a exigiu, e colocou força na exigência. Se você realmente deseja ser a Madre Confessora, e colocar a segurança de seu povo acima de tudo, então ajudará Richard.

Zedd levantou uma sobrancelha, mas continuou em silêncio.

Ou escutar o nome, Gratch falou. — Grrratch ammm Raaaach aaarg.

Kahlan enxugou uma lágrima da bochecha e fungou. — Eu também amo Richard.

— Kahlan. — Zedd falou, de modo tranquilizador — Assim como o feitiço será retirado de você com o tempo, tenho certeza que você será a Madre Confessora mais uma vez.

— Você não entende. — ela disse, contendo as lágrimas. — Durante milhares de anos uma Madre Confessora sempre protegeu Midlands através da aliança. Eu serei a Madre Confessora que falhou com Midlands.

Zedd balançou a cabeça. — Não. Você será a Madre Confessora que teve força para salvar o povo de Midlands.

Ela colocou uma das mãos sobre o coração. — Eu não tenho tanta certeza.

Zedd chegou mais perto. — Kahlan, Richard é o Seeker da Verdade. Ele carrega a Espada da Verdade. Eu sou aquele que o nomeou. Como Primeiro Mago, eu o reconheci como aquele com os instintos do Seeker.

— Ele está agindo conforme esses instintos. Richard é uma pessoa rara. Ele reage como o Seeker, e com o uso do dom. Está fazendo o que pensa que deve fazer. Devemos colocar nossa fé nele, mesmo se não entendermos completamente porque ele está fazendo o que está fazendo. Maldição, ele mesmo pode não entender completamente porque está fazendo o que ele está fazendo.

— Leia a carta novamente para si mesma. — Adie falou. — Escute as palavras dele com seu coração e sentirá o coração dele nelas. E lembre também, que pode haver coisas que ele não arriscou colocar no papel caso ele fosse interceptado.

Kahlan passou a costa da mão no nariz. — Sei que isso parece egoísta, mas não é isso. Eu sou a Madre Confessora; uma confiança foi passada para mim de todas aquelas que vieram antes. Quando eu fui escolhida, essa confiança foi colocada em minhas mãos. Isso se tornou minha responsabilidade. Quando eu ascendi para Madre Confessora, fiz juramentos.

Com um dedo magro, Zedd levantou o queixo dela. — Um juramento de proteger o seu povo. Não há sacrifício grande demais para isso.

— Talvez. Vou pensar nisso. — Além de suas lágrimas, Kahlan lutou para manter a raiva sob controle. — Eu amo Richard, mas nunca faria algo assim com ele. Apenas não acho que ele entenda o que está fazendo comigo, com as Madres Confessoras antes de mim que entregaram suas vidas.

— Acho que ele entende. — Adie falou com uma voz rouca.

De repente o rosto de Zedd ficou quase tão branco quanto seu cabelo. — Maldição. — ele sussurrou. — Você não acha que Richard seria tolo o bastante para entrar na Fortaleza, acha?

A cabeça de Kahlan levantou. — Tem feitiços que protegem a Fortaleza. Richard não sabe como usar a magia dele.

— Não saberia como passar por eles.

Zedd inclinou aproximando-se dela. — Você falou que ele tem Magia Subtrativa, somada com sua Aditiva. Os feitiços são de Magia Aditiva. Se Richard souber usar qualquer parte de sua Subtrativa, será capaz de atravessar até mesmo os feitiços mais poderosos que eu coloquei na Fortaleza.

Kahlan arfou. — Ele falou que no Palácio dos Profetas ele simplesmente conseguia caminhar através de todos os escudos porque eles eram Aditivos. O único que o impedia era o escudo do perímetro e isso porque ele também tinha Subtrativa.

— Se aquele rapaz entrar na Fortaleza, tem coisas lá dentro que poderiam matá-lo em um piscar de olhos. Foi por isso que colocamos escudos lá. Para que ninguém pudesse chegar perto. Maldição, tem escudos que até mesmo eu não ousei cruzar. Para alguém que não sabe o que está fazendo, aquele lugar é uma armadilha mortal.

Zedd segurou-a pelos ombros. — Kahlan, você acha que ele entraria na Fortaleza?

— Não sei, Zedd. Você praticamente o criou. Você saberia melhor do que eu.

— Ele não entraria ali. Sabe como a magia pode ser perigosa. Ele é um rapaz esperto.

— A não ser que queira alguma coisa.

Ele olhou para ela com o canto dos olhos. — Queira alguma coisa? O que você quer dizer?

Kahlan enxugou a última lágrima da bochecha. — Bem, quando nós estávamos com o Povo da Lama, ele queria uma reunião. O Homem Pássaro avisou que seria perigoso. Uma coruja trouxe uma mensagem dos espíritos. Ela o atingiu na cabeça, fez um corte, e então caiu no chão morta. O Homem Pássaro disse que era um terrível aviso dos espíritos sobre o perigo para Richard. Richard pediu a reunião de qualquer jeito. Foi quando Darken Rahl voltou do submundo. Se Richard quiser alguma coisa, nada vai detê-lo.

Zedd recuou. — Mas agora ele não quer nada. Não tem necessidade de entrar lá.

— Zedd, você conhece Richard. Ele gosta de aprender coisas. Ele pode decidir simplesmente dar uma olhada, só por curiosidade.

— Uma olhada também pode ser mortal.

— Ele disse na carta que um de seus guardas foi morto. — Kahlan franziu a testa. — Na verdade, ele disse ela. Porque o seu guarda-costas seria uma mulher?

Zedd balançou os braços impacientemente. — Eu não sei. O que você estava dizendo sobre o guarda ser morto?

— De acordo com o que sabemos, pode ser que alguém da Ordem já esteja na Fortaleza, e matou-a usando magia da Fortaleza. Ou, pode ser que ele tenha medo que os Mriswith queiram tomar a Fortaleza, e ele irá até lá para tentar protegê-la.

Zedd passou um dedão no queixo liso. — Ele não tem ideia dos perigos em Aydindril, mas o pior, ele não tem a mínima noção das coisas dentro da Fortaleza. Lembro de falar para ele uma vez que objetos de magia, como a Espada da Verdade, e livros, estavam guardados lá. Nunca pensei em dizer que muitos eram perigosos.

Kahlan agarrou o braço dele. — Livros? Você falou que tinha livros lá?

Zedd grunhiu. — Grande erro.

Kahlan soltou um suspiro. — Eu deveria ter falado.

Zedd jogou os braços para cima. — Temos que chegar até Aydindril imediatamente! — Ele agarrou Kahlan pelos ombros.

— Richard não tem controle do seu dom. Se a Ordem usar magia para tomar a Fortaleza, Richard não será capaz de detê-los. Poderíamos perder essa guerra antes de ter uma chance de contra-atacar.

Os punhos de Kahlan apertaram. — Não consigo acreditar. Passamos semanas fugindo de Aydindril, e agora temos que correr de volta para lá. Isso vai levar semanas.

— O sol já desceu sobre os dias em que fizemos essas escolhas. Devemos nos concentrar no que podemos fazer amanhã; não podemos reviver o passado.

Kahlan olhou para Gratch. — Richard nos enviou uma carta. Podemos enviar uma de volta para ele, e alertá-lo.

— Isso não vai ajudá-lo a proteger a Fortaleza se eles usarem magia.

A cabeça de Kahlan estava girando com fragmentos de pensamentos e soluções apressadas. — Gratch, você conseguiria levar um de nós de volta até Richard?

Gratch olhou para cada um deles, seu olhar parou sobre o mago. Finalmente, ele balançou a cabeça.

Kahlan mastigou o lábio inferior de frustração. Zedd andou de um lado para outro diante do fogo, murmurando consigo mesmo.

Adie olhava para o vazio, pensativa. Subitamente Kahlan falou.

— Zedd! Você poderia usar magia?

Zedd parou de caminhar e levantou os olhos. — Que tipo de magia?

— Como fez com a carroça hoje. Levantando ela com magia.

— Não posso voar, minha querida. Apenas erguer coisas.

— Mas poderia nos deixar mais leves, como a carroça, para que Gratch conseguisse nos carregar?

Zedd fez uma careta. — Não. Seria muito difícil manter o esforço. Isso funciona com coisas inanimadas, como pedras e carroças, mas é uma coisa completamente diferente fazer isso com coisas vivas. Eu poderia erguer todos nós um pouco, mas apenas por alguns minutos.

— Poderia fazer isso apenas com você mesmo? Poderia fazer você mesmo ficar leve o bastante que Gratch conseguisse carregá-lo?

O rosto de Zedd iluminou. — Sim, talvez. Exigiria um grande esforço manter isso por tanto tempo, mas acho que posso ser capaz de fazer isso.

— Poderia fazer isso também, Adie?

Adie afundou em sua cadeira. — Não. Eu não tenho o poder que ele tem. Não conseguiria fazer isso.

Kahlan conteve sua apreensão. — Então você deve partir, Zedd. Pode chegar até Aydindril semanas antes que pudéssemos viajar até lá. Richard precisa de você imediatamente. Não podemos esperar. Cada minuto de demora é um perigo para o nosso lado.

Zedd jogou os braços magros para cima. — Não posso deixar você indefesa!

— Eu tenho Adie.

— E se os Mriswith vierem, como Richard disse que temia? Então você não teria Gratch. Adie não pode ajudar com um Mriswith.

Kahlan agarrou a manga negra dele. — Se Richard entrar na Fortaleza, ele poderia ser morto. Se a Ordem tomar a Fortaleza do Mago, e a magia dentro dela, então estaremos todos mortos. Isso é mais importante do que a minha vida. Trata-se do que aconteceu com todos em Ebinissia. Se deixarmos eles vencerem, então muitos morrerão, e os vivos estarão condenados a escravidão. A magia estará extinta. Essa é uma decisão de batalha.

— Além disso, nenhum Mriswith apareceu ainda. Só porque eles atacaram Aydindril, isso não significa que atacarão em todos os outros lugares. De qualquer modo, o feitiço esconde minha identidade. Ninguém sabe que a Madre Confessora está viva, ou que eu sou ela. Eles não tem nenhuma razão para vir atrás de mim.

— Lógica precisa. Posso ver porque você foi escolhida como a Madre Confessora. Mas ainda acho que isso é precipitado.

Zedd apelou para a feiticeira. — O que você acha?

— Acho que a Madre Confessora estar certa. Devemos considerar o que ser a ação mais importante que podemos tomar.

Não devemos arriscar todos por causa de um perigo para alguns.

Kahlan ficou diante de Gratch. Da maneira que ele estava agachado, ela estava com os olhos na altura dos olhos dele. — Gratch, Richard está em grande perigo. — As orelhas peludas de Gratch balançaram. — Ele precisa de Zedd para ajudá-lo. E de você também. Eu ficarei bastante segura; nenhum Mriswith esteve aqui. Você consegue levar Zedd até Aydindril? Ele é um mago e pode fazer com que seja fácil para você carregá-lo. Faria isso por mim? Por Richard?

Os olhos brilhantes de Gratch moveram-se entre os três, observando. Finalmente ele levantou. Suas asas cobertas de pele se abriram quando ele assentiu. Kahlan abraçou o Gar, e ele devolveu o abraço carinhoso.

— Você está cansado, Gratch? Quer descansar, ou pode partir agora mesmo?

Gratch bateu as asas como resposta.

Com crescente alarme, Zedd olhou para cada um deles. — Maldição. Essa é a coisa mais idiota que eu já fiz. Se eu tivesse que voar, teria nascido como um pássaro.

Kahlan mostrou um fraco sorriso. — Jebra disse que teve uma visão de você com asas.

Zedd plantou os punhos nos quadris. — Ela também disse que me viu sendo lançado dentro de uma bola de fogo. — He bateu o pé. — Está bem. Vamos em frente, então.

Adie levantou para dar um abraço nele. — Você ser um velho tolo valente.

Zedd resmungou de desgosto. — Tolo, certamente. — Finalmente ele devolveu o abraço. Ele soltou um grito repentino quando ela beliscou o seu traseiro.

— Você parece muito bonito em seu belo manto, velho.

Zedd foi vencido com um sorriso indefeso. — Bem, acho que sim. — O franzido no rosto dele voltou. — Um pouco, pelo menos. Tome conta da Madre Confessora. Quando Richard souber que eu a deixei para seguir no caminho de volta sozinha, ele poderá fazer mais do que me beliscar.

Kahlan jogou os braços em volta do mago, repentinamente sentindo-se abandonada. Zedd era o avô de Richard, e isso fazia com que ela se sentisse um pouco melhor tendo pelo menos uma parte de Richard com ela.

Quando eles saíram, Zedd lançou um olhar para o gar. — Bem, Gratch, acho que seria melhor seguirmos nosso caminho.

No frio ar da noite, Kahlan segurou a manga do mago. — Zedd, você precisa colocar um pouco de bom senso em Richard.

A voz dele inflamou. — Ele não pode fazer isso para mim. Ele não está sendo racional.

Zedd estudou o rosto dela na luz fraca. Falou suavemente, depois de algum tempo. — A história raramente é feita por homens que usam a razão.

 

 

Não toquem em nada. — Richard lembrou novamente enquanto olhava por cima do ombro. — Eu falo sério.

As três Mord-Sith não responderam. Viraram e olharam o teto alto da entrada arqueada e então para os enormes blocos de granito negro unidos de forma complexa do lado de dentro logo depois das massivas portas corrediças que marcavam a entrada da Fortaleza do Mago. Richard olhou para trás, além de Ulic e Egan, na larga estrada que os levou subindo o lado da montanha e à última ponte de pedra com duzentos e cinquenta passos de comprimento, cruzando por cima de um abismo com lados quase verticais a despencarem pelo que pareciam milhares de pés. Ele não tinha certeza da total profundidade do abismo porque lá embaixo...

 

                                                                                CONTINUA 

 

 

                      

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