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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SANGUE DA CONGREGAÇÃO / Terry Goodkind
SANGUE DA CONGREGAÇÃO / Terry Goodkind

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

 

Exatamente no mesmo instante, as seis mulheres acordaram subitamente, o som prolongado de seus gritos ecoando ao redor da apertada cabine do Capitão. Na escuridão, Irmã Ulicia podia ouvir a outras arfando para recuperar o fôlego. Ela engoliu em seco, tentando controlar sua própria respiração, e imediatamente encolheu com a forte dor em sua garganta.

Podia sentir umidade em suas pálpebras, mas seus lábios estavam tão secos que teve que lambê-los, com medo que pudessem rachar e sangrar.

Alguém estava batendo na porta. Ela escutava os seus gritos apenas como um leve zumbido em sua cabeça. Não se preocupou em tentar se concentrar nas palavras ou no significado delas; o homem era irrelevante.

Erguendo uma das mãos trêmulas na direção do centro da escuridão no aposento, liberou uma onda do seu Han, a essência da vida e do espírito, direcionando para um ponto de calor dentro da lamparina à óleo que sabia estar pendurada em uma viga baixa.

 

 

 

 

O pavio acendeu obedientemente, soltando uma linha sinuosa que acompanhava o lento balanço do recipiente para frente e para trás, enquanto o barco balançava no mar.

As outras mulheres, todas nuas assim como ela, também estavam sentando, seus olhos fixos no fraco brilho amarelo, como se procurassem nele a salvação, ou talvez a certeza de que ainda estavam vivas e ainda houvesse luz para ser vista. Uma lágrima rolou pela bochecha de Ulicia também, com a visão da chama. A escuridão tinha sido sufocante, como uma grande quantidade de terra negra úmida lançada sobre si.

Suas cobertas estavam molhadas e frias de suor, mas até mesmo sem o suor, tudo estava sempre úmido no ar salgado, sem falar no jato que esporadicamente ensopava o convés e pingava em cima de tudo que estava embaixo.

Ela não conseguia lembrar qual era a sensação de ter roupas e cobertas secas. Odiava esse barco, sua umidade interminável, o cheiro de sujeira, e o constante balanço que revirava o seu estômago. Pelo menos estava viva para odiar o navio. Lentamente, engoliu o gosto de bile.

Ulicia passou os dedos na umidade quente sobre os seus olhos e estendeu a mão; as pontas dos dedos brilhavam com sangue. Como se fossem encorajadas pelo exemplo dela, algumas das outras fizeram o mesmo cuidadosamente. Cada uma tinha arranhões sangrentos em suas pálpebras, acima das sobrancelhas e nas bochechas, por tentarem desesperadamente, mas futilmente, abrir os olhos, acordar da armadilha do sono, em uma tentativa de escapar do sonho que não era sonho.

Ulicia lutou para remover o nevoeiro de sua mente. Deve ter sido apenas um pesadelo.

Fez um esforço para desviar o olhar da chama, para as outras mulheres. Irmã Tovi ficou encolhida em uma cama inferior na parede do lado oposto, com as espessas concentrações de carne nos seus flancos parecendo afundar, acompanhando a expressão carrancuda no rosto enrugado enquanto ela observava a lamparina. O cabelo cinzento, ondulado, habitualmente arrumado da Irmã Cecilia estava uma bagunça, seu sorriso incessante substituído por uma pálida máscara de medo enquanto ficava olhando para cima, de uma cama inferior, perto de Tovi. Inclinando-se um pouco para frente, Ulicia olhou para a cama acima. Irmã Armina, nem de perto tão velha quanto Tovi ou Cecilia, mas com idade próxima a de Ulicia e ainda atraente, parecia cansada. Com dedos trêmulos, a geralmente tranquila Armina limpou o sangue das pálpebras.

Do outro lado do passadiço estreito, nas camas acima de Tovi e Cecilia, estavam sentadas as duas Irmãs mais jovens e controladas. Arranhões irregulares marcavam a pele perfeita das bochechas da Irmã Nicci. Fios do cabelo louro estavam grudados nas lágrimas, suor e sangue no seu rosto. Irmã Merissa, igualmente bela, apertou um cobertor nos seios nus, não por vergonha, mas com grande temor. O seu longo cabelo era uma massa emaranhada.

As outras eram mais velhas, e controlavam o poder com a habilidade forjada com a experiência, mas tanto Nicci quanto Merissa eram possuidoras de raros talentos sombrios inatos, um hábil toque que nenhuma quantidade de experiência poderia gerar. Com astúcia além de sua idade, nenhuma delas se deixava enganar pelos sorrisos gentis ou fingimento de Cecilia ou Tovi. Embora fossem jovens e cheias de confiança, ambas sabiam que Cecilia, Tovi, Armina, e especialmente a própria Ulicia eram capazes de despedaçar as duas, pedaço por pedaço, se desejassem. Ainda assim, isso não diminuía a habilidade delas; por direito, eram duas das mais formidáveis mulheres que já respiraram. Mas era pela singular determinação delas em prevalecer que o Guardião as selecionara.

Ver essas mulheres que ela conhecia tão bem em tal estado era inquietante, mas foi a visão do terror descontrolado de Merissa que realmente mexeu com Ulicia. Nunca tinha conhecido uma Irmã tão calma, controlada, implacável, tão impiedosa, quanto Merissa. Irmã Merissa tinha um coração de gelo negro.

Ulicia conhecia Merissa durante quase 170 anos, e em todo esse tempo não conseguia lembrar ao menos ter a vistoela chorar. Ela estava chorando agora.

Irmã Ulicia ganhou força ao ver as outras em uma condição de fraqueza tão desprezível e na verdade aquilo lhe agradou; era a líder e mais forte do que elas.

O homem ainda estava batendo na porta, querendo saber qual era o problema, de que se tratava toda aquela gritaria. Ela liberou sua raiva na direção da porta. — Deixe-nos em paz! Se precisarmos de você nós chamaremos!

As pragas abafadas do marinheiro foram desaparecendo enquanto se afastava. O único som, além do ranger de madeira enquanto o barco balançava ao bater de través no mar agitado, era o choro.

— Pare de choramingar, Merissa. — Ulicia disparou.

Os olhos escuros de Merissa, ainda vidrados pelo medo, focaram nela. — Nunca foi desse jeito. — Tovi e Cecilia assentiram mostrando que concordavam. — Tenho obedecido as ordens dele. Porque fez isso? Não falhei com ele.

— Se tivéssemos falhado com ele, — Ulicia falou, — estaríamos lá, junto com Irmã Liliana.

Armina começou a falar. — Você a viu também? Ela estava...

— Eu vi. — Ulicia disse, mascarando seu próprio horror com um tom calmo.

Irmã Nicci afastou um tufo de seu cabelo louro molhado do rosto. Recuperando a compostura, suavizou a voz. — Irmã Liliana falhou com o Mestre.

Irmã Merissa, com a tensão nos olhos desaparecendo, lançou um olhar de frio desdém. — Ela está pagando o preço do fracasso. — O tom áspero em seu próprio tom engrossou como o gelo do inverno em uma janela. — Para sempre. — Merissa quase nunca deixava a emoção evidente, mas agora ela tocava seu rosto enquanto suas sobrancelhas arqueavam exibindo uma expressão de raiva, — Ela foi contra suas ordens, Irmã Ulicia, e as do Guardião. Arruinou nossos planos. Isso é culpa dela.

Realmente Liliana havia falhado com o Guardião. Elas não estariam nesse maldito barco se não fosse por Irmã Liliana.

O rosto de Ulicia esquentou com o pensamento na arrogância daquela mulher. Liliana pensou em ter a glória para ela mesma. Recebeu o que merecia. Mesmo assim, Ulicia engoliu em seco ao lembrar-se de ter visto o tormento de Liliana, e dessa vez nem mesmo notou a dor de sua garganta machucada.

— Mas e quanto a nós? — Cecilia perguntou. O sorriso dela retornou mais apologético do que alegre. — Devemos fazer como esse... Homem diz?

Ulicia passou a mão no rosto. Elas não tinham tempo para hesitar, se isso fosse real, se o que ela viu realmente tivesse acontecido. Não deveria ser nada mais do que um simples pesadelo; ninguém além do Guardião havia aparecido para ela no sonho que não era sonho. Sim, tinha que ser apenas um pesadelo. Ulicia observou uma barata rastejar dentro do penico. Os olhos dela levantaram subitamente.

— Esse homem? Você não viu o Guardião? Viu um homem?

Cecilia gemeu. — Jagang.

Tovi levantou a mão em direção aos lábios para beijar seu dedo anular, um antigo gesto pedindo a proteção do Criador. Era um velho hábito, iniciando na primeira manhã do treinamento de uma noviça. Cada uma delas aprendeu a fazer isso toda manhã, sem falta, ao levantar, e em tempos de tribulação. Provavelmente Tovi tinha feito isso, automaticamente, incontáveis milhares de vezes, assim como todas elas. A Irmã da Luz era simbolicamente ligada com o Criador, e com Sua vontade. Beijar o dedo anular era um ritual de renovação dessa ligação.

Não havia como dizer o que o ato de beijar esse dedo faria agora, em vista da traição delas. A superstição dizia que resultaria em morte para alguém que tivesse prometido sua alma para o Guardião, uma Irmã do Escuro, beijar esse dedo. Enquanto não estava claro se isso realmente invocaria a ira do Criador, não havia dúvida que invocaria a do Guardião. Quando a mão dela estava a meio caminho dos seus lábios, Tovi percebeu o que estava prestes a fazer e afastou-a.

— Todas vocês viram Jagang? — Ulicia olhou para cada uma, e cada uma delas balançou a cabeça confirmando. Uma leve centelha de esperança ainda cintilava nela. — Então vocês viram o Imperador. Isso não significa nada. — Ela inclinou na direção de Tovi. — O ouviu falar alguma coisa?

Tovi levou a colcha até o queixo. — Todas nós estivemos lá, como sempre estamos quando o Guardião nos procura. Estávamos sentadas no semicírculo, nuas, como sempre fazemos. Mas foi Jagang quem veio, não o Mestre.

Um leve choramingo saiu de Armina na cama acima. — Silêncio! — Ulicia voltou sua atenção para a trêmula Tovi.

— Mas o que ele disse? Quais foram suas palavras?

Os olhos de Tovi procuraram o chão. — Ele disse que agora nossas almas eram suas. Disse que agora éramos dele, e que vivemos apenas por sua vontade. Disse que devemos ir até ele imediatamente, ou teríamos inveja do destino da Irmã Liliana. — levantou os olhos, mirando dentro dos olhos de Ulicia. — Ele disse que nos arrependeríamos se o fizéssemos esperar. — Lágrimas encheram-lhe os olhos. — E então me deu uma amostra do que significaria desagradá-lo.

A carne de Ulicia tinha ficado gelada, e ela percebeu que também tinha puxado seu lençol. Ela o colocou de volta em seu colo com esforço. — Armina? — Uma suave confirmação veio lá de cima. — Cecilia? — Cecilia assentiu. Ulicia olhou para as duas nas camas superiores do lado oposto. A compostura que elas haviam trabalhado tanto para recuperar parecia ter se estabelecido. — Bem? Vocês duas ouviram as mesmas palavras?

— Sim, — Nicci falou.

— Exatamente as mesmas, — Merissa falou sem mostrar emoção. — Liliana jogou isso sobre nós.

— Talvez o Guardião esteja insatisfeito conosco, — Cecilia falou, — e nos entregou ao Imperador para que possamos servi-lo como uma maneira de merecer de volta nosso lugar.

A costa de Merissa ficou ereta. Seus olhos eram uma janela para dentro de um coração congelado. — Eu fiz meu juramento de alma para o Guardião. Se devemos servir a essa besta vulgar para recuperar as graças de nosso Mestre, então eu servirei. Lamberei os pés desse homem, se for preciso.

Ulicia lembrou de Jagang, pouco antes dele se despedir do semicírculo no sonho que não era sonho, ordenando que Merissa levantasse. Então ele havia se esticado casualmente, agarrado o seio direito dela em seus dedos poderosos, e pressionado até que os joelhos dela curvassem. Agora Ulicia olhou para o seio de Merissa, e viu marcas assustadoras.

Merissa não fez esforço algum para se cobrir enquanto a expressão serena dela fixava nos olhos de Ulicia. — O imperador falou que nos arrependeríamos, se o fizéssemos esperar.

Ulicia também tinha escutado as mesmas instruções. Jagang havia mostrado o que acontecia com quem desobedecia o Guardião. Como ele conseguiu tomar o lugar do Guardião no sonho que não era sonho? Ele fez aquilo, isso era tudo que importava. Tinha acontecido com todas elas. Não tinha sido um mero sonho.

Um temor que causava formigamento cresceu na boca do estômago dela enquanto a pequena chama de esperança se extinguia. Ela também tinha recebido uma amostra do que significaria a desobediência. O sangue que estava formando uma crosta acima dos olhos dela a fizeram lembrar do quanto desejou escapar daquela lição. Aquilo foi real, e todas sabiam disso. Elas não tinham escolha. Não havia um momento a perder. Uma gota fria de suor desceu entre os seios dela. Se elas estivessem atrasadas...

Ulicia saltou para fora da cama.

— Façam meia volta nesse barco! — ela gritou quando abriu a porta. — Façam meia volta imediatamente!

Ninguém estava no corredor. Ela subiu rapidamente a escada, gritando. As outras correram atrás dela, batendo em portas de cabines enquanto a seguiam. Ulicia não se importou com as portas; era o timoneiro que apontava o barco para onde ele deveria seguir e comandava os marinheiros nas velas.

Ulicia abriu a porta da escotilha para encontrar uma luz turva; o amanhecer ainda não havia chegado para eles. Nuvens escuras pairavam acima do escuro caldeirão do mar. Espuma brilhava logo além da amurada enquanto o barco deslizava descendo por uma onda enorme, fazendo parecer que eles estavam mergulhando dentro de um profundo abismo negro. As outras Irmãs saíram pela escotilha atrás dela para o convés molhado.

— Façam meia volta nesse barco! — ela gritou para os marinheiros descalços que viraram com grande surpresa.

Ulicia grunhiu uma praga e correu para a popa, na direção do timão. As cinco Irmãs seguiram nos calcanhares dela enquanto ela seguia pelo convés escuro. Com as mãos segurando as lapelas de seu casaco, o timoneiro esticou o pescoço para ver qual era o problema. Luz de lanterna apareceu através da abertura aos pés dele, mostrando os rostos dos quatro homens manuseando o timão. Marinheiros se juntaram perto do timoneiro barbado, e ficaram olhando com grande surpresa para as seis mulheres.

Ulicia engoliu ar tentando recuperar o fôlego. — Qual é o problema com vocês idiotas de queixo frouxo? Não escutaram? Eu falei para dar meia volta nesse barco!

Repentinamente, ela entendeu a razão para aqueles olhares: as seis estavam nuas. Merissa caminhou até o lado dela, altiva e séria, como se estivesse usando um vestido que cobria ela do pescoço até os pés.

Um dos homens falou enquanto seu olhar contemplava a mulher mais jovem. — Bem, bem. Parece que as moças saíram para brincar.

Fria e distante, Merissa observou o sorriso libidinoso dele com serena autoridade. — O que é meu é meu, e não de qualquer outra pessoa, mesmo para olhar, a não ser que eu decida assim. Afaste os olhos da minha carne imediatamente, ou arrancarei eles.

Se o homem tivesse o dom, e o domínio dele como Ulicia, seria capaz de sentir o ar ao redor de Merissa estalando com o poder de forma ameaçadora. Esses homens as conheciam apenas como ricas mulheres da nobreza querendo viajar para lugares estranhos e distantes; não sabiam quem, ou o quê, as seis mulheres realmente eram. O Capitão Blake as conhecia como Irmãs da Luz, mas Ulicia ordenara que ele mantivesse esse conhecimento em segredo dos homens.

O homem zombou de Merissa com uma expressão lasciva e movimento obscenos dos quadris. — Não seja tão tímida, moça. Você não sairia desse jeito a não ser que tivesse em mente o mesmo que nós.

O ar chiou em volta de Merissa. Sangue brotou nas calças, bem no meio das pernas do homem. Ele gritou quando olhou para ela com olhos enlouquecidos. A lâmina comprida cintilou no cinto dele quando ele a retirou. Gritando um juramento de vingança, ele moveu-se adiante com intenção letal.

Um leve sorriso tocou os lábios de Merissa. — Sua escória imunda, — ela murmurou para si mesma. — Entrego você ao abraço frio do meu Mestre.

A carne dele despedaçou como se fosse um melão podre golpeado por uma vara. Uma concussão no ar gerada pelo poder do dom lançou ele por cima da amurada. Um rastro sangrento marcou sua trajetória pelo assoalho. Quase sem emitir som, a água negra engoliu o corpo. Os outros homens, quase uma dúzia, permaneceram de olhos arregalados e imóveis como estátuas.

— Todos vocês vão manter os olhos em nossos rostos, — Merissa sibilou. — e longe de todo o resto.

Os homens assentiram, horrorizados demais para falar que concordavam. O olhar de um dos homens desceu até o corpo dela involuntariamente, como se o fato dela ter falado que era proibido olhar tivesse tornado o impulso de espiar impossível de controlar. Com grande terror, ele começou a pedir desculpas, mas uma linha concentrada de poder tão afiada quanto um machado de batalha cortou através dos olhos dele. Ele caiu por cima da amurada da mesma maneira que o primeiro tinha feito.

— Merissa, — Ulicia falou suavemente, — isso é o bastante. Acho que eles aprenderam a lição.

Olhos gelados, distantes por trás da neblina do Han, viraram na direção dela. — Não permitirei que os olhos deles peguem o que não lhes pertence.

Ulicia levantou uma sobrancelha. — Precisamos deles para voltar. Você lembra de nossa urgência, não lembra?

Merissa olhou para os homens, como se estivesse avaliando insetos debaixo das botas dela. — É claro, Irmã. Devemos retornar imediatamente.

Ulicia virou para ver o Capitão Blake que acabara de chegar e estava parado atrás delas, sua boca aberta.

— Faça meia volta neste barco, Capitão, — Ulicia falou. — imediatamente.

A língua dele se moveu para molhar os lábios enquanto seu olhar saltava entre os olhos das mulheres. — Agora estão querendo voltar? Por quê?

Ulicia levantou um dedo na direção dele. — Você foi muito bem pago, Capitão, para nos levar aonde desejarmos ir, quando quisermos ir. Eu disse antes que perguntas não faziam parte da barganha, e também prometi que arrancaria sua pele se violasse qualquer parte da barganha. Se me testar, descobrirá que não sou tão indulgente quanto a Merissa aqui; Eu não garanto uma morte rápida. Agora, faça meia volta nesse barco!

O Capitão Blake entrou em ação. Arrumou seu casaco e olhou para os homens dele. — Ao trabalho, seus preguiçosos! — Ele fez um gesto para o timoneiro. — Senhor Dempsey, dê meia volta. — O homem parecia ainda estar congelado pelo choque. — Agora mesmo, Senhor Dempsey!

Arrancando o seu chapéu imundo da cabeça, Capitão Blake fez uma reverência para Ulicia, tendo cuidado para que seu olhar não desviasse dos olhos dela. — Como queira, Irmã. De volta ao redor da grande barreira, para o Mundo Antigo.

— Trace um curso direto, Capitão. O tempo é essencial.

Ele achatou o chapéu em um dos punhos. — Curso direto! Não podemos navegar através da grande barreira! — Imediatamente ele suavizou o tom. — Isso não é possível. Todos seremos mortos.

Ulicia pressionou uma das mãos sobre a queimação no estômago dela. — A grande barreira caiu, Capitão. Ela não é mais um obstáculo para nós. Trace um curso direto.

Ele ajeitou o chapéu. — A grande barreira caiu? Isso é impossível. O que faz você pensar...

Ela se inclinou na direção dele. — Você me questionaria outra vez?

— Não, Irmã. Não, claro que não. Se você diz que a barreira caiu, então ela caiu. Ainda que eu não entenda como aquilo que não poderia acontecer aconteceu, sei que não cabe a mim questionar. Que seja um curso direto então. — Ele esfregou o chapéu na boca. — Que o piedoso Criador nos proteja. — ele resmungou, virando para o timoneiro, ansioso para se afastar do olhar dela. — Vire a estibordo, Senhor Dempsey!

O homem olhou para os homens no timão. — Nós já estamos com tudo a estibordo, Capitão.

— Não discuta comigo ou farei você voltar nadando!

— Sim, Capitão. Voltem para as linhas! — Ele gritou para homens que já estavam arrastando algumas linhas e puxando outras, — Preparem-se para mudar de direção!

Ulicia avaliou os homens olhando nervosamente por cima dos ombros. — Irmãs da Luz possuem olhos atrás das cabeças, senhores. Providenciem para que os seus olhem para qualquer outro lugar, ou será a última coisa que verão nessa vida.

Homens assentiram antes de se concentrarem em suas tarefas.

De volta na cabine estreita delas, Tovi enrolou o corpo trêmulo em sua colcha. — Faz algum tempo desde que tive fortes homens jovens olhando com desejo para mim. — Olhou para Nicci e Merissa. — Aproveitem essa admiração enquanto você ainda são merecedoras dela.

Merissa tirou uma roupa do baú no fundo da cabine. — Não era para você que eles estavam olhando.

Um sorriso maternal surgiu no rosto de Cecilia. — Sabemos disso, Irmã. Acho que a Irmã Tovi quer dizer é que agora que estamos longe do feitiço no Palácio dos Profetas, vamos envelhecer como todos os outros. Vocês não terão os anos que nós tivemos para aproveitar sua aparência.

Merissa endireitou o corpo. — Quando nós conquistarmos de volta nosso lugar de honra com o Mestre, serei capaz de manter o que eu tenho.

Tovi ficou observando com uma rara aparência perigosa. — E eu quero e volta o que eu tive.

Armina sentou em uma cama. — Isso é culpa de Liliana. Se não fosse ela, não teríamos que sair do Palácio e de seu feitiço. Se não fosse ela, o Guardião não teria dado a Jagang o domínio sobre nós. Não teríamos perdido os favores do Mestre.

Todas ficaram em silêncio durante um momento. Se espremendo e passando umas pelas outras, todas se moveram vestindo suas roupas debaixo, enquanto tentavam evitar cotovelos.

Merissa passou a camisa sobre a cabeça. — Pretendo fazer tudo que for necessário para servir, e recuperar os favores do Mestre. Pretendo receber minha recompensa pelo meu juramento. — Ela olhou para Tovi. — Pretendo continuar jovem.

— Todas queremos a mesma coisa, Irmã, — Cecilia disse enquanto enfiava os braços pelas mangas do simples manto marrom. — Mas o Guardião quer que prestemos serviços para esse homem, Jagang, por enquanto. — Ele quer? — Ulicia perguntou.

Merissa agachou enquanto remexia nas roupas dentro do baú, e retirou seu vestido carmesim. — Porque mais teríamos sido entregues a esse homem?

Ulicia levantou uma sobrancelha. — Entregues? Acha mesmo? Acho que é mais do que isso; acho que o Imperador Jagang está agindo por sua própria vontade.

As outras pararam de vestir as roupas e levantaram os olhos. — Acha que poderíamos desafiar o Guardião? — Nicci perguntou. — Através das próprias ambições dele?

Com um dedo, Ulicia deu uma tapa no lado da cabeça de Nicci. — Pense. O Guardião falhou em vir até nós no sonho que não é um sonho; isso nunca aconteceu antes. Jamais. Ao invés disso apareceu Jagang. Mesmo se o Guardião estivesse descontente conosco, e desejasse que nós estivéssemos servindo Jagang como penitência, vocês não imaginam que ele mesmo poderia ter vindo e ordenado isso, para nos mostrar o desgosto dele? Não acho que isso seja um feito do Guardião. Acho que é coisa de Jagang.

Armina pegou seu vestido azul. Ele era mais claro do que o de Ulicia, mas não menos elaborado. — Liliana ainda continua sendo a culpada por ter nos causado tudo isso!

Um leve sorriso tocou os lábios de Ulicia. — Foi ela mesmo? Liliana era gananciosa, acho que o Guardião pensou em usar essa ganância, mas ela falhou com ele.— O sorriso desapareceu. — Não foi Irmã Liliana que causou tudo isso para nós.

A mão de Nicci fez uma pausa enquanto ela apertava o fio do espartilho de seu vestido negro. — É claro. O garoto.

— Garoto? —Ulicia balançou a cabeça lentamente. — Nenhum garoto poderia ter feito a barreira cair. Nenhum simples garoto poderia ter causado a ruína dos planos nos quais trabalhamos tão duro durante todos esses anos. Nós todas sabemos o que ele é, sobre as profecias. — Ulicia olhou para cada uma das Irmãs. — Estamos em uma posição muito perigosa. Devemos trabalhar para devolver o poder nesse mundo para o Guardião, caso contrário Jagang nos matará quando tiver terminado conosco, e nós estaremos no submundo, e não teremos mais utilidade para o Mestre. Se isso acontecer, então certamente o Guardião ficará descontente, e ele fará o que Jagang nos mostrou parecer o abraço de um amante.

O barco rangeu e grunhiu enquanto todas consideravam as palavras dela. Elas estavam correndo para servir a um homem que as usaria, e então as descartaria sem pensar duas vezes, e muito menos dar alguma recompensa, mesmo assim nenhuma delas estava preparada para ao menos considerar desafiá-lo.

— Garoto ou não, ele causou tudo isso. — Os músculos na mandíbula de Merissa ficaram tensos. — E pensar que tive ele em minhas garras, todas tivemos. Deveríamos ter acabado com ele quando tivemos a chance.

— Liliana também pensou em acabar com ele, para ter o poder dele para si mesma, — Ulicia falou, — mas ela foi descuidada e acabou com aquela espada maldita dele enfiada no coração. Temos que ser mais espertas do que ela; então teremos o poder dele, e o Guardião sua alma.

Armina enxugou uma lágrima de sua pálpebra inferior. — Mas nesse meio tempo, deve ter algum jeito de nós evitarmos ter que retornar...

— E quanto tempo você acha que conseguiríamos permanecer acordadas? — Ulicia disparou. — Mais cedo ou mais tarde cairíamos no sono.

— E então? Jagang já mostrou que tem o poder para nos alcançar, não importa onde estejamos.

Merissa voltou a apertar os botões no espartilho do vestido carmesim dela. — Faremos o que tivermos de fazer, por enquanto, mas isso não significa que não possamos usar nossas cabeças.

As sobrancelhas de Ulicia se juntaram, enquanto ela pensava. Levantou os olhos com um sorriso torto. — O Imperador Jagang pode acreditar que está conosco onde ele quer, mas nós vivemos durante um longo tempo. Talvez, se usarmos nossas cabeças, e nossa experiência, não fiquemos tão assustadas quanto ele pensa?

Malevolência cintilou nos olhos de Tovi. — Sim, — ela sibilou, — realmente nós vivemos um longo tempo, e aprendemos a derrubar alguns ursos selvagens no chão, e retirar as tripas deles enquanto gritavam.

Nicci alisou as dobras da saia do vestido negro dela. — Arrancar as tripas de porcos é muito bom, mas o Imperador Jagang é nossa penitência, e não responsabilidade dela. Nem é vantajoso desperdiçar nossa raiva com Liliana; ela foi simplesmente uma tola gananciosa. Aquele que realmente nos causou todo esse problema é quem devemos fazer sofrer.

— Muito bem colocado, Irmã. — Ulicia disse.

Merissa tocou distraidamente o seio machucado. — Vou me banhar no sangue daquele jovem, — Os olhos dela saíram de foco, abrindo novamente a janela para seu coração negro. — enquanto ele observa.

O punho de Ulicia fechou bem apertado enquanto ela balançava a cabeça concordando. — Foi ele, o Seeker, quem causou isso para nós. Juro que ele pagará com o seu dom, sua vida, e sua alma.

Richard tinha acabado de tomar uma colher e sopa quente quando escutou o forte rosnado ameaçador. Ele fez uma careta olhando para Gratch. Os olhos do Gar brilhavam, acesos pelo fogo verde frio enquanto ele olhava na direção das sombras entre as colunas na base dos grandes degraus. Os lábios dele se contorceram em um grunhido, exibindo grandes presas. Richard percebeu que ainda estava com a boca cheia de sopa, e engoliu.

O rosnado gutural de Gratch aumentou, bem fundo em sua garganta, soando como uma porta velha de um antigo castelo enorme sendo aberta pela primeira vez depois de centenas de anos.

Richard olhou para os grandes olhos castanhos da Senhora Sanderholt. A Senhora Sanderholt, a chefe das cozinheiras no Palácio das Confessoras, ainda ficava inquieta com Gratch, e não estava completamente confiante nas garantias de Richard de que o Gar era inofensivo. O rosnado ameaçador não estava ajudando.

Ela havia levado pão recém assado e uma tigela da saborosa sopa para Richard lá fora, pretendendo sentar nos degraus com ele e conversar sobre Kahlan, apenas para descobrir que o Gar tinha chegado fazia pouco tempo.

Independente do medo dela por causa do Gar, Richard conseguiu convencê-la a juntar-se a ele nos degraus.

Gratch tinha ficado muito interessado ao ouvir o nome de Kahlan; ele tinha um tufo do cabelo dela que Richard lhe deu pendurado em uma correia em seu pescoço, junto com o dente de dragão. Richard tinha falado para Gratch que ele e Kahlan estavam apaixonados, e ela queria ser amiga de Gratch, assim como Richard era, e então o curioso Gar sentou para escutar, mas logo que Richard tinha provado a sopa, e antes que a Senhora Sanderholt pudesse começar, o humor de Gratch tinha mudado repentinamente. Agora ele parecia concentrado de forma selvagem, em algo que Richard não conseguia ver. — Porque ele está fazendo isso? — A Senhora Sanderholt sussurrou.

— Não tenho certeza. — Richard admitiu. Ele abriu um sorriso e encolheu os ombros rapidamente quando a expressão de preocupação no rosto dela aumentou. — Ele deve estar enxergando um coelho ou algo assim. Gars possuem uma visão excepcional, mesmo no escuro, e são excelentes caçadores.

A expressão de preocupação dela não aliviou, então ele continuou. — Ele não come pessoas. Nunca machucaria ninguém. — Ele reassegurou. — Está tudo bem, Senhora Sanderholt, está mesmo.

Richard olhou para o rosto de aparência sinistra que rosnava. — Gratch, — ele sussurrou com o canto da boca, — pare de rosnar. Está assustando ela.

— Richard, — ela falou quando se inclinou chegando mais perto. — Gars são bestas perigosas. Eles não são bichinhos de estimação. Não podemos confiar em Gars.

— Gratch não é um bichinho de estimação, ele é meu amigo. Conheço ele desde que era filhote, desde que era da metade do meu tamanho. Ele é tão gentil quanto um gatinho.

Um sorriso pouco convincente surgiu no rosto da Senhora Sanderholt. — Se você diz, Richard. — De repente o terror fez ela arregalar os olhos, — Ele não entende nada que estou dizendo, entende?

— É difícil dizer. — Richard confidenciou. — Às vezes ele entende mais do que eu acharia possível.

Gratch parecia ter esquecido deles enquanto eles conversavam. Ele estava totalmente concentrado, parecendo ter sentido o cheiro ou visto algo que não gostava. Richard pensou já ter visto Gratch rosnando daquele jeito, mas não conseguia lembrar onde ou quando. Ele tentou lembrar da ocasião, mas a imagem mental continuava fugindo, ficando fora de alcance. Quanto mais ele tentava, mas esquiva a lembrança obscura ficava, — Gratch? — Ele segurou o poderoso braço do Gar. — Gratch, o que foi?

Completamente imóvel, Gratch não reagiu ao toque. Quando ele cresceu, o brilho em seus olhos verdes tinha se intensificado, mas nunca antes com essa ferocidade. Eles estavam cintilando com grande força.

Richard observou as sombras, onde aqueles olhos verdes estavam fixos, mas não viu nada fora do comum. Não havia pessoa alguma entre as colunas, ou pelos muros do terreno do Palácio. Deve ser um coelho, ele finalmente decidiu; Gratch adorava coelho.

O amanhecer estava começando a revelar filetes de nuvens púrpuras e rosadas no horizonte brilhante, deixando apenas algumas estrelas brilhando fracamente no céu a oeste. Com o leve brilho da primeira luz veio uma brisa suave, excepcionalmente quente para o inverno, que agitou o pelo da grande besta e abriu a capa negra de Mriswith de Richard.

Quando ele estivera no Mundo Antigo com as Irmãs da Luz, Richard entrou na Floresta Hagen, onde espreitava o Mriswith, criaturas odiosas com aparência de homens mesclados a um pesadelo reptiliano. Depois que ele lutou e matou um dos Mriswith, ele descobriu a coisa surpreendente que a capa dele podia fazer; tinha a habilidade de se misturar ao ambiente tão perfeitamente, que fazia o Mriswith, ou Richard, quando ele se concentrava ao usar a capa, parecer invisível. Ela também impedia que qualquer um com o dom sentisse a presença deles, ou dele. Por alguma razão, entretanto, o dom de Richard permitia que ele sentisse a presença do Mriswith. Essa habilidade, de sentir o perigo independente de sua capa mágica, tinha salvado a sua vida.

Richard achou difícil concentrar-se no rosnado de Gratch para coelhos nas sombras. A angústia, a tristeza entorpecente, de acreditar que sua amada, Kahlan, tinha sido executada, evaporou num instante no dia anterior quando ele descobriu que ela estava viva. Ele sentiu uma alegria incrível com o fato dela estar segura, e ficou exultante ao ter passado a noite com ela em um lugar estranho entre os mundos. Sua mente estava mergulhada na alegria dessa linda manhã, e ele descobriu que estava sorrindo sem perceber. Nem mesmo a inoportuna fixação de Gratch com um coelho poderia estragar seu humor.

Porém, Richard realmente estava achando o som gutural perturbador, e obviamente a Senhora Sanderholt achava isso alarmante; ela estava sentada imóvel na ponta de um degrau ao lado dele, agarrando o xale dela com força. — Quieto, Gratch. Você acabou de comer uma perna de carneiro e metade de um pão. Ainda não poderia estar com tanta fome.

Ainda que a atenção de Gratch continuasse fixa, seu rosnado diminuiu para um murmúrio profundo em sua garganta, como se ele estivesse tentando obedecer distraidamente.

Richard direcionou mais uma vez um rápido olhar para a cidade. Seu plano era encontrar um cavalo e rapidamente seguir seu caminho para encontrar com Kahlan e seu avô e velho amigo, Zedd. Além de estar impaciente para ver Kahlan, ele sentia muita saudade de Zedd; fazia três meses desde que tinha visto ele, mas pareciam anos. Zedd era um mago de Primeira Ordem, e havia muito que Richard, em vista de suas descobertas sobre si mesmo, precisava perguntar a ele, mas então a Senhora Sanderholt trouxe a sopa e o pão fresco. De bom humor ou não, ele estava faminto, Richard olhou para trás, além da elegância branca o Palácio das Confessoras, lá em cima, para a imensa e imponente Fortaleza do Mago incrustada no lado íngreme da montanha, seus muros de rocha negra, seus baluartes, bastiões, torres, passagens conectadas, e pontes, tudo parecendo brotar da pedra de forma sinistra, de algum modo parecendo viva, como se estivesse observando ele lá do alto. Uma larga faixa de estrada seguia ondulando da cidade subindo na direção dos muros escuros, cruzando uma ponte que parecia fina e delicada, mas apenas por causa da distância, antes de passar por baixo de um portão cheio de pontas e ser engolida dentro da bocarra escura da Fortaleza.

Deveria haver milhares de quartos na Fortaleza, se é que havia algum. Richard fechou um pouco mais sua capa sob o olhar de pedra frio daquele lugar, e afastou os olhos. Esse era o Palácio, a cidade, onde Kahlan tinha crescido, onde tinha vivido a maior parte de sua vida até o verão anterior quando cruzou a fronteira para Westland procurando por Zedd, e encontrou Richard também.

A Fortaleza do Mago era o lugar onde Zedd cresceu e morou antes de partir para Midlands, antes de Richard nascer. Kahlan contou para ele histórias sobre como ela havia passado a maior parte do tempo na Fortaleza, estudando, mas ela nunca tinha feito o lugar parecer ao menos um pouco sinistro. Massiva naquela montanha, agora a Fortaleza parecia assustadora.

O sorriso de Richard retornou quando pensou em como Kahlan deveria parecer quando era garotinha, uma Confessora em treinamento, perambulando pelos corredores desse Palácio, caminhando pelos corredores da Fortaleza, entre os magos, e lá fora entre as pessoas da cidade.

Mas Aydindril havia caído diante da Ordem Imperial, e não era mais uma cidade livre, não era mais o centro do poder em Midlands.

Zedd produziu um de seus truques de mago, magia, para fazer todos pensarem que testemunharam a decapitação de Kahlan, permitindo que eles fugissem de Aydindril, enquanto todos aqui pensavam que ela estava morta. Agora ninguém seguiria atrás deles. A Senhora Sanderholt conhecia Kahlan desde que ela nasceu, e ficou muito aliviada quando Richard contou que Kahlan estava bem e em segurança.

O sorriso tocou os lábios dele outra vez. — Como era Kahlan quando era pequena?

Ela olhou para longe, com um sorriso em seus lábios também. — Sempre estava séria, mas a criança mais preciosa que eu já vi, que cresceu para ser uma mulher forte e bela. Era uma criança não apenas tocada pela magia, mas também com uma personalidade especial.

— Nenhuma das Confessoras ficou surpresa com a ascensão dela para Madre Confessora, e todas estavam satisfeitas porque o costume dela era facilitar o entendimento, não dominar, ainda que se alguém erroneamente fizesse oposição a ela descobriria ela era forte como ferro assim como qualquer outra Madre Confessora que já nasceu. Jamais fiquei sabendo de uma Confessora que tivesse a mesma paixão que ela pelo povo de Midlands. Sempre me senti honrada em conhecê-la. — Navegando nas lembranças, ela riu levemente, um som não tão frágil quanto o resto dela aparentava ser. — Mesmo uma vez quando eu dei uma palmada no traseiro depois que descobri que ela havia levado um pato recém assado sem pedir.

Richard sorriu ao escutar uma história sobre Kahlan comportando-se inadequadamente. — Punir uma Confessora, mesmo uma jovem, não deixou você preocupada?

— Não. — ela riu. — Se eu a tivesse mimado, sua mãe me mandaria embora. Nós deveríamos tratá-la com respeito, mas de modo correto.

— Ela chorou? — ele perguntou, antes de arrancar um grande pedaço de pão com uma mordida. Estava delicioso, trigo grosso com um toque de melado.

— Não. Ela parecia surpresa. Acreditava que não tinha feito nada de errado, e começou a explicar. Aparentemente uma mulher com duas crianças quase da idade de Kahlan estiveram esperando do lado de fora do Palácio por alguém que ela pensava que fosse fácil de enganar. Quando Kahlan estava seguindo para a Fortaleza do Mago, a mulher se aproximou dela com uma história triste, dizendo que precisava de ouro para alimentar seus filhos mais novos. Kahlan pediu a ela que esperasse, e então levou para ela o meu pato assado, concluindo que era de comida que a mulher precisava, não ouro. Kahlan sentou com as crianças... — Com uma das mãos enfaixadas, ela apontou para a esquerda. — ...bem ali naquele lado, e deu o pato para elas. A mulher estava furiosa, e começou a gritar, acusando Kahlan de ser egoísta com todo aquele ouro do Palácio.

— Enquanto Kahlan estava contando essa história, uma patrulha da Guarda Doméstica entrou na cozinha arrastando a mulher e seus dois filhos. Aparentemente, quando a mulher estava gritando com Kahlan a Guarda tinha presenciado a cena. Nesse momento a mão de Kahlan apareceu na cozinha querendo saber qual era o problema. Kahlan contou sua história, e a mulher ficou apavorada por estar sob a custódia da Guarda Doméstica, e pior, por encontrar-se diante da própria Madre Confessora.

— A mãe de Kahlan escutou a história dela, e a da mulher, e então falou para Kahlan que se você escolhe ajudar alguém então esse alguém torna-se sua responsabilidade, e era sua obrigação ajudar até que essa pessoa estivesse caminhando com os próprios pés novamente. Kahlan passou o dia seguinte em Kings Row, com a Guarda Doméstica arrastando a mulher atrás, indo de um Palácio até outro, procurando por alguém que precisasse de ajuda. Não teve muita sorte; todos sabiam que a mulher era uma beberrona.

— Me senti culpada por dar uma palmada em Kahlan antes de ao menos ouvir suas razões para pegar meu pato assado. Eu tinha uma amiga, uma mulher séria no comando das cozinheiras em um dos Palácios, e então eu corri até lá e convenci ela a aceitar a mulher como empregada quando Kahlan levasse ela. Nunca falei para Kahlan o que eu tinha feito. A mulher trabalhou lá por um longo tempo, mas ela nunca mais se aproximou do Palácio das Confessoras de novo. O filho mais jovem dela cresceu e entrou para a Guarda Doméstica. No verão passado ele foi ferido quando os D'Harans capturaram Aydindril, e morreu uma semana depois.

Richard também tinha lutado contra D'Hara, e no final matou seu governante, Darken Rahl. Ainda que ainda não conseguisse evitar sentir uma pontada de pesar por ter sido gerado por aquele homem maligno, não se sentia mais culpado por ser filho dele. Sabia que os crimes do pai não passavam para o filho, e certamente não era culpa de sua mãe que ela tivesse sido estuprada por Darken Rahl. Seu pai adotivo não amou a mãe de Richard menos por causa disso, nem mostrou menos amor por Richard pelo fato dele não ser do seu próprio sangue. Richard não teria amado menos o seu pai adotivo se soubesse que George Cypher não era seu pai verdadeiro.

Richard também era um mago, agora ele sabia. O dom, a força da magia dentro dele chamada Han, tinha sido passada por duas linhagens de magos: Zedd, seu avô por parte de mãe, e Darken Rahl, seu pai. Essa combinação tinha produzido nele magia que nenhum mago havia possuído em milhares de anos, não apenas Aditiva mas também Magia Subtrativa. Richard sabia pouco sobre ser um mago, ou sobre magia, mas Zedd o ajudaria a aprender, ajudaria ele a controlar o dom e usá-lo para ajudar pessoas.

Richard engoliu o pão que estava mastigando. — Essa parece a Kahlan que eu conheço.

A Senhora Sanderholt balançou a cabeça com tristeza. — Ela sempre sentiu uma profunda responsabilidade pelo povo de Midlands. Sei que machucou bem no fundo da alma dela que a mulher tivesse se voltado contra ela por causa da promessa de ouro.

— Nem todos fizeram isso, eu aposto, — Richard falou. — Mas é por isso que não deve contar para ninguém que ela ainda está viva. Para manter Kahlan segura, e protegê-la, ninguém deve saber a verdade.

— Você sabe que tem minha promessa, Richard. Mas acho que agora eles devem ter esquecido dela. Acho que se eles não conseguirem o ouro que lhes foi prometido, logo estarão brigando entre si.

— Então é por isso que todas aquelas pessoas estão reunidas do lado de fora do Palácio das Confessoras?

Ela assentiu. — Agora eles acreditam que possuem o direito, porque alguém da Ordem Imperial falou que eles receberiam. Ainda que o homem que disse isso agora esteja morto, é como se uma vez que suas palavras foram pronunciadas em voz alta, o ouro magicamente se tornasse deles. Se a Ordem Imperial não começar logo a entregar o ouro, imagino que não vai demorar muito para que aquelas pessoas nas ruas decidam invadir o Palácio e pegar ele.

— Talvez a promessa tivesse sido feita apenas como distração, e as tropas da Ordem estivessem com a intenção de ficar com o ouro, como pilhagem, e defendam o Palácio.

— Talvez você esteja certo. — Ela ficou com um olhar distante. — Pensando nisso, nem mesmo sei o que ainda estou fazendo aqui. Não pretendo ver a Ordem montar acampamento no Palácio. Não pretendo acabar trabalhando para eles. Talvez eu devesse partir, e ver se consigo encontrar um lugar para trabalhar onde as pessoas ainda estejam livres daquele grupo. Mesmo assim, parece tão estranho pensar em fazer isso; o Palácio tem sido meu lar durante a maior parte da minha vida.

Richard afastou os olhos do esplendor branco do Palácio das Confessoras, olhando para a cidade novamente. Ele deveria partir também, e deixar o antigo lar das Confessoras, e dos magos, para a Ordem Imperial? Mas como ele poderia fazer alguma coisa a respeito? Além disso, as tropas da Ordem provavelmente estavam procurando por ele. Seria melhor se eles escapulisse enquanto eles ainda estavam confusos e desorganizados depois da morte de seu conselho. Ele não sabia o que a Senhora Sanderholt deveria fazer, mas ele deveria partir antes que a Ordem o encontrasse. Precisava encontrar Kahlan e Zedd.

O rosnado de Gratch ficou mais forte como um som primitivo retumbante que agitou os ossos de Richard, e tirou ele de seus pensamentos. O Gar levantou lentamente. Richard escaneou a área lá embaixo novamente, mas não viu nada. O Palácio das Confessoras ficava sobre uma colina, com vista ampla de Aydindril, e dessa posição ele podia ver que havia tropas além dos muros, nas ruas da cidade, mas nenhuma delas estava perto dos três na entrada lateral para o pátio isolado do lado de fora da entrada da cozinha. Não havia nada vivo a vista onde Gratch estava olhando.

Richard ficou de pé, seus dedos encontrando um pouco de segurança no cabo da espada. Ele era mais alto do que a maioria dos homens, mas o Gar agigantava-se diante dele. Embora não fosse mais do que um jovem, para um Gar, Gratch tinha quase sete pés de altura, Richard imaginava que o peso do Gar fosse quase duas vezes o dele. Gratch ainda deveria crescer mais um pé, talvez mais; Richard estava muito longe de ser um perito em Gars de cauda curta — não tinha visto muitos, e aqueles que viu estavam tentando matar ele. Richard, na verdade, matou a mãe de Gratch, em autodefesa, e de forma não intencional acabara adotando o pequeno órfão. Com o passar do tempo, eles tornaram-se grandes amigos.

Músculos sob a pele rosada do estômago e do peito poderosamente construídos da besta tufaram formando saliências. Ele ficou imóvel e tenso, suas garras preparadas do lado do corpo, suas orelhas peludas moviam-se na direção de coisas invisíveis. Mesmo ao caçar presas quando estava com fome, Gratch nunca tinha mostrado esse nível de ferocidade. Richard sentiu os pelos da nuca ficando eriçados.

Gostaria de conseguir lembrar quando ou onde tinha visto Gratch rosnando desse jeito. Finalmente ele colocou de lado seus agradáveis pensamentos em Kahlan e, com crescente urgência, concentrou sua atenção.

A Senhora Sanderholt ficou parada ao lado dele, olhando nervosamente de Gratch, para o local onde ele estava olhando. De aparência magra e frágil, ela não era uma mulher tímida de modo algum, mas se as suas mãos não estivessem enfaixadas, ele pensou que ela estaria apertando elas com força; ela parecia querer fazer isso.

De repente Richard sentiu-se bastante exposto nos largos degraus em campo aberto. Seus olhos cinzentos aguçados examinaram as sombras e lugares ocultos entre as colunas, muros, e diversas belvederes elegantes espalhadas pelas partes baixas do terreno do Palácio. Neve cintilante levantou com um jato de vento ocasional, mas nada mais se moveu. Ele observou com tanta atenção que isso fez os olhos dele arderem, mas ele não viu nada vivo, nenhum sinal de qualquer ameaça.

Mesmo sem ver nada, Richard começou a sentir uma crescente sensação de perigo, não apenas uma simples reação ao ver Gratch tão irritado, mas vindo de dentro dele mesmo, de seu Han, vindo das profundezas do peito dele, fluindo dentro das fibras do músculos dele, deixando eles tensos e preparados. A magia interior havia se transformado em outro sentido que geralmente o avisava quando seus outros sentidos não faziam isso. Percebeu que era isso que estava enviando um aviso para ele agora.

Uma vontade de correr, antes que fosse tarde demais, ardeu bem fundo em suas entranhas. Precisava alcançar Kahlan; não queria se envolver em nenhum problema. Poderia encontrar um cavalo, e apenas ir embora. Melhor ainda, poderia correr, agora, e encontrar um cavalo depois.

As asas de Gratch abriram quando ele agachou em uma posição ameaçadora, pronto para atirar-se no ar. Seus lábios recuaram, vapor saindo entre suas presas enquanto o rosnado ficava mais profundo, fazendo o ar vibrar.

A carne nos braços de Richard formigou. Sua respiração acelerou quando a sensação palpável de perigo convergiu em pontos de ameaça.

— Senhora Sanderholt, — ele falou enquanto seu olhar pulava de uma sombra para outra, — porque você não entra. Vou entrar e conversarei com você depois...

Suas palavras ficaram presas na garganta quando ele viu um leve movimento entre as colunas brancas — uma ondulação no ar, como o calor no ar acima de uma fogueira. Ficou olhando fixamente, tentando decidir se realmente tinha visto aquilo, ou apenas imaginado. Ele tentou freneticamente pensar o que poderia ser aquilo, se realmente tivesse visto algo. Poderia ter sido um jato de neve carregada por uma rajada de vento. Ele não viu nada enquanto se concentrava forçando os olhos.

Provavelmente não era nada mais do que a neve no vento, ele tentou afirmar para si mesmo.

Subitamente, a clara percepção surgiu dentro dele, como fria água escura brotando por uma fenda em um rio congelado. Richard lembrou quando foi que ouviu Gratch rosnar daquele jeito. Os cabelos da nuca dele ficaram eriçados como finas agulhas de gelo em sua carne. Sua mão encontrou o cabo com metal trançado da espada.

— Vá. — ele sussurrou rapidamente para a Senhora Sanderholt. — Agora.

Sem hesitação, ela correu para os degraus e seguiu para a distante cozinha atrás dele enquanto o som do aço anunciou a chegada da Espada da Verdade no frio ar da manhã.

Como era possível que eles estivessem aqui? Não era possível, mesmo assim ele tinha certeza disso; podia sentir eles.

— Dance comigo, Morte. Estou pronto. — Richard murmurou, já em um transe com a fúria da magia que vinha da Espada da Verdade fluindo dentro dele. As palavras não eram dele, vieram da magia da espada, dos espíritos daqueles que usaram a arma antes dele. Junto com as palavras veio uma instintiva compreensão do significado delas: era uma oração, que significava dizer que poderia morrer hoje, então deveria se esforçar para fazer o melhor enquanto ainda estava vivo.

Do eco de outras vozes dentro dele surgiu a percepção de que as mesmas palavras também significavam algo completamente diferente: eram um grito de batalha.

Com um rugido, Gratch saltou no ar, suas asas erguendo ele depois de apenas uma batida. Neve rodopiou, girando no ar debaixo dele, movidas pelas poderosas batidas de suas asas que também abriram a capa de Mriswith de Richard.

Antes mesmo que ele pudesse ver eles se materializarem saído do ar do inverno, Richard conseguia sentir sua presença. Conseguia ver eles em sua mente mesmo que ainda não conseguisse enxergar com seus olhos.

Rugindo de fúria, Gratch desceu em linha reta na direção da base dos degraus. Perto das colunas, justamente quando o Gar os alcançou, eles começaram a ficar visíveis, escamas, garras e capas, brancas contra a neve. Brancas tão puras quanto a oração de uma criança.

Mriswith.

 

Os Mriswith reagiram contra a ameaça, materializando-se enquanto lançavam-se até o Gar. A magia da espada, sua fúria, inundou Richard com sua força total quando ele viu seu amigo ser atacado. Ele saltou descendo os degraus, na direção da batalha.

Uivos chegaram até seus ouvidos enquanto Gratch cortava os Mriswith em pedaços. No calor do combate agora eles estavam visíveis.

Contra o branco da pedra e da neve, era difícil distingui-los claramente, mas Richard podia ver eles bem o bastante; havia quase dez tanto quanto ele poderia afirmar no meio de toda a confusão. Debaixo das capas, usavam peles simples tão brancas quanto o resto dos corpos deles. Richard tinha visto eles negros, mas sabia que os Mriswith poderiam aparentar ter a cor do ambiente ao redor. Uma pele lisa firme cobria suas cabeças descendo até os pescoços deles, onde elas começavam a transformar em escamas integradas. Bocas sem lábios se abriam para revelar pequenos dentes finos como agulhas. Nas suas garras ligadas por membranas, eles seguravam facas com três lâminas. Pequenos olhos, brilhantes de ódio, fixaram-se no Gar enfurecido.

Com grande velocidade, eles se espalharam em volta da forma escura no meio deles, suas capas brancas ondulando enquanto deslizavam pela neve, alguns caindo com o ataque, ou se esquivando para fora do alcance, escapando por pouco dos poderosos braços do Gar. Com brutal eficiência, o Gar segurou as garras dos outros, rasgando-as, lançando jatos de sangue na neve.

Eles estavam tão concentrados em Gratch que Richard desceu nas costas deles sem enfrentar oposição. Nunca tinha lutado com mais de um Mriswith ao mesmo tempo, e aquela tinha sido uma experiência formidável, mas com a fúria da magia pulsando através dele ele pensou apenas em ajudar Gratch. Antes que eles tivessem chance de se virar para a nova ameaça, Richard cortou dois. Gritos de morte penetrantes ecoaram no ar da manhã, os sons eram dolorosos nos ouvidos dele.

Richard sentiu outros atrás dele, na direção do Palácio. Ele girou bem a tempo de ver mais três surgirem repentinamente. Estavam correndo para entrar na luta, com apenas a Senhora Sanderholt no caminho deles. Ela gritou ao perceber que sua rota de fuga estava bloqueada pelas criaturas que avançavam. Virou e correu na frente deles. Richard podia ver que ela perderia a corrida, e ele estava longe demais para chegar a tempo.

Com um giro de sua espada, Richard cortou uma forma escamosa que se aproximava ele. — Gratch! — ele gritou. — Gratch!

Arrancando a cabeça de um Mriswilh, Gratch levantou os olhos. Richard apontou com a espada.

— Gratch! Proteja ela!

Gratch percebeu instantaneamente a natureza do perigo para a Senhora Sanderholt. Jogando para o lado a carcaça sem cabeça, ele saltou no ar. Richard se abaixou. Rápidas batidas das asas de couro do Gar ergueram ele por cima da cabeça de Richard e subindo os degraus.

Esticando-se, Gratch agarrou a mulher em seus braços peludos. Os pés dela saíram do chão, ficando acima das facas dos Mriswith. Abrindo bem as asas. Gratch subiu antes que o peso da mulher pudesse reduzir o seu impulso, descendo longe dos Mriswith, e então, com um poderoso bater de asas, interrompeu sua descida para colocar a Senhora Sanderholt no chão. Sem pausa, ele voltou rapidamente para a luta e, evitando habilidosamente as lâminas brilhantes, atacou com suas garras e presas.

Richard virou para os três Mriswith na base dos degraus. Permitindo que a fúria da espada tomasse conta dele, uniu-se com a magia e os espíritos daqueles que empunharam a espada antes dele. Tudo se movia com a lenta elegância de uma dança, a dança com a morte. Os três Mriswith correram na direção dele, circulando com fria graça, um violento ataque de lâminas. Girando, eles se espalharam, deslizando nos degraus para cercá-lo. Com grande eficiência, Richard acertou uma das criaturas com a ponta de sua espada.

Para a surpresa dele, as outras duas gritaram, — Não!

Surpreso, Richard congelou. Não sabia que os Mriswith podiam falar. Eles ficaram imóveis nos degraus, observando ele com olhares semelhantes aos de serpentes. Eles quase conseguiram passar por ele nos degraus, na direção de Gratch.

Concentrados no Gar, ele presumiu, eles queriam passar por ele.

Richard subiu os degraus rapidamente, bloqueando o caminho deles. Novamente eles se dividiram, cada um seguindo por um lado. Richard fingiu atacar o que estava na esquerda, e então girou para golpear o outro. Sua espada despedaçou as lâminas triplas em uma de suas garras. Sem pausa, o Mriswith girou, evitando o golpe mortal da lâmina de Richard, mas quando a criatura aproximou, reduzindo a distância para dar o seu próprio golpe, ele puxou a espada de volta, cortando o pescoço dela. Com um uivo, o Mriswith desmoronou no chão, contorcendo, espalhando sangue na neve.

Antes que Richard pudesse virar para encarar o outro, ele atirou-se por trás. Os dois rolaram pelos degraus. Sua espada e uma das facas de três lâminas caíram na pedra lá embaixo, escorregando para fora de alcance, e desaparecendo debaixo da neve.

Eles rolaram, cada um tentando obter vantagem. Com o seu braço escamoso comprimindo o peito dele, a forte besta tentou espremer o estômago de Richard. Ele podia sentir a respiração fétida na sua nuca.

Embora não pudesse enxergar a espada dele, ele podia sentir sua magia, e sabia exatamente onde ela estava. Tentou se esticar para alcançá-la, mas o peso do Mriswith impedia. Tentou se arrastar, mas a rocha escorregadia com a neve não fornecia apoio suficiente. A espada continuava fora de alcance.

Fortalecido por sua raiva, Richard levantou cambaleante. Ainda agarrado nele com os dois braços escamosos, o Mriswith deslizou uma das pernas na perna dele. Richard caiu de cara no chão, o peso do Mriswith em suas costas tirando o ar de seus pulmões. A segunda faca do Mriswith pairava bem perto de seu rosto.

Grunhindo por causa do esforço, Richard levantou o corpo com um dos braços e com o outro bloqueou o punho que segurava a faca. Com um veloz e poderosos movimento, ele empurrou o Mriswith para trás, mergulhou debaixo do braço, e, quando levantou novamente, torceu ele dando uma volta completa. Osso estalou. Com sua outra mão, Richard levou a faca que estava em seu cinto até o peito da criatura. O Mriswith, com capa e tudo, assumiu uma cor pálida esverdeada.

— Quem enviou vocês! — Quando ele não respondeu, Richard torceu o braço dele, segurando ele atrás das costas da besta. — Quem enviou vocês!

O Mriswith fraquejou. — O Andarilho dos Sonhosssss. — ele sibilou.

— Quem é o Andarilho dos Sonhos? Porque vocês estão aqui?

Ondas de cor amarela cobriram o Mriswith. Seus olhos arregalaram quando ele tentou novamente escapar.

— Olhos verdessssss!

Um golpe súbito fez Richard recuar. Um raio de pelo negro agarrou o Mriswith. Garras curvaram a cabeça dele para trás. Presas mergulharam no pescoço dele. Um poderoso puxão rasgou sua garganta. Assustado, Richard procurava respirar.

Antes que pudesse recuperar o fôlego, o Gar, com os olhos verdes selvagens, aproximou-se rapidamente dele. Richard jogou os braços para cima quando a grande besta chocou-se contra ele. A faca voou de sua mão. O tamanho do Gar era sufocante, sua incrível força esmagadora. Richard parecia estar tentando conter uma montanha que estava desmoronando nele. Presas gotejantes estavam perto do rosto dele.

— Gratch! — Ele agarrou o pelo dele. — Gratch! Sou eu, Richard! — O rosto irritado afastou um pouco. Vapor soprava a cada respiração, espalhando o fedor pútrido do sangue do Mriswith. Os olhos verdes brilhantes piscaram.

Richard bateu no peito dele. — Está tudo bem, Gratch. Acabou. Acalme-se.

Os músculos de ferro dos braços que o seguravam afrouxaram. O rosnado transformou-se em um sorriso. Lágrimas brotaram nos olhos dele, Gratch apertou Richard contra o peito.

— Grrratch luuug Raaaach aaarg.

Dando tapinhas nas costas do Gar, Richard se esforçou para conseguir que o ar entrasse em seus pulmões. — Também amo você, Gratch.

Gratch, com o brilho vede de volta nos olhos, segurou Richard para realizar uma inspeção, como se desejasse ter certeza que seu amigo estava intacto. Ele soltou um gorgolejo indicando seu alívio, se era por descobrir que Richard estava seguro ou por ter parado antes de rasgá-lo em pedaços, Richard não tinha certeza, mas sabia que ele também estava aliviado que aquilo tivesse acabado. Seus músculos, com o medo, a raiva, e a fúria desaparecendo subitamente, latejaram com uma leve dor.

Richard respirou profundamente com a sensação de ter sobrevivido ao ataque repentino, mas ele estava inquieto com a súbita mudança do comportamento gentil de Gratch para aquela ferocidade mortal. Olhou ao redor, para aquela assustadora quantidade asquerosa de sangue espalhado na neve. Gratch não tinha feito tudo aquilo. Quando ele afastou o último vestígio da raiva da magia, lhe ocorreu que talvez Gratch enxergasse ele de uma forma parecida. Assim como Richard, Gratch havia respondido a uma ameaça.

— Gratch, você sabia que eles estavam aqui, não sabia?

Gratch assentiu de maneira entusiasmada, adicionando um leve rosnado para deixar claro. Richard teve o pensamento de que na última vez em que tinha visto Gratch rosnando com tanto fervor, do lado de fora da Floresta Hagen, Deve ter sido porque ele sentiu a presença do Mriswith.

As Irmãs da Luz disseram que ocasionalmente os Mriswith deixavam a Floresta Hagen, e que ninguém, nem as Irmãs da Luz, feiticeiras, ou até mesmo magos, tinha sido capaz e perceber a presença deles, ou tinha sobrevivido a um encontro com eles. Richard conseguiu sentir eles porque era o primeiro em cerca de três mil anos a nascer com os dois lados do dom. Então como Gratch sabia que eles estavam ali?

— Gratch, você conseguiu ver eles? — Gratch apontou para algumas das carcaças, como se estivesse mostrando onde eles estavam para Richard. — Não, eu consigo ver eles agora. Eu quero dizer antes, quando eu estava conversando com a Senhora Sanderholt e você estava rosnando. Conseguiu ver eles? — Gratch balançou a cabeça dele. — Conseguiu escutar eles, ou sentir o cheiro? — Gratch ficou pensativo, suas orelhas agitadas, e então balançou a cabeça novamente. — Então como sabia que eles estavam ali, antes que pudéssemos ver?

Grandes sobrancelhas se juntaram quando a besta franziu a testa olhando para Richard. Ele encolheu os ombros, parecendo perplexo com sua falha em fornecer uma resposta satisfatória.

— Quer dizer que antes que pudesse ver, você conseguiu sentir eles? Alguma coisa dentro de você avisou que eles estavam ali?

Gratch sorriu e assentiu, feliz que Richard pareceu entender. Aquilo era parecido com o modo como Richard sabia que eles estavam lá; antes que pudesse ver, ele conseguiu sentir, viu eles em sua mente. Mas Gratch não tinha o dom. Como ele poderia fazer isso?

Talvez fosse apenas porque animais podiam sentir coisas antes que as pessoas pudessem. Lobos normalmente sabiam que você estava ali antes que você soubesse que eles estavam. Geralmente, a única vez em que você sabia que um veado estava em um bosque era quando ele corria, por ter sentido sua presença antes que você o enxergasse. Animais geralmente tinham os sentidos mais aguçados do que as pessoas, e predadores eram alguns dos melhores. Gratch certamente era um predador. Aquele sentido pareceu ter servido a ele melhor do que a magia de Richard.

A Senhora Sanderholt, que havia descido os degraus, colocou uma das mãos enfaixadas no braço peludo de Gratch. — Gratch... obrigada. — Ela virou para Richard, baixando a voz. — Pensei que ele me mataria também. — ela confidenciou. Olhou para vários dos corpos despedaçados. — Eu vi Gars fazendo isso com pessoas. Quando ele me agarrou daquele jeito, pensei que certamente ele me mataria. Mas eu estava errada; ele é diferente. — Ela olhou novamente para Gratch. — Você salvou minha vida. Obrigada.

O sorriso de Gratch mostrou todo o tamanho de suas presas ensanguentadas A visão fez ela engolir em seco.

Richard olhou para o rosto sorridente de aparência sinistra. — Pare de sorrir, Gratch. Está assustando ela de novo.

Sua boca baixou, seus lábios cobriram suas ameaçadoras presas afiadas. Seu rosto enrugado mostrou uma expressão aborrecida. Gratch via a si mesmo como adorável, e parecia pensar que seria natural que todos os outros o enxergassem assim também.

A Senhora Sanderholt passou a mão no braço de Gratch. — Tudo bem. O seu sorriso é sincero, e bonito da sua própria maneira. Apenas não estou... acostumada com ele, só isso.

Gratch sorriu para a Senhora Sanderholt outra vez, adicionando um repentino bater de asas animado. Incapaz de evitar, a Senhora Sanderholt recuou um passo. Ela estava começando a entender que esse Gar era diferente daqueles que sempre representaram ameaça para as pessoas, mas seus instintos ainda governavam essa percepção.

Gratch se aproximou da mulher, para dar um abraço. Richard tinha certeza que ela morreria de medo antes que percebesse as boas intenções do Gar, então ele colocou um braço na frente de Gratch.

— Ele gosta de você, Senhora Sanderholt. Ele só queria dar um abraço, só isso. Mas acho que sua gratidão é suficiente.

Rapidamente ela recuperou a compostura. — Bobagem. — Sorrindo calorosamente, ela abriu os braços. — Eu gostaria de um abraço, Gratch.

Gratch gorgolejou de alegria e levantou ela. Suavemente, Richard pediu a Gratch para ser gentil. A Senhora Sanderholt soltou uma risada abafada. Logo que estava de volta no chão, ela arrumou a forma magra no vestido e ajeitou o xale nos ombros. Ela sorriu calorosamente.

— Você tem razão, Richard. Ele não é um bicho de estimação. É um amigo.

Gratch assentiu com entusiasmo, suas orelhas balançando enquanto batia suas asas novamente.

Richard tirou uma capa branca, uma que estava quase limpa, de um Mriswith que estava perto. Ele pediu permissão para a Senhora Sanderholt, e quando ela concedeu, colocou-a na frente de uma porta de carvalho que conduzia até uma pequena construção de pedra com teto baixo. Ele colocou a capa nos ombros dela e colocou o capuz sobre a cabeça dela.

— Quero que você se concentre. — ele disse. — Concentre-se no marrom da porta atrás de você. Segure as pontas da capa unidas debaixo do queixo, e feche os olhos se isso ajudar a se concentrar. Imagine que você faz parte da porta, que é da mesma cor dela.

Ela fez uma careta. — Porque tenho que fazer isso?

— Quero ver se você consegue parecer invisível como eles estavam.

— Invisível!

Richard sorriu, encorajando-a. — Pode apenas fazer uma tentativa?

Ela deu um suspiro e finalmente concordou. Os olhos dela fecharam lentamente. Sua respiração ficou uniforme e lenta. Nada aconteceu. Richard esperou um pouco mais, mas ainda assim, nada aconteceu. A capa continuou branca, nem um pedacinho dela ficou marrom. Finalmente ela abriu os olhos.

— Eu fiquei invisível? — ela perguntou, parecendo estar com medo de que tivesse ficado.

— Não. — Richard admitiu.

— Achei que não. Mas como esses horríveis homens cobra conseguem ficar invisíveis? — Ela tirou a capa dos ombros e tremeu de repulsa. — E o que fez você pensar que eu conseguiria fazer isso?

— Eles são chamados Mriswith. É a capa que permite que eles façam isso, então pensei que talvez você também pudesse.

Ela observou ele com uma expressão de dúvida. — Veja, deixe que eu mostre.

Richard tomou o lugar dela diante da porta e baixou o capuz da capa de Mriswith dele. Fechando a capa, ele concentrou sua mente na tarefa. No espaço de um suspiro, a capa ficou exatamente da mesma cor que ela enxergava atrás dele. Richard sabia que a magia da capa, aparentemente com a ajuda da sua própria magia, de algum modo envolvia as partes expostas dele também, assim ele parecia desaparecer.

Quando ele se moveu na frente da porta, a capa mudava para acompanhar continuamente o que ela estava vendo por trás dele; quando ele andou na frente da pedra branca, os pálidos blocos e as juntas sombreadas pareciam deslizar através dele, imitando a imagem de fundo como se ela realmente estivesse enxergando através dele. Richard sabia por experiência que mesmo se o fundo fosse complexo, não fazia diferença; a capa podia reproduzir tudo atrás dele.

Enquanto Richard se afastava, a Senhora Sanderholt continuava olhando para a porta, onde tinha visto ele pela última vez.

Os olhos de Gratch, entretanto, nunca desviavam dele. Ameaça surgiu naqueles olhos verdes enquanto o Gar seguia os movimentos de Richard. Um rosnado cresceu na garganta do Gar.

Richard deixou sua concentração relaxar. As cores do fundo deixaram a capa, fazendo ela voltar a ficar negra quando ele jogava o capuz para trás. — Ainda sou eu, Gratch.

A Senhora Sanderholt tomou um susto, virando para descobrir a nova localização dele.

O rosnado de Gratch desapareceu, e sua expressão abrandou, primeiro mostrando confusão, e então um sorriso. Ele riu do novo jogo soltando um gorgolejo baixo.

— Richard, — a Senhora Sanderholt gaguejou, — como você fez isso? Como ficou invisível?

— É a capa. Na verdade ela não faz com que eu fique invisível, mas de algum modo ela pode mudar de cor para combinar com o fundo, assim ela engana os olhos. Acho que é preciso magia para fazer a capa funcionar, e você não tem nenhuma, mas eu nasci com o dom então ela funciona comigo. — Richard olhou para os Mriswith caídos ao redor. — Acho que seria melhor queimar essas capas, para evitar que elas caiam nas mãos erradas.

Richard disse a Gratch para buscar as capas no topo dos degraus enquanto ele se abaixava para pegar as que estavam ali embaixo.

— Richard, você acha que poderia ser... perigoso usar a capa de uma dessas criaturas malignas?

— Perigoso? — Richard endireitou o corpo e coçou atrás do pescoço. — Não vejo como. Tudo que ela faz e mudar de cor. Você sabe, do mesmo jeito que alguns sapos e salamandras podem mudar de cor para se misturar com qualquer coisa onde estejam, como uma pedra, um tronco, ou uma folha.

Ela o ajudou, o melhor que podia com suas mãos enfaixadas, a dobrar as capas formando um monte. — Eu já vi um sapo desses. Sempre achei que o fato deles conseguirem fazer isso era uma das maravilhas do Criador. — Ela sorriu para ele.

— Talvez o Criador esteja abençoando você com o mesma recurso, porque você tem o dom. Que Ele seja louvado; Sua bênção ajudou a nos salvar.

Enquanto Gratch entregava o resto das capas, uma de cada vez, para que ela pudesse colocar junto com as outras, a ansiedade apertou como braços em volta do peito de Richard. Ele olhou para o Gar.

— Gratch, você não sente mais nenhum Mriswith em lugar algum, sente?

O Gar entregou a última capa para a Senhora Sanderholt e então olhou para longe, procurando atentamente. Finalmente, ele balançou a cabeça. Richard suspirou aliviado.

— Tem alguma ideia de onde eles vieram, Gratch? Qualquer direção em particular?

Gratch olhou em volta outra vez, examinando os arredores. Durante um momento de silêncio, sua atenção fixou na Fortaleza do Mago, mas depois ele continuou. Finalmente, ele encolheu os ombros, parecendo pedir desculpas.

Richard escaneou a cidade de Aydindril, estudando as tropas da Ordem Imperial que conseguia enxergar lá embaixo. Elas eram formadas por homens de várias nações, ele ouviu dizerem, mas reconheceu a cota de malha, armadura, e o couro escuro usado pela maioria deles: D'Harans.

Richard amarrou as pontas soltas da última capa, formando uma trouxa bem apertada, e então jogou no chão. — O que aconteceu com as suas mãos?

Ela esticou as mãos, virando-as. As tiras de tecido branco estavam manchadas com pingos de gordura, temperos, e óleos, e sujas de cinzas e fuligem de fogueiras. — Eles arrancaram minhas unhas com tenazes para me obrigar a testemunhar contra a Madre Confessora... contra Kahlan.

— E você fez isso? — Quando ela afastou os olhos, Richard ficou envergonhado ao perceber como a sua pergunta deve ter soado.

— Sinto muito, saiu sem querer. É claro que ninguém poderia esperar que você desafiasse as ordens deles sob tortura.

— A verdade não importa para pessoas como aquelas. Kahlan não acreditaria que você tivesse traído ela.

Ela encolheu os ombros quando baixou as mãos. — Eu não falaria as coisas que eles queriam que eu falasse sobre ela. Ela entendeu, assim como você disse. A própria Kahlan ordenou que eu testemunhasse contra ela para impedir que eles fizessem mais. Mesmo assim, foi terrível falar aquelas mentiras.

— Eu nasci com o dom, mas não sei como usá-lo, ou veria o que poderia fazer para ajudar. Sinto muito. — Ele se encolheu mostrando compaixão. — Pelo menos a dor está começando a diminuir?

— Com a Ordem Imperial no comando em Aydindril, eu temo que a dor esteja apenas começando.

— Foram os D'Harans que fizeram isso com você?

— Não. Foi um mago Kelteano que ordenou. Quando Kahlan escapou, ela o matou. Entretanto, a maioria das tropas da Ordem em Aydindril são D'Harans.

— Como eles estão tratando as pessoas da cidade?

Ela esfregou as mãos enfaixadas nos braços, como se estivesse com frio no ar do inverno, Richard quase colocou sua capa em volta dos ombros dela mas ao invés disso, pensando melhor, ajudou-a arrumando seu xale.

— Ainda que D'Hara tenha conquistado Aydindril, no outono passado, e suas tropas fossem brutais na luta, desde que derrubaram toda oposição e tomaram a cidade eles não foram tão cruéis, enquanto as ordens deles estavam sendo seguidas. Talvez eles simplesmente considerassem que o prêmio deles tinha mais valor intacto.

— Poderia ser isso mesmo, eu suponho. E quanto a Fortaleza? Eles tomaram conta dela também?

Ela olhou por cima do ombro, para cima da montanha. — Não tenho certeza, mas acho que não; a Fortaleza é protegida por feitiços, e pelo que ouvi falar, as tropas D'Haran temem a magia.

Richard esfregou o queixo, pensativo, — O que aconteceu depois que a guerra com D'Hara terminou?

— Aparentemente, os D'Harans, entre outros, fizeram pactos com a Ordem Imperial. Lentamente, os Kelteanos assumiram o comando, com os D'Harans que restaram sendo a maioria dos músculos mas aceitando o governo da cidade. Os Kelteanos não temem a magia do mesmo jeito que os D'Harans. O Príncipe Fyren, de Kelton, e aquele mago Kelteano comandaram o Conselho. Agora com o Príncipe, o mago, e o Conselho mortos, não tenho certeza de quem está no comando exatamente. Os D'Harans, eu suponho, que ainda nos deixam sob o controle da Ordem Imperial.

— Sem a Madre Confessora e os magos, tenho medo de nosso destino. Sei que ela precisava partir ou seria assassinada, mas ainda assim...

A voz dela sumiu, então ele concluiu. — Desde que Midlands foi criada e Aydindril fundada para ser o seu coração, ninguém além da Madre Confessora governou aqui.

— Você conhece a história?

— Kahlan me contou uma parte. Ela ficou muito triste por ter que abandonar Aydindril, mas eu lhe asseguro, não vamos deixar que a Ordem o tenha, do mesmo jeito, não deixaremos que ela domine Midlands.

A Senhora Sanderholt olhou para longe com resignação. — O que era, não existe mais. Com o tempo, a Ordem vai reescrever a história desse lugar, e Midlands será esquecida.

— Richard, sei que está ansioso para encontrar com ela. Encontrem um lugar para viverem suas vidas em paz e liberdade.

— Não fique amargo por causa do que foi perdido. Quando encontrar com ela, diga que embora houvesse pessoas comemorando o que eles pensaram ser a execução dela, muitos mais ficaram desolados ao ouvir que ela estava morta. Nas semanas desde que ela fugiu tenho visto o lado que ela não viu. Assim como em todo lugar, aqui tem pessoas más, gananciosas, mas também tem pessoas boas, que sempre lembrarão dela. Ainda que agora estejamos sujeitos à Ordem Imperial, enquanto vivermos, a lembrança de Midlands viverá em nossos corações.

— Obrigado. Senhora Sanderholt. Sei que ela ficará feliz em ouvir que nem todos se viraram contra ela e Midlands. Mas não desista da esperança. Enquanto Midlands viver em nossos corações, há esperança. Vamos vencer.

Ela sorriu, mas no fundo dos olhos dela ele conseguiu ver pela primeira vez o desespero. Ela não acreditava nele. A vida sob a Ordem, breve como tenha sido, foi brutal o bastante para extinguir até mesmo a centelha da esperança; foi por isso que ela não se preocupou em sair de Aydindril. Para onde ela iria?

Richard tirou sua espada da neve e esfregou a lâmina brilhante limpando-a na roupa de pele de um Mriswith.

Colocou a espada de volta em sua bainha.

Os dois viraram ao escutar o som de sussurros nervosos para ver uma multidão de trabalhadores de cozinha reunidos perto do topo dos degraus, observando incrédulos a carnificina na neve, e Gratch. Um homem tinha pegado uma das facas com três lâminas, e estava virando ela, examinando. Temendo descer os degraus, até perto de Gratch, ele fez gesticulou insistentemente para chamar a atenção da Senhora Sanderholt. Irritada, ela fez um sinal, pedindo que ele se aproximasse.

Ele parecia estar curvado mais por uma vida de trabalho duro do que pela idade, embora seu cabelo fino estivesse ficando cinzento. Ele desceu os degraus com um andar arrastado como se estivesse carregando um pesado saco de grãos em seus ombros arredondados. Ele fez uma rápida reverência mostrando respeito para Senhora Sanderholt enquanto seu olhar desviava dela, para os corpos, para Gratch, Richard, e voltava a ela.

— O que foi, Hank?

— Problema, Senhora Sanderholt.

— Estou um pouco ocupada, no momento, com meus próprios problemas. Será que vocês todos não conseguem tirar o pão dos fornos sem que eu esteja presente?

A cabeça dele balançou. — Sim, Senhora Sanderholt. Mas esse problema é sobre... — Ele lançou um olhar para uma carcaça fedorenta de Mriswith ali perto. — ...sobre essas coisas.

Richard endireitou o corpo. — O que tem eles?

Hank olhou para a espada na cintura dele, e então evitou os olhos dele. — Acho que... — Quando olhou para Gratch, e o Gar sorriu, o homem perdeu a voz.

— Hank, olhe para mim. — Richard esperou até ele obedecer. — O Gar não vai machucá-lo. — Essas coisas são chamadas de Mriswith. Gratch e eu matamos eles. Agora fale sobre o problema.

Ele esfregou as palmas das mãos nas calças de lã. — Dei uma olhada nas facas deles, naquelas três lâminas delas. Parece que foram elas que fizeram isso. — A expressão dele ficou sombria. — As notícias estão se espalhando, gerando pânico. Pessoas estão sendo mortas. O detalhe é que ninguém viu o que fez isso. Todos que foram mortos tiveram seus estômagos cortados por alguma coisa com três lâminas.

Com um suspiro angustiado, Richard passou uma das mãos no rosto. — É desse jeito que os Mriswith matam; eles estripam suas vítimas, e você nem consegue ver eles se aproximando. Onde essas pessoas foram mortas?

— Por toda cidade, quase ao mesmo tempo, logo na primeira luz do dia. Pelo que ouvi falar, imagino que deveriam ser assassinos separados. Pelo número dessas coisas Mriswith eu apostaria que estou certo. Os mortos formam rastros, como as marcas de uma roda, todos conduzindo até aqui.

— Eles mataram qualquer um que estivesse no caminho deles. Homens, mulheres, até cavalos. As tropas ficaram alvoroçadas, quando alguns de seus homens perceberam isso também, e o resto deles parece pensar que é algum tipo de ataque. Uma dessas coisas Mriswith entrou bem no meio da multidão reunida na rua. O bastardo não se preocupou em dar a volta, simplesmente abriu caminho cortando através da multidão. — Hank lançou um olhar triste para a Senhora Sanderholt. — Um entrou no Palácio. Matou uma empregada, dois guardas, e Jocelyn.

A Senhora Sanderholt arfou e cobriu a boca com uma das mãos enfaixadas. Os olhos dela fecharam enquanto ela fazia um oração.

— Sinto muito. Senhora Sanderholt, mas acho que Jocelyn não sofreu; encontrei ela bem ali, e ela já estava morta.

— Tem mais alguém do pessoal da cozinha?

— Só Jocelyn. Ela estava em uma missão, não estava nas cozinhas.

Gratch olhou para Richard silenciosamente enquanto observava lá em cima da montanha, os muros de pedra. A neve lá em cima estava rosada sob a luz do amanhecer. Ele apertou os lábios de frustração quando olhou para a cidade outra vez, com bile subindo em sua garganta.

— Hank.

— Senhor?

Richard virou. — Quero que junte alguns homens. Carreguem os Mriswith para frente do Palácio e coloque-os em fila pela entrada. Faça isso agora, antes que eles congelem e fiquem rígidos. — Os músculos em sua mandíbula tufaram enquanto ele cerrava os dentes. — Coloque as cabeças soltas em lanças. Coloque elas bem alinhadas, de cada um dos lados, para que qualquer pessoa que entre no palácio tenha que caminhar entre elas.

Hank limpou a garganta, com se estivesse prestes a protestar, mas então olhou para a espada na cintura de Richard e ao invés disso falou, — Imediatamente, senhor. — Ele balançou a cabeça para a Senhora Sanderholt e correu até o Palácio para conseguir ajuda.

— Os Mriswith devem ter magia. Talvez o medo dela pelo menos mantenha os D'Harans longe do Palácio por algum tempo.

Rugas de preocupação surgiram na testa dela. — Richard, como você diz, aparentemente essas criaturas tinham magia. Alguém além de você poderia enxergar esses homens serpente quando eles estão se esgueirando, mudando de cor?

Richard balançou a cabeça. — Pelo que sei, apenas a minha magia especial consegue sentir eles. Mas obviamente Gratch também consegue.

— A Ordem Imperial prega a maldade da magia, e daqueles que a possuem. E se esse Andarilho dos Sonhos tiver enviado os Mriswith para matar aqueles que possuem magia?

— Parece razoável. Onde você quer chegar?

Com expressão séria, ela observou ele por algum tempo. — O seu avô, Zedd, tem magia, e Kahlan também.

Calafrios subiram pelos braços dele ou escutar ela colocar em palavras os próprios pensamentos dele. — Eu sei, mas acho que tive uma ideia. Por enquanto, preciso fazer alguma coisa a respeito do que está acontecendo aqui; a respeito da Ordem.

— O que você pretende fazer? — Ela soltou um suspiro e suavizou o tom. — Não quero ofender, Richard.

— Ainda que tenha o dom, você não sabe como usá-lo. Não é um mago; não pode ajudar aqui. Vá, enquanto pode.

— Para onde! Se os Mriswith podem me alcançar aqui, podem me alcançar em qualquer lugar. Não existe lugar onde se esconder por muito tempo.

Ele olhou para longe, sentindo o calor no rosto. — Sei que não sou um mago.

— Então o que...

Ele lançou um olhar firme para ela. — Kahlan, como a Madre Confessora, em nome de Midlands, convocou Midlands para guerra contra a Ordem, contra sua tirania. A causa da Ordem é exterminar toda a magia e governar todos os povos. Se não lutarmos, todos os povos livres, e todos que possuem magia, serão assassinados ou escravizados. Não pode haver paz alguma para Midlands, para qualquer terra, para qualquer povo livre, até que a Ordem Imperial seja esmagada.

— Richard, tem muitos deles aqui. O que você espera conseguir fazer sozinho?

Ele estava cansado de ser pego de surpresa e nunca saber o que viria atrás dele em seguida. Estava cansado de ser mantido prisioneiro, torturado, treinado, de ouvir mentiras, de ser usado. De ver pessoas indefesas massacradas. Tinha que fazer alguma coisa.

Embora não fosse um mago, ele conhecia magos. Zedd estava apenas algumas semanas de distância, ao sudoeste. Zedd entenderia a necessidade de livrar Aydindril da Ordem Imperial, e de proteger a Fortaleza do Mago. Se a Ordem destruísse essa magia, quem sabe o que ficaria perdido para sempre?

Se fosse preciso, havia outros, no Palácio dos Profetas no Mundo Antigo, que poderiam estar dispostos, e capazes, para ajudar. Warren era seu amigo, e mesmo que não estivesse completamente treinado, era um mago, e conhecia a respeito da magia. Mais do que Richard, de qualquer modo.

Irmã Verna também ajudaria. As Irmãs eram feiticeiras e tinham o dom, ainda que ele não fosse tão poderoso quanto o de um mago. Porém, ele não confiava em nenhuma outra além de Irmã Verna. A não ser, talvez, a Prelada Annalina. Ele não gostou do modo como ela escondeu informações dele, e distorceu a verdade para servir as suas necessidades, mas não foi por maldade; tinha feito o que precisava fazer preocupando-se com os vivos. Sim, Ann poderia ajudá-lo.

E então havia Nathan, o profeta. Nathan, vivendo sob o feitiço do Palácio durante a maior parte de sua vida, tinha quase mil anos de idade. Richard não conseguia nem imaginar o que aquele homem sabia. Ele sabia que Richard era um mago guerreiro, o primeiro a nascer em milhares de anos, e ajudou ele a entender e aceitar o significado disso. Nathan ajudou ele antes, e Richard estava razoavelmente certo que ajudaria novamente; Nathan era um Rahl, ancestral de Richard.

Pensamentos desesperados correram através de sua mente. — O agressor faz as regras. De algum modo, eu devo mudá-las.

— O que você vai fazer?

Richard olhou para a cidade. — Preciso fazer alguma coisa que eles não esperam. — Passou os dedos sobre os fios de ouro que formavam a palavra VERDADE no cabo da espada, e ao mesmo tempo sentiu a efervescente textura de sua magia. — Eu empunho a Espada da Verdade, entregue a mim por um mago verdadeiro. Tenho uma responsabilidade. Eu sou o Seeker. — Em uma neblina de fúria que crescia com o pensamento nas pessoas sendo assassinadas pelos Mriswith, ele sussurrou para si mesmo, — Juro que farei o Andarilho dos Sonhos ter pesadelos.

 

Meus braços estar mesmo coçando como se tivessem formigas. — Lunetta reclamou. — Ser mais forte aqui.

Tobias Brogan olhou para trás, por cima do ombro. Pedaços e tiras de pano esfarrapado e desbotado sacudiam na luz fraca enquanto Lunetta se coçava. Entre as fileiras de homens adornados com armaduras e cotas de malha brilhantes, guarnecidas com capas vermelhas, a forma encolhida e curvada dela sobre o cavalo fazia parecer que ela estava espiando do meio de um monte de trapos.

Suas bochechas rechonchudas formavam cavidades com um sorriso que exibia a falta de um dente enquanto ela ria e se coçava novamente.

A boca de Brogan torceu de desgosto, e ele virou para longe, alisando seu fino bigode enquanto seu olhar passava novamente sobre a Fortaleza do Mago lá em cima, no lado da montanha. Os muros de pedra cinza escura recebiam os primeiros raios fracos do sol do inverno que avermelhava a neve nos pontos mais altos. A boca dele ficou mais tensa.

— Magia, eu digo, meu Lorde General — Lunetta insistiu. — Tem magia aqui. Magia poderosa. — Ela continuou tagarelando, resmungando sobre o modo como isso fazia a pele dela ficar arrepiada.

— Silêncio, sua bruxa velha. Mesmo os menos inteligentes não precisariam do seu talento desprezível para saber que Aydindril ferve com a corrupção da magia.

Olhos selvagens cintilaram debaixo das sobrancelhas carnudas dela. — Esta ser diferente de qualquer uma que você já tenha visto. — ela falou com uma voz fina demais para o resto dela. — Diferente de qualquer uma que eu já senti antes. E uma parte estar ao sudoeste também, não apenas aqui. — Ela coçou os antebraços com mais força enquanto tagarelava novamente.

Brogan olhou além dos amontoados de pessoas apressadas descendo a rua, lançando um olho crítico para os Palácios alinhados pela rua larga chamada, ele tinha sido informado, Kings Row. Os Palácios deveriam impressionar quem os via com a riqueza, poder, e o espírito do povo que representavam. Cada uma das estruturas competiam pela atenção com altas colunas, ornamentação elaborada, e conjuntos de janelas chamativas, telhados, e entablamentos decorados. Para Tobias Brogan, eles pareciam nada mais do que pavões de pedra: um desperdício de ostentação, se alguma vez ele tivesse visto um.

Em uma distante elevação estendia-se o Palácio das Confessoras, suas colunas de pedra e pináculos impossíveis de serem comparados com a elegância de Kings Row, e de algum modo mais branco do que a neve ao redor dele, como se tentasse mascarar a profanação de sua existência com a ilusão de pureza. O olhar de Brogan sondou os recessos do santuário de perversidade, o santuário do poder da magia sobre os humildes, enquanto seus dedos ossudos acariciavam distraidamente o estojo de couro dos troféus no cinto dele.

— Meu Lorde General, — Lunetta insistiu, inclinando-se para frente, — escutou o que eu disse...

Brogan deu um giro, suas botas polidas chiando contra o tribo de couro no frio. — Galtero!

Olhos que pareciam gelo negro brilharam sob um elmo polido, debaixo de uma crista de pelo de cavalo tingida de vermelho para combinar com a capa dos soldados. Ele segurava suas rédeas com facilidade em uma das mãos com manopla enquanto ele oscilava na sela com a graça fluida de um leão da montanha. — Lorde General?

— Se a minha irmã não conseguir ficar quieta quando eu mandar, — lançou um olhar sério para ela — amordace-a.

Lunetta disparou um olhar inquieto para o homem de ombros largos que cavalgava ao lado dela, para sua armadura polida quase até a perfeição e cota de malha, para suas armas bem afiadas. Ela abriu a boca para protestar, mas quando olhou novamente para aqueles olhos gelados fechou-a outra vez, e ao invés disso coçou os braços. — Me perdoe, Lorde General Brogan. — ela resmungou baixando a cabeça com respeito na direção de seu irmão.

Galtero deu um passo para o lado com seu cavalo agressivamente aproximando-se de Lunetta, seu poderoso cavalo cinzento emparelhando com a égua baia dela. — Silêncio, Streganicha.

As bochechas dela ficaram coradas com o insulto, e seus olhos, por um instante, brilharam ameaçadoramente, mas rapidamente isso desapareceu, e ela pareceu murchar dentro dos seus panos esfarrapados enquanto seus olhos baixaram mostrando submissão.

— Eu não ser uma bruxa. — ela sussurrou para si mesma.

Uma sobrancelha levantou acima de um olho frio, fazendo ela afundar mais ainda, e ela ficou em silêncio de vez.

Galtero era um bom homem; o fato de Lunetta ser irmã do Lorde General Brogan não serviria de nada se a ordem fosse dada. Ela era Streganicha, uma pessoa marcada pelo mal. Se a ordem fosse dada, Galtero ou qualquer um dos outros homens derramaria o sangue dela sem um momento de hesitação ou arrependimento.

Que ela fosse da família de Brogan apenas reforçava sua obrigação. Ela servia como um constante lembrete da habilidade do Guardião de atingir as pessoas íntegras, e destruir até mesmo a melhor das famílias.

Sete anos após o nascimento de Lunetta, o Criador tinha equilibrado a injustiça e Tobias nasceu, nasceu para se opor para aquilo que o Guardião havia corrompido; mas foi tarde demais para a mãe deles, que já tinha começado a mergulhar nos braços da loucura. Quando ele estava com oito anos, quando a má reputação havia lançado prematuramente seu pai dentro de uma sepultura e sua mãe finalmente, e completamente, tinha se aninhado no âmago da loucura, Tobias foi sobrecarregado com a obrigação de controlar o dom que sua irmã possuía, de controlar ela. Naquela idade Lunetta adorava ele, e ele tinha usado esse amor para convencê-la a escutar apenas os desejos do Criador, e para guiá-la na conduta moral, da maneira que os homens do círculo do Rei lhe ensinaram. Lunetta sempre precisou de, na verdade abraçou, orientação. Ela era uma alma indefesa aprisionada por uma maldição que estava além de sua habilidade de eliminar ou do seu poder de conseguir escapar.

Através de esforço implacável, ele tinha limpado a desonra de ter alguém nascido com o dom em sua família. Isso consumiu a maior parte de sua vida, mas Tobias devolveu a honra para o nome de sua família. Tinha mostrado para todos eles; havia transformado o estigma em vantagem para ele, e havia se tornado o mais louvado entre os louvados.

Tobias Brogan amava sua irmã — amava o bastante para cortar a garganta dela ele mesmo, se fosse preciso, para libertá-la das garras do Guardião, do tormento da marca dele, se alguma vez isso escapasse dos limites do controle. Ela viveria apenas enquanto fosse útil, apenas enquanto ajudasse eles a arrancar a raiz do mal, arrancar a raiz dos Banelings. Por enquanto, ela combatia o flagelo que tentava agarrar sua alma, e era útil. Ele percebeu que ela não parecia grande coisa, enrolada em pedaços de tecidos com diferentes cores, isso era a única coisa que trazia prazer a ela e a mantinha contente, ter diferentes cores enroladas nela, ela as chamava de suas bonitinhas, mas o Guardião tinha investido Lunetta com raro talento e força. Através de obstinado esforço, Tobias havia removido isso.

Essa era a falha na criação do Guardião, a falha em tudo que o Guardião criava: poderia ser usado como uma ferramenta pelos devotos, se eles fossem astutos o bastante. O Criador sempre fornecera armas para combater a profanação, se pelo menos alguém procurasse por elas e tivesse a sabedoria, a pura audácia, de usá-las. Isso era o que impressionava ele na Ordem Imperial; eles eram astutos o bastante para entender isso, e com recursos suficientes para usar a magia como uma ferramenta para procurar a profanação e destruí-la.

Como ele fez, a Ordem usava Streganicha, e aparentemente valorizavam e confiavam neles. Entretanto, ele não gostava disso, que eles tivessem permissão para vagar livres e sem supervisão para trazer informações e propostas, mas se em algum momento eles se voltassem contra a causa, bem, ele sempre mantinha Lunetta perto.

Mesmo assim, não gostava de estar tão perto do mal. Isso lhe causava repulsa, sendo sua irmã ou não.

O amanhecer estava surgindo e as ruas já estavam entulhadas de pessoas. Também havia em abundância soldados de diferentes terras, cada um deles patrulhando o terreno de seus próprios Palácios, e outros, a maior parte D'Haran, patrulhando a cidade. Muitas das tropas pareciam pouco à vontade, como se estivessem antecipando um ataque a qualquer momento. Brogan tinha assegurado que eles tivessem tudo bem ao alcance das mãos. Que ninguém nunca acreditasse em tudo que diziam, ele enviara suas próprias patrulhas na noite anterior, e eles confirmaram que não havia nenhum insurgente de Midlands em qualquer parte perto de Aydindril.

Brogan sempre preferia chegar quando era menos esperado, e em números maiores do que o previsto, apenas como garantia caso tivesse que resolver as coisas com suas própria mãos. Havia trazido todo um destacamento, quinhentos homens, para dentro da cidade, mas se ficasse comprovado que haveria problemas, ele sempre poderia levar sua força principal para dentro de Aydindril. Sua força principal já provara que era bastante capaz de esmagar qualquer insurreição.

Se os D'Harans não fossem aliados, as indicações dos números deles teriam sido alarmantes. Ainda que Brogan tivesse bastante fé nas habilidades de seus homens, somente os presunçosos entravam em batalhas quando as chances estavam equilibradas, muito menos se durassem muito; o Criador não tinha grande estima pelos presunçosos.

Levantando uma das mãos, Tobias reduziu a velocidade dos cavalos, para evitar que eles atropelassem um pelotão de soldados D'Haran que passavam caminhando diante da coluna. Ele pensou que era inapropriado que eles estivessem se movendo em uma formação de batalha, parecida com a sua própria formação em cunha, enquanto atravessavam a rua principal, mas talvez os D'Harans, encarregados da tarefa de patrulhar uma cidade derrotada, estivessem reduzidos a ladrões com uma simulação de bravura.

Os D'Harans, com armas nas mãos e parecendo estar com mau humor, trocaram olhares com a coluna da cavalaria que os observava, aparentemente procurando por qualquer sinal de ameaça. Brogan achou ligeiramente estranho que eles carregassem suas armas fora das bainhas. Pessoas cautelosas, os D'Harans.

Indiferentes com o que enxergavam, eles não apressaram o passo. Brogan sorriu; homens inferiores teriam acelerado sua caminhada. Suas armas, a maioria espadas e machados de batalha, não eram enfeitadas nem bonitas, e isso fazia eles parecerem ainda mais impressionantes. Eram armas carregadas porque provaram sua brutal eficiência, e não para exibição.

Em menor número cerca de vinte vezes, os homens usando couro escuro e cota de malha observaram todo o metal polido com indiferença; Polimento e precisão geralmente não mostrava nada mais do que extravagância, e ainda que nesse caso eles fossem um reflexo da disciplina de Brogan, uma amostra de mortal atenção a detalhes, os D'Harans provavelmente não sabiam disso. Onde ele e seus homens eram melhor conhecidos, a rápida visão de suas capas vermelhas era o bastante para fazer homens fortes empalidecerem, e o cintilar de suas armaduras polidas era o bastante para fazer um inimigo sentir medo e correr.

Quando eles atravessaram pelas Montanhas Rang'Shada de Nicobarese, Brogan tinha encontrado com um dos exércitos da Ordem, formado por homens de muitas nações, mas a maioria era D'Hara, e tinha ficado impressionado com o General D'Haran, Riggs, que tinha aceito conselho com interesse e atenção. Brogan, de fato, ficou tão impressionado com o homem que tinha deixado uma parte de suas próprias tropas com ele para ajudar na conquista de Midlands. A Ordem estava seguindo caminho para fazer com que a cidade pagã de Ebinissia, a cidade da Coroa de Galea, se curvasse. Pelo desejo do Criador, eles tiveram sucesso.

Brogan aprendeu que os D'Harans não encaravam a magia com bons olhos, e isso lhe agradou. Que eles também temessem a magia lhe causava nojo. A magia era o canal do Guardião para o mundo dos homens. O Criador deveria ser temido. A magia, a bruxaria do Guardião, deveria ser eliminada. Até que a fronteira tivesse sido derrubada na última primavera, D'Hara estivera isolada de Midlands por gerações, então em grande parte D'Hara e seu povo ainda eram desconhecidos para Brogan, um vasto território novo com necessidade de iluminação e, possivelmente, purificação.

Darken Rahl, o líder de D'Hara, tinha derrubado a fronteira, permitindo que suas tropas entrassem em Midlands e capturassem Aydindril, entre outras cidades. Se ele tivesse ficado mais interessado em se confinar aos assuntos do homem, Rahl poderia ter dominado toda Midlands antes que pudessem erguer exércitos contra ele, mas ele estava mais interessado em perseguir a magia, e essa tinha sido sua ruína. Assim que Darken Rahl estava morto, assassinado por um pretendente ao trono, como Brogan ouviu falar, as tropas D'Haran se uniram com a Ordem Imperial em sua causa.

Não havia mais lugar no mundo para a religião antiga e moribunda chamada magia. Agora a Ordem Imperial estava sobre o mundo; a glória do Criador guiaria o homem. As orações de Tobias Brogan foram atendidas, e todos os dias ele agradecia ao Criador por colocar ele no mundo nessa época, quando ele poderia estar no centro de tudo isso, para ver a blasfêmia da magia ser exterminada, para conduzir os justos na batalha final. Essa era a construção da história, e ele fazia parte disso.

O Criador, de fato, recentemente tinha surgido para Tobias em seus sonhos, para dizer o quanto Ele estava com seus esforços. Não revelou isso para nenhum de seus homens; isso poderia ser visto como presunção. Ser honrado pelo Criador era satisfação bastante. Claro que ele contou para Lunetta, e ela ficou assustada; afinal de contas, não era com frequência que o Criador decidia falar diretamente com uma das crianças Dele.

Brogan pressionou o cavalo com as pernas para aumentar o passo enquanto observava os D'Harans se movendo por uma rua lateral. Nenhum deles virou para ver se estavam sendo seguidos ou desafiados, mas apenas um tolo consideraria isso como complacência; Brogan não era tolo. O grupo partiu a coluna, dando a eles um largo caminho enquanto eles seguiam para Kings Row. Brogan reconheceu alguns dos uniformes de soldados de vários Palácios: Sandarianos, Jarianos, e Kelteanos. Não viu nenhum Galeano; a Ordem deveria ter obtido sucesso em sua tarefa na Cidade da Coroa de Galea de Ebinissia.

Finalmente Brogan viu tropas de sua terra natal. Com um aceno de mão impaciente ele sinalizou para um pelotão seguisse adiante. Suas capas, vermelhas para anunciar quem eles eram, ondulavam atrás deles enquanto avançavam passando pelos espadachins, lanceiros, carregadores de estandartes, e finalmente Brogan. Acompanhados pelo som de calçados de ferro batendo na pedra, os cavaleiros cavalgaram subindo os largos degraus do Palácio de Nicobarese. Era uma construção tão extravagante quanto as outras, com colunas estreitas de raro mármore branco com listras marrons, uma pedra difícil de encontrar tirada das montanhas ao leste de Nicobarese. A devassidão o irritava.

Os soldados que guardavam o Palácio recuaram com a visão dos homens nos cavalos e se encolheram em saudações trêmulas. O pelotão de cavaleiros fez eles recuarem mais ainda, abrindo um largo corredor para o lorde General.

No topo dos degraus, entre estátuas de soldados sobre garanhões empinados esculpidas na pedra de cor amarelada, Brogan desmontou. Entregou as rédeas para um dos Guardas do Palácio de rosto pálido enquanto sorria para a cidade, seus olhos repousando no Palácio das Confessoras. Hoje Tobias Brogan estava de bom humor. Ultimamente, esse tipo de humor estava ficando cada vez mais raro. Soltou um grande suspiro no ar do amanhecer: o amanhecer de um novo dia.

O homem que tinha segurado as rédeas fez uma reverência quando Brogan virou. — Vida longa ao Rei.

Brogan esticou sua capa. — Um pouco tarde para isso.

O homem limpou sua garganta, reunindo coragem. — Senhor?

— O Rei, — Brogan falou, enquanto alisava o bigode, — acabou se tornando mais do que todos nós que o amávamos pensavam. Ele queimou por seus pecados. Agora, cuide do meu cavalo. — Gesticulou para outro guarda. — Você, vá dizer para as cozinheiras que estou com fome. Não quero ficar esperando.

O guarda recuou, fazendo reverência, quando Brogan olhou para o homem que ainda estava em cima do cavalo. — Galtero. — O homem aproximou seu cavalo, sua capa vermelha flácida no ar parado. — Pegue metade dos homens, e traga ela para mim. Vou tomar o café da manhã e então julgarei ela.

Com um toque suave, seus dedos magros deslizaram distraidamente sobre um estojo no cinto dele. Logo ele adicionaria o prêmio dos prêmios em sua coleção. Sorriu de modo cruel com o pensamento, o sorriso distorcendo a cicatriz antiga no canto de sua boca, mas sem tocar seus olhos escuros. A glória da reparação moral seria dele.

— Lunetta. — Ela estava olhando fixamente para o Palácio das Confessoras, os retalhos esfarrapados de pano bem apertados nela enquanto coçava os antebraços. — Lunetta!

Ela se encolheu, finalmente escutando ele. — Sim, Lorde General?

Ele jogou sua capa vermelha para trás por cima do ombro e ajeitou sua faixa de graduação. — Venha, tome café comigo. Vamos ter uma conversa. Falarei sobre o sonho que tive noite passada.

Os olhos dela arregalaram de excitação. — Outro, meu Lorde General? Sim, eu gostaria muito de ouvir sobre isso. Você me honra.

— Certamente. — Ela foi atrás quando ele marchou através das altas portas duplas, para dentro do Palácio de Nicobarese. — Temos assuntos a discutir. Vai escutar atentamente, não vai, Lunetta?

Ela se arrastou nos calcanhares dele. — Sim, meu Lorde General. Sempre.

Ele parou em uma janela com uma grossa cortina azul. Sacando sua faca, ele cortou um pedaço de um lado, incluindo uma faixa com franjas douradas na borda.

Lambendo os lábios, Lunetta balançou de um lado para outro, trocando de posição o peso do corpo de um pé para outro enquanto esperava.

Brogan sorriu. — Uma bonitinha para você, Lunetta.

Com os olhos brilhando, ela agarrou segurando com avidez antes de colocar em um lugar, depois em outro, procurando o local perfeito para colocar junto com as outras. Ela riu de alegria. — Obrigada, Lorde General. Ela ser linda.

Ele continuou marchando, Lunetta correndo para seguir. Quadros da realeza estavam pendurados nos ricos painéis, e sob os pés suntuosos tapetes corriam longe. Molduras com folhas de ouro envolviam portas com o topo arredondado de ambos os lados. Espelhos com bordas douradas refletiam o vermelho que passava.

Um servo com uniforme marrom e branco fez uma reverência no corredor, esticando o braço para indicar a direção até a sala de jantar antes de se afastar rapidamente, olhando para os lados para ter certeza que estava livre de perigo, e fazendo reverência cada vez que dava alguns passos.

Tobias Brogan não era um homem que já tivesse assustado alguém com seu tamanho, mas os servos, trabalhadores, Guardas do Palácio, e oficiais parcialmente vestidos a entrarem correndo na sala para ver a causa de toda aquela agitação, ficavam pálidos com a visão dele, ao enxergarem o Lorde General em pessoa, o homem que comandava o Sangue da Congregação.

Ao seu comando, Banelings queimavam por seus pecados, fossem eles pedintes ou soldados, Lordes ou Damas, ou até mesmo Reis.

 

Irmã Verna ficou hipnotizada pelas chamas, suas profundezas soltando breves labaredas de cores brilhantes e raios cintilantes vivos com o movimento ondulante, dedos se contorcendo em uma dança, atraídos pelo ar que balançava as roupas deles ao passar, e lançando calor que teria feito todos recuarem, se não fosse pelos escudos. O enorme sol vermelho sangue estava parcialmente visível no horizonte, finalmente reduzindo a glória do fogo que tinha consumido os corpos. Algumas das Irmãs ao redor dela ainda gemiam levemente, mas Irmã Verna esgotara todas as lágrimas que tinha para dar.

Aproximadamente mais de cem garotos e homens jovens formavam um anel em volta da fogueira, com cerca de duas vezes esse número de Irmãs da Luz e noviças que circulavam dentro. Exceto por uma Irmã e um garoto que estavam simbolicamente cuidando do Palácio, e é claro, uma Irmã que tinha ficado fora de si e estava trancada em uma sala vazia protegida por escudos, para o próprio bem dela, todos estavam na colina acima de Tanimura observando as chamas saltarem para o céu. Mesmo com toda essa grande quantidade de gente reunida, cada um era tocado por profunda solidão, e ficava fechado em introspecção e oração. Como era prescrito, ninguém falava na cerimônia do funeral.

As costas da Irmã Verna estavam doendo por ficar vigiando os corpos durante a noite toda. Através da horas de escuridão todos permaneceram de pé, orando, e mantendo o escudo combinado sobre os corpos em proteção simbólica para os reverenciados. Pelo menos era um alívio estar longe do incessante som de tambores lá debaixo, na cidade.

Com a primeira luz o escudo foi baixado e cada um deles tinha lançado um fluxo de seu Han dentro da pira, incendiando-a. Fogo, alimentado pela magia, correu sobre as toras empilhadas e os dois corpos envolvidos pela mortalha, um pequeno e encolhido, o outro alto e poderosamente constituído, criando um grandioso inferno de poder.

Tiveram que procurar orientação nas câmaras pois ninguém vivo jamais havia participado da cerimônia; ela não tinha sido executada fazia quase oitocentos anos, 791, para ser exato: a última vez em que uma Prelada morreu.

Como aprendera nos livros antigos, apenas a Prelada deveria ter sua alma liberada para ficar sob a proteção do Criador na sagrada cerimônia do funeral, mas nesse caso as Irmãs todas votaram e forneceram o mesmo privilégio àquele que lutou tão bravamente para salvá-la. Os livros diziam que a dispensa da exclusão só poderia ser garantida por consentimento unânime. Foi preciso grande persuasão para fazer isso.

Pelo costume, quando o sol finalmente ganhava totalmente o horizonte, banhando a fogueira com o completo espetáculo da própria luz do Criador, o fluxo do Han foi interrompido. O poder deles chamado de volta, a pira colapsou, deixando apenas uma mancha de cinza e algumas toras queimadas para marcar o local da cerimônia no topo da colina verde. Fumaça subiu espiralando, dissipando no silencioso dia que começava a brilhar.

Cinzas brancas acinzentadas foi tudo que restou da Prelada Annalina no mundo dos vivos, e do profeta Nathan. Estava acabado.

Sem palavras, Irmãs começaram a se afastar lentamente, algumas sozinhas, outras com um braço confortador em volta dos ombros de um garoto ou noviça. Como almas perdidas, eles desceram a colina serpenteando na direção da cidade, e do Palácio dos Profetas, indo para um lar sem uma mãe. Quando Irmã Verna beijou seu dedo anelar, ela pensou que com o profeta morto, de certo modo, também estavam sem um pai.

Ela entrelaçou os dedos sobre o estômago enquanto observava distraidamente os outros caminhando ao longe. Não teve chance de fazer as pazes com a Prelada antes que ela morresse. A mulher tinha usado ela, humilhado, e permitido que fosse rebaixada por cumprir sua obrigação e seguir ordens.

Embora todas as Irmãs servissem ao Criador, e ela soubesse que aquilo que a Prelada tinha feito deveria ter sido por um bem maior, ficava magoada que a Prelada tivesse explorado essa fidelidade. Fazia ela sentir-se uma tola.

Porque a Prelada Annalina ficou ferida no ataque por Ulicia, uma Irmã do Escuro, e desde então permaneceu inconsciente por quase três semanas antes de sua morte, Irmã Verna não teve chance de conversar com ela. Somente Nathan tinha cuidado da Prelada, tentando curá-la incansavelmente, mas no final ele havia falhado. Foi o destino cruel que tirou sua vida também. Ainda que Nathan sempre tivesse parecido vigoroso para ela, o esforço deve ter sido demais para ele; afinal de contas, ele estava com quase mil anos de idade. Imaginou que ele deveria ter envelhecido durante os vinte anos em que ela estivera longe, procurando Richard e finalmente trazendo ele até o Palácio.

Irmã Verna sorriu ao lembrar de Richard; também sentia saudade dele. Ele tinha irritado ela até os limites de sua tolerância, mas ele também foi uma vítima dos planos da Prelada, embora ele parecesse ter entendido e aceito as coisas que ela fez e não guardasse nenhum ressentimento em relação a ela.

Ela sentiu uma pontada de tristeza ao pensar que o amor de Richard, Kahlan, provavelmente tinha morrido no clímax daquela terrível profecia. Esperava que isso não tivesse acontecido. A Prelada foi uma mulher determinada, e tinha orquestrado eventos na vidas de muitas pessoas. Irmã Verna esperava que isso tivesse sido feito para o bem das crianças do Criador, e não simplesmente pelas ambições pessoais da Prelada.

— Você parece zangada, Irmã Verna.

She turned to see young Warren standing with his hands in the opposite, silver brocade sleeves of his deep violet robes. She glanced around and realized that the two of them were alone on the hillside; the others, long gone, were dark specks in the distance.

— Talvez eu esteja, Warren.

— Está zangada com o quê, Irmã?

Com as palmas das mãos, ela alisou sua saia escura nos quadris. — Talvez eu só esteja zangada comigo mesma.

Ela pensou em mudar de assunto enquanto alisava o seu xale azul claro. — Você é tão jovem, nos seus estudos, quero dizer, que ainda sinto dificuldade em ver você sem um Rada'Han.

Como se ela o tivesse feito lembrar, os dedos dele tocaram o pescoço onde a coleira estivera durante a maior parte de sua vida.

— Jovem para aqueles que vivem sob o feitiço no Palácio, talvez, mas dificilmente jovem para aqueles do mundo no lado de fora. Tenho cento e cinquenta e sete anos, Irmã. Mas realmente fico muito agradecido que você tenha removido minha coleira. — Tirou os dedos do pescoço e empurrou para trás um tufo de cabelo louro ondulado. — Parece como se o mundo todo tivesse sido virado de cabeça para baixo nos últimos meses.

Ela riu. — Também sinto saudade de Richard.

Um leve sorriso iluminou o rosto dele. — Verdade? Ele era uma pessoa rara, não era? Mal posso acreditar que conseguiu evitar que o Guardião escapasse do submundo, mas ele precisava deter o espíritos do pai dele, e devolver a Pedra das Lágrimas ao seu devido lugar, ou todos nós teríamos sido engolidos pelos mortos. Para dizer a verdade, suei frio durante todo o solstício de inverno.

Irmã Verna assentiu, como se desejasse colocar ênfase em sua sinceridade. — As coisas que você ajudou a ensinar para ele devem ter sido valiosas. Você também fez muito bem, Warren. — Ela estudou o sorriso gentil dele por um momento, notando o quanto ele pouco havia mudado durante todos esses anos. — Fico feliz que decidiu ficar no Palácio por algum tempo, mesmo que esteja sem a sua coleira. Parece que estamos sem um profeta.

Ele olhou para o monte de cinzas. — Durante a maior parte da minha vida estudei as profecias lá embaixo, nas câmaras, e nunca soube que algumas eram fornecidas por um profeta ainda vivo, muito menos no Palácio. Queria que elas tivessem falado. Queria que tivessem permitido que eu falasse com ele, aprendesse com ele. Agora a chance está perdida.

— Nathan era um homem perigoso, um enigma que nenhum de nós jamais poderíamos entender completamente ou confiar, mas talvez tenha sido um erro delas evitar que você o visitasse. Saiba que na hora certa, quando você tivesse aprendido mais, as Irmãs teriam permitido, até mesmo pedido isso.

Ele afastou o olhar. — Mas agora a chance foi perdida.

— Warren, agora que você está sem a coleira, sei que está ansioso para entrar no mundo, mas disse que pretende ficar no Palácio, pelo menos durante algum tempo, para estudar. Agora o Palácio está sem um profeta. Acho que deveria considerar o fato de que o seu dom se manifesta com muita força nessa área. Algum dia você poderia ser um profeta.

Uma brisa suave balançou o manto dele enquanto ele olhava por cima das colinas verdes na direção do Palácio. — Não apenas o meu dom, mas o meu interesse, minhas esperanças, sempre envolveram as profecias. Apenas recentemente comecei a entender elas de um jeito que ninguém faz, mas entender elas é diferente de fornecê-las.

— Isso leva tempo, Warren. Ora, quando Nathan tinha sua idade, tenho certeza de que ele não era mais avançado em profecia do que você. Se ficasse e continuasse a estudar, acredito que em quatrocentos ou quinhentos anos poderia ser um profeta tão bom quanto Nathan.

Ele ficou em silêncio por um tempo. — Mas tem um mundo todo lá fora. Ouvi dizer que tem livros na Fortaleza do Mago em Aydindril, e em outros lugares também. Richard falou que com certeza tem muitos no Palácio do Povo em D'Hara. Quero aprender, e pode haver coisas para saber que não podem ser encontradas aqui.

Irmã Verna mexeu os ombros para aliviar a dor neles. — O Palácio dos Profetas está enfeitiçado, Warren. Se você partir, vai envelhecer da mesma maneira que aqueles do lado de fora. Veja o que aconteceu comigo nos poucos vinte anos longe dele; mesmo que tenha nascido apenas com um ano de diferença você ainda parece que deveria estar pensando em casamento, e eu como se devesse estar me preparando para ter um neto em cima do meu joelho. Agora que voltei, vou envelhecer com o tempo do Palácio novamente, mas o que foi perdido não pode ser recuperado.

Warren desviou os olhos. — Acho que você enxerga mais rugas do que realmente tem, Irmã Verna.

Apesar de tudo, ela sorriu. — Você sabia, Warren, que uma vez tive uma queda por você?

Ele ficou tão espantado que tropeçou, dando um passo para trás. — Por mim? Não pode estar falando sério. Quando?

— Oh, faz muito tempo. Aproximadamente mais de cem anos, eu diria. Você era tão culto e inteligente, com todo aquele cabelo louro ondulado. E aqueles olhos azuis faziam meu coração disparar.

— Irmã Verna!

Ela não consegui evitar e deu uma risada quando o rosto dele ficou vermelho. — Faz muito tempo, Warren, e eu era jovem, assim como você era. Foi uma paixão passageira. — O sorriso dela desapareceu. — Agora você parece uma criança para mim, e eu pareço velha o bastante para ser a sua mãe. Ficar longe do Palácio me fez envelhecer em mais de uma maneira.

— Lá fora, você teria umas poucas décadas para aprender o que pudesse antes de envelhecer e morrer. Aqui, você teria o tempo para aprender e talvez tornar-se um Profeta. Livros daqueles lugares sempre poderiam ser emprestados, e trazidos aqui para estudo.

— Você é o mais próximo que temos de um Profeta. Com a Prelada e Nathan mortos, agora você deve saber mais sobre as profecias do que qualquer um vivo. Precisamos de você, Warren.

Ele virou para os raios de sol refletindo dos pináculos e telhados do Palácio. — Vou pensar nisso, Irmã.

— É tudo que peço, Warren.

Com um suspiro, ele virou de volta. — E agora? Quem você acha que vai ser escolhida como a nova Prelada?

Eles aprenderam em sua pesquisa sobre a cerimônia do funeral que o processo de selecionar uma nova Prelada estava envolvido. Warren saberia disso; poucos conheciam os livros nas câmaras tão bem quanto ele.

Ela encolheu os ombros. — O posto requer vasta experiência e conhecimento. Isso significa que teria que ser uma das Irmãs mais velhas. Leoma Marsick seria uma boa candidata, ou Philippa, ou Dulcinia. Irmã Maren, é claro, estaria no topo das candidatas. Existe um bom número de Irmãs qualificadas; poderia citar o nome de pelo menos trinta, embora eu duvide que mais do que uma dúzia delas realmente tenha uma forte chance de se tornar Prelada.

Ele coçou distraidamente o lado do nariz com um dedo. — Suponho que você esteja certa.

Irmã Verna não tinha dúvidas de que as Irmãs já estavam manobrando para se colocarem na disputa. Se não fosse no topo da lista, com as menos consideradas escolhendo sua campeã, formariam um grupo para apoiá-la, fazendo o melhor que pudessem para garantir que ela fosse escolhida. Esperavam ser recompensadas com uma posição de influência se a sua favorita se tornasse a nova Prelada. Enquanto o leque de candidatas ficasse mais reduzido, as Irmãs mais influentes que ainda não tinham escolhido lados seriam convidadas até que se juntassem a uma ou outra das Irmãs dominantes. Era um momento de decisão, que afetaria o Palácio durante as centenas de anos que viriam. Seria uma batalha amarga.

Irmã Verna suspirou. — Não estou ansiosa pela briga, mas acho que o processo de seleção deve ser rigoroso, para que a mais forte seja a Prelada. Isso poderia se arrastar por um longo tempo; poderíamos ficar sem uma Prelada durante meses, talvez um ano.

— Quem você vai apoiar, Irmã?

Ela soltou uma risada. — Eu! Você está enxergando apenas as rugas de novo. Warren. Elas não mudam o fato de que eu sou uma das Irmãs mais jovens. Não tenho influência alguma entre aquelas que contariam.

— Bem, acho que seria melhor você tentar ganhar alguma influência. — Ele se inclinou, chegando mais perto, baixando a voz ainda mais mesmo que não houvesse ninguém por perto. — As seis Irmãs do Escuro escaparam naquele barco, lembra?

Ela olhou dentro dos olhos azuis dele e franziu a testa. — O que isso tem a ver com quem vai se tornar Prelada?

Warren contorceu o manto em seu estômago formando um nó violeta. — Quem pode dizer que só tinha seis. E se houver outra no Palácio? Ou mais doze? Ou cem? Irmã Verna, você é a única Irmã em quem eu confio ser uma verdadeira Irmã da Luz. Deve fazer alguma coisa para garantir que uma Irmã do Escuro não se torne Prelada.

Ela olhou para o Palácio ao longe. — Eu falei, sou uma das Irmãs mais jovens. Minha palavra não tem peso algum, e as outras sabem que todas as Irmãs do Escuro escaparam.

Warren olhou para longe, tentando alisar as dobras em seu manto. De repente, ele virou novamente, a suspeita enrugando sua testa.

— Acha que eu tenho razão, não acha? Você acha que ainda existe Irmãs do Escuro no Palácio.

Ela encarou os olhos intensos dele com uma expressão calma. — Mesmo que eu não considere isso totalmente fora do reino da possibilidade, não há razão para acreditar que seja assim, e além disso, essa é apenas uma das muitas questões que devem ser levadas em consideração quando...

— Não comece com aquela conversa em duplo sentido que as Irmãs usam com tanta facilidade. Isso é importante.

Irmã Verna endureceu. — Você é um aluno, Warren, falando com uma Irmã da Luz; mostre o respeito adequado.

— Não estou sendo desrespeitoso, Irmã. Richard me ajudou a enxergar que eu devo defender aquilo em que acredito. Além disso, foi você quem tirou minha coleira, e como disse, somos da mesma idade; você não é mais velha do que eu.

— Você ainda é um aluno que...

Que, como você mesma disse, provavelmente sei mais sobre profecias do que qualquer outro. Nisso, Irmã, você é minha aluna. Admito que você sabe mais do que eu sobre muitas coisas, como o uso do Han, mas eu sei mais do que você sobre algumas coisas. Uma parte da razão pela qual você tirou o Rada'Han do meu pescoço é que sabe que é errado manter alguém prisioneiro. Eu a respeito como uma Irmã, pelo bem que faz, e pelo conhecimento que tem, mas não sou mais um prisioneiro das Irmãs. Você conquistou meu respeito, Irmã, não minha submissão.

Ela estudou os olhos azuis dele por algum tempo. — Quem saberia o que estava debaixo daquela coleira. — Finalmente, ela assentiu. — Você está certo, Warren; eu suspeito que exista outros no Palácio que fizeram um juramento de alma para o próprio Guardião.

— Outros. — Warren observou os olhos dela. — Você não disse Irmãs, disse outros. Quer dizer jovens magos também, não é?

— Você esqueceu de Jedidiah tão rápido?

Ele ficou um pouco pálido. — Não, eu não esqueci de Jedidiah.

— Como você disse, onde tem um, poderia haver outros. Alguns dos homens jovens no Palácio também poderiam ter feito juramento ao Guardião.

Ele chegou mais perto dela e fez um nó em seu manto outra vez. — Irmã Verna, o que vamos fazer a respeito disso? Não podemos permitir que uma Irmã do Escuro seja Prelada; seria um desastre. Devemos ter certeza que uma delas não vire prelada.

— E como poderíamos saber se ela fez juramento para o Guardião? Pior, o que poderíamos fazer? Elas comandam a Magia Subtrativa; nós não. Mesmo se conseguíssemos descobrir quem são, não poderíamos fazer nada. Seria como enfiar a mão em um saco e segurar uma víbora pela cauda.

Warren ficou pálido. — Nunca pensei nisso.

Irmã Verna juntou as mãos. — Vamos pensar em alguma coisa. Talvez o Criador nos guie.

— Talvez pudéssemos pedir a Richard para voltar e nos ajudar, como fez com aquelas seis Irmãs do Escuro. Pelo menos vimos aquelas seis pela última vez. Elas nunca vão mostrar os rostos de novo. Richard colocou o medo do Criador nelas, e fez elas correrem.

— E no processo, a Prelada foi ferida, e mais tarde morreu, junto com Nathan. — ela fez ele lembrar — A morte caminha com aquele homem.

— Não porque ele traz. — Warren protestou. — Richard é um mago guerreiro; ele luta pelo que é certo, para ajudar pessoas. Se ele não tivesse feito o que fez, a Prelada e Nathan teriam sido apenas o início de toda a morte e destruição.

Ela apertou o braço dele; o tom dela suavizou. — É claro que você tem razão; todos nós temos uma grande dívida com Richard. Mas precisar dele e encontrá-lo são duas coisas diferentes. Minhas rugas atestam isso. — Irmã Verna deixou a mão cair. — Não acho que podemos contar com mais ninguém a não ser um com o outro. Vamos pensar em alguma coisa.

Warren olhou para ela fixamente com uma expressão sombria. — Teremos que pensar mesmo; as profecias guardam presságios terríveis sobre o domínio da próxima Prelada.

De volta à cidade de Tanimura, mais uma vez eles estavam cercados pelo som incessante de tambores vindos de várias direções; uma cadência alta constante, com tom grave, que parecia vibrar bem fundo no peito dela. Era inquietante e, ela imaginou, deveria ser.

Os bateristas e seus guardas chegaram três dias antes da morte da Prelada, e rapidamente prepararam seus enormes tambores em várias locais ao redor da cidade. Assim que eles começaram o lento e constante batuque, ele não tinha parado, dia ou noite. Homens faziam turnos nos tambores para que eles nunca parassem, mesmo que por um momento.

O som penetrante lentamente havia colocado os nervos das pessoas no limite, deixando todos irritados e com mau humor, como se a própria perdição estivesse espreitando nas sombras, fora de vista, esperando para atacar. Ao invés dos gritos, conversas, risos e músicas de costume um fundo de assustadora quietude somava-se ao clima pesado.

Nas periferias da cidade, as pessoas pobres que tinham erguido pequenos abrigos espremiam-se neles, ao invés de se envolverem em conversas, vendendo pequenos itens, lavando roupas em baldes, ou cozinhando em pequenas fogueiras como geralmente faziam. Donos de lojas ficavam nas portas em simples pranchas de madeira montadas para exibir suas mercadorias, seus braços cruzados e expressões de mau humor nos rostos. Homens puxando carrinhos concentravam-se em suas tarefas de modo depressivo. Pessoas que precisavam de mercadorias faziam suas compras rapidamente, efetuando não mais do que um exame superficial dos itens. Crianças mantinham uma das mãos agarradas nas saias de suas mães enquanto seus olhos dardejavam de um lado para outro. Homens que no passado ela viu jogando dados ou outros jogos encostavam em muros.

Ao longe, no Palácio dos Profetas, um sino tocava de vez em quando, como tinha feito durante toda a noite anterior e continuariam até que o sol baixasse, anunciando para todos que a Prelada estava morta. Os tambores, entretanto, não tinham nada a ver com a morte da Prelada; manuseados por soldados, eles anunciavam a iminente chegada do Imperador.

Irmã Verna observou os olhos preocupados e pessoas pelas quais ela passava. Ela tocou as cabeças dos grupos que se aproximavam, buscando consolo, e oferecia a bênção do Criador. — Eu só lembro de Reis, — ela falou para Warren, — não dessa Ordem Imperial. Quem é esse Imperador?

— Seu nome é Jagang. Dez, talvez quinze anos atrás, a Ordem Imperial começou a engolir os reinos, unindo eles sob o seu controle. — Com um dedo, ele esfregou sua têmpora, pensativo. — Passei a maior parte do meu tempo nas câmaras, estudando, você sabe, então eu não tenho certeza de todos os detalhes, mas pelo que eu pude reunir, eles rapidamente passaram a dominar o Mundo Antigo, juntando tudo sob o seu governo. Entretanto, o Imperador nunca tinha causado qualquer problema. Pelo não até aqui em cima, em Tanimura. Ele fica fora dos assuntos do Palácio, e espera que fiquemos fora dos assuntos dele.

— Porque ele está vindo aqui?

Warren encolheu os ombros. — Não sei. Talvez apenas para visitar essa parte do seu império.

Depois de conferir a bênção do Criador a uma frágil mulher, Irmã Verna desviou de um monte de estrume de cavalo quando voltou a caminhar. — Bem, gostaria que ele se apressasse e chegasse logo aqui para que esse tambor infernal pare. Eles já estão nisso por quatro dias; a chegada dele deve ser iminente.

Warren olhou ao redor antes de falar. — Os guardas do Palácio são tropas da Ordem Imperial. Como uma cortesia, o Imperador forneceu eles, já que ele não permite a presença de nenhum soldado a não ser os dele. De qualquer modo, conversei com um dos guardas, e ele me falou que os tambores são apenas para anunciar que o Imperador está vindo, não que ele estará aqui em breve. Ele disse que quando o Imperador visitou Breaston, os tambores tocaram por quase seis meses antes.

— Seis meses! Quer dizer que poderemos aguentar essa barulheira durante meses!

Warren levantou seu manto e passou por cima de uma poça. — Não necessariamente. Ele poderia chegar em meses, ou amanhã. Ele não quer anunciar quando vai chegar, apenas que chegará.

Irmã Verna fez uma careta. — Bem, se ele não chegar logo, as Irmãs vão providenciar para que esses tambores infernais parem.

— Por mim, seria muito bom. Mas esse Imperador parece alguém que não deve ser tratado despreocupadamente. Ouvi dizer que ele tem um exército maior do que qualquer um já criado. — Ele lançou um olhar sério para ela. — E isso inclui a grande guerra que separou o Mundo Antigo do Novo.

Os olhos dela estreitaram. — Porque ele precisaria de tal exército, se ele já conquistou todos os antigos reinos?

— Para mim, parece apenas conversa fiada dos soldados. Soldados sempre gostam de aumentar as coisas.

Warren encolheu os ombros. — Os guardas disseram que viram com os próprios olhos. Disseram que quando a Ordem se concentra, eles cobrem o chão em todas as direções tão longe quanto os olhos podem ver. O que você acha que o Palácio fará quando ele vier aqui?

— Bah. O Palácio não tem interesse em política.

Warren sorriu. — Você nunca foi alguém para ser intimidada.

— Nosso assunto é com os desejos do Criador, não com os de um Imperador, só isso. O Palácio permanecerá muito mais tempo depois que ele se for.

Depois de caminhar em silêncio por algum tempo, Warren limpou sua garganta. — Sabe, lá atrás, quando não estávamos aqui por muito tempo, e você ainda era uma noviça... bem, eu estava apaixonado por você.

Irmã Verna olhou fixamente para ele, incrédula. — Agora você está zombando de mim.

— Não, é verdade. — O rosto dele ficou vermelho. — Achava que o seu cabelo castanho ondulado era o mais bonito que já tinha visto. Você era mais esperta do que as outras, e comandava seu Han com muita confiança. Pensava que não havia ninguém que se igualasse a você. Queria convidar você para estudar comigo.

— Porque não convidou?

Ele balançou os ombros. — Você era sempre tão confiante. Eu nunca fui. — Ele afastou o cabelo para trás de modo semiconsciente. — Além disso, você estava interessada em Jedidiah. Eu não era nada comparado com ele. Sempre pensei que você poderia apenas rir de mim.

Ela percebeu que estava mexendo no cabelo, e baixou a mão. — Bem, talvez eu tivesse feito isso.

Ela pensou em aliviar aquele desprezo. — As pessoas podem ser tolas quando estão jovens. — Uma mulher com uma criança pequena se aproximou e caiu de joelhos diante deles. Verna parou para conceder as bênçãos do Criador para eles. Quando a mulher agradeceu e se afastou apressada, Irmã Verna virou para Warren. — Você poderia sair por vinte anos, para estudar aqueles livros nos quais está tão interessado, e alcançar a minha idade. Nós ficaríamos no mesmo nível outra vez. Então você poderia pedir para segurar minha mão... como eu queria que fizesse, naquela época.

Os dois levantaram os olhos quando ouviram alguém chamando por eles. Através da multidão de pessoas que se espremiam, ela viu um dos Guardas do Palácio balançando um braço para chamar a atenção deles.

— Aquele não é Kevin Andellmere? — ela perguntou.

Warren assentiu. — Fico imaginando porque ele estaria tão agitado?

O Espadachim Andellmere pulou por cima de um garoto e parou na frente deles. — Irmã Verna! Bom! Finalmente encontrei você. Querem você. No Palácio. Agora mesmo.

— Quem quer? Qual é o assunto?

Ele engoliu ar e tentou falar ao mesmo tempo. — As Irmãs querem você. Irmã Leoma me agarrou pela orelha e disse para encontrar você e trazê-lo de volta. Ela falou que se eu fosse lento, eu me arrependeria do dia em que minha mãe deu à luz. Deve ser problema.

— Que tipo de problema?

Ele jogou as mãos para cima. — Quando eu perguntei, ela lançou aquele olhar que as Irmãs usam que pode derreter os ossos de um homem, e disse que era assunto de Irmãs e não meu.

Irmã Verna soltou um suspiro cansado. — Então acho que é melhor voltar com você, ou elas vão arrancar sua pele e usar ela como uma bandeira.

O jovem soldado ficou pálido, como se estivesse acreditando nela.

 

Na ponte de pedra arqueada sobre o Rio Kern que levava até a Ilha Halsband e ao Palácio dos Profetas, as Irmãs Philippa, Dulcinia, e Maren formavam uma fila, ombro com ombro, como três falcões observando seu jantar se aproximar. Elas apertavam as mãos nas cinturas, impacientes. O sol nas costas delas deixava seus rostos na sombra, mas Irmã Verna ainda podia perceber as expressões de raiva. Warren caminhou sobre a ponte com ela enquanto o Espadachim Andellmere, com sua obrigação cumprida, seguia apressado em outra direção.

A Irmã Dulcinia com o cabelo cinza, sua mandíbula tensa, se inclinou chegando mais perto quando Irmã Verna parou diante dela. — Onde você estava! Deixou todo mundo esperando.

Os tambores na cidade continuavam suas batidas no fundo, como a lenta queda da chuva. Irmã Verna afastou-os de sua mente.

— Fui dar uma caminhada, pensando no futuro do Palácio, e no trabalho do Criador. Pois com as cinzas da Prelada Annalina ainda quentes, não suspeitava que a fofoca começaria tão cedo.

Irmã Dulcinia chegou ainda mais perto, seus penetrantes olhos azuis exibindo um brilho perigoso. — Não ouse ser insolente conosco, Irmã Verna, ou rapidamente vai se tornar uma noviça outra vez. Agora que voltou para a vida no Palácio, seria melhor começar a considerar seus costumes, e mostrar o devido respeito para suas superiores.

Irmã Dulcinia voltou a manter a costa ereta, como se estivesse recolhendo as garras, agora que a ameaça havia sido lançada.

Ela não esperava nenhuma discussão. Irmã Maren, uma mulher corpulenta com músculos parecidos com os de um lenhador, e uma língua que combinava, sorriu de satisfação. Alta, escura, Irmã Philippa, com seus ossos das bochechas salientes e mandíbula estreita que lhe conferiam uma aparência exótica, manteve os olhos escuros sobre Irmã Verna, observando por trás de uma máscara sem expressão.

— Superiores? — Irmã Verna disse. — Somos todas iguais sob os olhos do Criador.

— Iguais! — Irmã Maren fungou, irritada. — Um conceito interessante. Se decidíssemos chamar uma assembléia de revisão para considerar a questão de sua atitude controversa, você descobriria o quanto somos iguais, e acabaria mais uma vez fazendo as tarefas com o resto das minhas noviças, só que desta vez não teria Richard aqui para interceder e tirar você dessa!

— Verdade, Irmã Maren? — Irmã Verna levantou uma sobrancelha. — — É isso mesmo. — Warren aproximou-se por trás dela, dentro da sombra dela. — Parece que me lembro, e corrijam se estiver enganada, pois da última vez em que sai dessa, você disse que foi porque tinha rezado ao Criador... E lhe ocorreu que eu serviria melhor a Ele se voltasse a ser uma Irmã. Agora você diz que foi um feito de Richard. Estou enganada?

— Você me questionaria? — Irmã Maren juntou as mãos apertando com tanta força que as articulações dos dedos ficaram brancas. — Eu punia noviças insolentes duzentos anos antes de você nascer! Como ousa...

— Agora você contou duas versões do mesmo evento. Uma vez que os dois não podem ser verdade, isso significa que um teria que ser falso. Sim? Pareceria que você foi pega em uma mentira, Irmã Maren. Eu pensaria que você, entre todas, trabalharia para evitar cair no costume de mentir. As Irmãs da Luz consideram a honestidade com grande estima, e abominam a mentira, mais ainda do que abominam a irreverência. E que penitência a minha superior, a supervisora das noviças, tem para prescrever a si mesma para corrigir a mentira?

— Ora, ora. — Irmã Dulcinia disse com um sorriso falso. — Quanta audácia. Se eu fosse você, Irmã Verna, e estivesse pensando em me colocar na disputa para Prelada, como você parece estar fazendo, eu removeria essa noção arrogante da minha cabeça. Quando Irmã Leoma acabasse com você, não sobraria o bastante para ela enfiar os dentes.

Irmã Verna devolveu o sorriso falso. — Então, Irmã Dulcinia, você pretende apoiar Irmã Leoma, não é? Ou está apenas tentando arrumar uma tarefa para tirá-la do seu caminho enquanto tenta alcançar o posto?

Irmã Philippa falou com uma voz autoritária calma. — Chega. Temos questões mais importantes para cuidar.

— Vamos acabar com esse fingimento para que possamos continuar com o processo de seleção.

Irmã Verna plantou os punhos nos quadris. — E exatamente que fingimento seria esse?

Irmã Philippa virou graciosamente na direção do Palácio, seu manto amarelo simples, mas elegante, ondulando atrás dela.

— Siga-nos, Irmã Verna. Já nos atrasou o bastante. Você é a última, e então podemos continuar com nossos assuntos. Vamos considerar a questão de sua insolência outra hora.

As outras duas Irmãs afastaram para os lados enquanto ela deslizava sobre ponte. Irmã Verna e Warren trocaram um olhar questionador, e então seguiram atrás delas.

Warren reduziu o passo, deixando as três Irmãs aumentarem sua vantagem cerca de doze passos. Com a testa franzida, ele se inclinou chegando mais perto, para que pudesse sussurrar sem que elas escutassem.

— Irmã Verna, às vezes acho que você poderia fazer um dia ensolarado ficar zangado com você! Tem sido tão pacífico por aqui durante os últimos vinte anos que eu esqueci quanto problema sua língua poderia causar. Porque faz isso? Simplesmente gosta de criar problemas sem uma boa finalidade?

Ele girou os olhos ao ver a expressão no rosto dela e mudou de assunto. — O que você acha que aquelas três estão fazendo juntas? Pensei que elas seriam adversárias.

Irmã Verna olhou para as três Irmãs, para ter certeza de que elas não conseguiam escutar. — Se você quer colocar uma faca na costa de seu oponente, por assim dizer, primeiro você deve chegar perto o bastante.

No coração do Palácio, diante das grossas portas de nogueira que conduziam ao grande salão, as três Irmãs pararam de forma tão repentina que Irmã Verna e Warren quase pisaram nos calcanhares delas. As três viraram. Irmã Philippa colocou as pontas dos dedos de uma das mãos no peito de Warren e empurrou ele um passo para trás.

Ela levantou um dedo longo até o rosto dele, deixando ele cerca de uma polegada de distância do seu nariz enquanto lançava um olhar gelado. — Isso é assunto de Irmãs. — Olhou para o pescoço nu dele. — E depois que a nova Prelada, quem quer que ela seja, estiver instalada, você precisará ter um Rada'Han de volta no seu pescoço se quiser permanecer no Palácio dos Profetas.

— Não vamos tolerar garotos que não puderem ser controlados adequadamente.

Irmã Verna colocou uma das mãos na costa de Warren para impedir que ele recuasse. — Eu removi a coleira dele com minha autoridade como uma Irmã da Luz. O compromisso foi assumido em benefício do Palácio; isso não será desfeito.

O olhar sombrio de Irmã Philippa desviou para ela. — Vamos discutir esse assunto mais tarde, em um momento apropriado.

— Vamos acabar com isso, — Irmã Dulcinia falou. — precisamos continuar a tratar assuntos mais importantes.

Irmã Philippa assentiu. — Venha conosco, Irmã Verna.

Warren ficou encolhido, parecendo perdido, quando uma das Irmãs usou o Han para abrir as pesadas portas, permitindo que as três marchassem através delas. Não querendo parecer um filhote que levou uma bronca seguindo atrás, ao invés disso, Irmã Verna apressou o passo para caminhar ao lado delas. Irmã Dulcinia soltou um suspiro forte. Irmã Maren exibiu uma de suas famosas expressões, com as quais as noviças desafortunadas estavam tão familiarizadas, mas não vocalizou nenhum protesto.

Irmã Philippa mostrou o mais leve esboço de sorriso. Qualquer um que estivesse olhando teria pensado que era na direção dela que Irmã Verna caminhava.

Sob o teto baixo, entre colunas brancas com letras capitais douradas entalhadas para retratar folhas de carvalho enroladas, fizeram uma parada onde Irmã Leoma esperava com as costas viradas para elas. Ela era aproximadamente da altura da Irmã Verna; seu cabelo branco liso, amarrado com uma fita dourada, estava pendurado até o meio das costas dela.

Ela vestia um modesto vestido marrom que não tocava o chão apenas por uma polegada.

Adiante, o grande salão abria em uma vasta câmara coberta por um teto enorme em forma de abóbada. Janelas com vitrais por trás das sacadas superiores lançavam luzes coloridas pelo domo pintado com imagens de Irmãs, usando os mantos no estilo antigo, ao redor de uma figura cintilante que representava o Criador. Com seus braços esticados, ele parecia estar espalhando sua afeição para as Irmãs, as quais, em retorno, estavam com os braços esticados na direção dele.

Nas grades de pedra das duas sacadas em camadas que circulavam a sala, Irmãs e noviças estavam olhando para baixo silenciosamente. Pelo chão polido com padrão em ziguezague havia Irmãs: essas, Irmã Verna notou, mais velhas e com maior status. Tossidas esporádicas ecoavam pela sala enorme, mas ninguém falava.

No centro da sala, debaixo da figura que representava o Criador, havia uma coluna branca que chegava até a altura da cintura banhada em uma luz suave. A luz não tinha nenhuma origem aparente. O anel de Irmãs ficava recuado, afastado da coluna e sua obscura mortalha de iluminação, deixando o maior espaço possível, tanto quanto deveriam, se o brilho fosse o que Irmã Verna suspeitava. Um pequeno objeto, ela não conseguia dizer o que era, estava em cima da coluna.

Irmã Leoma virou. — Ah. Fico feliz que você se juntou a nós, Irmã.

— Aquilo é o que eu penso que é? — Irmã Verna perguntou.

Um leve sorriso curvaram as rugas que marcavam o rosto da Irmã Leoma. —Se está pensando que é uma teia de luz, então é.

— Nem a metade de nós, arriscaria, teria o talento, ou poder, para tecer uma. Realmente notável, você não acha?

Irmã Verna girou os olhos, tentando dizer o que estava em cima da coluna. — Nunca vi aquele pedestal, não aqui dentro, pelo menos. O que é? De onde veio?

Irmã Philippa olhou fixamente para o pilar no centro da sala. O seu comportamento arrogante havia desaparecido.

— Quando voltamos do funeral, isso estava aqui, esperando.

Irmã Verna olhou novamente para o pedestal. — O que é aquilo em cima dele?

Irmã Leoma juntou as mãos. — É o anel da prelada, seu anel do cargo.

— O anel da Prelada! Pelo amor da Criação, o que ele está fazendo aqui?

Irmã Philippa levantou uma sobrancelha. — Eu realmente gostaria de saber.

Irmã Verna só conseguiu detectar um leve sinal de inquietação naqueles olhos escuros. — Bem, o que...

— Apenas vá até lá e tente pegar ele. — Falou Irmã Dulcinia. — Não que você consiga, é claro. —Ela adicionou suavemente.

— Não sabemos o que ele está fazendo aqui. — Irmã Leoma disse, sua assumindo uma entonação mais familiar, de Irmã para Irmã. — Quando voltamos, ele estava aqui. Tentamos examiná-lo, mas não conseguimos chegar perto. Em vista da natureza peculiar do escudo, concluímos que antes de prosseguirmos, seria sábio ver se tem alguma de nós que consiga se aproximar, e talvez entender o propósito disso. Nós todas tentamos nos aproximar, mas nenhuma conseguiu. Você é a última para tentar chegar até ele.

Irmã Verna levantou seu xale. — O que acontece quando tentam se aproximar?

As Irmãs Dulcinia e Maren olharam para longe. Irmã Philippa encarou o olhar de Irmã Verna. — Não é agradável. Nem um pouco agradável.

Irmã Verna não estava surpresa com isso. Só estava surpresa que nenhuma delas estivesse ferida. — É praticamente um comportamento criminoso criar um escudo de luz e deixá-lo onde algum inocente poderia esbarrar nele acidentalmente.

— Não exatamente. — Irmã Leoma disse. — Não considerando onde ele está, pelo menos. A equipe de limpeza encontrou. Foram inteligentes o bastante para ficar longe.

Era extremamente assustador que nenhuma das Irmãs tivesse sido capaz de quebrar o escudo e chegar até o anel, pois Irmã Verna tinha certeza de que elas tentaram. Seria um feito significativo se uma delas demonstrasse que tinha o poder para recuperar o anel da Prelada, sozinha.

Ela olhou para Irmã Leoma. — Vocês tentaram mesclar teias, para drenar o escudo?

Irmã Leoma balançou a cabeça. — Nós decidimos que primeiro, cada uma teria uma chance, com a teoria que esse poderia ser um escudo adaptado para uma Irmã específica. Não sabemos qual poderia ser o propósito disso, mas se for verdade, e esse for um escudo defensivo, então mesclar teias e tentar drenar o poder dele poderia muito bem destruir o que está sendo protegido. Você é a única que não tentou. — Ela soltou um suspiro cansado. — Trouxemos até a Irmã Simona aqui em cima.

Irmã Verna baixou a voz no repentino silêncio. — Ela está melhor?

Irmã Leoma olhou para cima, para a pintura do Criador. — Ela ainda escuta vozes, e noite passada, enquanto estávamos lá em cima na colina, teve outro dos seus sonhos malucos.

— Vá e tente pegar o anel para que voltemos ao processo de seleção. — Irmã Dulcinia falou.

Ela lançou um olhar ameaçador para as Irmãs Philippa e Leoma, como se estivesse dizendo que já houve conversa demais. Irmã Philippa recebeu o olhar sem mostrar expressão ou fazer comentário. Irmã Maren olhava com impaciência para o suave brilho sob o qual estava o objeto de desejo delas.

Irmã Leoma gesticulou com uma mão enrugada na direção da coluna branca. — Verna, querida, traga o anel para nós, se você for capaz. Temos assuntos do Palácio para voltar a cuidar. Se você não for capaz, bem, então seremos forçadas a usar uma teia mesclada para drenar o escudo e tentar recuperar o anel da Prelada. Vá agora, criança.

Irmã Verna deu um suspiro profundo, decidindo não criar caso por ser chamada de criança por outra Irmã, uma colega, e saiu caminhando pelo chão polido, seus passos ecoando pela vasta sala, o único som a não ser a batida abafada, distante, de tambores. Irmã Leoma era uma anciã, ela pensou, e merecia uma certa consideração. Olhou para cima, na direção das sacadas e viu suas amigas, Irmãs Amelia, Phoebe, e Janet, oferecendo seus leves sorrisos. Irmã Verna ficou com a mandíbula tensa e continuou avançando.

Ela não poderia imaginar o que o anel da Prelada estaria fazendo debaixo de um escudo tão perigoso, um escudo de luz.

Alguma coisa estava errada. A respiração dela acelerou com o pensamento de que isso poderia ter sido feito por uma Irmã do Escuro.

Uma delas poderia ter adaptado o escudo para ela, suspeitando que ela sabia demais. O passo dela reduziu um pouco. Se isso fosse verdade, e fosse um truque para eliminá-la, ela poderia muito bem ser incinerada sem aviso algum.

Apenas o som dos passos dela ecoava em seus ouvidos quando ela sentiu os limites exteriores da teia. Podia ver o cintilar do anel de ouro. Com os músculos tensos, ela esperava algo desagradável, como as outras obviamente tinham experimentado, mas sentiu apenas calor, como de um sol de verão. Lentamente, passo a passo, ela prosseguiu, mas o calor não aumentou.

Pelos suspiros que ouviu, ela soube que nenhuma das outras havia chegado tão longe. Também sabia que isso não significava que conseguiria fazer todo o caminho, ou escapar. Através do suave brilho branco, podia enxergar as Irmãs além, com os olhos arregalados enquanto observavam.

E então, como se estivesse na luz turva de um sonho, ela estava diante do pedestal. A luz no centro do escudo estava tão brilhante que não conseguia distinguir os rostos daquelas que estavam além.

O anel de ouro da Prelada estava sobre um pedaço de pergaminho dobrado, selado com cera vermelha estampada com o símbolo do raio de sol do anel. A escrita estava parcialmente visível debaixo do anel. Empurrando o anel para o lado, ela virou o pergaminho com um dedo para conseguir ler.

Se deseja sair dessa teia com vida, coloque o anel no terceiro dedo da sua mão esquerda, beije-o, então quebre o selo e leia minhas palavras que estão aqui dentro para as outras Irmãs. Prelada Annalina Aldurren.

Irmã Verna ficou olhando para as palavras. Elas pareciam olhar de volta para ela, esperando. Não sabia o que fazer. Reconheceu a escrita da Prelada bem demais, mas percebeu que poderia ser uma falsificação. Se fosse um truque de uma das Irmãs do Escuro, especialmente de uma com uma queda para um ato dramático, seguir as instruções poderia matá-la. Se não fosse, então não seguir mataria. Ficou congelada por um momento, tentando encontrar alternativas. Nenhuma surgiu em sua mente.

Irmã Verna pegou o anel. Sons de surpresa surgiram da escuridão ao redor. Ela girou o anel nos dedos, inspecionando o símbolo do raio de sol e as marcas do tempo. Ele estava quente ao toque, como se estivesse aquecido por uma fonte em seu interior. Parecia o anel da Prelada, e uma sensação dentro dela dizia que era. Olhou para as palavras no pergaminho outra vez.

Se deseja sair dessa teia com vida, coloque o anel no terceiro dedo da sua mão esquerda, beije-o, então quebre o selo e leia minhas palavras que estão aqui dentro para as outras Irmãs. Prelada Annalina Aldurren.

Irmã Verna, com sua respiração ficando fraca e difícil, enfiou o anel no terceiro dedo da mão esquerda.

Levou a mão até os lábios e beijou o anel enquanto fazia uma prece silenciosa para o Criador pedindo orientação e força. Ela se encolheu quando um feixe de luz desceu da figura do Criador acima dela, mergulhando-a em um uma coluna brilhante de luz. O ar ao redor dela zuniu. Houve breves gritos e gemidos das Irmãs na sala, mas dentro da luz que ela estava, não podia ver elas.

Irmã Verna levantou o pergaminho nos dedos trêmulos. O ar zuniu com mais intensidade. Ela queria correr, mas ao invés disso quebrou o selo de cera. A coluna de luz que vinha da imagem do Criador acima intensificou tornando-se um brilho cegante.

Irmã Verna desenrolou o pergaminho e levantou os olhos, embora não pudesse ver os rostos em volta dela. — Sob a penalidade da morte, recebi a ordem de ler essa carta.

Ninguém falou nada, então ela baixou os olhos para as palavras escritas. — Ela diz, Conheçam todas aquelas reunidas, e aquelas que não estão aqui, meu último comando.

Irmã Verna fez uma pausa e engoliu em seco enquanto Irmãs arfavam.

Estes são tempos de julgamento, e o Palácio dificilmente pode suportar uma longa batalha para me substituir. Não vou permitir isso. Estou exercendo minha prerrogativa como Prelada, como definido nas escrituras sagradas do Palácio, de nomear minha sucessora. Ela está diante de vocês, usando o anel do cargo dela. A Irmã que está lendo isso agora é a Prelada. As Irmãs da Luz obedecerão a ela. Todas vão obedecer a ela.

O feitiço que eu deixei sobre o anel foi criado com ajuda e orientação do próprio Criador. Desafiem minha ordem por seu próprio risco.

Para a nova Prelada, vocês estão encarregadas de servir e proteger o Palácio dos Profetas e tudo que ele representa.

Que a Luz proteja e guie vocês sempre.

De minha própria mão, antes que eu passe dessa vida para as mãos gentis do Criador. Prelada Annalina Aldurren.

Com um som que fez tremer o chão debaixo dos pés dela, a coluna de luz, e o brilho ao redor dela desapareceram.

Verna Sauventreen deixou a mão que segurava a carta cair enquanto olhava para o círculo de rostos assustados. A vasta sala ficou cheia de um leve farfalhar quando as Irmãs da Luz começaram a ajoelhar e baixar as cabeças para sua nova Prelada.

— Não pode ser. — Ela sussurrou para si mesma.

Enquanto arrastava os pés pelo chão polido, ela deixou a carta escorregar de seus dedos. Irmãs correram atrás dela cuidadosamente para pegá-la, para lerem elas mesmas as últimas palavras da Prelada Annalina Aldurren.

As quatro Irmãs levantaram quando ela se aproximou. O belo cabelo cor de areia da Irmã Maren emoldurou seu rosto pálido. Os olhos azuis da Irmã Dulcinia estavam arregalados, e seu rosto vermelho. A expressão geralmente calma da Irmã Philippa agora estava uma imagem de consternação.

As bochechas enrugadas da Irmã Leoma esticaram em um sorriso gentil. — Você vai precisar de conselho e orientação, Irm...

— Prelada. — O sorriso dela foi desfeito pelo modo como engoliu involuntariamente. — Estaremos disponíveis para ajudar de qualquer maneira que pudermos. Por favor, considere-nos ao seu serviço. Estamos aqui para servir...

— Obrigada. — Verna falou com uma voz fraca quando começava a caminhar outra vez, seus pés pareciam se mover por vontade própria.

Warren esperava do lado de fora. Ela fechou as portas e ficou parada diante do jovem mago louro. Warren abaixou sobre um joelho fazendo uma grande reverência.

— Prelada. — Levantou os olhos com um sorriso. — Estava escutando na porta. — Ele explicou.

— Não me chame assim. — Sua própria voz soava estranha para ela.

— Porque não? É quem você é agora. — O sorriso dele aumentou. — Isso é...

Ela virou e olhou para longe, sua mente finalmente começando a funcionar outra vez. — Venha comigo.

— Onde você vai?

Verna colocou um dedo sobre os lábios e lançou um olhar sério para ele por cima do ombro que fez ele fechar rapidamente a boca.

Warren acelerou para alcançá-la enquanto ela se afastava. Assim que estava ao lado dela, mediu seu passo para acompanhá-la para fora do Palácio dos Profetas. Sempre que ele parecia querer abrir a boca novamente, ela colocava o dedo nos lábios. Finalmente ele soltou um suspiro, enfiou as mãos nas mangas opostas do manto, e manteve seu olhar para frente enquanto caminhava ao lado dela.

Noviças e homens jovens do lado de fora do Palácio, que ouviram o toque dos sinos proclamando que a nova Prelada tinha sido nomeada, viram o anel e faziam reverência. Verna manteve os olhos para frente enquanto passava por eles. Os guardas na ponte sobre o Rio Kern fizeram reverência quando ela passava.

Assim que estava do outro lado do rio, ela desceu até a margem e andou pela trilha através dos juncos. Warren se apressou para acompanhá-la quando ela passava pelas pequenas docas, agora todas vazias, os barcos estavam no rio com seus pescadores lançando redes ou arrastando linhas enquanto deslizavam subindo lentamente o rio. Logo eles retornariam para vender seus peixes nos mercados da cidade.

A uma certa distância subindo o rio a partir do Palácio dos Profetas, em uma área plana deserta perto de uma rocha em volta da qual a água batia e espumava, ela parou. Observando as águas que rodopiavam, colocou os punhos nos quadris.

— Eu juro, se aquela mulher não estivesse morta, estrangularia ela com minhas próprias mãos.

— Do que você está falando? — Warren perguntou.

— A Prelada. Se ela não estivesse nas mãos do Criador agora mesmo, colocaria as minhas na garganta dela.

Warren riu. — Essa seria uma bela visão, Prelada.

— Não me chame assim!

Warren fez uma careta. — Mas é quem você é agora: a Prelada.

Ela segurou no manto dele, bem nos ombros. — Warren, tem que me ajudar. Tem que me tirar dessa.

— O quê! Mas isso é maravilhoso! Verna, agora você é a Prelada.

— Não. Não posso ser. Warren, você conhece todos os livros lá embaixo, nas câmaras, estudou as leis do Palácio, tem que encontrar alguma coisa para me tirar dessa. Tem que haver um jeito. Você pode encontrar alguma coisa nos livros que impeça isso.

— Impedir? Está feito. E além disso, essa é a melhor coisa que poderia acontecer. Ele inclinou a cabeça para um lado.

— Porque me trouxe aqui embaixo?

Ela soltou o manto dele. — Warren, pense. Porque a Prelada foi morta?

— Ela foi morta por Irmã Ulicia, uma das Irmãs do Escuro. Foi morta porque lutava contra o mal delas.

— Não, Warren, eu disse pense. Ela foi morta porque um dia, no escritório dela, ela me falou que sabia sobre as Irmãs do Escuro. Irmã Ulicia era uma das administradoras dela, e ela ouviu a Prelada falar do seu conhecimento. — Ela se inclinou na direção dele. — A sala estava protegida, me certifiquei disso, mas o que eu não percebi naquele momento é que as Irmãs do Escuro poderiam ser capazes de usar Magia Subtrativa. Irmã Ulicia ouviu através do escudo, e voltou para matar a Prelada. Aqui fora, nós poderíamos ver se alguém estiver perto o bastante para ouvir nossa conversa, não tem canto algum para que elas possam se esconder. — Ela balançou a cabeça apontando na direção da água espumante. — E a água mascara o som de nossas vozes.

Warren olhou ao redor nervosamente. — Entendo o que você diz. Mas Prelada, às vezes a água pode transportar sons por uma boa distância.

— Falei para você parar de me chamar assim. Com os sons do dia ao nosso redor, e se falarmos baixo, a água vai mascarar nossas vozes. Não podemos arriscar falar nada sobre isso dentro do Palácio. Se precisarmos discutir alguma coisa a respeito disso, devemos sair e seguir até o campo, onde podemos ver se tem alguém perto. Agora, preciso que você encontre uma maneira para que eu seja removida do posto de Prelada.

Warren suspirou exasperado. — Pare de falar isso. Você está qualificada para ser Prelada, talvez mais do que qualquer uma das outras Irmãs; além da experiência, a Prelada deve ser alguém com excepcional poder. — ele afastou os olhos quando ela levantou uma sobrancelha. — Tenho acesso ilimitado para qualquer coisa nas câmaras. Eu li os relatórios. — O olhar dele brilhou. — Quando você capturou Richard, as outras duas Irmãs morreram, e assim passaram seu poder para você. Você tem o poder, o Han, de três Irmãs.

— Isso dificilmente é o único requisito, Warren.

Ele chegou mais perto. — Como eu disse, tenho acesso ilimitado aos livros. Conheço os requisitos. Não há nada que desqualificaria você; você atende todos os requisitos. Deveria estar feliz por ser Prelada. Essa é a melhor coisa que poderia acontecer.

Irmã Verna suspirou. — Você perdeu o cérebro junto com a coleira? Que possível razão eu poderia ter para querer ser Prelada?

— Agora nós podemos desmascarar as Irmãs do Escuro. — Warren sorriu de modo confidencial. — Você terá autoridade para fazer o que deve ser feito. — os olhos azuis dele brilharam. — Como eu disse, essa é possivelmente a melhor coisa que poderia acontecer.

Ela jogou as mãos para cima. — Warren, ser a Prelada é possivelmente a pior coisa que poderia acontecer. O manto da autoridade é tão limitante quanto a coleira da qual você está tão feliz em ter se livrado.

Warren fez uma careta. — O que você quer dizer?

Ela alisou para trás o cabelo castanho. — Warren, a Prelada é uma prisioneira da autoridade dela. Você via a Prelada Annalina com frequência? Não. E porque não? Porque ela estava no escritório dela, fiscalizando a administração do Palácio dos Profetas. Tinha mil coisas para cuidar, mil questões que exigiam sua atenção, centenas de Irmãs e homens jovens que precisavam ser administrados, incluindo o constante dilema de Nathan. Você não imagina o tipo de problema que aquele homem poderia causar. Ele precisava ficar sob guarda constante.

— A Prelada nunca pode aparecer para visitar uma Irmã, ou um dos jovens em treinamento; ficariam em pânico, imaginando o que teriam feito de errado, o que a Prelada ouviu falar sobre eles. As conversas da Prelada jamais podem ser casuais, elas estão sempre com o fardo da percepção de sentidos ocultos. Não é que ela queira as coisas assim, simplesmente ela mantém uma posição de grande autoridade e ninguém jamais pode esquecer disso.

— Quando ela se aventura fora de seu complexo imediatamente ela fica cercada pela pompa e formalidade do seu posto. Se ela for até a sala de jantar para comer, ninguém tem coragem de continuar com suas conversas; todos ficam sentados em silêncio e observam ela, esperando que ela não olhe na direção deles ou, pior ainda, convide eles para a mesa dela.

Warren murchou um pouco. — Nunca pensei nisso desse jeito.

— Se as suas suspeitas sobre as Irmãs do Escuro forem verdadeiras, e não estou dizendo que são, então ser a Prelada atrapalharia que eu descobrisse quem são elas.

— Não atrapalhou a Prelada Annalina.

— Tem certeza disso? Talvez se ela não fosse Prelada tivesse descoberto elas eras atrás, quando poderia fazer alguma coisa a respeito. Ela poderia ter conseguido erradicar elas antes que tivessem começado a matar nossos garotos e roubar o Han deles, e se tornassem tão poderosas. Como aconteceu, sua descoberta veio tarde demais, e só resultou na morte dela.

— Mas elas podem temer o seu conhecimento e acabar revelando a si mesmas de algum modo.

— Se houver Irmãs do Escuro no Palácio, então elas sabem do meu envolvimento na descoberta das seis que fugiram, e até mesmo, ficarão felizes que eu seja a Prelada para amarrar minhas mãos e me manter fora do caminho.

Warren encostou um dedo nos lábios. — Mas, ter você como Prelada deve ajudar em alguma coisa.

— Vai ser apenas um obstáculo na tentativa de deter as Irmãs do Escuro. Warren, você tem que me ajudar. Conhece os livros; deve ter alguma coisa que possa me tirar dessa.

— Prelada...

— Pare de me chamar assim!

Warren encolheu de frustração. — Mas é quem você é. Não posso chamar de algo menor.

Ela suspirou. — A Prelada, Prelada Annalina, pedia aos amigos dela para chamá-la de Ann. Se agora eu sou a Prelada, então peço que me chame de Verna.

Warren refletiu um pouco. — Bem... Acho que somos amigos.

— Warren, somos mais do que amigos; você é o único em quem posso confiar. Agora não tem ninguém mais.

Ele assentiu. — Verna, então. — ele entortou a boca enquanto pensava. — Verna, você está certa: conheço os livros. Conheço os requisitos, e você satisfaz todos. É jovem, para uma Prelada, mas apenas pelo precedente; não há proibição na lei sobre a idade. Mais do que isso, você tem o Han de três Irmãs. Não há nenhuma Irmã, nenhuma Irmã da Luz, pelo menos, que se iguale a você. Apenas isso já torna você mais do que qualificada; poder, o comando do Han, é o requisito mais importante para ser Prelada.

— Warren, deve ter alguma coisa. Pense.

Os olhos azuis dele refletiram a profundidade de seu conhecimento, e pesar. — Verna, conheço os livros. Eles são explícitos.

— Uma vez nomeada de acordo com a lei, eles proíbem especificamente a Prelada de abandonar sua obrigação. Apenas com a morte ela pode abrir mão de uma convocação. A não ser que Annalina Aldurren voltasse à vida, e reclamasse seu cargo, não tem jeito de você acabar com sua qualificação, ou renunciar. Você é a Prelada.

Verna não conseguia pensar em solução alguma. Ela estava encurralada. — Aquela mulher esteve revirando minha vida tanto tempo quanto consigo lembrar. Ela adaptou aquele feitiço para mim, sei que ela fez isso. Ela me prendeu nessa armadilha. Queria poder estrangular ela!

Warren colocou uma das mãos suavemente no braço dela. — Verna, você permitira que uma Irmã do Escuro fosse Prelada?

— Claro que não.

— Acha que Ann faria isso?

— Não, mas não vejo...

— Verna, você disse que não pode confiar em mais ninguém a não ser em mim. Pense em Ann. Ela também estava encurralada. Não poderia arriscar que uma delas se tornasse Prelada. Estava morrendo. Ela fez a única coisa que poderia. Não podia confiar em mais ninguém a não ser você.

Verna olhou dentro dos olhos dele enquanto suas palavras ecoavam na mente dela, e então ela sentou em uma pedra lisa escura perto da água. O rosto dela mergulhou nas mãos. — Querido Criador, — ela sussurrou, — sou assim tão egoísta?

Warren sentou ao lado dela. — Egoísta? Teimosa, às vezes, mas nunca egoísta.

— Oh, Warren, ela deveria estar tão solitária. Pelo menos teve Nathan ali com ela... no final.

Warren assentiu. Após um momento, ele olhou para ela. — Temos um monte de problemas, não temos, Verna?

— Um Palácio todo cheio deles, Warren. Todos muito bem embrulhados com uma fita dourada.

 

Richard cobriu a boca enquanto bocejava. Estava tão cansado por não ter dormido na noite anterior, ou na verdade, por não ter dormido muito nas últimas duas semanas, para não falar da luta com os Mriswith, que era um esforço colocar um pé na frente do outro. Os cheiros mudavam do fedor para perfume e de volta ao fedor praticamente a cada passo enquanto ele avançava através do labirinto de ruas, ficando perto das casas e fora da agitação enquanto tentava o melhor que podia seguir as direções que a Senhora Sanderholt deu para ele. Esperava que não estivesse perdido.

Sempre saber onde estava, e como conseguiria chegar aonde estava indo, era uma questão de honra para um guia, mas já que Richard foi um guia florestal, achava que poderia ser perdoado se ficasse perdido em uma grande cidade. Além disso, ele não era mais um guia florestal, nem esperava que pudesse voltar a ser.

Porém, sabia onde o sol estava, e não importava o que as ruas e casas fizessem em seu esforço para confundir ele com sua abundância, becos escuros, e sua variedade de ruas laterais estreitas e ondulantes no meio de antigas construções sem janelas, dispostas sem design algum, sudeste ainda era sudeste. Simplesmente ele usou construções mais altas como pontos de referência, ao invés de grandes árvores ou terreno elevado, e tentou não se preocupar com as ruas exatas que deveria seguir.

Richard estava seguindo seu caminho através das multidões de pessoas, passando por vendedores ambulantes vestidos em farrapos com potes de raízes secas, cestas com pombos, peixes, e enguias, fazedores de carvão empurrando carrinhos e gritando o preço em forma de canção, passando por vendedores de queijo usando uniformes vermelho e amarelo, açougues com porcos, ovelhas, e carcaças de veado em estacas, vendedores de sal oferecendo diferentes granulações e texturas, mercadores vendendo pães, tortas e bolos, galinhas, temperos, sacos de grãos, barris de vinho e cerveja, e uma centena de outros itens exibidos em janelas ou sobre mesas do lado de fora de lojas, e passando por pessoas examinando as mercadorias, conversando e reclamando sobre os preços, quando ele percebeu a agitação em suas entranhas que era um aviso, ele estava sendo seguido.

Repentinamente bem acordado, virou e viu um grupo de rostos, mas nenhum que ele reconhecia. Manteve sua capa negra por cima da espada para não chamar atenção. Pelo menos os sempre presentes soldados não pareceram particularmente interessados nele, embora alguns dos D'Harans observassem quando ele passava perto, como se pudessem sentir alguma coisa, mas não conseguissem definir a origem. Richard apressou os passos.

O barulho era tão leve e ele pensou que talvez aqueles que o estavam seguindo não estivessem perto o bastante para que ele os visse.

Mas então, como ele saberia quem era? Poderia ser qualquer um dos rostos que via. Olhou para cima dos telhados, mas não viu aquele que sabia estar seguindo ele, e ao invés disso verificou a direção da luz do sol para evitar se perder.

Fez uma pausa perto de uma construção em uma esquina para olhar as pessoas subindo e descendo a rua, procurando por alguém que estivesse observando ele, qualquer um que parecesse fora de lugar, ou incomum, mas não viu nada alarmante.

— Bolo de mel, meu Lorde?

Richard virou para uma pequena garota em um casaco grande demais em pé atrás de uma pequena mesa frágil. Imaginou que ela deveria ter dez ou doze anos, mas ele não era bom em deduzir a idade de garotas jovens. — O que é isso?

Ela passou uma das mãos sobre a mercadoria na mesa dela. — Bolo de mel? Minha avó faz eles. São muito bons, posso garantir, é custa só uma moeda. Será que você compraria um, por favor, meu Lorde? Não vai se arrepender.

No chão, atrás da garota, uma mulher gorducha em um cobertor marrom esfarrapado estava sentada numa tábua colocada em cima da neve. Ela sorriu para ele. Richard sorriu de volta levemente enquanto sondava em seu interior, tentando determinar o que estava sentindo, tentando determinar a natureza do mau pressentimento. A garota e a velha sorriam esperançosamente, e esperavam.

Richard olhou subindo a estrada novamente e então, soltando um longo jato de fumaça com sua respiração na brisa suave, procurou em seu bolso. Ele comeu pouco coisa em sua fuga de duas semanas para Aydindril, e ainda estava fraco. Tudo que ele tinha era prata e ouro do Palácio dos Profetas. Duvidou que sua bolsa, lá no Palácio das Confessoras, tivesse alguma moeda também.

— Não sou um Lorde. — ele falou enquanto colocava tudo de volta no bolso a não ser uma moeda de prata.

A garota apontou para a espada dele. — Qualquer um que tem uma bela espada parecida com essa deve ser um Lorde, com certeza.

A velha tinha parado de sorrir. Com os olhos fixos na espada dele, ela levantou.

Richard cobriu a cabo e a bainha trabalhada em prata e ouro rapidamente, e entregou a moeda para a garota. Ela ficou olhando para a moeda em sua palma.

— Não tenho dinheiro suficiente para dar troco de tudo isso, meu Lorde. Minha nossa, nem sei quanto dinheiro seria preciso. Nunca segurei uma moeda de prata.

— Eu disse, não sou um Lorde. — Ele sorriu quando ela levantou os olhos. — Meu nome é Richard. Vamos fazer o seguinte, porque não fica com a moeda e considera o valor extra como pagamento adiantado, então sempre que eu passar por esse caminho de novo, bem, você pode me dar outro de seus bolos de mel pela barganha, até que a prata acabe.

— Oh, meu Lorde... Quer dizer, Richard, obrigada.

Sorrindo, a garota deu a moeda para a avó dela. A velha inspecionou a moeda de prata com um olho crítico enquanto girava ela nos dedos. — Nunca vi marcas como essas. Você deve ter viajado um longo caminho.

A mulher não teria como saber de onde a moeda era; os mundos Antigo e o Novo estiveram separados durante os últimos três mil anos. — Eu viajei. Entretanto, a prata é bastante verdadeira.

Ela observou com olhos azuis que pareciam como se os anos tivessem retirado quase toda a cor. — Você pegou ou ganhou, meu Lorde? — Quando a testa de Richard franziu, ela gesticulou. — Essa sua espada, meu Lorde. Você pegou ela, ou ela foi dada a você?

Richard encarou o olhar dela, finalmente entendendo. O Seeker deveria ser escolhido por um mago, mas desde que Zedd fugiu de Midlands muitos anos, a espada havia se tornado um prêmio entre aqueles que podiam pagar, ou aqueles que conseguiam roubá-la. Falsos Seekers deram uma reputação terrível para a Espada da Verdade, e não eram de confiança; eles usavam a magia da espada por razões egoístas, e não como aqueles que investiram sua magia na lâmina pretendiam. Richard era o primeiro em décadas a ser nomeado Seeker da Verdade por um mago. Richard entendeu a magia, seu terrível poder e responsabilidade. Ele era o verdadeiro Seeker.

— Ela me foi entregue por alguém da Primeira Ordem. Eu fui nomeado. — Ele falou de modo sério.

Ela apertou o cobertor no peito. — Um Seeker. — ela falou entre as aberturas dos dentes que faltavam. — Que os espíritos sejam louvados. Um verdadeiro Seeker.

A garotinha, sem entender a conversa, olhou para a moeda na mão da sua avó, e então entregou a Richard o maior bolo que estava na mesa. Ela o recebeu com um sorriso.

A velha inclinou um pouco sobre a mesa e baixou a voz. — Você veio para nos livrar dos vermes?

— Alguma coisa assim. — Ele deu uma mordida no bolo de mel. Sorriu para a garota outra vez. — É tão bom quanto você prometeu.

Ela sorriu. — Eu disse. Vovó faz os melhores bolos de mel da Rua Stentor.

Rua Stentor. Pelo menos ele conseguiu descobrir a rua certa. Passando o mercado na Rua Stentor, a Senhora Sanderholt falou. Piscou para a garota enquanto mastigava. — Que vermes? — ele perguntou para a velha.

— Meu filho, — a velha disse enquanto baixava os olhos, indicando a garota, — e a mãe dela, eles nos abandonaram para ficar perto do Palácio, esperando pelo ouro prometido. Falei para eles trabalharem, mas disseram que sou velha e tola nos meus costumes, e podem receber mais se ficarem simplesmente esperando lá pelo que é deles.

— Porque elas acham que isso é deles?

Ela encolheu os ombros. — Porque alguém no Palácio falou. Falou que eles teriam esse direito. Falou que todo povo tinha. Alguns, como aquelas dois, acreditaram; isso foi uma tentação para os costumes preguiçosos do meu filho. Hoje em dia os jovens são preguiçosos. Então eles sentam e esperam, para ganhar, que tomem conta deles, ao invés de cuidarem de suas próprias necessidades. Eles brigam por causa de quem deverá receber o ouro primeiro. Alguns dos fracos e velhos morreram nessas brigas.

— Enquanto isso, poucos trabalham, e então os preços continuam subindo. Agora mal podemos comprar pão suficiente. — o rosto dela mostrou uma expressão triste. — Tudo por causa de uma tola cobiça pelo ouro. Meu filho trabalhava, para Chalmer, o padeiro, mas agora ele fica esperando para receber ouro, ao invés de trabalhar, e fica cada vez mais faminto. — ela olhou com o canto dos olhos para a garota, e sorriu com ternura. — Porém, ela trabalha. Me ajuda a fazer os meus bolos, e assim podemos nos alimentar. Não vou deixar ela vagar pelas ruas, como muitos do jovens fazem agora.

Ela levantou os olhos novamente com uma expressão sombria. — Eles são os vermes: eles que tiram o pouco que conseguimos obter ou fazer com nossas mãos prometendo devolver mais para nós, esperando que fiquemos agradecidos com seus corações bondosos; eles que seduzem pessoas boas fazendo com que fiquem preguiçosas para que possam nos controlar como fazem com ovelhas; eles que tiram nossa liberdade e nossos costumes. Até mesmo uma velha tola como eu sabe que pessoas preguiçosas não pensam por si mesmas; se preocupam apenas consigo mesmas. Não sei o que vai ser do mundo.

Quando finalmente ela pareceu ficar sem fôlego, ele gesticulou para a moeda na mão dela enquanto engolia um pouco do bolo de mel. Richard lançou um olhar sério para ela. — Eu ficaria muito agradecido, por enquanto, se vocês esquecessem da aparência de minha espada.

Ela balançou a cabeça concordando. — Qualquer coisa. Qualquer coisa para você, meu Lorde. Que os bons espíritos estejam com você. E espero que ensine a esses vermes uma boa lição por mim.

Richard subiu a rua por uma certa distância, e sentou por um momento em um barril ao lado de um beco para comer um pouco do seu bolo de mel. Estava bom, mas não estava realmente prestando muita atenção no gosto, e isso não fez nada para acalmar a sensação de preocupação em seu estômago. Não era a mesma sensação de quando ele sentia o Mriswith, ele percebeu; era mais a sensação que sempre tinha quando os olhos de alguém estavam em cima dele, e os cabelos na nuca dele ficavam eriçados. Era isso que estava sentindo, alguém estava observando ele, alguém observando e seguindo. Ele estudou os rostos, mas não viu ninguém que parecesse estar interessado nele.

Lambendo o mel dos dedos, ele seguiu caminho pela rua, desviando de cavalos puxando carrinho e carroças, e entre uma multidão de pessoas cuidando de seus negócios. Às vezes, era como tentar nadar subindo um rio. O barulho, o som de metal, o bater de cascos, o arrastar de cargas em carroças, o chiado de eixos, o som de neve compactada sendo pisada, a gritaria dos vendedores ambulantes e o murmúrio de conversas, algumas suaves ou um emaranhado de línguas que ele não entendia, era inquietante. Richard estava acostumado ao silêncio das florestas dele, onde o vento nas árvores ou a água correndo sobre pedras era a maioria dos sons que ele escutava. Embora ele tivesse entrado em Hartland, dificilmente ela era algo mais do que uma cidade pequena, e nada comparado com as cidades, como essa, que ele tinha visto desde que deixou seu lar.

Richard sentia saudade das florestas. Kahlan tinha prometido que voltaria lá com ele um dia para fazer uma visita. Ele sorriu para si mesmo enquanto pensava nos belos lugares em que a levaria, as vistas, as cachoeiras, as passagens escondidas nas montanhas. Sorriu mais ainda ao pensar como ela ficaria maravilhada, e como eles seriam felizes juntos. Sorriu ao lembrar do sorriso especial dela, aquele que ela não dava para mais ninguém a não ser para ele.

Sentia saudade de Kahlan mais do que poderia sentir de suas florestas. Queria encontrar com ela o mais rápido que pudesse.

Em breve, ele encontraria, mas primeiro tinha algumas coisas para fazer em Aydindril.

Com o som de gritos ele levantou os olhos e percebeu que ao sonhar acordado não estava prestando atenção para onde estava indo, e uma coluna de soldados estava prestes a atropelar ele. O Comandante praguejou quando fez os seus homens pararem subitamente.

— Você estar cego! Que tipo de idiota caminha para baixo de uma coluna de cavaleiros!

Richard olhou ao redor. Todas as pessoas estavam afastadas dos soldados, e pareciam estar tentando mostrar que nunca tiveram intenção de se aventurarem no meio da rua. Eles se esforçavam para fingir que os soldados não existiam. A maioria parecia querer ficar invisível.

Richard levantou os olhos na direção do homem que gritou com ele, e por um momento ele mesmo pensou em se tornar invisível antes que houvesse problema e alguém ficasse ferido, mas a Segunda Regra do Mago surgiu em sua mente: a pior coisa pode resultar das melhores intenções. Ele aprendeu que quando você mexia com magia, os resultados poderiam ser desastrosos. Magia era perigosa e tinha que ser usada cuidadosamente. Rapidamente ele decidiu que um simples pedido de desculpas seria prudente, e funcionaria melhor.

— Sinto muito. Acho que não estava olhando para onde estava indo. Me perdoe.

Ele não lembrava de ter visto soldados como esses, todos sobre montarias em colunas bem organizadas. Cada uma das armaduras dos soldados de rostos amargos era cegante na luz do sol. Ao lado de suas armaduras impecavelmente polidas, as espadas deles, facas, e lanças cintilavam na luz do sol. Cada homem usava uma capa vermelha posicionada de uma forma exata sobre o flanco de seu cavalo branco. Para Richard, eles pareciam homens prestes a passar por uma revista perante um grande Rei.

O homem que gritou olhou para baixo, sob a borda do elmo cintilante com uma crista de pelo de cavalo em cima. Ele segurava as rédeas de seu poderoso cavalo cinzento em uma das mãos com manopla enquanto inclinava.

— Saia do nosso caminho, seu estúpido, ou vamos passar por cima de você e acabar com isso.

Richard reconheceu o sotaque do homem; era o mesmo de Adie. Não sabia a qual terra Adie pertencia, mas esses homens deveriam ser do mesmo lugar.

Richard encolheu os ombros enquanto dava um passo para trás. — Falei que sinto muito. Não sabia que havia um assunto tão urgente.

— Lutar contra o Guardião sempre ser assunto urgente.

Richard deu outro passo para trás. — Não posso discutir com você sobre isso. Tenho certeza que ele está tremendo em um canto agora mesmo, esperando que você apareça para acabar com ele, então é melhor seguir em frente.

Os olhos escuros do homem brilharam como gelo. Richard tentou não mostrar fraqueza. Ele gostaria de conseguir aprender a não ser insolente. Imaginou que isso fosse resultado de seu tamanho.

Richard nunca gostou de lutar. Enquanto crescia, tinha se transformado no alvo de outros que queriam mostrar sua força. Antes de receber a Espada da Verdade, e ela ensinado a ele a necessidade de algumas vezes liberar a raiva que sempre manteve sob forte controle, tinha aprendido usar um sorriso ou humor para aliviar os sentimentos de adversários agitados, e desarmar aqueles que apenas estavam querendo começar uma briga. Richard conhecia sua própria força, mas essa confiança havia criado em seu humor uma tendência de se tornar petulante.

Às vezes parecia que ele não conseguia se conter; sua boca simplesmente se movia antes de seu pensamento.

— Você tem uma língua audaciosa. Talvez você seja alguém seduzido pelo Guardião.

— Eu lhe asseguro, senhor, você e eu lutamos contra o mesmo inimigo.

— Os servos do Guardião espreitam por trás da arrogância.

Justamente quando Richard estava pensando que não precisava de problemas, e era hora de efetuar um rápido recuo, o homem começou a desmontar. No mesmo instante, mãos poderosas agarraram ele. Dois homens enormes, um de cada lado, levantaram ele do chão. — Siga em frente, senhor. — aquele que estava no ombro direito dele falou para o cavaleiro. — Esse aqui não é preocupação sua. — Richard tentou virar a cabeça, mas só conseguiu ver o couro marrom de uniformes D'Haran nos homens que o seguravam por trás.

O soldado congelou com seu pé fora do estribo. — Nós estar do mesmo lado, irmão. Esse aqui precisa ser interrogado, por nós, e então aprender um pouco de humildade. Nós vamos...

— Eu disse, siga em frente!

Richard abriu a boca para falar alguma coisa. Imediatamente, o pesado braço musculoso do D'Haran que estava na direita saiu debaixo de uma grossa capa de lã marrom escura. Quando uma grande mão cobriu sua boca, Richard viu uma faixa de metal de cor dourada logo acima do cotovelo, suas projeções afiadas cintilando sob a luz do sol. As faixas eram armas mortais usadas para rasgar um oponente em combate corpo a corpo. Richard quase sufocou com a própria língua.

A maioria dos soldados D'Haran eram grandes, mas esses dois eram muito além do meramente grande. Pior, não eram apenas soldados D'Haran comuns; Richard tinha visto homens como esses antes, com faixas logo acima dos cotovelos. Eram da guarda pessoal de Darken Rahl. Darken Rahl quase sempre tinha dois homens como esses com ele.

Os dois homens ergueram Richard com facilidade; ele estava tão indefeso quanto uma boneca de pano. Em sua corrida de duas semanas até Aydindril, para encontrar Kahlan, não tinha apenas comido pouco, mas dormido pouco também. A luta com os Mriswith, poucas horas antes, havia drenado quase toda a energia que lhe restava, mas o medo forneceu uma reserva de força para seus músculos. Contra esses dois, não era o bastante.

O homem no cavalo começou a passar a perna por cima do cavalo novamente, para desmontar. — Eu falei, esse aqui é nosso. Nós queremos interrogá-lo. Se ele servir ao Guardião, ele vai confessar.

O D'Haran no lado esquerdo de Richard rosnou falando com uma voz ameaçadora. — Desça aqui, e eu arrancarei sua cabeça e usarei ela para fazer um jogo com tigelas. Estivemos procurando por esse aqui, e agora ele é nosso. Quando acabarmos com ele, você poderá interrogar o cadáver dele o quanto quiser.

Congelado parcialmente fora de seu cavalo, o olhou com raiva para os D'Harans. — Eu disse, irmão, nós estar do mesmo lado.

— Nós dois lutamos contra a maldade do Guardião. Não tem necessidade de lutar entre nós.

— Se quer discutir, então faça isso com sua espada. Se não, vá embora!

Os quase duzentos cavaleiros observaram os dois D'Harans, sem mostrar emoção, especialmente nenhum medo.

Afinal de contas havia apenas dois D'Harans, não era um grande desafio, independente do tamanho dos homens. Pelo menos um tolo poderia pensar assim. Richard tinha visto tropas D'Haran por toda parte na cidade. Era possível que no primeiro sinal de problemas, eles pudessem aparecer em pouco tempo.

Porém, os cavaleiros não pareciam preocupados com outros D'Harans. — Só tem dois de vocês, irmão.

— Não são boas chances.

Aquele que estava do lado esquerdo de Richard olhou casualmente para a fila de cavaleiros, virou a cabeça, e cuspiu. — Você tem razão, senhor. O Egan aqui, vai ficar de lado para deixar as chances mais equilibradas enquanto eu cuido de você e seus belos homens. Mas tenha certeza, irmão, pois se o seu pé tocar o chão, dou minha palavra, você morre primeiro.

— Olhos de gelo, imóveis e frios, avaliaram os dois por um momento, e então o homem na armadura polida e capa vermelha, resmungando uma praga em uma língua estrangeira, deixou seu peso cair de volta em sua sela. — Nós temos assuntos importantes que exigem nossa atenção. Esse aqui ser um desperdício de nosso tempo. Ele ser de vocês.

Com um sinal do braço dele, a coluna de cavaleiros avançou pela rua, por pouco não atropelando Richard e seus dois captores. Richard tentou, mas os dois que o seguravam eram fortes demais, e não conseguia levar sua mão até a espada enquanto eles o carregavam. Ele observou em cima dos telhados, mas não viu nada.

Todas as pessoas ao redor desviavam os olhos, não querendo se envolver com aquele problema. Enquanto os dois enormes D'Harans arrastavam Richard do meio da rua, as pessoas saiam do caminho como se tivessem olhos atrás das cabeças. No meio do barulho da cidade, os gritos raivosos dele ficavam abafados e se perdiam. Não importava o quanto tentasse, não conseguia colocar uma das mãos perto de uma arma. Sua botas deslizavam pela neve, seus pés tentando procurar apoio em vão.

Richard se esforçou, ma antes que tivesse tempo para pensar no que fazer em seguida, eles o arrastaram para dentro de uma escura passagem estreita entre uma hospedaria e outra construção fechada.

Bem fundo na passagem, nas sombras, quatro figuras escuras com capas aguardavam.

 

Gentilmente, os dois enormes D'Harans baixaram Richard. Quando seus pés encontraram o chão, suas mãos encontraram o cabo da espada. Os dois homens afastaram os pés de um modo relaxado e cruzaram as mãos nas costas. Do fundo sombrio da passagem as quatro figuras encapuzadas caminharam na direção dele.

Decidindo que escapar era melhor do que lutar, Richard não sacou sua espada, mas ao invés disso mergulhou para o lado. Rolou pela neve e levantou rapidamente. Sua costa bateu contra o muro frio. Ofegando, ele se enrolou em sua capa de Mriswith. Num piscar de olhos a capa mudou de cor para combinar com o muro, e ele desapareceu.

Seria apenas uma questão de escapulir enquanto estava escondido pela capa. Melhor escapar do que lutar. Logo que ele recuperasse o fôlego.

Os quatro continuaram marchando, suas capas escuras esvoaçando enquanto entravam na luz. Couro marrom escuro da mesma cor dos uniformes dos D'Harans cobria suas formas esguias dos pés até o pescoço. Uma estrela amarela entre as pontas de uma lua crescente enfeitava a roupa de couro no estômago de cada uma das mulheres.

O reconhecimento daquela estrela amarela e a lua crescente foi como um raio na mente de Richard. Vezes demais para contar, seu rosto, molhado com seu próprio sangue, encostou naquele símbolo. Sem reação ele congelou, não sacando a espada, nem respirando. Por um instante cheio de pânico ele viu apenas o símbolo que conhecia bem demais.

Mord-Sith.

A mulher na frente puxou o capuz para trás, deixando livre seu longo cabelo louro, preso em uma trança grossa. Os olhos azuis dela vasculharam a parede onde ele estava.

— Lorde Rahl? Lorde Rahl, onde...

Richard piscou. — Cara?

Exatamente quando ele diminuiu sua concentração, permitindo que sua capa voltasse a ser negra, e os olhos dela o encontraram, o céu desabou.

Com um rugido, um bater de asas, e o brilho de garras, Gratch pousou pesadamente. Os dois homens estavam com as espadas nas mãos quase instantaneamente, mas eles não eram tão rápidos quanto as Mord-Sith. Antes que as lâminas dos homens tivessem deixado suas bainhas, as mulheres estavam com seu Agiel nos punhos. Embora um Agiel aparentasse não ser nada além de um fino bastão de couro vermelho, Richard sabia que eram armas de incrível poder. Richard havia sido treinado com um Agiel.

Richard atirou-se contra o Gar, batendo com ele no muro antes que os dois homens e as quatro mulheres pudessem alcançá-lo. Gratch empurrou ele para o lado em seu desejo de enfrentar a ameaça.

— Parem! Todos vocês, parem! — As seis pessoas e o Gar congelaram com o som do grito dele. Richard não sabia quem venceria a luta, mas não queria descobrir. Ele aproveitou o momento antes que eles pudessem decidir se mover novamente e saltou na frente de Gratch.

Com as costas para o gar, ele esticou os braços, cada um para um lado. — Gratch é meu amigo. Ele só quer me proteger. Fiquem onde estão, e ele não machucará vocês.

O braço peludo de Gratch passou em volta da cintura de Richard e arrastou ele, segurando-o contra a pele rosada do seu peito e estômago. A passagem vibrou com um rugido que, enquanto mostrava afeição, ao mesmo tempo carregava um tom de ameaça para os outros.

— Lorde Rahl, — Cara falou com uma voz suave enquanto os dois homens embainhavam suas espadas, — também estamos aqui para protegê-lo.

Richard afastou o braço. — Está tudo bem, Gratch. Conheço eles. Você fez muito bem, exatamente como eu pedi, mas está tudo bem agora. Apenas fique calmo.

Gratch soltou um rosnado que ecoou nos muros aumentando como se estivesse em um estreito canyon escuro. Richard sabia que esse era um som de satisfação. Pediu para Gratch seguir ele, bem alto no ar, ou voando de telhado em telhado, mas para ficar fora de vista a não ser que houvesse problema. Gratch realmente tinha feito um bom trabalho; Richard não tinha visto sinal algum dele até que ele mergulhasse em cima deles.

— Cara, o que você está fazendo aqui?

Cara tocou no braço dele com admiração, parecendo surpresa ao ver que ele estava sólido. Ela enfiou um dedo no ombro dele, e então abriu um sorriso.

— Nem mesmo o próprio Darken Rahl podia ficar invisível. Podia comandar feras, mas não ficar invisível.

— Eu não comando Gratch; ele é meu amigo. E na verdade eu não fiquei... Cara, o que está fazendo aqui?

Ela pareceu perplexa com a pergunta. — Protegendo você.

Richard apontou para os dois homens. — E eles? Eles disseram que pretendiam me matar.

Os dois homens continuaram imóveis, enraizados como carvalhos gêmeos. — Lorde Rahl, — um deles falou, — nós morreríamos antes que deixássemos algum mal tocá-lo.

— Estávamos quase alcançando você quando você esbarrou com aqueles cavaleiros. — Cara falou. — Pedi a Egan e Ulic que tirassem você de lá sem luta, ou você poderia se machucar. Se aqueles homens pensassem que estávamos tentando resgatar você, poderiam tentar matá-lo. Não queríamos arriscar sua vida.

Richard olhou para os dois homens de cabeça loura. As tiras de couro escuro, placas e cintos de seus uniformes eram moldados para encaixar como uma segunda pele sobre os contornos salientes dos músculos deles. Gravada no couro no meio do peito deles havia uma letra R, e abaixo dela, duas espadas cruzadas. Um deles, Richard não tinha certeza se era Egan ou Ulic, confirmou a verdade daquilo que Cara disse. Uma vez que Cara e as outras Mord-Sith ajudaram ele em D'Hara duas semanas antes, tornando possível que ele derrotasse Darken Rahl, ele estava inclinado a acreditar nela.

Richard não antecipou a escolha delas quando ele declarou que as Mord-Sith estavam livres dos grilhões de sua disciplina; ao ganhar sua liberdade, elas escolheram ser guardiãs dele, e tornaram-se bastante protetoras. Parecia não haver nada que ele pudesse fazer para mudar a ideia delas.

Uma das outras mulheres falou o nome de Cara, como um aviso para ter cautela, e balançou a cabeça na direção da abertura que mostrava a rua.

Pessoas reduziam a velocidade ao passar, olhando para elas. Um olhar furioso dos dois homens quando eles viraram colocou velocidade nos passos dos curiosos, e fez com que eles afastassem os olhos.

Cara agarrou o braço de Richard, logo acima do cotovelo. — Aqui ainda não é seguro. Venha conosco, Lorde Rahl.

Sem esperar a resposta dele, ou cooperação, ela empurrou ele para dentro das sombras no fundo da passagem.

Richard fez um sinal silenciosamente para acalmar Gratch. Levantando a parte inferior de uma veneziana solta, Cara empurrou ele na frente dela através da abertura. A janela pela qual eles entraram era a única em uma sala mobiliada por uma mesa empoeirada com três velas em cima, vários bancos, e uma cadeira. De um lado, estava uma pilha das coisas deles.

Gratch conseguiu dobrar as asas e entrou também. Ele ficou perto de Richard, observando os outros. Eles, em contra partida, sabendo que ele era amigo de Richard, não pareciam estar preocupados em ter um Gar olhando para eles a alguns pés de distância.

— Cara, o que está fazendo aqui?

Ela franziu a testa como se ele tivesse falado alguma coisa estúpida. — Eu disse, viemos para proteger você. — Um sorriso travesso surgiu nos lábios dela. — Parece que chegamos bem na hora. Mestre Rahl deve se concentrar em ser a magia contra a magia, uma tarefa para a qual você é mais adequado, e deixar que sejamos o aço contra o aço. — Ela inclinou a cabeça na direção das outras três mulheres. — Não tivemos tempo para apresentações no Palácio. Essas são minhas irmãs de Agiel: Hally, Berdine, e Raina.

Na luz de vela bruxuleante, Richard estudou os três rostos. Ele estivera com terrível pressa naquele momento e só lembrava de Cara; foi ela quem falou por elas, e ele tinha segurado uma faca na garganta dela até que ela o convenceu. Como Cara, Hally era loura, com olhos azuis, e alta. Berdine e Raina eram um pouco menores, com olhos azuis. Berdine tinha uma trança de cabelo castanho, e Raina de cabelo preto, e olhos que pareciam estar examinando a alma dele procurando cada nuance de força, fraqueza, e caráter, um olhar examinador penetrante característico das Mord-Sith. De algum modo, os olhos escuros de Raina faziam o julgamento penetrante ser mais incisivo.

Richard não mostrou fraqueza diante dos olhares delas. — Estavam entre aquelas que me conduziram em segurança ? — Elas assentiram. — Então vocês ganharam minha eterna gratidão. E quanto aos outras?

— As outras permaneceram no Palácio, caso você retornasse antes que o encontrássemos. — Cara falou. — O Comandante General Trimack insistiu que Ulic e Egan viessem também, já que eles fazem parte da guarda pessoal do Mestre Rahl. Nós partimos uma hora depois de você, tentando alcançá-lo. — Ela balançou a cabeça, surpresa.

— Não perdemos tempo algum, e você ganhou quase um dia na nossa frente.

Richard arrumou o boldrié que segurava sua espada. — Eu estava com pressa.

Cara encolheu os ombros. — Você é o Mestre Rahl. Nada que faça poderia nos surpreender.

Richard pensou que ela pareceu ter ficado bastante surpresa quando viu ele ficar invisível, mas não falou isso, em vista de sua recém descoberta moderação com sua língua.

Olhou ao redor pela sala empoeirada pouco iluminada. — O que vocês estão fazendo nesse lugar?

Cara tirou as luvas e jogou-as sobre a mesa. — Pretendíamos usar como base enquanto procurávamos por você. Estivemos aqui durante pouco tempo. Escolhemos este local porque é perto do quartel general D'Haran.

— Ouvi falar que eles estão em uma grande construção depois do mercado.

— Estão. — Hally disse. — Nós checamos.

Richard observou os olhos azuis dela. — Eu estava a caminho de lá quando me encontraram. Acho que não faria mal algum ter vocês por perto. — Ele afrouxou a capa de Mriswith no pescoço e coçou atrás do pescoço.

— Como vocês conseguiram me encontrar em uma cidade desse tamanho?

Os dois homens continuaram imóveis sem mostrar emoção, mas as sobrancelhas das mulheres levantaram.

— Você é o Mestre Rahl. Cara falou, parecendo achar que isso seria explicação suficiente.

Richard colocou os punhos nos quadris. — Então?

— A ligação. Berdine disse. Ela parecia perplexa com a expressão vazia no rosto dele. — Nós temos uma ligação com o Mestre Rahl.

— Não entendo o que isso significa. O que isso tem a ver com me encontrar?

As mulheres trocaram olhares. Cara inclinou a cabeça para o lado. — Você é o Lorde Rahl, o Mestre de D'Hara. Nós somos D'Harans. Como você pode não entender?

Richard afastou o cabelo da testa quando soltou um suspiro exasperado. — Fui criado em Westland, a duas fronteiras de distância de D'Hara. Nunca soube nada sobre D'Hara, muito menos sobre Darken Rahl, até que as fronteiras caíram. Nem mesmo sabia que Darken Rahl era meu pai até poucos meses. — Ele afastou os olhos das expressões confusas delas. — Ele estuprou minha mãe, e fugiu para Westland antes do meu nascimento, antes que as fronteiras fossem erguidas. Darken Rahl nunca soube que eu existia, ou que eu era seu filho, até que ele morreu. Não sei nada sobre ser o Mestre Rahl.

Os dois homens continuavam imóveis, sem mostrar emoção alguma. As quatro Mord-Sith olharam para ele durante algum tempo, a chama da vela adicionando um ponto de luz no canto dos olhos delas enquanto elas pareciam estudar a alma dele novamente. Imaginou se elas estavam arrependidas de seu juramento de lealdade para ele.

Richard sentiu-se desconfortável ao falar sobre os seus ancestrais para pessoas que ele não conhecia realmente. — Vocês ainda não explicaram como conseguiram me encontrar.

Quando Berdine tirou sua capa e jogou sobre as coisas deles, Cara colocou uma das mãos no ombro dele, fazendo ele sentar na cadeira. Pelo modo como ela balançou com o seu peso, ele não tinha certeza se aguentaria ele, mas aguentou

Ela olhou para os dois homens. — Talvez vocês pudessem explicar melhor a ligação para ele, já que vocês sentem isso com mais força. Ulic?

Ulic moveu o corpo, inquieto. — Por onde eu deveria começar?

Cara começou a dizer algo, mas Richard interrompeu. — Tenho coisas importantes para fazer, e não tenho muito tempo. Apenas fale as partes importantes. Fale sobre essa ligação.

Ulic assentiu. — Vou falar como nos ensinaram.

Richard gesticulou na direção de um banco, indicando que ele queria que Ulic sentasse. Era desconfortável ter o homem em pé, parecendo uma montanha com braços diante dele. Olhando por cima do ombro, Richard viu que Gratch estava satisfeito lambendo seu pelo, mas continuava com seus olhos verdes brilhantes nas pessoas. Richard sorriu de modo tranquilizador. Gratch nunca esteve perto de toda essa quantidade de pessoas, e Richard queria que ele ficasse confortável, em vista do que planejava. O rosto do Gar enrugou mostrando um sorriso, mas suas orelhas estavam alertas enquanto ele escutava. Richard gostaria de saber com certeza o quanto Gratch podia entender. Ulic puxou um banco e sentou. — Muito tempo atrás...

— Quanto tempo. — Richard interrompeu.

Ulic esfregou um dedão no cabo de osso da faca em seu cinto enquanto estudava a pergunta. Sua voz grossa parecia estar prestes a abafar a chamas da vela. — Muito tempo atrás... no princípio dos tempos de D'Hara. Acredito que muitos milhares de anos.

— Então, o que aconteceu nesse princípio dos tempos?

— Bem, foi quando a ligação teve origem. No princípio dos tempos, o primeiro Mestre Rahl lançou seu poder, sua magia, sobre o povo D'Haran, para nos proteger.

Richard levantou uma sobrancelha. — Você quer dizer, para governar vocês.

Ulic balançou a cabeça. — Isso foi um pacto. A Casa de Rahl, — ele tocou na letra R gravada no couro sobre o peito — seria a magia, e o povo D'Haran seria o aço. Nós protegemos ele e ele, em troca, nos protege. Nós ficamos ligados.

— Porque um mago precisaria da proteção do aço? Magos possuem magia.

O uniforme de couro de Ulic chiou quando ele colocou um cotovelo no joelho e inclinou com uma expressão sóbria.

— Você tem magia. Isso sempre protegeu você? Você não pode ficar o tempo todo acordado, ou sempre enxergar quem está atrás de você, ou conjurar magia rápido o bastante se o número de inimigos for grande. Até mesmo aqueles que possuem magia morrem se alguém cortar a garganta deles. Você precisa de nós.

Nesse ponto, Richard concordava. — Então, o que essa ligação tem a ver comigo?

— Bem, o pacto, a magia, conecta o povo de D'Hara ao Mestre Rahl. Quando o Mestre Rahl morre, a ligação é passada adiante para o seu herdeiro dotado. — Ulic encolheu os ombros. — A ligação é a magia dessa conexão. Todos os D'Harans sentem ela. Nós entendemos isso desde o nascimento. Nós reconhecemos o Mestre Rahl pela ligação. Quando o Mestre Rahl está perto, podemos sentir sua presença. Foi assim que encontramos você. Quando estamos perto o bastante podemos sentir.

Richard agarrou os braços da cadeira enquanto se inclinava para frente. — Você está querendo dizer que todos os D'Harans podem sentir minha presença e saber onde eu estou?

— Não. Tem mais. — Ulic enfiou um dedo debaixo de uma placa de couro para coçar o ombro enquanto tentava pensar como explicar.

Berdine colocou um pé sobre o banco ao lado de Ulic e se apoiou em um cotovelo, vindo em seu auxílio. A trança marrom grossa caiu por cima do ombro dela. — Veja, para começar, nós devemos reconhecer o novo Mestre Rahl. Com isso eu quero dizer que devemos reconhecer e aceitar o governo dele de uma maneira formal. Esse reconhecimento não é formal no sentido de cerimônia, é mais no sentido de um entendimento e aceitação dentro de nossos corações. Não precisa ser uma aceitação que desejamos, e no passado, conosco, de qualquer modo, não era, mas a aceitação fica implícita, apesar de tudo.

— Quer dizer que vocês devem acreditar.

All the faces staring at him brightened.

— Sim. Essa é uma boa maneira de expressar isso. — Egan colocou. — Logo que nós concordamos com o domínio dele, e enquanto o Mestre Rahl viver, nós estamos ligados a ele. Quando ele morre, o novo Mestre Rahl toma seu lugar, e então nós ficamos ligados a ele. Pelo menos esse é o jeito que deve funcionar. Dessa vez, alguma coisa deu errado, e Darken Rahl, ou seu espírito, de alguma forma manteve uma parte de si mesmo neste mundo.

Richard se endireitou na cadeira. — O portal. As caixas no Jardim da Vida são um portal para o submundo, e uma foi deixada aberta. Quando eu voltei, duas semanas atrás, eu a fechei, enviando Darken Rahl de volta para o submundo para sempre.

Os músculos de Ulic tufaram quando ele esfregou as mãos. — Quando Darken Rahl morreu no começo do inverno, e você falou do lado de fora do Palácio, muitos dos D'Harans ali acreditaram que você era o novo Lorde Rahl. Alguns não. Alguns ainda se agarram em sua lealdade, sua ligação, com Darken Rahl. Deve ter sido por causa desse portal que você disse que foi aberto. Isso nunca aconteceu desse jeito, pelo menos, não que eu tenha ouvido falar.

— Quando você retornou ao Palácio, e derrotou o espírito de Darken Rahl usando o seu dom, também derrotou os oficiais rebeldes que denunciaram você. Ao banir o espírito de Darken Rahl, quebrou a ligação que ele ainda mantinha sobre alguns deles, e convenceu o restante do Palácio de sua autoridade como Mestre Rahl. Agora eles estão leais a você. Todo o Palácio está. Todos estão ligados você.

— Como deveria ser. — Raina falou para concluir. — Você tem o dom; é um mago. Você é a magia contra a magia, e os D'Harans, o seu povo, são o aço contra o aço.

Richard olhou dentro dos olhos escuros dela. — Sei menos dessa ligação, dessa coisa de aço contra o aço e magia contra a magia, do que sei a respeito de ser um mago, e não sei quase nada sobre ser um mago.

— Não sei como usar magia.

As mulheres ficaram olhando fixamente para ele durante um momento, e então riram como se ele tivesse feito uma piada e elas quisessem que ele pensasse que acharam boa.

— Não estou brincando, não sei como usar o meu dom.

Hally tocou atrás do ombro dele e apontou para Gratch. — Você comanda as feras, assim como Darken Rahl fazia. Nós não conseguimos comandar feras. Você até fala com ele. Um gar!

— Vocês não entendem. Salvei ele quando era um filhote. Criei ele, só isso. Nos tornamos amigos. Não é magia.

Hally tocou no ombro dele outra vez. — Pode não parecer magia para você, Lorde Rahl, mas nenhum de nós poderia fazer isso.

— Mas...

— Nós vimos você ficar invisível hoje. — Cara disse. Ela não estava mais rindo. — Vai nos dizer que aquilo não foi magia?

— Bem, sim, acho que foi magia, mas não do jeito que vocês pensam. Vocês simplesmente não entendem...

A sobrancelha de Cara levantou. — Lorde Rahl, para você isso é compreensível, porque tem o dom. Para nós, é magia.

— Certamente, você não poderia sugerir que qualquer um de nós poderia fazer isso?

Richard passou uma das mãos no rosto. — Não, você não poderiam. Mas ainda assim, não é como vocês pensam.

Os olhos escuros de Raina fixaram nos dele com aquele jeito que as Mord-Sith exibiam quando esperavam obediência, e nenhuma discussão; um olhar firme como aço que parecia pareceu paralisar a língua dele. Embora ele não fosse mais um prisioneiro de uma Mord-Sith, e essas mulheres estivessem tentando ajudá-lo, o olhar ainda incomodava.

— Lorde Rahl, — ela falou com uma voz suave que ecoou na sala silenciosa, — no Palácio do Povo, você lutou com o espírito de Darken Rahl. Você, um simples homem, lutou com o espírito de um mago poderoso vindo do submundo, do mundo dos mortos, para destruir todos nós. Ele não tinha existência corpórea; era um espírito, animado apenas através da magia. Você só conseguiria lutar contra um demônio assim com sua própria magia.

— Durante a batalha, você lançou raios, conduzidos pela magia, através do Palácio para destruir os líderes rebeldes que estavam se opondo a você e queriam que Darken Rahl triunfasse. Todos no Palácio que ainda não estavam ligados a você ficaram ligados naquele dia. Nenhum de nós, em todas as nossas vidas, tinha visto o tipo de magia que estava se espalhando através do Palácio naquele dia.

Ela inclinou na direção dele, ainda mantendo ele sob o seu olhar sombrio, a paixão em sua voz cortando a calmaria. — Aquilo foi magia, Lorde Rahl. Todos nós estávamos prestes a sermos destruídos, engolidos dentro do mundo dos mortos. Você nos salvou. Manteve sua parte do pacto; você foi a magia contra a magia. Você é o Mestre Rahl. Entregaríamos nossas vidas por você.

Richard percebeu que sua mão esquerda estava segurando o cabo da espada bem apertado. Podia sentir as letras dourados em alto relevo da palavra VERDADE marcando sua carne.

Ele conseguiu desviar do olhar de Raina para observar o resto deles. — Tudo que você diz é verdade, mas não é tão simples como acredita. Tem mais coisa. Não quero que vocês pensem que eu consegui fazer as coisas que fiz porque sabia como. Apenas aconteceu. Darken Rahl estudou durante toda sua vida para ser um mago, para usar magia. Não sei quase nada sobre isso. Vocês depositam fé demais em mim.

Cara encolheu os ombros. — Nós entendemos; você tem mais para aprender sobre magia. Isso é bom. Sempre é bom aprender mais. Você nos servirá melhor enquanto aprende mais.

— Não, você não entendem...

Ela colocou uma das mãos no ombro dele para confortá-lo. — Não importa o quanto você sabe, sempre haverá mais; ninguém sabe tudo. Isso não muda nada. Você é o Mestre Rahl. Nós estamos ligados a você.

Ela apertou o ombro dele. — Mesmo se algum de nós desejasse mudar isso, não poderíamos.

De repente, Richard sentiu-se calmo. Realmente não queria dizer a eles para ficaram fora disso; a ajuda deles poderia ser útil, sua lealdade. — Você me ajudaram antes, talvez até mesmo tenham salvo meu pescoço lá na rua, mas simplesmente não quero que vocês tenham mais fé em mim do que deveriam. Não quero enganar vocês. Quero que me sigam porque aquilo que fazemos é o certo, não por causa de uma ligação forjada com magia. Isso é escravidão.

— Lorde Rahl, Raina disse, com sua voz hesitante pela primeira vez, — nós estávamos ligadas a Darken Rahl. Não tivemos mais escolha daquela vez do que temos agora. Ele nos tirou de nossas casas quando éramos jovens, nos treinou, e nos usou para...

Richard levantou, colocando as pontas dos dedos nos lábios dela. — Eu sei. Está tudo bem. Agora vocês estão livres.

Cara agarrou a camisa dele e aproximou o rosto dele do dela. — Não está vendo? Mesmo que muitas de nós odiássemos Darken Rahl, éramos compelidas a servir; estávamos ligadas. Aquilo era escravidão.

— Se você não sabe tudo, isso não é importante para nós. Independente de tudo, estamos ligadas a você como o Mestre Rahl. Pela primeira vez em qualquer uma de nossas vidas, isso não é um fardo. Se a ligação não existisse, teríamos feito a mesma escolha; isso não é escravidão.

— Não sabemos nada sobre a sua magia, — Hally falou, — mas podemos ajudar você a aprender o que significa ser Lorde Rahl. — A ironia do sorriso dela suavizou seus olhos azuis, deixando transparecer a mulher por trás da Mord-Sith. — Afinal de contas, o propósito da Mord-Sith é treinar, ensinar. — O sorriso desapareceu quando a expressão dela ficou séria. — Para nós não importa se você tem mais passos na jornada; não vamos abandoná-lo por causa disso.

Richard passou os dedos pelos cabelos. Estava comovido pelas coisas que eles disseram, ma sua devoção cega de algum modo o preocupava. — Enquanto vocês entenderem que eu não sou o mago que pensaram. Sei um pouco sobre alguma magia, como minha espada, mas não sei muito sobre usar o meu dom. Usei o que surgiu de dentro de mim sem entender ou ser capaz de controlar, e os bons espíritos me ajudaram. — Ele fez uma pausa durante um momento enquanto olhava nas profundezas dos olhos delas, — Denna está com eles.

As quatro mulheres sorriram, cada uma delas da sua própria maneira. Elas conheceram Denna, sabiam que ela o treinou, e que ele a matou para conseguir fugir. Ao fazer isso, libertou-a de sua ligação com Darken Rahl, e do que ela havia se tornado, mas a um custo que sempre o assombraria, mesmo se o espírito dela agora estivesse em paz; ele teve que fazer a Espada da Verdade ficar branca, e acabar com a vida dela com aquele lado da magia, através do seu amor e perdão.

— O que poderia ser melhor do que ter os bons espíritos do nosso lado. — Cara disse com um tom suave que pareceu falar por todos eles. — É bom saber que Denna está com eles.

Richard desviou dos olhos delas em uma tentativa de também se afastar das suas lembranças assustadoras. Ele esfregou a poeira das calças e mudou de assunto.

— Bem, como o Seeker da Verdade, eu estava a caminho para falar com quem estiver no comando dos D'Harans aqui em Aydindril. Tenho algo importante para fazer, e preciso me apressar. Não sabia nada sobre essa ligação, mas sei a respeito de ser o Seeker. Acho que não pode ser tão ruim ter vocês todos comigo.

Berdine balançou a cabeça de cabelo castanho ondulado. — É muita sorte que nós conseguimos encontrar ele a tempo. — As outras três concordaram.

Richard olhou de um rosto para outro. — Porque é muita sorte?

— Porque, — Cara disse, — eles ainda não o conhecem como o Mestre Rahl.

— Eu disse, sou o Seeker. Isso é mais importante do que ser o Mestre Rahl. Não esqueçam, como o Seeker, eu matei o último Mestre Rahl. Mas agora que me falaram dessa ligação, pretendo dizer ao comando D'Haran que também sou o novo Lorde Rahl, e pedir a lealdade deles. Certamente isso vai deixar mais fácil o que eu planejei.

Berdine soltou uma risada. — Não tínhamos ideia do quanto tivemos sorte ao encontrá-lo em tempo.

Raina empurrou suas franjas escuras para trás quando olhou para sua irmã de Agiel. — Tremo só de pensar como estivemos perto de perdê-lo.

— Do que você está falando? Eles são D'Harans. Pensei que eles conseguiriam sentir minha presença, com essa coisa de ligação.

— Nós falamos, — Ulic disse, — primeiro devemos reconhecer e aceitar o governo do Mestre Rahl de uma maneira formal. Você ainda não fez isso com esses homens. Além disso, a ligação não é a mesma com todos nós.

Richard jogou as mãos para cima. — Primeiro vocês falam que eles vão me seguir, e agora que não vão?

— Você tem que fazer a ligação com eles, Lorde Rahl. — Cara falou. Ela suspirou. — Se puder. O sangue do General Reibisch não é puro.

Richard franziu a testa. — O que isso significa?

— Lorde Rahl, — Egan falou enquanto dava um passo adiante, — no início dos tempos, quando o primeiro Mestre Rahl lançou a teia, nos ligando, D'Hara não era como é hoje. D'Hara era uma terra, dentro de uma terra maior e, de maneira muito parecida como Midlands é formada por diferentes terras.

De repente Richard lembrou da história que Kahlan contou na noite em que encontrou com ela. Enquanto estavam sentados tremendo perto de uma fogueira no abrigo de um pinheiro caprichoso, depois que eles quase morreram de terror no encontro com um gar, ela contou para ele uma parte da história do mundo além do seu lar em Westland.

Richard olhou fixamente para um canto escuro enquanto relembrava da história. — O avô de Darken Rahl, Panis, o Mestre de D'Hara, começou a reunir todas as terras sob o seu governo. Ele engoliu todas as terras, todos os reinos, transformando tudo em uma coisa só, transformando tudo em D'Hara.

— Está certo. — Egan disse. — Nem todas as pessoas que chamam a si mesmas de D'Haran são descendentes dos primeiros D'Harans, aqueles que estavam ligados. Alguns tem um pouco de sangue D'Haran verdadeiro, alguns tem mais, e em alguns, como em Ulic e em mim, ele é puro. Alguns não tem nenhum sangue D'Haran; eles não sentem a ligação.

— Darken Rahl, e seu pai antes dele, reuniram esses homens que possuíam mente parecida, aqueles que desejavam poder. Muitos daqueles D'Harans não eram de sangue puro, mas pura ambição.

— O Comandante General Trimack, no Palácio, e os homens da Primeira Fileira, — Richard fez um gesto para Ulic e Egan. — e os guardas pessoais do Mestre Rahl, devem ser D'Haran puros?

Ulic assentiu. — Darken Rahl, como seu pai antes dele, não confiaria em ninguém para sua guarda a não ser aqueles com sangue puro.

— Ele usou aqueles com sangue misturado, ou aqueles ligação alguma, para lutar nas guerras longe do coração de D'Hara, e para conquistar outras terras.

Richard colocou um dedo no lábio inferior enquanto pensava. — E quanto ao homem no comando das tropas D'Haran, aqui, em Aydindril. Qual é o nome dele?

— General Reibisch. — Berdine falou. — Ele tem sangue misturado, e então não será tão fácil, mas se conseguir fazer ele reconhecê-lo como o Mestre Rahl, ele tem sangue D'Haran suficiente para ficar ligado. Quando um comandante está ligado, muitos dos seus homens também ficam ao mesmo tempo, porque confiam em seus comandantes; acreditarão como ele. Se você conseguir a ligação com General Reibisch, então você terá o controle das forças em Aydindril. Mesmo que alguns dos homens não tenham verdadeiro sangue D'Haran, eles são leais a seus líderes, e ainda estarão ligados, por assim dizer.

— Então eu tenho que fazer alguma coisa para convencer esse General Reibisch que eu sou o novo Mestre Rahl.

Cara sorriu maliciosamente. — É por isso que precisa de nós. Nós trouxemos algo para você, do Comandante General Trimack. — Ela fez um gesto para Hally. — Mostre a ele.

Hally desabotoou os botões superiores da sua roupa de couro e tirou um cilindro que estava entre os seios dela.

Com um sorriso de orgulho, ela entregou para Richard. Ele retirou o pergaminho que estava dentro, inspecionando o símbolo de um crânio com espadas cruzadas embaixo dele impresso na cera de cor dourada.

— O que é isso?

— O Comandante General Trimack queria ajudá-lo, — Hally disse. Com um leve expressão de alegria ainda em seus olhos ela colocou um dedo na cera. — Esse é o selo pessoal do Comandante General da Primeira Fileira. O documento foi escrito pela própria mão dele. Ele escreveu enquanto eu esperava, e então falou para entregar a você. Ele declara que você é o novo Mestre Rahl, e diz que a Primeira Fileira e todas as tropas e generais de campo em D'Hara reconhecem você assim, estão ligadas, e estão prontos para defender sua ascensão para o poder com suas vidas. Ele ameaça vingança mortal contra qualquer um que ficar contra você.

O olhar de Richard levantou até encontrar os olhos azuis dela. — Hally, eu poderia beijar você.

O sorriso dela desapareceu em um instante. — Lorde Rahl, você nos declarou livres. Não temos mais que nos submeter...

Ela fechou a boca rapidamente quando o rosto dela ficou vermelho, como os das outras mulheres. Hally baixou a cabeça e fixou seu olhar no chão. A voz dela surgiu em um sussurro submisso. — Me perdoe, Lorde Rahl. Se quiser isso de nós, é claro que nos oferecemos de bom grado.

Com as pontas dos dedos, Richard levantou o queixo dela. — Hally, falei isso apenas no sentido figurado. Como você disse, embora estejam nessa ligação, dessa vez não são escravas. Não sou apenas o Mestre Rahl, também sou o Seeker da Verdade. Espero que vocês me sigam porque a causa é justa. É com isso que eu quero que vocês estejam ligadas, não a mim.

— Nunca precisará temer que eu anule sua liberdade.

Hally engoliu em seco. — Obrigada, Lorde Rahl.

Richard balançou o pergaminho. — Agora, vamos fazer esse General Reibisch conhecer o novo Mestre Rahl, para que eu possa continuar com aquilo que preciso fazer.

Berdine colocou uma das mãos no braço dele. — Lorde Rahl, as palavras do Comandante General devem servir como ajuda. Apenas elas não farão com que essas tropas fiquem ligadas a você.

Richard colocou os punhos nos quadris. — Vocês quatro possuem o péssimo hábito de colocar alguma coisa na minha frente e depois levar para longe. O que mais eu preciso fazer? Alguma magia bonita?

As quatro assentiram como se ele finalmente tivesse adivinhado o plano delas.

— O quê! — Richard inclinou na direção delas. — Estão querendo dizer que esse General vai querer que eu faça algum truque mágico para provar?

Pouco à vontade, Cara encolheu os ombros. — Lorde Rahl, essas são apenas palavras em um papel. Elas devem apoiar você, servir como ajuda, não realizar a tarefa por você. No Palácio em D'Hara a palavra do Comandante Geral é lei, só você está acima dele, mas no campo não é assim. Aqui, o General Reibisch é a lei. Você deve convencê-lo de que possui nível superior.

— Esses homens não serão conquistados facilmente. O Mestre Rahl deve ser visto como uma figura de incrível poder e força. Eles devem ser superados para invocar a ligação, assim como as tropas no Palácio quando você deixou as paredes vivas com o raio. Como você disse, eles devem acreditar. Para acreditarem, será preciso mais do que palavras em um papel. A carta do General Trimack deve ser parte disso, mas não pode fazer tudo.

— Magia. — Richard murmurou quando desabou na cadeira bamba. Passou a mão no rosto, tentando pensar no meio do nevoeiro da fadiga. Ele era o Seeker, nomeado por um mago, uma posição de poder e responsabilidade; o Seeker era lei em si mesmo. Ele tinha planejado fazer isso como o Seeker. Ainda poderia fazer como Seeker. Sabia sobre ser o Seeker.

Ainda assim, se os D'Harans em Aydindril fossem leais a ele...

No meio de todo esse desgaste, um pensamento era claro: precisava ter certeza de que Kahlan estava segura. Tinha que usar sua cabeça, não apenas seu coração. Não poderia simplesmente sair correndo atrás dela, ignorando o que estava acontecendo, não se realmente desejasse ter certeza de que ela estava segura. Precisava fazer isso. Precisava conquistar os D'Harans.

Richard levantou rapidamente. — Você trouxeram seus uniformes vermelhos de couro? — A roupa de couro vermelho sangue de uma Mord-Sith era usada quando elas pretendiam fornecer disciplina; vermelho não mostrava o sangue. Quando uma Mord-Sith usava seu couro vermelho, era uma declaração de que ela esperava que houvesse muito sangue, e todos sabiam que não seria o dela.

Hally mostrou um leve sorriso quando cruzou seus braços sobre os seios. — Uma Mord-Sith não vai a lugar algum sem o seu uniforme de couro.

Cara piscou os olhos, ansiosa. — Você pensou em alguma coisa, Lorde Rahl?'

— Sim. — Richard lançou um sorriso para ela. — Eles precisam ver poder e força? Eles querem um show espantoso de magia? Daremos magia para eles. Vamos conquistar eles. — Ele levantou um dedo pedindo cautela. — Mas vocês devem fazer o que eu disser. Não quero que ninguém se machuque. Não libertei vocês apenas para que sejam mortas.

Hally fixou um olhar de ferro nele. — Mord-Sith não morre na cama, velha ou sem dentes.

Naqueles olhos azuis, Richard viu uma sombra da loucura que transformou essas mulheres em armas sem remorso. Ele sofreu um pouco do que tinha sido feito com elas; ela sabia como era viver com aquela loucura. Ele encarou o olhar dela, com uma voz suave, tentou suavizar o olhar de ferro que enxergava. — Se você morrerem, Hally, então quem vai me proteger?

— Se tivermos que entregar nossas vidas, então faremos; caso contrário não haverá nenhum Lorde Rahl para proteger. — Um sorriso inesperado suavizou a expressão se Hally, lançando um pouco de luz nas sombras. — Nós queremos que Lorde Rahl morra na cama, velho e sem dentes. O que devemos fazer?

Uma sombra de dúvida passou através de seus pensamentos. Sua ambição teria sido distorcida por aquela mesma loucura? Não. Ele não tinha escolha. Isso salvaria vidas, não tiraria elas.

— Vocês quatro vistam suas roupas vermelhas de couro. Vamos esperar do lado de fora enquanto vocês trocam de roupa. Quando terminarem, vou explicar.

Hally segurou a camisa dele quando ele virou para sair. — Agora que encontramos você, não vamos deixar que fique fora de nossa vista. Vai ficar aqui enquanto nos trocamos. Pode virar de costas, se quiser.

Com um suspiro, Richard virou de costas e cruzou os braços. Os dois homens ficaram observando. Richard franziu o rosto e fez sinal para que eles virassem também. Gratch inclinou a cabeça com um olhar confuso. Encolhendo os ombros, ele virou de costas, imitando Richard.

— Estamos felizes que tenha decidido ligar esses homens a você, Lorde Rahl. — Cara disse. Ele podia escutar elas tirando coisas das mochilas. — Você vai ficar muito mais seguro com todo um exército protegendo você. Depois que tiver feito a ligação deles, nós todos partiremos imediatamente para D'Hara, onde você ficará em segurança.

— Não vamos para D'Hara. — Richard falou por cima do ombro. — Tenho assuntos importantes para cuidar. Tenho planos.

— Planos, Lorde Rahl? — Ele quase podia sentir a respiração de Raina atrás do pescoço dele enquanto ela tirava a roupa de couro marrom. — Que planos?

— Que tipo de planos o Mestre Rahl teria? Eu planejo conquistar o mundo.

 

Não houve necessidade de abrir caminho através das multidões; elas espalhavam uma onda de pânico diante delas do mesmo jeito que a visão de lobos assustava um rebanho de ovelhas. Pessoas gritavam enquanto se espalhavam. Mães carregavam crianças nos braços enquanto corriam, homens caiam de cara na neve enquanto tentavam se afastar, vendedores ambulantes abandonavam suas mercadorias em uma fuga louca para salvar suas vidas, e portas de lojas fechavam de cada lado da rua.

O pânico, Richard pensou, era um bom sinal. Pelo menos eles não seriam ignorados. É claro, era difícil ignorar um Gar de sete pés de altura caminhando através de uma cidade em plena luz do dia. Richard suspeitou que Gratch estava aproveitando o momento de sua vida. Não compartilhando de sua visão inocentes da tarefa adiante, o resto deles exibiam expressões amargas enquanto marchavam pelo meio da rua.

Gratch andava atrás de Richard, Ulic e Egan na frente, Cara e Berdine do lado esquerdo dele, e Hally e Raina do direito. Isso não era feito por acaso. Ulic e Egan insistiram que deveriam seguir cada um de um lado, uma vez que eram guardas pessoais de Lorde Rahl. As mulheres não gostaram muito dessa ideia, e argumentaram que seriam a última linha de defesa ao redor de Lorde Rahl. Gratch não se importava aonde caminhava enquanto estivesse perto de Richard.

Richard teve que levantar a voz para acabar com a discussão. Ele disse que Ulic e Egan seguiriam na frente para abrir caminho se fosse necessário, as Mord-Sith protegeriam cada um dos lados, e Gratch ficaria nas costas dele, já que o Gar poderia enxergar por cima e todos eles. Todos pareciam estar satisfeitos, pensando que receberam as melhores posições que forneceriam a melhor proteção para Lorde Rahl.

As capas de Ulic e Egan estavam para trás, por cima dos ombros deles, expondo as faixas com pontas afiadas acima dos cotovelos deles, mas eles carregavam suas espadas enfiadas nos cintos. As quatro mulheres, cobertas do pescoço até os pés em roupa de couro vermelho sangue exibindo a estrela amarela e a lua crescente das Mord-Sith em seus estômagos, carregavam o Agiel delas nos punhos cobertos por luvas de couro vermelho.

Richard conhecia bem demais a dor que segurar um Agiel causava. Assim como o Agiel com o qual Denna o havia treinado, e que deu para ele, machucava quando ele o segurava, não era possível para essas mulheres segurar seu próprio Agiel sem que sua magia lhes causasse dor. A dor, Richard sabia, era excruciante, mas as Mord-Sith eram treinadas para suportar a dor, e elas se orgulhavam obstinadamente de sua habilidade em tolerá-la.

Richard tinha tentado convencê-las a desistir do Agiel, mas elas não fariam isso. Poderia ordenar, ela imaginou, mas fazer isso seria retirar a liberdade que deu para elas, e ele não queria fazer isso. Se elas desistissem do Agiel, deveria ser decisão delas. De alguma forma, ele não acreditava que elas fariam isso. Tendo carregado a Espada da Verdade por tanto tempo, Richard podia entender como os desejos poderiam se opor aos princípios; ele odiava a espada, e queria ficar livre dela, das coisas que fez com ela, do que ela fez com ele; mas a cada momento, havia lutado para continuar com ela.

Cerca de cinquenta ou sessenta tropas caminhavam do lado de fora da construção de dois andares ocupada pelo comando D'Haran. Apenas seis, subindo pela plataforma de entrada, pareciam designadas formalmente. Sem reduzir o passo, Richard e sua pequena companhia seguiram em linha reta cortando através do aglomerado de homens e na direção dos degraus. Todos os homens se afastaram do caminho, o choque evidente em seus rostos quando enxergavam aquela coisa estranha.

Eles não entraram em pânico como o povo no mercado, mas a maioria recuou para abrir caminho. Olhares das quatro mulheres afastaram os outros de modo tão eficiente quanto aço. Alguns dos homens agarraram o cabo de suas espadas quando deram alguns passos para trás.

— Abram caminho para Lorde Rahl! — Ulic gritou. Em desordem, os soldados recuaram mais ainda. Confusos, mas sem estarem dispostos a correr o risco, alguns fizeram reverência.

Em um casulo particular de concentração, Richard observava tudo debaixo do capuz da capa de Mriswith.

Antes que alguém tivesse a presença de espírito de parar eles ou questioná-los, eles tinham passado pela multidão de soldados e estavam subindo os doze degraus até a porta reforçada com ferro. Lá em cima, um dos guardas, um homem aproximadamente da altura de Richard, decidiu que não tinha certeza se deveria deixar eles entrarem. Ele ficou na frente da porta.

— Vocês vão esperar...

— Abra caminho para Lorde Rahl, seu idiota! — Egan rosnou sem diminuir a velocidade.

Os olhos do guarda estavam fixos nas faixas nos braços dele. — O que...?

Ainda sem reduzir o passo, Egan empurrou o homem, jogando ele para o lado. O guarda caiu da plataforma. Dois outros pularam para sair do caminho, e os outros três abriram a porta, recuando através dela.

Richard se encolheu. Tinha falado para todos, até mesmo Gratch, que não queria ninguém ferido a não ser que fosse necessário.

Estava preocupado com o que cada um deles poderia imaginar como necessário.

Lá dentro, soldados, que ouviram a agitação do lado de fora, correram na direção deles de corredores fracamente iluminados com algumas lamparinas. Vendo Ulic e Egan, e as faixas douradas acima dos cotovelos deles, eles não sacaram armas, mas não pareciam estar longe de fazer isso. Um rosnado ameaçador de Gratch fez eles reduzirem a velocidade. A visão das Mord-Sith em suas roupas de couro fez eles pararem.

— General Reibisch — foi tudo que Ulic disse.

Alguns dos homens se adiantaram.

— Lorde Rahl para falar com General Reibisch. — Egan falou com tranquila autoridade. — Onde ele está?

Com suspeita, os homens ficaram olhando fixamente, mas não falaram. Um oficial rouco no lado direito, com os punhos nos quadris e um olhar furioso em seu rosto cheio de marcas, saiu do meio dos homens dele.

— O que está acontecendo?

Deu um passo agressivo adiante, um a mais, e levantou um dedo ameaçador na direção deles. Num piscar de olhos, Raina estava com seu Agiel no ombro dele, fazendo ele cair de joelhos. Ela o inclinou para cima, pressionando a ponta em um nervo no lado do pescoço dele. Seu grito ecoou através dos corredores. O resto dos homens se encolheram, recuando.

— Você responde as perguntas, — Raina falou com o tom inconfundível de uma Mord-Sith no controle total — não as faz — O corpo todo do homem convulsionou enquanto ele gritava. Raina inclinou aproximando-se dele, sua roupa de couro vermelho rangendo. — Eu dou a você mais uma chance. Onde está o General Reibisch?

O braço dele levantou, tremendo incontrolavelmente, mas ainda conseguindo apontar na direção do corredor central entre os três, — Porta... fim... corredor.

Raina afastou seu Agiel. — Obrigada. — O homem desabou como uma marionete cujas cordas tivessem sido cortadas.

Richard não desperdiçou nem um pouco de sua concentração sentindo compaixão. Não importa quanta dor um Agiel pudesse causar, Raina não tinha usado ele para matar; ele iria se recuperar, mas os outros homens ficaram e olhos arregalados enquanto ele se contorcia em agonia. — Façam reverência ao Mestre Rahl. — ela sibilou. — Todos vocês.

— Mestre Rahl? — uma voz em pânico perguntou.

Hally levantou uma das mãos na direção de Richard. — Mestre Rahl.

Os homens ficaram olhando fixamente, confusos. Raina estalou os dedos e apontou para o chão. Eles caíram de joelhos. Antes que tivessem tempo para pensar, Richard e sua companhia estavam descendo o corredor, o som de suas botas no chão com largas tábuas reverberando nas paredes. Alguns dos homens, sacando espadas, seguiram.

No final do corredor, Ulic abriu a porta que conduzia a uma grande sala com teto alto desprovida de decoração. Aqui e ali, pedaços do esquema de cor azul anterior estavam visíveis através do cal.

Gratch, que vinha atrás, teve que se curvar para atravessar o portal. Richard ignorou a sensação em suas entranhas de que estavam entrando em um poço de víboras.

Dentro da sala eles foram recebidos por três fileiras formidáveis de soldados D'Haran, todos com machados de batalha ou espadas nas mãos. Era uma sólida parede de rostos ferozes, músculos e aço. Atrás dos soldados estava uma mesa comprida diante de uma parede de janelas sem adornos que exibiam um pátio cheio de neve. Acima da parede mais distante do pátio, Richard podia ver os pináculos do Palácio das Confessoras, e acima dele, sobre a montanha, a Fortaleza do Mago.

Uma fila de homens com aparência severa estavam sentados por trás da mesa observando os intrusos. Na parte de cima dos braços deles parcialmente cobertos por mangas de cota de malha havia cicatrizes que, Richard presumiu, deveriam indicar graduação. Os homens na fila certamente mostravam a conduta de oficiais; seus olhos brilhavam com confiança e indignação.

O homem no centro empurrou sua cadeira para trás e cruzou os braços musculosos, braços com mais cicatrizes que os outros. Sua barba cor de ferrugem cobria parte de uma antiga cicatriz branca que corria desde a sua têmpora esquerda até a mandíbula.

Sua sobrancelhas grossas curvaram com desgosto.

Hally olhou para os soldados. — Estamos aqui para falar com o General Reibisch. Saiam do nosso caminho, ou serão forçados a sair.

O Capitão dos guardas se aproximou dela. — Você vai...

Hally bateu no lado do crânio dele com uma das mãos. Egan moveu o cotovelo para cima para cortar o ombro do Capitão. Na metade do recuo, Egan agarrou o Capitão pelo cabelo, dobrou o pescoço dele sobre um joelho, e segurou sua traqueia

— Se você quiser morrer, fale.

O Capitão pressionou os lábios com tanta força que eles ficaram brancos. Os outros homens soltaram pragas furiosas quando começaram a se aproximar. Um Agiel levantou como aviso.

— Deixem eles passarem. — o homem barbado atrás da mesa falou.

Os homens recuaram, deixando apenas espaço suficiente para que eles seguissem adiante. As mulheres de cada um dos lados agitaram o Agiel, e os soldados abriram mais espaço. Egan largou o Capitão. Ele caiu de joelhos apoiado no braço bom enquanto tossia e tentava respirar. Atrás, o portal e o corredor estavam cheios com mais homens, todos armados.

The man with the rust-colored beard let the front legs of his chair thump down. He folded his hands atop a scattering of papers between stacks laid out neatly to each side.

— Qual é o assunto?

Hally deu um passo em frente, entre Ulic e Egan. — Você é o General Reibisch? — o homem barbado assentiu. Hally inclinou a cabeça na direção dele. Foi uma leve reverência; Richard nunca tinha visto uma Mord-Sith fazer mais do que isso, até mesmo para uma Rainha. — Trazemos uma mensagem do Comandante General Trimack da Primeira Fileira. Darken Rahl está morto, e seu espírito foi banido para o submundo pelo novo Mestre Rahl.

Ele levantou uma sobrancelha. — É mesmo?

Ela tirou o pergaminho do cilindro e entregou a ele. Ele inspecionou o selo rapidamente antes de quebrá-lo com um dedão. Empurrou sua cadeira para trás mais uma vez enquanto desenrolava a carta, e seus olhos verde acinzentados moveram-se de um lado para outro enquanto lia. Finalmente ele deixou a cadeira descer novamente.

— E foi preciso todos vocês para trazer uma mensagem?

Hally plantou os punhos na mesa e se aproximou dele. — Não trazemos apenas a mensagem, General Reibisch, também trazemos o Lorde Rahl.

— É mesmo? E onde está esse Lorde Rahl de vocês?

Hally exibiu sua melhor expressão de Mord-Sith, parecendo que não esperava ser questionada outra vez. — Está bem na sua frente.

Reibisch olhou atrás dela, para a companhia de estranhos, seus olhos momentaneamente avistando o gar. Hally endireitou o corpo, esticando o braço na direção de Richard.

— Gostaria de apresentar Lorde Rahl, o Mestre de D'Hara e todo o seu povo.

Homem sussurraram, espalhando as palavras dela para os que estavam no corredor. Surpreso, o General Reibisch fez um gesto na direção das mulheres.

— Uma de vocês está afirmando ser Lorde Rahl?

— Não seja idiota. — Cara disse. Levantou uma das mãos na direção de Richard — Esse é o Lorde Rahl.

As sobrancelhas do General curvaram, mostrando raiva. — Não sei que tipo de jogo é esse, mas a minha paciência está prestes a...

Richard puxou o capuz da capa de Mriswith e deixou sua concentração relaxar. Diante dos olhos do General e de todos os seus homens, Richard pareceu materializar-se do ar.

Os soldados ao redor engoliram em seco. Alguns recuaram. Alguns caíram de joelhos fazendo grandes reverências.

— Eu, — Richard falou com uma voz tranquila — sou Lorde Rahl.

Houve um momento de profundo silêncio, e então o General Reibisch começou a rir quando bateu com uma das mãos na mesa. Jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Alguns dos homens riram também, mas pelo jeito como os olhos deles se moviam, estava claro que não sabiam por que estavam acompanhando ele, apenas pensavam que era melhor fazer isso.

A risada dele morreu, o General Reibisch levantou. — Que belo truque, meu jovem. Mas já vi muitos truques desde que vim para Aydindril. Ora, um dia um homem me distraiu tirando pássaros das calças dele. — A expressão de raiva retornou. — Por um momento, eu quase acreditei em você, mas um truque não transforma você em Lorde Rahl. Talvez diante dos olhos de Trimack, mas não dos meus. Não faço reverência para mágicos de rua.

Richard ficou petrificado, era o foco de todos os olhos, enquanto tentava pensar no que fazer em seguida. Não esperava risadas. Não conseguia pensar em nenhuma outra magia que pudesse usar, e de qualquer modo, esse homem parecia não saber diferenciar magia verdadeira de um truque. Incapaz de conseguir uma ideia melhor no momento, Richard tentou pelo menos fazer sua voz soar confiante.

— Eu sou Richard Rahl, filho de Darken Rahl. Ele está morto. Agora eu sou Lorde Rahl. Se deseja continuar a servir no seu posto, vai baixar a cabeça e me reconhecer. Se não, então vou substituir você.

Rindo outra vez, o General Reibisch enfiou um dedão no cinto. — Faça outro truque, e se eu julgar que merece, darei para você e sua trupe uma moeda antes de mandar seguirem seu caminho. No mínimo, estou inclinado a dar uma pela sua ousadia.

Os soldados chegaram mais perto, o humor deles mudando para um tom de ameaça.

— Lorde Rahl não faz truques — Rally disparou.

Reibisch colocou sua mãos carnudas em cima da mesa enquanto se inclinava na direção dela. — Seus uniformes são bem convincentes, mas não deveria brincar de ser uma Mord-Sith, minha jovem. Se uma delas colocar as mãos em você, não veria com bons olhos sua pretensão; elas tratam sua profissão com seriedade.

Rally encostou o Agiel na mão dele. Com um grito, o General Reibisch deu um pulo para trás, seu rosto era a imagem do choque. Ele sacou uma faca.

O rugido de Gratch balançou os vidros das janelas. Seus olhos verdes brilharam enquanto ele mostrava suas presas. Suas asas abriram repentinamente, como velas em uma ventania. Homens se afastaram, levantando braços com armas.

Por dentro, Richard praguejou. As cosias estavam fugindo do controle rapidamente. Ele desejou ter feito um trabalho melhor ao pensar nisso, mas tinha certeza de que parecer estar invisível deixaria surpresos os D'Harans e faria com que acreditassem. Pelo menos ele deveria ter pensado em uma rota de fuga. Não sabia como sairiam vivos dali. Mesmo se conseguissem, seria com grande custo; poderia ser um banho de sangue. Não queria isso. Tinha apenas começado com essa coisa de ser o Mestre Rahl para evitar que pessoas fossem feridas, não o contrário. Gritos surgiram ao redor dele.

Quase antes de perceber o que estava fazendo, Richard sacou sua espada. O som inconfundível do aço encheu a sala. A magia da espada fluiu através dele, crescendo em sua defesa, inundando ele com sua fúria. Foi como ser atingido por um jato de uma fornalha que queimasse até os ossos. Conhecia bem a sensação, e estimulou ela; não havia escolha. Tempestades de fúria irromperam de seu interior. Deixou que os espíritos daqueles que usaram a magia antes dele emergirem nas asas da ira.

Reibisch acertou o ar com sua faca. — Matem os impostores!

Quando o General saltou por cima da mesa na direção de Richard, a sala subitamente retumbou com o barulho de trovão. Fragmentos de vidro espalharam-se no ar, refletindo luz em flashes cintilantes.

Richard agachou enquanto Gratch pulava por cima dele. Pedaços de madeira das janelas espiralaram por cima das cabeças deles. Oficiais por trás da mesa se jogaram para frente, muitos cortados pelo vidro. Assustado, Richard percebeu que as janelas estavam explodindo para o lado de dentro.

Manchas de cores dançaram através da chuva de vidro. Sombras e luz no meio do ar caíram ao chão. Surpreso, através da fúria da espada, Richard sentiu a presença deles.

Mriswith.

Ficaram sólidos quando atingiram o chão.

A sala explodiu na batalha. Richard viu brilhos vermelhos, faixas de pelo, e arcos deslizantes de aço. Um oficial bateu com o rosto em cima da mesa, sangue espirrou sobre papéis. Ulic empurrou dois homens para trás. Egan jogou outros dois por cima da mesa. Richard ignorou o tumulto ao redor dele enquanto buscava o centro de calmaria em seu interior. A cacofonia desapareceu quando ele tocou o aço frio na testa, pedindo silenciosamente para sua espada que fosse verdadeira neste dia.

Ele viu apenas os Mriswith, sentiu apenas ele. Com cada fibra do seu ser, ele não queria mais nada.

O que estava mais perto saltou, suas costas para ele. Com um grito de fúria, Richard liberou a ira da Espada da Verdade. A ponta assobiou quando girou, a lâmina encontrou seu alvo: a magia teve sua prova de sangue.

Sem cabeça, o Mriswith desabou, suas facas de três lâminas fazendo barulho no chão.

Richard virou para a criatura parecida com lagarto do outro lado. Hally saltou entre eles, no meio do seu caminho. Ainda girando ele usou o impulso para empurrá-la com o ombro para o lado, enquanto girava sua espada, cortando o segundo Mriswith antes que a cabeça do primeiro tivesse atingido o chão. Sangue fedorento espalhou no ar.

Richard girou avançando. Envolvido pela fúria, ele era um só com a lâmina, com os espíritos dela, com sua magia. Ele era, como as antigas profecias em Alto D'Haran o chamavam, como ele chamava a si mesmo, fuer grissa ost drauka: aquele que traz a morte. Qualquer coisa menos do que isso significaria as mortes de seus amigos, mas ele estava além do pensamento equilibrado. Estava perdido na necessidade.

Embora o terceiro Mriswith fosse marrom escuro, da cor do couro, Richard ainda conseguiu ver quando ele correu entre os homens. Com um golpe poderoso, enfiou a espada entre as omoplatas dele. O uivo de morte do Mriswith estremeceu o ar.

Homens congelaram com o som, e a sala ficou silenciosa.

Grunhindo por causa do esforço, e de fúria, Richard empurrou o Mriswith para o lado. A carcaça sem vida escorregou da lâmina e caiu no chão, batendo em uma das pernas da mesa. A perna dela estalou, e o canto da mesa desabou no meio de uma chuva de papéis.

Com o dentes cerrados, Richard virou sua espada de volta para o homem parado perto de onde o Mriswith estivera um momento antes. A ponta parou na garganta dele, firme como rocha e pingando sangue. A magia estava alucinada fora de controle, pedindo por mais em seu desejo de eliminar a ameaça.

O olhar mortal do Seeker encontrou com os olhos do General Reibisch. Aqueles olhos viram pela primeira vez quem estava diante dele. A magia dançando nos olhos de Richard era inconfundível; enxergar ela era enxergar o sol, sentir seu calor, reconhecê-la sem dúvida.

Ninguém emitiu som algum, mas mesmo se tivessem feito isso, Richard não teria escutado; toda a sua concentração estava no homem na ponta da espada, na ponta de sua vingança. Richard tinha pulado além do limite do compromisso letal com dentro de um caldeirão efervescente de magia, e retornar era um esforço agonizante.

General Reibisch caiu de joelhos e olhou para cima, pela lâmina, dentro dos olhos como de falcão de Richard. Sua voz preencheu o silêncio.

— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz, prosperamos. Na sua misericórdia, nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.

Elas não eram palavras falsas para salvar sua própria vida, eram as palavras respeitosas de um homem que tinha visto algo que realmente não esperava.

Richard havia recitado aquelas mesmas palavras incontáveis vezes nas devoções. Durante duas horas a cada manhã e tarde todos no Palácio do Povo em D'Hara seguiam para uma praça de devoção quando o sino tocava e, fazendo reverência, encostando as testas no chão, recitavam aquelas mesmas palavras. Richard, como ordenado, havia dito aquelas mesmas palavras na primeira vez que encontrou com Darken Rahl.

Agora, baixando os olhos para olhar o General, e ouvindo aquelas mesmas palavras, Richard sentiu repulsa, e mesmo assim outra parte dele estava aliviada ao mesmo tempo.

— Lorde Rahl, — Reibisch sussurrou — você salvou minha vida. Salvou todas as nossas vidas. Obrigado.

Richard sabia que se tentasse usar a Espada da Verdade contra ele agora, ela não tocaria em sua carne. Em seu coração, Richard sabia que esse homem não era mais uma ameaça, ou seu inimigo. A espada, a não ser que fosse transformada e ficasse branca, e utilizasse o amor e o perdão da magia, não poderia ferir ninguém que não fosse uma ameaça. A ira, porém, não respondia a razão, e a tentativa de negar sua vontade era uma agonia. Richard finalmente manifestou seu domínio sobre a fúria e enfiou a Espada da Verdade em sua bainha, fazendo a magia recuar, e a raiva, ao mesmo tempo.

Tinha acabado tão rapidamente quanto havia começado. Para Richard, quase pareceu um sonho inesperado, uma convulsão de violência, e terminou.

Em cima da mesa inclinada estava esparramado um oficial morto, seu sangue escorrendo pela madeira polida. Vidro cobria o chão, junto com papéis espalhados e sangue fedorento de Mriswith. Os soldados na sala, e aqueles que estavam no corredor, estavam de joelhos. Seus olhos também tinham visto o inequívoco.

— Todos os outros estão bem? — Richard percebeu que sua voz estava rouca de tanto gritar. — Tem mais alguém ferido?

O silêncio ecoou na sala. Alguns homens estavam cuidando de ferimentos que pareciam dolorosos, mas que não ameaçavam suas vidas. Ulic e Egan, ambos arfando, ambos com suas espadas ainda nas bainhas, ambos com as mãos sujas de sangue, estavam no entre os homens de joelhos. Estiveram no Palácio do Povo; seus olhos já tinham visto.

Gratch fechou as asas e sorriu. Pelo menos havia um, Richard pensou, que estava ligado a ele através da amizade. Quatro Mriswith mortos estavam no chão; Gratch matou um, e Richard três, felizmente antes que eles conseguissem matar mais alguém. Facilmente poderia ter sido muito pior. Cara afastou um pouco de cabelo do rosto, enquanto Berdine retirava fragmentos de vidro da cabeça, e Raina soltava o braço de um soldado, deixando ele cair para frente para recuperar seu fôlego.

Richard olhou além do corpo partido de um Mriswith no chão. Hally, com sua roupa de couro vermelho destacada em alto contraste com seu cabelo louro, estava curvada com os braços cruzados sobre o abdômen. Seu Agiel balançava em sua corrente no pulso dela. Seu rosto estava pálido.

Quando Richard baixou os olhos, um formigamento gelado de temor percorreu sua carne. O couro vermelho havia escondido o que ele via agora; ela estava sobre uma poça de sangue. O sangue dela.

Ele pulou o Mriswith e segurou-as nos braços.

— Hally! — Richard aliviou o peso dela e colocou-a deitada no chão. — Queridos espíritos, o que aconteceu? — Antes que as palavras saíssem de sua boca, ele soube; aquele era o modo como os Mriswith matavam. As outras três mulheres estavam lá, ajoelhadas atrás dele enquanto ele colocava a cabeça dela em seu colo. Gratch agachou ao lado dele.

Os olhos azuis dela estavam fixos nos dele. — Lorde Rahl...

— Oh, Hally, sinto muito. Nunca deveria ter permitido que você...

— Não... escute. Eu fiquei distraída tolamente... e ele era rápido... mas assim mesmo... quando ele me cortou... capturei a magia dele. Por um instante... antes que você o matasse... ele foi meu...

Se magia fosse usada contra elas, as Mord-Sith podiam assumir o controle dela, deixando um oponente indefeso. Foi assim que Denna o capturou.

— Ah, Hally, sinto muito não ter sido rápido o bastante.

— Era o dom.

— O quê?

— A magia dele era como a sua... o dom.

A mão dele tocou a testa gelada dela, forçando ele a manter os olhos nos dela, e não baixar os olhos. — O dom? Obrigado pelo aviso, Hally. Estou em dívida com você.

Ela agarrou a camisa dele com uma das mãos suja de sangue. — Obrigada, Lorde Rahl... por minha liberdade. — Ela fez um esforço para dar um leve suspiro. — Tão curta quanto tenha sido... valeu a pena... o preço. — Ela olhou para as suas irmãs de Agiel.

— Protejam ele...

Com uma respiração forçada, o ar deixou os pulmões dela pela última vez. Os olhos vidrados dela continuaram fixos nele.

Richard apertou o corpo flácido dela contra o corpo dele enquanto gemia, uma resposta desesperada por ser incapaz de desfazer o que tinha acontecido. Gratch colocou uma pata na costa dela suavemente, e Cara uma das mãos sobre a mão de Richard.

— Não queria que nenhum de vocês morresse. Queridos espíritos, não queria.

Raina apertou os ombros dele.— Nós sabemos, Lorde Rahl. É por isso que devemos protegê-lo.

Richard colocou Hally no chão gentilmente, curvando-se sobre ela, não querendo que os outros vissem o ferimento medonho que ela sofrera. Uma rápida busca com os olhos revelou uma capa de Mriswith ali perto. Ao invés disso ele virou para um dos soldados.

— Me dê a sua capa.

O homem tirou a capa como se ela estivesse pegando fogo. Richard fechou os olhos de Hally e então cobriu-a com a capa enquanto lutava contra a vontade de vomitar.

— Daremos a ela um funeral D'Haran adequado, Lorde Rahl. — General Reibisch, parado ao lado dele, gesticulou na direção da mesa. — Junto com Edwards.

Richard fechou os olhos e fez uma oração aos bons espíritos para que eles tomassem conta do espírito de Hally, e então levantou.

— Depois da devoção.

O General fechou um dos olhos. — Lorde Rahl?

— Ela lutou por mim. Morreu tentando me proteger. Antes que seja colocada para descansar, quero que seu espírito veja que isso teve algum propósito. Esta tarde, depois da devoção, Hally e seu homem serão colocados para descansar.

Cara inclinou chegando mais perto e sussurrou. — Lorde Rahl, devoções completas são feitas em D'Hara, mas não em campo. Em campo, uma reflexão, como o General Reibisch fez, é o costume.

O General Reibisch assentiu. O olhar de Richard varreu a sala. Todos os olhos estavam sobre ele. Depois dos rostos, jatos de sangue de Mriswith manchavam o cal. Ele voltou seu olhar de aço para o General.

— Não me importo com o que vocês fizeram no passado. Hoje haverá uma devoção completa, aqui, em Aydindril.

Amanhã, vocês podem retornar ao costume. Hoje, todos os D'Harans dentro e ao redor da cidade farão uma devoção completa.

Os dedos do general deslizaram em sua barba. — Lorde Rahl, tem um grande número de tropas na área. Todos eles devem ser notificados e...

— Não estou interessado em desculpas, General Reibisch. Um caminho difícil nos espera adiante. Se não conseguir realizar essa tarefa, então não espere que eu tenha fé que pode realizar o resto.

O General Reibisch lançou um rápido olhar para os oficiais, por cima do ombro, como se estivesse prestes a dar sua palavra, e comprometer eles com isso também. Virou novamente para Richard e bateu com um punho sobre o coração. — Por minha palavra como um soldado a serviço de D'Hara, o aço contra o aço, será como Lorde Rahl ordena. Esta tarde, todos os D'Harans ficarão honrados em fazer uma devoção completa para o novo Mestre Rahl.

O General olhou para o Mriswith debaixo da ponta da mesa. — Nunca ouvi falar de um Mestre Rahl que lutasse usando aço contra o aço ao lado de seus homens. Foi como se os próprios espíritos guiassem sua mão.— Ele limpou a garganta. — Se permitir, Lorde Rahl, posso perguntar que caminho difícil é esse que nos espera adiante?

Richard estudou o rosto marcado por cicatrizes do homem. — Eu sou um mago guerreiro. Luto com tudo que tenho. Magia, e aço.

— E minha pergunta, Lorde Rahl?

— Acabei de responder sua pergunta, General Reibisch.

Um leve sorriso começou a surgir no canto da boca do General.

Involuntariamente, Richard olhou para Hally. A capa não conseguia cobrir tudo que foi arrancado dela. Kahlan teria muito menos chance contra um Mriswith. Novamente, ele pensou que poderia vomitar.

— Saiba que ela morreu do jeito que desejava, Lorde Rahl. — Cara falou com suave condolência. — Como uma Mord-Sith.

Em sua mente ele tentou formar a imagem do sorriso que conhecera fazia poucas horas. Não conseguiu. Sua mente mostrava apenas o terrível ferimento que tinha visto apenas por alguns segundos.

Richard cerrou os punhos combatendo a náusea e virou mostrando um olhar sério para as três Mord-Sith restantes. — Pelos espíritos, eu pretendo ver todas vocês morrerem na cama, sem dentes e velhas. Acostumem-se com essa ideia!

 

Tobias Brogan alisou o seu bigode enquanto olhava com o canto dos olhos para Lunetta. Quando ela assentiu respondendo com o mais leve movimento da cabeça, a boca dele se contorceu com a mais amarga das expressões. Seu raro bom humor tinha evaporado. O homem estava dizendo a verdade, Lunetta não cometia enganos sobre esse tipo de coisa, mesmo assim Brogan sabia que não era verdade. Sabia muito bem.

Redirecionou o olhar para o homem parado diante dele do outro lado de uma mesa longa o bastante para um banquete com setenta pessoas, e colocou um sorriso educado nos lábios.

— Obrigado. Você foi de grande ajuda.

O homem olhou desconfiado para os soldados de armadura polida de cada um dos lados dele. — Isso é tudo que quer saber? Fez com que me arrastassem até aqui, só para perguntar o que todo mundo sabe? Eu poderia ter falado para seus homens se eles tivessem perguntado.

Brogan se esforçou para manter o sorriso. — Peço desculpas pela inconveniência. Você esteve a serviço do Criador, e de mim. — O sorriso escapou de seu controle. — Você pode ir.

O homem não deixou de notar a aparência dos olhos de Brogan. Fez uma reverência e saiu apressado em direção à porta.

Brogan bateu com o lado do dedão no estojo em seu cinto e olhou impaciente para Lunetta. — Tem certeza?

Lunetta, em seu elemento, devolveu um olhar sereno. — Ele estar dizendo a verdade, Lorde General, assim como os outros.

Ela conhecia sua arte, desprezível quanto fosse, e quando a praticava ficava envolvida com um ar confiante. Isso o deixava irritado.

Bateu com um punho na mesa. — Isso não ser verdade!

Ele quase podia ver o Guardião nos olhos tranquilos dela enquanto ela o observava. — Eu não dizer que isso ser verdade, Lorde General, apenas que ele estar dizendo o que acreditar ser a verdade.

Tobias pigarreou. Conhecia a verdade daquilo. Não tinha passado sua vida caçando o mal sem aprender alguns de seus truques. Conhecia magia. A presa estava tão próxima que ele quase podia sentir o cheiro.

O sol do fim de tarde derramou seus raios através de um fenda nas pesadas cortinas douradas, traçando uma linha cintilante de luz por uma perna dourada de cadeira, pelo tapete real azul florido, e subindo pelo canto do comprido e lustroso tampo da mesa. A refeição do meio dia havia sido adiada fazia tanto tempo enquanto ele continuava, e mesmo assim ele ainda não estava muito mais distante no caminho do que estivera quando começou. A frustração consumia suas tripas.

Galtero geralmente mostrava um talento para apresentar testemunhas que poderiam fornecer informação adequada, mas até agora esse grupo havia se mostrado inútil. Ele ficou imaginando o que Galtero teria descoberto; a cidade estava em tumulto por causa de alguma coisa, e Tobias Brogan não gostava quando as pessoas estavam agitadas, a não ser quando ele e seus homens eram a causa. Agitação poderia ser uma arma poderosa, mas não gostava das que ele desconhecia. Certamente, Galtero deveria ter retornado fazia tempo.

Tobias recostou-se em sua cadeira de couro estofada e falou com um dos soldados de capa vermelha que guardavam as portas. — Ettore, Galtero já voltou?

— Não, Lorde General.

Ettore era jovem, e ansioso para deixar sua marca contra mal, mas era um homem bom: sagaz, leal, e não tinha medo de ser brutal quando lidava com aqueles que serviam ao Guardião. Um dia ele estaria entre os melhores dos caçadores de Baneling. Tobias colocou os dedos nas costas doloridas. — Quantas testemunhas nós ainda temos?

— Duas, Lorde General.

Ele balançou a mão, impaciente. — Então traga a próxima.

Enquanto Ettore passava pela porta, Tobias deu uma olhada através do feixe de luz do sol, para sua irmã parada encostada na parede. — Você tinha certeza, Lunetta, não tinha?

Ela ficou olhando fixamente enquanto apertava os seus trapos esfarrapados. — Sim, Lorde General.

Ele suspirou quando a porta abriu e o guarda fez entrar uma mulher que não parecia estar muito feliz.

Tobias abriu seu sorriso mais educado; um caçador sábio jamais deixa sua caça ver as suas presas.

A mulher soltou o seu cotovelo da mão de Ettore. — O que está acontecendo? Fui trazida contra minha vontade e fiquei trancada em uma sala o dia todo. Que direito vocês tem para trazer uma pessoa contra sua vontade!

Tobias sorriu como se pedisse desculpas. — Deve ter acontecido algum mal-entendido. Sinto muito. Você entende, nós só queremos fazer algumas perguntas para pessoas que julgamos confiáveis. Ora, a maioria das pessoas na rua não saberia diferenciar em cima de embaixo. Você parecia uma mulher inteligente, só isso, e...

Ela inclinou sobre a mesa na direção dele. — E então me trancou em uma sala? É isso que o Sangue da Congregação faz com pessoas que considera confiáveis? Pelo que ouvi, o Sangue não se importa com perguntas, simplesmente agem baseados em rumores, enquanto isso resultar em túmulos frescos.

Brogan conseguiu sentir suas bochechas tremendo, mas continuou com o sorriso. — Ouviu errado, madame. O Sangue da Congregação só estar interessado na verdade. Nós servimos ao Criador e seu desejo, não menos do que uma mulher do seu caráter.

Agora, você se importaria em responder algumas perguntas? E então vamos garantir que chegue em casa em segurança.

— Garanta que eu chegue em casa agora. Essa é uma cidade livre. Nenhum Palácio tem o direito de arrastar pessoas para questioná-las, nem em Aydindril. Não tenho obrigação de responder qualquer uma das suas perguntas!

Brogan alargou o sorriso quando forçou um leve encolher dos ombros. — Tem razão, madame. Não temos direito algum, e não queríamos dizer que temos. Estamos somente buscando ajuda das pessoas honestas, humildes. Se você apenas conseguir nos ajudar a chegar ao fundo de questões simples, você poderia seguir seu caminho com nossa mais profunda gratidão.

Ela fez uma careta por um momento e então balançou os ombros magros para arrumar seu xale de lã — Se isso vai me levar de volta para casa, então vamos lá. O que você quer saber?

Tobias se ajeitou em sua cadeira para disfarçar uma rápida olhada para Lunetta, para ter certeza que ela estava prestando atenção. — Você entende, madame, que Midlands esteve sendo dividida pela guerra desde a última primavera, e procuramos saber se os servos do Guardião estão com uma das mãos no conflito que agora lança suas sombras sobre as terras. Algum dos membros do Conselho tem falado contra o Criador?

— Eles estão mortos.

— Sim, ouvi falar disso, mas o Sangue da Congregação não confia em rumores. Devemos ter evidência sólida, assim como a palavra de uma testemunha.

— Noite passada eu vi os corpos deles nas câmaras do Conselho.

— É mesmo? Bem, isso é uma evidência poderosa. Pelo menos ouvimos a verdade de uma pessoa honrada que foi testemunha. Você entende, já está sendo de grande ajuda. Quem os matou?

— Não vi a matança sendo feita.

— Alguma vez ouviu algum dos conselheiros rezar contra a paz do Criador?

— Eles conspiram contra a paz da aliança de Midlands, e para mim isso é a mesma coisa, ainda que eles não colocassem isso nesses termos. Tentaram fazer parecer como se preto fosse branco, e branco fosse preto.

Tobias levantou uma sobrancelha, tentando parecer interessado. — Aqueles que servem ao Guardião usam a mesma tática: tentar fazer você pensar que fazer o mal ser o certo. — Ele levantou a mão num gesto vago. — Havia alguma terra em particular que desejasse quebrar a paz da aliança?

A mulher ficou parada com sua costa ereta quando levantou o nariz olhando para ele. — Todas, inclusiva a sua, pareciam igualmente prontas para lançar o mundo dentro da escravidão sob a Ordem Imperial.

— Escravidão? Ouvi que a Ordem Imperial busca apenas unir as terras e colocar o homem em seu lugar de direito no mundo, sob o governo do Criador.

— Então você ouviu errado. Eles procuram apenas escutar qualquer mentira que se encaixe em seus objetivos, e os objetivos deles são conquista e dominação.

— Não ouvi esse lado. Essas são novidades valiosas. — Ele recostou na cadeira, cruzou uma perna sobre a outra, e juntou as mãos sobre o colo. — E enquanto toda essa conspiração e insurreição estava tomando lugar nas câmaras do Conselho, onde estava a Madre Confessora?

Por um instante ela hesitou. — Estava longe cuidando de assuntos de Confessora.

— Entendo. Mas ela voltou?

— Sim.—

— E quando voltou, ela tentou impedir essa insurreição? Tentou manter Midlands unida?

Os olhos da mulher estreitaram. — Claro que tentou, e você sabe o que fizeram com ela por causa disso. Não finja que não sabe.

Um olhar casual na direção da janela mostrou os olhos de Lunetta concentrados na mulher. — Bem, ouvi todo tipo de rumor. Se você viu os eventos com seus próprios olhos, então seria uma evidência poderosa. Você testemunhou algum desses eventos, madame?

— Vi a execução da Madre Confessora, se é isso que você quer dizer.

Tobias inclinou para frente sobre os cotovelos e estalou os dedos. — Sim, era isso que eu temia. E então ela está morta?

As narinas dela pegaram fogo. — Porque está tão interessado nos detalhes?

Tobias arregalou os olhos. — Madame, Midlands esteve unida sob as Confessoras, e a Madre Confessora, durante três mil anos. Todos nós prosperamos e tivemos uma boa quantidade de paz com o governo de Aydindril. Quando a guerra com D'Hara começou depois que a fronteira caiu, eu temi que Midlands...

— Então porque não veio nos ajudar?

— Embora que desejasse fornecer minha ajuda, o Rei proibiu que o Sangue da Congregação interferisse. Eu fui contra, é claro, mas ele era, afinal de contas, nosso Rei. Nicobarese sofreu sob o governo dele. Como acabou ficando claro, ele tinha intenções sombrias para nosso povo, e aparentemente, como você disse, os Conselheiros dele estavam prontos para nos lançar dentro da escravidão.

— Uma vez que o Rei foi exposto pelo que ele realmente era, um Baneling, e pagou o preço, eu imediatamente trouxe nossos homens pelas montanhas, até Aydindril, para colocá-los a disposição de Midlands, do Conselho, e da Madre Confessora.

— Quando chego, não encontrei nada além de tropas D'Haran por toda parte, e ainda assim diziam que eles não estavam mais em guerra conosco. Ouvi que a Ordem Imperial tinha vindo para resgatar Midlands. Em minha jornada, e desde a minha chegada, escutei todo tipo de rumores. Que Midlands tinha caído e está em ruínas, que os Conselheiros estão mortos, ou estão vivos e escondidos, que os Kelteanos assumiram o controle de Midlands; que os D'Harans assumiram, a Ordem Imperial assumiu, e todas as Confessoras estão mortas; que todos os magos estão mortos, e a Madre Confessora está morta, e todos eles estão vivos. No que eu devo acreditar?

— Se a Madre Confessora estivesse viva, poderíamos ajudá-la, proteger ela. Somos uma terra pobre, mas desejamos ajudar Midlands, se pudermos.

Os ombros dela relaxaram um pouco. — Algumas das coisas que você escutou são verdade. Na guerra com D'Hara todas as Confessoras, a não ser Madre Confessora, foram mortas. Os magos morreram também. Desde então, Darken Rahl morreu, e os D'Harans dividiram sua pilhagem com a Ordem Imperial, assim como Kelton, entre outros. A Madre Confessora voltou e tentou manter Midlands unida. Por causa do problema que ela representava os impostores incitadores no Conselho fizeram ela ser executada.

Ele balançou a cabeça. — Essa é uma notícia triste. Tinha esperança de que os rumores fossem falsos. Precisamos dela. — Brogan umedeceu a língua.

— Tem certeza que ela foi morta na execução? Talvez você esteja enganado. Afinal de contas, ela é uma criatura da magia. Poderia ter escapado em uma confusão com fumaça, ou alguma coisa assim. Talvez ela ainda viva.

A mulher fixou um olhar sério nele. — A Madre Confessora está morta.

— Mas ouvi rumores de que ela foi avistada com vida... do outro lado do Rio Kern.

— Fofoca de pessoas tolas. Ela está morta. Eu mesma vi ela ser decapitada.

Brogan passou um dedo pela cicatriz lisa no lado de sua boca enquanto observava a mulher. — Também ouvi um relatório de que ela fugiu na outra direção: para sudoeste. Certamente há esperança?

— Não é verdade. Vou dizer pela última vez, eu vi ela ser decapitada. Ela não fugiu. A Madre Confessora está morta. Se deseja ajudar Midlands, então fará o que puder para unir Midlands mais uma vez.

Tobias estudou o rosto amargo dela por um momento. — Sim, sim, você está certa. Essas são notícias muito perturbadoras, mas ser bom finalmente ter uma testemunha confiável para lançar luz sobre a verdade. Obrigado, madame, você ajudou mais do que pode imaginar. Verei o que posso fazer para que minhas tropas façam o melhor que puderem.

— A melhor coisa seria ajudar a retirar a Ordem Imperial de Aydindril e então de Midlands.

— Acha que eles são tão maus?

Ela levantou suas mãos enfaixadas na direção dele. — Eles arrancaram minhas unhas para me obrigar a falar mentiras.

— Que coisa horrível. E que mentiras eles queriam que você falasse?

— Que preto era branco, e branco era preto. Como o Sangue da Congregação faz.

Brogan sorriu, fingindo ficar surpreso com a sagacidade dela.

— Foi de grande ajuda, madame. Você é leal a Midlands, e por isso tem minha gratidão, mas sinto muito que você considere o Sangue da Congregação desse jeito. Talvez você também não devesse escutar rumores.

— Eles são apenas isso.

— Não quero mais incomodá-la. Bom dia.

Ela lançou um olhar furioso para ele antes de sair apressada. Sob outras circunstâncias sua relutância em ser franca teria custado muito mais do que as unhas, mas Brogan tinha perseguido presas perigosas antes, e sabia que sua discrição agora o recompensaria mais tarde. Suportar o tom zombeteiro dela valia o prêmio. Mesmo sem a cooperação dela, tinha conseguido algo muito valioso hoje, algo que ela não sabia ter entregue, e esse era o plano dele: que a caça não soubesse que ele pegou o cheiro dela. Finalmente Tobias permitiu a si mesmo encarar o olhar brilhante de Lunetta.

— Ela falar mentiras, meu lorde general. Ela falar a maior parte verdade, para mascarar, mas ela falar mentiras.

Galtero realmente trouxe um tesouro para ele.

Tobias se inclinou para frente. Queria escutar Lunetta falar, escutar ela falar as suspeitas dele bem alto, colocar a confirmação do talento dela nisso. — O que ser mentiras?

— Duas ser mentiras que ela guarda como o tesouro real.

Ele lambeu os lábios. — Quais duas?

Lunetta mostrou um sorriso manhoso. — Primeiro, ela estar mentindo quando disse que a Madre Confessora estar morta.

Tobias bateu com uma das mãos na mesa. — Eu sabia! Quando ela falou isso, eu sabia que era Ele! — Ele fechou os olhos e engoliu em seco enquanto oferecia uma oração ao Criador. — E a outra?

— Ela estar mentindo quando falou que a Madre Confessora não fugiu. Ela sabe que a Madre Confessora estar viva, e que ela fugiu para sudoeste. Todo o resto que ela falou ser verdade.

O bom humor de Tobias estava de volta. Ele esfregou as mãos, sentindo o calor que isso gerava. A sorte do caçador estava com ele. Ele tinha conseguido pegar o cheiro da caça.

— Você ouviu o que eu falei, Lorde General?

— O quê? Sim, eu ouvi. Ela está viva, e no sudoeste. Você fez muito bem, Lunetta. O Criador ficará contente com você quando eu contar para ele sobre a sua ajuda.

— Eu queria dizer sobre todo o resto ser verdade.

Ele franziu a testa. — Do que você está falando?

Lunetta apertou bem seus pedaços de pano. — Ela disse que o Conselho dos homens mortos ser formado por impostores incitadores. Verdade. Que a Ordem Imperial procura ouvir apenas qualquer mentira que se encaixe nos seus objetivos, e seus objetivos ser conquista e dominação. Verdade. Que eles arrancaram suas unhas para obrigar ela a falar mentiras. Verdade. Que a Congregação age baseada em rumores, enquanto o resultado for uma cova fresca. Verdade.

Brogan levantou rapidamente. — O Sangue da Congregação combate o mal! Como ousa sugerir o contrário, sua Streganicha desprezível!

Ela se encolheu enquanto mordia o lábio inferior. — Não digo que isso ser verdade, Lorde General, apenas que ser verdade como ela vê.

Ele arrumou o cinto. Não queria estragar seu triunfo com a tagarelice de Lunetta. — Ela enxerga da maneira errada, e você sabe disso. Ele encostou um dedo nela. — Passei mais tempo do que você tem direito, mais tempo do que valer a pena, para garantir que você entendesse a natureza do bem e do mal.

Lunetta ficou olhando para o chão. — Sim, meu Lorde General, você passou mais tempo do que valer a pena. Me perdoe.

— Elas ser palavras dela, não minhas.

Brogan finalmente afastou seu olhar e tirou o estojo do cinto. Ele o colocou sobre a mesa, cutucando com um dedão para fazer ele ficar alinhado com a beira da mesa quando sentava mais uma vez. Tirou a insolência de Lunetta de sua mente enquanto contemplava seu próximo movimento.

Ele estava prestes a pedir o jantar quando lembrou que havia mais uma testemunha esperando. Havia encontrado o que procurava, não havia necessidades de mais questionamentos... mas sempre era sábio fazer o serviço completo.

— Ettore, traga a próxima testemunha.

Brogan olhou para Lunetta enquanto ela desaparecia contra a parede. Ela fez muito bem, mas então estragou isso provocando ele. Embora ele soubesse que era o mal nela emergia sempre que ela fazia o certo, o fato de que ela não se esforçava mais para suprimir essa influência o irritava. Talvez ele tivesse sido gentil demais com ela ultimamente; em um momento de fraqueza, querendo compartilhar sua alegria, tinha dado uma bonitinha para ela. Talvez ela tivesse pensado que isso significava que ele a permitiria escapar com sua insolência. Não permitiria.

Tobias se endireitou em sua cadeira e cruzou as mãos sobre a mesa, pensando novamente em seu triunfo, pensando no prêmio dos prêmios. Não havia necessidade de forçar um sorriso dessa vez.

Ficou um pouco surpreso ao levantar os olhos e ver uma jovem garota deslizar pela sala na frente dos dois guardas. O casaco velho que ela usava arrastava no chão. Atrás da garota, entre os guardas, uma velha curvada com um cobertor marrom esfarrapado mancava ao caminhar.

Quando o grupo parou diante da mesa, a garota sorriu para ele. — Você tem uma casa muito bonita, meu Lorde. Nós aproveitamos bastante o dia aqui. Podemos retribuir sua hospitalidade?

A velha adicionou o sorriso dela.

— Estou feliz que tiveram chance de se aquecerem, e ficaria agradecido se você e sua... — Ele levantou uma sobrancelha.

— Avó.— a garota disse.

— Sim, avó. Ficaria agradecido se você e sua avó respondessem algumas perguntas, só isso.

— Ann.— a velha falou. — Perguntas, não é? Perguntas podem ser perigosas, meu Lorde.

— Perigosas? — Tobias esfregou dois dedos nas dobras de sua testa. — Procuro apenas a verdade, madame. Se responder honestamente, nada ruim vai acontecer com você. Você tem minha palavra.

Ela sorriu, mostrando as aberturas onde faltavam dentes. — Eu queria dizer para você, meu Lorde. — Ela riu suavemente para si mesma, então inclinou na direção dele com uma expressão sombria. — Você pode não gostar das respostas, ou pode não prestar atenção nelas.

Tobias colocou de lado a preocupação dela. — Deixe que eu me preocupe com isso.

Ela endireitou o corpo, sorrindo outra vez. — Se deseja assim, meu Lorde. — Ela coçou o lado do nariz. — Então, quais são as perguntas?

Tobias recostou-se na cadeira, estudando os olhos da mulher. —Midlands esteve tumultuada, ultimamente, e queremos saber se os servos do Guardião tem uma das mãos no conflita que lança as sombras nas terras. Ouviu algum dos membros do Conselho falar contra o Criador?

— Conselheiros raramente descem até o mercado para discutir teologia com velhas senhoras, meu Lorde, nem eu poderia supor que qualquer um deles seria tão tolo para revelar publicamente qualquer uma das conexões com o submundo, se eles tinham alguma.

— Bem, o que você ouviu falar sobre o que eles tinham para dizer?

Ela levantou uma sobrancelha. — Você quer ouvir as fofocas da Rua Stentor, meu Lorde? Diga que tipo de fofoca você gostaria de ouvir, e eu posso contar uma que esteja adequada com sua necessidade.

Tobias tamborilou os dedos na mesa. — Não estou interessado em fofocas, madame, simplesmente na verdade.

Ela assentiu. — É claro que está, meu Lorde, e você a terá. Às vezes, as pessoas podem estar interessadas nas coisas mais tolas.

Ele limpou sua garganta, aborrecido. — Já ouvi muitos rumores, e não preciso de mais. Preciso saber a verdade sobre o que esteve acontecendo em Aydindril. Ora, ouvi que o Conselho foi executado, assim como a Madre Confessora.

O sorriso dela retornou enquanto ela estreitava os olhos. — Então porque um homem do sua alta posição simplesmente não parou no Palácio enquanto entrava, e pediu para falar com o conselho? Isso faria mais sentido do que arrastar para cá todo tipo de pessoas que não teriam nenhum conhecimento direto, e perguntar para elas. A verdade seria enxergada melhor com seus próprios olhos, meu Lorde.

Brogan pressionou os lábios. — Eu não estava aqui quando os rumores diziam que a Madre Confessora foi executada.

— Ahh, então é na Madre Confessora que você está interessado. Porque simplesmente não diz isso, ao invés de fazer rodeios? Ouvi dizer que ela foi decapitada, mas não vi isso. Porém, minha neta viu, não viu minha querida?

A garotinha assentiu. — Sim, meu Lorde, eu mesma vi, eu vi. Eles cortaram fora a cabeça dela.

Brogan fez uma encenação, suspirando. — Era isso que eu temia. Então, ela está morta.

A garota balançou a cabeça. — Eu não disse isso, meu Lorde. Eu disse que vi eles cortarem a cabeça dela. — Ela olhou diretamente nos olhos dele e sorriu.

— O que você quer dizer com isso? — Brogan lançou um olhar sério para a velha. — O que ela quis dizer com isso?

— O que ela diz, meu Lorde. Aydindril sempre foi uma cidade com uma forte influência oculta da magia, mas ultimamente ela esteve crepitando com a presença dela. Onde a magia está envolvida, você não pode confiar apenas nos seus olhos. Embora ela seja jovem, essa aqui é bastante esperta para saber tanto. Um homem com sua profissão saberia também.

— Crepitando com magia? Isso anuncia o mal. O que você sabe sobre os servos do Guardião?

— Terrível, eles são, meu Lorde. Mas a magia, propriamente dita, não é maligna; ela existe sem vontade própria.

Os punhos de Brogan apertaram. — Magia é a marca do Guardião.

Ela riu de novo. — Isso seria como dizer que a faca prateada brilhante em seu cinto é a marca do Guardião. Se for usada para ameaçar ou ferir um inocente, então aquele que segura a faca é mau. Mas se, por exemplo, ela for usada para defender a vida contra um lunático fanático, não importa qual seja sua alta posição, então aquele que segura a faca é bom. A faca não é nenhuma das duas coisas, porque os dois podem usá-la.

Os olhos dela pareceram ficar fora de foco, e sua voz baixou virando um sibilar. — Mas se for usada para retaliação, a magia é a encarnação da vingança.

— Bem, então, no seu ponto de vista, essa magia que você diz estar presente na cidade está sendo usada para o bem, ou para o mal?

— Para os dois, meu Lorde. Afinal de contas, esse é o lar da Fortaleza do Mago, e um local de poder. Confessoras governaram aqui durante milhares de anos, assim como magos. Poder atrai poder. O conflito está em ação. Criaturas escamosas, chamadas Mriswith, começaram a aparecer do ar, e destripar qualquer inocente em seu caminho. Um presságio nefasto, se alguma vez houve algum. Outras magias espreitam para agarrar os imprudentes, ou desavisados. Ora, a própria noite está viva com magia carregada nas asas delgadas dos sonhos.

Ela olhou para ele com um olho azul desbotado enquanto continuava. — Uma criança fascinada com fogo poderia facilmente ser incinerada aqui. Tal criança seria bem advertida para ser muito cuidadosa, e partir na primeira oportunidade, antes de colocar inadvertidamente a mão dentro do fogo.

— Ora, pessoas são até mesmo retiradas da rua, para terem suas palavras filtradas através de uma peneira de magia.

Brogan inclinou para frente com uma expressão ardente. — E o que você sabe sobre magia, madame?

— Uma pergunta duvidosa, meu Lorde. Poderia ser mais explícito?

Tobias fez uma pausa durante um momento, tentando encontrar sentido nas palavras dela. Havia falado com pessoas do tipo dela antes, e percebeu que ela estava desviando ele do objetivo, do rastro.

Trouxe de volta seu sorriso educado. — Bem, por exemplo, sua neta diz que viu a Madre Confessora decapitada, mas que isso não significa que ela estar morta. Você diz que a magia por fazer isso. Estou intrigado com esse tipo de declaração. Enquanto é verdade que eu sei que a magia pode ocasionalmente enganar as pessoas, só ouvi falar dela criando pequenas ilusões. Conseguiria explicar como a morte poderia ser anulada?

— Anular a morte? O Guardião tem esse tipo de poder.

Brogan se encostou na mesa. — Está dizendo que o próprio Guardião trouxe ela de volta à vida?

Ela riu. — Não, meu Lorde. Você é tão persistente naquilo que deseja que não presta atenção, e escuta apenas o que quer ouvir. Você perguntou especificamente como a morte pode ser anulada. O Guardião pode anular a morte. Pelo menos, estou assumindo que ele pode porque ele é o governante dos mortos, possui poder sobre a vida e a morte, então é natural acreditar que...

— Ela está viva ou não!

A velha piscou para ele. — Como eu poderia saber isso, meu Lorde?

Brogan cerrou os dentes. — Você disse que só porque as pessoas viram ela ser decapitada, isso não significava que ela estar morta.

— Oh, de volta nesse assunto, não é? Bem, a magia pode fazer um truque assim, mas isso não significa que fez. Eu só falei que poderia. Então você começou a perguntar se a morte pode ser anulada. Um assunto bem diferente, meu Lorde.

—Como, mulher! Como a magia pode conseguir uma ilusão tão grande!

Ela apertou o cobertor esfarrapado em volta dos ombros.

— Um feitiço da morte, meu Lorde.

Brogan olhou para Lunetta. Os olhos brilhantes dela estavam fixos na velha, e ela estava coçando os braços.

— Um feitiço da morte. E o quê, exatamente, é um feitiço da morte?

— Bem, nunca vi um sendo executado, para afirmar... — ela riu com a própria piada. — então não posso dar um testemunho adequado, mas posso dizer o que ouvi falar, se desejar escutar conhecimento de segunda-mão.

Brogan falou através dos dentes cerrados. — Diga.

— Ver uma morte, compreendê-la, é algo que todos nós reconhecemos em um nível espiritual. É o ato de ver um corpo separado de sua alma, ou espírito, que reconhecemos como morte. Um feitiço da morte pode imitar uma morte real fazendo as pessoas acreditarem que viram uma morte, que viram o corpo sem a sua alma, e assim fazer eles aceitarem visceralmente o evento como verdadeiro.

Ela balançou a cabeça como se considerasse a questão maravilhosa e ao mesmo tempo escandalizante — Isso é muito perigoso. Exige invocar o auxílio dos espíritos para manter o espírito da pessoa enquanto a teia é lançada. Se alguma coisa der errado, o espírito da pessoa seria atirado dentro do submundo. Um modo muito desagradável de morrer. Se tudo der certo, e se os espíritos devolverem aquilo que preservaram, ouvi dizer que vai funcionar; e a pessoa viverá, mas aqueles que estiverem vendo pensarão que ela está morta. Porém, muito arriscado. Enquanto ouvi falar disso, nunca fiquei sabendo que alguém tivesse tentado, então pode não ser mais do que boato.

Brogan ficou quieto revirando os pedaços de informação em sua mente, juntando coisas que tinha aprendido hoje, e coisas que aprendeu no passado, procurando a combinação certa. Dever ter sido um truque feito para escapar da justiça, mas não um que ela pudesse ter realizado sem cúmplices.

A velha colocou uma das mãos no ombro da garota e começou a se afastar arrastando os pés. — Obrigada pelo calor, meu Lorde, mas fiquei cansada das perguntas aleatórias, e tenho coisas melhores para fazer.

— Quem poderia realizar um feitiço da morte?

A velha parou. Os olhos azuis dela acesos com um perigoso brilho. — Apenas um mago, meu Lorde. Apenas um mago de imenso poder e grande conhecimento.

Brogan observou-a de sua própria forma ameaçadora. — E tem algum mago aqui, em Aydindril?

O leve sorriso dela fez os seus olhos desbotados cintilarem. Ela enfiou a mão em uma bolsa debaixo do cobertor e jogou uma moeda em cima da mesa, onde ela girou lentamente antes de finalmente cair diante dele. Brogan pegou a moeda de prata, entortando os olhos.

— Eu fiz uma pergunta, velha. Espero uma resposta.

— Está segurando ela, meu Lorde.

— Nunca vi uma moeda como essa. Que imagem é essa? Parece algum tipo de grande estrutura.

— Oh, é sim, meu Lorde, — ela sibilou — É a semente da salvação e da perdição, de magos e magia: o Palácio dos Profetas.

— Nunca ouvi falar. O que é esse Palácio dos Profetas?

A velha sorriu.— Pergunte para sua feiticeira, meu Lorde.— Ela virou novamente para ir embora.

Brogan levantou rapidamente. — Ninguém deu permissão para partir, sua bruxa velha sem dentes!

Ela olhou para trás, por cima do ombro. — É o fígado, meu Lorde.

Brogan inclinou para frente apoiado nas mãos sobre a mesa. — O quê?

— Eu provei um pouco de fígado cru, meu Lorde. Acredito que é isso que faz os dentes caírem, com o tempo.

Naquele momento, Galtero apareceu, passando entre a mulher e a garota enquanto elas seguiam na direção da porta. Fez uma saudação com as pontas dos dedos na testa abaixada. — Lorde General, tenho um relatório.

— Sim, sim, daqui a pouco.

— Mas...

Brogan levantou um dedo para Galtero pedindo silêncio quando virou para Lunetta. — Bem?...

— Cada palavra verdadeira. Lorde General. Ela ser como um besouro da água, deslizando na superfície da água, tocando apenas com as pontas das patas nela, mas tudo que ela falou ser verdade. Ela sabe muito mais do que diz, mas o que ela diz ser verdade.

Brogan balançou a mão impaciente para que Ettore se aproximasse. O homem ficou em posição de sentido diante da mesa enquanto sua capa vermelha balançava em volta das pernas. — Lorde General?

Os olhos de Brogan estreitaram. — Acho que podemos ter um Baneling em nossas mãos. Você gostaria de provar que é merecedor da capa que você usa?

— Sim, Lorde General, muito.

— Antes que ela saia, prenda ela. Ela está sob suspeita de ser Baneling.

— E quanto a garota, Lorde General?

— Não estava observando, Ettore? Sem dúvida ela vai provar ser íntima da Baneling. Além disso, não vamos querer ela lá fora na rua gritando que sua avó está sendo presa pelo Sangue da Congregação. Perceberiam a falta da outra, a cozinheira, e isso poderia nos trazer criadores de caso, mas não sentirão a falta dessas duas na rua. Agora, elas são nossas.

— Sim, Lorde General. Vou cuidar disso imediatamente.

— Farei algumas perguntas a ela tão logo seja possível. Para a garota também. — Brogan levantou um dedo como aviso. — É melhor que elas estejam preparadas para responder com a verdade qualquer pergunta que eu fizer.

O rosto jovem de Ettore mostrou um sorriso horrível. — Elas vão confessar quando falar com elas, Lorde General.

Pelo Criador, elas estarão prontas para confessar.

— Muito bom, garoto, agora vá, antes que elas cheguem até a rua.

Quando Ettore correu através do portal, Galtero caminhou de um lado para outro de modo impaciente, mas parou silenciosamente diante da mesa.

Brogan mergulhou na cadeira, sua voz estava distante. — Galtero, você fez o seu bom trabalho completo de costume; as testemunhas que trouxe provaram estar acima das minhas expectativas.

Tobias Brogan colocou a moeda de prata de lado, desatou as tiras de couro no estojo, e colocou seus troféus em uma pilha sobre a mesa. Com muito cuidado ele os espalhou, tocando a carne que uma vez esteve viva. Cada um era um mamilo ressecado, o mamilo esquerdo, aquele que ficava mais próximo do coração maligno do Baneling, com pele suficiente para incluir o nome tatuado. Eles representavam apenas uma fração dos Banelings que ele tinha descoberto: os mais importantes dos importantes; os mais desprezíveis dos amigos do Guardião.

Enquanto ele colocava de volta um de cada vez, lia o nome de cada Baneling que tinha colocado na fogueira. Lembrou de cada caçada, e captura, e inquisição. Chamas de raiva cresceram ao lembrar dos crimes que cada um tinha finalmente confessado. Lembrou da justiça sendo feita cada uma das vezes.

Mas ainda tinha que conseguir o prêmio dos prêmios: a Madre Confessora.

— Galtero, — ele falou com uma voz suave firme — eu tenho o rastro dela. Junte os homens. Vamos partir imediatamente.

— Acho que seria melhor primeiro escutar o que tenho para dizer, Lorde General.

 

Ser os D'Harans, Lorde General. — Depois de recolocar o último de seus troféus, Brogan fechou a tampa do estojo dele e olhou dentro dos olhos escuros de Galtero. — O que tem os D'Harans?

— Hoje cedo, eu soube que algo estar acontecendo quando eles começaram a se reunir. Isso ser o que deixou as pessoas tão agitadas.

— Reunir?

Galtero assentiu. — Em volta do Palácio das Confessoras, Lorde General. No meio da tarde todos eles começaram a cantar.

Surpreso, Tobias inclinou na direção do seu Coronel. — Cantar? Você lembra das palavras?

Galtero enfiou um dedão no cinto de armas. — Continuou durante duas horas; seria difícil esquecer depois de ouvir tantas vezes. Os D'Harans se abaixaram, com as testas no chão, e todos cantaram as mesmas palavras: Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz, prosperamos. Na sua misericórdia, nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.

Brogan bateu com um dedo na mesa. — E todos os D'Harans fizeram isso? Quantos estavam lá?

— Cada um deles, Lorde General, e tem mais do que pensamos. Eles encheram a praça do lado de fora do Palácio, inundaram os parques e praças públicas, e então as ruas ao redor. Você não podia caminhar entre eles, eles estar tão próximos, como todos querendo ficar tão perto do Palácio das Confessoras quanto pudessem.

Pelas minhas contas, tem quase duzentos mil na cidade, com a maioria reunida em volta do Palácio.

Enquanto aquilo continuava, com o povo quase em pânico, sem saber o que estar acontecendo.

— Eu cavalguei pelo campo, e tinha muitos mais que não entraram na cidade. Eles também, onde estivessem, encostaram as testas no chão e cantaram junto com seus irmãs na cidade. Cavalguei bastante, para cobrir a maior quantidade de terreno quanto possível e ver todos que eu pudesse, e não vi um D'Haran que não cantasse. Poderia escutar as vozes deles das colinas e passagens ao redor da cidade. Nenhum deles prestou atenção enquanto nós patrulhamos.

Brogan fechou a boca. — Então ele deve estar aqui, esse Mestre Rahl.

Galtero trocou a posição do peso de seu corpo para o outro pé. — Ele estar aqui, Lorde General. Enquanto os D'Harans cantavam, o tempo todo em que eles cantavam, ele permaneceu sobre os degraus da grande entrada e observou. Cada um dos homens fazia reverência para ele, como se fosse o próprio Criador.

A boca de Brogan contorceu de desgosto. — Sempre suspeitei que os D'Harans fossem pagãos. Imagine, rezar para um simples homem. O que aconteceu depois?

Galtero parecia cansado; esteve cavalgando o dia todo — Quando isso terminou, todos pularam, comemorando e gritando por um bom tempo, como se acabassem de escapar das garras do Guardião. Consegui cavalgar duas milhas em volta da multidão enquanto a gritaria e aclamação continuou. Finalmente, os homens abriram caminho enquanto dois corpos eram carregados para dentro da praça, e todos ficaram em silêncio. Uma pira foi acesa.

O tempo todo, até que os corpos virassem cinzas e as cinzas fossem levadas para enterrar, esse Mestre Rahl ficou sobre os degraus e observou.

— Você deu uma boa olhada nele?

Galtero balançou a cabeça. — Os homens estavam muito próximos, e eu temi forçar caminho chegando mais perto, para evitar que eles pulassem em mim por interromper a cerimônia.

Brogan esfregou o estojo com o lado de um dedão enquanto olhava para o vazio, pensando. — É claro. Eu não poderia esperar que você jogasse sua vida fora só para tentar ver qual a aparência do homem.

Galtero hesitou durante um momento. — Você o verá em breve, Lorde General. Foi convidado para ir até o Palácio.

Brogan levantou os olhos. — Não tenho tempo para brincadeiras. Devemos partir atrás da Madre Confessora.

Galtero tirou um papel do bolso e o entregou. — Voltei justamente quando um grande grupo de soldados D'Haran estavam prestes a entrar em nosso Palácio. Fiz eles pararem e perguntei o que eles queriam, e eles me entregaram isso.

Brogan abriu o papel, e leu os rabiscos apressados. Lorde Rahl convida todos os dignitários, diplomatas, e oficiais de todas as terras até o Palácio das Confessoras, imediatamente. Ele amassou o papel. — Eu não atendo audiências, Eu as faço. E, como eu falei, não tenho tempo para brincadeiras.

Galtero levantou um dedo na direção da rua. — Eu pensei nisso, e falei para os soldados ao me entregarem isso que entregaria o convite. Mas estamos ocupados com outros assuntos, e que eu não sabia se alguém do Palácio de Nicobarese teria tempo para atender.

— Ele falou que Lorde Rahl queria todos lá, e que seria melhor nós encontrarmos tempo.

Brogan colocou a ameaça de lado. — Ninguém vai causar problema, aqui em Aydindril, porque não atendemos um convite para conhecer um novo líder tribal.

— Lorde General, Kings Row estar ombro a ombro com os soldados D'Haran. Cada Palácio em Row estar cercado, junto com os prédios de administração da cidade. O homem que me deu o papel disse que ele estar aqui para nos escoltar até o Palácio das Confessoras. Ele falou que se não estivermos lá fora logo, eles entrariam e nos pegariam. Ele tinha dez mil tropas atrás dele, me observando, quando disse isso.

— Esses homens não ser donos de lojas e fazendeiros brincando de soldado por alguns meses; ser guerreiros profissionais, e eles parecem bastante determinados.

— Tenho fé no Sangue da Congregação para enfrentar esses homens, se pudéssemos chegar até nossa força principal, mas trouxemos apenas um destacamento da Congregação para dentro da cidade. Quinhentos não são homens suficientes para abrir caminho lutando. Não conseguiríamos avançar vinte jardas antes que cada um de nós fosse derrubado.

Brogan olhou para Lunetta, encostada na parede. Ela estava acariciando suas fitas coloridas, sem prestar atenção na discussão. Poderiam ter apenas quinhentos homens na cidade, mas eles também tinham Lunetta.

Ele não sabia qual era o jogo desse Lorde Rahl, mas isso realmente não importava; D'Hara estava alinhada com a Ordem Imperial, e recebia ordens da Ordem Imperial. Provavelmente isso era apenas uma tentativa dele de se colocar em uma posição superior dentro da Ordem. Sempre havia aqueles que queriam poder, mas não queriam se preocupar com a imperativa moral que vinha junto com ele.

— Muito bem. De qualquer modo, vai escurecer em breve. Nós iremos para essa cerimônia, sorrir para o novo Mestre Rahl, beber o vinho dele, comer sua comida, e deixar ele feliz. Ao amanhecer deixamos Aydindril com a Ordem Imperial e partimos atrás da Madre Confessora. — Ele gesticulou para sua irmã. — Lunetta, venha conosco.

— E como vai encontrar ela? — Lunetta coçou o braço. — A Madre Confessora, Lorde General, como vai encontrar ela?

Tobias empurrou sua cadeira para trás e levantou. — Ela estar no sudoeste. Temos homens mais do que suficiente para procurar. Encontraremos ela.

— Verdade? — Lunetta ainda mostrou um pouco de insolência por ter usado seu poder. — Diga como vai reconhecer ela.

— Ela ser a Madre Confessora! Como não poderíamos reconhecer ela, sua Streganicha estúpida!

Uma sobrancelha curvou quando o olhar feroz dela levantou para encontrar os olhos dele. — A Madre Confessora estar morta. Como você consegue ver uma pessoa morta caminhando?

— Ela não estar morta. A cozinheira sabe a verdade disso; você mesma falou. A Madre Confessora estar viva, e nós pegaremos ela.

— Se aquilo que a velha disse ser verdade, e um feitiço da morte foi lançado, então qual ser o objetivo dele? Diga Lunetta.

Tobias franziu a testa. — Fazer as pessoas pensarem que ela foi morta para que pudesse escapar.

Lunetta mostrou um sorriso manhoso. — E porque eles não viram ela fugir? Pela mesma razão que você não vai encontrá-la.

— Pare de falar suas baboseiras mágicas e diga do que está falando.

— Lorde General, se existir uma coisa como um feitiço da morte, e ele ser usado na Madre Confessora, então simplesmente faria sentido que a magia escondesse sua identidade. Isso explicaria como ela escapou; ninguém a reconheceu por causa da magia em volta dela. Pela mesma razão, você também não vai reconhecer ela.

— Pode quebrar ele, quebrar o feitiço? — Tobias gaguejou.

Lunetta riu. — Lorde General, nunca ouvi falar dessa magia. Não sei nada sobre ela.

Tobias percebeu que sua irmã estava certa. — Você sabe sobre magia. Diga como podemos reconhecer ela.

Lunetta balançou a cabeça. — Lorde General, não sei como ver os fios da teia de mago que foi lançada com a clara finalidade de esconder. Digo apenas o que faria sentido, e isso ser que se esse tipo de feitiço fosse usado para escondê-la, então nós também não a reconheceríamos.

Ele levantou um dedo na direção dela. — Você tem magia. Conhece um jeito de nos mostrar a verdade.

— Lorde General, a velha disse que apenas um mago poderia lançar um feitiço da morte. Se um mago lançar uma teia desse tipo, então para desfazer ela nós precisamos ter a capacidade de ver os fios da teia dele. Não sei como enxergar a verdade através da farsa criada pela magia.

Tobias esfregou o queixo enquanto pensava naquilo. — Ver através da farsa. Mas como?

— Uma traça ficar presa na teia de uma aranha porque ela não consegue enxergar os fios. Nós estar presos nessa teia, do mesmo jeito que aqueles que viram a decapitação dela, porque não conseguimos ver os fios dela. Não sei como poderemos.

— Magos. — ele murmurou para si mesmo. Gesticulou para a moeda de prata na mesa. — Quando perguntei para ela se tem um mago aqui em Aydindril, ela mostrou aquela moeda com uma construção gravada nela.

— O Palácio dos Profetas.

O nome fez ele levantar a cabeça. — Sim, isso ser como ela chamou. Ela falou para perguntar a você o que ser isso. Como sabe sobre ele? Onde ouviu falar sobre esse Palácio dos Profetas?

Lunetta se encolheu e olhou para o vazio. — Logo depois que você nascer. Mamãe falou sobre ele. Ele ser um lugar onde feiticeiras...

— Streganicha. — ele corrigiu.

Ela fez uma pausa durante um momento. — Ele ser um lugar onde Streganicha treina homens para serem magos.

— Então ele ser um lar do mal.— Ela ficou curvada e imóvel enquanto ele olhava para a moeda. — O que mamãe saberia sobre um lugar maligno assim?

— Mamãe estar morta, Tobias, deixe ela em paz. — ela sussurrou.

Ele lançou um olhar raivoso para ela. — amos falar sobre isso mais tarde. — Ele arrumou o cinturão e seu casaco cinzento com bordado prateado antes de colocar sua capa vermelha. — A velha deveria querer dizer que tem um mago em Aydindril que foi treinado nesse lar do mal. — Redirecionou sua atenção para Galtero. — Felizmente, Ettore está mantendo ela presa para interrogatório posterior. Aquela velha tem muito mais coisa para nos contar; posso sentir isso nos meus ossos.

Galtero assentiu. — É melhor seguirmos para o Palácio das Confessoras, Lorde General.

Brogan jogou sua capa por cima dos ombros. — Vamos parar para ver Ettore em nosso caminho de saída.

 

Uma fogueira tinha sido bem alimentada e estava rugindo quando os três entraram na pequena sala para encontrar Ettore e suas duas cativas. Ettore estava nu da cintura para cima, seus músculos firmes cobertos com o brilho de suor.

Várias lâminas brilhavam em seu lugar em cima do pano, junto com um punhado de estacas afiadas.

As extremidades metálicas de varas estavam na lareira. As outras pontas exibiam um brilho laranja dentro das chamas.

A velha estava encolhida num canto do outro lado da sala, e colocava um braço protetor em volta da garota, que escondia o rosto no cobertor marrom.

— Ela deu algum trabalho para você? — Brogan perguntou.

Ettore mostrou seu sorriso costumeiro. — A atitude arrogante dela desapareceu logo que ela descobriu que não aceitamos insolência. Esse ser o jeito com Banelings; eles se entregam quando encaram o poder do Criador.

— Nós três temos que sair por um tempo. O resto do destacamento vai permanecer aqui no Palácio, caso você precise de assistência. — Brogan olhou para as varas de ferro cintilando no fogo. — Quando eu voltar quero a confissão dela. Não me importo com a garota, mas é melhor que a velha continue viva e pronta ansiosa para confessar.

Ettore encostou os dedos na testa quando fez uma reverência. — Pelo Criador, será como você ordena, Lorde General. Ela vai confessar todos os crimes que cometeu pelo Guardião.

— Bom. Tenho mais perguntas, e vou conseguir as respostas.

— Não vou responder mais nenhuma de suas perguntas. — a velha disse.

Ettore entortou os lábios enquanto olhava por cima dos ombros. A velha se encolheu mais ainda no canto escuro. — Vai quebrar esse juramento antes que essa noite termine, sua bruxa velha. Vai implorar para responder mais perguntas quando enxergar o que eu faço com sua pequena. Vai observar ela ser a primeira, assim poderá pensar no que vai acontecer quando chegar sua vez.

A garotinha gritou e se enterrou mais fundo dentro do cobertor da velha.

Lunetta olhou fixamente para a dupla no canto enquanto coçava o braço lentamente. — Quer que eu fique e ajude Ettore, Lorde General? Acho que ser melhor se eu fizesse isso.

— Não. Quero que venha comigo esta noite. — Olhou para Galtero. — Fez muito bem, trazendo essa aqui.

Galtero balançou a cabeça. — Jamais teria percebido ela, se não tivesse tentado me vender bolos de mel.

Alguma coisa nela me deixou desconfiado.

Brogan encolheu os ombros. — Ser assim com os Banelings; são atraídos pelo Sangue da Congregação como mariposas pela luz. São audaciosos porque tem fé em seu mestre maligno. — Ele olhou novamente para a mulher espremida no canto. — Mas todos perdem a coragem quando encaram a justiça do Sangue da Congregação. Essa aqui vai ser um pequeno troféu, mas o Criador vai ficar satisfeito.

 

Pare com isso. — Tobias rosnou — As pessoas vão pensar que você tem pulgas.

Em uma rua larga com linhas de árvores majestosas de cada lado, com seus galhos entrelaçados lá em cima, dignitários e oficiais de diferentes terras desciam de carruagens pomposas para caminhar a distância restante até o Palácio das Confessoras. Tropas D'Haran pareciam bancos de terra na margem do rio de convidados que chegava.

— Não consigo evitar, Lorde General. — Lunetta reclamou enquanto coçava. — Desde que chegamos em Aydindril meus braços estar coçando. Nunca senti isso desse jeito.

As pessoas que entravam na corrente olhavam abertamente para Lunetta. Seus panos esfarrapados faziam ela se destacar como uma leprosa no meio de uma coroação. Ela parecia não perceber os olhares zombeteiros. Parecia mais que ela os considerava como olhares de admiração.

Ela havia, em diversas ocasiões, implorado para não vestir nenhum dos belos vestidos que Tobias lhe oferecia, dizendo que nenhum poderia ser comparado com as suas bonitinhas. ele nunca foi muito longe insistindo que ela deveria usar alguma outra coisa, e além disso, ele considerava blasfêmia fazer alguém tocado pelo mal ter aparência atraente.

Os homens que chegavam estavam usando seus mantos, casacos, ou peles mais refinados. Embora alguns estivessem com espadas enfeitadas, Tobias tinha certeza que elas eram apenas decorativas e duvidava que uma delas alguma vez tivesse sido desembainhada por medo, muito menos raiva. Quando surgia uma abertura ocasional, ele podia ver que mulheres estavam usando vestidos elegantes com várias camadas, o sol poente cintilando nas joias em seus pescoços, pulsos, e dedos. Poderia parecer que todos estavam tão excitados por terem sido convidados para o Palácio das Confessoras e por conhecerem o novo Lorde Rahl que eles não causaram nenhuma demonstração de ameaça por parte dos soldados D'Haran. Pelos sorrisos e conversas, todos pareciam ansiosos em agradar o novo Lorde Rahl.

Tobias cerrou os dentes. — Se você não parar de se coçar, vou amarrar suas mãos atrás das costas.

Lunetta baixou as mãos para os lados do corpo e parou suspirando. Tobias e Galtero olharam para cima para ver corpos empalados em postes de cada um dos lados do passeio adiante. Quando os três se aproximaram, ele percebeu que não eram homens, mas criaturas com escamas que somente o Guardião poderia ter concebido. Enquanto eles seguiam em frente, um fedor os envolveu, tão espesso quanto um nevoeiro de um pântano, fazendo com que eles temessem respirar para não enegrecer seus pulmões.

Alguns dos postes estavam apenas com cabeças, alguns com corpos inteiros, e outros com partes de corpos. Todos pareciam mortos em uma batalha brutal. Algumas das bestas foram abertas, e várias estavam cortadas em duas partes, suas vísceras pendiam congeladas naquilo que restara delas.

Era como caminhar através de um monumento ao mal, através dos portões do submundo.

Os outros convidados cobriam os narizes o melhor que podiam com qualquer coisa que tivessem nas mãos. Algumas das mulheres elegantemente vestidas desabaram no chão desmaiando; criados correram para ajudá-las, abanando-as com lenços ou esfregando um pouco de neve nas testas delas. Algumas das pessoas observavam assustadas enquanto outras tremiam tão violentamente que Tobias podia escutar o barulho dos pés deles. Depois que conseguiram superar aquela imagem e o fedor, todos ao redor ficaram em um estado de alta ansiedade ou de pavor.

Tobias, tendo caminhado diversas vezes no meio do mal, olhou para seus companheiros convidados com desgosto.

Quando um diplomata trêmulo perguntou, um dos D'Harans perto dele explicou que as criaturas atacaram a cidade, e Lorde Rahl matou eles. O humor dos convidados se iluminou. Enquanto seguiam adiante, suas vozes ficavam cheias de energia enquanto falavam sobre a honra de conhecer um homem como o novo Lorde Rahl, o Mestre de toda D'Hara. Risadas efervescentes espalhavam-se no ar frio.

Galtero chegou mais perto. — Quando eu estava fora mais cedo, antes de toda a cantoria, e quando os soldados em volta da cidade ainda estavam dispostos a conversar, eles disseram para ser cuidadoso, que estavam acontecendo ataques de criaturas invisíveis, e um certo número dos homens deles, assim como de pessoas do povo nas ruas, foi morta.

Tobias lembrou da mulher dizendo para ele que criaturas escamosas, não conseguia lembrar com ela os chamou, começaram a aparecer do ar para destripar qualquer um no caminho delas. Lunetta tinha falado que as palavras da mulher eram verdadeiras. Essas deveriam ser as criaturas.

— Que conveniente para Lorde Rahl chegar bem na hora de matar as criaturas e salvar a cidade.

— Mriswith. — Lunetta disse. — O quê?

— A mulher disse que as criaturas ser chamadas de Mriswith.

Tobias assentiu. — Sim, acho que você tem razão: Mriswith.

Colunas brancas erguiam-se do lado de fora da entrada para o Palácio. As fileiras de soldados de cada lado afunilava conduzindo eles através de grandes portas brancas abertas, e dentro de um grande salão iluminado por janelas de vidro azul claro, posicionadas entre polidas colunas brancas de mármore com letras capitais douradas em sua parte superior. Tobias Brogan podia sentir como se estivesse sendo sugado para dentro do estômago da besta. Os outros convidados, se algum deles tivesse consciência, estariam tremendo diante do monumento vivo da profanação que os cercava, ao invés de se preocuparem com carcaças mortas.

Depois de uma jornada por corredores elegantes e câmaras com granito e mármore suficientes para construir uma montanha, finalmente eles passaram através de altas portas de mogno para entrar em uma câmara enorme coberta por um domo enorme. Afrescos de homens e mulheres estavam espalhados pelo teto. Janelas arredondadas em volta da parte inferior do domo deixavam entrar uma fraca luz e revelava nuvens se reunindo em um céu que escurecia. Do outro lado da sala, em um balcão semicircular, as cadeiras por trás da mesa resplandecente entalhada estavam vazias.

Aberturas arqueadas ao redor da sala cobriam escadarias subindo até sacadas com colunata margeadas por sinuosos corrimões polidos de mogno. As sacadas estavam cheias de pessoas, ele notou, que não se vestiam elegantemente como aquelas no piso principal, mas pessoas trabalhadoras comuns. Os outros convidados também notaram, e lançavam olhares desaprovadores para as pessoas lá em cima, nas sombras por trás dos corrimões.

As pessoas amontoadas ali se afastavam dos corrimões, como se procurassem a escuridão nas trevas, para evitar que algum deles fosse reconhecido e chamado para prestar contas por ter ousado estar presente em uma reunião tão importante. Era costumeiro que um grande homem fosse apresentado primeiro ao povo com autoridade, antes de permitir ser conhecido por pessoas comuns.

Ignorando a plateia nas sacadas, os convidados espalhavam-se pelo chão de mármore, mantendo distância entre eles mesmos e os dois do Sangue da Congregação, e tentando fazer parecer apenas acidental, ao invés de algo intencional, o fato deles evitarem os dois. Eles olhavam de um lado para outro procurando ansiosamente por seu anfitrião enquanto se curvavam para sussurrar entre si. Vestidos de modo tão elegante como estavam quase pareciam fazer parte dos ornamentos entalhados e da decoração; nenhum deles deixava transparecer que estava espantado pela grandiosidade do Palácio das Confessoras. Tobias concluiu que a maioria eram visitantes frequentes Ainda que nunca tenha vindo a Aydindril, conhecia bajuladores quando os via; seu próprio rei estivera cercado por bastantes deles.

Lunetta ficava perto, ao lado dele, apenas levemente interessada na arquitetura imponente em volta dela. Não prestava atenção nas pessoas que olhavam para ela, embora agora houvesse menos dessas; estavam mais interessadas umas nas outras e na chance de finalmente conhecer Lorde Rahl do que em se preocupar com uma mulher estranha entre os dois homens de capa vermelha do Sangue da Congregação. O olhar de Galtero deslizou pela sala expansiva, ignorando a opulência e, ao invés disso, fazendo uma constante avaliação das pessoas, dos soldados, e das saídas. As espadas que ele e Tobias carregavam não eram para decoração.

Independente de sua repulsa, Tobias não podia evitar ficar maravilhado com o local onde estava. Esse era o lugar de onde as Madres Confessoras e magos tinham puxados as cordas de Midlands. Aqui era onde o Conselho, durante milhares de anos, havia defendido a união enquanto preservava e protegia a magia. Esse era o lugar a partir do qual os tentáculos do Guardião se espalhavam.

Agora aquela união estava despedaçada. A magia perdeu seu poder sobre o homem, perdeu sua proteção. A era da magia estava acabada. Midlands estava acabada. Em breve, o Palácio estaria cheio de capas vermelhas, e apenas o Sangue da Congregação estaria sentado naquelas plataformas. Tobias sorriu; os eventos estavam se movendo inexoravelmente na direção de um final providencial.

Um homem e uma mulher se aproximaram, intencionalmente, Tobias pensou. A mulher, com um amontoado de cabelo negro e mechas encaracoladas penduradas em volta de seu rosto maquiado, inclinou-se na direção dele de forma casual. — Imagine, nós somos convidados aqui, e eles não tem nada para comer. — Ela alisou o laço perto do peito do vestido amarelo, um sorriso educado surgindo em sues lábios impossivelmente vermelhos enquanto esperava que ele falasse. Ele não falou, e ela continuou. — Parece muito vulgar não oferecer nem ao menos um pouco de vinho, você não acha, considerando que viemos com um aviso em tão curto espaço de tempo? Espero que ele não espere que aceitemos seu convite novamente depois de nos tratar de forma tão rude.

Tobias cruzou as mãos atrás das costas. — Você conhece Lorde Rahl?

— Posso ter encontrado com ele antes; eu não lembro. — Ela esfregou uma mancha, que ele não conseguiu ver, do ombro dela, exibindo as joias em seus dedos, que até mesmo alguém do outro lado da sala podia enxergar, criando a oportunidade para que elas brilhassem diante dos olhos dele. — Sou convidada para tantos festas aqui no Palácio que tenho dificuldade em lembrar de todas as pessoas que tentam me conhecer. Afinal de contas, o Duque Lumholtz e eu poderíamos parecer em uma posição de liderança, com o Príncipe Fyren tendo sido assassinado.

Os lábios vermelhos dela contorceram em um sorriso. — Sei que nunca encontrei aqui qualquer um do Sangue da Congregação.

— Afinal de contas, o Conselho sempre viu o Sangue da Congregação como algo não oficial, não que eu esteja dizendo que concordo, preste atenção, mas eles proibiram que eles praticassem seus... estratagemas em qualquer parte do lado de fora de sua terra natal. É claro que agora parecemos estar sem um Conselho. Bastante terrível, eles serem mortos como foram, bem aqui, e enquanto estavam decidindo o futuro caminho de Midlands. O que traz você aqui, senhor?

Tobias desviou os olhos dela para ver soldados fechando as portas. Passou os dedos no bigode quando começou a andar na direção da plataforma. — Fui convidado, do mesmo jeito que você.

A Duquesa Lumholtz caminhou com ele. — Ouvi dizer que o Sangue da Congregação é considerado com alta estima pela Ordem Imperial.

O homem que estava junto com ela, vestindo um casaco azul com faixas douradas e exibindo autoridade, escutava com grande indiferença enquanto se esforçava em parecer manter sua atenção em outro lugar. Pelo seu cabelo negro e sobrancelhas grossas Tobias já imaginava que ele fosse Kelteano. Os Kelteanos foram rápidos em se unir com a Ordem, e protegiam possessivamente seu alto status entre eles. Eles também sabiam que a Ordem Imperial respeitava a opinião do Sangue da Congregação.

— Estou surpreso, madame, de que você escute qualquer coisa, já que fala tanto.

O rosto dela ficou tão vermelho quanto os lábios. Tobias foi poupado de sua previsível resposta indignada quando a multidão notou uma agitação pela sala. Ele não era alto o bastante para enxergar por cima das cabeças viradas, então esperou pacientemente, sabendo que Lorde Rahl provavelmente ocuparia a plataforma mais alta. Tinha se posicionado cuidadosamente para essa possibilidade: perto o bastante para ser capaz de fazer uma avaliação, mas não tão perto para se destacar.

Diferente dos outros convidados, ele sabia que essa não era uma função social. Parecia que essa seria uma noite tempestuosa, e se houvesse raios, ele não queria ser a árvore mais alta. Tobias Brogan, ao contrário dos tolos agitados em volta dele, sabia quando a prudência era justificada.

Do outro lado da sala, pessoas tentavam apressadamente abrir caminho para um grupo de soldados D'Haran que os empurrava para limpar o caminho. Uma fileira massiva de piqueiros seguia, espalhando-se em pares para formar um corredor livre de convidados. O grupo parou diante da plataforma, uma cunha protetora de músculo e aço D'Haran. A ligeira precisão foi impressionante. Oficiais D'Haran de alta posição marcharam subindo o corredor para assumirem posição ao lado da plataforma. Acima da cabeça de Lunetta, Tobias encontrou o olhar gelado de Galtero. Nenhuma função social com certeza.

A multidão murmurava com grande ansiedade enquanto esperavam para ver o que aconteceria a seguir. Pelos sussurros que Tobias podia escutar, isso estava além dos precedentes no Palácio das Confessoras. Dignitários com rosto vermelho mostravam sua indignação uns para os outros discutindo sobre o que eles consideravam um uso intolerável de força armada na câmara do Conselho, onde a negociação diplomática era a regra.

Brogan não tinha tolerância alguma com diplomacia; o sangue trabalhava melhor, e deixava uma impressão mais duradoura. Ele estava começando a ter uma sensação de que Lorde Rahl também entendia isso, ao contrário do mar de rostos obsequiosos que enchiam a sala.

Tobias sabia o que esse Lorde Rahl queria. Era de se esperar; afinal de contas, que os D'Harans haviam suportado a maior parte da carga para a Ordem Imperial. Nas montanhas ele tinha encontrado uma força que era formada em sua maior parte por D'Haran, seguindo para Ebinissia. Os D'Harans haviam tomado Aydindril, pareciam ter mantido a ordem, e então deixaram a Ordem Imperial ter o domínio sobre ela. Em nome da Ordem eles colocaram sua carne contra o aço dos rebeldes, outros ainda, como Kelteanos, como o Duque Lumholtz, haviam mantido suas posições de poder e passaram as ordens, esperando que os D'Harans caíssem nas pontas das lâminas inimigas.

Lorde Rahl sem dúvida pretendia reivindicar um lugar de alta posição entre a Ordem Imperial, e iria coagir os representantes reunidos para que aceitassem. Tobias quase desejou que a comida tivesse sido oferecida, para que pudesse observar todos os oficiais engasgarem com ela quando o novo Lorde Rahl fizesse suas exigências.

Os dois D'Harans que entraram em seguida eram tão grandes que Tobias conseguiu ver eles se aproximando por cima das cabeças da multidão. Quando eles entraram completamente no campo de visão, e ele conseguiu ver suas armaduras, cotas de malha, e faixas afiadas sobre os cotovelos, Galtero sussurrou para ele por cima da cabeça de Lunetta. — Já vi esses dois.

— Onde? — Tobias sussurrou de volta.

Galtero balançou a cabeça enquanto observava os homens. — Lá fora nas ruas em algum lugar.

Tobias virou a cabeça de volta, e para sua surpresa viu três mulheres vestidas em couro vermelho seguindo os dois D'Harans enormes. De acordo com os relatórios que Tobias ouviu, elas não poderiam ser outra coisa a não ser Mord-Sith. Mord-Sith tinham uma reputação de ser completamente prejudiciais para aqueles com magia que eram contra elas. Uma vez Tobias procurou contratar os serviços de umas dessas mulheres, mas recebeu a informação de que elas serviam apenas ao Mestre de D'Hara, e não eram indulgentes com qualquer um que fizesse ofertas de qualquer tipo. Como tinha ouvido falar, elas não poderiam ser compradas por preço algum.

Se as Mord-Sith fizeram a multidão ficar assustada, o que veio depois deixou eles apavorados. Bocas ficaram abertas com a visão de uma besta monstruosa, uma que tinha garras, presas, e asas. Até mesmo Tobias ficou tenso com a visão do gar. Gars de cauda curta eram bastante agressivos, feras sedentas por sangue que comeriam qualquer coisa viva. Desde que a fronteira tinha caído na última primavera, Gars tinham causado muitos problemas para o Sangue da Congregação. Por um momento, essa besta caminhou tranquilamente atrás das três mulheres. Quando Tobias verificou que sua espada estava livre em sua bainha, ele notou Galtero fazendo o mesmo.

— Por favor, Lorde General, — Lunetta choramingou — quero ir embora agora. — Ela estava coçando os braços furiosamente.

Brogan agarrou-a e puxou para mais perto, sussurrando através de dentes cerrados. — Preste atenção nesse Lorde Rahl, ou vou considerar que você não terá mais utilidade. Você entendeu? E pare de coçar!

Os olhos dela encheram de lágrimas quando ele torceu o braço dela. — Sim, Lorde General.

— Preste atenção naquilo que ele diz.

Ela assentiu enquanto os dois D'Harans enormes assumiam suas posições de cada um dos lados da plataforma. As três mulheres com roupas de couro vermelho ficaram entre eles, deixando um lugar no centro vazio, provavelmente para Lorde Rahl quando ele finalmente chegasse. O Gar ficou por trás das cadeiras.

A Mord-Sith loira no centro da plataforma olhou ao redor da sala com olhos azuis penetrantes que ordenavam silêncio.

— Povo de Midlands, — ela disse, levantando um braço para apontar o espaço vazio acima da mesa — eu lhes apresento o Lorde Rahl.

Uma sombra formou-se no ar. Uma capa negra apareceu de repente, e quando ela foi aberta, ali, parado em cima da plataforma, estava um homem.

Aqueles que estavam na parte da frente caíram para trás assustados. Um grupo de pessoas gritou de terror. Alguns pediram a proteção do Criador, outros suplicaram aos espíritos para que intercedessem em nome deles, e alguns caíram de joelhos.

Enquanto muitos ficaram mudos por causa do choque, algumas das espadas decorativas foram sacadas pela primeira vez por causa do medo. Quando um D'Haran na frente do grupo avisou com uma voz fria para que todos guardassem suas armas, elas foram devolvidas para suas bainhas de modo relutante.

Lunetta estava se coçando freneticamente enquanto olhava para o homem ali em cima, mas dessa vez Brogan não fez ela parar; até mesmo ele sentia sua pele formigar com a malevolência da magia.

O homem em cima da mesa esperou pacientemente que a multidão ficasse em silêncio, e então falou com uma voz calma.

— Eu sou Richard Rahl, chamado pelos D'Harans de Lorde Rahl. Outras pessoas possuem outros títulos pelos quais sou conhecido.

— Profecias feitas no passado, antes que Midlands tivesse nascido, colocaram um nome em mim. — Ele desceu da mesa ficando entre as Mord-Sith. — Mas é sobre o futuro que venho falar a vocês.

Embora não tanto quanto os dois D'Harans parados em cada extremidade da mesa curvada, ele era um homem grande, alto e musculoso, e surpreendentemente jovem. Suas roupas, capa negra e botas altas, calças escuras, e camisa lisa, eram modestas, muito mais ainda para alguém chamado Lorde. Ainda que fosse difícil deixar de perceber o brilho de uma bainha prateada e dourada em sua cintura, ele não parecia ser nada mais do que um simples homem da floresta. Tobias também pensou que o homem parecia cansado, como se carregasse uma montanha de responsabilidades sobre os ombros.

Para Tobias o combate não era estranho, e ele sabia pela graça com que esse jovem se movia, pelo equilíbrio suave dos ombros e pelo modo como a espada balançava em sua cintura junto com ele, que ele não era um homem para ser considerado de modo descuidado. A espada não estava ali para decoração; era uma arma. Ele parecia ser um homem que tinha tomado muitas decisões desesperadas recentemente, e tinha convivido com elas. Com toda sua aparência exterior humilde, ele possuía um inexplicável ar de autoridade, e uma atitude que exigia atenção.

Muitas das mulheres na sala já tinham recuperado sua compostura e estavam começando a lançar sorrisos para ele enquanto piscavam os olhos, entregando-se aos seus hábitos muito bem praticados de insinuação com aqueles que possuem poder. Mesmo que o homem não fosse bonito, elas teriam feito a mesma coisa, mas talvez com menos sinceridade. Lorde Rahl não notou o comportamento delas, ou preferiu não notar.

Mas eram os olhos dele que interessavam para Tobias Brogan; os olhos eram a marca da natureza de um homem, e a única coisa que raramente o enganava. Quando o olhar de ferro desse homem pousava sobre as pessoas, algumas recuavam sem perceber, alguns congelavam, e outros ficavam inquietos. Quando aqueles olhos viraram na direção dele, e o olhar caiu sobre ele pela primeira vez, Tobias fez uma avaliação do coração e da alma de Lorde Rahl.

Aquele breve olhar era tudo que ele precisava: esse era um homem muito perigoso.

Ainda que fosse jovem e pouco à vontade em ser o centro das atenções, esse era um homem que lutaria com fervor. Tobias tinha visto olhos assim antes. Esse era um homem que pularia sobre um penhasco para ir atrás de você.

— Conheço ele. — Galtero sussurrou.

— O quê? Como?

— Hoje mais cedo, quando eu estava recolhendo testemunhas, cruzei com esse homem. Pretendia trazer ele até você para interrogatório, mas aqueles dois guardas enormes apareceram e o levaram.

— Infelizmente. Isso teria sido...

A agitação na sala fez Tobias olhar para cima. Lorde Rahl estava olhando fixamente para ele. Era como olhar dentro dos olhos cinzentos penetrantes de uma ave de rapina.

Os olhos do Lorde Rahl desviaram para Lunetta. Ela ficou congelada na luz do olhar dele. Surpreendentemente, um leve sorriso apareceu nos lábios dele.

— De todas as mulheres no baile, — Lorde Rahl falou para ela — o seu vestido é o mais bonito.

Lunetta sorriu. Tobias quase soltou uma gargalhada; Lorde Rahl acabou de enviar uma mensagem contundente para os outros na sala: o status social deles não significavam nada para ele. De repente Tobias estava começando a ficar animado. Talvez a Ordem não estivesse tão pobremente servida com um homem como esse entre seus líderes.

— A Ordem Imperial, — Lorde Rahl começou — acredita que chegou a hora para que o mundo esteja unido sob um cânone comum: o deles. Eles dizem que a magia é responsável por todas as falhas do homem, desgraças, e problemas.

Dizem que todo mal é uma influência externa da magia. Dizem que chegou a hora da magia desaparecer do mundo.

Alguns na sala murmuraram sua aprovação, alguns resmungaram seu cepticismo, mas a maioria ficou muda.

Lorde Rahl colocou um dos braços na parte superior da cadeira maior, a que ficava no centro. — Para que a visão deles esteja completa, e sob a luz de sua autoproclamada causa divina, eles não aceitarão a soberania de terra alguma.

Eles querem que todos fiquem sob a sua influência, e que sigam para o futuro como um povo: escravos da Ordem Imperial.

Fez uma pausa enquanto observava os olhares de muitos na multidão. — A magia não é uma fonte do mal. Isso é meramente uma desculpa para suas ações enquanto eles buscam a supremacia.

Sussurros se espalharam pela sala, e leves sons de discussões ferveram. A Duquesa Lumholtz caminhou adiante, pedindo atenção. Ela sorriu para o Lorde Rahl antes de baixar a cabeça fazendo reverência.

— Lorde Rahl, tudo que você diz é muito interessante, mas o Sangue da Congregação aqui... — ela balançou uma das mãos na direção de Tobias e ao mesmo tempo lançou um olhar gelado para ele. — diz que toda magia é espalhada pelo Guardião.

Brogan não falou nada, nem se moveu. Lorde Rahl não olhou na direção dele, mas ao invés disso, manteve seu olhar na Duquesa.

— Uma criança, que nasce no mundo, é magia. Você chamaria isso de algo maligno?

Levantando uma das mãos de forma imperiosa, ela fez a multidão atrás dela ficar quieta. — O Sangue da Congregação prega que a magia é criada pelo próprio Guardião, e desse modo só pode ser o mal encarnado.

De vários lugares pelo chão e lá em cima na sacada, pessoas gritaram mostrando que concordavam. Dessa vez foi Lorde Rahl quem levantou uma das mãos, silenciando eles.

— O Guardião é o destruidor, o destruidor da luz e da vida, o sopro da morte. Como ouvi dizer, é o Criador, através de seu poder e glória, que faz todas as coisas que existem. — Toda a multidão gritou que era verdade.

— Nesse caso, — Lorde Rahl falou — acreditar que a magia vem do Guardião é blasfêmia. O Guardião poderia criar uma criança recém nascida? Associar o poder de criar, que é o domínio do Criador, ao Guardião, é conceder ao Guardião aquilo que é casto, e apenas obra do Criador. O Guardião não pode criar. Sustentar uma crença profana desse tipo só poderia ser heresia.

O silêncio desceu como uma mortalha sobre a sala. Lorde Rahl inclinou a cabeça para a Duquesa. — Você deu passos adiante, minha senhora, para confessar que é uma herege? Ou simplesmente para acusar outra pessoa de heresia para obter ganho pessoal?

Com o rosto tão vermelho quando os lábios novamente, ela deu vários passos recuando até o lado de seu marido. O Duque, o seu próprio rosto não estava mais calmo, balançou um dedo na direção do Lorde Rahl.

— Truques com palavras não mudarão o fato de que a Ordem Imperial combate o mal do Guardião, e veio para nos unir contra ele. Eles só querem que todos os povos prosperem unidos. A magia negará esse direito para a humanidade.

Eu sou Kelteano, e tenho orgulho disso, mas está na hora de seguir além das terras fragmentadas e frágeis que ficam sozinhas. Tivemos extensivas conversas com a Ordem, e eles provaram ser um grupo civilizado e decente, interessado em juntar todas as terras em paz.

— Um nobre ideal, — Lorde Rahl respondeu com um tom suave — um que vocês já tinham na união de Midlands, e mesmo assim jogaram fora por causa da avareza.

— A Ordem Imperial é diferente. Ela oferece verdadeira força, e verdadeira paz duradoura.

Lorde Rahl fixou os olhos no Duque. — A paz dos cemitérios raramente é quebrada. — Ele desviou seu olhar para a multidão.

— Não faz muito tempo, um exército da Ordem espalhou-se pelo coração de Midlands, procurando reunir outros em sua causa. Muitos aceitaram e aumentaram a força deles. Um General D'Haran chamado Riggs conduziu eles, junto com oficiais de muitas terras, e foi auxiliado por um mago Slagle, de sangue Kelteano.

— Mais de cem mil, eles seguiram para Ebinissia, a cidade da Coroa de Galea. A Ordem Imperial convidou o povo de Ebinissia para que se juntassem a eles e se transformassem em escravos da Ordem. Quando foi convocado para combater a agressão contra Midlands, o povo Ebinissia o fez com bravura; eles se recusaram a abandonar seu compromisso com a unidade e a defesa em comum que Midlands representava.

O Duque abriu sua boca para falar mas, pela primeira vez, a voz do Lorde Rahl mostrou um tom ameaçador e cortou as palavras dele.

— O exército Galeano defendeu a cidade até o último homem. O mago usou seu poder para abrir um buraco nos muros da cidade e a Ordem Imperial entrou. Logo que os defensores Galeanos que estavam em menor número haviam sido eliminados, e Ordem Imperial não ocupou a cidade, mas ao invés disso cruzou através dela como um grupo de animais uivantes, estuprando, torturando, e assassinando pessoas indefesas.

Lorde Rahl, com sua mandíbula tensa, inclinou-se na mesa, e apontou um dedo para o Duque Lumholtz. — A Ordem assassinou cada uma das pessoas em Ebinissia: os velhos, os jovens, os recém nascidos. Eles empalaram mulheres grávidas indefesas para matar tanto as mães quanto suas crianças.

O rosto dele estava vermelho de fúria, bateu com o punho na mesa. Todos pularam. — Com esse ato, a Ordem Imperial transformou em mentira tudo que falou! Perderam o direito de dizer a todos qualquer coisa sobre o que é certo, e o que é maligno. Eles não possuem virtude. Vieram apenas por uma razão: derrotar e subjugar. Assassinaram o povo de Ebinissia para mostrar aos outros o que tinham para oferecer a qualquer um que falhasse em submeter-se.

— Eles não serão impedidos por fronteiras ou pela razão. Homens com sangue de bebês em suas espadas não possuem ética alguma. Não ouse ficar tentando dizer o contrário; a Ordem Imperial está além da defesa. Eles mostraram as presas por trás do sorriso deles, e pelos espíritos, eles perderam o direito de suas palavras serem aceitas como verdadeiras!

Soltando um leve suspiro para recuperar a calma, Lorde Rahl endireitou o corpo. — Tanto aqueles inocentes nas pontas das lâminas quanto aqueles que seguravam os cabos delas perderam muito naquele dia. Aqueles nas pontas das lâminas perderam suas vidas. Aqueles que as empunhavam perderam sua humanidade e seu direito de serem ouvidos, e mais ainda o direito de que acreditemos neles. Eles transformaram a si mesmos e aqueles que se uniram a eles em meus inimigos.

— E quais eram essas tropas? — Alguém perguntou. — Muitos eram D'Haran, de sua própria admissão. Você conduz os D'Harans, de sua própria admissão. Quando a fronteira caiu na última primavera, os D'Harans entraram e cometeram atrocidades do mesmo jeito que você relata. Embora Aydindril fosse poupada dessa crueldade, muitas outras cidades sofreram o mesmo destino de Ebinissia, mas pelas mãos de D'Hara. Agora você nos pede para acreditar em você? Você não é nem um pouco melhor.

Lorde Rahl assentiu. — O que você diz sobre D'Hara é verdade. D'Hara foi conduzida por meu pai, Darken Rahl, que era um estranho para mim. Ele não me criou, ou ensinou seus costumes. O que ele queria era muito parecido com aquilo que a Ordem Imperial quer: conquistar todas as terras, e governar todos os povos. Onde a Ordem está em uma causa monolítica, a dele era uma pessoal. Além de usar força bruta para alcançar seus objetivos, ele também usou magia, de forma parecida com a Ordem.

— Eu me oponho a tudo que Darken Rahl defende. Ele não deixaria de cometer nenhum ato maligno para que as coisas fossem do seu jeito. Ele torturou e matou incontáveis pessoas inocentes, e reprimiu a magia, para que ela não pudesse ser usada contra ele, do mesmo modo como a Ordem faria.

— Então você representa a mesma coisa que ele.

Lorde Rahl balançou a cabeça. — Não, eu não represento. Eu não desejo governar. Eu saco a espada apenas porque eu tenho a habilidade para ajudar a enfrentar a opressão. Eu lutei ao lado de Midlands contra o meu pai. No final, matei ele por seus crimes. Quando ele usou sua magia vil para retornar do submundo, eu usei magia para impedir ele e enviar seu espírito de volta para o Guardião. Usei magia novamente para fechar um portal que o Guardião estava usando para enviar os servos dele para este mundo.

Brogan cerrou os dentes. Ele sabia pela experiência que Banelings geralmente tentavam esconder sua verdadeira natureza confundindo você com histórias do quanto eles tinham lutado contra o Guardião e seus servos. Ele tinha escutado bastante dessas conversas falsas para reconhecê-las como distrações do verdadeiro mal no coração da pessoa. Os seguidores do Guardião geralmente eram covardes demais para mostrar sua verdadeira natureza, e então se escondiam por trás desses tipos de contos planejados.

De fato, ele teria chegado até Aydindril mais cedo se não tivesse cruzado com tantos focos de perversão depois que deixou Nicobarese. Vilas e cidades, onde todos pareciam estar vivendo vidas devotas, acabaram mostrando estar contaminados pela perversidade. Quando alguns dos defensores mais ardentes da virtude deles foram colocados sob um interrogatório adequado eles finalmente confessaram sua blasfêmia. Quando enfrentaram um interrogatório adequado, os nomes de Streganichas e Banelings que viviam na vizinhança, e haviam seduzido eles para o lado do mal com o uso da magia, saltaram de suas línguas.

A única solução foi a purificação. Vilas e cidades inteiras precisaram ser queimadas nas tochas. Não restou nenhum sinal dos covis do Guardião. O Sangue da Congregação tinha feito o trabalho do Criador, mas isso levou tempo e esforço.

Fervendo, Brogan voltou novamente sua atenção para as palavras do Lorde Rahl.

— Aceitei esse desafio somente porque a espada foi colocada na minha mão. Peço a vocês que não me julguem por quem era meu pai, mas pelo que eu faço. Eu não mato pessoas inocentes, indefesas. A Ordem Imperial mata. Até que eu viole a confiança das pessoas honestas, tenho o direito de um julgamento honesto.

— Não posso ficar de lado e observar homens cruéis triunfarem; vou lutar com tudo que eu tenho, incluindo a magia. Se vocês ficaram do lado desses assassinos, não encontrarão misericórdia na minha espada.

— Tudo que queremos é paz. — alguém gritou.

Lorde Rahl assentiu. — Eu também não desejo nada além do que a paz, e que eu pudesse ir para casa até a minha querida floresta e levar uma vida simples, mas não posso, do mesmo jeito que não podemos voltar para a simplicidade inocente de nossa infância. A responsabilidade foi lançada sobre mim. Virara suas costas para os inocentes que precisam de ajuda transforma vocês nos cúmplices dos atacantes. É em nome dos inocentes e indefesos que eu empunho a espada, e luto nessa batalha.

Lorde Rahl colocou seu braço de volta na cadeira central. — Essa é a cadeira da Madre Confessora. Durante milhares de anos as Madres Confessoras governaram Midlands com mão benevolente, lutando para manter as terras unidas, para que todos os povos de Midlands vivam como vizinhos em paz, e para deixar que eles cuidem de seus próprios assuntos sem temer forças externas. — Ele deslizou seu olhar pelos olhos que observavam. — O Conselho tentou quebrar a unidade e a paz pelas quais esta sala, esse Palácio, e essa cidade lutam, e que vocês falam querer com tanta ansiedade. Eles a condenaram unanimemente e providenciaram para que ela fosse executada.

Lorde Rahl lentamente sacou a espada e colocou a arma na parte da frente da mesa, onde todos poderiam enxergar. — Falei que sou conhecido por diferentes títulos. Também sou conhecido como o Seeker da Verdade, nomeado pelo Primeiro Mago. Carrego a Espada da Verdade por mérito. Noite passada eu executei o Conselho por sua traição.

— Vocês são os representantes das terras de Midlands. A Madre Confessora ofereceu a você a chance de permanecerem juntos, e vocês viraram as costas para essa oferta, e para ela.

Um homem que estava além do campo de visão de Tobias quebrou o silêncio gelado. — Nem todos de nós aprovaram a ação que o Conselho tomou.

— Muitos de nós desejam que Midlands continue unida. Midlands será unida novamente e ficará mais forte para a luta.

Muitos no meio da multidão gritaram que concordavam, jurando que fariam o melhor para criar a união outra vez. Outros permaneceram em silêncio.

— É tarde demais para isso. Vocês tiveram sua chance. A Madre Confessora sofreu por causa de suas brigas e teimosia.— Lorde Rahl enfiou a espada de volta em sua bainha. — Eu não sofrerei.

— Do que você está falando? — O Duque Lumholtz perguntou, a irritação deixando seu tom suave. — Você é de D'Hara.

— Não tem direito algum de nos dizer como Midlands vai funcionar. Midlands é assunto nosso.

Lorde Rahl continuou imóvel como uma estátua enquanto direcionava sua voz suave, mas imponente para a multidão. — Não há Midlands. Eu estou dissolvendo ela, aqui e agora. De agora em diante, cada uma das terras está por sua conta.

— Midlands não é seu brinquedo!

— Nem o de Kelton. — Lorde Rahl disse. — Governar Midlands era o plano de Kelton.

— Como você ousa nos acusar de...

Lorde Rahl levantou a mão, pedindo silêncio. — Você não é menos explorador do que alguns dos outros. Muitos de vocês estavam ansiosos para ter as Madres Confessoras e os magos fora de seus calcanhares para que pudessem enfiar as mãos na pilhagem.

Lunetta tocou no braço dele. — Verdade. — ela sussurrou, Brogan silenciou ela com um olhar frio.

— Midlands não vai tolerar essa interferência em nossos assuntos. — outra voz gritou.

— Não estou aqui para discutir o governo de Midlands. Acabei de falar, Midlands está dissolvida. — Lorde Rahl observou a multidão mostrando um compromisso tão mortal que Tobias teve que lembrar a si mesmo de respirar. — Estou aqui para ditar os termos de sua rendição.

A multidão ficou agitada. Gritos furiosos irromperam e cresceram até que a sala rugiu. Homens com rosto vermelho faziam juramentos enquanto balançavam os punhos.

O Duque Lumholtz gritou para que todos ficassem em silêncio e então virou de volta para a plataforma. — Não sei que ideias tolas você tem na cabeça, meu jovem, mas a Ordem Imperial está no comando desta cidade. Muitos fizeram acordos razoáveis com eles. Midlands será preservada, continuará unida através da Ordem, e nunca vai se render aos desejos de D'Hara!

Quando a multidão agitou-se na direção do Lorde Rahl, bastões vermelhos apareceram nas mãos das Mord-Sith, o grupo de soldados exibiu o aço, piques baixaram, e as asas do Gar abriram. A besta rosnou, suas presas gotejando e seus olhos verdes brilhando. Lorde Rahl continuou parado como um muro de granito. A multidão parou e então recuou.

Todo o corpo do Lorde Rahl assumiu o mesmo comportamento ameaçador dos olhos dele. — Vocês tiveram uma chance de preservar Midlands, e recusaram. D'Hara foi liberada do punho da Ordem Imperial e guarda Aydindril.

— Você apenas pensa que guarda Aydindril. — o Duque falou — Nós temos tropas aqui, assim como muitas das terras, e não vamos deixar a cidade cair.

— Um pouco tarde para isso também. — Lorde Rahl levantou uma das mãos. — Gostaria de apresenta o General Reibisch, o comandante de todas as forças D'Haran neste setor.

O General, um homem musculoso com uma barba cor de ferrugem e cicatrizes de combate, subiu até a plataforma, batendo com um puno sobre o coração em saudação a Lorde Rahl ante de virar para o povo. — Minhas tropas comandam e cercam Aydindril. Meus homens estiveram nessa cidade durante meses. Finalmente estamos livres das garras da Ordem, e mais uma vez somos D'Harans, guiados por Mestre Rahl.

— Tropas D'Haran não gostam de ficar sentadas em um canto. Se algum de vocês gostar de uma luta, eu, pessoalmente, a receberia muito bem, embora Lorde Rahl tenha ordenado que nós não seremos aqueles a dar início na matança, mas se tivermos que nos defender, os espíritos sabem que nós acabaremos com ela. Estou bastante desgostoso com o tédio da ocupação, e eu preferia ter alguma coisa mais interessante para fazer, algo no qual sou muito bom.

— Cada uma das terras tem destacamentos de tropas posicionadas para guardar seus Palácios. No meu julgamento profissional, se todos vocês decidirem disputar a cidade com as tropas que possuem em mãos, e fizerem isso de modo organizado, levaria um dia, talvez dois, para que nós os derrotássemos. Quando isso estivesse feito, não teríamos mais problemas. Uma vez que a batalha começa, os D'Harans não fazem prisioneiros.

O General recuou fazendo uma reverência para Lorde Rahl.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo, alguns com raiva balançando os punhos e gritando para serem ouvidos. Lorde Rahl levantou a mão.

— Silêncio! — Foi atendido quase instantaneamente, e ele continuou. — Convidei vocês até aqui para escutarem o que tenho a dizer. Depois que tiverem decidido se render a D'Hara, então estarei interessado no que vocês querem falar. Não antes!

— A Ordem Imperial quer governar toda D'Hara e toda Midlands. Eles perderam D'Hara; eu governo D'Hara.

— Perderam Aydindril; D'Hara controla Aydindril.

— Vocês tiveram uma chance de união, e jogaram fora. Aquela chance virou história. Agora vocês possuem duas escolhas. A primeira é escolher ficar do lado da Ordem Imperial. Eles governarão com punho de ferro. Não terão voz, e direito algum. Toda magia vai ser exterminada, exceto a magia com a qual eles dominam vocês.

Se viverem, suas vidas serão pálidos esforços sem a centelha da esperança pela liberdade. Serão escravos deles.

— Sua outra escolha é a rendição para D'Hara. Seguirão as leis de D'Hara. Uma vez que se juntarem a nós, terão voz nessas leis. Não temos desejo algum de acabar com a diversidade de Midlands. Terão direito aos frutos de seu trabalho e direito de fazer comércio e prosperar, enquanto trabalharem dentro do contexto maior da lei e dos direitos dos outros. A magia será protegida, e suas crianças nascerão em um mundo de liberdade, onde qualquer coisa é possível.

— E logo que a Ordem Imperial estiver exterminada, haverá paz. Verdadeira paz.

— Haverá um preço: sua soberania. Ao mesmo tempo em que receberão permissão para manter suas próprias terras e culturas, não poderão ter exércitos. Os únicos soldados serão aqueles comuns para todos, sob a bandeira de D'Hara. Esse não será um Conselho de terras independentes; sua rendição é mandatória.

— Rendição é o preço que cada terra pagará pela paz, e a prova do seu compromisso com ela.

— Do mesmo jeito que todos vocês pagaram tributo para Aydindril, nenhuma terra, nenhum povo, carregará todo o fardo da liberdade; todas as terras, todos os povos, pagarão uma taxa suficiente para garantir a defesa em comum, e nada mais. Todos pagarão de forma igual; ninguém será favorecido.

A sala explodiu em protestos, com a maioria alegando que seria um roubo daquilo que era deles. Lorde Rahl silenciou eles com nada mais do que seu olhar.

— Nada ganho sem custo é valorizado. Fui lembrado desse fato hoje mesmo. Ela foi a pessoa que enterramos.

— Liberdade tem um custo, e todos pagarão por isso, para que todos a valorizem e preservem.

As pessoas lá em cima, na sacada, quase fizeram um tumulto, protestando, dizendo da promessa de que ganhariam ouro, que era deles, e não poderiam sustentar o pagamento de qualquer taxa. A cantoria começou, exigindo que o ouro fosse entregue para eles. Mais uma vez, Lorde Rahl levantou a mão, pedindo silêncio.

— O homem que prometeu ouro para vocês em troca de nada está morto. Retirem ele da cova e reclamem com ele, se desejarem. Os homens que lutarão pela liberdade de vocês precisará e provisões, e nossas tropas não irão roubá-las. Aqueles de vocês que podem fornecer comida e serviços receberão um pagamento justo pelo seu trabalho e mercadorias. Todos participarão na conquista da liberdade e paz, se não for com serviço militar, então pelo menos com uma taxa para suportar nossas tropas.

— Todos, não importa de que forma, devem fazer um investimento em sua liberdade, e pagarão sua parte. Este princípio é lei, e inviolável.

— Se não quiserem obedecer, então partam de Aydindril e vão para a Ordem Imperial. Vocês estão livres para pedir ouro para eles, já que foram eles que fizeram a promessa; não manterei ela no lugar deles.

— São livres para escolher: conosco, ou contra nós. Se estiverem conosco, então nos ajudarão. Pensem com muito cuidado antes de decidirem partir, pois se partirem, e depois decidirem que seria melhor não sofrer mais com a Ordem, então pagarão sua taxa em dobro durante um período de dez anos para merecer o direito de voltar.

A multidão nas sacadas ficou atônita. Uma mulher no chão, logo na frente, falou com uma voz confusa.

— E se não escolhermos nenhuma das duas opções? É contra nossos princípios lutar. Queremos ser deixados em paz para cuidar das nossas vidas. E se escolhermos não lutar, para simplesmente continuar tratando de nossos assuntos?

— De modo arrogante você acredita que queremos lutar porque acabaríamos com o massacre, e de alguma forma você é melhor porque você não quer? Ou que carregaremos o fardo para que você também possa aproveitar a liberdade de viver de acordo com seus princípios?

— Você pode contribuir de outras maneiras sem levantar uma espada, mas deve contribuir. Pode ajudar cuidando dos feridos, pode ajudar as famílias dos homens que foram lutar, pode ajudar construindo e mantendo estradas para levar suprimentos para eles; tem muitas maneiras pelas quais você pode ajudar, mas vai ajudar. Vai pagar a taxa, do mesmo jeito que todos os outros. Não haverá espectadores.

— Se escolher não se render, vai ficar sozinha. A Ordem pretende conquistar todos os povos e terras.

Porque não tem outro jeito de impedir eles, não posso ter um objetivo menor do que esse. Cedo ou tarde, você será governada por um de nós. Reze para que não seja pela Ordem.

— Aquelas terras que escolherem não se render a nós serão colocadas sob bloqueio e ficarão isoladas até que tenhamos tempo para invadir e conquistá-las, ou que a Ordem o faça. Nenhum dos nossos cidadão terá permissão para negociar com você, sob a penalidade de condenação por traição, e não terão permissão para transportar mercadorias ou viajar por nossa terra.

— A oportunidade de rendição que eu dou agora carrega incentivos: você poderá se juntar a nós sem preconceito ou sanções. Uma vez que essa oferta pacífica de rendição tenha expirado, e for necessário conquistar você, você será conquistada, e vai se render, mas os termos serão duros. Cada um do seu povo pagará três vezes o preço da taxa por um período de trinta anos. Não seria justo punir futuras gerações por essas ações.

Terras vizinhas irão prosperar e crescer, enquanto você não, sobrecarregada com os altos custos de sua rendição. Eventualmente sua terra irá se recuperar, mas provavelmente você não viverá o bastante para ver isso.

— Estejam avisados: eu pretendo acabar com os carniceiros chamados de Ordem Imperial da face da terra. Se você não fizer nada além do que tentar ficar de fora, e for tolo o bastante para se unir a eles, então selará seu destino ao deles; nenhuma piedade será fornecida.

— Você não pode continuar com isso. — uma voz anônima gritou na multidão. — Vamos impedir.

— Midlands está fragmentada, e não pode ser reunida novamente, ou eu me uniria a vocês. O que é passado, é passado, e não pode voltar.

— O espírito de Midlands continuará vivo com aqueles de nós que honram seu objetivo. A Madre Confessora convocou Midlands para guerra sem misericórdia contra a tirania da Ordem Imperial. Honrem a ordem dela e os ideias de Midlands do único jeito que poderá ter sucesso: rendam-se a D'Hara. Se vocês se juntarem com a Ordem Imperial, então estarão contra tudo que Midlands representava.

— Uma força de soldados Galeanos, liderada pela Rainha de Galea em pessoa, caçou os carniceiros de Ebinissia, e matou eles até último homem. Ela mostrou para todos nós que a Ordem Imperial pode ser vencida.

— Estou decidido a casar com a Rainha de Galea, Kahlan Anel, e juntar o povo dela ao meu, e desse modo mostrar a todos que não vou tolerar os crimes cometidos, até mesmo se eles forem cometidos por tropas D'Haran. Galea e D'Hara serão os primeiros a se juntar nessa nova união, através da rendição de Galea para D'Hara. Meu casamento com ela mostrará para todos que essa será uma união feita com respeito mútuo, demonstrando que isso pode ser feito sem conquistas sangrentas ou desejo de poder, e ao invés disso para ganhar força e a esperança de uma vida nova e melhor. Ela, não menos do que eu, pretende aniquilar a Ordem Imperial. Ela provou isso com aço frio.

A multidão, tanto aquela no andar principal, quanto aquela nas sacadas, começou a gritar fazendo perguntas e exigências.

Lorde Rahl fez eles se calarem. — Chega! — O povo ficou em silêncio rancorosamente mais uma vez. — Já ouvi tudo que queria. Falei para vocês como vai ser. Não pensem de forma errada que vou tolerar o modo como vocês se comportaram como nações de Midlands. Não vou. Até que vocês se rendam, todos são inimigos em potencial, e serão tratados dessa forma. Suas tropas entregarão suas armas imediatamente, de um jeito ou de outro, e não terão permissão de sair da custódia das tropas D'Haran que agora cercam seus Palácios.

— Cada um de vocês enviará uma pequena delegação até a sua terra natal para levar minha mensagem da maneira como falei para vocês. Não pensem em testar minha paciência; a demora poderia custar tudo a vocês. E não pensem em pedir condições especiais. Não haverá nenhuma. Cada terra, seja grande ou pequena, será tratada da mesma forma, e deve se render. Se escolherem se render, nós os recebemos de braços abertos, e esperamos que contribuam com o todo. — Ele olhou para as sacadas. — Vocês também receberam uma responsabilidade: contribuir para nossa sobrevivência, ou deixar a cidade.

— Não estou fingindo que será fácil; nós lutamos contra um inimigo sem consciência. As criaturas nos postes do lado de fora foram enviadas contra nós. Considerem o destino delas, enquanto pensam nas minhas palavras.

— Se escolherem se juntar com a Ordem Imperial, então rezo para que os espíritos sejam mais gentis com vocês na outra vida do que eu serei nessa.

— Podem ir.

 

Os guardas cruzaram seus piques na frente da porta. — Lorde Rahl quer falar com você.

Nenhum dos outros convidados ficou na sala; Brogan tinha ficado para trás para ver se algum deles tentaria obter uma audiência particular com Lorde Rahl. A maioria partiu com muita pressa, mas alguns demoraram, como Brogan pensou que eles fariam. Seus pedidos educados foram barrados por guardas. As sacadas também ficaram vazias.

Brogan e Galtero, com Lunetta entre eles, atravessaram a extensão de mármore até a plataforma, acompanhados pelo som de seus passos ecoando pelo domo, junto com o barulho metálico das armaduras dos guardas atrás deles. Luz de lampiões lançavam um brilho caloroso na imensa sala de pedra ornamentada. Lorde Rahl recostou-se na cadeira do lado da cadeira da Madre Confessora e observou eles se aproximarem.

A maioria dos soldados D'Haran havia sido dispensada, junto com os convidados. O General Reibisch permanecia ao lado da plataforma, seu rosto estava sombrio. Os dois guardas enormes nas duas pontas, e as três Mord-Sith ao lado de Lorde Rahl também observavam, com a silenciosa intensidade de víboras prontas para dar o bote. O Gar estava gigante atrás das cadeiras, atento com olhos verdes brilhantes quando eles pararam diante da mesa.

— Vocês podem ir — General Reibisch falou para os soldados restantes. Depois de bater com os punhos nos corações, eles partiram. Depois que Lorde Rahl observado as altas portas duplas serem fechadas, olhou para Galtero, Brogan, e então seu olhar pousou em Lunetta.

— Bem vinda. Eu sou Richard. Qual é o seu nome?

— Lunetta, Lorde Rahl. — Ela riu enquanto fazia uma reverência desajeitada.

O olhar de Lorde Rahl desviou para Galtero, e Galtero jogou o peso do corpo para o outro pé. — Peço desculpas, Lorde Rahl, por quase atropelar você hoje.

— Desculpas aceitas. — Lorde Rahl sorriu para si mesmo. — Está vendo como foi tão fácil?

Galtero não falou nada. Lorde Rahl finalmente olhou para Brogan, sua expressão ficando séria.

— Lorde General Brogan, quero saber por que você estava sequestrando pessoas.

Tobias afastou as mãos. — Sequestrando pessoas? Lorde Rahl, não fizemos esse tipo de coisa, nem faríamos.

— Duvido que você seja um homem que tolera respostas evasivas, General Brogan. Temos isso em comum.

Tobias limpou a garganta. — Lorde Rahl, deve estar acontecendo algum mal-entendido. Quando chegamos aqui em Aydindril para oferecer nossa assistência na causa da paz, descobrimos que a cidade estar uma bagunça e as questões de autoridade em estado de confusão. Convidamos algumas pessoas até nosso Palácio para ajudar a determinar que perigos estão nas redondezas, nada mais.

Lorde Rahl inclinou para frente. — A única coisa sobre a qual você estava interessado era na execução da Madre Confessora. Qual seria o motivo?

Tobias encolheu os ombros. — Lorde Rahl, deve perceber que durante toda minha vida a Madre Confessor ser a figura de autoridade em Midlands. Descobrir que ela poderia ter sido executada me incomoda muito.

— Quase metade da cidade testemunhou a execução, e poderia ter falado isso. Porque achou necessário sequestrar das ruas para questioná-las sobre isso?

— Bem, às vezes as pessoas tem versões diferentes dos eventos quando falamos com elas separadamente. Eles lembram dos eventos de formas diferentes.

— Uma execução é uma execução. O que tem para lembrar de modo diferente nisso?

— Bem, do outro lado de uma praça, como você poderia afirmar quem estava sendo levado até o bloco? Somente algumas pessoas perto da frente da multidão poderia ter visto o rosto dela, e muitos desses não reconheceriam o rosto dela mesmo se o vissem realmente. — Os olhos do Lorde Rahl não perdiam sua expressão ameaçadora, então ele continuou rapidamente. — Entenda, Lorde Rahl, eu estava esperando que a coisa toda pudesse ter sido um truque.

— Truque? O povo reunido viu a Madre Confessora ser decapitada. — Lorde Rahl declarou de modo direto.

— Às vezes as pessoas enxergam o que elas acham que vão enxergar. Ser minha esperança que eles não tenham visto realmente a Madre Confessora sendo executada, mas talvez apenas uma encenação para que ela pudesse escapar. Pelo menos essa ser minha esperança. A Madre Confessora luta pela paz. Seria um grande símbolo de esperança para o povo se a Madre Confessora ainda estivesse viva. Precisamos dela. Eu ofereceria minha proteção, se ela estar viva.

— Tire essa esperança de sua mente, e dedique-se ao futuro.

— Mas certamente, Lorde Rahl, você deve ter ouvido os rumores da fuga dela?

— Não ouvi tais rumores. E você conhecia a Madre Confessora?

Brogan deixou um sorriso agradável surgir em seus lábios. — Oh, sim, Lorde Rahl. Muito bem, na verdade, ela visitou Nicobarese em várias ocasiões, já que nós ser valiosos membros da união de Midlands.

— Verdade? — O rosto do Lorde Rahl estava ilegível quando ele olhou para baixo de trás da mesa. — Qual era a aparência dela?

— Ela era... bem, tinha... — Tobias franziu a testa. Tinha encontrado com ela mas, estranhamente, de repente ele percebeu que não conseguia lembrar da aparência dela. — Bem, é difícil descrever, e eu não sou muito bom com esse tipo de coisa.

— Qual era o nome dela?

— O nome dela?

— Sim, o nome dela. Você disse que a conhecia bem. Qual era o nome dela?

— Bem, era...

Tobias franziu o rosto novamente. Como poderia ser? Ele estava perseguindo uma mulher que era o flagelo dos devotos, o símbolo da opressão da magia, uma mulher que ele desejava julgar e punir mais do que qualquer um dos outros discípulos do Guardião, e de repente ele não conseguia lembrar da aparência dela, ou o nome dela.

A confusão espalhou-se através dos pensamentos dele enquanto forçava sua mente.

De repente ele lembrou: o feitiço da morte. Lunetta disse que para que ele funcionasse provavelmente ele não a reconheceria. Ocorreu-lhe que o feitiço poderia apagar até mesmo o nome dela, mas essa tinha que ser a explicação.

Tobias encolheu os ombros enquanto sorria. — Sinto muito, Lorde Rahl, mas com as coisas que você falou esta noite minha mente parece estar uma bagunça. — Ele deu uma risada quando bateu no lado de sua testa. — Acho que estou ficando velho e confuso. Me perdoe.

— Você sequestra pessoas das ruas para questioná-las sobre a Madre Confessora porque tem esperança de encontrá-la viva para que possa proteger ela, e ainda assim não consegue lembrar qual a aparência dela, ou ao menos o nome? Espero que você possa considerar, General, que do meu lado da mesa, confuso seria uma definição fraca, devo insistir que, assim como esqueceu o nome dela, esqueça essa busca inútil e concentre sua mente na questão do futuro do seu povo.

Brogan podia sentir sua bochecha tremer quando afastou as mãos novamente. — Mas Lorde Rahl, você não entende? Se a Madre Confessora estivesse viva, então seria de grande ajuda nos seus esforços. Se ela viver, e você poderia convencê-la de sua sinceridade e da necessidade de seu plano, ela seria uma ajuda inestimável para você. Se ela apoiasse suas exigências, então isso pesaria muito para o povo de Midlands. Independente do que poderia parecer por causa das ações infelizes do Conselho, que com toda honestidade fizeram meu sangue ferver, muitos em Midlands possuem grande respeito por ela, e seriam influenciados pelo endosso dela. Poderia até ser possível, é uma grande jogada, que conseguisse convencê-la a casar com você.

— Estou comprometido em casar com a Rainha de Galea.

— Mesmo assim, se ela estivesse viva, poderia ajudar você. — Brogan tocou na cicatriz no lado da boca enquanto fixava os olhos no homem atrás da mesa. — Você acha possível, Lorde Rahl, ela estar viva?

— Eu não estava aqui na hora, mas ouvi dizer que talvez mil pessoas viram ela ser decapitada. Eles pensam que ela está morta. Mesmo que eu admita que se ela estivesse viva ela seria de grande ajuda como minha aliada, essa não é a questão. A questão é, você consegue me oferecer uma boa razão para que todas aquelas pessoas estejam erradas?

— Bem, não, mas eu acho...

Lorde Rahl bateu com o punho na mesa. Até mesmo os dois guardas enormes pularam. — Já escutei o bastante! Você acha que eu sou suficientemente estúpido para ser desviado da causa da paz por essa especulação? Acha que vou dar a você algum privilégio especial porque pensaria em oferecer sugestão sobre como conquistar o povo de Midlands? Eu falei, não há favores especiais! Você será tratado do mesmo jeito que os outros!

Tobias lambeu os lábios. — É claro, Lorde Rahl. Essa não era minha intenção...

— Se continuar com essa busca para encontrar uma mulher que várias pessoas viram ser decapitada, em detrimento de sua tarefa de tratar do futuro curso de sua terra, então vai acabar na ponta da minha espada.

Tobias fez uma reverência. — É claro, Lorde Rahl. Partiremos imediatamente para nossa terra natal com sua mensagem.

— Você não vai fazer isso. Vai permanecer aqui mesmo.

— Mas, eu devo entregar sua mensagem para o Rei.

— Seu Rei está morto. — Lorde Rahl levantou uma sobrancelha. — Ou você queria dizer que pretendia perseguir a sombra dele também, acreditando que ele poderia estar se escondendo junto com a Madre Confessora?

Lunetta riu. Brogan lançou um olhar e a risada morreu repentinamente. Brogan percebeu que seu sorriso tinha desaparecido. Tentou trazer um pouco dele de volta.

— Sem dúvida um novo Rei será nomeado. Esse é o costume em nossa terra: ser conduzida por um Rei. Era para ele, o novo Rei, que eu entregaria a mensagem, Lorde Rahl.

— Uma vez que qualquer Rei que fosse nomeado seria seu fantoche, a jornada é desnecessária. Vai permanecer em seu Palácio até que decida aceitar meus termos, e se render.

O sorriso de Brogan cresceu. — Como queira, Lorde Rahl.

Ele começou a sacar sua faca do cinto. Instantaneamente, uma das Mord-Sith estava com um bastão vermelho a uma polegada do rosto dele. Ele congelou.

Olhando dentro dos olhos azuis dela, ele teve medo de se mover. — Um costume de minha terra, Lorde Rahl. Não queria ameaçá-lo. Pretendia entregar minha faca para você, para mostrar minha intenção de obedecer sua vontade e ficar no Palácio.

— Esse ser um jeito de dar a você minha palavra, um símbolo de minha sinceridade. Você aceitaria?

A mulher não desviou os olhos azuis dos dele. — Está tudo bem, Berdine. — Lorde Rahl disse para a mulher.

Ela recuou, mas apenas com grande relutância, e um olhar ameaçador. Brogan tirou a faca lentamente e colocou-a gentilmente na ponta da mesa. Lorde Rahl pegou a faca e colocou-a de lado.

— Obrigado, General. — Brogan estendeu as mãos, com as palmas para cima. — O que é isso?

— O costume, Lorde Rahl. Em minha terra, o costume é que quando você entrega sua faca, para evitar desonra, a pessoa para quem você a entrega dê uma moeda em troca, prata por prata, como um ato simbólico de boa vontade e paz.

Lorde Rahl, jamais afastando os olhos de Brogan, considerou aquilo por um momento, e finalmente inclinou para trás e tirou uma moeda de prata do bolso. Empurrou ela pela mesa. Brogan se esticou, pegou a moeda, e então enfiou-a no bolso do casaco, mas não antes de ver o desenho nela: o Palácio dos Profetas.

Tobias fez uma reverência. — Obrigado por honrar meus costumes, Lorde Rahl. Se não tiver mais nada, então vou me retirar para considerar suas palavras.

— Na verdade, tem mais uma coisa. Ouvi dizer que o Sangue da Congregação não gosta nem um pouco de magia.

Ele se inclinou chegando um pouco mais perto. — Então porque você tem uma feiticeira com você?

Brogan olhou para a figura encolhida ao lado dele. — Lunetta? Ora, ela ser minha irmã, Lorde Rahl. Ela viaja comigo para todos os lugares. Gosto muito dela, mesmo com o dom. Se eu fosse você, não daria muito valor para as palavras da Duquesa Lumholtz. Ela ser Kelteana, e ouvi dizer que eles estão muito próximos da Ordem.

— Também ouvi isso em algum lugar, daqueles que não são Kelteanos.

Brogan encolheu os ombros. Ele gostaria de poder colocar as mãos naquela cozinheira para cortar a língua frouxa dela.

— Você pediu para ser julgado por suas ações, e não pelo que os outros falam de você. Você negaria o mesmo direito para mim? Aquilo que você escuta está além do meu controle, mas minha irmã tem o dom, e de outro modo eu não saberia disso.

Lorde Rahl recostou em sua cadeira, seus olhos estavam tão penetrantes como sempre. — Havia pessoas do Sangue da Congregação no meio do exército da Ordem Imperial que assassinou aqueles em Ebinissia.

— Assim como D'Harans. — Brogan levantou uma sobrancelha. — Aqueles que atacaram Ebinissia estão todos mortos. A oferta que você fez esta noite dever ser um novo começo, não é? Todos receberam a oportunidade de assumir o compromisso com sua oferta de paz?

Lorde Rahl assentiu lentamente. — Isso mesmo. Uma última coisa, General. Lutei contra os servos do Guardião, e continuarei a fazer isso. Na batalha contra eles, descobri que eles não precisam de sombras para se esconder. Podem ser a última pessoa que você poderia esperar, e pior, podem executar a ordem do Guardião sem perceber o que estão fazendo.

Brogan baixou a cabeça. — Eu também ouvi falar disso.

— Tenha certeza de que a sombra que persegue não seja aquela que você projeta.

Brogan franziu a testa. Escutou muitas coisas de Lorde Rahl que não tinha gostado, mas essa foi a primeira que não entendeu. — Tenho bastante certeza sobre o mal que persigo, Lorde Rahl. Não tema por minha segurança.

Brogan começou a virar para ir embora, mas então parou e olhou por cima do ombro. — Gostaria de oferecer meus parabéns a você por seu noivado com a Rainha Galeana... Acredito que estou começando a ficar com a mente fraca. Parece que não estou conseguindo guardar nomes em minha cabeça. Me perdoe. Qual era o nome dela?

— Rainha Kahlan Amnell.

Brogan fez uma reverência. — É claro. Kahlan Amnell. Não vou esquecer novamente.

 

Richard olhou fixamente para as portas altas de mogno depois que elas fecharam. Foi revigorante ver uma pessoa com uma natureza tão sincera para vir até o Palácio das Confessoras, no meio de tantas pessoas importantes vestidas refinadamente, usando uma roupa feita de tiras de pano com diferentes cores. Todos devem ter pensado que ela era louca. Richard olhou para as roupas simples dele. Imaginou se eles pensavam que ele também era louco.

Talvez ele fosse.

— Lorde Rahl, — Cara perguntou — como sabia que ela era uma feiticeira?

— Ela estava coberta pelo Han dela. Não conseguiu ver nos olhos dela?

O couro vermelho dela rangeu quando ela encostou uma coxa na mesa ao lado dele. — Saberíamos que uma mulher é uma feiticeira se ela tentasse usar o poder dela em nós, mas não antes disso. O que é Han?

Richard passou uma das mãos pelo rosto enquanto bocejava. — O poder interior dela, a força da vida. Sua magia.

Cara encolheu os ombros. — Você tem magia, então você conseguiu ver. Nós não conseguimos.

O dedão dele tocou no cabo da espada quando ele respondeu com um grunhido distraído.

Com o tempo, sem perceber, ele havia desenvolvido uma consciência sobre o aspecto da magia em uma pessoa. Se ela estivesse usando sua magia, geralmente ele podia enxergar isso nos olhos dela. Embora fosse algo particular de cada pessoa, ou talvez a natureza específica de sua magia, havia algo em comum que Richard conseguia reconhecer. Talvez, como Cara falou, fosse porque ele tinha o dom, ou talvez fosse apenas a experiência de ter visto o olhar característico nos olhos de tantas pessoas com magia: Kahlan, Adie, a mulher do osso, Shota, a feiticeira, Du Chaillu, a mulher espírito dos Baka Ban Mana, Darken Rahl, Irmã Verna, Prelada Annalina e incontáveis outras Irmãs da Luz.

As Irmãs da Luz eram feiticeiras, e ele viu com bastante frequência o olhar único com aquela intensidade distante nos olhos delas quando estavam tocando os seus Han. Às vezes, quando estavam envolvidas pela magia, ele quase podia ver o ar ao redor delas soltar fagulhas. Havia Irmãs que pareciam irradiar uma aura com tanto poder que quando elas caminhavam passando por ele cabelos da nuca dele ficavam eriçados.

Richard tinha visto aquele mesmo tipo de olhar nos olhos de Lunetta; ela estava coberta pelo seu Han. O que ele não sabia era por que. Porque ela estaria parada ali, sem fazer nada, e mesmo assim tocando o Han dela. Feiticeiras geralmente não deixam seu Han envolvê-las a não ser que seja com algum objetivo, do mesmo jeito que ele geralmente não sacava sua espada e sua magia sem uma razão. Talvez isso simplesmente alegrasse o temperamento infantil dela, do mesmo jeito que aquelas tiras de pano coloridas faziam. Richard não acreditava muito nisso.

O que o preocupava era que aquilo poderia significar que Lunetta estava tentando verificar se ele estava dizendo a verdade. Não sabia o bastante sobre a magia para ter certeza se isso era possível, mas feiticeiras geralmente pareciam saber de alguma forma se ele estava sendo verdadeiro, fazendo parecer que toda vez que ele dizia uma mentira, isso não poderia ser mais óbvio para elas do que se o cabelo dele de repente pegasse fogo. Ele não queria arriscar, e foi cuidadoso para não ser pego em uma mentira na frente de Lunetta, especialmente sobre Kahlan estar morta.

Brogan certamente estava interessado na Madre Confessora. Richard queria poder acreditar que ele estava dizendo a verdade; que aquilo que ele falou fazia bastante sentido. Talvez fosse apenas a sua preocupação com a segurança de Kahlan que fazia ele suspeitar de tudo.

— Aquele homem parece ser um problema esperando para encontrar um poleiro. — ele falou em voz alta sem querer.

— Gostaria que nós cortássemos as asas dele. Lorde Rahl? — Berdine balançou o Agiel na ponta da corrente no pulso dela e agarrou ele. Ele levantou uma sobrancelha. — Talvez alguma coisa um pouco menor? — As outras duas Mord-Sith riram.

— Não. — Richard falou com uma voz cansada. — Eu dei minha palavra. Pedi a todos eles para fazerem algo sem precedentes, algo que mudará as vidas deles para sempre. Tenho de fazer como disse que faria, e dar a eles toda chance para ver se isso é o certo, que é para o bem comum, a melhor chance para a paz.

Gratch bocejou, mostrando suas presas, e sentou no chão atrás da cadeira de Richard. Richard esperava que o Gar não estivesse tão cansado quanto ele estava. Ulic e Egan pareceram ignorar a conversa; eles estavam imóveis, relaxados, com as mãos cruzadas atrás das costas. Pareciam combinar com algumas das colunas espalhadas pela sala.

Porém, os olhos deles não estavam relaxados; eles inspecionavam constantemente as colunas, os cantos, e alcovas, observando, mesmo que a enorme sala estivesse vazia, a não ser pela presença deles em volta da plataforma ornamentada.

Com um dedão carnudo, o General Reibisch esfregou distraidamente a base dourada de uma lamparina na beira da plataforma. — Lorde Rahl, você falou sério sobre os homens não pegarem o que conquistarem?

Richard observou os olhos preocupados do General. — Sim. Esse é o costume de nossos inimigos, e não o nosso. Nós lutamos por liberdade, não pilhagem.

O General evitou os olhos dele quando assentiu.

— Tem alguma coisa para dizer sobre isso, General?

— Não, Lorde Rahl.

Richard recostou em sua cadeira. — General Reibisch, eu fui um guia florestal desde que tinha idade suficiente para que confiassem em mim; nunca tive que comandar um exército. Serei o primeiro a admitir que não sei muito sobre a posição na qual eu me encontro. Sua ajuda seria bem-vinda.

— Minha ajuda? Que tipo de ajuda, Lorde Rahl?

— Sua experiência poderia ser útil. Gostaria muito se você expressasse a sua opinião ao invés de guardá-la e dizer sim, Lorde Rahl. Posso não concordar com você, e posso ficar zangado, mas nunca vou punir você por dizer o que pensa. Se desobedecer minhas ordens, vou substituir você, mas você está livre para dizer o pensa delas. Essa é uma das coisas pelas quais nós estamos lutando.

O General cruzou as mãos atrás das costas. Os músculos dos braços dele brilharam debaixo da cota de malha, e Richard também conseguiu ver por baixo dos anéis de metal, as cicatrizes brancas de seu posto. — As tropas D'Haran tem um costume de pilhar aqueles que derrotamos. Os homens esperam por isso.

— Líderes do passado podem ter tolerado, ou até mesmo encorajado isso, mas eu não vou.

O suspiro dele foi o bastante para entender sua posição. — Como quiser, Lorde Rahl.

Richard esfregou as têmporas. Estava com dor de cabeça pela falta de sono. — Você não entende? Não se trata da conquista de terras e tomar coisas dos outros; trata-se de combater a opressão.

O General descansou uma das botas no apoio dourado de uma cadeira e enfiou um dedão no cinto largo. — Não vejo muita diferença. Por minha experiência, o Mestre Rahl sempre considera que sabe o que é melhor, e sempre quer governar o mundo. Você é filho do seu pai. Guerra é guerra. As razões não fazem diferença alguma para nós; nós lutamos porque nos mandam fazer isso, do mesmo jeito que aqueles do outro lado. As razões significam pouco para um homem balançando uma espada, tentando manter sua cabeça no lugar. —

Richard bateu com um punho na mesa. Os olhos verdes brilhantes de Gratch ficaram alertas. Em sua visão periférica, Richard conseguiu ver o couro vermelho chegar mais perto de forma protetora.

— Os homens que seguiram atrás dos assassinos de Ebinissia tinham uma razão! Essa razão, e não a pilhagem, foi o que os sustentou e lhes deu a força que precisavam para vencer. Eles formavam um destacamento de cinco mil recrutas Galeanos que nunca estiveram em uma batalha, e mesmo assim derrotaram o General Riggs e seu exército com mais de cinquenta mil homens.

As sobrancelhas grossas do General Reibisch levantaram. — Recrutas? Com certeza você está enganado, Lorde Rahl. Conheci Riggs; era um soldado experiente. Aquelas eram tropas endurecidas pela batalha. Recebi relatórios sobre o que foi avistado daquelas batalhas; eles possuem detalhes assustadores do que aconteceu com aqueles homens quando tentaram abrir caminho para fora das montanhas. Eles só poderiam ter sido aniquilados desse jeito por uma força superior.

— Então acho que Riggs não era um soldado tão experiente quanto precisava ser. Enquanto você recebia relatórios de terceiros, ouvi a história de uma fonte incontestável que estava lá para ver isso ser feito. Cinco mil homens, garotos, na verdade, seguiram até Ebinissia depois que Riggs e seus homens terminaram de assassinar as mulheres e as crianças.

Aqueles recrutas perseguiram Riggs, e derrubaram o exército dele. Quando acabou, menos de mil daqueles jovens estavam de pé, mas nem Riggs nem alguém das suas forças havia sobrado vivo.

Richard não falou que sem Kahlan ali para ensinar a eles o que era necessário ser feito, e conduzi-los nas primeiras batalhas, direcionando-os no calor do combate, aqueles recrutas provavelmente teriam sido transformados em cadáveres dentro de um dia. Ao mesmo tempo sabia que foi o compromisso deles em ver o trabalho feito que lhes deu coragem para escutar ela, e para seguir em frente encarando chances impossíveis.

— Isso é o poder da motivação, General. Isso é o que os homens conseguem fazer quando possuem uma razão poderosa, uma causa justa.

Uma expressão amarga enrugou o rosto mercado dele. — D'Harans lutaram durante a maior parte das suas vidas, e sabem do que são capazes. A guerra é sobre matança; você os mata antes que eles consigam matá-lo, isso é tudo. Aquele que ganhar é aquele que estava certo.

— As razões são a pilhagem da vitória. Quando tiver destruído o inimigo, então seus líderes escrevem as razões em livros, e fornecem relatos sobre elas. Se tiver feito seu trabalho, então não terá sobrado nenhum dos inimigos para disputar as razões com seu líder. Pelo menos não até a próxima guerra.

Richard passou os dedos pelos cabelos. O que ele estava fazendo? O que ele pensava em conseguir se aqueles que lutavam ao lado dele não acreditavam naquilo que estava tentando fazer?

Lá em cima, através do teto do domo, a figura pintada de Magda Searus, a primeira Madre Confessora, Kahlan tinha falado para ele, e o mago dela, Merritt, olhavam para baixo na direção dele. Desaprovando, parecia.

— General, o que eu estava tentando fazer esta noite, falando com aquelas pessoas, era sobre tentar parar com a matança. Estou tentando tornar possível que a paz e a liberdade tenham uma chance de criarem raízes para o bem.

— Sei que isso parece um paradoxo, mas você não entende? Se nos comportarmos com honra, então todas aquelas terras com integridade, que desejam a paz e a felicidade, irão se juntar a nós. Quando eles enxergarem que nós lutamos para acabar com a luta, e não simplesmente para conquistar e dominar, ou por pilhagem, eles ficarão do nosso lado, e as forças da paz serão invencíveis.

— Por enquanto, o agressor faz as regras, e nossa única opção é lutar ou nos submeter, mas...

Ele suspirou de frustração quando recostou batendo a cabeça contra a cadeira. Fechou os olhos; não conseguia suportar encarar o olhar do mago Merritt lá em cima. Merritt parecia estar prestes a começar um sermão sobre a tolice da presunção.

Ele tinha acabado de declarar sua intenção de governar o mundo, e por razões que seus próprios seguidores consideravam conversa vazia. De repente ele estava começando a sentir-se um tolo. Era apenas um guia florestal transformado em Seeker, não um governante. Só porque tinha o dom ele estava começando a pensar que poderia fazer diferença. Dom. Ele nem sabia como usar o seu dom.

Como ele poderia ser tão arrogante em pensar que isso funcionaria? Estava tão cansado que não conseguia pensar direito. Não conseguia lembrar da última vez que dormiu.

Não queria governar ninguém, só queria que isso tudo acabasse para que pudesse ficar com Kahlan e viver sua vida sem lutar. A noite anterior com ela foi maravilhosa. Isso era tudo que ele queria.

General Reibisch limpou a garganta. — Nunca lutei por nada, por qualquer razão, quero dizer, que não fosse ganhar minha parte. Talvez seja hora de tentar fazer do seu jeito.

Richard desencostou da cadeira e fez uma careta para o homem. — Está dizendo isso porque acha que é o que eu quero ouvir?

— Bem, — o General falou enquanto passava um dedão nos entalhes pela borda da mesa — os espíritos sabem que ninguém acreditaria nisso, mas soldados desejam a paz mais do que a maioria das pessoas, eu acredito. Apenas não ousamos sonhar com isso porque vemos tanta matança que começamos a acreditar que ela não pode ter fim, e se você ficar mergulhado nesse pensamento, vai amolecer, e ficar mole acaba resultando na sua morte. Se agir como se estivesse louco por uma luta, isso faz os seus inimigos hesitarem, para que eles não lhe forneçam uma razão para luta. É como o paradoxo que você falou.

— Ver toda essa batalha e matança faz pensar se não tem mais nada para você além de cumprir as ordens que lhe são dadas, e matar pessoas. Faz imaginar se você não é apenas algum tipo de monstro, que não é bom em mais nada. Talvez isso tenha acontecido com aqueles homens que atacaram Ebinissia; talvez eles finalmente tenham se rendido para a voz dentro das cabeças deles.

— Talvez, como você diz, se conseguirmos fazer isso, a matança finalmente acabasse. — Ele ficou apertando uma lasca comprida que tinha soltado. — Acho que todo soldado sempre espera que ao matar todas as pessoas que querem matá-lo, consiga tentar abaixar sua espada. Os espíritos sabem que ninguém odeia mais lutar do que muitos daqueles homens que precisam fazer isso. — Ele soltou um longo suspiro. — Ahh, mas ninguém acreditaria nisso. —

Richard sorriu. — Eu acredito.

O General levantou os olhos. — É raro encontrar alguém que entenda o verdadeiro custo de matar. A maioria glorifica ou se afasta disso, nunca sentindo a dor do castigo e a agonia da responsabilidade. Você é bom em matar. Fico feliz que você não saboreia isso.

O olhar de Richard deixou o General, e buscou a consoladora escuridão das sombras no meio dos arcos entre as colunas de mármore. Como disse para os representantes reunidos, ele foi citado na profecia; em uma das profecias mais antigas, em Alto D'Haran, ele foi chamado de fuer grissa ost drauka: aquele que traz a morte. Foi citado duas vezes: aquele que poderia juntar o lugar dos mortos e o mundo dos vivos rasgando o véu para o submundo; aquele que invocava os espíritos dos mortos, coisa que ele fez quando usou a magia da espada e dançou com a morte; e no seu significado mais básico, aquele que mata.

Berdine tocou nas costas de Richard, fazendo ele tremer os dentes e quebrando o silêncio desconfortável. — Você não falou para nós que encontrou uma noiva. Espero que planeje tomar um banho antes da noite do casamento, ou ela vai desistir — As três mulheres começaram a rir.

Richard ficou surpreso ao descobrir que tinha energia para sorrir. — Não sou o único que está com cheiro de cavalo.

— Se não tiver mais nada, Lorde Rahl, seria melhor eu cuidar de alguns assuntos. — General Reibisch ficou ereto e coçou a sua barba cor de ferrugem. — Quantas pessoas você imagina que teremos que matar para ter essa paz da qual você fala? — Ele deu um sorriso torto. — Para que eu possa saber quanto falta antes que eu não precise ter guardas para vigiar minhas costas quando deito para tirar uma soneca.

Richard trocou um longo olhar com o homem. — Talvez eles recuperem o bom senso e se rendam, e não teremos que lutar.

O General Reibisch grunhiu soltando uma risada cínica. — Se você não se importar. Acho que vou providenciar para que todos os homens afiem suas espadas, só para garantir. — Ele levantou os olhos. — Sabe quantas terras tem em Midlands?

Richard pensou durante um momento. — Pra dizer a verdade, não sei. Não são todas as terras que são grandes o bastante para serem representadas em Aydindril, mas muitas delas ainda são grandes o bastante para ter soldados. A Rainha saberá.

Ela vai se juntar a nós em breve, e poderá ajudar.

Pequenos reflexos da luz de lamparina dançaram em sua cota de malha. — Vou começar a varrer as forças da Guarda do Palácio imediatamente, esta noite, antes que eles tenham chance de se organizar. Talvez desse jeito seja tranquilo e pacífico. Porém, acredito que antes da noite acabar, pelo menos uma das forças dos guardas tente fugir.

— Certifique-se de que tem homens o bastante ao redor do Palácio de Nicobarese. Não quero que o Lorde General Brogan saia da cidade. Não confio naquele homem, mas dei minha palavra que ele terá a mesma chance que os outros.

— Vou cuidar disso.

— E General, avise para que os homens tenham cuidado com a irmã dele, Lunetta. — Richard sentiu uma estranha simpatia pela irmã de Tobias Brogan, pelo coração aparentemente inocente dela. Gostou dos olhos dela. Se esforçou para ser firme. — Se eles saírem do Palácio, tentando partir, coloque vários arqueiros em locais estratégicos e dentro do alcance. Se ela usar magia, não arrisquem a sorte.

Richard quase odiou isso. Nunca teve que comprometer alguns homens em uma batalha na qual pessoas facilmente poderiam ser feridas, ou mortas. Lembrou daquilo que a Prelada falou para ele uma vez: magos tinham que usar pessoas para fazer o que precisava ser feito.

O General Reibisch observou os silenciosos Ulic e Egan, o gar, e as três mulheres. Falou diretamente para eles. — Mil homens estarão bem acordados e a um grito de distância, se precisarem deles.

A expressão de Cara ficou sóbria depois que o General saiu. — Você precisa dormir, Lorde Rahl. Sendo uma Mord-Sith, eu sei quando um homem está exausto e quase para desabar. Pode fazer os seus planos para conquistar o mundo amanhã, depois que tiver descansado.

Richard balançou a cabeça. — Ainda não. Tenho que escrever uma carta para ela primeiro.

Berdine inclinou encostando na mesa ao lado de Cara e cruzou os braços. — Uma carta de amor para sua noiva?

Richard abriu uma gaveta. — Alguma coisa assim.

Berdine exibiu um leve sorriso. — Talvez nós pudéssemos ajudar. Vamos dizer as coisas certas a dizer para manter o coração dela batendo forte e esquecer que você precisa de um banho.

Raina juntou-se às suas irmãs de Agiel perto da mesa, adicionando uma risada travessa que fez os olhos escuros dela brilharem.

— Vamos dar a você aulas para ser um bom marido. Você e sua Rainha ficarão felizes em ter o nosso conselho por perto.

— E seria melhor você escutar o que dissermos, — Berdine avisou — ou vamos ensinar a ela como fazer você dançar de acordo com a melodia dela.

Richard deu um tapa na perna de Berdine, pedindo que ela se afastasse para que ele pudesse alcançar a gaveta atrás dela. Achou um papel na gaveta debaixo. — Porque você não vão dormir um pouco. — ele falou distraidamente enquanto procurava uma pena e tinta. — Também cavalgaram bastante, tentando me alcançar, e não poderiam ter dormido mais do que eu.

Cara levantou o nariz mostrando indignação. — Montaremos guarda enquanto você dorme. Mulheres são mais fortes do que os homens.

Richard lembrou de Denna falando aquela mesma coisa, só que ela não estava brincando quando disse aquilo. Essas três nunca baixavam a guarda quando alguém estava por perto; ele era o único em quem elas confiavam quando queriam praticar seus gracejos sociais. Ele pensou que elas ainda precisavam praticar muito. Talvez fosse por isso que nunca desistiriam do Agiel; elas nunca foram outra coisa além de Mord-Sith, e estavam com medo de não serem capazes de fazer isso.

Cara se aproximou, olhando dentro da gaveta vazia antes que ele a fechasse. Ela jogou a trança loura para trás, por cima do ombro. — Ela deve se importar muito com você, Lorde Rahl, se ela está disposta a lhe entregar a terra dela. Não sei se eu faria tal coisa por um homem, mesmo se ele fosse alguém como você. Ele teria que se entregar a mim.

Richard fez ela afastar para o lado, e finalmente encontrou penas e tinta em uma gaveta que ele teria aberto primeiro se ela não estivesse no caminho. — Você está certa, ela se importa muito comigo. Mas sobre ela entregar a terra dela, bem, ainda não falei essa parte para ela.

Os braços de Cara descruzaram. — Está querendo dizer que ainda tem que exigir a rendição dela, como fez esta noite com os outros?

Richard retirou a tampa da garrafa de tina. — Essa é uma das razões para que eu deva escrever essa carta imediatamente, para explicar a ela meu plano. Porque vocês três não ficam quietas e me deixam escrever?

Raina, com uma expressão de verdadeira preocupação em seus olhos escuros, agachou ao lado da cadeira dele. — E se ela cancelar o casamento?

— Rainhas são orgulhosas; ela pode não querer fazer tal coisa.

Uma onda de preocupação espalhou-se nas entranhas dele. Era pior do que isso. Essas mulheres realmente não entenderam o que ele estava pedindo a Kahlan. Não estava pedindo que uma Rainha entregasse sua terra; ele estava pedindo que a Madre Confessora entregasse toda Midlands.

— Ela está comprometida em derrotar a Ordem Imperial assim como eu. Ela tem lutado com uma determinação que faria uma Mord-Sith ficar pálida. Ela quer que a matança pare tanto quanto eu. Ela me ama, e vai entender a benevolência daquilo que estou pedindo.

Raina suspirou. — Bem, se ela não entender, nós protegeremos você.

Richard lançou um olhar furioso que fez ela recuar como se ele tivesse acertado um golpe nela. — Nunca, nunca, nem ao menos pense em ferir Kahlan. Você vai protegê-la do mesmo jeito que me protegeria, ou pode partir agora mesmo e se juntar às fileiras dos meus inimigos. Deve proteger a vida dela tanto quanto protege a minha. Jure isso pela sua ligação comigo. Jure!

Raina engoliu em seco. — Eu juro, Lorde Rahl.

Olhou para as duas outras mulheres. — Jurem.

— Eu juro. Lorde Rahl. — elas disseram juntas.

Olhou para Ulic e Egan.

— Eu juro, Lorde Rahl. — eles falaram como se fossem um.

Ele deixou o tom beligerante relaxar. — Muito bem, homens.

Richard colocou o papel sobre a mesa diante dele e tentou pensar. Todos pensavam que ela estava morta; esse era o único jeito. Eles não poderiam deixar as pessoas saberem que ela estava viva, ou alguém poderia tentar acabar com o aquilo que o Conselho pensou ter realizado. Ela entenderia se ele conseguisse explicar do jeito certo.

Richard podia sentir a imagem de Magda Searus, lá em cima, olhando para ele. Teve medo de olhar para cima, ou o mago dela, Merritt, poderia mandar um raio para puni-lo por aquilo que ele estava fazendo.

Kahlan tinha que acreditar nele. Uma vez ela falou que morreria para proteger ele, se fosse necessário, para salvar Midlands, que ela faria qualquer coisa. Qualquer coisa.

Cara sentou sobre as mãos. — Essa Rainha é bonita? — O sorriso dela voltou. — Como ela é? Ela não vai tentar nos obrigar a usar vestidos logo que vocês estiverem casados, vai? Vamos obedecer, mas as Mord-Sith não usam vestidos.

Richard suspirou. Elas só estavam agindo daquela maneira tentando aliviar o clima. Ele imaginou quantas pessoas essas mulheres, engraçadinhas, mataram. Ele censurou a si mesmo; isso não era justo, especialmente vindo daquele que traz a morte. Uma delas morreu nesse mesmo dia tentando protegê-lo. A pobre Hally não teve chance contra um Mriswith.

Nem Kahlan teria.

Tinha que ajudá-la. Essa foi a única coisa na qual conseguiu pensar, e cada minuto que passava poderia ser um minuto tarde demais. Tinha que se apressar. Tentou pensar no que dizer. Não poderia deixar claro que a Rainha Kahlan na verdade era a Madre Confessora. Se a carta caísse nas mãos erradas...

Richard levantou os olhos quando ouviu o barulho da porta abrindo. — Berdine, aonde você pensa que vai?

— Encontrar uma cama. Vamos fazer turnos para montar guarda vigiando você. — Ela colocou uma das mãos na cintura, e com a outra girou o Agiel na corrente em seu pulso. — Controle-se, Lorde Rahl. Vai ter uma noiva em sua cama em breve. Pode esperar até lá.

Richard não conseguiu evitar mostrar um sorriso. Gostava do senso de humor distorcido de Berdine. — O General Reibisch disse que havia mil homens montando guarda, não há necessidade...

Berdine piscou. — Lorde Rahl, eu sei que gosta muito de mim, mas pare de me observar por trás enquanto caminho, e escreva sua carta.

Richard ficou batendo a pena com cabo de vidro em um dente quando a porta fechou.

A testa de Cara franziu. — Lorde Rahl, você acha que a Rainha vai ficar com ciúme de nós?

— Porque ela deveria ficar com ciúmes? — ele resmungou enquanto coçava atrás do pescoço. — Ela não tem razão alguma

— Bem, não acha que somos atraentes?

Richard piscou para ela. Ele apontou para a porta. — Vocês duas, fiquem perto da porta e certifiquem-se que ninguém entre aqui para matar seu Lorde Rahl. Se ficarem quietas, como Egan e Ulic aqui, e deixarem que eu escreva essa carta, podem ficar desse lado da porta, se não, então montarão guarda do outro lado.

Elas giraram os olhos, ambas com sorrisos enquanto cruzavam a sala, aparentemente alegres com o fato de que a insistência delas finalmente tivesse arrancado uma reação dele. Ele imaginou que as Mord-Sith deveriam ficar ansiosas para ter um momento de descontração, isso era algo precioso do qual elas tinham pouco, mas ele estava com coisas mais importantes em sua mente.

Richard olhou fixamente para o pedaço de papel em branco e tentou pensar no meio do nevoeiro causado pelo cansaço. Gratch colocou uma pata peluda na perna dele e ficou ao lado dele quando Richard mergulhou a pena na garrafa de tinta.

Minha querida Rainha, ele começou a escrever com uma das mãos, enquanto dava tapinhas com a outra na pata em seu colo.

 

Tobias vasculhou a escuridão cheia de neve enquanto eles avançavam pesadamente pelos montes que ficavam mais fundos. — Tem certeza que fez como eu mandei?

— Sim, meu Lorde General. Eu sei, eles estar enfeitiçados.

Lá atrás, as luzes do Palácio das Confessoras e as construções nas redondezas do centro da cidade tinham desaparecido fazia muito tempo no meio da tempestade de neve que descia das montanhas enquanto eles estiveram lá dentro escutando o Lorde Rahl fazer suas exigências absurdas para os representantes de Midlands.

— Então onde estão ele? Se você os perder e eles congelarem até a morte aqui fora, vou ficar mais do que descontente com você, Lunetta.

— Eu sei onde eles estar, Lorde General. — ela insistiu — Não vou perder eles. — Ela parou e levantou o nariz,farejando o ar. — Por aqui.

Tobias e Galtero olharam um para o outro e fizeram caretas, então viraram para segui-la enquanto ela se movia depressa dentro da escuridão atrás de Kings Row. Ocasionalmente ele só conseguia perceber as formas escuras dos lugares dentro da tempestade. Elas forneciam fantasmas de luzes e direções no vazio desorientador da neve que caia.

Ao longe, ele podia ouvir o barulho de armaduras que passavam. Parecia o som de mais homens do que uma simples patrulha.

Antes que a noite acabasse, provavelmente os D'Harans fariam um movimento para consolidar seu controle sobre Aydindril.

Era isso que ele faria se estivesse no lugar deles: atacar antes que seu oponentes tivessem tempo para digerir suas opções. Bem, não importa, ele não estava planejando ficar.

Tobias soprou a neve de seu bigode. — Você estava escutando ele, não estava?

— Sim, Lorde General, mas eu disse, não conseguiria ter certeza.

— Ele não ser diferente de qualquer outro. Você não devia estar prestando atenção. Sei que você não estava prestando atenção. Estava coçando os braços e não estava prestando atenção.

Lunetta lançou um olhar para ele por cima do ombro. — Ele ser diferente. Não sei por que, mas ele ser diferente. Nunca senti magia como essa. Não poderia dizer se ele estar falando cada uma das palavras verdade, ou cada uma mentira, mas acho que ele estar dizendo verdade. — Ela balançou a cabeça surpresa. — Consegui atravessar bloqueios. Sempre consigo atravessar bloqueios. De qualquer tipo: ar, água, terra, fogo, gelo, de qualquer tipo. Até mesmo de espírito. Mas o dele...?

Tobias sorriu distraidamente. Não importava. Não precisava da habilidade desprezível dela para confirmar. Ele sabia.

Ela continuou resmungando sobre os estranhos aspectos da magia de Lorde Rahl, e como queria ficar longe daquilo, longe desse lugar, e como aquilo fazia a pele dela coçar como nunca aconteceu. Ele só escutava parcialmente. Ela teria seu desejo de ficar longe de Aydindril atendido depois que ele cuidasse de alguns assuntos.

— O que você está farejando?— ele grunhiu.

— Lixo, meu Lorde General. Lixo de cozinha.

Tobias agarrou os trapos coloridos dela. — Lixo? Você deixou eles em um monte de lixo?

Ela sorriu enquanto mancava. — Sim, Lorde General. Você disse que não queria pessoas por perto. Eu não estar familiar com a cidade, e não conhecia um lugar seguro para onde podia mandar eles, mas vi o monte de lixo em nosso caminho até o Palácio das Confessoras. Ninguém ficará ali durante a noite.

— Monte de lixo. — Tobias falou com desgosto. — Louca Lunetta. — ele resmungou.

Ela perdeu um passo. — Por favor Tobias, não me chame...

— Então onde eles estão?

Ela levantou o braço, apontando, e apressou o passo. — Por aqui, Lorde General. Você verá. Por aqui. Não está longe.

Ele pensou naquilo enquanto andava pesadamente pelos montes. Fazia sentido. Realmente fazia sentido; um monte de lixo era um lugar perfeito.

— Lunetta, você estar dizendo a verdade sobre Lorde Rahl, não é mesmo? Se mentir para mim a respeito disso, nunca vou te perdoar.

Ela parou e olhou para ele. Lágrimas desciam dos olhos dela enquanto ela agarrava seus trapos coloridos. — Sim, meu Lorde General. Por favor. Eu estar dizendo a verdade. Tentei tudo. Tentei fazer o melhor.

Tobias ficou olhando para ela por um momento enquanto uma lágrima rolava pela bochecha dela. Não importava; ela sabia.

Ele balançou a mão de modo impaciente. — Então está bem, continue. É melhor não ter perdido eles.

Sorrindo de repente, ela enxugou a bochecha, virou novamente para o caminho que estava seguindo, e disparou. — Por aqui, Lorde General. Você vai ver. Sei onde eles estar.

Suspirando, Tobias seguiu atrás dela novamente. A tempestade estava aumentando, e na velocidade que estava descendo parecia que seria uma muito ruim. Não importa, as coisas estavam acompanhando o caminho dele. Lorde Rahl foi um tolo se achou que o Lorde General Tobias Brogan, do Sangue da Congregação, se renderia como um Baneling sob o ferro quente.

Lunetta estava apontando. — Bem ali, Lorde General. Eles estar aqui.

Mesmo com o vento uivando nas costas deles, Tobias podia sentir o cheiro do monte de lixo antes de enxergar. Balançou a neve da sua capa vermelha quando alcançaram o monte escuro iluminado pelas luzes fracas dos Palácios além do muro ao longe. A neve derretia em alguns lugares enquanto caia sobre o monte fumegante, deixando grande parte de sua forma escura desprovida até mesmo da aparência de pureza.

Ele colocou os punhos nos quadris. — Então? Onde eles estão?

Lunetta chegou mais perto, do lado dele, escondendo-se atrás dele para se proteger da neve lançada pelo vento. — Fique aqui, Lorde General. Eles virão até você.

Ele olhou para baixo e viu um caminho que foi bastante pisoteado. — Um feitiço circular?

Ela riu suavemente enquanto puxava algumas tiras de pano encostando nas bochechas para se proteger do frio. — Sim, Lorde General. Você falou que não queria que eles fossem embora, ou ficaria zangado comigo. Eu não queria que ficasse zangado com Lunetta, então lancei um feitiço circular. Agora eles não podem fugir, não importa como eles sejam rápidos.

Tobias sorriu. Sim, depois de tudo, o dia estava terminando bem. Surgiram obstáculos, mas com a orientação do Criador ele os venceria. Agora as coisas estavam ao seu comando. Lorde Rahl descobriria que ninguém dava ordens ao Sangue da Congregação.

Emergindo das sombras, primeiro ele viu o balançar da saia amarela dela quando o agasalho dela foi aberto por uma rajada de vento. A Duquesa Lumholtz, o Duke meio passo atrás e ao lado dela, caminhavam na direção dele. Quando ela viu quem estava ao lado do caminho, um olhar furioso escureceu o rosto pintado dela. Ela apertou mais o agasalho cheio de neve.

Tobias recebeu-a com um largo sorriso. — Nos encontramos novamente. Boa noite para você, madame. — Ele baixou a cabeça fazendo uma leve reverência. — E para você também, Duque Lumholtz.

A Duquesa fungou, mostrando sua desaprovação e levantou o nariz. O Duque encarou ele com um olhar severo, como se colocasse uma barreira que ele os desafiava a atravessar. Os dois marcharam sem dizer uma palavra, e mergulharam na escuridão.

Tobias riu.

— Está vendo, meu Lorde General? Como eu prometi, eles esperam por você.

Tobias enfiou os dois dedões no cinto e endireitou os ombros, deixando sua capa esvoaçar ao vento. Não havia necessidade de perseguir o os dois.

— Você fez bem, Lunetta. — ele murmurou.

Em pouco tempo, o amarelo da saia dela apareceu outra vez. Dessa vez, quando ela viu Tobias, Galtero, e Lunetta parado ao lado da trilha bastante pisoteada, uma expressão de choque a fez levantar as sobrancelhas. Ela realmente era uma mulher atraente, independente da pintura supérflua: não parecia uma moça de modo algum, embora ainda fosse jovem, mas tinha o rosto e corpo maduros, maduros com o equilíbrio orgulhoso de uma completa mulher.

Com um gesto deliberado de ameaça o Duke descansava uma mão firme no cabo da espada enquanto os dois se aproximavam.

Embora fosse enfeitada, a espada do Duke, Tobias sabia, era como a de Lorde Rahl, não era apenas uma peça decorativa. Kelton fazia um dos melhores aços em Midlands, e todos os Kelteanos, especialmente a nobreza, se orgulhavam de conhecer bem o seu uso.

— General Bro...

— Lorde General, madame.

Ela lançou um rápido olhar para ele. — Lorde General Brogan, estamos a caminho de casa, para o nosso Palácio. Sugiro que pare de nos seguir, e retorne para o seu Palácio. É uma noite ruim para ficar do lado de fora.

Do lado dele, Galtero observou o laço sobre o peito dela subir e descer de irritação. Quando ela percebeu, fechou bem o agasalho. O Duque também percebeu, e aproximou-se de Galtero.

— Mantenha seus olhos longe de minha esposa, senhor, ou cortarei você em pedaços e alimentarei meus cães de caça.

Galtero, com um sorriso traiçoeiro nos lábios, olhou para o homem alto, mas não falou nada.

A Duquesa bufou de raiva. — Boa noite, General.

O casal marchou novamente para dar outra volta no monte de lixo, perfeitamente convencidos de que seguiam na direção de seu destino, em linha reta como uma flecha, mas no meio do nevoeiro de um feitiço circular eles não andavam para lugar algum a não ser em círculos. Ele poderia ter feito com que eles parassem na primeira vez, mas ele saboreou a confusão nos olhos deles enquanto tentavam compreender como ele poderia aparecer repetidas vezes na frente deles. Sua mentes enfeitiçadas não seriam capazes de entender aquilo.

Na vez seguinte, os rostos deles ficaram tão brancos quanto a neve, antes de ficarem vermelhos.

A Duquesa parou bruscamente e, com os punhos nos quadris, olhou para ele zangada. Tobias observou o laço branco bem na frente do rosto dele subir e descer com o calor da indignação dela.

— Olhe aqui, sua coisinha suja insignificante, como ousa...

A mandíbula de Brogan ficou rígida. Com um grunhido de raiva, ele agarrou o laço branco com as duas mãos e rasgou a frente do vestido dela até a cintura.

A mão de Lunetta levantou, acompanhada por um rápido encantamento, e o Duque, com a metade de sua espada para fora da bainha, parou, rígido, como se tivesse sido transformado em pedra. Apenas os seus olhos se moviam, para ver a Duquesa gritar enquanto Galtero dobrava os dois braços dela atrás da sua costa, deixando ela tão imóvel e indefeso quanto ele, embora que sem o uso de magia. A costa dela arqueou enquanto Galtero dobrava os braços dela em seu punho poderoso. Os mamilos dela ficaram expostos ao vento frio.

Uma vez que havia entregue sua faca, Brogan sacou sua espada. — Do que você me chamou, sua prostitutazinha suja?

— Nada. — Nas garras do pânico, ela balançava a cabeça de um lado para outro, seu cabelo negro espalhando em seu rosto. — Nada!

— Ora, ora, perdeu a coragem tão facilmente?

— O que você quer? — ela falou, ofegante. — Eu não sou Baneling! Me solte! Eu não sou Baneling!

— Claro que você não é Baneling. É pomposa demais para ser Baneling, mas isso não a torna menos desprezível. Ou útil.

— Então é ele que você quer? Sim, o Duke. Ele é o Baneling. Me solte, e vou declarar os crimes dele.

Brogan falou através dos dentes cerrados. — O Criador não ser servido através de falsas confissões para ganho próprio. Mas você vai servir a ele, apesar de tudo. — A bochecha dele enrugou com um sorriso sinistro. — Vai servir ao Criador através de mim; vai obedecer meu comando.

— Não vou fazer... — ela gritou quando Galtero apertou com mais força. — Sim, está bem. — ela arfou. — Qualquer coisa. Apenas não me machuque. Diga o que você quer, e eu farei.

Ela tentou recuar sem sucesso quando ele colocou o rosto bem perto do dela. — Vai fazer o que eu disser. — ele falou com os dentes cerrados.

A voz dela estava trêmula de terror. — Sim. Está bem. Tem a minha palavra.

Ele lançou para ela um olhar de desprezo. — Eu não aceitaria a palavra de uma vadia como você: uma que venderia qualquer coisa, trairia qualquer princípio. Vai obedecer meu comando porque não tem escolha.

Ele se afastou, apertou o mamilo dela entre o dedão e o dedo indicador, e puxou. Enquanto ela gemia, os olhos dela arregalaram. Brogan levantou a espada e, com um movimento parecido com o de um serrote, cortou fora o mamilo. O grito dela abafou o rugido do vento.

Brogan colocou o mamilo cortado na palma de Lunetta. Os dedos curtos dela se fecharam em volta dele enquanto seus olhos fecharam em uma mortalha de magia. Leves sons e um antigo encantamento mesclaram-se com o barulho do vento e o som dos gritos da Duquesa. Galtero suportou o peso dela enquanto o vento girava em volta deles.

O canto de Lunetta aumentou enquanto ela jogava a cabeça para cima, na direção do céu escuro. Com os olhos bem fechados, ela invocou o feitiço em volta de si mesma e da mulher diante dela. O vento pareceu espalhar as palavras enquanto Lunetta conjurava em sua linguagem de Streganicha.

 

— Da terra para o céu, das folhas até as raízes.

— Do fogo ao gelo, e dos próprios frutos da alma.

— Da luz para a escuridão, do vento até a água.

— Eu reivindico esse espírito e filha do Criador.

— Até que o sangue do coração ferva ou os ossos virem cinza.

— Até que a gordura ser poeira e os dentes dos mortos rangerem,

essa ser minha.

— Lanço ela dentro de um vale sem sol, e puxo esta alma além do alcance de sua sombra.

— Até que as tarefas dela ser feitas e os vermes ser alimentados.

— Até que a carne ser poeira e a alma tenha partido, essa ser minha.

A voz de Lunetta baixou até um canto rouco. — Com fêmea de galo, aranhas dez, e intestinos, eu a transformo em escrava. Bile de boi, castor e placenta, eu faço um caldo com ela...

As palavras dela flutuaram para longe e se perderam no vento, mas o corpo encolhido dela saltou enquanto ela continuava, balançando sua mão vazia sobre a cabeça da mulher, e a outra, com o pedaço de carne, sobre o próprio coração.

A Duquesa estremeceu quando tentáculos de magia enrolaram-se em volta dela, penetrando em sua carne. Convulsionou quando as presas deles mergulharam na próprio alma dela.

Galtero tinha feito tudo que podia para segurá-la, até que finalmente, ela ficou mole em suas mãos. Independente do vento, pareceu haver um repentino silêncio.

Lunetta abriu a mão. — Ela ser minha para ordenar. Passo meu direito para você. — Ela colocou o, agora ressecado, pedaço de carne na palma de Brogan. — Agora ela ser sua, meu Lorde General.

Brogan apertou o pedaço de carne enrugada no punho. A Duquesa pendia com olhos vidrados pendurada pelos braços atrás da costa. Suas pernas aguentavam seu peso, mas ela tremia com dor e frio. Sangue escorria do seu ferimento.

Brogan apertou o punho. — Pare com essa tremedeira!

Ela olhou dentro dos olhos dele, e sua expressão vidrada desapareceu. Ficou imóvel. — Sim, meu Lorde General.

Brogan fez um gesto para a irmã dele. — Cure ela.

Galtero observou com uma pontada de prazer em seus olhos escuros enquanto Lunetta colocou as duas mãos sobre o seio ferido da mulher. O Duke Lumholtz também observava com os olhos quase saltando das órbitas. Os olhos de Lunetta fecharam novamente enquanto ela usava mais magia, lançando um leve feitiço. Sangue escorreu entre os dedos de Lunetta até que a carne da mulher começou a se unir no processo de cura.

A mente de Brogan divagou enquanto ele esperava. O Criador realmente tomava conta dos seus. Um dia que havia começado com ele próximo do maior dos triunfos quase foi levado até a ruína, mas no final ele provou que aqueles que mantinham a causa do Criador em seus corações poderiam prevalecer. Lorde Rahl descobriria o que acontecia com aqueles que adoravam o Guardião, e a Ordem Imperial descobriria como o Lorde General do Sangue da Congregação era valioso. Galtero também tinha provado seu valor neste dia; o homem merecia uma recompensa por seus esforços.

Lunetta usou o agasalho da Duquesa para limpar o sangue, e então se afastou-se para revelar um seio perfeitamente reconstruído, tão bem quanto o outro, exceto por não ter mamilo. Agora ele pertencia a Brogan.

Lunetta fez um gesto na direção do Duque. — Devo fazer o mesmo com ele também, Lorde General? Você quer ter os dois?

— Não. — Brogan levantou a mão fazendo um leve movimento. — Não. Eu só preciso dela. Mas ele vai executar sua parte no meu plano.

Brogan fixou seu olhar nos olhos apavorados do Duke. — Essa ser uma cidade perigosa. Como Lorde Rahl nos falou hoje, tem criaturas perigosas espreitando, atacando cidadãos inocentes que não tem chance alguma contra eles. Chocante. Se pelo menos o Lorde Rahl estivesse aqui para proteger o Duque de um ataque desses.

— Vou cuidar disso imediatamente, Lorde General. — Galtero falou.

— Não, eu posso cuidar disso. Pensei que você poderia querer entreter a Duquesa aqui, enquanto eu cuido do Duque.

Galtero passou os dentes sobre o lábio inferior enquanto olhava para a Duquesa. — Sim, Lorde General, muito. Obrigado. — Ele entregou sua faca para Brogan. — Vai precisar disso. Os soldados disseram que as criaturas estripavam suas vítimas com uma faca de três lâminas. Vai precisar fazer três cortes para reproduzir o efeito.

Brogan agradeceu a seu Coronel. Sempre podia contar com a eficiência de Galtero. Os olhos da mulher se moveram de um lado para outro entre os três, mas ela não disse nada.

— Gostaria que eu force ela a cooperar?

Um sorriso terrível surgiu no rosto que geralmente era firme como pedra de Galtero. — E qual seria o propósito disso, Lorde General? Seria melhor se ela aprendesse outra lição esta noite.

Brogan assentiu. — Como desejar. — Olhou para a Duquesa. — Minha querida, não ordeno que faça isso. Está livre para expressar seus próprios sentimentos verdadeiros sobre isso para o Galtero aqui.

Ela gritou quando Galtero passou um braço pela cintura dela. — Porque não vamos bem ali, no escurinho, não gostaria de ofender sua delicada sensibilidade, Duquesa, permitindo que veja o que estar acontecendo com seu marido.

— Não pode fazer isso! — ela gritou. — Vou congelar na neve! Preciso atender as ordens de meu Lorde General. Vou congelar!

Galtero bateu no traseiro dela. — Oh, você não vai congelar. O lixo ficará quente debaixo de você.

Ela gritou e tentou se afastar, mas Galtero já estava segurando ela bem firme. Agarrou o cabelo dela com a outra mão.

— Ela ser uma criatura adorável, Galtero; tome cuidado para não estragar essa beleza. E não demore muito; ela ainda tem coisas para fazer. Ela terá que usar menos pintura, — ele disse com um sorriso afetado — mas já que ela tem muito talento nisso, pelo menos ela pode pintar um mamilo onde está faltando o verdadeiro.

— Quando eu terminar com o Duque, e você terminar com ela, então Lunetta tem outro feitiço para lançar sobre ela. Um feitiço muito especial. Um feitiço muito raro e poderoso.

Lunetta alisou suas bonitinhas enquanto observava os olhos dele. Sabia o que ele queria. — Então vou precisar alguma coisa dele, alguma coisa que ele tocou.

Brogan enfiou a mão no bolso. — Ele nos ajudou com uma moeda.

Lunetta assentiu. — Isso vai servir.

A Duquesa gritou e balançou os braços enquanto Galtero começava a arrastá-la para dentro da escuridão.

Brogan virou e balançou a faca na frente dos olhos assustados do alto Kelteano. — E agora. Duke Lumholtz, vamos tratar da sua parte no plano do Criador.

 

Com Gratch erguendo-se como um gigante sobre o ombro dele, observando, Richard gotejou a cera vermelha formando uma larga poça sobre o papel dobrado. Rapidamente ele colocou a vela e a cera de lado e pegou sua espada, passando o cabo na cera, fazendo uma impressão do punho com seus fios de ouro trançados que formavam a palavra Verdade. Ele estava satisfeito com os resultados; Kahlan e Zedd saberiam que a carta realmente era dele.

Egan e Ulic estavam sentados nas pontas da longa mesa curvada, observando a sala vazia como se um exército estivesse prestes a invadir a plataforma. Seus dois guardas enormes preferiam ficar em pé. Ele imaginou que eles deveriam estar cansados e insistiu que sentassem. Eles disseram que ficar em pé os deixava mais preparados para reagir se acontecesse algum problema. Richard disse a eles que achava que os mil homens do lado de fora, montando guarda, provavelmente causariam tumulto suficiente se houvesse um ataque que os dois pudessem notar, mesmo de uma posição sentada, e eles ainda teriam tempo para levantar da cadeiras e sacar as espadas. Foi então que eles sentaram com relutância.

Cara e Raina estavam em pé ao lado das portas. Quando ele falou para elas que elas também poderiam sentar, elas rebateram a sugestão torcendo o nariz de forma arrogante, e disseram que eram mais fortes que Egan e Ulic, e ficariam em pé. Richard estava no meio da carta e não quis discutir com elas, então ele disse que uma vez que elas pareciam cansadas e lentas, estava ordenando que elas ficassem em pé para que tivessem tempo suficiente para interceder na defesa dele caso houvesse um ataque. Agora elas estavam em pé, olhando para ele de cara feia, mas ele tinha percebido leves sorrisos entre elas, aparentemente felizes com a maneira que conseguiram envolvê-lo em seu jogo.

Darken Rahl tinha delineado fronteiras para as Mord-Sith: mestre e escravo. Richard ficou imaginando se elas testariam seus limites com ele, tentando descobrir onde sua fraqueza terminava. Talvez elas estivessem simplesmente alegres em conseguir, pela primeira vez, agir como queriam, obedecendo sua própria vontade.

Richard também considerou a possibilidade de que o jogo delas fosse um teste para tentar verificar se ele estava louco. As Mord-Sith não eram nada além de especialistas em fazer testes. Ficava incomodado que elas pudessem estar pensando que ele estava fora de si. Esse era o único jeito; elas precisavam enxergar isso.

Richard esperava que Gratch não estivesse tão cansado quanto o resto deles. O Gar só tinha se juntado a ele naquela manhã, então Richard não sabia o quanto ele dormiu, mas os olhos verdes brilhantes dele pareciam alertas. Gars geralmente caçavam durante a noite, então talvez isso explicasse toda sua vivacidade. Qualquer que fosse o motivo, Richard gostaria que fosse verdade que Gratch não estivesse cansado, e não simplesmente sua esperança.

Richard deu um tapinha no braço peludo. — Gratch, venha comigo.

O Gar levantou, esticou suas asas junto com uma das pernas, e seguiu Richard através da extensão de chão até uma das escadarias cobertas que subia para a plataforma.

Seus quatro guardas instantaneamente ficaram alertas quando Richard começou a andar. Ele fez um gesto para que ficassem onde estavam. Egan e Ulic obedeceram; as duas mulheres não, mas ao invés disso seguiram atrás dele a uma certa distância.

Apenas as duas lamparinas no fundo da escadaria coberta estavam acesas, deixando todo o resto um túnel sombrio. Na parte superior, ela abria em uma larga sacada, um dos lados margeado por um sinuoso corrimão de mogno com vista geral para o piso principal, e o outro margeado pela parte inferior do domo. Acima de uma pequena base branca de mármore, janelas arredondadas um pouco mais altas do que ele estavam igualmente espaçadas ao redor da sala enorme, Richard olhou para fora através de uma das janelas para uma noite cheia de neve. Neve. Isso poderia ser problema.

Na parte debaixo a janela estava trancada com um trinco de latão, e no centro de cada lado ela estava presa por pinos massivos. Ele testou o trinco e verificou que ele girava suavemente.

Richard virou para seu amigo. — Gratch, quero que escute com muita atenção. Isso é importante.

Gratch assentiu com grande concentração. As duas Mord-Sith observavam das sombras perto do topo da escadaria.

Richard esticou o braço e tocou no longo tufo de cabelo pendurado em uma tira de couro no pescoço de Gratch junto ao dente de dragão. — Esse é um tufo de cabelo de Kahlan. — Gratch balançou a cabeça confirmando que entendeu. — Gratch, ela está em perigo. — Gratch franziu o rosto. — Você e eu somos os únicos que conseguem ver os Mriswith chegando. — Gratch rosnou e cobriu os olhos com as patas, espiando através delas — seu sinal para os Mriswith.

Richard assentiu. — Isso mesmo, Gratch, ela não tem como ver eles chegando, como você e eu. Se forem atrás dela, ela não verá eles chegando. Eles vão matá-la.

Um gemido inquieto saiu da garganta de Gratch. O rosto dele se iluminou. Levantou o tufo de cabelo de Kahlan, e então bateu no peito.

Richard não conseguiu evitar de rir, surpreso com a habilidade do Gar de entender o que ele queria. — Você adivinhou o que eu estava pensando, Gratch. Eu mesmo iria até ela, para protegê-la, mas isso levaria tempo demais e ela pode estar em perigo agora mesmo. Você é grande, mas não é grande o bastante para me carregar. A único coisa que posso fazer e enviar você, para protegê-la.

Gratch assentiu mostrando sua aceitação com um sorriso que mostrou suas presas. De repente ele pareceu perceber o que aquilo significava, e jogou os braços em volta de Richard.

— Gratch luuug Raaaach aaarg.

Richard deu tapinhas nas costas do Gar. — Amo você também, Gratch. — Uma vez ele mandou Gratch embora para salvar a vida do Gar, mas Gratch não havia entendido. Ele tinha falado para Gratch que jamais faria aquilo de novo.

Ele deu um forte abraço no Gar antes de afastá-lo. — Gratch, me escute. — Os olhos verdes brilhantes estavam ficando úmidos. — Gratch, Kahlan ama você como eu. Ela quer você conosco do mesmo jeito que eu, do mesmo jeito que você me quer junto à você. Quero que todos nós fiquem juntos. Vou esperar aqui e quero que vá protegê-la e traga ela de volta. — Ele sorriu e deu um tapinha no ombro de Gratch. — Então todos ficaremos juntos.

As sobrancelhas salientes de Gratch curvaram mostrando uma expressão de dúvida.

— Então quando estivermos todos juntos, você não terá apenas um amigo, vai ter nós dois. E meu avô Zedd também. Ele vai adorar ter você por perto. Você também vai gostar dele. — Gratch estava parecendo um pouco mais animado. — Vai ter vários amigos para lutar com você.

Antes que o Gar pudesse atacar ele, Richard manteve ele afastado esticando um braço. Havia pouca coisa na vida que Gratch amava tanto quanto lutar. — Gratch, não posso me divertir lutando com você agora, quando estou preocupado com pessoas que amo. Você entende, não é? Você gostaria de se divertir lutando com alguma outra pessoa se eu estivesse em perigo e precisasse de você?

Gratch considerou por um momento, e então balançou a cabeça. Richard abraçou ele outra vez. Quando eles se afastaram, Gratch abriu as asas com uma batida forte.

— Gratch, consegue voar na neve? — Gratch assentiu. — Durante a noite? — O Gar assentiu novamente, mostrando as presas por trás do sorriso.

— Está certo, agora, escute, para conseguir encontrar ela. Ensinei para você direções: norte, sul e coisas assim. Você conhece as direções. Bom. Kahlan está no sudeste. — Richard apontaria para sudeste, mas Gratch fez isso antes dele. Richard riu. — Bom. Ela está no sudeste. Está se afastando de nós, seguindo seu caminho até a cidade.

— Ela pensava que eu a encontraria e seguiria junto com ela até a cidade, mas não posso. Devo esperar aqui. Ela tem que voltar aqui.

— Ela está com outras pessoas. Tem um velho de cabelo branco com ela; ele é meu amigo, meu avô, Zedd.

— Também tem outras pessoas com ela, muitos são soldados. Muitas pessoas. Você entende?

Gratch fez uma careta triste.

Richard esfregou a testa, tentando pensar em uma maneira de explicar no meio do cansaço.

— Como esta noite. — Cara falou do outro lado da sacada. — Como naquele momento em que estava falando com todas aquelas pessoas esta noite.

— Sim! Desse jeito, Gratch. — Ele apontou para o piso principal, girando o dedo, formando um círculo. — Todas as pessoas aqui esta noite, quando eu estava falando com elas? Mais ou menos essa quantidade de pessoas estará com ela.

Gratch finalmente grunhiu indicando que entendia. Richard deu tapinha no peito do amigo, aliviado. Mostrou para ele a carta.

— Tem que levar essa carta para que ela entenda porque tem que voltar aqui. Ela explica tudo. É muito importante que ela receba essa carta. Você entende? — Gratch segurou a carta nas garras.

Richard empurrou o cabelo para trás. — Não, assim não vai dar. Não pode carregar ela desse jeito. Pode precisar das suas garras, ou pode deixar ela cair e perdê-la. Além disso, ela vai ficar toda molhada na neve e ela não vai conseguir ler. — A voz dele foi desaparecendo enquanto tentava pensar num jeito de Gratch carregar a carta.

— Lorde Rahl.

Ele virou e Raina jogou alguma coisa através da luz fraca. Quando ele agarrou, percebeu que era a bolsa de couro que carregou a carta do General Trimack o caminho todo desde o Palácio do Povo em D'Hara.

Richard sorriu. — Obrigado, Raina.

Sorrindo, ela balançou a cabeça. Richard colocou a carta, suas esperanças, as esperanças de todos, na bolsa de couro e pendurou sua alça em volta do pescoço de Gratch. Gratch emitiu um som de prazer com a nova adição para sua coleção antes de estudar o tufo de cabelo de Kahlan mais uma vez.

— Gratch, é possível que por alguma razão ela não esteja com todas essas pessoas. Não tenho como dizer o que pode acontecer entre agora e quando você chegar até ela. Pode ser difícil encontrá-la.

Ele observou Gratch acariciando o tufo de cabelo. Richard tinha visto Gratch pegar um rato saltitante no meio do ar m uma noite sem lua. Ele conseguiria encontrar pessoas no chão, mas ele ainda precisava ter um jeito de saber quais eram as pessoas certas.

— Gratch, você nunca viu ela, mas ela tem cabelos longos como esse, não tem muitas mulheres assim, e falei para ela tudo sobre você. Não vai ficar com medo quando ver você, e vai chamar o seu nome. É assim que poderá saber que realmente é ela: ela saberá o seu nome.

Finalmente satisfeito com todas as suas instruções, Gratch bateu as asas e começou a saltar, ansioso para partir e trazer Kahlan de volta para Richard. Richard abriu a janela. A neve entrou rugindo.

Uma última vez, os dois amigos se abraçaram.

— Ela esteve fugindo daqui faz duas semanas, e vai continuar até que você a encontre. Pode levar algum tempo até que você alcance ela, muitos dias, então não fique desencorajado. E tenha cuidado, Gratch; não quero que você se machuque. Quero você de volta aqui para poder lutar com você, sua grande fera peluda.

Gratch riu, emitindo um som assustador, mas ainda assim alegre, então subiu no peitoril. — Gratch luuug Raaaach aaarg.

Richard acenou balançando a mão. — Amo você, Gratch. Tenha cuidado. Faça uma viajem segura.

Gratch acenou de volta, e então saltou dentro da noite. Richard ficou observando a fria escuridão, mesmo que o Gar tivesse desaparecido quase instantaneamente. Richard sentiu um vazio repentino. Mesmo que estivesse cercado por várias pessoas, não era a mesma coisa. Elas estavam ali apenas porque estavam ligadas a ele, e não porque realmente acreditavam nele ou naquilo que ele estava fazendo.

Kahlan estivera fugindo fazia duas semanas, e provavelmente o Gar levaria pelo menos outra semana, talvez duas, para finalmente encontrá-la. Richard não conseguia imaginar que levasse menos de um mês ou mais para Gratch encontrar Kahlan e Zedd, e todos voltassem até Aydindril. Poderia levar quase dois meses.

Já estava com um nó no estômago, ansioso para que seus amigos estivessem de volta junto com ele. Eles estiveram separados tempo demais.

Ele queria que esse sentimento de solidão terminasse, e somente a presença deles poderia acabar com isso.

Depois de fechar a janela, ele virou de volta para a sala. As duas Mord-Sith estavam paradas logo atrás dele.

— Gratch realmente é seu amigo. — Cara falou.

Richard apenas assentiu, não querendo testar o bolo em sua garganta.

Cara lançou um olhar para Raina antes de falar com ele. — Lorde Rahl, estivemos discutindo esse assunto, e decidimos que seria melhor se você estivesse em D'Hara, onde você estará seguro. Podemos deixar um exército aqui para proteger sua Rainha quando ela chegar e escoltá-la até D'Hara para ficar com você.

— Eu já falei, devo permanecer aqui. A Ordem Imperial quer conquistar o mundo. Eu sou um mago, e devo combater isso.

— Você disse que não sabia como usar o seu dom. Disse que não sabia nada sobre como utilizar magia.

— Não sei, mas o meu avô, Zedd, sabe. Tenho que ficar aqui até ele chegar, então poderá me ensinar o que eu preciso saber para poder lutar contra a Ordem e impedir que eles dominem o mundo.

Cara desprezou o assunto com um balanço da mão. — Alguém sempre quer governar aqueles que eles ainda não governam. Da segurança de D'Hara você pode direcionar sua guerra contra a Ordem.

— Quando os representantes dos Palácios voltarem de suas terras de origem para oferecer sua rendição, então Midlands será sua. Você governará o mundo, e sem ter que se arriscar. Logo que as terras se entregarem, então a Ordem Imperial estará acabada.

Richard seguiu na direção da escadaria. — Você não entende. Tem mais coisa do que isso. De alguma forma, a Ordem Imperial se infiltrou no Mundo Novo, e conquistou aliados.

— Mundo Novo? — Cara perguntou quando ela e Raina começaram a andar atrás dele. — O que é o Mundo Novo?

— Westland, de onde eu sou, Midlands, e D'Hara formam o Mundo Novo.

— Elas formam todo o mundo. — Cara falou com determinação.

— Falando como um peixe em um lago. — Richard disse, deslizando a mão suavemente pelo corrimão liso enquanto descia os degraus. — Você acha que isso é tudo que existe no mundo? Apenas o lago que você enxerga? Que tudo simplesmente acaba em um oceano, ou no limite de uma montanha, ou deserto, ou algo assim?

— Só os espíritos sabem. — Cara parou no final dos degraus e inclinou a cabeça. — O que você acha?

— Que tem outras terras além destas? Outros lagos? — Ela girou o Agiel formando um círculo. — Lá fora, em algum lugar?

Richard jogou as mãos para cima. — Não sei. Mas sei que ao sul está o Mundo Antigo.

Raina cruzou os braços. — AO sul fica um deserto árido.

Richard começou a atravessar o chão da sala. — Enfiado no deserto havia um lugar chamado Vale dos Perdidos, e atravessando ele, de oceano a oceano, uma barreira chamada de Torres da Perdição. As torres foram colocadas milhares de anos atrás por magos com poder inimaginável. Os feitiços daquelas torres impediram que quase todos atravessassem durante os últimos três mil anos, e então o Mundo Antigo foi esquecido no tempo.

Cara exibiu uma careta cética enquanto as botas deles faziam ecos no domo. — Como sabe disso?

— Eu estive lá, no Mundo Antigo, no Palácio dos Profetas, em uma grande cidade chamada Tanimura.

— Verdade? — Raina perguntou. Richard assentiu. Ela fez uma careta parecida com a de Cara. — E se ninguém pode atravessar, então como você conseguiu?

— É uma longa história, mas basicamente essas mulheres, as Irmãs da Luz, me levaram lá. Nós conseguimos atravessar porque temos o dom, mas não tão forte para atrair o poder destrutivo dos feitiços. Ninguém mais poderia atravessar, e então os Mundos Antigo e Novo e assim os Mundos Antigo e Novo permaneceram separados pelas torres e seus feitiços.

— Agora a barreira entre o Mundo Antigo e o Novo caiu. Ninguém está seguro. A Ordem Imperial é do Mundo Antigo. É um longo caminho, mas eles virão, e devemos nos preparar.

Cara olhou para ele com desconfiança. — E se essa barreira esteve no lugar durante três mil anos, como isso aconteceu agora?

Richard limpou a garganta enquanto elas o seguiam subindo até a plataforma. — Bem, acho que a culpa é minha. Eu destruí os feitiços das torres. Eles não formam mais uma barreira. O deserto foi transformado na terra verde que foi um dia.

As duas mulheres pensaram naquilo em silêncio. Cara se inclinou para falar com Raina. — E ele diz que não sabe usar magia.

Raina desviou o olhar para Richard. — Então, o que está dizendo é que você causou essa guerra. Tornou ela possível.

— Não. Olha, é uma longa história. — Richard empurrou o cabelo para trás. — Mesmo antes que a barreira fosse derrubada eles estavam reunindo aliados aqui e tinham começado sua guerra. Ebinissia foi destruída antes que a barreira caísse. Mas agora não tem nada para segurá-los, ou diminuir sua velocidade. Não subestimem eles. Eles usam magos e feiticeiras. Querem destruir toda magia.

— Querem destruir toda a magia, e ainda assim eles mesmos a utilizam? Lorde Rahl, isso não faz sentido. — Cara brincou.

— Vocês querem que eu seja a magia contra magia. Por quê? — Ele apontou para os homens nas duas pontas da plataforma.

— Porque eles só podem ser o aço contra o aço. Geralmente é preciso magia para destruir magia.

Richard gesticulou, seu dedo incluindo as duas mulheres. — Você possuem magia. E com que propósito? Combater magia. Como Mord-Sith, vocês conseguem usar a magia de alguém contra ela mesma. É a mesma coisa com eles. Eles usam magia para ajudá-los a destruir magia, exatamente como Darken Rahl usou vocês para torturar e matar aqueles com magia que se opuseram a ele.

— Vocês possuem magia; a Ordem vai querer destruir vocês. Eu tenho magia; eles vão querer me destruir. Todos os D'Haran tem magia, através da ligação; eventualmente a Ordem perceberá isso e decidirá exterminar a corrupção. Mais cedo ou mais tarde, eles virão para esmagar D'Hara, assim como esmagariam Midlands.

— Ao invés disso, as tropas D'Haran esmagarão eles. — Ulic falou por cima do ombro, como se declarasse com a confiança de que o sol desceria neste dia como sempre fez.

Richard lançou um olhar para as costas do homem. — Até que eu aparecesse, D'Harans se juntaram a eles, e em nome deles aniquilaram Ebinissia. Os D'Harans aqui, em Aydindril, seguiam os comandos da Ordem Imperial.

Os quatro guardas dele ficaram em silêncio. Cara ficou olhando para o chão enquanto Raina soltava um suspiro desanimado.

— Na confusão da guerra, — Cara falou finalmente, como se pensasse em voz alta — algumas de nossas tropas no campo teriam sentido a ligação ser quebrada, assim como alguns daqueles no Palácio sentiram quando você matou Darken Rahl. Eles ficariam como almas perdidas sem um novo Mestre Rahl para assumir a ligação deles. Eles podem ter simplesmente se juntado com alguém que lhes forneceria direção, que tomasse o lugar da ligação. Agora eles estão com sua ligação de volta. Nós temos um Mestre Rahl.

Richard desabou na cadeira da Madre Confessora. — É isso que eu espero.

— Mais uma razão para voltar a D'Hara. — Raina disse. — Devemos protegê-lo para que continue a ser o Mestre Rahl e nosso povo não se junte com a Ordem Imperial. Se você for morto, e a ligação for quebrada, então o exército mais uma vez vai se virar na direção da Ordem. Melhor deixar Midlands lutar suas próprias batalhas.

— Não é nosso trabalho salvar eles de si mesmos.

— Então, todo em Midlands cairão sob a espada da Ordem Imperial. — Richard falou com uma voz suave.

— Eles serão tratados como vocês foram tratados por Darken Rahl. Ninguém será livre novamente. Não podemos permitir que isso aconteça enquanto houver uma chance de conseguirmos impedir. Isso deve ser feito agora, antes que eles ganhem mais apoio aqui em Midlands.

Cara girou os olhos. — Que os espíritos nos salvem de um homem com uma causa justa. Não é obrigação sua liderá-los.

— Se eu não fizer isso, então no final todos viverão sob um governo: o da Ordem. — Richard disse. — Todas as pessoas serão propriedade deles, para sempre; os tiranos não se cansam da tirania.

A sala foi preenchida pelo silêncio. Richard recostou a cabeça no encosto da cadeira. Estava tão cansado que não achava que conseguiria manter os olhos dele abertos por muito tempo. Ele não sabia por que estava se preocupando em tentar convencê-los; eles não pareciam entender, ou se preocupar, com aquilo que ele estava tentando fazer.

Cara encostou na mesa e passou uma das mãos sobre o rosto. — Não queremos perder você, Lorde Rahl. Não queremos que as coisas voltem a ser como eram. — Ela pareceu estar prestes a chorar. — Gostamos de poder fazer coisas simples, como uma piada, e rir. Antes não poderíamos fazer essas coisas. Sempre vivemos com medo de que se falássemos algo errado apanharíamos, ou pior. Agora que experimentamos as coisas de outra forma, não queremos voltar para aquilo. Se jogar sua vida fora por causa de Midlands, então voltaremos.

— Cara... todos vocês... me escutem. Se eu não fizer isso, então no final é isso que vai acontecer. Não consegue ver isso? Se eu não unir as terras em um governo forte, sob uma lei justa e liderança, então a Ordem vai tomar tudo, um pedaço por vez. Se Midlands cair sob a sombra deles, então essa sombra vai se espalhar por D'Hara também, e no fim todo o mundo vai cair na escuridão. Não faço isso porque eu quero, mas porque posso ver que tenho uma chance de realizar a tarefa. Se eu não tentar, não haverá lugar para me esconder; eles vão me encontrar, e vão me matar.

— Não quero conquistar e governar as pessoas; só quero viver uma vida tranquila Quero ter uma família e viver em paz.

— É por isso que devo mostrar para as terras de Midlands a nossa força e não permitiremos nenhum favoritismo ou disputa. Não seremos terras em uma aliança, ficando juntas apenas quando for preciso, mas que realmente somos um só. Elas devem estar confiantes de que defenderemos o que é certo. E vão se sentir seguras unindo-se a nós, e saberão que há um lugar para elas conosco. Assim serão encorajadas sabendo que não terão que lutar sozinhas se desejarem lutar por liberdade. Devemos ser uma força poderosa na qual elas confiem.

— Confiem o bastante para se juntar a nós.

A sala caiu em um silêncio frio. Richard fechou os olhos quando encostou a cabeça na cadeira. Eles pensavam que ele estava louco. Isso não adiantava. Simplesmente teria que ordenar que eles fizessem as coisas que ele precisava, e parar de preocupar se eles gostavam ou não; muito menos se eles se importavam.

Cara finalmente falou. — Lorde Rahl. — Ele abriu os olhos para ver que ela estava com os braços cruzados e uma expressão amarga no rosto. — Não vou trocar as fraldas da sua criança, nem dar banho nela, ou fazer ela arrotar, nem farei sons idiotas para ela.

Richard fechou os olhos e recostou a cabeça na cadeira outra vez enquanto ria. Lembrou da época quando estava em casa, antes de tudo isso ter começado, e a parteira tinha chamado Zedd com urgência. Elayne Seaton, uma mulher jovem não muito mais velha do que Richard, teria sua primeira criança, e isso não estava acontecendo muito bem. A parteira tinha falado em tons apressados quando virou suas costas largas para Richard e se inclinou na direção de Zedd.

Antes que Richard soubesse que Zedd era seu avô, ele só o conhecia como seu melhor amigo. Naquele tempo Richard não sabia que Zedd era um mago, nem ninguém mais; todos o conheciam apenas como Zedd, o leitor de nuvens, um homem de considerável conhecimento sobre as mais comuns e as mais peculiares coisas — sobre ervas raras e sobre doenças humanas, cura e de onde as nuvens de chuva tinham vindo, onde cavar um poço e quando começar a cavar um túmulo — e ele sabia sobre o nascimento de crianças.

Richard conhecia Elayne. Ela o ensinou a dançar para que ele pudesse convidar uma garota no festival do solstício de verão. Richard desejava aprender, até encarar a chance de segurar uma mulher em seus braços; estava com medo de machucá-la ou algo assim, ele não tinha muita certeza, mas todos diziam que ele era forte e tinha que tomar cuidado para não ferir as pessoas. Quando ele mudou de ideia e tentou cair fora, Elayne riu, envolveu ele em seus braços, e começou a girar ele enquanto murmurava uma canção.

Richard não sabia muito sobre o nascimento de bebês, mas pelo que tinha ouvido falar ele não tinha desejo algum de chegar perto da casa de Elayne enquanto aquilo estava acontecendo. Ele seguiu até a porta, pretendendo caminhar na direção oposta ao problema.

Zedd pegou sua bolsa de ervas e poções, segurou a manga de Richard, e disse — Venha comigo, meu rapaz. Posso precisar de você. — Richard insistiu que não serviria de ajuda alguma, mas quando Zed decidia uma coisa ele poderia fazer pedra parecer maleável em comparação. Quando Zedd empurrou ele pela porta, ele falou — Nunca se sabe, Richard, você pode acabar aprendendo alguma coisa.

O marido de Elayne, Henry, estava fora com um grupo cortando gelo para as hospedarias e, por causa do clima, ainda não tinha voltado de suas entregas nas cidades próximas. Havia muitas mulheres na casa, mas todas estavam com Elayne. Zedd falou para Richard cuidar do fogo e aquecer um pouco de água, e que ele levaria algum tempo.

Richard sentou na cozinha fria, suor descendo pelo seu escalpo, enquanto escutava os gritos mais horríveis que já tinha ouvido. havia palavras de conforto abafadas da parteira e das outras mulheres, mas a maior parte eram gritos. Ele alimentou o fogo, derretendo neve em uma grande panela para ter uma desculpa para ir lá fora. Disse a si mesmo que Elayne e Henry poderiam precisar de mais lenha, com um novo bebê e tudo, então cortou uma boa pilha. Não adiantou muito; ainda podia escutar os gritos de Elayne. Não foi o modo como eles mostravam a dor, mas o modo como estavam cheios de pânico que fez o coração de Richard bater mais forte.

Richard sabia que Elayne morreria. Uma parteira não procuraria Zedd a não ser que houvesse um problema sério. Richard nunca tinha visto uma pessoa morta; não queria que a primeira fosse Elayne. Lembrou das risadas dela quando ela o ensinou a dançar. O rosto dele ficou vermelho o tempo todo, mas ela fingiu não notar.

E então, enquanto ele estava sentado na mesa, olhando para o vazio, pensando que o mundo realmente era um lugar muito terrível, houve um último grito, mais agonizante do que os outros, que fez descer um calafrio por sua espinha. Ele foi sumindo em um tom desesperado.

Ele fechou os olhos bem apertado, no pesado silêncio, amaldiçoando as lágrimas.

Cavar um túmulo no chão congelado seria quase impossível, mas ele prometeu a si mesmo que faria isso por Elayne. Não queria que eles guardassem o corpo congelado dela no galpão do coveiro até a primavera. Ele era forte. Faria aquilo mesmo que levasse um mês. Ela o ensinou a dançar.

A porta para o quarto abriu rangendo, e Zedd saiu carregando alguma coisa. — Richard, venha aqui. — Ele entregou uma coisa coberta de sangue com pequenos braços e pernas. — Lave ele com cuidado.

— O quê? Como faço isso? — Richard gaguejou.

— Na água morna! — Zedd falou. — Maldição, meu rapaz, você esquentou a água, não foi? — Richard apontou com o queixo. — Agora não está quente demais. Apenas morna. Então enrole ele naqueles cobertores e traga ele de volta para dentro do quarto.

— Mas Zedd... s mulheres. Elas deveriam fazer isso. Não eu! Queridos espíritos, as mulheres não podem fazer isso?

Zedd, com seu cabelo branco todo desgrenhado, observou ele com um olho. — Se eu quisesse que as mulheres fizessem, meu rapaz, não pediria para você, pediria?

Com o manto esvoaçando, ele se afastou. A porta do quarto bateu fechando. Richard estava com medo de se mexer por temer esmagar a coisinha. Era tão pequena que ele mal podia acreditar que era real. E então algo aconteceu. Richard começou a sorrir. Isso era uma pessoa, um espírito, novo mundo. Ele estava contemplando magia.

Quando ele levou a maravilha lavada e enrolada no cobertor para dentro do quarto, ele quase chorou ao ver que Elayne estava bem viva. Sua pernas trêmulas quase não conseguiam suportar o seu peso.

— Elayne, certamente você consegue dançar — foi a única coisa que ele conseguiu pensar para dizer. — Como você conseguiu fazer uma coisa tão maravilhosa? — As mulheres ao redor da cama ficaram olhando para ele como se ele fosse maluco.

Elayne sorriu no meio da exaustão. — Algum dia você poderá ensinar Bradley a dançar, olhos brilhantes. — Ela esticou as mãos. O sorriso dela cresceu quando Richard colocou a criança gentilmente em seus braços.

— Bem, meu garoto, parece que você entendeu afinal de contas. — Zedd levantou uma sobrancelha — Aprendeu alguma coisa?

Agora Bradley deve ter uns dez anos, e o chamava de Tio Richard.

Enquanto escuta o suave retorno das lembranças, Richard pensou naquilo que Cara falou.

— Sim, você vai, — Finalmente ele falou para ela com um tom suave. — Mesmo que eu tenha que ordenar, você vai. Quero que sinta a maravilha de uma nova vida, um novo espírito, em seus braços, para que possa sentir outra magia além daquela do Agiel em seu pulso. Vai dar banho nele, e colocar fraldas nele, e fazer ele arrotar, assim saberá que os seus cuidados carinhosos são necessários nesse mundo, e que eu confiaria minha própria criança a esses cuidados. Vai fazer sons idiotas para ele, e assim poderá rir de alegria com a esperança para o futuro, e talvez esqueça que você matou pessoas no passado.

— Se não conseguir entender nenhuma das outras coisas, espero que consiga entender pelo menos essa parte das minhas razões para fazer o que devo fazer.

Ele relaxou na cadeira, deixando seus músculos frouxos pela primeira vez durante horas. A calmaria parecia murmurar ao redor dele. Pensou em Kahlan, e deixou sua mente flutuar.

Cara sussurrou através de lábios cerrados e lágrima: um som suave quase perdido na sala enorme e no seu silêncio parecido com o de uma tumba — Se você morrer tentando governar o mundo, eu mesma quebrarei cada osso do seu corpo.

Richard sentiu suas bochechas dobrarem com um sorriso. A escuridão por trás de suas pálpebras girou com escuras manchas coloridas.

Ele estava bem consciente da cadeira em volta dele: a cadeira da Madre Confessora, a cadeira de Kahlan. Dessa cadeira ela governou a aliança de Midlands. Ele podia sentir os olhos da primeira Madre Confessora e do mago dela olhando para ele enquanto ele ficava sentado no lugar sagrado após ter exigido a rendição de Midlands e o fim de uma aliança que eles tinham forjado para ser a fundação de uma paz eterna.

Ele entrou nessa guerra lutando pela causa de Midlands. Agora comandava seu antigo inimigo, e tinha colocado sua espada na garganta de seus aliados.

Em um dia, ele virou o mundo de cabeça para baixo.

Richard sabia que estava quebrando a aliança pelas razões certas, mas agonizava por causa daquilo que Kahlan pensaria. Ela o amava, e entenderia, disse para si mesmo. Tinha que entender.

Queridos espíritos, o que Zedd pensaria?

Os braços dele descansavam pesadamente onde os braços de Kahlan estiveram. Imaginou os braços dela em volta dele, agora, como aconteceu na noite anterior naquele lugar entre os mundos. Não pensou que alguma vez em toda sua vida tivesse ficado tão feliz assim, ou sentido que fosse tão amado.

Pensou ter ouvido alguém dizendo que ele deveria procurar uma cama, mas ele já estava dormindo.

 

Independente do fato de ter encontrado várias milhares de tropas D'Haran cercando seu Palácio ao retornar, Tobias estava de bom humor. As coisas estavam acontecendo de maneira magnífica. Não do jeito que tinha planejado naquela manhã, mas de qualquer modo magnífica. Os D'Harans não fizeram qualquer esforço para impedir sua entrada, mas avisaram que seria melhor ele não sair novamente naquela noite.

A insolência deles era irritante, mas ele estava mais interessado na velha que Ettore estava preparando do que na ausência de protocolo dos D'Harans. Tinha perguntas e estava impaciente para obter as respostas. Agora ela já estaria pronta para fornecer elas; Ettore era bem treinado em sua arte. Muito embora essa fosse a primeira vez que ele conseguiu conquistar a confiança para cuidar dos preparativos para um interrogatório sem um irmão mais experiente controlando sua mão, aquela mão já tinha provado ser talentosa e firme na tarefa. Ettore estava mais do que pronto para a responsabilidade.

Tobias bateu a neve de sua capa sobre o tapete vermelho e dourado, não se importando em limpar as botas antes de marchar pela sala de entrada em direção aos corredores que conduziam até as escadas. Os corredores largos estavam iluminados por lamparinas penduradas diante de refletores prateados polidos que lançavam raios de luz ondulantes que dançavam sobre as obras em madeira banhadas com ouro. Guardas com capas vermelhas patrulhando o Palácio tocaram com as pontas dos dedos nas testas enquanto faziam reverência, Tobias não se preocupou em responder as saudações.

Com Galtero e Lunetta logo atrás, ele avançou dois degraus por vez. Enquanto as paredes no nível principal estavam enfeitadas com painéis adornados por quadros da realeza de Nicobarese e tapetes decorados descrevendo suas façanhas amplamente fictícias, as paredes no nível inferior eram simples blocos de pedra, frios para os olhos assim como ao toque. A sala para onde ele se dirigia, porém, estaria quente.

Enquanto alisava seu bigode, ele se encolheu com a dor em seus ossos. O frio parecia fazer suas juntas doerem mais ultimamente. Avisou a si mesmo para ficar mais preocupado com o trabalho do Criador e menos com questões mundanas. O Criador havia lhe abençoado com mais do que uma boa quantidade de ajuda esta noite; isso não deveria ser desperdiçado.

Nos níveis superiores os corredores estavam bem guardados pelos homens do destacamento, mas descendo as escadas os corredores sombrios estavam vazios; não havia caminho para dentro ou para fora do Palácio nos níveis inferiores. Galtero, sempre vigilante, observou o corredor do lado de fora da porta que levava até a sala de interrogatório. Lunetta esperou pacientemente com um sorriso. Tobias falou que ela fez muito bem, especialmente com o último feitiço, e ela era um reflexo brilhante das boas graças dele.

Tobias entrou na sala e ficou cara a cara com o largo sorriso familiar de Ettore.

Os olhos, entretanto, estavam cheios com a morte.

Tobias congelou.

Ettore estava pendurado por uma corda amarrada em cada uma das pontas de um pino de ferro enfiado através dos seus ouvidos. Os pés dele balançavam acima de uma poça escura coagulada.

Havia um corte limpo feito por uma lâmina de um lado a outro no meio do pescoço dele. Abaixo daquilo, cada polegada dele teve sua pele arrancada. Tiras pálidas dela formavam uma pilha úmida em um canto.

Uma incisão logo abaixo das costelas estava aberta. No chão, em frente ao seu corpo que balançava lentamente estava o fígado dele.

Tinha algumas pequenas mordidas em cada lado. As mordidas em um lado estavam margeadas por rasgões irregulares deixados por dentes mais largos; no outro lado estavam marcas de dentes menores.

Brogan girou com um gemido de fúria e bateu em Lunetta com a costa de uma das mãos. Ela atingiu a parede ao lado da lareira e escorregou até o chão.

— Isso ser culpa sua, Streganicha! Isso ser culpa sua! Deveria estar aqui e tomar conta de Ettore!

Brogan ficou parado, com os punhos abaixados, olhando com raiva para o corpo sem pele de um dos integrantes do Sangue da Congregação. Se Ettore não estivesse morto, Brogan o mataria, apenas com suas mãos se fosse necessário, por ter deixado aquela bruxa velha escapar da justiça. Deixar um Baneling escapar era imperdoável. Um verdadeiro caçador de Baneling mataria a coisa maligna antes de morrer, não importa o que fosse necessário. O sorriso zombeteiro de Ettore deixou ele irado.

Brogan golpeou o rosto frio. — Você falhou conosco, Ettore. Você está expulso da Congregação com desonra.

— Seu nome será eliminado da lista.

Lunetta se encolheu contra a parede, segurando a bochecha que sangrava. — Falei para você que deveria ficar e tomar conta dele. Eu falei.

Brogan olhou para ela zangado. — Não venha com suas desculpas sujas, Streganicha. Se você sabia quanto problema a velha bruxa causaria, então deveria ter ficado.

— Mas eu disse que deveria ficar. — Ela enxugou as lágrimas dos olhos. — Você me obrigou a ir com você.

Ele a ignorou e virou para seu Coronel. — Pegue os cavalos. — ele sibilou com os dentes cerrados.

Deveria matá-la. Agora mesmo. Deveria cortar a garganta dela e acabar com isso. Estava cansado da corrupção desprezível dela. Esta noite isso tinha custado a ele informação valiosa. A velha, agora ele tinha certeza, teria sido uma grande fonte de informação. Se não fosse por causa da sua irmã abominável, ele teria tudo isso.

— Quantos cavalos, Lorde General?— Galtero sussurrou.

Brogan observou sua irmã levantando, recuperando a compostura dela enquanto limpava o sangue da bochecha. Deveria matá-la. Agora mesmo.

— Três. — Brogan rosnou.

Galtero tirou uma clava do meio das ferramentas de interrogatório antes de passar pela porta, silencioso como uma sombra, e desapareceu descendo o corredor. Os guardas obviamente não tinham visto ela, embora com Banelings isso necessariamente não significasse nada, mas sempre era possível que a velha ainda pudesse estar por perto. Não era necessário dizer a Galtero que se ela fosse encontrada deveria ser capturada viva.

Uma vingança impetuosa com uma espada não traria nenhum benefício. Se ela fosse encontrada, seria capturada viva, e interrogada. Se fosse encontrada, pagaria o preço de sua abominação, mas contaria tudo que sabia, primeiro.

Se ela fosse encontrada. Ele olhou para sua irmã. — Você sente a presença dela em algum lugar perto?

Lunetta balançou a cabeça. Ela não estava coçando os braços. Mesmo se não houvesse cerca de duas mil tropas D'Haran ao redor do Palácio, com a tempestade forte como estava seria impossível seguir os rastros de alguém. Além disso, não importa o quanto ele desejasse pegar a velha, Brogan tinha uma presa mais profana ainda para caçar. E havia a questão do Lorde Rahl. Se Galtero encontrasse a velha, muito bom, mas se não, eles não poderiam desperdiçar tempo em uma caçada difícil e provavelmente infrutífera. Banelings dificilmente eram raros; sempre haveria outro. o Lorde General do Sangue da Congregação tinha trabalho mais importante para fazer: o trabalho do Criador.

Lunetta mancou até o lado de Brogan e passou um dos braços na cintura dele. Ela tocou no peito dele.

— Está tarde, Tobias. — ela falou com intimidade. — Venha para cama. Você teve um dia difícil fazendo o trabalho do Criador.

— Deixe que Lunetta faça você se sentir melhor. Você vai ficar contente, eu prometo. — Ele não falou nada. — Galtero teve o prazer dele, deixe que Lunetta forneça o seu. Vou fazer um encantamento para você. — ela ofereceu. — Por favor, Tobias?

Ele considerou aquilo apenas por um momento. — Não há tempo. Devemos partir imediatamente. Espero que tenha aprendido uma lição esta noite, Lunetta. Não vou tolerar seu mal comportamento de novo.

A cabeça dela balançou. — Sim, meu Lorde General. Vou tentar fazer melhor. Vou fazer melhor. Você vai ver.

Ele a conduziu subindo, para fora dos níveis inferiores, até a sala onde havia conversado com as testemunhas. Guardas estavam na frente da porta. Do lado de dentro, de cima da mesa comprida, ele pegou seu estojo de troféus e enfiou no cinto. Seguiu na direção da porta, mas virou. A moeda de prata que ele deixou sobre a mesa, aquela que a velha deu para ele, desapareceu. Ele olhou para um guarda.

— Suponho que ninguém entrou aqui esta noite, depois que eu saí?

— Não, Lorde General. — o guarda imóvel respondeu. — Nenhuma alma.

Brogan grunhiu para si mesmo. Ela esteve aqui. Pegou de volta sua moeda para deixar uma mensagem para ele.

Em seu caminho na saída, não se preocupou em questionar qualquer um dos outros guardas; eles também não teriam visto nada. A velha e sua pequena companheira desapareceram. Tirou-as da cabeça e concentrou-se nas coisas que precisavam ser feitas.

Brogan caminhou pelos corredores até a parte de trás do Palácio, onde havia uma pequena área de terreno aberto até os estábulos. Galtero saberia juntar as coisas que precisavam para uma jornada, e estaria com três dos melhores cavalos selados. Certamente havia D'Harans ao redor de todo o Palácio, mas com a escuridão e a neve lançada pelo vento, certamente seria possível que ele e Lunetta chegassem até os estábulos.

Brogan não falou nada para os homens; se ele fosse atrás da Madre Confessora, só os três poderiam ir. Com a tempestade, três poderiam conseguir escapulir, mas todo o destacamento não. Aquela grande quantidade de homens certamente seria vista e confrontada, haveria uma batalha, e provavelmente todos eles seriam mortos. O Sangue da Congregação era formado por guerreiros ferozes, mas não eram páreo para o número de D'Harans. Pior, pelo que ele tinha visto os D'Harans estavam acostumados com a batalha. Era melhor simplesmente deixar os homens aqui como uma distração. Eles não poderiam cometer traição contando o que não sabiam.

Brogan abriu a grossa porta de carvalho e deu uma espiada para a noite lá fora. Viu apenas neve girando iluminada pela luz fraca que vinham de algumas das janelas na parte de trás do segundo andar. Ele teria apagado as lamparinas, mas precisava da pouca luz que elas forneciam para encontrar os estábulos que não eram familiares no meio da tempestade.

— Fiquem perto de mim. Se formos confrontados por soldados eles tentarão nos impedir de partir. Não podemos permitir que isso aconteça.

Devemos seguir atrás da Madre Confessora.

— Mas, Lorde General...

— Fique quieta. — Brogan disparou. — Se eles tentarem nos deter, é melhor você conseguir abrir caminho. Entendeu?

— Se tiver muitos, eu só posso...

— Não me teste, Lunetta. Você disse que faria melhor. Estou lhe dando essa chance. Não falhe comigo de novo.

Ela apertou suas bonitinhas com mais força. — Sim, Lorde General.

Brogan apagou a lamparina do lado de fora do corredor e então empurrou Lunetta pela porta para fora no meio da nevasca, caminhando junto com ela com dificuldade. Agora Galtero já estaria com os cavalos selados. Eles só precisavam chegar até os cavalos. No meio dessa neve, os D'Harans não teriam tempo para enxergar eles se aproximando ou para detê-los assim que eles estivessem sobre os cavalos. A forma escura do estábulo ficou mais próxima.

Saindo da neve, formas começaram a aparecer. Soldados. Quando avistaram ele, gritaram para seus colegas e ao mesmo tempo sacaram as espadas. As vozes deles não chegavam longe no vento uivante, mas eram o bastante para indicar um grupo de homens.

Estavam ao redor deles. — Lunetta, faça alguma coisa.

Ela curvou um braço com os dedos em forma de garra quando começou a emitir um feitiço, mas os homens não hesitaram. Correram adiante com as armas erguidas. Ele se encolheu quando uma flecha passou perto de sua bochecha. O Criador havia lançado uma rajada de vento que afastou a seta, poupando ele. Lunetta agachou enquanto flechas passavam.

Vendo homens correndo na direção dele de todas as direções, Tobias sacou sua espada. Pensou em voltar para o Palácio, mas aquele caminho também estava bloqueado. Havia homens demais. Lunetta estava tão ocupada tentando desviar as flechas que não conseguia lançar um feitiço para protegê-los. Ela gemeu de medo.

Exatamente tão repentinamente quanto as flechas tinham começado, elas pararam. Tobias ouviu gritos carregados pelo vento. Agarrou o braço de Lunetta e correu através dos montes de neve, esperando conseguir chegar até os estábulos. Galtero estaria lá.

Vários homens moveram-se para bloquear o caminho dele. O que estava mais perto gritou quando uma sombra passou na frente dele. O homem caiu com o rosto na neve. Tobias observou confuso enquanto os outros homens começaram a balançar as espadas no vento.

O vento cortou eles sem misericórdia.

Tobias parou de repente, piscando com aquilo que estava vendo. D'Harans ao redor dele estavam caindo. Gritos flutuavam no meio do vento uivante. Ele viu neve manchada de vermelho. Viu homens caindo, derramando suas entranhas.

Tobias lambeu os lábios, com medo de se mover pensando que o vento poderia acertar ele também. Os olhos dele disparavam em todas as direções enquanto tentava entender o que estava acontecendo, tentava ver os atacantes.

— Querido Criador. — ele gritou — Poupe-me! Eu faço o seu trabalho!

Homens estavam convergindo para os estábulos de todas as direções, e estavam sendo derrubados tão rapidamente quanto surgiam. Cerca de cem cadáveres já cobriam o terreno. Ele nunca tinha visto homens mortos com tanta velocidade ou brutalidade.

Tobias se agachou, e ficou assustado ao perceber que as entranhas estavam se movendo deliberadamente.

Elas estavam vivas. Começou a perceber eles. Homens com capas brancas deslizavam em volta dele, atacando os soldados D'Haran com velocidade e graça mortal. Nenhum dos D'Harans tentou fugir; todos avançavam com ferocidade, mas nenhum deles conseguia acertar o inimigo antes que fossem mortos rapidamente.

A noite ficou silenciosa a não ser o barulho do vento. Antes que houvesse tempo para correr, estava acabado. O chão estava cheio com um emaranhado de formas escuras imóveis. Tobias girou, mas não viu ninguém vivo. A neve já estava começando a se acumular sobre os corpos. Após mais uma hora eles desapareceriam sob a fúria branca.

Os homens com capas deslizavam suavemente pela neve, de forma graciosa e ondulante, movendo-se como se fossem formados pelo vento. Enquanto eles se aproximavam dele, a espada escorregou dos seus dedos dormentes. Tobias queria dizer a Lunetta para derrubá-los com um feitiço, mas quando eles entraram na luz, sua voz falhou.

Eles não eram homens.

Escamas da cor da neve ondulavam sobre músculos ondulantes. Pele lisa cobria cabeças sem cabelo e sem ouvidos com pequenos olhos brilhantes. As bestas vestiam apenas roupas de peles sob capas que esvoaçavam ao vento, e em cada uma das mãos eles seguravam facas com três lâminas manchadas de sangue.

Eram as criaturas que tinha visto empaladas nos postes do lado de fora do Palácio das Confessoras. As criaturas que Lorde Rahl matou: Mriswith. Por ter visto eles assassinarem todos esses soldados experientes, Tobias não conseguia imaginar como Lorde Rahl, ou qualquer um, poderia ter vencido um deles, muito menos a quantidade que viu.

Uma das criaturas seguiu na direção dele, observando com olhos que não piscavam. Ela parou, a menos de dez pés de distância.

— Partam. — o Mriswith sibilou.

— O quê?— Tobias perguntou.

— Partam. — Ela golpeou o ar com sua faca semelhante a uma garra, um movimento rápido e gracioso com destreza mortal.

— Esssscapem.

— Por quê? Porque fariam isso? Porque querem que escapemos?

A boca sem lábios cresceu, imitando um sorriso horrível. — O Andarilho dos Sonhosss quer que vocês esssscapem.

— Vão, agora, antes que mais andarilhossss de pele apareçam. Vão.

— Mas...

Com um braço cheio de escamas, o Mriswith puxou sua capa contra o vento, virou, e desapareceu dentro da neve que soprava.

Tobias observou dentro da noite, mas o vento estava vazio e sem vida.

Porque tais criaturas desprezíveis desejariam ajudá-lo? Porque matariam os inimigos dele? Porque iriam querer que ele escapasse?

A compreensão lhe ocorreu de forma súbita e calorosa. O Criador os enviou, é claro. Como ele poderia ter sido tão cego? Lorde Rahl falou que matou os Mriswith. Lorde Rahl lutava pelo Guardião. Se os Mriswith fossem criaturas malignas Lorde Rahl lutaria ao lado deles, não contra eles.

Os Mriswith disseram que o Andarilho dos Sonhos os enviou. O Criador aparecia para Tobias em seus sonhos. Tinha que ser isso; o Criador os enviou.

— Lunetta. — Tobias virou para ela. Ela estava encolhida atrás dele. — O Criador aparece para mim nos meus sonhos.

— Era isso que eles estavam tentando dizer quando falaram que aquele dos meus sonhos os enviou. Lunetta, o Criador enviou eles para ajudar a me proteger.

Os olhos de Lunetta ficaram arregalados. — O próprio Criador interferiu em nosso benefício para frustrar os planos do Guardião.

— O próprio Criador toma conta de você. Ele deve ter grandes coisas planejadas para você, Tobias.

Tobias pegou sua espada da neve e ficou ereto com um sorriso. — Sem dúvida. Tenho mantido os desejos Dele acima de tudo, e então Ele me protege. Rápido, devemos fazer como os mensageiros Dele disseram. Devemos partir para fazer o trabalho do Criador.

Enquanto andava com dificuldade pela neve, seguindo entre os corpos, ele levantou os olhos para ver uma forma escura saltar repentinamente na frente dele, bloqueando seu caminho.

— Bem, bem, Lorde General, indo a algum lugar? — Um sorriso ameaçador surgiu naquele rosto. — Quer lançar um feitiço em mim, feiticeira?

Tobias ainda estava com sua espada na mão, mas sabia que não seria rápido o bastante.

Ele se encolheu com o som do estalar de osso. O sujeito diante dele caiu de cara na neve aos seus pés. Tobias desviou o olhar para ver Galtero parado com um porrete sobre a figura inconsciente.

— Galtero, você fez por merecer o seu posto esta noite.

O Criador acabara e dar a ele um prêmio que não tinha preço, mostrando a ele, outra vez, que nada estava fora de alcance dos devotos. Felizmente, Galtero teve a presença de espírito de usar um porrete, e não uma lâmina.

Ele viu sangue saindo do golpe, mas também viu um suspiro de vida. — Ora, ora, mas essa está se mostrando uma noite muito boa. Lunetta, você tem um trabalho a fazer em benefício do Criador antes de curar esse aqui.

Lunetta se curvou ao lado da forma imóvel, encostando os dedos no cabelo castanho ondulado manchado de sangue. — Talvez eu deva fazer uma cura primeiro. Galtero ser mais forte do que ele pensa.

— Isso, minha querida irmã, não seria prudente, pelo menos não pelo que ouvi. A cura pode esperar.

Ele olhou para seu Coronel e fez um gesto apontando para os estábulos. — Os cavalos estão prontos?

— Sim, Lorde General, tão rápido quanto você.

Tobias puxou a faca que Galtero deu para ele. — Devemos nos apressar, Lunetta. O mensageiro falou que devemos escapar. — Ele agachou e rolou a figura inconsciente. — E então partiremos atrás da Madre Confessora.

Lunetta se inclinou chegando mais perto, olhando para ele. — Mas Lorde General, eu disse, a teia do mago esconde a identidade dela de nós. Não podemos ver os fios de uma teia como essa. Não vamos reconhecê-la.

Um sorriso distorceu a cicatriz no lado da boca de Tobias Brogan.

— Oh, mas eu vi os fios da teia. O nome da Madre Confessora ser Kahlan Amnell.

 

 

 

 

Como havia temido, ela era uma prisioneira. Virou outra página depois de fazer a escritura apropriada no livro. Uma prisioneira da mais alta posição, uma prisioneira por trás de uma fechadura de papel, mas uma prisioneira apesar de tudo.

Verna bocejou enquanto escaneava a página seguinte, verificando os registros dos gastos do Palácio. Cada relatório requeria sua aprovação e tinha que ser marcado com suas iniciais para mostrar que a própria Prelada havia certificado os gastos.

Porque isso era necessário por ser um mistério para si, mas depois de assumir o cargo por alguns dias ela preferia evitar declarar seria desperdício de seu tempo...

 

                                                                                CONTINUA  

 

 

                      

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