Biblio "SEBO"
SANGUE FRIO
Primeira Parte
Mojo é um termo africano que significa fetiche ou objecto sagrado, o qual tanto pode ser utilizado para o bem como para o mal. Gris-gris, em francês, quer dizer «cinzento-cinzento», é o nome que, em Nova Orleães, se dá à combinação de mojos «pretos» e «brancos», feitos pelos praticantes de vodu para alcançarem os seus objectivos proteger a vida da pessoa a quem o talismã é dado, ficar defendido contra a doença, afastar o mau-olhado de inimigos, evitando assim azares no amor e na vida. Um gris-gris pessoal deve permanecer secreto, pois corre o risco de perder o seu poder se for visto ou tocado por outros que não o dono. Por isso os gris-gris são normalmente usados em contacto com o corpo, à direita pelos homens, à esquerda pelas mulheres.
Anna Louise Caley permaneceu debaixo do chuveiro durante uma boa meia hora, esfregando-se até ter a certeza de que não ficava um centímetro do seu corpo perfeito por limpar. Era capaz de afastar da mente o que fizera nada mais fácil, mas a violência que infligira ao seu corpo é que a preocupava, levando-a a examinar-se cuidadosamente, verificando, satisfeita, que não havia nenhuma escoriação ou qualquer outra marca que denunciasse o que fizera na noite anterior.
Depois de se envolver numa toalha branca macia, voltou a examinar-se, verificando e apalpando os músculos até se dar por satisfeita; em seguida, passou creme e pó de talco pelo corpo e vestiu-se: peúgas brancas de ténis, calcinhas de algodão brancas, fato branco de ténis e, por fim, sapatos de ténis imaculadamente brancos. Depois de apertar os atacadores, escolheu uma das raquetes profissionais que se alinhavam numa fila, desceu o fecho, bateu com a palma da mão na rede fortemente esticada e depois voltou a puxá-lo para cima. Viu-se ao espelho e colocou uma fita elástica na cabeça, para evitar que o longo cabelo louro lhe caísse sobre o rosto.
Anna Louise saiu do seu quarto, impecavelmente arrumado, metendo a toalha que acabara de usar, assim como as peças sujas da noite anterior, no cesto da roupa. Apreciava o facto de não ser como uma adolescente normal, orgulhava-se de ser meticulosamente arrumada e, antes de se dirigir para o campo de ténis, passeou o olhar pelo quarto impecável. Passou pela cozinha, ainda vazia às seis e meia da manhã visto não serem horas de nenhum empregado começar a preparar o pequeno-almoço, e saiu para o exterior, onde um jardineiro ligara já os aspersores e começara a varrer as folhas caídas durante a noite. No entanto, não levantou a cabeça dos seus afazeres quando Anna Louise se dirigiu ao vestiário onde as bolas de ténis estavam guardadas, pegou num enorme cesto cheio delas e depois seguiu para o campo. Primeiro examinou a rede, certificando-se de que se encontrava na altura correcta, depois meteu as bolas dentro da máquina de arremesso automática e marcou a velocidade e a direcção no mostrador. Tirou cuidadosamente a raquete da sua capa e ligou a máquina, pronta a jogar contra ela contra si mesma. Colocou-se na linha, apoiando o seu peso na ponta dos pés, à espera da primeira bola a ser disparada, e depois começou a praticar. Era uma jogadora precisa, rápida, meticulosa e cheia de força, acertando com segurança, bola após bola, até começar a suar com o esforço, cada toque acompanhado por um pequeno gemido de satisfação.
De repente, perdeu a concentração e falhou a bola seguinte, que lhe acertou, violentamente, no peito. Alguém riu e ela reconheceu tanto a gargalhada como a pequena risada discreta que a acompanhou.
As bolas continuaram a sair da máquina, porém Anna Louise ignorou-as e saiu do campo de ténis, dirigindo-se à casa de Verão pelo meio dos arbustos, onde sabia que a sua aproximação não seria vista nem escutada.
Algum tempo depois, estava Anna Louise a bater raivosamente nas últimas bolas disparadas pela máquina, espalhando-as pelo campo de ténis, quando Tilda Brown, sua melhor amiga, abriu o portão que dava para o recinto. Tilda era tão loura e bonita como a amiga e vestia um fato de ténis branco semelhante; Anna Louise, porém, não parou um instante de jogar para dar a entender que notara a sua chegada.
Viva, Anna! gritou Tilda. Desculpa o atraso, estou com uma dor de cabeça terrível. Se calhar esta manhã não jogo, não me sinto nada bem
Compôs uma expressão sofrida.
Anna Louise não respondeu, mas desligou a máquina e pegou no cesto, começando a recolher as bolas espalhadas. Tilda, ainda a queixar-se de uma dor de cabeça, balançou algumas bolas na sua raquete e foi deitá-las no cesto.
Ouviste o que eu disse? Não me apetece jogar. Anna Louise sorriu.
Ah, mas eu tenho estado à tua espera. Quero mostrar-te os progressos da minha backhand.
Foi sempre boa reconheceu Tilda.
Sim, mas agora está melhor retorquiu Anna Louise com indiferença.
Talvez mais tarde! insistiu Tilda que, pegando no cesto, se acercou da máquina, despejando-lhe as bolas para dentro. Deixa que eu volto a carregá-la para ti.
Anna Louise, que voltara para a linha de separação e fazia saltitar uma bola sobre a raquete, tomou de repente balanço e atirou-a contra Tilda, em cujas costas foi embater com violência, o que a fez voltar-se para trás a respirar com dificuldade. A pancada doera-lhe tanto que mal conseguia falar, e a seguinte atingiu-a em cheio no estômago, fazendo-a recuar, vacilante.
Pára com isso, Anna, PÁRA, isso DÓI... MAGOASTE-ME. Anna Louise chegou-se mais perto e disse-lhe:
O Polar que te dê beijinhos para aliviar...
Tilda, amedrontada, começara a chorar; a barriga doía-lhe e sentia as costas a arder. Entretanto, Anna Louise voltou a tomar balanço, pronta a fazer novamente pontaria contra ela. Tilda baixou-se assim que a terceira bola veio disparada na sua direcção.
Que estás a fazer? PÁRA! gritou-lhe. Anna Louise pegou numa quarta bola e sorriu.
Não tens como me escapar, Tilda Brown.
Atirou a bola ao ar, como que para iniciar o jogo. Tilda recuou ainda mais e, ao fazê-lo, foi contra a máquina de arremesso, atingindo o interruptor com o braço. A máquina começou a atirar as bolas com maior velocidade em direcção a Anna Louise, que, rindo, manuseava a raquete em perfeita sincronização, fazendo pontaria para Tilda; esta, agachada, gritava e corria de um lado para o outro, a fim de tentar escapar à chuva impiedosa de bolas de ténis, até acabar por se encolher, a soluçar, atrás da rede.
Nem mesmo a protecção da rede impedia que as bolas fossem bater com força nos seus braços e pernas, e Anna Louise, que começara por fazer pontaria ao corpo da amiga, desviou-a então para o seu rosto.
Pára com isso, por favor, pára soluçou Tilda, erguendo a cabeça e dirigindo-se a Anna Louise, a qual se aproximara, olhando-a do alto da sua estatura.
Mantém-te afastada dele, Tilda, porque é meu. Se volto a ver-te com ele, farei com que te arrependas; ficarás muito mais magoada do que com as bolas de ténis, irás sofrer tanto, Tilda Brown, que hás-de desejar morrer...
Tilda chorava como uma criança pequena, aterrorizada tanto pelas ameaças verbais de Anna Louise como pela sua violência, e foi com alívio que reconheceu a pessoa que se aproximava delas. Anna Louise, que também a viu, desferiu uma última pancada rápida com a raquete na cabeça de Tilda, de lado, antes de a baixar, sorrindo candidamente e alterando por completo o seu comportamento.
Viva, querida cumprimentou Robert Caley, sorrindo à filha e reparando depois em Tilda, lavada em lágrimas. O que aconteceu, Tilda?
Anna Louise deu o braço ao pai.
A culpa foi minha... Conheces aquele meu golpe de mão, papá? Pois não é que a pobre Tilda se colocou mesmo na trajectória da bola e... Mas tu também és parcialmente culpado por me teres ensinado a atirar com tanta força. Não foi minha intenção acertar-lhe, acho que o problema é ela não estar ao meu nível.
Robert Caley rodeara os ombros da filha com um dos braços e estendera a outra mão a Tilda, preocupado.
Estás bem, querida?
Tilda não o fitou nos olhos mas levou a mão à cabeça, apalpando o alto que nascera no sítio onde Anna Louise a atingira.
Quero voltar para casa ainda hoje, Mister Caley disse em voz baixa mas firme.
É uma palermice dela... por ter perdido o jogo declarou Anna Louise, petulante.
Tentou manter-se agarrada ao braço do pai para o impedir de ir atrás de Tilda; ele, porém, libertou-se e ajudou a jovem a levantar-se, para grande fúria sua, acompanhando-a depois até ao exterior do campo e, a seguir, até casa. A jovem espatifou a raquete contra o piso alcatroado do campo, examinando-a a seguir, temendo haver estragado uma das suas preferidas. Havia longos fios do cabelo de Tilda presos entre as malhas.
Tilda fez as malas e recusou-se a falar com Anna Louise através da porta trancada do seu quarto, dizendo-lhe apenas que voltaria imediatamente para casa. Anna Louise tentou demovê-la, dizendo que estava arrependida, que não fora sua intenção ser má, mas Tilda não lhe abriu a porta. Anna Louise estava preocupada com o que a amiga poderia contar à mãe, começando a pensar que, afinal, quanto mais depressa a outra se fosse embora, melhor.
Está bem, vai-te embora, Tilda Brown admitiu furiosamente.
Apesar de tudo, sentia-se suficientemente preocupada para se dar ao cuidado de ir ter com a mãe. Certamente, Tilda desejaria despedir-se dela e o mais provável era contar-lhe mentiras. Anna Louise bateu à porta da suite da mãe e aguardou; era muito frequente de manhã manter-se trancada, pois Elizabeth Caley detestava que a vissem sem maquilhagem, mesmo tratando-se da própria filha. Anna Louise bateu de novo e depois entrou: todas as cortinas estavam corridas e o quarto encontrava-se mergulhado na escuridão. Chamou a mãe, mas como não recebesse resposta, pensou que esta ainda dormisse ou, pior, já tivesse descido e falado com Tilda. Atravessou apressadamente a saleta que ia dar ao quarto da mãe.
Mãe sussurrou, premindo o ouvido contra a porta e escutando. Estás acordada, mãe? Sou eu, a Anna Louise.
Entreabriu a porta do quarto e espreitou, ajustando os olhos à obscuridade. Depois voltou a chamar suavemente, mas viu que as cobertas da cama estavam puxadas para trás. A sua mãe tinha a fama de ficar ainda mais furibunda se fosse acordada quando estivesse a dormir do que se a surpreendessem sem maquilhagem. Sofria de insónias terríveis e o seu sono era precioso, ainda que, raras vezes, natural.
Anna Louise olhou na direcção da porta da casa de banho e ouviu o som suave da água do banho a correr. Ia a sair quando reparou na luz tremeluzente de uma vela acesa em cima da mesinha-de-cabeceira da mãe. Como a chama estava demasiado viva, aproximou-se para ver se haveria algum perigo, longe de a mover alguma curiosidade.
O gris-gris fora consagrado, pois encontrava-se em cima de uma Bíblia preta de ar muito usado, ladeada à esquerda por um saco minúsculo de sal e, à direita, por uma garrafinha verde de água. Por cima da Bíblia estava uma vela azul, que representava o elemento fogo, a gotejar sobre o respectivo candelabro; por baixo do livro via-se um quadradinho de incenso de odor agradavelmente adocicado, símbolo do ar. Anna Louise sentiu os pêlos da nuca eriçarem-se ao abrir o saquinho do grís-gris; olhou para o conteúdo, ignorando o seu significado e o que representava ter visto e tocado num gris-gris consagrado. Fascinada, pegou na velha Bíblia e abriu-a no sítio da marca inserida: escrita numa caligrafia antiquada, e com uma tinta que de preta passara a castanha por acção do tempo, encontrava-se uma inscrição dirigida a Elizabeth Seal nome de solteira de sua mãe. Anna Louise voltou a colocar cuidadosamente o livro no lugar, folheando as páginas muito finas até se certificar de que ficava na mesma posição em que o encontrara.
De volta ao seu quarto, por ter a impressão de que os dedos lhe cheiravam a mofo, encheu o lavatório de água quente e lavou as mãos com sabão. Estava a secá-las quando ouviu a mãe a chamá-la, o que a levou de novo até à suite.
A Tilda quer voltar hoje para casa observou Elizabeth, brincando com a colherinha de prata que estava no seu tabuleiro do pequeno-almoço. O que é um disparate visto irmos todos embora amanhã.
Anna Louise sentou-se na beira da cama da mãe e reparou que não havia vestígios do que vira sobre o tampo da mesa-de-cabeceira.
Oh, tivemos uma discussão, mas depois faremos as pazes. Como estava ansiosa por mudar de assunto, perguntou com ar preocupado: Como te sentes hoje?
Estou bem, querida. Agora vai falar com a tua amiga e diz-lhe que é um disparate ela ir-se embora, já que amanhã partimos todos para Nova Orleães.
Está bem, falarei com ela. Queres que leve o tabuleiro?
Hum... Ainda vou dormir mais um pouco, tive uma noite difícil. Beijinho?
Anna Louise inclinou-se para depositar um beijo na face da mãe e em seguida pegou no tabuleiro e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Quando Anna Louise foi pôr o tabuleiro da mãe na cozinha, Tilda já se fora embora, o que não a preocupou. Depois faria as pazes com ela, comprar-lhe-ia um presente caro. Deambulou pela cozinha, onde Berenice, a cozinheira, acabara de tirar do forno um tabuleiro de muffins de groselha-preta, e começou a depenicar um deles com os dedos, recordando o estranho cheiro a mofo da Bíblia que vira no quarto da mãe.
A Tilda falou-me de qualquer coisa esquisita, uma coisa que viu... principiou com ar casual, continuando a retirar bocadinhos da crosta tostada do muffin.
Berenice, que estava a esvaziar a máquina de lavar louça, não prestou grande atenção à filha dos patrões, movimentando-se de um lado para o outro a arrumar as peças limpas nos armários. Encheu um copo de leite para Anna Louise e colocou-o em cima da mesa.
Via-se bem que Miss Tilda tinha uma ralação qualquer, chorava que nem uma Madalena. Pensámos que, se calhar, recebera más notícias disse, continuando a guardar a louça limpa.
Que significado tem um conjunto formado por uma Bíblia, uma vela azul e uns saquinhos esquisitos com sal e incenso? Sabes como são... parecem aqueles gris-gris que vendem lá na terra...
A porta do armário bateu estrepitosamente.
Nem queira saber, Miss Anna Louise, e pare de depenicar esses muffins. Se quer um, tire-o.
Que quer isso dizer?
A cozinheira começara a guardar os talheres, esfregando rapidamente um de cada vez com um pano antes de o meter na gaveta.
Bem, depende da maneira como a cruz está colocada sobre a Bíblia.
Ah, afinal sabes que significado tem.
O que eu sei é que se a menina e Miss Tilda andam a brincar com essas coisas, mais vale pararem com esse disparate. Isso é vodu e ninguém deve brincar com o que desconhece, pois o mal arranja maneira de entrar dentro de uma pessoa como se fosse uma enorme serpente negra. Mete-se na nossa barriga e nunca se sabe quando é que irá desenrolar-se e cuspir... e quando se toca no gris-gris de outra pessoa, é contar com muitos problemas.
Anna Louise retirou um bom pedaço ao muffin e enfiou-o todo na boca.
Tu não acreditas nessas tretas, pois não?
Bebeu um gole de leite mas engasgou-se, começando a tossir violentamente. Arquejou, ficando com os olhos cheios de lágrimas e a cara muito vermelha. Não conseguia respirar, tinha a sensação de estarem a asfixiá-la, e foi preciso Berenice dar-lhe uma pancada forte no meio das costas para conseguir expulsar o bocado de bolo da garganta e, finalmente, respirar. A cozinheira foi buscar toalhas de papel para limpar a mesa.
Vê, o que foi que eu lhe disse sobre a tal serpente? Ela acabou de entrar e cuspir, por pouco não a sufocou, portanto preste atenção ao que eu lhe digo e não brinque com essas coisas.
Quando se voltou, Anna Louise desaparecera, o que a fez ir até ao vestíbulo, a tempo de ver a jovem a correr pelas escadas acima.
A menina está bem, Miss Anna Louise?
Anna Louise olhou para baixo e inclinou-se sobre o corrimão, segredando-lhe:
Estava no quarto da minha mãe e quem o viu fui eu e não a Tilda!
De repente, desatou a rir e continuou pelas escadas acima, não reparando no medo que, de repente, se espelhara no rosto de Berenice; esta enfiou a mão dentro do uniforme para apalpar o seu próprio gris-gris. Estava em segurança, debaixo da combinação, à esquerda, sobre o coração.
Berenice voltou para a cozinha. Aquela menina, tola e mimada, não fazia ideia do que se passava naquela casa, e oxalá nunca fizesse. Limpou a mesa e acabou de guardar a louça, deitando depois o resto dos muffins para o caixote do lixo. Depois faria nova fornada, não fosse dar-se o caso de alguma gota do veneno que a serpente cuspira da boca de Anna Louise Caley ter caído nalgum deles. Havia riscos que mais valia não correr.
Na manhã seguinte, Anna Louise seguiu de avião de Los Angeles para Nova Orleães, acompanhada pelos pais. Estava-se a 15 de Fevereiro e, no dia seguinte, 16, foi oficialmente dada como desaparecida. Tanto a Polícia de Los Angeles como a de Nova Orleães tentou localizá-la, mas em vão, o que levou os pais a contratar detectives particulares.
As semanas transformaram-se em meses não apareceu nenhum corpo nem qualquer pedido de resgate, e nem mesmo o empenho de agências de investigação de alto gabarito foi suficiente para descobrir a menor pista sobre o paradeiro ou o corpo da rapariga desaparecida. Nove meses depois do sumiço de Anna Louise, este deixou de ser notícia e a jovem tornou-se, para todos os efeitos, mais um elemento de estatística, mais uma fotografia no ficheiro das pessoas desaparecidas.
Decorreram onze meses e os pais de Anna Louise, desesperados, vendo que não aparecia nenhuma informação, pensaram que a filha fora assassinada. Nessa altura, mais de quinze agências de investigação haviam-se envolvido no caso, o Mississipi fora dragado e as terras pantanosas da Luisiana passadas a pente fino por helicópteros. A Agência Agnews, juntamente com outras três, menos conhecidas, ainda prosseguia a busca: os Caley haviam gasto milhões de dólares, mas o facto não trouxera à luz do dia qualquer motivo suspeito ou resultado. Aos pais inconsoláveis nada mais restou do que ficarem à espera de que aparecesse algum sinal de que a sua linda Anna Louise ainda estivesse viva.
Todas as agências envolvidas ganharam muito dinheiro e algumas trocaram mesmo informações entre si, mas o filão de ouro de Anna Louise Caley estava a chegar ao fim. O negócio começara a ficar fraco para os detectives privados era um trabalho difícil, onde os contactos e as recomendações por conhecimento eram indispensáveis, como a Agência de Investigação Page, uma modesta agência de detectives, descobrira da pior maneira. Até mesmo alcançar o degrau mais baixo numa escala tão competitiva mostrara ser impossível, e a tentativa arruinara financeiramente Lorraine Page, cuja agência mergulhara, virtualmente, na bancarrota.
Embora tivesse sido tenente das forças policiais, a sua própria história pessoal de alcoolismo e o facto de ter morto a tiro um rapaz desarmado, quando estava de serviço e embriagada, significara que, em vez de ser bem acolhida na irmandade dos detectives particulares, fora posta completamente à margem tal como acontecera quando fora expulsa da Polícia de Los Angeles. O mais difícil era dizer a Rosie, a assistente a quem Lorraine chamava sócia na brincadeira, que estavam na falência. Aquela querida Rosie, que ainda não perdera a esperança, que ainda achava que o negócio melhoraria... O problema era nunca ter existido negócio algum. Não havia nada a partir do qual melhorar, tudo fora um jogo, até mesmo um sonho, agora definitivamente terminado.
Lorraine segurava no auscultador, ouvindo, meio ausente, quem lhe falava do outro lado, e perguntava a si mesma se seria naquela noite que arranjaria coragem de colocar Rosie ao corrente da realidade sabia que tinha de o fazer, mais dia menos dia. Escutou a voz grossa e arrastada do homem que fazia referências incoerentes ao falecimento da mulher, intercalando dois «lamento muito» pelo meio da conversa.
Rosie, uma mulher de formas generosas e senhora de um rosto bondoso e franco, ia lendo o seu horóscopo, com uma chávena de café e dois queques de chocolate ao lado. Lançara uma olhadela a Lorraine quando o toque do telefone cortara o silêncio do escritório e suspirara quando lhe ouvira a saudação extremamente amável.
Ora viva, Bill, como é que isso vai?
Rosie andara a tentar uma dieta nova: proteínas numa refeição, hidratos de carbono noutra, fruta quarenta minutos antes e depois de cada refeição e abstenção total de gorduras e fritos. Aguentara um mês e sentira-se melhor com a perda de alguns quilos, mas naquele dia decidira permitir-se uns queques de chocolate, o que a fazia detestar-se a si própria a cada dentada. Ainda assim, era dos tais dias em que se sentia incapaz de enfrentar outro peito de frango sem a pele dourada e estaladiça e as batatas fritas, ou outra salada sem tempero. Além de que um mês inteiro sem pão fresco, de côdea bem torradinha e prodigamente barrado com manteiga de amendoim, tornara-se um inferno.
Lorraine conseguiu, por fim, pousar o auscultador.
Era o Bill Rooney murmurou, acendendo um cigarro. A mulher morreu.
Não sabia que ele tinha mulher admirou-se Rosie, baixando a revista que estava a ler.
Não creio que tivesse retorquiu Lorraine, contando as pontas de cigarro que estavam no cinzeiro. Suspirou e recostou-se na cadeira. Bastava-lhe virar ligeiramente a cabeça para ver o letreiro barato à entrada da porta do escritório, onde se lia em letras douradas: «Agência de Investigações Page». Em cima da sua secretária também havia uma resma de cartões de visita com a mesma inscrição. Tudo uma farsa.
Bem, mais um dia cheio de investigações exaustivas que chegou ao fim observou Rosie, dando uma dentada no bolo e olhando para o relógio digital que lhe tinham oferecido como brinde na compra de umas panelas antiaderentes. Eram quase seis da tarde. Alheia à mancha de chocolate que tinha na bochecha esquerda, olhou para Lorraine, vendo-a inspirar profundamente o seu trigésimo, ou trigésimo e tal, cigarro do dia. Passeava o olhar a esmo pelo pequeno escritório pintado de branco. Rosie detestava vê-la assim, de expressão vazia. Às vezes, os seus silêncios duravam mais de uma hora e Rosie nunca sabia o que passava pela cabeça da colega. Esperava que não fosse mais um dos seus acessos de mau humor. Devias cortar no tabaco observou, com a boca cheia.
E tu nos doces ripostou-lhe Lorraine, olhando para o cesto de papéis cheio de formas em folha de alumínio já vazias.
Eu não fumo, portanto é de esperar que precise de açúcar. E representa apenas metade em relação ao alcoolismo, que, como tu sabes, também é ânsia de açúcar.
Lorraine afastou a sua estafada cadeira de dactilógrafa da secretária vazia.
Ah é? Olha que interessante. E que me dizes dos hambúrgueres e das batatas fritas? Também os comes pela ânsia de açúcar?
Por amor de Deus, não comeces a implicar comigo! Tu e o teu arroz integral e as tuas vitaminas fazem-me vómitos.
Se calhar faziam-te bem!
Rosie voltou a acomodar melhor o traseiro avantajado na cadeira de escritório comprada por catálogo.
Pronto, fiquemos por aqui.
Pois é, realmente acho que ficamos mesmo por aqui, Rosie.
Era difícil explicar o facto de, a cada dia que passava, Lorraine se sentir mais isolada, apesar de, em termos físicos, não ser assim: Rosie e o grande Bill Rooney estavam sempre presentes. Não era que não tivesse ninguém com quem falar, com quem contactar era, simplesmente, a impressão que tinha. A sua mente parecia atrofiar-se, fazendo-a sentir-se vazia, letárgica; às vezes, a simples sensação crescente de completa solidão dava-lhe vontade de chorar, ou seria de falta de amor? Fosse o que fosse, estava a ter um efeito cada vez mais destrutivo nela e ameaçava arrastá-la para o fundo.
Lorraine passou a mão ao de leve na velha persiana que não encaixava muito bem na janela. Olhou disfarçadamente para a companheira anafada ao esmagar a ponta do cigarro. Nem sequer tinha uma casa só sua; partilhava o pequeno apartamento de Rosie num bairro de má fama, nas redondezas de Orange Grove. Tinha trinta e sete anos, quase seis deles perdidos num mar de droga e alcoolismo, e havia ocasiões, sobretudo como naquela tarde, em que achava que era tudo uma perda de tempo; na realidade, ela nunca voltaria a trabalhar na única coisa que sabia ou soubera fazer nos seus tempos de polícia.
As duas mulheres tinham-se conhecido numa altura em que Lorraine recuperava de um acidente quase fatal de atropelamento e fuga. O que estivera prestes a matá-la não fora o veículo, mas sim o alcoolismo e a degradação física. Naquele momento fazia quase dois anos que se mantinha sóbria e tentava reorganizar a vida. O facto de ter alcançado o posto de tenente no Departamento de Homicídios de Pasadena proporcionara-lhe não só experiência de campo como também de detective, e fora considerada uma agente muito competente. «Fora» era a palavra adequada, pois a bebida tomara conta da sua vida e custara-lhe o marido que amara e as duas filhas que adorava.
Em que estás a pensar? perguntou Rosie, mostrando-se muito interessada na leitura da sua revista.
Em nada respondeu Lorraine, o que, obviamente, não correspondia à verdade. Não sabia se devia tentar nova reconciliação com as filhas. Mais uma vez, como sempre acontecia quando pensava nelas, concluiu que ficavam melhor sem que ela se intrometesse na sua vida, uma vida da qual não fazia parte há muitos anos. Além disso, o ex-marido voltara a casar, as raparigas tratavam a madrasta por «mãe» e nem sequer mostravam vontade de a ver.
Rosie voltou a concentrar-se na revista. Os suspiros fundos de Lorraine faziam-na ter consciência de que algo estava para acontecer; no entanto, nada disse, limitando-se a folhear as páginas até se deter numa onde se anunciava uma nova dieta que garantia perda de peso a quem encomendasse umas novas «bebidas adelgaçantes» a preço módico. Mas como ela já experimentara a maioria das dietas, incluindo «bebidas adelgaçantes», passou à frente, detendo-se numas amostras de tricô.
Isto é uma farsa e tu sabe-lo tão bem como eu. Por outras palavras, não sei que mais havemos de fazer. Quantos anúncios mais poderemos pôr se não arranjarmos nenhum cliente até ao final da semana?
«Lá vem», pensou Rosie, ficando de má catadura.
Todas as semanas dizes o mesmo.
Detestava que Lorraine se pusesse com aquela conversa, por um lado porque sabia que era verdade, por outro porque ficava com medo, medo de que Lorraine se fosse embora, medo de que, sem ela, voltasse à bebida e a amiga fizesse o mesmo.
Temos de enfrentar a realidade insistiu Lorraine, remexendo no interior do maço de cigarros vazio na esperança de ainda lá encontrar alguma coisa. Como não havia nada, voltou a olhar para as pontas apagadas no cinzeiro.
Sim, eu sei, eu sei, e estou a prestar atenção ao que dizes, mas também acho que temos de nos manter firmes, porque qualquer negócio leva o seu tempo a ganhar raízes... O próprio Bill Rooney nos avisou disso.
Lorraine parecia não ouvir, tão entretida estava a vasculhar o interior da sua bolsa para ver que moedas tinha.
Por outras palavras, nada nos garante que amanhã não nos apareça um caso que torne tudo o que disseste obsoleto acrescentou Rosie, talvez demasiado animada.
O quê? perguntou Lorraine em tom de desafio.
Obsoleto repetiu Rosie debilmente.
A sério? Bem, andas a dizer isso há um mês e ainda nem sequer um telefonema recebemos. E se fizeres bem as contas, dificilmente arranjaríamos um caso que pagasse os teus bolos e os meus cigarros, já para não falar na renda deste sítio e do teu apartamento. Portanto, sê realista, Rosie. Merda, preciso de um cigarro.
Lorraine foi até ao bengaleiro, que ficava ao lado do cubículo da casa de banho, e tirou a gabardina de um dos ganchos com brusquidão.
Talvez pare de chover em breve. Lorraine vestiu a gabardina.
Ah, sim, portanto, se o Sol brilhar tudo ficará bem, não é?
Nunca se sabe.
És uma optimista tola.
Uma quê?
Optimista, Rosie. Nem mesmo que o sol faça estalar as pedras da calçada iremos ficar melhor. Dois cães perdidos, i avô senil desaparecido, uma passagem de duas semanas numa loja a fazer as férias da detective da casa, cinco localizações de automóveis, quatro mandados e uma mulher desconfiada que o marido tinha um romance com a secretária, em que a mulher tinha o teu tamanho e a secretária era parecida com aJulia Roberts... Por isso não precisámos de muito tempo para investigar, e... foi tudo o que nos apareceu nos últimos nove meses, Rosie.
Tens sempre de levar tudo a peito. Se olhares para o lado bom, são mais nove meses em que não tocaste numa gota de álcool... Isto não passa de uma fase má que haveremos de ultrapassar.
Lorraine cerrou os dentes.
Não, não é, Rosie, é apenas um facto. Estamos na penúria total, e ir ao meu cinzeiro à procura de beatas não é exactamente o que eu planeava para o futuro. Mais vale admitir e encarar a realidade, antes que nos afundemos ainda mais.
Mas nós estamos a encarar a realidade teimou Rosie. Lorraine fechou os olhos como se estivesse a falar com uma criança, exprimindo-se num tom entediado e excessivamente paciente.
Não, não estamos. A verdade é que toda esta ideia foi uma asneira e, para ser honesta, não devo congratular-me por me manter sóbria porque neste momento, se pudesse, enfiava uns bons copos. A única coisa que me impede disso é a falta de dinheiro.
Nunca te impediu antes ripostou Rosie secamente. Os olhos de Lorraine pareceram lançar chispas de gelo.
Que queres dizer com isso? O que estás a sugerir, Rosie? Vá, deita cá para fora, estás a sugerir que eu vá lá para fora fornicar com uns tipos para manter esta casa aberta? É o que achas que eu devia fazer?
Rosie corou e desviou a cara para o lado. Detestava Lorraine quando a via assim, fria, inacessível, maldosa. Mas, ao contrário de outras vezes em que tinham discutido por causa da agência, não houve mais nenhuma observação sarcástica, apenas um silêncio de mau agoiro.
Lorraine olhou-se a um pequeno espelho colado à parte de trás de uma porta. O seu cabelo precisava de um corte e de novas madeixas. Acercou-se mais um pouco e examinou, de cenho franzido, a cicatriz que lhe descia do olho esquerdo até meio da maçã do rosto; aquilo precisava de ser arranjado, mas as cirurgias plásticas eram caras. Afastou-se, mirando-se com olhar crítico. Apesar dos maus tratos que o seu corpo já sofrera, por dentro e por fora, até tinha a pele razoavelmente límpida, embora visse que pequenas rugas ao lado dos olhos se iam aprofundando. De qualquer modo, não gostou do que viu e fechou a porta com um pontapé. Pegou no seu saco da ginástica e apagou a luz do tecto com um piparote no interruptor. Ao agarrar a mala, viu a sua sombra alongar-se na parede principal do escritório. O rosto de Lorraine, banhado pela luminosidade que emanava do ecrã do computador de Rosie, exibia umas feições profundamente marcadas, o que nunca deixava de inquietar a amiga. Era provável que não se visse a si própria com os mesmos olhos que Rosie, pois ainda era uma mulher muito atraente. No entanto, talvez não tão etérea como Rosie a achava, mas, para a idade que tinha e considerando aquilo por que já passara, Lorraine Page ainda dava nas vistas. O facto de se ter fortalecido fisicamente ao longo dos últimos vinte e um meses, fizera transparecer ainda mais a sua beleza natural. A dieta rigorosa a que se obrigara e o trabalho quase obsessivo no ginásio provava que uma mulher que perdera seis anos a beber desalmadamente, transformando-se numa alcoólica desesperada, esquelética e doentiamente dependente da bebida, altura em que ela e Rosie se tinham conhecido, passava naquela altura por uma atleta. A única coisa que a tenente Lorraine Page não podia recuperar era a sua carreira, o marido e as duas filhas. Nunca falava neles nem a Rosie nem nas reuniões dos Aa, onde esta chorava sempre muito com saudades do filho.
Rosie suspirou fundo, pensando na possibilidade real de Lorraine, perante o fracasso do negócio, voltar-se de novo para a bebida e para uma vida degradante. Rosie não estava, portanto, minimamente preparada para o que Lorraine lhe disse ao deter-se no umbral da porta da sala principal do escritório, antes de sair, fazendo balançar ligeiramente a porta com um pé.
Tencionava dizer-te que aquelas lojas ofereceram-me trabalho a tempo inteiro como detective. Lembras-te dos quinze dias que fui fazer no lugar da outra? Pois bem, ao que parece as férias dela foram tão animadas que voltou grávida.
O quê?
Portanto, fechamos as portas no fim da semana, e assim, ao menos, terei dinheiro para pagar a renda do apartamento.
E a Agência de Investigações Page? perguntou Rosie, começando a chorar.
Como já te disse, acabou. No fim da semana fechamos as portas.
E eu?
Lorraine não olhou para a amiga, continuando a dar pancadinhas na porta com a ponta do sapato.
Bem, acho que terás de sair por aí, Rosie, e arranjar trabalho. Não deve ser muito difícil. Afinal de contas, percebes de computadores e...
Rosie virou-se para o lado, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo, o que fez Lorraine sentir-se culpada. Aproximou-se da amiga e rodeou-lhe os ombros com um braço. Desculpa, às vezes as coisas saem-me sem pensar. O que estou a tentar dizer é que... tu tens uma vida para viver, Rosie, e eu se calhar também... Não temos de continuar assim, não é?
Rosie assentiu com a cabeça e procurou um lenço de papel no bolso. Lorraine hesitou, ciente de que ficar junto de Rosie implicaria tocar outra vez na mesma tecla, mas foi salva pelo tinir do telefone. Rosie agarrou no auscultador, porém nem chegou a dizer «Investigações Page». De qualquer modo nem precisaria, pois tratava-se apenas de Jake, o seu responsável nos AA, a perguntar se ela tencionava ir à reunião daquela noite. Quando Rosie respondeu que sim, já Lorraine partira.
Estás bem, Rosie? perguntou Jake com a sua voz afável.
Nem por isso, vamos fechar as portas. Posso falar contigo esta noite, antes da reunião?
Jake concordou e Rosie pousou o auscultador, sentindo de novo as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. Alguma vez as coisas correriam de outra maneira? Teria ela uma vida própria, como Lorraine dissera? Uma ova, pois sabia que, sem a amiga, não lhe restava esperança; era certo que sabia trabalhar com computadores, porém não dispunha de autoconfiança suficiente para se lançar sozinha no grande mundo. Era a diferença entre as duas Rosie precisava de Lorraine e, sem ela, tinha um medo danado do mundo. Ou quem sabe não era o mundo, mas sim a sua própria fraqueza e baixa auto-estima. Bastava-lhe olhar para a forma do queque vazia para sentir vontade de chorar: nem sequer era capaz de manter uma dieta! Como poderia sobreviver sem Lorraine? Sabia como: tomando um copo... e essa conclusão deu-lhe ainda mais vontade de chorar. Precisava, mais que nunca, de ir à reunião.
Lorraine dirigiu-se à aula de levantamento de pesos. Puxou violentamente pelo físico, desejosa de se estafar, pois assim era só atirar-se para cima da cama e dormir quando chegasse a casa. Tirou a imagem do rosto pesaroso de Rosie da cabeça. Verdade fosse dita, sentia-se tão triste com o fracasso do negócio como a amiga, mas, ao contrário desta, não permitiria que o facto a arrastasse para o fundo. Se queria continuar em frente, precisava de fazer o que fosse preciso. Sabia que não se podia responsabilizar por Rosie, tomar conta de si já era suficientemente duro, e se queria sobreviver tinha de se colocar em primeiro lugar, caso contrário, ir-se-ia abaixo. Quando dissera que tinha vontade de uma bebida, não brincara. Era verdade. Mas não tencionava tomar nenhuma, pelo menos naquela noite. Já se apercebera de que a «sede» nunca terminava, jamais desaparecia. Era, e continuaria a ser, uma batalha constante para o resto da vida. Uma parte de si própria desejava combatê-la, mas às vezes, só às vezes, isso parecia-lhe escusado.
Rosie, debulhada em lágrimas, encontrava-se sentada ao lado do seu bom amigo Jake Valsack, que lhe fazia festas na cabeça.
Bem, talvez ela tenha razão, Rosie. Se não está a resultar em nenhuma frente, nomeadamente na financeira, para quê insistir em algo que não dá?
Rosie assoou-se.
Ela apareceu-me com a novidade do emprego, via-se bem que já sabia dele há uns tempos. Estás a ver, ela engravidou
O quê, a Lorraine?
NÃO! A malfadada detective da loja, aquela cabra! Jake ergueu os sobrolhos espessos e hirsutos. Estava a ter muita dificuldade em perceber o que se passava com Rosie, mas depreendeu que Lorraine tinha emprego e Rosie não, e que o negócio da chamada investigação dera o berro.
Mas como é que ela foi capaz de me fazer uma coisa destas, Jake? Eu é que decorei e pintei o escritório, arranjámos toda aquela mobília... Sei que não é grande coisa, mas mandámos colocar extensões telefónicas, eu tenho um computador para pagar, uma máquina de fax e uma... Fui eu quem arranjou as secretárias, sabes, e o resto da mobília. Levou meses a compor, como é que ela agora me faz uma coisa destas?
Tanto quanto percebi, fê-lo, Rosie, porque não vos aparece trabalho, ou não é assim? Estou certo?
A questão não é essa teimou Rosie.
Jake viu disfarçadamente as horas. A reunião estava prestes a começar, e sabia bem que Rosie era capaz de ficar assim durante muito tempo e nada do que ele pudesse dizer-lhe alteraria a situação: ela continuaria sempre aos círculos.
E quanto ao ex-comandante Rooney? Pareceu-me que tinhas dito que ele ia trazer muito trabalho.
Rosie assoou-se, mais uma vez.
Oh, esse! Passa a vida bêbedo, morreu-lhe a mulher.
Oh, lamento muito. Não o conheço, mas como está a reagir? perguntou Jake, tentando mudar de assunto.
Rosie continuou como se não tivesse havido interrupção. Vendo bem, se uma pessoa não se agarra a alguma coisa, percebes, não tenta fazer com que as coisas resultem... temos aquela mobília lá no escritório porque eu me estafei a correr os saldos à procura dela... Jake apertou a mão de Rosie com mais força. Rosie, querida, talvez a Lorraine não o tenha feito porque previu o que iria acontecer e chegou à conclusão de que não daria certo. Assim como não deu.
Ela nunca fez por isso ripostou Rosie com azedume. Jake suspirou de frustração. Iria presidir à reunião daquela noite e, ao entrar no vestíbulo, vira que a fila de pessoas que chegavam para a reunião começara a diminuir.
Rosie, tenho de entrar já. Não preferes continuar a falar disto depois?
É agora que preciso de falar nisto, Jake. Jake tentou manter a serenidade.
Há mais de uma hora que estamos a conversar, mas tu, Rosie, recusas-te a encarar a realidade.
A realidade, Jake, é que ela deu-me com os pés. Podíamos estar a receber o trabalho a mais que outras agências têm.
Não, querida, a realidade é que a Lorraine fala com sensatez. Caramba, Rosie, conheces bem a história dela, sabes que era polícia, estava de serviço embriagada e matou um rapaz a tiro, o que a levou a ser expulsa. Já pensaste que, se calhar, nenhuma das outras agências pode correr o risco de pôr uma ex-drogada e uma ex-alcoólica a encomendar-lhes o papel higiénico, quanto mais a ficar com algum dos casos excedentários? Eles conhecem o passado dela, portanto, mesmo que se trate de localizar veículos roubados...
Mas nós descobrimos o paradeiro de três.
Jake passou a mão pelo cabelo. Aquela mulher recusava-se a escutá-lo.
Tenho de ir imediatamente, Rosie, portanto vem daí, limpa o nariz e entremos. Precisas de te acalmar um pouco.
Do que eu preciso é de uma bebida, Jake.
Jake fechou os olhos. A noite ia ser muito, muito longa. Estavam prestes a voltar à estaca zero quando alguém bateu na janela do velho Pontiac.
Jake, sou eu, já dei as boas-vindas a todos, mas não me parece que esta noite venha mais alguém. O café foi servido e estão todos à espera de que ocupe o seu lugar.
A mulher de rosto magro, que envergava um fato de confecção particular bastante caro, afastou-se do carro. Phyllis Collins nem sequer olhou para Rosie, que se assoava estrepitosamente.
Está bem, Phyllis, já vou disse-lhe Jake, apeando-se e inclinando-se para Rosie. Vamos, Rosie.
Não, não quero entrar. Jake fez um gesto a Phyllis.
Faça-me um favor, Phyllis, esta noite ela está a precisar de um pouco de encorajamento. Já se conhecem, não é verdade?
Phyllis disse que sim com a cabeça e espreitou para o banco do passageiro.
Boa noite.
Rosie, que procurava novo lenço de papel dentro da bolsa atafulhada, não lhe prestou atenção. Jake ergueu os olhos para o céu e Phyllis sorriu-lhe reconfortantemente.
Entre, que eu fico aqui com ela. Vá, não pode deixar toda aquela gente à espera. Inclinou-se de novo para dentro do carro. Já nos encontrámos algumas vezes. Chamo-me Phyllis Collins.
Rosie olhou para ela com impaciência. Não se lembrava de alguma vez ter falado com aquela mulher e também não ten cionava sair do carro.
O Jake não pode deixar de entrar; esta noite é ele a presidir à reunião. Posso sentar-me ao pé de si?
Rosie encolheu os ombros e desviou o olhar, porém não impediu Phyllis de entrar no carro. Quanto mais não fosse, era outra pessoa a quem podia repetir a história toda. Fá-lo-ia com qualquer um, tão desesperada se sentia.
A minha companheira abandonou-me.
Oh, lamento muito. Estavam juntas há muito tempo?
A minha companheira de trabalho. Trabalhei que nem uma danada, e esta noite ela limitou-se a comunicar-me que arranjou outro emprego, assim, sem mais nem menos.
Phyllis anuiu, exprimindo compaixão no rosto magro e franco.
Oh, minha querida, não admira que esteja tão triste.
Lorraine limpou, mais uma vez, o rosto suado com a toalha embebida em água gelada. O calor na sauna era tão intenso que só conseguiria aguentar mais uns minutos. Estava deitada, nua, na bancada mais alta, enquanto duas outras mulheres se encontravam estendidas noutras duas mais abaixo. Ninguém falava.
Lorraine perguntou a si mesma se Rosie estaria bem, mas calculava que, se Jake estivesse com ela, a amiga não cometeria nenhuma insensatez. Resolveu aproveitar os trocados que tinha na bolsa para comprar uma garrafa de sidra sem álcool para a animar. Parecia champanhe e sabia a mijo de mosquito, mas Rosie adorava.
Com licença murmurou Lorraine, baixando as pernas para a bancada de baixo, de modo a poder passar pela mulher deitada, que se apoiou sobre um cotovelo, a fim de lhe dar espaço para tal. Depois deixou-se ficar assim, semierguida, a mirar a mulher alta que saía da sauna. Invejou o corpo magnífico, erecto e musculoso e depois reparou, curiosa, nas cicatrizes de ferimentos que Lorraine tinha nos braços, nos pequenos traços denteados feitos à navalha, nas marcas arredondadas de queimaduras.
A mesma mulher voltou a ver Lorraine, dessa vez no vestiário, a secar habilmente o bonito cabelo louro, sedoso, com a ajuda de uma escova e de um secador.
Quem me dera ser capaz de fazer isso.
Lorraine voltou-se, ligeiramente espantada, sem saber muito bem se a mulher estava a falar consigo.
Poupava uma fortuna no cabeleireiro. Nunca consigo dar um jeito na nuca.
Lorraine desligou o secador.
Oh, basta praticar um bocado respondeu delicadamente, concentrando-se no arranjo final do cabelo. Quando ia a sair do cubículo onde se mudava de roupa, a mulher abelhuda bichanava algo a uma outra, ambas com o corpo avantajado comodamente enrolado nas esplêndidas toalhas brancas fornecidas pelo clube.
Contaram-me que ela era tenente da Polícia e passava a vida embriagada no serviço. É conhecida do instrutor do ginásio que me disse que ela...
Lorraine deixou a porta do seu cubículo bater estrondosamente ao sair, o que fez as duas linguarudas virarem-se para trás que nem hámsteres assustados. Teria gostado de lhes dizer onde deviam enfiar o secador, mas não o fez. Não proferiu palavra. Foi então que toda a tensão que o exercício e a sauna lhe tinham tirado do corpo, relaxando-o, voltou. Quando passou pela recepção, ia cheia de raiva.
Arthur, o instrutor do ginásio, sorriu-lhe com simpatia e cumprimentou:
Boa noite.
Lorraine continuou em frente e não respondeu.
«Que rico amigo», pensou. Resolveu nunca mais voltar. Sabia que o melhor que tinha a fazer era seguir directamente para casa em vez de ir buscar a sidra de Rosie, pois a tal vontade de tomar uma bebida a sério estava quase a escapar ao seu controlo.
Phyllis e Rosie encontravam-se sentadas a uma mesa numa pequena pastelaria, com três garrafas de água Evian entre si. Acontecia apenas que não era Rosie quem despejava as suas histórias de infortúnio, mas sim Phyllis, que dispunha de toda a atenção da primeira.
Acho que acabei por ir ficando porque, apesar de ser tudo tão horrível, eu estava sempre a dizer a mim mesma: «Quando isto terminar, vou-me embora.» Mas tudo continua na mesma, se calhar será sempre assim. Às vezes, as coisas ficam tão mal com ela, que eu tenho a impressão de já não aguentar mais. É muito exigente, está sempre a contar que eu largue tudo o que estiver a fazer em qualquer altura do dia o da noite. Se acorda às quatro da manhã, não se quer dar ao trabalho de utilizar o intercomunicador; portanto, põe-se a gritar por mim. Acontece-me acordar cheia de suores frios por me parecer ouvi-la a berrar o meu nome. Outras vezes, quando fica muito doente por tomar demasiados comprimidos para dormir, quase gelo de pavor e nada mais consigo fazer além de lhe tomar o pulso para ver se ainda está viva. Tem sido um período pavoroso para todos os envolvidos, uma verdadeira tra gédia...
Rosie suspirou fundo.
Eu costumava ver todos os seus filmes. Phyllis deitou o resto da Evian no seu copo.
«Costumava» é a palavra certa. Ela já não deve fazer ci nema há uns quinze anos.
Rosie inclinou-se mais para Phyllis.
Mas porque é que a Phyllis não se vai embora? É o salário, é? Oh, desculpe, que indelicadeza a minha, não precisa de me responder.
Phyllis fez uma boquinha, na defensiva.
Não, não, não se trata do salário, acredite, e ultimamente também não temos viajado como antigamente, ela mal sai de casa.
Rosie assentiu com um gesto de cabeça.
Pois, imagino que seja horrível.
Pois é, sempre que o telefone toca. Não que ela atenda, põe-se apenas a gritar para que eu o faça. Fico completamente tensa, à espera de que sejam notícias e receosa de que sejam más, as piores... Era uma menina tão bonita! Phyllis começou a fungar e foi à bolsa buscar um lencinho de renda. Rosie reparou que era uma mala cara, com uma corrente dourada entretecida com uma tira de cabedal, de usar ao ombro. Desculpe ficar assim, mas tenho poucas amigas, ninguém com quem desabafar. É por isso que foi tão importante para mim juntar-me aos Aa, sabe. E o Jake é um homem excelente, tem sido maravilhoso.
Ah, sem dúvida, também foi a minha salvação. Quer outro copo de água, Phyllis? Ou prefere que passemos para algo mais forte, como sumo de maçã?
Lorraine estava à espera de Rosie para lhe pedir desculpas, quando ouviu passos pesados nas escadas que levavam ao apartamento.
És tu, Rosie?
Jake abriu a portinhola e espreitou.
Não, sou eu. Ela ainda não chegou?
Não.
Vou dar uma volta por aí de carro, para ver se a encontro. O encerramento do negócio doeu-lhe muito.
Lorraine acendeu um cigarro.
Pois é, mas olha que eu também não ando por aí a celebrar, Jake. O certo é que uma de nós tem de arranjar dinheiro para a renda.
Tens razão, sem dúvida. Então, deixa-te ficar, que eu vou dar uma volta por aí.
Ela esteve na reunião? perguntou Lorraine, algo preocupada.
Não chegou a entrar, mas deixei-a com a Phyllis, ou lá como ela se chama. Só espero que as duas não estejam enfiadas nalgum sítio a curtir as mágoas com uns copos. Até já.
O coração caiu-lhe aos pés quando, pouco depois de Jake partir, ouviu vociferar na rua e, a seguir, os passos de Rosie. O pequeno apartamento, que só tinha um quarto, uma casa de banho minúscula e uma sala com cozinha enfiados num anexo de esquina, ficava no segundo andar de um prédio na Marengo Avenue. O de baixo estava ocupado por uma família de origem hispânica que nunca mais parava de crescer. Por sorte, eram os primeiros a fazer muito barulho, ligando o rádio e a televisão tão alto que mal se conseguia falar. É que qualquer outra pessoa que vivesse por baixo do estrondo que Rosie fazia a andar, depressa arranjaria uma depressão nervosa.
Ei! Tu nem imaginas o que eu tenho para te dizer exclamou Rosie, muito corada devido ao esforço que fizera para voltar rapidamente para casa.
Rosie, bebeste muito?
Tenho mais água de garrafa às voltas dentro de mim do que um tanque de abastecimento.
Rosie atirou os sapatos para longe, pôs o casaco de lado e pousou a bolsa em cima do sofá e depois, apoiando as mãos nas ancas largas, sorriu de orelha a orelha.
Acho que vamos ter sorte.
Queres um pouco de café?
Não, agora senta-te e escuta. Vá, senta-te. Ora bem, já ouviste falar numa actriz de cinema famosa chamada Elizabeth Seal?
Não.
Rosie agitou as mãos de frustração.
Claro que sim, então não te lembras de O Acer, O Pântano e A Máscara de Vanessa?.
Não.
Caramba, vimos esses filmes na televisão por cabo. A estrela de cinema Elizabeth Seal é famosa. É impossível que não saibas de quem estou a falar, finais dos anos setenta, década de oitenta, ela era... fabulosa!
Estiveste a beber com ela?
Rosie deixou-se cair no sofá-cama, que rangeu agoirentamente.
Não sejas tola! Como se a Elizabeth Seal se dispusesse a beber água mineral comigo no bar do Joe. Ela é uma grande estrela de cinema! Se calhar já ouviste falar nos Caley, não? Elizabeth Caley? É o seu apelido de casada.
Não.
Caraças, não é possível que estejas a falar a sério. A Elizabeth e o Robert Caley andaram nos cabeçalhos dos jornais há cerca de um ano. Não houve jornal nem televisão que não contasse a história deles, por ela ser tão famosa. Não soubeste do desaparecimento de Anna Louise Caley, a filha de dezoito anos que levou sumiço até hoje?
Lorraine tentava recordar aqueles nomes, mas em vão, o que não era nada de extraordinário; tinha grandes lapsos de tempo na sua memória, de quando nem o seu próprio nome sabia, quanto mais o dos outros.
Rosie bebeu um gole de café. Estava de tal maneira excitada que suava e tinha os olhos brilhantes como os de uma criança.
A rapariga desapareceu sem deixar rasto. Meteram polícias, místicos e médiuns no assunto, ofereceram uma recompensa enorme. No entanto, não receberam nenhum pedido de resgate, telefonemas, bilhetes. Nada. Dá a impressão de que se evaporou. A Polícia pensa que terá sido raptada e que, como algo correu mal, acabaram por matá-la... Acham que a atiraram para um lado qualquer e...
Meia hora depois, Lorraine estava sentada com a cabeça metida entre as mãos, ainda sem perceber muito bem o que tanto entusiasmava Rosie.
Vejamos, Rosie: se, como essa tal fulana chamada Phyllis diz, os Caley contrataram as maiores agências de detectives que por aí andam, porque viriam ter connosco?
Porque ainda ninguém encontrou a rapariga e eles continuam a gastar milhares. São super-ricos, Lorraine, e não se poupam a despesas.
Lorraine ergueu uma das mãos.
Espera, espera, Rosie, por favor, agora escuta-me. Se os Caley... não é? Se eles já se conformaram... Há quanto tempo dizes que tudo aconteceu?
Mais ou menos há onze meses, foi em Nova Orleães, durante o Carnaval respondeu Rosie ansiosamente.
O quê? Em Nova Orleães? Falas a sério?
Claro que sim. Achavas que estava a inventar isto tudo. Lorraine suspirou.
Rosie, se o trabalho é para ser feito em Nova Orleães é pouco provável que contratem detectives privados com sede em Los Angeles, não achas?
Sim, mas eles já o fizeram... a Phyllis disse-me. A Polícia também tratou do caso aqui. Eles vivem cá, não é?
Lorraine ergueu os olhos para o tecto.
Se eles já pagaram todo esse dinheiro e não obtiveram resultados, o que te leva a pensar que estejam dispostos a gastar mais, digamos, connosco, já que imagino que toda essa histeria seja por causa disso, não é verdade?
Caramba, não estou histérica!
Está bem, mas factos são factos, Rosie. Porque pensas que eles estariam dispostos a contratar a Agência de Investigações Page, ou seja, tu e eu? O facto de andares nos Aa com secretária da família não é o que se possa chamar um grand cartão-de-visita, pois não?
Eu nunca lhe contei que tu tinhas o vício dos copos gritou Rosie. Pelo contrário, só te elogiei. Até disse que o Rooney fazia parte do nosso grupo, sabes como é, ele sempre é um ex-comandante. Ela ficou impressionada, verdadeiramente impressionada.
Ficou?
Rosie não percebeu o sarcasmo.
Sim, ficou. Dei-lhe um cartão nosso e ela disse que ia falar com Mistress Caley.
Oh, e depois disso, o que é que vai acontecer?
Olha, ela é da confiança deles, trabalha lá há anos, está bem? E sabe que a Elizabeth Caley está desesperada, à beira da loucura... Só quer saber o que aconteceu à filha e pagará o que for preciso para o descobrir.
E entregaste-lhe o nosso cartão?
Entreguei! Não sou estúpida, sabes, porque primeiro estava muito aflita, percebes? Comecei por lhe dizer que a minha parceira queria desistir de tudo, mas, assim que me cheirou a coisa grande, salientei que te tinham oferecido um trabalho de investigação criminal muito importante, não apenas para fazeres de segurança numa loja. Sei como dar a volta ao texto quando é preciso. Disse que andavas com muita procura.
Portanto, quanto tempo vamos esperar pela resposta? O telefone tocou. Lorraine apagou a ponta do cigarro, fazendo sinal para o aparelho com a cabeça.
Deve ser o Jake. Puseste-o todo nervoso. Tem andado à tua procura, portanto atende tu.
Rosie levantou o auscultador; não era Jake, porém, mas sim Phyllis, a pedir que enviassem a Mrs. Caley pormenores sobre os antecedentes da Agência de Investigações Page o mais depressa possível. Rosie voltou a pousá-lo com um sorriso de triunfo nos lábios.
Eu não te disse? Phyllis falou mesmo com a patroa, tal como te contei.
Na manhã seguinte, depois de uma sessão apressada no computador, obtiveram o que parecia ser um dossier razoável, onde Lorraine apresentava pormenores completos de todas as suas recomendações como tenente da Polícia, listando os casos em que estivera envolvida. Também incluíram na equipa das Investigações Page o experiente e dedicado ex-comandante William Rooney, recentemente reformado da Polícia de Pasadena.
Rosie foi a casa dos Caley, em Beverly Hills, entregar pessoalmente o dossier acabado de imprimir. Lorraine ficou no escritório a matutar no novo rumo dos acontecimentos. Ainda tinha alguns dias até ser obrigada a dar uma resposta positiva ou negativa à loja. Rosie talvez tivesse razão: quem sabe se conseguiriam ganhar umas massas; no entanto duvidava.
A campainha da porta do escritório soou e Bill Rooney entrou, mostrando-se demasiado animado.
Viva, telefonaste, não foi? Então, como ia a passar...
Ai sim? Rumo a que bar, Bill?
Rooney fez-lhe um gesto obsceno com um dedo, instalando-se na cadeira rotativa de Rosie. Tinha a barba por fazer e parecia estar com uma ressaca, apresentando o rosto largo e o nariz polposo bem avermelhados.
Uma das pontas do colarinho estava espetada no ar, e tinha a gravata, toda torta, cheia de nódoas de comida. A zona do traseiro das calças brilhava de tanto lustro e o fato engelhado aparentava, no conjunto, ter demasiado uso.
Pareces em boa forma comentou Lorraine, sorrindo.
Por acaso, sinto-me lindamente. Gastei metade da pensão na agência de detectives que nunca chegou a arrancar... Para dizer a verdade, a tinta da porta ainda nem secou completamente, mas eu nunca fui homem de negócios, jamais entendi de números, e o filho da mãe que me vendeu a casa deve ter percebido logo isso... De certeza que leu a palavra «nabo» escrita no meio da minha testa. Tenho um computador que não é compatível com nenhum outro, muito menos comigo, um sistema telefónico que não funciona, e o telemóvel que arranjei não durou mais de meia hora antes de o perder. Como não tinha seguro de nada, nada recebi e agora não consigo que me dêem o mesmo dinheiro que paguei quando comprei o equipamento. Portanto, não tenho nenhum caso de sobra que possa passar para ti; eu próprio ando à procura de alguma coisa para fazer. E tu, como é que vais por aqui? Olhou em redor e sorriu. Vejo que o negócio floresce... Mal consigo ouvir-me no meio do barulho dos telefones a tocar!
Muito espirituoso, considerando o teu próprio fiasco observou Lorraine, indo buscar canecas limpas e preparando café.
Rooney encobrira o facto de não estar em estado de dirigir uma agência: com Ellen a morrer e depois a tratar do seu funeral, andava numa grande depressão há semanas. Lorraine sentiu pena dele pois, apesar de toda aquela jactância, o mais provável era sentir-se muito só. Reparou, pelo canto do olho, que ele se inclinava para ver melhor o novo dossier da Agência de Investigações Page que se encontrava em cima da secretária de Rosie.
Dá uma leitura interessante. Gosto da maneira como passas por cima dos anos em branco, queridinha. Quem ler isto fica com a impressão de que deixaste a Polícia cheia de recomendações reluzentes, em vez de teres levado com a porta das traseiras no rabo.
Pois é, mas olha que a parte que te diz respeito também é muito bonita observou, pousando as canecas ruidosamente.
Rooney riu ao ler o texto que falava dele e depois largou o dossier.
Já te disse que a Ellen morreu?
Já. Os meus pêsames.
E, fui buscar a urna. Perguntei ao tipo como é que podia ter a certeza de que eram os restos da minha mulher. É certo que a urna era a que eu tinha encomendado, mas quem me garantia que não tinham lá metido uma porcaria qualquer? Rooney sacudiu a cabeça antes de continuar. O homem disse que sim, que era a minha mulher, até lá estava o nome dela escrito. O raio de toda uma vida enfiada num minúsculo pote de metal deste tamanho! Fez um gesto com as mãos e depois esfregou a cara. Ela estava na cozinha a fazer a comida. Tinha o rádio ligado, como era costume, a toda a hora e a todo o instante, o que dava comigo em doido. Caiu no meio do chão com um estrondo que até eu ouvi.
Lorraine deitou a água no filtro. O colega parecia não estar a falar para ela, nem se interessar particularmente se o escutava ou não.
Dei com ela esticada no chão, ainda com a colher de pau na mão e como que um ar de surpresa na cara. Estava morta.
Lamento, Bill murmurou Lorraine, apoiando-se à porta do vestiário.
É, acho que eu também. Quero dizer, não fui pessoa de convívio fácil. Ainda nem sequer arrumei as roupas dela... Tive de me mudar para o quarto das arrumações. Tenho a impressão de que a qualquer minuto a ouvirei a chamar-me, a dizer-me que a comida está na mesa. Não sei o que há-de ser de mim, Lorraine, estou a ficar maluco. A casa está em silêncio, chego a ter saudades do seu malfadado rádio.
Não continuas a dar-te com os tipos da esquadra?
Não. Durante algum tempo ainda convivemos, mas tu sabes como é... quando uma pessoa sai, esquecem-se dela num instante. Nos velhos bares também já não é a mesma coisa, todos eles falam deste ou daquele caso... e tenho de ser sincero: hoje em dia é tudo alta tecnologia, sabes, está tudo informatizado, o que dá origem a um tipo de Polícia diferente.
Lorraine aproximou-se dele e deu-lhe uma pancadinha amigável nos ombros enormes. Rooney agarrou-lhe na mão por instantes.
Não estou a incomodar, pois não?
Lorraine sentiu pena do amigo e aplicou-lhe um pequeno murro de brincadeira.
Como disseste, não estamos propriamente afogados em trabalho. Lamento muito que as coisas não tenham terminado bem para nenhum de nós.
Nesse momento, Rosie entrou intempestivamente.
Que casa aquela, parece um palácio, nunca vi nada parecido... jardineiros, criados, montes de jardins à volta, fetos, flores, duas piscinas exteriores, outras interiores, campos de ténis e... Olá, Bill, como vai isso? Lamento o que aconteceu à tua mulher.
Bill pôs-se de pé.
Obrigado.
Já ouviste falar numa estrela de cinema chamada Elizabeth Seal?
Rooney acenou afirmativamente com a cabeça.
Claro, costumava suspirar por ela. Rosie voltou-se para Lorraine.
Não te disse? Bem te contei que era famosa. Ora é precisamente da casa da Elizabeth Seal que venho, de uma espécii de palácio.
Lorraine passou uma chávena de café a Rooney e fez sinal a Rosie para que fosse buscar uma caneca.
Estou mesmo a precisar de um café declarou Rosie despindo o casaco leve. Até têm um mordomo inglês... não estou a brincar... e uma criada. Deixaram-me no vestíbulo durante algum tempo, até a Phyllis descer. Um vestíbulo enorme até se podia patinar nele. Têm montes de dinheiro, eu diria mesmo que aqueles quadros valem milhões. Não há dúvida de que estas velhas estrelas de cinema sabem como viver em grande estilo.
Lorraine serviu café a Rosie.
A Phyllis disse alguma coisa sobre a possibilidade de trabalharmos para eles?
Não, apenas recebeu o envelope, agradeceu-me por ter ido e despedimo-nos até à reunião de depois de amanhã. Nem sequer me ofereceu um copo de água. Para ser sincera até me pareceu ansiosa, estás a perceber? Sempre a olhar para trás... Talvez devêssemos ter mandado aquilo pelo correio
Lembro-me da Elizabeth Seal recordou Rooney, fechando os olhos. É de Nova Orleães e entrou num film chamado O Pântano qualquer coisa, já há muito tempo. É uma autêntica brasa...
Rosie concordou com um aceno de cabeça e começou a enumerar os últimos filmes de Elizabeth Seal. Lorraine sentou-se à sua secretária a beber o café. Rooney escutou Rosie de cenho franzido e depois abanou a cabeça.
Sim, agora já me lembro, ela saiu em tudo o que é jornais por causa de uma rapariga... raptada, não foi?
Rooney coçou o nariz, tentando recordar-se do que lera relativamente ao caso.
Eu bem disse que tinha saído em todos os jornais, não disse? Rosie abanava a cabeça e sorria vitoriosamente.
O corpo da filha nunca foi encontrado, pois não? perguntou Rooney. É isso, e eles ainda andam a ver se dão com ele. Mas não aconteceu aqui em Hollywood, mas sim em Nova Orleães. Foi lá que ela desapareceu, não foi?
Sim, foi um ar que lhe deu retorquiu Rosie. Foi para lá com os pais, decorria o Carnaval. Saiu de casa e nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima.
Rooney mordeu o lábio e depois olhou para Lorraine.
Acho que foi um amigo meu, o Jim Sharkey, quem tratou do caso aqui... Agora já estou a lembrar-me.
A Lorraine nem sequer sabia quem era a Elizabeth Seal
interpôs Rosie.
O telefone tocou, o que fez Rooney dar um pulo, pois sentara-se na beira da secretária mais próxima. Rosie atendeu com um ar superior.
Investigações Page anunciou. Depois começou a fazer gestos a Lorraine, apontando-lhe a secretária e o telefone.
Agradecia que aguardasse um momento. Vou ver se Mistress Page a pode atender neste momento. Rosie tapou o bocal do auscultador com a mão e respirou fundo. A Elizabeth Caley, linha um.
Lorraine verificou a sua aparência. Os sapatos castanhos ti nham um ar gasto, por isso retirou-os dos pés e Rosie prontifi cou-se a engraxá-los. Rooney conduzi-la-ia até casa dos Caley de automóvel: por um lado, porque poupariam o dinheiro do táxi; por outro, porque ele, na sua qualidade de ex-comandante do Departamento de Homicídios de Pasadena daria mais prestígio à Agência de Investigações Page com a sua _ presença.
Rooney, que ficara exultante perante a possibilidade de preencher os seus dias, arranjara algumas cópias dos jornais ° onde a história do desaparecimento da herdeira dos Caley fora publicada. Também recorrera aos seus contactos na Polícia para tentar obter mais pormenores de pessoas envolvidas no caso, Jim Sharkey, o agente que liderara a investigação feita em Los Angeles, não se mostrara muito prestimoso, pelo que Rooney concluíra que teria de o acompanhar numa noitada na cidade para conseguir alguma informação de jeito. Não obstante Rooney estava na posse da lista dos detectives privados que] tinham sido contratados e era uma lista impressionante. Lorraine recusou-se terminantemente a deixá-lo começar a arrancar alguma coisa das agências, pois estava convencida de que não passaria de uma perda de tempo. Não dispunham de finanças para esbanjar; não dispunham de finanças, ponto final. Lorraine mirou-se uma última vez. Rosie acabara de lhe engraxar os sapatos quando o som da buzina de um carro na rua lhes anunciou a chegada de Rooney, que vinha buscar Loraine. Rooney fizera um esforço: Lorraine verificou, aliviada, que a camisa que trazia parecia acabada de sair da embalagem, com duas dobras enormes a adornar-lhe a frente, e que a gravata apresentava borrões de cinza, não as habituais nódoas do pequeno-almoço. A Rosie não vai connosco? perguntou ele, abrindo a porta do lado do passageiro. Não, é escusado exagerar. Vamos só os dois. Óptimo. Ontem à noite passei em frente da casa deles.
É Impressionante. Fica pouco depois do Hotel Bel Air. Na verdade, é de tal maneira imponente que quase tive de olhar bem para não a confundir com um hotel.
Pois disse Lorraine. Então, como é que achas que devemos conduzir a questão?
Rooney guiou cautelosamente, com os óculos escuros postos para enfrentar o sol que, em meados de Janeiro, se assemelhava quase ao do Verão.
Deixemo-los falar e fiquemos a ouvir. Não temos de nos fazer oferecidos, pelo menos no princípio. Não fica bem. Não queremos parecer desesperados.
Lorraine concordou com um aceno de cabeça, espraiando o olhar para além da janela.
Qual é a tua opinião sobre o assunto? quis ele saber, com ar desinteressado.
Lorraine recostou-se e fechou os olhos.
Bem, pelo que pude depreender da leitura dos jornais que arranjaste, parece-me que foi um rapto que deu para o torto... Não houve bilhete, pedido de resgate... É provável que a rapariga já esteja morta há muito tempo. E tu, que achas?
Rooney saiu da auto-estrada de San Diego, a 405, e enveredou pelo Sunset Boulevard, em direcção a Beverly Hills.
Bem, tanto quanto me é possível ver, a rapariga não parecia do tipo de se perder e ser apanhada por alguma malandragem. Conhecia a zona, já lá estivera muitas vezes, os pais têm casa lá. Talvez tenha ido de livre e espontânea vontade, mas era Carnaval, portanto, quem sabe... Se ficarmos com o caso teremos de obter mais pormenores sobre Nova Orleães. Deste lado pouco há a fazer, a rapaziada limitou-se a colher depoimentos, sabes como é... depoimentos da família e dos conhecidos, para ver se descobriam alguma ligação possível com o caso passado na outra cidade.
Descobriram?
Tanto quanto sei, aqui ficaram todos a ver navios.
Não houve bilhete a pedir resgate repetiu Lorraine de si para si. Deixou-se ficar às voltas com os seus pensamentos durante cerca de dez minutos mais, depois abriu de novo os olhos. Lembras-te daquele caso, de mil novecentos e oitenta e seis, da jovem que desapareceu e, ano e meio depois, foi encontrada em Las Vegas a trabalhar como corista? A família convenceu-se de que estava morta, mas, em vez disso, dera com ela de cinto de ligas vestido e as novas tetas de silicon enfeitadas com lantejoulas. Rooney sacudiu a cabeça.
Não, não tenho ideia.
Parou num sinal vermelho e depois virou para Beverli Hills. Lorraine acendeu um cigarro. Eu recordo-me por causa do tempo que foi preciso para dar com o rasto dela: ano e meio. Se eles nos quiserem meter no caso, temos de pensar no tempo que é necessário para encontrar alguém, vivo ou morto observou Lorraine, com ar pensativo. Rooney abriu o porta-luvas e tirou de dentro dele um sobrescrito, que entregou a Lorraine. Tens aí uma espécie de guia de roteiro de despesas. Foi um amigo que mo deu há uns tempos, quando pensei em trabalhar como detective, e tem informações úteis. Se ficarmos com o trabalho, precisamos de saber quanto pedir. Dá uma olhada.
Lorraine examinou as folhas e voltou a guardá-las dentro do sobrescrito. Já tinha uma ideia precisa de quanto pedir, embora nada que se aproximasse do que algumas agências, equipadas com alta tecnologia, andavam a cobrar para registar informações recolhidas através de aparelhagem de escuta e detecção em arquivos e camcorders computorizados. Pediremos menos que essas outras agências, mas contaremos as mesmas tretas em relação à nossa aparelhagem de altatecnologia. Não queremos parecer barateiros. Voltou a guardar o sobrescrito no mesmo sítio e fechouo porta-luvas com um piparote, ao ver a garrafa de uísque ali guardada. Certo concordou Rooney, enquanto passavam em frente de mansões de sebes altas, patrulhadas por seguranças, com cães atrás de portões controlados electronicamente. Não achas que algumas destas casas fazem lembrar prisões? perguntou ele, fazendo Lorraine rir suavemente. Nem pensar, homem. Se te tivesse saído a sorte grande jamais te passaria pela cabeça encarares estas mansões milionárias como prisões.
Chegaram a uma pequena rotunda onde uma seta indicava a direcção do Hotel Bel Air. Viraram à esquerda, passaram em frente do dito hotel e continuaram a subir a rua tranquila. Rooney abrandou.
É a próxima casa à esquerda.
Reparou que a colega se endireitava e ajeitava o casaco. Estava com óptimo aspecto e, em comparação com o seu corpanzil avantajado e pouco saudável, ela parecia em excelentes condições físicas. O que era espantoso, considerando a punição que se auto-infligira. O poder de recuperação da colega não cessava de o surpreender e de o levar a admirá-la. Ainda não há muito, fora detida por embriaguez e vadiagem, mas depois disso percorrera um longo caminho.
Deteve o carro em frente do portão e abriu a janela, o que fez entrar uma lufada de ar quente.
Merda, está calor. O tempo anda maluco, ora chove a rodos, ora o mercúrio sobe em seta.
Estendeu a mão para carregar no intercomunicador a anunciar a sua chegada.
Os portões permaneceram fechados durante uns segundos, antes de se abrirem suavemente. A casa não era visível da entrada; no entanto, os jardins luxuriantes eram ainda mais exóticos do que Rosie os descrevera. Assemelhavam-se a uma estufa com uma selva de fetos e sebes de sempre-verdes cuidadosamente plantadas, com palmeiras de todos os formatos e tamanhos a ladearem o caminho coberto de cascalho claro. Passaram lentamente em frente de campos de ténis, relvados de aspecto irrepreensível e canteiros de flores vivamente coloridas, cuja fulgurância era assegurada por aspersores de água em todas as estações. Os jactos de água que giravam, descrevendo um arco amplo, davam ao jardim um aspecto enevoado e irreal. Só depois de passarem uma curva larga é que a casa ficou visível. Os pilares brancos do edifício de três pisos, ao estilo sulista, pareciam saídos de E Tudo o Vento Levou: seria de esperar que, a qualquer momento, Scarlet O’Hara descesse os degraus de pedra brancos a correr, exclamando, «Ora, é porque eu quero.» Mas em vez dela, um mordomo de fato preto e colete branco deteve-se diante das portas da entrada elaboradamente trabalhadas.
A Rosie bem disse que era um espanto de casa observou Lorraine, que estava deslumbrada.
Dinheiro murmurou Rooney. Um criado apareceu não se sabe de onde, para abrir a porta do carro a Lorraine. Esta hesitou um momento antes de se apear e reparou que Rooney, quando começaram a subir a escadaria, desatara a suar. Bom dia, Mistress Page e Mister Rooney. Não se importam de me seguir? disse o mordomo, impassível. Era inglês e, com o rosto hirto desprovido de qualquer expressão, fez-lhes um gesto para que o antecedessem até ao vestíbulo. O pavimento de mármore branco estava tão polido que até brilhava, irradiando luz enquanto eles seguiam o mordomo para a direita do vestíbulo, em direcção a umas portas duplas fechadas, brancas com relevos em dourado, que iam até ao tecto. Mistress Caley já virá ter convosco informou o mordomo, fazendo-lhes um gesto para que entrassem na sala. Por todo o lado se viam sofás e almofadões brancos em cetim e sedas cheios de rufos, tudo branco sobre branco e acabamentos bordados a dourado. O papel de parede, em seda branca japonesa, exibia o contorno ténue de aves; pendurados em todas as paredes, no meio de impressionantes espelhos de molduras douradas, viam-se enormes retratos de Elizabeth Caley a óleo mostrando-a em todos os papéis desempenhados nos seus filmes. Ah, lembro-me dela naquele filme murmurou Rooney, olhando para um dos quadros. Chamava-se O Pântano, e ela dançava com uma serpente enorme.
Desejam tomar alguma bebida? perguntou o mordomo com cara de quem acabara de cheirar algo desagradável. Lorraine pediu um copo de água. Rooney teria preferido uma cerveja, mas encolheu os ombros. Para mim também pode ser, só água. O austero mordomo retirou-se. Puderam então olhar à vontade para o palácio branco, quase receosos de se sentar, não fossem desarrumar os almofadões cuidadosamente dispostos. £( Rooney escolheu uma cadeira Luís XV, não que tivesse a mínima noção de que se tratava de uma verdadeira McCoy. Só depois de se sentar nela é que se preocupou com a possibilidade de ser demasiado pesado para as suas pernas altas e finas. Lorraine olhou à sua volta, reparando nas numerosas fotografias, magnificamente emolduradas, de uma jovem. Apontou para uma delas.
Deve ser a filha.
Depois de lançar um olhar à porta, aproximou-se a fim de examinar uma delas. A rapariga era excepcionalmente bonita, com o cabelo louro natural a dar-lhe pela cintura, um narizinho empinado e uns olhos claros enormes.
Lorraine sentou-se no meio de um amplo sofá branco, afundando-se tanto nele que se sentiu pouco à vontade, pois o seu peso alterara a disposição impecável das almofadas, que tombaram para o lado de dentro.
Se calhar não se pode fumar disse quase de si para si, olhando para a mesinha de tampo em mármore branco com os seus objectos, todos em bronze ou ouro, cuidadosamente dispostos. Nenhum deles se parecia com um cinzeiro. Olhou para os sapatos, quase ocultos pela densa carpete branca, e receou que a engraxadela rápida de Rosie lhe tivesse deixado alguma mancha de graxa castanha. Ergueu os olhos ao ouvir o tinir de cubos de gelo.
Uma criada fardada de preto e de aventalinho branco, entrou trazendo um tabuleiro com águas geladas, efervescentes e sem gás, com limão, tudo em copos altos de cristal em suportes em prata e ouro. Lorraine mal conseguiu esconder um sorriso quando Rooney murmurou os seus agradecimentos e a cadeira rangeu agoirentamente. A criada entregou a cada um deles um copo com o tipo de água escolhida e em seguida pousou o tabuleiro. Voltou-se para a porta no momento em que Phyllis apareceu.
Não se levantem, por favor. Sou Phyllis Collins, a amiga da Rosie. Deve ser a Lorraine, não é verdade? Se é que posso tratá-la por... Lorraine, evidentemente. Atravessou a sala em passos rápidos, apertou a mão à detective, voltando-se depois para Rooney. E o senhor deve ser William Rooney. A Rosie falou-me de si. Por favor, não se levantem. Mistress Caley sabe que estão aqui e em breve descerá.
Lorraine agradeceu com um aceno de cabeça. Rooney sentiu-se ainda mais desajeitado na sua cadeira, mas ao menos deixara de ter calor. Pelo contrário, a sala estava bem fria.
Temos vivido tempos muito difíceis observou Phyllis, sentando-se na cadeira que fazia par com a de Rooney, em frente deste.
A senhora fica para a... Lorraine não sabia como descrever a reunião.
Não, não. Mistress Caley pediu-me que não ficasse, na verdade, apenas lhe faço companhia. Deve estar a descer a qualquer momento. O momento estendeu-se a três quartos de hora. Falaram sobre os filmes e os retratos de Elizabeth Caley e as origens britânicas de Phyllis; sempre que Lorraine tentava orientar a conversa para a razão que os levara ali, a governanta muddava de assunto. Lorraine bebera dois copos de água e recusara-se a mais porque sabia que assim acabaria por ter de ir à casa de banho. Rooney engolira a sua água, mas gostaria de não ter optado pela gaseificada, pois sentia o gás às voltas na barríga. Ouviram dar as horas e os três olharam para o enorme relógio com relevos em dourado e redoma de vidro com ouro que se erguia sobre a cornija da lareira. Presumo que estas fotografias sejam de Miss Call. não? inquiriu Lorraine, indicando calmamente uma das molduras em prata. Phyllis assentiu com um aceno de cabeça. ia a dizer algo quando se ouviram passos no piso de mármore do vestíbulo, o tiquetique de saltos altos, e depois as portas foram abertas pelo mordomo. Mistress Elizabeth Caley anunciou.
Phyllis procedeu às apresentações e Lorraine pôs-se de pé, espalhando as almofadas à sua volta. Rooney fez ranger a cadeira ao erguer-se; Mrs. Caley, porém, dirigiu-lhe um gesto suave, o que o levou a acomodar-se de novo.
Elizabeth Caley tocou muito ao de leve na mão que Loraine lhe estendeu e depois sorriu afavelmente a Rooney, que ficou vermelhíssimo. Era o que seria de esperar de uma estrela de cinema do final dos anos cinquenta, princípio dos sessenta, impecavelmente maquilhada, com o cabelo negro, brilhante, afastado do belo rosto de feições bem delineadas e preso ao alto por uma travessa de tartaruga. À distância ainda passava por uma mulher na casa dos trinta anos; no entanto, os cinquenta _ anos já começavam a pesar-lhe, pois as inúmeras cirurgias plásticas ao rosto haviam-lhe tornado a pele artificialmente esticada e lisa. A blusa decotada, em tom creme, mostrava parte do que, provavelmente, também deviam ser seios reconstruídos. Trazia uma saia preta direita e justa, meias claras que mostravam que as suas pernas maravilhosas continuavam a ser como as de uma jovem, e calçava sandálias de salto alto que lhe salientavam os tornozelos finos.
Rooney mal se aguentava de tão perturbado. Sentiu o coração a bater fortemente quando o perfume dela, uma intensa essência de magnólia que lhe ressaltava ainda mais a pele branca macia e sedosa, pareceu envolvê-lo. Elizabeth Caley ainda era uma mulher esplendorosa e sexy. Possuidora de uns lábios grossos, que usava pintados num vermelho condizente com o das unhas compridas, exibia no dedo anelar um anel com um diamante e uma esmeralda do tamanho de um ovo de ave pequena. Os seus modos também eram encantadores, quase diferentes. Sentara-se com uma leveza quase etérea na ponta de uma delicada cadeira dourada de costas direitas. Dirigiu um aceno de cabeça quase imperceptível a Phyllis, indicando-lhe que saísse. Phyllis fechou silenciosamente a porta atrás de si.
A minha filha declarou Mrs. Caley, apontando com lentidão para uma enorme fotografia a cores que se encontrava em cima de uma mesinha de canto, de tampo em vidro. Rooney e Lorraine viraram-se ambos na direcção da mão esvoaçante.
Anna Louise Caley era tão loura quanto a mãe morena. Tinha os mesmos olhos afastados; os de Elizabeth, porém, eram de um castanho-dourado escuro, enquanto os da filha, a julgar pela fotografia, eram azul-claros. A jovem esboçava um ténue sorriso misterioso e acanhado com os adoráveis lábios ameninados.
É muito bonita elogiou Lorraine em voz branda.
Sim, é concordou Rooney, que não conseguia afastar os olhos de Mrs. Caley, recordando todos os seus filmes, um após o outro. Às tantas quase teve de se beliscar para perceber que se encontrava sentado mesmo ao lado dela.
Sei que já contratou uma série de detectives particulares principiou Lorraine, enquanto Mrs. Caley olhava em frente com expressão vazia. Se formos reabrir o caso...
Não foi encerrado corrigiu Mrs. Caley calmamente.
Desculpe, claro que não, mas se a Agência de Investigações Page também começar a indagar o paradeiro da sua filha, seremos obrigados a fazer-lhe muitas perguntas. Pode ser muito incomodativo para si, mas nunca se sabe se não conseguiremos descobrir...
Elizabeth Caley baixou a cabeça. Uma pista? Exactamente. É frequente um indivíduo ou uma firma como a minha, que entra num caso que já tem algum tempo, ser capaz de descobrir algo que possa ter parecido inconsequente a outros. Mistress Caley assentiu com a cabeça, mirando o anel faiscante que tinha no dedo.A razão que me leva a estar interessada em conhecê-la deriva do facto de a Phyllis me ter contado que já esteve envolvida noutros casos semelhantes. Rooney franziu o sobrolho e lançou um olhar interrogativo a Lorraine. Esta ignorou-o, sem saber muito bem até que ponto Rosie dourara a pílula, mas apressou-se a responder, mantendo a voz baixa e encorajante. Localizar o paradeiro de pessoas pode ser um processo demorado e oneroso, e não podemos dar nenhuma garantia de sucesso. Dito isto, acrescento que estou certa de que, dada a experiência anterior que tive como membro da Polícia de Passadena e com a colaboração do meu sócio, Mister Rooney, ex-comandante, posso garantir-lhe que... Nenhuma pedra ficará por levantar. Os enormes olhos fitaram primeiro Lorraine e depois Rooney, antes de se fixarem novamente no anel. Riu suavemente. Todos eles me prometeram isso, querida, e para ser completamente sincera, não interessa quanto custará ou quanto tempo levará. Quero que encontrem a minha filha, porque cada dia que passa é um pesadelo... Sempre que o telefone toca, surge uma esperança e cada noite... Susteve a respiração e engoliu em seco levando um momento a recompor-se. Se por ali se podia ver o seu talento para representar, os seus filmes deviam ter sido bons. Nunca perdi a esperança, apesar de se ter deduzido que, depois de tanto tempo... Nova inalação súbita de ar e a mão passando pelo pescoço branco leitoso. Tem filhos, Mistress Page? Tenho sim, duas meninas respondeu Lorraine com voz ténue. Bem, então deve saber o que é ser mãe. Todas as noites marco no meu diário mais um dia que passou, mais uma noite pela frente sem a minha adorada, e rezo... tenho rezado muito.
E também chorado tanto que não acredito que me restem mais lágrimas.
Novo gesto lento e esvoaçante da mão na direcção da fotografia da filha.
-Olho para o rosto dela e pergunto vezes sem conta: «Onde estás? Oh, minha querida, querida, filha, onde estás?» Rooney estava à beira das lágrimas. Lorraine parecia adequadamente comovida, mas não afastava da mente a possibilidade de Mrs. Caley estar a falar, ou a representar, como se estivesse num dos seus filmes. Essa impressão acentuou-se ainda mais quando Elizabeth Caley se pôs repentinamente de pé e começou a andar de um lado para o outro sobre a carpete nívea, erguendo um pouco mais a voz.
-Aconteceu no dia quinze de Fevereiro. Fomos a Nova Orleães passar o Carnaval, como é costume. Ela não desceu para jantar, mas como havíamos chegado poucas horas antes, pensámos que não tinha fome.
Elizabeth Caley acercou-se de uma das mesinhas douradas com tampo de vidro e foi indicando as várias fotografias da encantadora filha: como debutante num baile, numa festa de aniversário surpresa, na estreia de um filme. Elizabeth quase parecia dançar na frente deles; a certa altura passou um dedo pelo contorno de uma pequena moldura dourada, as lágrimas subiram-lhe aos olhos e depois escorreram-lhe pelas faces impecavelmente maquilhadas.
- Não desistirei, não posso desistir.
Rooney estava capaz de se atirar aos seus pés e jurar-lhe admiração eterna. Lorraine simplesmente desejava que Mrs. Caley parasse com o dramatismo e começasse a falar com clareza, para eles poderem discutir quanto tempo iriam ter para trabalhar naquele caso. Aproveitara o monólogo da ex-actriz para calcular quanto poderia cobrar para manter os três ocupados, incluindo despesas de deslocação e de alimentação, pois certamente teriam de ir a Nova Orleães e haveria contas de hotel, aluguer de carros, etc.
Lorraine tossiu ao de leve para chamar a atenção de Elizabeth Caley.
- Mistress Caley, se deseja que as Investigações Page comecem a trabalhar, talvez seja melhor falarmos um pouco sobre finanças, não...?
Mrs. Caley deu meia volta sobre os seus saltos altos, e encarou Lorraine.
- Claro que quero que comecem! Porque pensam que vos pedi que viessem a minha casa? Quero que encontrem a minha filha... Não me fiz entender?
Lorraine passou a língua pelos lábios.
- Muito bem, mas temos de falar sobre os contratos que fez com as outras agências privadas de investigação, pois são um bocado territoriais e...
- Eles não fizeram nada! já se passaram onze meses, onze meses, e não quero saber de quem contratámos. Nenhum deles encontrou uma única pista quanto ao paradeiro dela. - Estava a dar um espectáculo digno de um hoskar, subindo de tom à medida que se ia mostrando cada vez mais emocionada. Pegou numa das fotografias da filha e apertou-a contra o peito. Ela é uma menina doce e inocente, não podia desaparecer sem mais nem menos, tem de estar nalgum lado. É alguém que me está a fazer isto, a despedaçar-me o coração.
Lorraine olhou para Rooney que, deslumbrado, não tirava os olhos de Elizabeth Caley, desejoso de a poder ajudar. Via bem que ela estava a atingir um clímax tal que corriam o risco de presenciar qualquer espécie de colapso. Então, teriam de lá voltar e passar por aquelas cenas mais algumas vezes antes de conseguirem assinar um acordo. De repente, para sua grande consternação, as portas abriram-se violentamente.
- Elizabeth, Elizabeth!
Mrs. Caley virou-se para a porta, segurando na fotografia da filha com um gesto dramaticamente indefeso.
- Ela está viva, Robert, tenho a certeza de que está viva. Não desistirei, não desistirei.
Robert Caley nem sequer olhou de relance para Lorraine, fazendo um gesto a Phyllis, que aguardava atrás dele, à entrada da sala.
- Phyllis, ajude a Elizabeth a ir para o quarto imediatamente.
- Não, Robert, não vou. Preciso de falar com estas pessoas, elas encontrarão a Anna Louise.
Robert Caley também parecia uma estrela de cinema. Era senhor de um rosto de feições marcadas, que o bronzeado tornava mais proeminentes, e o farto cabelo preto exibia algumas brancas nas têmporas, o que lhe dava um ar austero que combinava com a voz de aço controlada e os olhos azuis penetrantes.
Por favor, Elizabeth, vai para o teu quarto. Não vale a pena perturbares-te desta maneira... estares sempre a passar por esta situação.
Elizabeth, contrariada, pousou a fotografia no seu lugar. Fez um beicinho petulante.
Eles são altamente qualificados, querido. Ao menos dá-lhes uma oportunidade... Dá uma oportunidade à Anna Louise.
Robert Caley ficou a olhar para a carpete durante uns instantes, e Lorraine reparou que estava a tentar desesperadamente controlar a sua ira. Depois ergueu os olhos e fixou-os nela.
A minha mulher, como pode ver, Mistress Page, está perturbada. Penso que é melhor retirarem-se. Neste momento temos agências de investigação mais que suficientes, para além da Polícia, a tentar descobrir o paradeiro da minha filha. Não precisamos de contratar mais ninguém. Isto é pura perda de tempo.
Elizabeth Caley enfrentou o marido, de punhos fortemente cerrados.
Quero que eles comecem hoje à tarde, Robert, faço questão. Mistress Page também tem filhas, sabe o que é ser mãe, além disso, vem altamente recomendada...
Tens a certeza? A mim o que me parece é que Mistress Page está interessada em te explorar, Elizabeth. Isto tem de parar. Não permitirei que tragas esta gente para dentro de casa.
Lorraine adiantou-se.
Dá-me licença, Mister Caley?
Robert Caley voltou-se para ela, fitando-a de novo com frieza e arrogância.
Não, a senhora é que me vai dar licença, Mistress Page, porque não sei que tretas é que andou a impingir à minha mulher, mas o certo é que não lhe reconheço a menor qualificação para nos ajudar a encontrar a nossa filha. Já estamos fartos de jornalistas, de oportunistas que se intitulam detectives particulares para nos explorar, pessoas que estão tão bem equipadas para descobrir a Anna Louise como...
-Se me der licença - insistiu Lorraine, com esforço -Não permitirei que a minha mulher seja submetida outra...
Lorraine interrompeu-o.
-A outra quê, Mister Caley?
Robert Caley suspirou fundo, desviou o olhar por momen tos e depois voltou a fixá-lo em Lorraine.
-A outra fraude, Mistress Page! Além disso, acho que a senhora é a mais flagrante que até hoje nos apareceu aqui É que, sabe, eu estou a par de tudo o que diz respeito à sua
agência, se é que se lhe pode dar esse nome, assim como dos seus antecedentes de alcoolismo. Expulsaram-na da Polícia por ter morto um rapaz, presumivelmente inocente, a tiro.
Não passa de uma bêbeda sem a menor experiência como detective particular. Quanto a ser mãe, já não vê as suas filhas desde que se divorciou. Talvez as agências contratadas para localizar a minha filha não tenham sido capazes de obter resultados, mas foram muito rápidas e informativas em relação a si. Portanto, agradeço-lhe que saia desta casa e nunca mais volte. Lorraine teve a sensação de que a carpete subia e a sufocava. Virou-se e pegou na bolsa. Rooney, que estivera sentado como um Buda silencioso, levantou-se e adiantou-se com a cara muito corada.
- Mister Caley, eu sou Bill Rooney e antes de começar a insultar-me... Se também me mandou investigar, saberá que me reformei recentemente da Polícia, comecei a trabalhar com Mistress Page...
-Agradeço simplesmente que saia, por favor.
- Ah, esteja descansado que saio, Mister Caley, mas antes disso quero prestar-lhe alguns esclarecimentos. Mistress Page foi alcoólica, já não é. E tenha ela feito o que fez, já pagou muito caro por isso. o que ela agora faz é que é a sua verdadeira vocação e não há ninguém melhor do que eu para o saber, porque trabalhei ao seu lado durante tempo suficiente. Tem mais sabedoria de rua, mais intuição do que qualquer dos’ agentes com quem alguma vez trabalhei, e vale mais do que qualquer detective que possa encontrar dentro ou fora de LA. Se a sua filha estiver viva, ela descobrir-lhe-á o rasto, e sem o explorar a si ou à sua mulher, porque a Lorraine Page é, antes de mais nada, uma profissional. Obrigado pela água gelada.
Rooney tinha a cara ainda mais vermelha quando se voltou e estendeu a mão a Lorraine. Nunca esta precisara tão desesperadamente dela desde que deixara de beber. Teriam os dois saído dali se Elizabeth Caley não agarrasse no braço de Lorraine.
Não, por favor não saiam, por favor... Já não estava a representar; naquele momento era a sério e, vista de perto, a sua juventude esvaíra-se, deixando-lhe o rosto vincado de sofrimento. Imploro-vos que encontrem a minha menina. Santo Deus, peço-vos por tudo que me ajudem.
Rooney tentou levar Lorraine para fora da sala, enquanto Mrs. Caley se voltava para o marido com ar suplicante.
Não os mandes embora, não podes mandá-los embora. Não me faças perder a esperança, por favor, não me faças uma coisa destas.
Robert Caley abrandou, recusando-se a olhar para qualquer deles. Toda a sua raiva desaparecera e, quando voltou a falar, pareceu simplesmente exausto.
Ficam contratados por duas semanas, com todas as despesas pagas, sejam elas quais forem, tudo o que precisarem e seja quanto dinheiro for. Se quiserem falar comigo, posso ser contactado no meu escritório durante as horas de expediente. Phyllis, faça favor de levar a Elizabeth para repousar e depois trate do contrato que for necessário.
Dito isto, afastou-se.
Elizabeth Caley suspirou, apoiando-se à porta.
Agora estou demasiado fatigada para falar, terão de voltar cá. Talvez amanhã... A Phyllis tratará de tudo.
Obrigada, Mistress Caley agradeceu Lorraine. Elizabeth fez-lhe sinal. Recuperara já todo o seu autocontrole, de aspecto quase gélido.
Quero dar-lhe uma palavrinha em particular. Importa-se de me acompanhar até ao quarto?
Rooney ficou a vê-las sair e depois sorriu a Phyllis. Esta fechou as portas com uma brusquidão que tornava patente o seu descontentamento por Rosie a ter ludibriado. Virou os olhos pequenos, de expressão gelada, para Rooney.
Muito bem, que pagamentos requer, Mister Rooney?
Somos três e iremos trabalhar juntos neste caso. Mil por semana.
Phyllis anuiu, acercando-se um pouco mais.
Três mil por semana, mais despesas que, segundo penso, estarão ao mesmo nível que as apresentadas pelas outras agências, não é verdade?
Rooney ficou de boca aberta por uma fracção de segundo, pois calculara que os mil dólares semanais seriam para os três
Precisarei dos recibos relativos às despesas adiantou Phyllis rapidamente, ao mesmo tempo que abria um pequeno bloco-notas.
Rooney sorriu, encantado.
Tê-los-á, Miss Collins.
Mal podia acreditar na sua sorte.
Lorraine não chegou a ver o interior do quarto de Elizabeth Caley. Esta, ao chegarem à porta dos seus aposentos, puxou Lorraine para mais perto.
Acha que consegue encontrá-la?
Farei todos os possíveis, Mistress Caley.
A ex-actriz assentiu com um movimento de cabeça e acercou-se mais.
Vou dar-lhe um incentivo. Se a encontrar, receberá um milhão de dólares de bónus.
Lorraine pestanejou.
Um milhão...
Sim. Quero que encontrem a minha filha, Mistress Page. Lorraine virou-se de modo a olhar pela ampla escadaria e
pouco depois, mantendo a voz o mais controlada possível, repetiu:
Um milhão?
Mrs. Caley confirmou.
Lorraine mudou o peso do corpo de um pé para o outro. A voz com que falou era baixa e suave como a de Mrs. Caley não mostrando, todavia, a menor hesitação.
Morta ou viva, Mistress Caley?
Se descobrir o paradeiro dela, morta ou viva, Mistress Page, receberá um milhão de dólares. Importa-se de colocar isso por escrito?
A mão branca e macia, de unhas pintadas em vermelho cor de sangue, agarraram na de Lorraine, dando-lhe um aperto límpido e firme, provocando, mais uma vez, a impressão de que Elizabeth Caley era constituída por duas pessoas: publicamente apresentava-se como a estrela de cinema, a actriz consumada, mas por baixo das aparências havia algo mais, algo que Lorraine não percebera antes porém não se tratava da frieza de gelo que esperara. Elizabeth Caley estava assustada, muito, muito assustada. Vistas de perto, as pupilas dos seus olhos castanhos rasgados apresentavam-se dilatadas, mostrando a Lorraine que se encontrava sob o efeito de alguma droga.
Só depois de saírem pelos portões comandados electronicamente é que Rooney deixou escapar um assobio.
Mil dele para cada um de nós durante duas semanas, mais todas as despesas. Bilhetes de avião, hotéis, temos carta branca total, nada de poupar. A Rosie tinha razão: não há dúvida de que este caso envolve muito dinheiro.
Lorraine lançou-lhe um olhar de viés e depois olhou em frente.
Há um bónus declarou calmamente. O ex-comandante da Polícia ficou intrigado. Se encontrarmos a Anna Louise Caley, dão-nos um milhão de dólares.
Rooney travou a fundo e Lorraine teve de apoiar as mãos contra o painel de instrumentos para não escorregar do banco.
O quê? Estás a brincar, não?
Não, não estou a brincar. Ela vai pôr tudo no papel. Colocou o cinto de segurança.
Diabos me levem, um milhão. Caramba.
Dizes bem proferiu Lorraine com um sorriso ténue. Rooney abanou a cabeça, incrédulo.
Só uma coisa, Bill... Melhor dizendo, duas. Obrigada por me teres defendido diante daquele estupor do Caley.
Rooney voltou a acelerar.
Não tens que agradecer, só disse o que pensava. O tipo enfureceu-me. E qual é a segunda coisa de que me queres falar? É sobre a divisão do dinheiro?
Lorraine sorriu.
Não, essa é feita em três partes. Mas... quem conduz esta investigação sou eu, não tu, Bill. Eu é que dou as ordens, entendido?
O ex-comandante concordou com um aceno de cabeça.
Sim, entendi, quem manda és tu.
Sim, sou eu reforçou Lorraine em voz baixa, deixando escapar um berro logo a seguir e dando um pequeno murro nos ombros avantajados do colega. Um milhão!
Nessa mesma tarde, Lorraine, Rooney e Rosie discutiram a maneira de iniciar a investigação sobre o desaparecimento de Anna Louise Caley. Primeiro, pediriam aos Caley um adiantamento sobre os seus honorários. Rooney contactaria os agentes que sabia estarem ou terem estado envolvidos no caso em LA. Isso diminuiria o volume de perguntas que teriam de ser feitas a Mr. e Mrs. Caley, e Lorraine queria obter o máximo de informações preliminares que conseguisse, antes de falar com qualquer deles. Todos os artigos saídos nos jornais sobre o desaparecimento da jovem teriam de ser examinados na biblioteca central e depois fotocopiados, levados para o escritório e arquivados.
Sentiam-se entusiasmadíssimos. Um milhão de dólares era um incentivo dos diabos.
Nessa noite, Rooney encontrou-se com o detective Jim Sharkey, sósia de Dean Martin, para um jantar de líquidos. No início, Sharkey não se quis comprometer e declarou que a Polícia fizera tudo o que estivera ao seu alcance.
A opinião geral é a de que a rapariga foi raptada por pessoas desconhecidas, embora não tenha sido exigido nenhum resgate. Outros casos com características semelhantes jamais teriam sido mantidos em aberto durante tanto tempo como este.
Rooney fungou.
Queres dizer que muitas raparigas simplesmente desaparecem.’
É verdade, Bill, muitas, e tu também deves saber como é. Temos um ficheiro de raparigas desaparecidas com o comprimento do meu braço e tentamos descobrir o rasto a quase todas. Podes crer no que te digo: gastámos mais tempo com esta por causa da categoria dos Caley. De qualquer forma, ela desapareceu em Nova Orleães... Portanto, nós por aqui pouco podíamos fazer. Chegámos mesmo a mandar uns tipos para investigar por lá, mas de nada serviu. Além disso, a cambada de estupores daquela terra não é nada amigável, praticamente sugeriram que nos viéssemos embora.
E vocês fizeram-lhes a vontade?
Pois foi. Em LA nada conseguimos, e olha que entrevistámos todos os putos que ela conhecia.
A miúda andava metida na droga?
Não, de modo nenhum. Sabes como é, como o corpo não apareceu ao fim dos cerca de onze meses, houve malta que pensou que ela se pirara.
Bill suspirou, recostando-se na cadeira.
Descobriram alguma coisa contra os pais dela? Sharkey mostrou-se indignado.
O quê? Vens outra vez com essa? Os tipos contrataram o melhor que há no meio. Se eles tivessem alguma coisa a ver com o desaparecimento da própria filha, podes crer que já teríamos dado por isso. Além disso, a tipa chorava que nem uma Madalena.
Mistress Caley? Sharkey anuiu.
Deve ter sido uma mulher espectacular. Ainda é. Caramba, que figura! E olha que eu, Bill, nunca apreciei mulheres mais velhas, percebes? Mas diabos me levem se não adorava dar umas voltinhas com aquela!
Rooney fez sinal de ter percebido. O facto de tanto um como o outro não levarem uma mulher para a cama há anos, a não ser que lhe pagassem, não impedia o seu clássico ego machista de acreditar que eram capazes disso. Enfiaram mais algumas cervejas e depois mudaram para a vodca. O jantar fora demorado. À meia-noite chamaram um táxi e seguiram para a esquadra de Sharkey, que ficava a norte de LA. Este aguentava bem a bebida e, apesar de não estar de serviço, recusou-se a deixar que Rooney entrasse na esquadra com ele. Ter o ex-comandante Rooney no seu encalço, com o seu bafo de cerveja, podia causar-lhe problemas, ainda mais tendo em conta o que ele concordara em fazer.
Rooney ficou à espera no táxi. Só quase uma hora depois é que Sharkey voltou e lhe entregou disfarçadamente uma resma grossa de fotocópias contendo informações. Fora uma noite dispendiosa, pensou Rooney quando o antigo colega aceitou o rolo de notas piscando-lhe o olho. Pedira-lhe quinhentos dólares e a garantia de que, se houvesse perguntas, os arquivos não tinham sido arranjados por ele. Rooney nem sequer fez referência aos trinta e cinco dólares do táxi, tão ansioso estava por fazer chegar aquele material a Lorraine.
Lorraine ficou até altas horas da noite a trabalhar nas informações obtidas por Sharkey. Tanto quanto lhe era possível ver, Anna Louise Caley era uma jovem apreciada por todos, simpática e mimada. Os colegas da sua classe que tinham sido interrogados só disseram bem dela. Todos, alunos e professores, referiram o facto de ser muito bonita ou até mesmo lindíssima. Nenhum fez comentários sobre as suas capacidades académicas, salientando, isso sim, a sua excelência no ténis, natação, equitação e atletismo. Nunca tivera namorado fixo; no entanto, Lorraine tomou nota do nome dos rapazes que admitiram ter andado com ela até à altura do seu desaparecimento. Decidiu-se a começar por eles. Dispunha do nome de numerosas estudantes que afirmavam ter sido grandes amigas de Anna Louise, e passou-as para o segundo lugar. A seguir vinham os treinadores e os professores. Iria ser uma corrida contra o tempo: como só dispunham de duas semanas para tratar do caso, ela destinara apenas dois dias para completarem a pesquisa em LA.
Na manhã seguinte, a Agência de Investigações Page transbordava de azáfama pela primeira vez desde a sua abertura. Os telefonemas para o escritório não paravam e obrigavam Rosie a andar numa roda-viva, toda corada e suada, para atendê-los.
Lorraine apontou para um enorme quadro de cortiça onde prendera listas de nomes de pessoas a entrevistar e aqueles em que ela deveria cruzar referências e apagar quando necessário.
- Muito bem, Rosie, fazes uma lista, por ordem alfabética, de todos os estudantes com quem tenho de falar. Vamos riscando por cima à medida que avançamos.
Rosie concordou. Reinava um ambiente de azáfama no escritório, o que proporcionava uma sensação deliciosa. Rooney recebera a missão de proceder a inquirições muito discretas junto das agências de investigadores contratadas pelos Caley, a fim de ver se havia algum ex-colega a trabalhar nalgum sítio a quem pudesse, tal como a Sharkey, passar uns dinheiros em troca de alguma informação que valesse a pena aprofundar. Inscreveu os nomes das agências no grande quadro de Lorraine.
- Santo Deus, será que andam todos às voltas com o mesmo caso? - perguntou Rosie.
- É como vês. Não há dúvida de que os Caley têm gasto uma pipa de massa - respondeu Lorraine, mastigando a ponta do lápis antes de o enfiar no cabelo.
- Pronto, vai ser assim, eu trato dos amiguinhos do liceu e tu, BilI, começas a ver o que podes desencantar com os teus ex-colegas... Oferece-lhes dinheiro, o que for preciso. Rosie, tu serás a nossa âncora... Aguentas aqui o forte; se descobrirmos alguma coisa telefonamos para aqui. o mais importante é não pararmos e ficarmos na posse do máximo de informações o quanto antes... De acordo?
Rooney disse que sim com a cabeça, enquanto Rosie tomava nota do número do telemóvel de Lorraine e lho passava.
- Assim podemos manter-nos em contacto permanente disse, radiante.
Lorraine olhou rapidamente para Rooney e piscou-lhe o olho.
- A ideia é precisamente essa, Rosie!
Lorraine iniciou as cansativas e trabalhosas entrevistas e alugou UM carro, um Buick de 88 que já vira melhores dias, munindo-se de um telemóvel para contactar o escritório enquanto andasse de um lado para o outro. Levou duas fotografias de Anna Louise e falou com quinze estudantes da UCLA, Lidar com raparigas joviais, ansiosas por falar e cheias de exuberância juvenil fê-la sentir-se infinitamente cansada e saturada; no entanto, o retrato mental que começara a formar era basicamente o mesmo que já emergira dos velhos ficheiros da Polícia. Fazer com que os jovens se sentissem descontraídos com ela dava-lhe um trabalhão, e o seu sorriso fixo começara já a desgastar-se; porém, não desistiu. Ao meio-dia já só lhe faltavam dois nomes na lista, de modo que foi até aos courts de ténis para se encontrar com Angie WelIbeck que, segundo Sharkey, era a «melhor amiga» da desaparecida. Depois de Angie iria falar com Tom Heller, tido como um dos rapazes que namorara Anna Louise.
Angie envergava calções de ténis, uma T-shirt branca, sapatos Reebock e meias brancas. Trazia as suas raquetes de ténis num saco de desporto branco, de aspecto muito profissional. Estava sempre a mexer nele, enquanto ia respondendo às perguntas de rotina que Lorraine dirigira delicadamente a todos os estudantes - se ela se dava bem com Anna Louise, se sabia de alguém que a detestasse, de alguém que pudesse nutrir algum rancor contra ela, com quem é que se dava, se tomava drogas ou bebia em excesso, em suma, como era a jovem desaparecida. Angie sentara-se num banco a olhar para os seus ténis brancos. Lorraine reparou que tinha sardas claras na pele levemente bronzeada.
Bem, a Anna Louise era realmente muito bonita e usava sempre roupas do mais moderno que há, sabe como é... Se aparecia alguma novidade, a AL era sempre a primeira a tê-las.
A AL? admirou-se Lorraine, farta de saber que a tratavam por esse diminutivo por já lho terem mencionado repetidas vezes.
É, tratávamo-la por AL porque Anna Louise não tem graça. Não estou a dizer que ela não tem graça, é só o nome.
Angie não dissera nada de desfavorável nem sequer dera a mais ligeira impressão de que a amiga não fosse perfeita. Apenas reiterou que, embora academicamente não fosse exímia, era-o no desporto, e muito competitiva também.
Competitiva, como? quis saber Lorraine.
Bem, gostava de ganhar, pelo menos no ténis. Jogámos muito juntas, às vezes em pares. O pai dela é um óptimo jogador, costumava jogar com ela... Penso que é por isso que é tão boa. Tem uma mão esplêndida, muito forte, apesar de não servir com tanta garra, mas joga muito bem. Praticava muito, suponho.
Tinha mau perder?
Claro.
Era agressiva?
Às vezes.
Discutia ou aborrecia-se com alguém em particular?
Não, era mais do tipo de se zangar consigo mesma.
Que quer dizer?
Bem, se perdia uma bola, gritava e enfurecia-se consigo mesma, percebe.
Ah! Portanto, nunca a viu discutir ou gritar com outra pessoa?
Não, mas talvez devesse perguntar a mais alguém. Eu joguei muito com ela, mas não fui a única. Quase sempre era a Tilda Brown. Era mais chegada à AL, mas não voltou para a escola, depois de ela desaparecer, mas isso imagino que já saiba.
Lorraine assentiu com a cabeça e sublinhou o nome de Tilda Brown no seu bloco de apontamentos.
-Vocês tinham todas o mesmo treinador?
- Que ideia, nem pensar. A AL era rica, como sabe, e o treinador era um ex_olímpico um verdadeiro Profissional. bem teríamos gostado de ser treinadas por ele - respondeu, soltando uma risadinha.
- o facto provocava inveja? - Lorraine começava a sentir-se entediada consigo própria.
- Sim, mas nada que tivesse a ver com o ténis. Lorraine observou Angie, que tirara a fita da cabeça e estava a acariciá-la com os dedos.
- Que quer dizer?
- o Jeff Nathan, o treinador, parece uma estrela de cinema, acho que treina muita gente famosa. Às vezes, quando eu ia a casa dela, ele jogava connosco, sabe, formávamos um conjunto de quatro, com o pai dela. Foi a unica vez que o vi,
- Ao treinador?
-Não, ao pai dela, que era muito simpático.
Os parceiros de ténis de Angie tinham-se aproximado, de modo que esta pediu licença para ir jogar. Lorraine não se lembrava de mais nenhuma pergunta para lhe fazer. À semelhança das outras pessoas com quem falara, Angie não fornecera nenhuma pista importante sobre Anna Louise, mas, tal como três outras jovens, fizera referência ao belo treinador de ténis.
- Era a melhor amiga dela? - perguntou ainda a Angie, que se pusera de pé com um salto.
A jovem virou-se para ela e sorriu.
- Não sei se era a melhor.. Acho que a Tilda é que pode ser considerada como tal, no entanto todos gostavam dela... Era uma rapariga realmente simpática. - o rosto de Angie ensombrou-se ligeiramente e a jovem hesitou, mordendo os lábios. - Acha que lhe aconteceu alguma coisa de horrível? Lorraine desviou o olhar quando a viu aproximar-se mais um pouco. Há quem ande por aí a dizer que se calhar foi assassinada. É verdade?
- Na verdade, não sei, mas agradeço o tempo que me dispensou.
-Tudo bem. Adeus.
Lorraine viu Angie juntar-se a outras três raparigas, todas equipadas para jogar ténis. Olharam na sua direcção e sorriram-lhe. Lorraine deixou-se ficar sentada durante uns instantes a vê-las aquecer, atirando bolas contra a rede. A julgar pelo som forte que a bola fazia ao bater, mesmo apesar de não se dedicar àquele desporto, não teve dificuldade em perceber que as raparigas jogavam muito bem. Portanto, se AL ainda era melhor, devia ter sido exímia.
Eu diria que podia ter-se tornado profissional se tivesse querido.
Lorraine estava ao pé dos campos de squash a falar com um rapaz de ar desajeitado, vestido com uma camisola largueirona. Tom Heller era muito alto e, bem-parecido, embora de feições vulgares.
Quando Lorraine lhe perguntou se jogava regularmente com Anna Louise, viu-o encolher os ombros.
Sim, de vez em quando, sempre que ia a casa dela aos fins-de-semana. O pai joga que é uma maravilha.
Lorraine acenou com a cabeça.
E quanto ao treinador, um tal...
Jeff Nathan? Sim, joguei com ele em sua casa. Dá lições particulares.
Gostava dele?
O rapaz franziu o sobrolho.
Para dizer a verdade não cheguei a conhecê-lo muito bem.
A Anna Louise gostava dele?
Não sei.
Foi namorado dela, não foi?
Saímos algumas vezes, nada de sério, festas na praia, realmente éramos bons amigos.
Fez sexo com ela? Tom corou.
Não.
Sabe se ela era permissiva nessa matéria?
Não... Bem, não mais do que outra pessoa qualquer.
Com quantos rapazes sabe que Anna Louise teve relações sexuais?
Corou de novo.
Sei lá! Como já disse, saímos algumas vezes, nada mais. E quanto ao treinador? Esse tal Nathan tinha alguma coisa séria com ela?
Tom olhou para Lorraine com desagrado.
Não faço ideia.
A detective sentiu-se subitamente aborrecida com a atitude sobranceira do rapaz.
Olhe, chama-se Tom, não é? Bem, eu ando a temtar
descobrir o paradeiro da Anna Louise. Ela desapareceu há onze meses e tanto pode estar enterrada numa cova rasa como dançar em Las Vegas. Estou apenas a tentar fazer o meu trabalho, percebeu? Portanto, se ela andava a fornicar com o treinador de ténis, e como você era seu amigo, isso é do seu conhecimento, nesse caso gostaria que me dissesse...
Não faço a menor ideia.
Sabe onde poderei encontrar esse treinador de ténis chamado Nathan?
Talvez em Bel Air. É onde joga.
Obrigado, Mister Heller. Desculpe ter interrompido o seu jogo.
Era quase hora do almoço quando Lorraine ligou do seu telemóvel para o escritório.
Como vai isso?
Optimamente, estou só à espera de que o Bill ligue para aqui a comunicar alguma novidade que tenha respondeu Rosie.
Eu vou a caminho do sítio onde se encontra o treinador de ténis. Que fazes neste momento?
Rosie franziu os lábios.
Muita coisa, tenho de marcar hotéis, voos e... O segundo telefone da secretária de Rosie tocou. Aguenta i instante, Lorraine, pode ser o Bill na linha dois.
Era Bill, de facto, a dizer que não obtivera nada de especial de nenhuma das outras investigações ligadas ao caso Calley mas continuava a insistir. Transmitiu a informação a Lorraine que sugeriu que talvez fosse boa ideia ele entrevistar a médium que os Caley tinham contratado em LA. Rosie repetiu tudo a Rooney e escutou a resposta dele com os dois auscultadores comprimidos contra os ouvidos antes de voltar a Lorraine.
Ele diz que isso é uma perda de tempo.
Diz-lhe que também o é um bando de miúdos ricos às voltas com raquetes retorquiu Lorraine a Rosie, mas antes de nos atirarmos a Nova Orleães temos de nos cobrir aqui. Diz-lhe isso!
Rooney conseguiu ouvi-la e riu-se, e foi ainda a rir-se que disse a Rosie que respondesse a Lorraine que ela é que era a patroa, mas quando esta tentou fazê-lo, já não havia ninguém no outro lado. Rosie pousou ambos os auscultadores e começou a consultar o manual telefónico para ver se haveria maneira de pôr duas chamadas em linhas diferentes em ligação uma com a outra.
Jeff Nathan possuía o tipo de corpo musculoso com o qual a maioria das mulheres fantasia. A T-shirt justa e os diminutos calções brancos de ténis mostravam pernas fortes e bronzeadas muito desejáveis, porém Lorraine só precisou de uns minutos para se aperceber de que todos aqueles bronzeados músculos masculinos quase de certeza só se enrolariam em volta de outro corpo masculino igualmente bronzeado.
O senhor é gay, Mister Nathan?
Caramba, como é agressiva!
Não, não creio que esta pergunta seja agressiva, mas realmente preciso de obter resposta a ela. Compreende, Mister Nathan, estou a tentar encontrar o rasto de uma jovem que está desaparecida há onze meses, e se o senhor teve relações sexuais com ela, então...
O treinador sorriu e abrandou a sua imagem de macho jogador de ténis.
Sim, Mistress Page, sou admitiu, olhando para o cartão que Lorraine lhe entregou.
Obrigada. Portanto, diga-me tudo o que sabe sobre a Anna Louise Caley.
Bem, eu era o seu treinador pessoal, portanto perdi um belo salário. A Anna Louise podia ter jogado a nível profissional, era muito coordenada, forte, mas tinha um grande defeito: se cometia algum erro, não era capaz de se perdoar. Enraivecia-se muito consigo própria e o facto prejudicava o resto da competição. Quanto mais zangada ficava, pior progredia o jogo.
Inclinou a bela cabeça para o lado. Sabe, na verdade eu só a conheci como seu treinador, posso falar-lhe sobre a sua maneira de jogar, mas nada acerca da sua vida pessoal.
E quanto ao pai dela? perguntou Lorraine. Nathan encolheu os ombros.
Bom jogador, batida forte mas pouca velocidade. Esperava que a bola chegasse até ele, nunca utilizava o campo. A jovem nunca se interessou em ser uma grande jogadora, a única coisa que lhe interessava era derrotar o pai, mas sempre que jogavam ela perdia. E podia tê-lo derrotado.
Ela atirou-se a si? perguntou Lorraine enquanto ca minhavam em direcção ao court. Achava o seu sorriso de den tes capeados pouco atraente; no entanto, reconhecia que, para uma jovem, poderia ser fascinante.
Atirar-se a mim? Minha cara, essa é, infelizmente, a principal razão que leva a maioria das pessoas... bem, mulheres, raparigas ou quem quer que seja, a contratar-me. Tenho de parecer e agir como um garanhão.
Foi o que aconteceu? insistiu Lorraine.
Se eu agi como um garanhão? Ora, tenha santa paciência...
O pescoço de Nathan esticou-se, as feições perfeitas distorcidas por um sorriso.
Portanto ela estava, digamos, apaixonada?
O treinador sorriu, exibindo os dentes brancos perfeitos
Talvez, mas asseguro-lhe que não tive o menor interesse em encorajá-la. Como já disse, os Caley pagavam-me muito bem para ensinar a filha, e eu teria sido um louco em deitar a perder um óptimo rendimento semanal.
Semanal?
É verdade, embora às vezes eu fosse até casa deles e ela não tivesse vontade de jogar, mas pagavam-me na mesma. Nathan voltou-se para uma loura baixinha que, de saia branca de ténis plissada, lhe acenava do outro lado de un campo. Tenho de ir, mas se precisar de falar comigo mais alguma vez, estou à disposição. Joga?
Lorraine olhou para a loura, que se esforçava por atirar uma bola por cima da rede.
Talvez tão bem como aquela respondeu, rindo e fa zendo-o rir também a ele. Simpatizava com aquele homem. Obrigada pelo seu tempo.
Nathan poucas informações de jeito lhe dera, mais uma vez nada que não estivesse já registado nos arquivos da Polícia. Observou-o em acção com a sua «aluna» e apercebeu-se de que esta já devia andar perto dos cinquenta anos. «Pobre mulher, deve sentir o mesmo entusiasmo por ele do que as suas alunas», pensou, reparando nos músculos que o treinador exibia ao arrastar o seu cesto de bolas para o meio do campo, em frente da loura.
Façamos um pouco de aquecimento com algumas jogadas simples, está bem, Mistress Fairley? Vejamos que progressos fez.
Lorraine regressou para junto do seu carro e foi ouvindo Mrs. Fairley guinchar uns quantos «Oooppps» e «Oh, desculpe...», conforme as bolas que tentava atirar destramente embatiam na rede de ténis.
Quando Lorraine saiu do complexo universitário já ia completamente esvaída, e irritada também. Talvez fosse a juventude e a superficialidade da juventude, mas o certo era que não lhe tinham fornecido nenhum dado verdadeiramente importante sobre a rapariga desaparecida. Assim como ninguém parecia ter uma palavra desagradável a dizer sobre ela, excepto o facto de ficar um bocado irritada quando falhava uma bola.
Lorraine ligou pelo telemóvel para o escritório, a fim de falar com Rosie.
Alguma novidade?
Não, por enquanto não replicou Rosie.
O Rooney foi falar com a tal médium? perguntou Lorraine.
Creio que sim, mas penso que achou uma perda de tempo.
Pois, está bem, agora vou até aos Caley. Como ainda não descobri nada de positivo, irei entrevistá-los e quando acabar ligo para aí.
Olha, não era o Rooney que queria participar nessa reunião com os Caley?
Rosie, quem dirige este caso sou eu, não o Bill Rooney. Rosie mal acabara de pousar o auscultador quando Rooney entrou intempestivamente no escritório.
A Lorraine acabou de ligar, vai a caminho dos Caley informou Rosie, a sorrir. Merda, eu queria estar nessa reunião. Eu sei, bem lhe disse, mas respondeu que quem dirije o caso é ela, portanto... Rooney fez pontaria com o chapéu para o cabide e falhou; a seguir despiu o casaco, mostrando a camisa manchada de suor.
Bem, tenho um contacto. Um velho amigo meu que esteve na Polícia há cerca de dez anos e agora trabalha na news, uma importante agência de detectives contratada pelo Caley. Para dizer a verdade nunca pensei que ele estivesse a trabalhar... Tem uma bela pensão de invalidez. O desgraçado ficou com uma perna cheia de chumbo... Combinei encontrar-me com ele hoje à noite. Como se chama? Nick Bartello. Rooney franziu o sobrolho. Italiano, não?
Pelo menos era. Ela não vai gostar dele. Não sei se chegaram a conhecer-se, estavam em departamentos diferentes. O Nick nas drogas e a Lorraine nos homicídios, comigo. Porque é que dizes que não vai gostar dele?
Porque ele é a cara chapada do velho parceiro dela, Lubrinski, o mesmo tipo de pessoa. O Nick e ele formaram equipa, embora por pouco tempo, pois o Lubrinski passou logo para o meu grupo.
Quem é esse? Nunca te falou nele? perguntou Rooney, de má catadura. Não respondeu Rosie, atravessando a sala para ir pôr a máquina de café a trabalhar.
Foram parceiros na antiga esquadra. Então porque é que não há-de gostar dele? Se é teu amigo, talvez possa passar-nos alguma informação confidencial.
Talvez. Quer então dizer que ela nunca te falou nesse tal Lubrinski? Rosie voltou para a secretária atravancada. Não...
Morreu.
Bom, então se calhar foi por isso retorquiu ela, sentando-se.
O Lubrinski era um tipo porreiro, um grande polícia. Para te dizer a verdade, Rosie, vi muitos ir abaixo no meu tempo, nem todos morriam, alguns apenas ficavam pirados, sabes como é, mas quando soube que o Lubrinski lerpara, foi o único agente por quem chorei. Não por ele ser um tipo impecável no seu trabalho, porque o era, mas porque era um tipo fixe, capaz de aguentar mais bebida do que qualquer outro homem. Solitário, marado dos cornos. Quando o pus a fazer parceria com a Lorraine, vi logo que aquilo ia dar estrilho...
E? quis saber Rosie com ar meio ausente. Mas como Rooney ficasse calado, ergueu o olhar para ele. Viu que mirava em frente sem ver.
Formavam uma dupla porreira, a melhor que alguma vez tive. Ele foi ferido num tiroteio, levou com três balas. Sangrou até à morte na ambulância. A Lorraine fez uma espécie de torniquete com os collants, para estancar a hemorragia... mas de nada serviu. Quando chegaram ao hospital já estava morto, mas ela não lhe largava a mão nem por nada. O assistente hospitalar contou-me que tiveram de recorrer à força para a afastar, pois não parava de lhe dizer que tudo iria correr bem.
Rosie ergueu as sobrancelhas.
Vê tu que a Lorraine nunca me fez nenhuma referência a isso. Que aconteceu depois?
Rooney suspirou fundo, ajeitando-se.
Ela quis voltar imediatamente ao serviço. Cerca de seis semanas depois, matou o tal miúdo...
Rosie tinha conhecimento de que Lorraine dera um tiro mortal num rapaz apanhado no meio de uma rusga ligada à
droga.
Talvez esse tal Bartello não seja boa ideia. É provável que ela não queira recordar o passado.
Já foi há muito tempo observou Rooney, tentando mudar de assunto. E o tipo é competente.
Nesse momento o telefone tocou, desviando a atenção de Rosie, que atendeu e por isso já não ouviu a afirmação de Rooney:
Acho que ela estava apaixonada pelo Lubrinski.
Rosie tapou o bocal com uma das mãos e acenou a Rooney com a outra.
É o Nick Bartello.
Viva, Nick, como vai isso? Quer dizer que recebeste a§ minha mensagem, não foi? Então quando é que nos podemos encontrar para tomar um copo? Claro, onde é que estás? Rooney tomou nota de um nome no bloco-notas de Lorraine. Muito bem, estarei aí dentro de uma meia hora... Pousou o auscultador com lentidão. £°
Pronto, vou-me embora. Se ela ligar, diz-lhe que fui ao Joe’s Diner. Pegou no casaco. Rosie, não toques no assunto do Lubrinski. Como disseste, já foi há muito tempo e não quero que ela pense que estivemos na má-língua, está bem? Rosie assentiu com a cabeça, mais uma vez distraída pelo telefone. Quando atendeu, já Rooney saíra. O telefonema era de Robert Caley a pedir para falar com Lorraine, pois a mulher encontrava-se indisposta, enquanto ele estaria em casa e não no escritório como ficara combinado. Falava com brusqidão e frieza. Um homem decididamente habituado a dar ordens, concluiu Rosie.
Rosie ligou para o telemóvel de Lorraine e transmitiu o recado. Recebeu uma revoada de impropérios, pois Lorraine já ia a caminho do edifício de escritórios de luxo de Caley, o Walter Garden, em Santa Monica. Não mencionou Nick Bartello ou Lubrinski. Lorraine desligou abruptamente, tal como Robert Caley fizera pouco antes, mas Rosie ficou a pensar no que Rooney dissera relativamente a Lubrinski. Tomar consciência de quão pouco conhecia do passado de Lorraine fê-la sentir-se incomodada, talvez porque isso também significasse, vendo bem, que não sabia exactamente quem era a ex-tenente Lorraine Page, a mulher com quem dividia o seu apartamento. Foi o mesmo mordomo de ar austero a receber Lorraine na sala de estar dos Caley, onde lhe pediu que aguardasse. A detective não se sentou, preferindo examinar as fotografias de Anna Louise nas suas molduras ornadas. Uma delas chamou-lhe a atenção em especial: Anna Louise aparecia entre Nathan e o pai, que tinha um dos braços em redor dos seus ombros, como que a exibi-la para a máquina fotográfica, com uma expressão de orgulho paternal no rosto. Dez minutos passaram vagarosamente. Lorraine analisava agora as enormes pinturas a óleo onde Elizabeth Caley aparecia a desempenhar os seus vários papéis no cinema. Era, de facto, uma mulher de grande beleza. Aproximou-se de uma que Rooney salientara, que a mostrava numa das suas primeiras personagens, não deveria ter mais de vinte anos. Tinha umas argolas douradas enormes nas orelhas e, na cabeça, um turbante de seda azulada parecido com os que as mulheres negras usam ocasionalmente, disposto de uma maneira que Lorraine nunca vira antes: o material era entrelaçado terminando em ponta para dar a impressão de uma coroa sobre a cabeça da jovem. Tinha os ombros nus, a pele de todo o corpo pintada em tom dourado, envolta pelos drapeados de um lenço vivamente colorido. Na moldura dourada via-se uma pequena placa onde se liam as palavras: «Marie Laveau, Rainha de Nova Orleães.» Lorraine, olhando ora para as fotografias de Elizabeth Caley ora para as de Anna Louise e de seu pai, não via grandes parecenças familiares.
Vinte minutos decorreram e Lorraine consultou o seu relógio, depois o de redoma que se encontrava sobre a cornija da lareira. Eram quase cinco da tarde. Estava prestes a sair da sala quando o mordomo voltou e, detendo-se no umbral da porta aberta, fez um gesto a Lorraine para que o seguisse, não dando a menor justificação pelo facto de a fazerem esperar tanto tempo.
Lorraine foi atrás da figura silenciosa uniformizada de preto, passou pela ampla escadaria em caracol, entrou num corredor, virando depois à esquerda e penetrando num solário em vidro, maravilhosamente iluminado. A vasta estufa de Inverno pareceu-lhe uma espécie de prolongamento da casa principal. Havia tal profusão de plantas tropicais que parecia estar-se dentro de uma floresta, com o pesado perfume das magnolias e dos jasmins a pairar no ar, e a condensação a enevoar os painéis de vidro mais baixos. Atravessaram a selva e desembocaram num pátio sombreado por plantas que cresciam em enormes vasos pintados de branco. O fundo deste era dominado por um piso extravagante e um mirante com cortinas brancas em volta; a mobília de jardim, branca, estava enfeitada com almofadões amarelo-pálido. No meio do mirante havia uma mesinha em cima da qual se via sumo de laranja gelado, um balde de gelo com duas garrafas de chablis e uma série de copos.
Mister Caley não demorará. O mordomo fez um gesto a convidar Lorraine a sentar-se e depois acercou-se da mesinha. Deseja tomar vinho, sumo, ou...
Continuo na água respondeu Lorraine secamente, irritada por Caley continuar a fazê-la esperar. Sentou-se numa cadeira de vime larga, desviando um almofadão amarelo para o lado, grata pela sombra proporcionada pelas cortinas de musselina. O mordomo serviu-lhe água fresca num copo cheio de gelo e, manejando a pinça com perícia, pegou numa rodela de limão e colocou-a na beira do copo. Obrigado agradeceu Lorraine, aceitando o copo e reparando na maneira como ele desarrolhava uma das garrafas, sentindo-a primeiro com as mãos, colocando-lhe depois u guardanapo em volta do gargalo e metendo-a, por fim, dentro do balde de gelo. Com licença, Mistress Page. Poderia parecer ilusão de óptica, mas realmente recuou dois passos antes de se virar e sair. Lorraine olhou para o relógio. Já ali estava há bem mais de uma hora e, como só dispunha de duas semanas para tratar do caso, achou que era tempo perdido. Beberricou a água gelada; ao avistar um enorme cinzeiro de vidro, inclinou-se e puxou-o para mais perto. Hesitou por um momento, mas depois acendeu um cigarro. Olhou em volta, para o pátio e, inclinando-se na cadeira, conseguiu ver a ponta do campo de ténis. Levantou-se e aproximou-se do atalho estreito. À sua direita ficava o campo de ténis duplo; Á esquerda uma vasta piscina ladeada de filas de cadeiras dispostas umas ao lado das outras, todas com toalhas em cor de limão e mesinhas no meio, como se se tratasse de um hotel. Ao fundo da piscina erguia-se um pequeno edifício em forma de pagode onde ela presumiu que ficavam o vestiário e os chuveiros. Havia um carreiro, ladeado de fontes de onde jorrava água, que conduzia a um jardim japonês, ou o que lhe pareceu sê-lo, por causa das árvores e arbustos bonsai. Não havia ninguém à vista nem jardineiros, nem nadadores ou tenistas. Tudo estava estranhamente silencioso, com excepção do cantar das aves: tão silencioso que chegava a enervar. Consultou mais uma vez o relógio e deu um pulo quando Caley apareceu, como que vindo do nada.
Desculpe tê-la feito esperar. A sua secretária explicou-lheque a minha mulher estava indisposta, razão pela qual estou aqui e não no meu escritório?
Não pareceu estar à espera de uma resposta ao seu pedido de desculpa. Aproximou-se da mesa e serviu-se de um copo de vinho. Houve um momento de hesitação e ela viu-o olhar de relance para o seu copo de água gelada. Não lhe ofereceu vinho, apenas se serviu sentando-se numa das cadeiras de vime almofadadas. Inclinou-se ligeiramente para o lado, pegou no almofadão e atirou-o para uma cadeira ao lado. Vestia com simplicidade, calças castanho-claras largas e sapatos de quarto. Tinha os braços à mostra, pois enrolara as mangas da camisa de seda azul-clara para cima com todo o à-vontade. Robert Caley ergueu o copo na sua direcção numa saudação e tomou um gole de vinho; Lorraine, porém, não conseguiu ver-lhe a pressão dos olhos, ocultos pelos óculos escuros. Tudo, em Robert Caley, possuía aquele fulgor de LA, aquela marca de grande prestígio, desde o fino relógio de ouro no pulso esquerdo à simples pulseira larga, também em ouro, no pulso direito. Não usava aliança.
Tem um jardim muito bonito.
Hum, demasiado alindado para o meu gosto, mas toda esta vegetação, que faz lembrar um cenário de estúdio, tem um objectivo.
Lorraine encostou-se e chegou o copo para mais perto, muitíssimo pouco à vontade.
A minha mulher nunca se expõe ao sol, tem a pele demasiado clara.
Ele, obviamente, fazia-o; era um daqueles homens, calculava Lorraine, que passava o ano inteiro bronzeado. Caley também era um homem muito seguro de si mesmo e, segundo parecia, com muito pouca pressa para lhe perguntar ao que viera.
Lorraine apagou o resto do cigarro, sentindo que, por trás dos óculos escuros, os olhos dele a percorriam com um breve olhar apreciativo. Tossiu ao de leve, cruzou as pernas e inclinou-se para pegar na bolsa que estava ao lado da cadeira.
Joga ténis, Mistress Page?
Não, não jogo.
Robert Caley sorriu e tomou mais um gole de vinho.
Também não me pareceu... No entanto, faz exercício físico, não é verdade?
Lorraine detestava o facto de estar a corar, de modo que atarefou-se a abrir a bolsa e a tirar de lá um bloco de apontamentos.
Faço, mas como mandou investigar-me deve saber que até há pouco, eu não me encontrava propriamente em forma.
O pai de Anna Louise ergueu o copo na sua direcção. Bem, o certo é que hoje está com muito bom aspecto. O seu cabelo é naturalmente louro?
É, mas faço madeixas.
De repente, Lorraine desatou a rir, achando aquela conversa ridícula. Nunca nenhum homem lhe perguntara se era, ou não, uma loura natural.
O cabelo da minha filha também é assim, louro-cinza, mas isso também a senhora deve saber pois tem fotografias dela.
Sim, tenho, obrigada. E obrigada por me ter enviado o adiantamento com tanta rapidez. Ah, isso foi obra da Phyllis. Caley estendeu a mão para a garrafa e voltou a encher o copo. Deseja mais água? Lorraine sacudiu a cabeça em sinal negativo.
Acho que não consigo lidar com o seu mordomo, faz-me lembrar uma personagem de uma dessas séries de televisão inglesas que passam na PBS. Caley riu-se, uma gargalhada agradavelmente profunda e cheia, e recostou-se na cadeira, cruzando uma das pernas por cima da outra.
Realmente, está muito perto da verdade. Ele era actor. muitos ingleses vêm para cá na época da escolha dos figurantes para os filmes. Quando não conseguem entrar em nada, suponho que aceitam aquilo que lhes aparece. No entanto, o Peters já está connosco há muitos anos. Acho que refinou a sua personagem muito bem. Os outros empregados são da nossa terra, melhor dizendo, da terra da Elizabeth, Nova Orleães: Berenice, a governanta, duas criadas, Sylvana e Maria, e Mário, o motorista. Creio que também temos quatro jardineiros, que cuidam dos terrenos em volta e da piscina.
Lorraine tomou nota do nome dos empregados. Posso fazer-lhe algumas perguntas?
Claro, é por isso que está aqui. Faça favor.
Depois de falar com os amigos da sua filha, depreendi que todos gostavam dela. Na verdade, é raro...
Todos gostam dela corrigiu Caley, como se se recusasse a utilizar o pretérito.
Conheci o treinador dela, o Jeff Nathan.
Sim assentiu Caley, é um excelente treinador e a Anna Louise é uma jogadora exímia. Seria de esperar que seguisse uma carreira profissional, já que é uma tenista nata.
O senhor também é?
Caley inclinou-se para a frente.
Desculpe?
O senhor também é um tenista nato?
Que ideia, não, mas não está aqui para falar de mim. Alguma das pessoas com quem contactou trouxe alguma novidade?
Não, nada de novo, por isso será necessário eu e o meu grupo irmos para Nova Orleães, assim que terminarmos as entrevistas aqui.
Caley assentiu com a cabeça e tomou mais um gole de vinho.
Sei que já falou vezes sem conta sobre isto, Mister Caley, mas importa-se de me dizer, nas suas próprias palavras, o que aconteceu exactamente no dia em que a sua filha desapareceu?
Robert Caley acabou de beber o que tinha no copo e levantou-se.
Tomámos o pequeno-almoço, e a minha mulher, que andava a ver se não faltava nada para levarmos, não nos fez companhia... Estávamos apenas a Anna e eu. A minha filha sentia-se muito bem-disposta, ansiosa pela viagem. Normalmente vamos lá passar o Carnaval, já lá vão muitos anos. A data do dia principal dos festejos, o Mardi Gras, é contada da frente para trás a partir da Páscoa, de modo a calhar numa terça-feira no início de Fevereiro, melhor dizendo, entre três de Fevereiro e nove de Março.
Lorraine sorriu e consultou os seus apontamentos.
Obrigada. Portanto, o ano passado partiram a quinze de Fevereiro, não é?
Exactamente. Cerca das nove e meia falei com a minha mulher e disse-lhe que estivesse pronta, mais a Anna, para sairmos ao meio-dia. Tinha alguns assuntos a tratar no escritório; quando voltei, pouco antes dessa hora, as malas já estavam na limusina. Tomei um duche, mudei de roupa e seguimos para o aeroporto; pouco passava do meio-dia e meia. Falava com voz inexpressiva, pois já repetira aquele relato vezes sem conta. Enfiou as mãos nos bolsos e foi até um dos lados do mirante, onde se encostou a um dos pilares. Tenho um jacto particular. Eu não fui a conduzir porque tinha alguns documentos para ver durante o voo, portanto deixei isso por conta do Edward Hardy, o nosso piloto. A Anna foi sentada ao lado da mãe, entretida a ver as revistas que estavam na mesinha central. Às tantas perguntou se a Phyllis lhe poderia mandar um dos vestidos de noite que vira e gostara nas páginas de moda. A Elizabeth ligou à Phyllis e combinou logo tudo na altura, pouco antes de aterrarmos. Tínhamos o carro à espera na pista e fomos directamente para o hotel. A Anna Louise mostrava o mesmo entusiasmo de sempre. Tencionava visitar uma amiga.
Lorraine folheou as páginas onde tinha os seus apontamentos.
Essa amiga era a Tilda Brown, não é verdade? Caley assentiu e Lorraine continuou:
E foram todos directamente para o hotel?
Sim, temos sempre duas suites contíguas alugadas durante todo o mês do Mardi Gras.
Refere-se ao Hotel Cavagnal?
Exacto, na Rue Chartres. É um velho hotel no coração do Bairro Francês, as varandas deitam para o pátio num lado para as ruas, no outro.
Porque preferem ficar num hotel quando têm casas na cidade?
Bem, durante o Carnaval está-se melhor no centro de toda a acção.
Lorraine olhou para Caley pouco convencida, mas este continuou calmamente, sem desviar os olhos dos dela.
E às vezes prefiro conduzir os meus negócios longe de um ambiente doméstico.
Lorraine voltou a olhar para o seu bloco de apontamentos.
Portanto, chegaram ao Cavagnal...
É verdade. A criada, que se chama Alphonsine, desembrulhou primeiro as roupas da minha mulher, depois as minhas e, por fim, as da Anna Louise. Vamos sempre a vários acontecimentos e festas, portanto é preciso verificar se está tudo engomado e limpo.
Lorraine anuiu e aguardou.
A Alphonsine vive em Nova Orleães?
Sim, vive, temos pessoal numa das nossas casas de lá. Ajudam-nos no hotel, vêem se queremos que levem alguma coisa para casa e preparam tudo para nos receber, pois, normalmente, seguimos para uma das nossas residências assim que o Carnaval termina.
Lorraine folheou os apontamentos. Tinha a morada das várias casas dos Caley e a lista do pessoal.
Portanto, a que horas... Caley interrompeu-a.
Assim que chegámos, a Elizabeth pediu uma massagem e eu fiquei na suite a fazer uns telefonemas. A Anna Louise foi tomar chá connosco e resolvemos jantar no Cavagnal, cedo, pois tínhamos uma série de convites e... A minha filha estava com vontade de... de troçar dos outros, de modo que começou a imitar algumas das senhoras mais velhas que nos tinham convidado para cocktails. A certa altura, a Elizabeth chamou-lhe a atenção, disse-lhe que, depois daquela noite, ela ficava livre para ver os seus amigos, mas até lá teria de se portar como devia ser. A Elizabeth é uma verdadeira celebridade e gosta de ser o centro das atenções nestas ocasiões, provavelmente isso fá-la lembrar os velhos tempos em que era actriz de verdade.
A Anna Louise discutiu com a sua mulher?
Não, realmente começaram a discutir mas foi sobre o que iriam vestir, conversa de mulheres. Fui nadar um pouco e voltei cerca das sete da tarde. Tomei duche e vesti-me; a Elizabeth já estava pronta, com o cabelo arranjado. Recorre sempre ao mesmo cabeleireiro, também neste caso alguém que conhece há muitos anos.
O Oscar Cloutier?
Precisamente. Ele saiu por volta das seis e meia, e uma hora depois descemos até à sala de jantar. Mandámos vir champanhe. Às sete e quarenta e cinco, a Elizabeth pediu-me que fosse chamar a Anna Louise ao seu quarto e assim fiz. Como ninguém respondeu quando bati à porta, presumi que já tivesse descido.
Lorraine consultou os seus apontamentos. Robert Caley acabara de repetir aquelas declarações, quase palavra a palavra, incluindo as datas dos festejos do Mardi Gras. Prosseguiu dizendo que ele e a mulher mandaram vir o que desejavam e até pediram camarões grelhados para a filha, o seu prato preferido em Nova Orleães.
Quando eram já quase oito da noite e vimos que a Anna Louise não descia, pedimos ao empregado que a fosse chamar novamente ao quarto. Ele regressou dizendo que ninguém respondia; então eu voltei lá acima e, ao ver que estava trancado, entrei pela porta que estabelecia a ligação entre a nossa suite e a da Anna Louise. Não vi nada fora do lugar e o vestido que iria usar encontrava-se estendido em cima da cama. Entrei na casa de banho e na sala de estar, vi a bolsa dela, pelo menos a que ela trouxera consigo no avião... Limitei-me a pensar que fora visitar alguém e se atrasara. Voltei para a sala de jantar.
Mas estava combinado jantarem todos juntos. Ela costuma desobedecer-lhe?
Bem, às vezes promete coisas que depois, como qualquer adolescente, nem sempre consegue cumprir.
No entanto, a sua mulher tinha-lhe pedido concretamente que jantasse convosco naquela noite.
Sim, é verdade.
Terá ela dado a impressão de não estar com vontade disso? Disse que a sua mulher a repreendera por se pôr a imitar trocistamente algumas das pessoas que vos tinham convidado para uns cocktails mais para o fim da noite, não é verdade?
Robert Caley suspirou, irritado.
Eu não diria que foi uma reprimenda, de facto disse «que lhe tinha chamado a atenção», portanto não foi nada de muito sério.
Em Nova Orleães já tinha acontecido a Anna Louise combinar jantar convosco e depois não aparecer?
Acho que sim, mas não me recordo de nenhuma ocasião importante. Ela conhecia a cidade e estava bem a par dos perigos que corria andando sozinha em certos bairros à noite. Tínhamos sido muito firmes na proibição de saídas nocturnas sem acompanhante. E nunca o fez, pelo menos que eu saiba.
Ela conhece a cidade bem, incluindo o Bairro Francês?
Sim, claro. A Elizabeth é de Nova Orleães, portanto, a Anna Louise tem lá estado muitas vezes desde criança. Chegou mesmo a debutar num dos bailes do Carnaval.
Então, a Anna Louise também tem muitos amigos por lá, não?
Claro que sim. Bem, até nem são assim tantos porque foi educada aqui, mas uma delas, a Tilda Brown, é sua amiga, talvez mesmo a mais chegada. Também andava a estudar na UCLA, mas é natural de Nova Orleães. Portanto, têm muito em comum.
Pensou então que ela tivesse ido ver a Tilda?
É verdade.
Mistress Caley também achou que ela fora visitar a Tilda Brown? Mas eu pensava que a Tilda tinha estado aqui pouco antes de partirem.
Robert Caley assentiu e depois encolheu os ombros.
Tiveram uma zanga qualquer, e a Tilda foi-se embora na véspera da nossa partida. Uma estupidez, realmente, pois poderia ir de boleia connosco, mas...
Sabe por que motivo as raparigas discutiram?
Não, não sei. Parecia irritado, batendo com a ponta do pé no chão. Eram, nitidamente, respostas às quais já respondera antes.
Segundo declarações anteriores, nessa noite o senhor só telefonou para casa de Miss Brown mais tarde.
Sim, é verdade.
Porque não o fez assim que deu pela falta de sua filha?
Porque, como já lhe disse, depois do jantar tínhamos coisas combinadas, compromissos, se preferir.
Portanto, apesar de ver a bolsa da sua filha no quarto... Caley voltou-se para Lorraine.
Não telefonei para casa de Miss Brown nem de qualquer outra pessoa porque nunca me passou pela cabeça, ou da minha mulher, que algo de mal lhe podia ter acontecido.
Como é que a sua mulher reagiu ao ver que a filha não descia para jantar convosco?
Robert Caley suspirou.
A Elizabeth é um pouco mais inconstante do que eu. Ficou muito aborrecida com a Anna. Saímos do hotel por volta das dez da noite, a fim de irmos ao primeiro compromisso. Quando voltámos, era meia-noite e um quarto; ficámos preocupados.
Telefonámos à família de Miss Brown. A Tilda já estava deitada, por isso falámos com os pais, que nos disseram que a Anna não aparecera por lá nem ligara. Não a tinham visto.
Permita-me que lhe pergunte se usa óculos por receita médica... °’
Como? Lorraine olhou para ele, vendo-o tirar lentamente os óculos.
Obrigada.
Robert Caley aproximou-se mais, para que ela lhe pudesse ver os olhos. Apoiou-se na mesinha. Pensa que estou a esconder alguma coisa? Não, mas gosto de ver... O quê, a parte branca dos meus olhos? Ou você e os da sua laia adoram ver a dor dos outros? Será que não percebe, Mistress Page, que sempre que presto declarações como estas, sinto um pouco de culpa? Que se eu tivesse agido mais rapidamente a minha filha talvez pudesse ter sido localizada? Pois é, eu culpo-me a cada minuto de cada dia. A minha filha não aparece há onze meses, Mistress Page, e cada telefonema, cada carta é uma esperança, e cada esperança faz-me sentir um baque no coração. Que esperava de mim, lágrimas? Desculpe, mas tenho de fazer estas perguntas.
Pergunte o que quiser e eu tentarei responder, tal como fiz com todas as agências que contratei. Sei que a Polícia daqi desistiu, mas também sei que o caso continua aberto em Nova Orleães. Como é que espera que me comporte? Quero a minha filha de volta, rezo para que esteja viva, quer tenha fugido com algum tipo nojento ou feito o que porventura fez, perdoo-lhe porque isto assim é um inferno. Só quero voltar a vê-la, adoro-a, tenho orgulho nela e sinto muitas saudades. A sua ira e a sua amargura eram patentes, exibindo os olhos marejados de lágrimas. Lorraine, que não contava com aquela reacção, ficou desconcertada. A emoção demonstrada e a óbvia declaração de amor pela filha eram comoventes. Aquele homem sofisticado e bem-parecido mostrava-se, de repente, mais vulnerável do que algum outro que ela já encontrara, porque fora incapaz de se conter. Afastando-se ligeiramente dela, desatou a chorar, soluçando com intensidade.
Tenho saudades da minha filha, Mistress Page. Se passo ao pé do campo de ténis ouço-a rir e a gritar-me qualquer coisa. Só o facto de estar aqui neste mirante estúpido é doloroso, porque me lembro dela a rir e a troçar dele, assim como do ridículo jardim japonês que ambos detestávamos. E depois sou obrigado a ver a minha mulher a chorar noite e dia, vejo-lhe o rosto quando o telefone toca. Sem a nossa menina, esta casa está morta.
Lamento muito.
Não preciso da sua pena, Mistress Page, mas sim que encontre a minha filha. Ou, na pior das hipóteses, saber que ela nunca mais volta, para poder prosseguir a minha vida. As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto e ele limpou-as com as costas de uma das mãos, voltando depois a colocar os óculos. Desculpe, se precisar de fazer mais perguntas, esteja à vontade.
Lorraine fechou o bloco de apontamentos. Tudo o que ele lhe dissera estava registado, dali não viera nada de novo que pudesse esclarecer o que teria acontecido a Anna Louise. Pegou na bolsa, guardou o bloco dentro dela e hesitou.
Só mais uma coisa, Mister Caley. Disse que fez telefonemas do hotel, presumo que para sócios seus, mas não sei para quem ligou concretamente.
Amanhã de manhã ser-lhe-á entregue uma lista.
O senhor negoceia em propriedades horizontais. Importa-se de me falar com mais precisão das suas transações comerciais aqui e em Nova Orleães?
Caley voltou-lhe as costas.
Que diabo têm os meus negócios a ver com o desaparecimento de minha filha?
Nada, provavelmente, mas também nunca se sabe, portanto gostaria muito de conhecer o máximo de antecedentes sobre si...
Tê-los-á. Agora, se me dá licença...
Sim, com certeza. Hum... só mais uma coisa, sei que a sua esposa está indisposta, mas poderia falar rapidamente com a Phyllis?
Robert Caley acenou afirmativamente com a cabeça e aproximou-se de um intercomunicador em que ela não reparara, a um canto do mirante. Pegou no auscultador.
Phyllis, agradeço que venha ao pátio, se faz favor. Mistress Page gostaria de lhe dar uma palavra. Dito isto, agarrou na garrafa aberta e dirigiu-se para o campo de ténis, enquanto Lorraine ficava sentada, a olhá-lo. Rosie tentava decifrar a caligrafia pavorosa de Bill Rooney
Não consigo perceber isto. O que é? perguntou. Rooney bocejou.
É a médium a quem os Caley recorreram. Não estava em casa e já lá voltei duas vezes. Deixei duas mensagens.
Juda? perguntou Rosie.
Sim, é como se chama. Se queres que te diga, cá por mim ela é uma perda de tempo. Vou tomar mais uns copos com o Nick Bartello, parece que ele tem mais alguma coisa. Portanto, se Sua Excelência telefonar, diz-lhe que ligue para minha casa mais tarde. Bastante mais tarde, se bem conheço o Nick.
Rosie anuiu e tomou nota do nome, telefone e morada de Juda.
Esta noite tenho de ir a uma reunião, mas deixo-lhe o recado aqui em casa.
Óptimo, faz isso. Até logo despediu-se Roony saindo na altura em que o telefone começava a tocar.
Mister Rooney está? perguntou uma voz grossa e arrastada, com um autêntico sotaque da Luisiana.
Não, lamento mas já saiu. Quem fala? Quer deixar recado?
Estou só a responder ao telefonema dele. Fala Juda Salina. Sabe qual é o assunto?
Rosie empertigou-se, assumindo o seu lugar de sócia da agência de investigações.
Sei, andamos a investigar o caso da Anna Louise Caley e, O telefone ficou mudo. Rosie olhou para o auscultador, na dúvida de que tivesse sido por causa de algo sucedido do seu lado. Escreveu um bilhete a Rooney e a Lorraine, dizendo que a médium ligara. Também tomou nota da hora e do dia da chamada. Estava a ser muito profissional.
Phyllis brincou com o seu copo de água mineral.
- Ela precisa de comprimidos para dormir e às vezes não consegue levantar-se. Hoje foi o que aconteceu, mandámos chamar o médico, que receitou uns sedativos diferentes. É tudo muito triste, pobre senhora, mas farei os possíveis para que a receba amanhã.
Obrigada.
Lorraine tomou um pequeno gole da água tépida que o gelo deixara ao derreter e onde flutuava agora a rodela de limão anteriormente colocada com tanta habilidade.
Portanto, não se deu conta de nada de especial até ao dia em que a família partiu para Nova Orleães?
Não, não dei.
E a Anna Louise andava feliz e satisfeita com a perspectiva da viagem?
Sim, muitas vezes elas eram mais amigas do que mãe e filha. Quero dizer, de vez em quando lá tinham a sua discussãozita, é natural, a menina era muito voluntariosa, embora nunca ficasse amuada.
No dia em que partiram, quinze de Fevereiro, recebeu alguma chamada do jacto particular dos Caley?
Sim, recebi. A Anna Louise vira um modelo na Vogue e queria que eu lho comprasse.
Era frequente ela telefonar-lhe a dizer que lhe fizesse compras? Segundo os arquivos, tratou-se de um vestido em chiffon preto da Valentino, no valor de quinhentos dólares. Eu diria que a estragavam com mimos.
Phyllis franziu os lábios.
Acontece que os Caley são extremamente ricos, Mistress Page, e garanto-lhe que não foi a primeira vez. Poderá dizer que estava mimada de mais, mas, ao mesmo tempo, era uma das meninas mais meigas e sinceras que já conheci.
Mas estava estragada com mimos....
Não mais do que qualquer outra filha de pais ricos. Lorraine hesitou e depois proferiu:
Ou de um deles...
Desculpe, não percebi bem.
Sim, percebeu. Salta à vista que o principal dinheiro da família Caley veio da Elizabeth Caley.
Phyllis voltou a fazer cara de quem desaprovava o que ouvia.
Mister Caley também é um homem de negócios muito bem sucedido.
Mas o seu sucesso não era assim tão grande quando se casaram. Um velho recorte de jornal deu a entender que de rico não tinha nada, e que os dois conheceram-se quando ele mostrou uma propriedade a Mistress Caley.
Phyllis ficou hirta.
Receio bem não poder responder a essa pergunta. Só trabalho para a família Caley há dez anos e desconheço em absoluto o que ficou para trás. Só sei que Mister Caley trabalha muitíssimo.
Qual é o trabalho em que se ocupa especificamente em Nova Orleães?
Mistress Page, não estou a par dos negócios de Mister Caley. Sou dama de companhia e secretária de Mistress Caley.
Mas trata das contas. Foi a senhora, segundo creio, que procedeu aos meus pagamentos e continuará a fazê-lo, não é verdade?
Sim, Mistress Caley deu-me instruções para que lhe pagasse os honorários.
Não falou do caso a Mister Caley?
Deixei-lhe uma nota a informar do montante exacto despendido, como sempre faço.
Lorraine não mencionou o bónus de um milhão que Mrs. Caley prometera dar-lhe. Começava a sentir-se fatigada; fora um dia longo e ainda tinha de guiar até Pasadena.
Obrigada. Oh, só mais um pormenor: Tilda Brown, a amiga da Anna Louise, estava a passar uns dias aqui e ficara combinado voltar com os Caley para Nova Orleães, no entanto, partiu na véspera. Sabe porquê?
Phyllis levantou-se.
Não, não sei, mas provavelmente foi por causa de alguma partida de ténis. Penso que a Tilda costumava estipular as suas próprias regras e isso enfurecia a Anna Louise.
Chegou a ouvi-las discutir?
Não. A Tilda apenas me pediu que lhe arranjasse um bilhete, depois o Mário levou-a para o aeroporto.
Obrigada, Miss Collins. Sairei pelos jardins. Phyllis assentiu com a cabeça, dizendo que avisaria os seguranças para que abrissem o portão. ’Já
Têm seguranças de serviço a tempo inteiro?
Sim, depois do desaparecimento da Anna Louise, passámos a ter muita imprensa lá fora e Mister Caley não queria que incomodassem a esposa, de modo que agora temos seguranças a tempo inteiro a patrulhar a propriedade. A princípio, receava-se que a Anna Louise tivesse sido raptada, e os seguranças foram contratados para que houvesse mais tranquilidade por aqui.
Lorraine preparou-se para partir. Quando ia a afastar-se de Phyllis, deteve-se.
Esta casa pertence a Mistress Caley?
Sim, penso que sim.
E as propriedades em Nova Orleães?
Também, segundo creio, a maioria era da sua família.
Lorraine hesitou, sem saber se devia, ou não, fazer a pergunta seguinte a Phyllis ou deixá-la para quando falasse pessoalmente com Elizabeth Caley.
Mais alguma coisa?
Bom, sim, pode não ter importância, mas quem é o maior beneficiário do testamento de Elizabeth Caley?
Phyllis fitou-a com indignação e Lorraine percebeu que cometera um erro.
Provavelmente é inconsequente para a investigação... mas ao mesmo tempo tem de entender que...
Foi interrompida.
Lamento, mas realmente não posso esclarecê-la.
Não tem importância. A que horas poderei cá vir amanhã?
Por volta das onze.
Obrigada. Certamente vê-la-ei amanhã.
Claro. Olhou para Lorraine com expressão ainda mais severa. Não há dúvida de que faz uma investigação exaustiva.
Não o disse à laia de cumprimento; no entanto, Lorraine sorriu como se assim fosse.
Acho que é assim que tem de ser, não é? E a Phyllis tem de compreender... posso tratá-la por Phyllis, não? Tudo o qe me disser é absolutamente confidencial. Se achar que há coisas que me possa contar no sentido de ajudar a minha investigação, seja o que for, espero que saiba que pode telefonar-me a qualquer altura.
Lorraine captou um brilho de hesitação quase imperceptível, mas Phyllis disfarçou-o imediatamente com um sorriso rígido.
Siga pelo carreiro da esquerda e irá ter à parte da frente da casa. Boa tarde, Mistress Page.
Lorraine saiu do pátio e seguiu ao longo do carreiro imaculadamente pavimentado. Passou pelo campo de ténis e parou. Robert Caley encontrava-se sentado num banco pintado de branco, com a garrafa de vinho numa das mãos, aparentemente de olhos fixos no espaço vazio. Ela seguiu em frente, passou pela piscina com as suas cadeiras de sol muito bem arrumadas e viu uma criada a recolher as toalhas não utilizadas.
Lorraine teria continuado em frente, mas Robert Caley chamou-a e ela voltou-se na sua direcção. Ainda tinha os óculos de sol colocados, mas tirou-os lentamente enquanto a olhava,
Estou a pensar em ir para Nova Orleães. Se durante esta semana precisar de ir lá, telefone-me. Pode... Esboçou um sorriso juvenil. Estou a oferecer-lhe boleia.
Lorraine retribuiu o sorriso.
Agradeço, depois telefono-lhe.
Ele acenou-lhe com a cabeça e ficou a vê-la afastar-se até desaparecer na esquina da casa.
Lorraine achara Robert Caley muito atraente, dera-se conta disso quando este se inclinara para si, apoiando-se na mesinha do mirante... mas não podia alimentar quaisquer desejos sexuais porque, se descobrisse que ele poderia retirar benefício do desaparecimento ou morte da filha, ficaria sob suspeita. Naquele momento Lorraine teve o pressentimento de que Anna Louise estava morta.
O Rooney disse que ele lhe lembrava alguém chamado Lubrinski.
Lorraine lançou-lhe aquele seu olhar meio de esguelha, com o cabelo a ocultar-lhe parte da cicatriz que tinha na face.
A sério?
Pois é, disse que foi ferido num tiroteio qualquer. Tem uma alcunha, Nick, o Coxo.
Não me digas?! disse Lorraine, reservadamente.
Afinal quem era esse tal Lubrinski? E que história é essa de teres feito um torniquete com os collants É verdade?
Rosie, já tinhas obrigação de saber como o Rooney é, diz montes de disparates. O que devia ter feito foi aquilo que lhe disse que fizesse, ou seja, ir falar com a médium. Temos duas semanas, Rosie, duas semanas.
Mas disseste ao Bill para contactar com todas as agências, e eu não passo propriamente o dia sentada de braços cruzados!
Ora, cala-te. E se não queres ir para o chuveiro, vou eu. Eu própria tentarei ir falar com ela hoje à noite.
De rosto levantado e olhos fechados sob o jacto de água do chuveiro, Lorraine sentiu as recordações voltarem, entre elas o modo como Jack Lubrinski a olhara na sua agonia, agarrando-lhe fortemente na mão.
«Vais ficar bem», mentira-lhe ela. «A ambulância está quase a chegar, meu filho da mãe, mas entretanto ”
«Caramba, se eu soubesse que era preciso levar um tiro para te ver despir as meias, já o tinha feito.»
«Cala a boca, grande pervertido!»
Ele morrera-lhe nos braços quinze minutos depois, enquanto a ambulância, de sirene aos berros, abria caminho por entre o trânsito até ao hospital. Ainda estava agarrado à mão; era como uma criança quando a luz se apagara nos seus olhos. Tiveram de lhe arrancar a mão da sua. Ela não queria largá-la, Com certeza ainda havia esperança, no entanto, não era assim, Lubrinski, com os seus cabelos pretos e os olhos escuros, deixara um vazio dentro dela. Seria por isso que desejava Robert Caley? O resto da sua vida iria ser assim, atraída por quem se parecesse com Lubrinski? Seria por Robert Caley ter cabelos escuros e aquele ar feroz e assustado nos olhos que se sentia atraída por ele? Fora o que vira quando ele tirara os óculos escuros: medo e dor. Lubrinski escondera-se sempre por trás das observações espirituosas, da aparência de duro, até chegar às portas da morte; nessa altura vira-lhe algo no olhar que lhe apertara o coração. O que seria? Porque a atraía? O que ela sentia nada tinha a ver com um sentimento maternal. Não queria fazer de mãe com Robert Caley: queria que este fizesse amor consigo, tal como acontecera em relação a Lubrinski Mas, nessa altura, estava casada e tinha as duas filhas. Desejava, ao menos, ter-lhe dito uma vez, antes de ele morrer, que o amava. Fechou fortemente os olhos e cerrou os dentes; não iria chorar, já lá ia muito tempo. No entanto, não conseguiu conter as lágrimas, pois era a primeira vez que admitia perante si mesma que amara Jack Lubrinski. Lutara contra esse sentimento, negara-o mesmo após a sua morte, mas naquele momento, passados todos aqueles anos, chorou e murmurou para si mesma: «Eu amei-te, Jack, e ainda sinto a tua falta.» Rosie abriu a cortina do chuveiro.
Telefonei à médium. Diz que não receberá ninguém. Lorraine estendeu a mão para uma toalha.
Queres apostar?
Vais lá agora?
Vou. Temos duas semanas, Rosie, duas semanas.
Oh, posso ir contigo?
Lorraine ia recusar, mas reparou na ansiedade infantil de Rosie e mudou de ideias.
Claro, porque não?
A morada foi fácil de encontrar, mas o apartamento hcaví no piso inferior é ao fundo de um corredor. O bloco de apartamentos era caro, com intercomunicadores, segurança e um parque de estacionamento subterrâneo para os residentes. Lorraine tivera sorte; limitara-se a ir atrás de um carro que entrara no estacionamento, dissera adeus à condutora, que lhe retribuíra com um sorriso, alheia ao facto de Lorraine não poder ali estar.
Bingo, já estamos cá dentro. Assim, poderemos apanhar Mistress Salinas de surpresa, a não ser que ela tenha uma bola de cristal observou Lorraine ao ir atrás da mulher que entrara no parque de estacionamento.
. Andamos sempre a aprender declarou Rosie, impressionada; Lorraine, porém, já a apressava para que saísse do carro.
Boa tarde cumprimentou Lorraine com um sorriso, enquanto a mulher estacionava o carro.
Boa tarde respondeu a outra, ligando o alarme e dirigindo-se para uma porta de entrada particular.
Lorraine acercou-se rapidamente da mulher, que inseria o código de acesso ao elevador interno do edifício.
O tempo anda mesmo esquisito, hoje já vai quase nos quarenta comentou, olhando de relance para trás e ficando irritada por ver Rosie ainda a sair do carro.
A mulher concordou com um aceno de cabeça, mais preocupada em tirar as chaves de casa do que em prestar atenção a Lorraine. A porta do elevador continuava aberta e, antes que fechasse, Lorraine travou-a com um dos pés.
Está a ter problemas com o seu ar condicionado? perguntou Lorraine, mantendo a conversa e lançando um olhar furibundo a Rosie.
Não, mas reparei que hoje está mais calor.
É mesmo, se calhar subirá até aos quarenta, como disseram no boletim meteorológico.
Rosie entrou e a porta do elevador fechou-se.
O elevador que partia da garagem dava para o corredor principal, de onde subiam os ascensores que conduziam aos apartamentos. A mulher voltou-se na direcção delas quando Lorraine seguiu corredor fora, com Rosie no seu encalço, sem que nenhuma delas soubesse que, na verdade, iam na direcção certa, rumo à casa de Mistress Salina.
Sim, quem é?
Lorraine aproximou-se mais um pouco da porta. O meu nome é Lorraine Page.
Que deseja?
- Mistress Salina, preciso muito de falar consigo. Sou detecte«ive particular e ando à procura de...
Não sei como é que conseguiu entrar no edifício, mas é melhor sair imediatamente, senão chamo a segurança. _ Faça isso, Mistress Salina, mas olhe que Mistress Caley não irá ficar nada satisfeita.
Decorreram uns momentos de silêncio. Rosie manteve-se de parte, cada vez mais impressionada com Lorraine. Depois ouviu-se o som de uma corrente a ser retirada, uma tranca a ser puxada e um fecho mais no alto a ser rodado, até que se abriu uma frincha na porta.
Daqui a cinco minutos preciso de sair.
Com certeza, isto não demora muito. Podemos entrar?
Trabalha para a Polícia?
Não. Tem aqui o meu cartão. Chamo-me Lorraine Page e sou da Agência de Investigações Page. Esta é Rosie, a minha assistente.
Mrs. Salina agarrou no cartão e abriu um pouco mais a porta.
Cinco minutos.
Rosie ficou amuada, não gostava de ser tratada como assistente, pois era sócia da agência, mas nada disse ao entrarem num vestíbulo pequeno e escuro. A sala principal do apartamento ficava ao fundo de um corredor estreito, com fotografias de estrelas mais ou menos conhecidas penduradas nas paredes, ao lado de certificados de leitura espírita, de mãos, cristais, cartas tarot e outras. Parecia que Mrs. Salina lidava com todo o tipo de fenómeno psíquico e dispunha de um certificado para o comprovar. Rosie mirou tudo, arrependida de não ter levado um bloco de apontamentos consigo. Era um mundo bizarramente interessante, pensou; não admirava que Lorraine gostasse da sua profissão, conhecia-se de tudo um pouco.
Só depois de entrarem com Juda na pequena sala de estar é que a viram bem. A mulher tinha um ar exótico, pele cor de azeitona, cabelos negros e espessos encaracolados, apanhados num coque na nuca. Era extremamente gorda; no entanto, à semelhança de muitas mulheres pesadas, movia-se com ligeireza e possuía mãos minúsculas e delicadas. Lorraine calculou que tivesse cerca de cinquenta anos, e os xailes, pulseiras e colares de contas grossas que usava lembravam-lhe os tempos de Flower Power». Em contraste, o seu rosto impecavelmente maquilhado era todo anos noventa, uma obra de arte onde imperavam as pestanas postiças muito bem postas, o baton igual ao que vira em Mrs. Caley, e até mesmo o contorno de lábios era no mesmo tom.
Sentem-se convidou a dona da casa, assestando o traseiro anafado numa cadeira de costas rijas. Como já disse, disponho de cinco minutos. Qual a razão da vossa visita?
Falava com o sotaque de Nova Orleães, não muito intenso, mas o suficiente para ser detectado pela maneira como a sua voz se arrastava e subia de tom duma maneira musical.
Olhou intensamente para Rosie que, desconfortavelmente empoleirada num banco alto, tentava confundir-se com o papel da parede. Deixara Lorraine ficar com a cadeira mais cómoda, ou antes, a amiga é que se apossara dela automaticamente, comportando-se como se Rosie não estivesse ali.
Fale-me da Elizabeth Caley.
Lamento, mas só com a autorização de Mistress Caley é que poderei falar sobre ela. A minha função assemelha-se à de uma sacerdotisa ou de uma médica, as consultas que as minhas clientes me fazem são rigorosamente confidenciais.
Mas, tal como eu, também a contrataram para localizar a filha deles.
Sim, é verdade.
Portanto, quantos contactos teve depois com Mistress Caley?
Lamento, mas não posso divulgar esse facto.
Deslocou-se a Nova Orleães?
Sim, fui até lá. Levantou-se da cadeira e aproximou-se de uma cómoda. Abriu uma gaveta e tirou de dentro dela uma fotografia. Ela tem uma presença muito forte.
A Anna Louise?
Ora, claro. Esta foto foi-me dada por Mistress Caley. Mostrou-a a Lorraine, que viu, mais uma vez, o rosto encantador e os longos cabelos louros.
É muito bonita.
Juda concordou com um aceno de cabeça e depois passou
a fotografia a Rosie, que se inclinou para a observar.
Sim, é realmente linda reconheceu Rosie. Juda voltou a guardar a fotografia na gaveta. Sem dúvida que é, e eu diria que ainda se encontra em Nova Orleães.
Viva? perguntou Lorraine abruptamente. Juda fechou a gaveta e deixou-se ficar de costas voltadas para Lorraine. Depois virou-se lentamente e, de olhos fechados, fez força contra a cómoda. Rosie examinou a mulher enorme; se ela andava preocupada com o seu peso, Juda tinha um problema ainda maior.
Acredito sinceramente que a Anna Louise esteja viva.
Por quê?
As pestanas postiças tremeram.
Já disse, sinto a sua presença. A menina está viva, tenho a certeza.
Porquê? insistiu Lorraine. Os olhos abriram-se.
Acabei de lhe dizer, sinto a sua presença.
Bem, pode ser que sim, mas eu não tenho a mesma sorte que a senhora, Mistress Salina. A minha missão é encontrá-la, não consigo sentir a sua presença, não estou em contacto com as... forças do oculto.
São mesmo forças, Mistress Page, bem fortes, e afianço-lhe que a menina está viva. Levo o meu trabalho muito a sério e quando a sinto, torno-me nela, e ela não me está a dizer que está «fria».
Pousou de novo os olhos em Rosie, que sentiu um calafrio de medo. Desviou o olhar, mordendo os lábios; havia algo de desagradável na mulher, assim como em todo o apartamento.
Então, o que é que ela lhe está a dizer?
Juda olhou intencionalmente para o seu relógio e em seguida para Lorraine.
Mistress Page, quem me está a pagar é Mistress Caley, não a senhora, e já lhe transmiti tudo o que consegui captar, ou seja, que a filha está viva.
Bem, se o problema é esse, eu também lhe pago. Juda fitou Lorraine com dureza.
Agora tenho de ir. Se Mistress Caley me disser pessoalmente que lhe posso contar o que sei, nesse caso pode voltar a ligar-me. Para já, a única coisa que me é possível adiantar-lhe é que, sempre que olho para o seu rostinho angelical, sinto a sua presença, uma aura de luz.
Bem, se essa presença puder indicar onde a Anna Louise se encontra, nesse caso falarei com Mistress Caley e depois voltarei para que me diga onde ela está. Sabe, eu lido com faC’ tos, não com fantasias, e a pequena já está desaparecida vai pa’ rã um ano. É muito tempo para não ter notícias, para não ter mandado um recado, uma carta, um contacto. Fui contratada para a encontrar.
-Mas presumo que esteja a ser paga.
- Claro, mas a senhora também.
-Não é verdade. o marido não autoriza que eu veja a minha pobre e querida Elizabeth.
-Também lhe disse que a filha estava viva? Juda atravessou a sala e parou junto da porta.
-Nunca tratei de nada com Mister Caley. No entanto, conheço a Elizabeth há muitos anos.
- Ela tornou-se toxicodependente, não é verdade? Juda lançou um olhar carrancudo a Lorraine.
- Eu disse que só tinha cinco minutos. Portanto, chegou a altura de se retirarem. Só concordei em vos receber porque me deu a entender que a Elizabeth manifestara vontade de que falasse comigo, mas acho que mentiu, tal como todos os outros que tentaram fazê-lo. Os meus clientes contam com a minha lealdade total.
-Com que outras pessoas é que já falou?
Juda voltou a lançar-lhe o seu olhar directo e deveras misterioso.
-Detectives particulares e a Polícia. Não têm o menor respeito por mim, Mistress Page, vejo-o e sinto-o nos seus rostos. Não precisam de dizer uma palavra, sei o que pensam de pessoas como eu. - Voltou a aproximar-se da cómoda e abriu uma das suas gavetas. - Tome, leve isto, mas agora têm mesmo de ir.
Entregou a Lorraine umas folhas saídas de uma impressora de computador barata, agrafadas. Juda nem mesmo esperou que ela lhe desse uma vista de olhos e seguiu impacientemente para o vestíbulo. Lorraine entregou os papéis a Rosie e fez-lhe sinal para que a seguisse até à porta da saída, já aberta, onde eram aguardadas pela vidente, ao que parecia cheia de pressa.
- Boa tarde, Mistress Page. Só uma coisa: importa-se de chegar mais perto de mim por um instante?
Lorraine aproximou-se da mulher e Juda olhou-lhe para o rosto. Ergueu a mão e tocou na cicatriz que sulcava uma das faces de Lorraine.
- Querida, devia dar um jeito nisso. Ficaria uma verdadeira beleza. Qual é o seu primeiro nome?
Lorraine.
Tive muito gosto em falar consigo, Lorraine.
Rosie encolheu-se para passar quando, mais uma vez, a vidente se inclinou.
Rosie. O seu nome é Rosie e tem um espírito bondoso. Passe bem, Rosie.
A cadeia voltou a ser posta e as trancas também, sonoramente. Para quem estava prestes a sair, era estranho voltar a trancar-se daquela maneira. Estaria à espera de alguém ou, simplesmente, mentira? Lorraine desconfiava que a segunda hipótese era a verdadeira, que Juda Salina não tencionava sair.
Lorraine e Rosie tiveram de esperar vinte minutos antes de uma residente descer e utilizar o código especial para abrir os portões de segurança. Sentaram-se a falar sobre Juda e, como Bill Rooney muitas vezes fizera antes delas, chegaram à conclusão de que a mulher era uma perfeita fraude, capaz de ganhar muito dinheiro à custa de pessoas desesperadas como Elizabeth Caley. Os impressos que a anunciavam eram toscos, de profissional nada tinham e referiam quantas pessoas haviam sido salvas pelas previsões de Juda Salina e quantas vezes. Também lhes juntara uma lista de casos policiais em cuja solução colaborara. Era tudo um disparate. Afirmar que sentia a presença de Anna Louise Caley e que esta se encontrava viva só servia para continuar a extorquir dinheiro a Mrs. Caley.
Rosie folheou os impressos de sobrancelhas franzidas.
Espero que ela esteja a falar verdade!
Sobre o quê? A bondade do teu espírito?
Não, quando diz que a rapariga está viva. Lorraine achava-se agora ainda mais convencida de que Anna Louise estava morta, mas considerava que Rooney devia, ao menos, verificar as chamadas investigações policiais indicadas nos papéis e a participação de Salina nas mesmas. Só descobrira um facto com interesse: Robert Caley não gostava de Juda Salina, o que o fizera subir na sua consideração.
Juda sentou-se a reflectir se devia, ou não, ligar a Mrs. Keley. Não lhe agradava nada o facto de haver mais uma detective particular a interrogá-la, ainda por cima com a suposta permissão de Mrs. Caley. Realmente, verdade fosse dita, desagradara-lhe profundamente que uma empregadeca qualquer de Mr. Robert Caley a tivesse informado de que estava proibida de voltar a visitar a sua mulher e que não haveria mais nenhum pagamento. Fizera muito dinheiro à conta da infelicidade deles, até uma viagem à sua terra. Mas daquela vez estava mesmo preocupada.
Rememorou tudo o que Lorraine lhe dissera. A mulher não lhe perguntara nada de novo, portanto, o que teria sido? A cicatriz? Pressentia que fora infligida por um homem; todavia, a mensagem fora muito imprecisa. Suspirou, sentindo-se cansada, sem saber se deveria ou não sujeitar-se àquilo, ainda por cima sem que lhe pagassem. Ainda não se resolvera completamente quando se levantou, correu as cortinas carmesim-escuro e apagou as luzes do tecto, reduzindo o quarto à escuridão mais absoluta. Sentou-se de novo. Quem a visse imaginaria que cabeceava de sono, que os olhos se lhe cerravam como alguém completamente exausto e incapaz de se manter acordado. Gemeu suavemente, como que a desfrutar de um prazer sexual, e afundou-se ainda mais no seu cadeirão. O seu peito subiu e baixou ao sorver o ar lenta e profundamente.
Sim, oh sim, sim sussurrou, enquanto as mãos minúsculas e delicadas apertavam os braços trabalhados do cadeirão desconfortável. Continuou a fazer inalações de ar curtas e vagarosas, de peito arfante, sentindo a cabeça a ficar cada vez mais leve à medida que entrava em transe. A escuridão insinuou-se no consciente de Juda. Por momentos nada aconteceu, depois começou, tal como acontecera quando estivera com Elizabeth Caley. Primeiro foram os sons distorcidos de música, depois os de uma rua. Ela não podia determinar a área, tudo decorria muito rapidamente, e não conseguia exercer nenhum controlo; no entanto, sentiu que o lugar era conhecido. Tal como acontecera na outra vez, algo começou a aterrorizá-la, mas dessa vez a sensação foi ainda mais forte. Os arquejos principiaram e fincou as mãos nos braços do cadeirão; sentia uma dor no meio do peito, como se um peso a sufocasse espremendo-lhe o ar dos pulmões. Começou a agitar as mãos; alguém ou algo se pusera a cavalo em cima de si, um homem, era um homem, e puxava de uma faca. Não conseguia ver-lhe a cara, só sabia que ele ia dilacerar-lhe a garganta.
O próprio grito que soltou rompeu o vazio escuro do pânico e ela atirou-se para a frente, sentindo-se perturbada só por uns instantes, antes de perceber que se encontrava a salvo no seu apartamento. O suor escorria-lhe pelas faces; deu umas pancadinhas involuntárias na nuca e no peito, assustada pela sensação horrível de sufocar, de alguém estar a matá-la tirando-lhe o ar. Mas não era ela, sabia que não era Juda Salina a ser assassinada, era alguém cujo nome começava pela letra L.
O L seria de Lorraine Page? Começou a ficar tensa, lembrando-se do que acabara por passar voluntariamente, e pela segunda vez. Juda recebera uma mensagem igualmente confusa quando entrara em transe em casa de Mrs. Caley, sobre alguém com o nome começado pela letra L. Sabia que assustara Elizabeth Caley, porém não percebera do que se tratara. Era frequente tal acontecer, a mensagem referente a um cliente podia confundir-se com a de outro, mas aquela fora especialmente forte. Na altura imaginara que a letra L se referia a Louise, Anna Louise, porque tivera uma sensação avassaladora de perigo iminente, e de morte. Mentira a Mrs. Caley, dissera que os poderes tinham sido fortes e que a sua filha estava viva; no entanto, sentira a morte muito próxima.
Juda tentou recordar o dia exacto em que visitara Mrs. Caley. Encontrou a data no seu diário e voltou a página para o dia seguinte. Leu o bilhete manuscrito pela secretária de Robert Caley, informando-a de que não deveria voltar a ir ter com a sua mulher. Eram os únicos apontamentos escritos no diário, naquele dia. Juda tamborilou nas páginas em branco com as unhas, tomou uma decisão e ligou para a residência dos Caley. Phyllis atendeu.
Phyllis, fala
Não deve ligar para aqui, pensei que Mister Caley lhe deixara bem claro. Ele não permitirá que volte a falar com Mistress Elizabeth.
Eu sei. Era consigo que eu queria falar... Phyllis quase sussurrou:
Se é sobre mais pagamentos, Mister Caley deu-me ordens para que...
Não, não é, só preciso de uma informação. Recebi a visita de uma mulher que trabalha para uma agência de detectives particular.
Refere-se a Mistress Page?
Sim, Lorraine Page.
É verdade, ela começou a trabalhar neste caso.
Em que dia é que a contrataram?
Terça-feira passada, no dia em que a senhora veio ver Mistress Caley pela derradeira vez. Como sabe, ela ficou muito perturbada depois da sua saída e... está?
Juda ficou calada.
Phyllis falou com voz preocupada.
Está? Ainda está aí? Há algum problema? Mistress Page disse alguma coisa?
Não, eu é que preciso de organizar as entradas da minha agenda. Obrigada, Phyllis, por favor diga a Mistress Elizabeth que continuo a pensar nela, mantenho a presença da Anna Louise viva no meu espírito e fico à espera do seu contacto. Adeus.
Juda pousou o auscultador antes de Phyllis ter oportunidade de fazer mais alguma pergunta. Podia querer convencer-se de que se tratava de uma coincidência, mas sabia que não era. Sentia com muito maior intensidade do que estaria disposta a admitir, que Anna Louise já estava morta há muito tinha a certeza. O que não fora capaz de entender até ali era o facto de, na terça-feira à noite, a mensagem que recebera a ter deixado fisicamente doente. No seu cérebro surgira uma ligação com a letra L, uma ligação que a deixara em brasa, rodeada de fogo e em perigo iminente. Naquele momento tinha a certeza de que o L se referia a Lorraine Page, e que havia muito mais alem de perigo iminente... Tinha a certeza de que a mulher ia morrer e, tal como vira com tanta clareza no seu segundo estado de transe, iriam cortar a garganta a Lorraine.
Lorraine pedira os odiosos rolos de cabelo aquecidos a Rosie, para ficar com o cabelo mais composto. Envergava uma blusa de seda creme, uma saia direita e travada, com uma racha lateral, e sapatos de salto alto. Colocou um casaco de linho azul-escuro nos ombros e afastou-se um pouco, a fim de apreciar o efeito.
Rosie encontrava-se na cozinha, a comer uma bela tigela de flocos de cereais à colher.
” Não sei como é que consegues encontrar sempre roupas óptimas nos saldos. Eu nunca arranjo nada que me sirva. Estás muito elegante.
Obrigada. Para trabalhar com a Elizabeth Caley preciso de me sentir bem.
Hum murmurou Rosie, com o leite a escorrer-lhe pelo queixo. E tencionas aceitar a boleia do marido dela? Deve ser agradável viajar num jacto particular, em grande estilo.
Lorraine procurou algo dentro da bolsa e da pasta estreita.
Ainda não estou pronta para deixar LA. Veremos. Entretanto, há uma lista de tarefas para ti: arranjar os bilhetes, marcar o hotel e começar a fazer as malas. Se precisares de falar comigo, liga-me para o telemóvel, talvez no princípio da tarde, e veremos o que o Rooney descobriu com esse tal tipo com quem saiu ontem.
Está bem concordou Rosie, olhando para a lista impecavelmente escrita.
Pouco depois de Lorraine se meter no automóvel e se afastar estrada fora, chegou Rooney, que travou ruidosamente em frente do apartamento e buzinou; ganhara o hábito de, sempre que passava por perto, ir buscar Rosie para lhe dar uma boleia até ao escritório. Esta desceu pesadamente os degraus de madeira e aproximou-se do carro, cuja porta ele lhe abriu.
Por pouco não encontravas a Veronica Lake... Foi até casa dos Caley. Deixou-me uma lista de tarefas e a ti mandou dizer que quer saber o que conseguiste descobrir através do Nick Bartello.
Rooney empurrou os óculos escuros pelo nariz acima.
Estou com uma ressaca dos diabos, mas aposto que o outro ficou bem pior.
Rosie fitou-o com maior atenção.
Caramba, onde diabo é que arranjaste esses óculos escuros?
Encontrei-os numa gaveta, acho que eram da minha mulher. Porquê?
Rosie sorriu.
Bem, é que nunca pensei que pertencesses a esse tipo de pessoa capaz de usar aros cor-de-rosa, mas olha que te ficam bem, combinam com a tua cor, que é assim a modos que avermelhada.
Rooney arrancou, a barriga comprimida contra o volante.
. Pois olha, quando me fartar deles posso dar-tos. Combinam com a cor de cabelo que dizes que tens.
Ora, cala-te, é da permanente. Sou ruiva natural e se quiseres provo-to.
Deus me livre! Nem mesmo sem ressaca aguentava!
Lorraine e o mordomo tiveram mais uma sessão de vénias formais antes de este a levar até à sala de estar.
Não terei de voltar a esperar muito tempo, pois não? perguntou-lhe ela.
O homem chegou, de facto, a sorrir-lhe ao de leve.
Mistress Caley está à sua espera, Mistress Page. Nesse momento, Phyllis apareceu e indicou a Lorraine que a seguisse pelas amplas escadas acima.
Faça o favor de levar o pequeno-almoço a Mistress Caley. E a senhora, que deseja, Mistress Page?
Oh, gostaria de tomar um café simples, com mel, se tiver. Obrigada.
O mordomo dirigiu-lhes um breve aceno de cabeça e seguiu pelo corredor que ia dar à cozinha, enquanto Lorraine continuava a subir as escadas.
Como é que ele se chama?
Peters, Reginald Peters.
Phyllis bateu às portas duplas do primeiro piso.
Entre.
Phyllis recuou e fez sinal a Lorraine para que entrasse primeiro na sala de estar de Elizabeth Caley, por pouco não embatendo nela, a qual parara abruptamente. A sala exibia uma Profusão enorme de flores perfumadas, colocadas em recipientes amplos que ocupavam a maioria das superfícies disponíveis, e embora as persianas tapassem as janelas abertas, as paredes em tons claros verde-limão, os reposteiros e a carpete pareciam fundir-se uns nos outros como se o quarto estivesse repleto de um sol esfuziante. Cortinas em musselina branca pendiam, às pregas, de varões metálicos, contrastando com a imobilidade dos cortinados de seda, com as suas franjas e braçadeiras douradas. Elizabeth Caley encontrava-se reclinada numa chaise longue forrada de seda branca, envergando um quimono ondeante verde-escuro, estampado com flores amarelas. Tinha o farto
cabelo negro entrançado pelas costas abaixo e uma fita branca larga atada à volta da cabeça. Punha creme nas mãos delicadas e sorriu afavelmente a Lorraine.
Entre, querida. Desculpe não lhe apertar a mão, mas a manicura acabou de mas arranjar e a rapariga nunca utiliza hidratante suficiente. Sente-se.
Lorraine olhou em redor. Havia almofadões em profusão espalhados em cada um dos sofás forrados a seda verde-limão e, antes de ter tempo para decidir onde se sentar, Phyllis optou por si, puxando uma cadeira de pernas finas para mais perto.
Obrigada, Phyllis. Já disse ao Peters para trazer bebidas frescas?
Sim, disse.
Óptimo, então pode retirar-se.
Phyllis saiu discretamente e Lorraine sentou-se, abrindo o fecho da pasta e tirando o seu bloco de apontamentos.
Fez alguma coisa de diferente ao seu cabelo? Lorraine sorriu. Não, limitei-me a lavá-lo. A própria Lorraine? Sim. Obrigada por me receber.
Nesse momento Peters entrou, empurrando um carrinho de rodas com café, croissants, chá e água gelada. Entregou a Mrs. Caley um delicado guardanapo de pano branco, impecavelmente engomado, e serviu-lhe um chá esverdeado. A louça era de porcelana fina. O mordomo deitou café na chávena de Lorraine e indicou-lhe o recipiente com o mel.
Mistress Caley ajeitou-se de maneira a ficar sentada e fez” -lhe um gesto.
Obrigada, depois, se precisar de alguma coisa, chamarei.
Com certeza, Mistress Caley disse o mordomo, ’ executando a sua meia vénia e recuando até sair da sala, fechando silenciosamente as portas atrás de si.
Deseja um croissant.
Não, obrigada.
Lorraine deitou uma colherinha de mel no café, esforçando-se por não deixar cair nenhuma gotícula em cima do imaculado paninho de tabuleiro. Elizabeth Caley pegou numa pinça de prata e colocou um croissant quente num prato, a seguir uma pequena porção de doce que estava numa taça de prata. Lorraine reparou que as mãos macias, de longas unhas vermelhas, tremiam, e que precisava de ambas para beber da chávena delicada.
Lamento não ter podido recebê-la ontem, mas certamente a Phyllis apresentou-lhe as minhas desculpas.
Com certeza.
Não sei o que seria de mim sem a Phyllis. Essa blusa é muito bonita.
Obrigada agradeceu Lorraine, equilibrando a chávena e o pires no braço da poltrona, ao mesmo tempo que colocava o bloco de apontamentos no colo. Peço desculpa de lhe ir fazer perguntas que já lhe dirigiram muitas vezes, mas tem de ser, é muito importante. Tentarei não lhe ocupar muito tempo, pois deve ficar muito incomodada...
Elizabeth Caley assentiu. Fazia lembrar Merle Oberon, com a mesma testa alta, agora realçada pela fita, e uma pele completamente lisa. A maquilhagem, como tudo o mais nela, era imaculada, os lábios levemente delineados a lápis num tom mais escuro. Não importava que a sua beleza tivesse, ou não, recebido já ajuda cirúrgica; àquela distância parecia não existir qualquer ruga. Comparativamente, Lorraine sentia-se envelhecida, como aconteceria com qualquer outra mulher. Elizabeth Caley era senhora de uma fragilidade e de uma feminilidade que, na sua idade, seriam ridicularizadas pelas feministas porque, sendo uma criatura perfeita como era, pertencia a uma era diferente. Nem sequer lhe passaria pela cabeça abrir uma porta para passar; era das tais mulheres acostumadas a que os homens arriscassem o próprio pescoço para lha abrirem primeiro.
Poderia falar-me do dia quinze de Fevereiro, o dia em que partiram para Nova Orleães?
Em que aspecto?
Bem, sei que a senhora e a Anna Louise estavam juntas antes do seu marido voltar do escritório e...
- Ah,compreendo, sim, bem, eu tinha de ver se tudo estava a ser emalado como devia ser... havia vários compromissos em vista, festas, jantares... Normalmente é o Peters quem faz as malas ao Robert, mas eu sou muito exigente, tenho sempre umas folhas de papel especial que evitam a formação de rugas, sabe, se forem colocadas entre cada peça de roupa...
-As malas da sua filha foram preparadas por si?
- Santo Deus, não. A Anna Louise é terrível, além disso, sabe como a juventude é hoje em dia, só quer jeans e T-shirts, e mais jeans e T-shirts, e sapatos de ténis. Acho que quem inventou esses horrores devia ser morto a tiro. Ela limita-se a atirar coisas para dentro da mala. Na verdade, tivemos mesmo uma pequena discussão por causa disso, pois eu pedira à Phyllis que se certificasse de que ela levava algumas das suas roupas mais bonitas, já que tínhamos alguns compromissos formais. Seja como for, acho que a Phyllis verificou o que ela meteu na mala e depois fomos para o terraço, onde comemos alguma coisa, esperar pelo Robert. Depois seguimos para o aeroporto e... - Ficou com uma expressão preocupada. - Ah, Sim, no avião, a Anna Louise viu um vestido de festa qualquer na Vogue ou na Elle, e fiquei muito admirada porque pareceu gostar realmente dele. Portanto, ligámos para casa e pedimos à Phyllis que o encomendasse e tomasse medidas para o ter em casa por altura do seu regresso.
Franziu de novo as sobrancelhas, dando pancadinhas com uma das longas unhas na testa.
- A Anna Louise estava muito bem-disposta, aparentemente ansiosa pela viagem e por ver os amigos, em especial a Tilda Brown, um amor de rapariga. A Tilda vem cá ficar muitas vezes; gostamos todos muito dela.
- Estava combinado a Tilda Brown seguir convosco para Nova Orleães, mas...
- Oh, é verdade, sem dúvida. Mas depois disse que queria ir mais cedo e a Phyllis tratou do assunto. Não faço ideia porquê, mas já sabe como são as jovens, acho que não se importam de gastar dinheiro sem necessidade. De qualquer modo, saímos, seguimos para o aeroporto e...
Lorraine ouviu Elizabeth Caley repetir, tal como o marido fizera, as declarações prestadas à Polícia, quase palavra por palavra, desde o momento da chegada ao hotel até ao jantar.
- Será capaz de se lembrar de algum pormenor, por mais trivial que lhe pareça, que não tenha ainda referido a ninguém?
Minha querida, rememorei vezes sem conta aquelas horas como se as visse passar num ecrã, em busca de uma pista, mas não há nada, absolutamente mais nada de que consiga recordar-me. E isso é o que torna tudo tão horrível, o facto de não ser capaz de me lembrar do que quer que seja que possa ajudar. Ela andava feliz, animada e ansiosa pelo Carnaval...
Já alguma vez saíra sozinha?
Claro que sim, mas nunca sem nos avisar para onde ia. É uma menina inteligente, tem conhecimento dos perigos a que se sujeita se andar sozinha à noite, sobretudo no velho Bairro Francês. Cheguei mesmo a conversar com ela sobre a importância de sabermos sempre do seu paradeiro. Como é de calcular, qualquer rapariga de Los Angeles cedo toma consciência dos perigos que corre se sair com desconhecidos, aceitar uma boleia, drogas...
Ela alguma vez consumiu drogas?
Desculpe?
Se, tanto quanto sabe, a Anna Louise alguma vez consumiu drogas como marijuana, por exemplo.
Não, de certeza absoluta que não, ela nem mesmo fuma. E raramente bebe, quando muito uma taça de champanhe, nada mais. É que, sabe, ela preocupa-se muito com a sua saúde e capacidade desportiva. Adora desporto e, claro, que qualquer permissividade em drogas ou álcool poderia ser-lhe adversa. Não estou a querer dizer que é uma santa, tem os seus defeitos. É capaz de fazer birras, tal como qualquer rapariga da sua idade.
Birras?
, Bem, não sei se será essa a definição mais correcta, é muito mimada, isso eu sei, mais pelo Robert do que por mim mesma, e desde pequena que consegue levá-lo a fazer-lhe todas as vontades. Ele dá-lhe muitos mimos, mas também é capaz de ser muito firme.
A sua filha é a principal beneficiária do seu testamento? Porque pergunta?
Lorraine escolheu cuidadosamente as palavras.. Bem, não aparecem indícios de que tenha sido raptada, não há pedido de resgate por escrito ou pelo telefone. Estou simplesmente a tentar descobrir se há algum motivo... Lorraine reparou que Mrs. Caley hesitava por breves instantes.
Sim, ela beneficia do meu testamento.
É a principal beneficiária?
É, mas também o é do testamento do meu marido. Fez-lhe a mesma pergunta?
Lorraine manteve os olhos baixos, como se estivesse concentrada nos seus apontamentos.
Fiz.
Ah, compreendo. Sim, na eventualidade de algo acontecer, a Anna Louise herdaria automaticamente tudo. E se, Deus nos livre, a Anna partisse primeiro, o Robert seria, obviamente, o parente mais próximo, e vice-versa.
Lorraine ergueu os olhos, preocupada por ver que Elizabeth Caley tremia visivelmente; naquele momento não eram só as mãos mas sim o corpo todo.
Sente-se bem?
Que aconteceu à minha filha?
Não sei, Mistress Caley, mas farei tudo o que puder para a encontrar.
Acha que está morta?
Só poderei responder a essa pergunta quando souber mais pormenores.
Elizabeth levantou-se com lentidão, apoiando-se às costas da chaise longue. Lorraine viu-a servir-se da mobília para atravessar a sala, agarrando-se às costas de uma cadeira por instantes, depois à beira de um armário.
Dê-me licença, é só um... Faça favor de se servir de mais café.
Lorraine pôs-se de pé, pronta a socorrê-la, mas Elizabeth apoiou-se por fim à porta que conduzia ao seu quarto e, antes que a detective pudesse ajudá-la, saiu e fechou-a estrondosamente atrás de si.
Lorraine serviu-se de um pouco mais de café e depois reparou numa mancha húmida e escura na base da chaise longue onde Elizabeth estivera reclinada. Seria incontinente? Tentou recordar o momento em que reparara que Mrs. Caley começara a tremer: teria sido quando lhe perguntara quem era o beneficiário principal?
Phyllis entrou, dirigiu um breve aceno de cabeça a Lorraine e murmurou um «com licença» antes de entrar no quarto.
Lorraine aguardou cerca de dez minutos. Phyllis saiu então do quarto e dirigiu-lhe um sorriso forçado.
Vou buscar chá acabado de fazer. Deseja mais café?
Não, obrigada, não quero nada. Mistress Caley está bem?
Está. Ela cansa-se com muita facilidade. Espero que não a demore muito mais tempo.
Phyllis colocou rapidamente uma das almofadas em cima da mancha e depois empurrou o carrinho de rodas para fora da sala. Ao chegar à porta, ouviu-se uma voz chamar do quarto em tom agudo e estridente:
Phyllis... Phyllis...
Lorraine viu a mulher voltar rapidamente para trás e desaparecer dentro do quarto. Conseguia escutar-lhe a voz sussurrante, mas não percebia o que dizia. Nessa altura, Peters entrou e, sem proferir palavra, levou o carrinho para fora. Reparou que a luz do intercomunicador faiscava e ouviu, mais uma vez, a voz de Phyllis. Dessa vez aproximou-se silenciosamente da porta do quarto.
Acho que devia. Posso pedir-lhe que se retire. Está bem, eu digo-lhe.
Lorraine só teve tempo de voltar para a sua cadeira antes de Phyllis sair do quarto.
O Peters levou o carrinho informou.
Mistress Page, acho melhor a senhora retirar-se porque...
Saia, Phyllis. Elizabeth Caley envergava agora outro quimono e atava firmemente a faixa de seda em volta da cintura- Eu direi a Mistress Page quando deve ir, não a senhora. »á, saia. E quero chá feito de fresco; para ela o que porventura estiver a tomar.
Não, não quero mais nada, obrigada. E se a minha presença causa transtorno...
Não, não causa. Vá, Phyllis, saia. Phyllis suspirou e assim fez.
Às vezes é mesmo metediça comentou Elizabeth, aproximando-se de uma mesinha de topo de vidro atravancada de fotografias e bibelôs. Abriu uma caixa de cigarros, de onde retirou um, comprido e fino. Pegou num isqueiro de ónix, sacudindo-o.
Lorraine puxou de um dos seus e ia a acender o de mrs- Caley quando o isqueiro de ónix ganhou chama. Ela inalou o fumo e atirou o isqueiro de novo para cima de uma cadeira.
A beleza, o rosto impecavelmente maquilhado ao ponto de parecer uma máscara, desaparecera.
Não quero que interfira, exclamou com voz estridente, enquanto as mãos, cujas unhas lembravam agora garras, apertavam a faixa do quimono. Qual prostituta reles, deixou o cigarro preso ao canto dos lábios pintados com baton acastanhado. Mistress Page, a senhora fará aquilo por que lhe paguei. Mas retirarei a minha oferta de bónus se voltar a falar com Mistress Juda Salina. Ela nada sabe da minha filha. Elizabeth mostrou uma folha retirada do seu próprio bloco de apontamentos. Nela estavam escrevinhados pela mão da própria os termos em que o bónus seria atribuído. Como disse, dou-lhe um milhão se encontrar a minha filha. Mas se falar com Juda Salina, não verá um centimo. Compreende o que estou a dizer? Não receberá mais nenhum pagamento.
A voz de Elizabeth Caley mudara. As vogais alongadas encurtavam-se, como se voltasse ao seu sotaque da Luisiana. Lorraine ficou fascinada, pois sabia que o que porventura Elizabeth Caley tomara no quarto só podia ser cocaína, speed ou algum tipo de estimulante, que a deixara hiperagitada fumava, passeava de um lado para o outro, agarrando constantemente na faixa do seu quimono.
Preciso de confiar em si.
Lorraine fechou o seu bloco de apontamentos.
Pode confiar, Mistress Caley, pode confiar em mim.
Está bem, está bem. Sim, isso é bom, eu preciso de confiar, percebe? Compreende?
Sim, compreendo.
O que não era verdade; ainda não fora capaz de perceber o que se estava a passar, mas, quando poderia tê-lo descoberto, Robert Caley entrou. Ignorou Lorraine e foi direito à mulher, que pareceu abraçar.
Vá, anda deitar-te, querida. Despede-te de Mistress Page. Manteve-a segura entre os seus braços, dirigindo-a para o quarto. Acho melhor sair, Mistress Page.
Lorraine ia a entrar no seu carro quando Robert Caley saiu apressadamente de casa.
Mistress Page chamou. Via-se-lhe uma nítida mancha avermelhada na face direita.
Sim inquiriu ela inocentemente.
Um momento, por favor. Bem, quando ontem falei consigo, talvez não tenha sido... honesto como devia.
Desculpe?
Disse-lhe que a minha mulher não podia falar consigo, que estava indisposta, como um bom elemento de relações públicas faria. Pois bem, já percebeu de que tipo de indisposição a minha mulher sofre...
Lorraine não se deu por achada, olhou para ele com o ar mais inocente de que foi capaz.
Não estou a perceber.
Robert Caley voltou-se, esfregando a cabeça.
Não há dúvida de que o desaparecimento da minha filha afectou profundamente a minha mulher. Não sei o que foi que lhe disse, mas penso que deve ter a noção de que ela pode ser muito irracional e... A Elizabeth tem tido nos últimos anos um problema relacionado com drogas devido a um ferimento antigo... Durante as filmagens do Santa Maria, uma galeria caiu-lhe em cima, provocando-lhe extensos ferimentos. Os médicos do estúdio certificaram-se de que ela estaria de novo no estúdio no dia seguinte, receitando-lhe analgésicos poderosos... bem... ainda hoje ela tem muitas dores e, ao longo dos anos...
Lorraine aguardou, vendo-o tentar justificar ou desculpar o comportamento da mulher.
Creio que podemos considerá-la uma mulher doente, e com o desaparecimento da Anna... o que estou a tentar explicar-lhe é que a minha mulher sofre de dependência desses chamados analgésicos. Está tudo controlado, como é evidente, mas agora deu em utilizá-los não para o sofrimento físico mas sim mental...
Compreendo.
Óptimo, porque detestaria que interpretasse mal a situação ou... Deus nos livre... a transmitisse aos órgãos de comunicação social.
Seria incapaz de o fazer.
Óptimo, obrigado. Sabe, tenho sido capaz de controlar a Dependência dela com a ajuda dos médicos, mas, às vezes, quando não estou aqui...
Se mentia, fazia-o muito bem, pois parecia verdadeiramente perturbado e preocupado.
Pode crer que compreendo, Mister Caley. Estes tempos devem estar a ser muito difíceis, não apenas para a sua mulher... e, claro, tudo o que me foi dito ou vi ficará estritamente entre nós.
Só lhe peço, Mistress Page, que descubra se a minha filha está morta ou viva, porque não o saber está a destruir-me a mim e a matar a minha mulher.
Rooney encontrava-se indolentemente instalado na cadeira da secretária de Lorraine. A campainha da porta soou e tanto ele como Rosie olharam na sua direcção. Nick Bartello detivera-se à entrada, a olhar absortamente para o tapete dos pés. O farto e desalinhado cabelo preto encaracolado chegava-lhe quase ao colarinho e estava a precisar de fazer a barba.
Entrou no escritório a coxear. A camisa, de algodão grosso azul, estava toda amachucada, e os jeans rotos não diminuíam a atracção imediata que exercia. Era um daqueles indivíduos que se sabia, só de olhar para ele, que tivera uma vida muito complicada. Coxeava muito pouco, andava apenas ligeiramente inclinado para um lado.
Ei, Nick, como é que isso vai? berrou-lhe Rooney.
Não só pareço como me sinto lixado. Tens por aí algum bocado de café?
Claro. A propósito, esta é a Rosie.
Olá, Rosie cumprimentou Bartello, deixando-se cair pesadamente numa cadeira desocupada. Ei, homem, ontem à noite apanhámos uma bela de uma carraspana, não foi?
É verdade, Nick, é verdade.
Rosie começou a fazer café. Nick tirou um bloco de apontamentos e uns papéis amarfanhados do bolso.
Pronto, é assim: sei que só me entregaram o caso quando os nossos detectives de topo o deram como perdido ou talvez por me quererem lixar. Como te disse ontem à noite, se eu não obtiver resultados mandam-me para a rua, e até agora ainda não tive sorte nenhuma. Hoje, precisamente há dez minutos atrás, o Robert Caley ameaçou mandar passear a agência se não obtivéssemos alguns resultados.
Rosie voltou para a sua secretária.
O café está a fazer.
Deixou-se ficar por ali, enquanto Nick a brindava com um sorriso esfuziante.
Obrigado, querida, faça-o forte e simples.
Virou-se de novo para Rooney, que sorriu maliciosamente.
O Nick está a ser pago a mil por semana mais despesas, e a Agnews recebe à volta de cinco mil. Se calhar, disseram ao Caley que puseram três de vocês a trabalhar no caso, não foi Nick?
Foi, mas na realidade os tipos principais andam metidos num caso novo, a tentar encontrar o ex-marido de uma cabra qualquer. Arrastarão a coisa o mais possível, portanto fiquei só eu, praticamente, a tratar do caso Caley. A empresa não quer perder os cinco mil que recebe por semana e eu não quero ficar sem emprego.
Rooney inclinou a cabeça para Nick.
Falaste-lhes sobre nós? Nick encolheu os ombros.
Não lhes contei uma palavra. Eles sabem que vocês foram contratados pelos Caley e... ei, Rosie, quando é que esse café está pronto? Tens aqui um homem desesperado.
Rooney deixou escapar um som de impaciência, enquanto Rosie verificava o coador; o líquido ainda só começara a borbulhar. Gostava de Nick Bartello, era rude, talvez, mas tinha algo de bondoso. Aquele seu sorriso era de cair para o lado.
Bill, estou disposto a dividir o meu salário. Dás-me o que tens e vice-versa.
Mas tu não tens nada de jeito.
Correcto. Nick riu. Era um som tão agradável como o seu sorriso.
Então porque haveremos de dividir contigo? Nós também recebemos uma bela fatia.
Pois sim, mas talvez eu tenha algo extra que não deixei escapar porque estava bêbedo. Ou tu achas que eu não percebi qual era a tua intenção?
Rooney resmungou mais uma vez; Nick não era nenhum tolo, apesar dos seus modos despreocupados.
Se queres mesmo dividir connosco, tem de ser muito bom.
Nick Bartello esfregou a barba que lhe despontava no queixo.
Bem, talvez eu tenha algo pelo qual valha a pena dividir o tal milhão de bónus que Mistress Caley prometeu.
Rosie olhou para Rooney; a bebedeira fora obviamente muito grande, já que ele contara aquele pormenor a Bartello de modo que, por um instante, teve a temeridade de se mostrar indignada.
Pousou com força a caneca do café.
Não achas que devias discutir isto com a Lorraine? Bartello riu-se.
Olha, eu conheço o tipo dela. Se o Jack Lubrinski foi seu amigo é porque é fixe, alinhará nisto. Ela bebe, não é?
Já não respondeu Rosie, furiosa.
Está bem, talvez já não, mas eu estou apenas a sugerir que dividam o milhão comigo. Largo o meu emprego e todos ficam satisfeitos, com possibilidade de pagar as hipotecas e ainda lhes resta mais algum.
Rooney lançou um olhar carrancudo a Rosie e depois virou-se para Bartello.
Está bem, concordo, e a Lorraine certamente também. Afinal o que é que tens?
Esperemos por ela para que tome conhecimento disto interpôs Rosie, servindo o café.
Ora, deixem-se disso, vocês só têm duas semanas observou Nick.
Rosie olhou para Rooney com ar furibundo, percebendo que ele devia ter contado tudo sobre o caso deles a Nick.
Vocês ainda só estão há um dia nisto, enquanto eu já ando às voltas com o caso há algumas semanas. Portanto, tenho informações que vos pouparão um tempo valioso.
Tu não tens nada declarou Rooney sem rodeios.
Está bem, vou ser sincero: tenho algo de que não te falei ontem à noite, mas nem penses que divido os feijões sem antes apertarmos as mãos.
Rooney olhou para Rosie e esta encolheu os ombros.
Está bem, fica combinado.
Os dois homens apertaram as mãos. A seguir, Bartello beberricou o seu café.
Bem, para começar, ouve o que te vou dizer. Soube de fonte segura que a Elizabeth Caley anda metida na droga até ao pescoço. Portanto, pode ser que o desaparecimento da filha tenha a ver com isso.
Diabos me levem, isso é verdade? perguntou Roony. Nick bebeu mais café.
Sim, é verdade, e olha que é um vício que lhe custa mais de trezentos mil dólares por semana. Ando a investigar entre os traficantes, pois pode ser que ela esteja a dever alguma coisa que tenha desencadeado a questão da filha. Também sei como se chama o seu médico. Ele só trata de grandes estrelas, mas também é conhecido por passar receitas de substâncias esquisitas.
Será cocaína?
Aparentemente, a dama toma aquilo a que puder deitar as suas lindas mãos. Já esteve em dois centros de recuperação, daqueles que são um luxo pegado. Nick entregou uma resma de papéis presos numa das pontas por um alfinete-de-ama. Consegui-os de uma enfermeira de rosto bondoso, a troco de uma nota de cem. A julgar pela papelada, eu diria que a tal anjinha bem poderia ganhar uns milhares extras passando esse tipo de informação à imprensa.
Rooney examinou o registo médico de Elizabeth Caley.
Diz aqui que a mulher se chama Maureen Sweeney.
Pois é. Bem, ela também não iria dar o seu verdadeiro nome para o ficheiro deles, não é? Mas trata-se de uma situação de abuso de substância...
Rooney acabou de ler os papéis e depois passou-os a Rosie.
É tudo?
Nick fez balançar a sua cadeira.
Bem, para começar é. E vocês, que têm?
A Lorraine foi ver uma tal médium disse Rosie, levando um pontapé de Rooney.
Nick ficou a olhar para Rosie.
Juda Salina? Rosie franziu o cenho.
Hum, não sei bem se é esse o nome. Rooney voltou-se para Nick.
Ela deu-te alguma pista?
Não, é uma simples impostora. Rooney concordou.
Pois, também acho, por isso nem sequer me dei ao cuidado de ir falar com ela. Não sei por que razão a Lorraine está tão interessada.
Então, que mais é que têm? insistiu Nick, ficando à espera e vendo Rooney a olhar de relance para Rosie, antes de levantar os braços para o alto. Caraças, estás a mentir, filho da mãe, vocês não têm é nada.
O Rooney fez o quê!? berrou Lorraine para o seu telemóvel.
Acalma-te pediu Rosie, tremendo.
Acalma-te. Estás maluca? Dizes-me que esse cretino gordo e estúpido desencantou um tipo meio lerdo não se sabe aonde, e não só lhe transmitiu todas as pistas que temos como ainda lhe ofereceu uma parte do milhão de bónus e pedes-me para ter calma?
Estiveram a trocar informações balbuciou Rosie.
Estou-me nas tintas para o que trocaram.
Mas a informação do Nick era boa... Lorraine interrompeu-a.
Rica informação. Pensas que eu não tinha já visto que a Elizabeth Caley andava completamente drogada? Santo Deus, Rosie, percebi logo isso mal nos conhecemos.
Bem, eu não.
Nunca a viste ripostou Lorraine com secura.
Bem, talvez se possa resolver disse Rosie nervosamente.
Ah, pois, o estupor trabalha para a Agnews, não é? E, não é? E tu achas que ele não vai direitinho a eles contar tudo!
Não me parece respondeu Rosie, nervosa.
Tu não pensas, ponto parágrafo, nem esse filho da puta estúpido do Rooney. Como é que ele foi capaz de fazer uma coisa destas? Lorraine esmurrou o painel de instrumentos com raiva. Onde é que ele está agora, o Rooney, e esse tal Bartello?
Em casa.
Encontramo-nos lá.
Rosie levou vinte minutos a ir a pé do escritório ao cruzamento principal de Orange Grove e depois enveredou por Maengo Drive. Viu o carro alugado mal estacionado, mesmo por baixo da placa de proibição de estacionamento. Também avistou o de Rooney no outro lado, em frente do apartamento.
Rosie ouvia-os a discutir da rua.
” Eu já te tinha dito que quem dirigia o caso era eu, não tu, Eu.
Está bem, está bem, desculpa, mas nem penses que o Nick vai contar tudo à agência dele.
Ah não? Tens assim tanta certeza disso? gritava Lorraine.
Conheço o homem muito bem, garanto-te que é fixe.
Oh, tu é que mo dizes, não é?
Sim. E se te acalmasses só por um bocado...
Não me digas que me acalme, Bill, porque estou a ferver! Rosie entrou intempestivamente, mas nem Rooney nem Lorraine olharam sequer para ela.
O Nick deve estar mesmo a chegar e então poderemos resolver este assunto.
Nem pensar em dividir a massa por quatro!
Não seria melhor votarmos? sugeriu Rosie, arrependendo-se logo a seguir.
Lorraine olhou-a iradamente antes de seguir para o quarto, desabotoando a blusa.
Quando é que vocês os dois vão perceber que este caso é meu? Nada de votos, eu é que tomo as decisões!
Rosie estava a comer uma refeição à base de massa e salada; na verdade, já perdera dois quilos desde que começara a trabalhar no caso Caley. Ficara surpreendida e resolvera acabar de vez com os bolos e os pastéis entre as refeições. O regime sem gorduras estava a fazê-la sentir-se física e mentalmente melhor.
O que é isto? perguntou Lorraine, pegando num pedaço de massa em espiral com um garfo.
É fusilli, com alho e molho de tomate. Se não gostas, fica para mim e para o Bill.
Lorraine meteu uma garfada na boca e fez uma careta.
Santo Deus, carregaste no alho.
Se queres ir para a cozinha, é toda tua retorquiu Rosie.
Então a que horas é que o Nick aparece?
Deve estar mesmo aí a chegar respondeu Rooney. Lorraine levantou-se e foi buscar o seu bloco de apontamentos.
Muito bem. A Juda Salina não me disse nada de especial excepto o facto de ter sido contratada não pelo Robert Caley mas sim pela mulher. Recusou-se a contar muito mais por causa da treta da confidencialidade de que diz que os clientes gozam, e Mistress Caley está disposta a retirar o bónus se voltarmos a contactá-la. Vou ter de solicitar nova conversa com a Dona Estrela de Cinema que anda viciada nos chamados analgésicos. O Robert Caley admitiu que a mulher está dependente de medicamentos; cá para mim ela parecia estar com medo do marido, se não dele, pelo menos de eu descobrir que ela é uma drogada. Seja como for, o tipo foi muito sincero, mas, na qualidade de possível suspeito, pode movê-lo o motivo de, se a filha ficar fora do caminho, ser ele a herdar a fortuna, como único beneficiário. É apenas uma suposição, pois Mistress Caley disse que ambos nomearam a filha nos respectivos testamentos. Portanto, quem for primeiro... bingo, o outro fica podre de rico. Olhou para Rosie, que pegara no prato e se preparava para despejar os restos do mesmo para o seu. Merda, Rosie, ainda não acabei.
Desculpa, mas achei que o alho não te agradava...
Não, está óptimo observou Lorraine, chegando o prato mais para si e levando uma garfada à boca.
Quer então dizer que ele é suspeito, é? perguntou Rosie.
Por enquanto talvez seja, primeiro preciso de conhecer a situação financeira...
Todos se voltaram para trás, pois Nick Bartello acabara de abrir a porta exterior e espreitava para dentro, tendo escutado as últimas frases da conversa.
Eu diria que ele tem um motivo: o testamento. A Elizabeth Caley, ex-actriz, vale cerca de cinco milhões de dólares.
Rooney tirou o guardanapo do colarinho e levantou-se.
Olá, Nick, deixa-me apresentar-te, esta é a...
A Lorraine Page, da Agência de Investigações Page completou Nick, sorrindo e estendendo a mão a Lorraine, que não retribuiu o gesto, erguendo antes o copo de água.
Com que então o senhor é que é o Nick Bartello? É verdade, eu mesmo.
Não nos encontrámos já? perguntou Lorraine, continuando a comer.
Não, mas a Lorraine tem uma reputação dos diabos.
Tenho? perguntou Lorraine.
Nick, admirado com a frieza de Lorraine, olhou para Rooney, que lhe chegou uma cadeira, enquanto Rosie lhe trazia um copo de água.
E qual é a sua reputação, Nick? inquiriu Lorraine sarcasticamente. Ou Nick, o Coxo bastará?
Sou um verdadeiro filho da mãe cheio de amor. Que tal isso para começar?
O sorriso que rendera Rosie não surtiu o menor efeito em Lorraine. Ela já encontrara muitos tipos daquele género na vida, saídos da Polícia por invalidez ou não, e aquele até nem sequer coxeava muito.
Em que divisão é que esteve?
Na minha, bem, pelo menos durante uns tempos, quando estive no Departamento de Narcóticos respondeu Rooney impassivelmente.
A sério? Portanto, vocês os dois são velhos amigos, não?
Somos, tanto mais que tenho uma perna cheia de chumbo, cortesia aqui deste estupor gordo que me mandou numa missão doméstica sem me informar que o marado tinha um arsenal de armas, que faria a artilharia dos Estados Unidos pensar duas vezes antes de mandar lá ir os tanques.
Lorraine assentiu com um movimento de cabeça.
Portanto, admite que aqui o Bill está em dívida para consigo, não é?
Nick Bartello parou repentinamente com os gracejos.
Só tenho de me culpar a mim mesmo, Mistress Page, ninguém me deve o que quer que seja. O que eu fiz foi da minha responsabilidade e tenho uma pensão para o provar. O Bill e eu somos apenas velhos amigos.
Rooney, sentindo-se muito pouco à vontade, achou melhor meter-se antes que Nick fizesse asneira.
O Nick emparceirou com o Lubrinski durante umas semanas. Quando me mudei, levei o Jack comigo.
Pois, graças a Deus, ele era bem doido.
Ora, ora, vocês devem ter formado uma dupla dos diabos.
Pois formámos, Mistress Page proferiu Nick, depois de uma ligeira hesitação.
Lorraine mudou de assunto.
- E agora trabalha para a Agência de Investigações Agnews? O Lubrinski teria ficado mesmo orgulhoso dos seus progressos.
É verdade, trabalho realmente para eles e, se calhar, sei
o que Jack pensaria muito melhor que a senhora. Pelo que ouvi dizer, a senhora era muito dada à bebida... Dito isto, levou o copo aos lábios, tentando sondá-la. Aquela mulher era impenetrável, tinha de reconhecer, não respondendo sequer à sua observação provocadora.
Portanto, já informou a Agnews sobre nós?
Não.
Não? A sério? Nem sequer lhes passou a dica de que nos ofereceram um bónus rechonchudo?
Não, nem tenciono fazê-lo, sobretudo se levar uma fatia.
Isso quer dizer que lhes dirá ou não, Mister Bartello?
Nick.
Está bem, Nick, porque hei-de acreditar numa palavra do que diz?
O ex-polícia pousou o copo cuidadosamente.
Porque sou apenas um empregado, e uma fatia do bónus significaria mandá-los passear a todos. O que se passa consigo? Quer que lhe apresente o raio de um currículo? O Bill não lhe disse já que trabalhámos juntos?
Já, mas andar por aí a coxear não é aquilo que chamo uma boa recomendação, Mister Bartello.
Vá à merda! Ei, Bill, que é isto? O que se passa com esta gaja?
Estava furioso e os seus olhos brilhantes pousaram em Rooney, tentando controlar a raiva que sentia.
A patroa é ela, Nick.
Nick virou-se para Lorraine e fitou-a.
Ora, ora, então não é que houve promoções? A senhora é que é a patroa, hein?
Ora, ora, Mister Bartello, então não é que fui mesmo promovida? Portanto, acabe com essa treta e diga-me por que razão haveríamos de o meter na partilha do bónus se encontrarmos a Anna Louise Caley? É que aquilo que o Bill me trouxe de si relativamente a Mistress Caley já eu sabia, e não vale o suficiente para lhe darmos uma fatia do nosso possível bónus.
Nick inclinou-se de modo a ficar mais próximo de Lorraine.
Nunca se sabe, olhos lindos, se não tenho mais alguma coisa na manga.
Sou toda ouvidos, Mister Bartello. Consegue chegar ao nível do que temos?
Ele voltou a exibir aquele seu sorriso de arrasar.
Ah, pois, que quer que eu faça, que vos dê uma salva de palmas? Até agora ainda só ouvi balelas...
O senhor não apresentou nada de muito melhor retorquiu-lhe Lorraine, que se sentia cada vez mais afectada por aquele sorriso.
Rooney e Rosie assistiam àquela troca de palavras e quase podiam ver as faíscas a saltar entre os dois.
Nick inclinou a cadeira para trás e puxou de um maço amarrotado de cigarros Kool. Retirou um, acendeu o isqueiro e lançou um olhar velado a Lorraine.
Têm o Robert Caley marcado como suspeito? Pois podem estar perto. Tanto quanto posso ver, ele torna-se o principal beneficiário se a filha estiver morta, não é?
É, mas teria de matar a velha estrela de cinema para deitar as mãos ao dinheiro dela.
Talvez ande a planeá-lo.
Talvez.
Acha que um tipo que fez desaparecer a própria filha se daria a todos estes trabalhos? As grandes agências foram contratadas não por Mistress Caley, mas sim pelo marido. Portanto, seria possível aplicar o mesmo raciocínio a ela. Poderia querer a massa dele.
Nick ficou à espera da resposta à sua observação.
E ele... tem alguma? Os jornais antigos contam que andava a vender propriedades horizontais quando casaram.
Isso já foi há mais de vinte anos. Agora tem muitos bens. Também me informei desse pormenor. Dinheiro é algo que não lhe falta. Mais alguma coisa?
Rosie e Rooney não entravam na conversa, vendo Lorraine e Nick concentrarem-se um no outro, de cada um dos lados da mesa, como jogadores de xadrez.
Se só tem o Robert Caley como possível suspeito, nesse caso, Mistress Page, está numa canoa muito pequena e nem sequer tem remos.
Porquê?
. Porque se eu tivesse mandado a minha própria filha desta para melhor, não contrataria metade dos detectives privados de LA, incluindo eu... mas o seu problema é que, se Mister Caley é o culpado, ele só contrataria este mundo e o outro se tivesse a certeza absoluta de que não se encontraria a menor prova da sua culpa. Está a perceber?
Nem por isso. Nick sorriu.
Oh, mas eu acho que está, Mistress Page, penso que neste momento já topou perfeitamente o que eu quero dizer.
A risada enrouquecida dela encantou-o. Começava a gostar de tudo o que via em Lorraine Page. Não queria, ao mesmo tempo, que esta se apercebesse desse facto. Reconheceu que aquela mulher lhe enchera as medidas.
Rooney acendeu um cigarro.
Então, estamos nisto juntos ou não?
Nick olhou para Lorraine e inclinou a cabeça para o lado.
É aqui com a senhora.
O que é que tem na manga, Nick? perguntou Lorraine abruptamente.
Ele meteu a mão no bolso e depois exibiu uma moeda.
Vamos ver quem é que fala primeiro. Lorraine pegou na moeda.
De acordo, cara ou coroa?
A primeira escolha é sua.
Cara. Lorraine atirou a moeda ao ar e depois pôs-lhe a mão em cima mal caiu na mesa. Acho que a primeira a falar sou eu.
Nick viu-a levantar-se. Apercebeu-se de cada linha do seu corpo, que pareceu desenrolar-se de cima da cadeira. A detective acendeu um cigarro e inalou profundamente. Gostava da maneira como a boca dela se franzia, ficando semiaberta enquanto deixava o fumo escapar.
Acho que a rapariga está morta, as pistas são demasiado raras, ninguém a viu, e daí por diante. Também é certo que já houve casos em que as pessoas foram encontradas passado muito mais tempo, mas cá por mim a Anna Louise morreu há muito.
Nick concordou.
Mas o Bill disse que o milhão de dólares se mantém quer ela esteja viva ou morta, não é verdade?
Isso quer dizer que concorda comigo? perguntou Lorraine, hesitante.
Sim, quer, e o Bill tem a mesma opinião. Rooney olhou para Lorraine.
É verdade, também acho que ela já cá não está. Nick levantou a mão.
Concordamos todos que a miúda está morta?
Não discordou Rosie. Eu não estou certa de que esteja morta, pelo menos até termos mais informações. Ela pode simplesmente ter-se posto a milhas. Os miúdos da idade dela fazem-no. Sei de alguns que partiram à aventura e anos depois reapareceram. Quem sabe se com a Anna Louise não terá acontecido o mesmo?
Lorraine fitou os brilhantes olhos azul-claros de Nick Bartello e os dois compreenderam-se; ambos acreditavam que Anna Louise morrera.
Pois é, se calhar até tens razão, Rosie disse Lorraine, sem desviar os olhos dos dele. Sempre falou com a tal mulher chamada Juda?
Nick assentiu que sim com a cabeça.
Existem muitas como ela, basta-lhes uma bola de cristal e uma tenda. Lábia não lhe falta e o dinheiro também não, porque esta cidade está cheia de gente desesperada. Eu diria que andou a esmifrar a Elizabeth Caley. Vocês sabem como estas estrelas de cinema se deixam enredar por este tipo de tretas psíquicas. A tirada dela sobre a confidencialidade dos clientes mete nojo e, quando diz que a Polícia recorre a ela nas suas investigações, está a mentir com quantos dentes tem na boca. Informei-me sobre esse ponto. O mais provável é que leia tudo no National Enquirer. Os relatórios da Polícia referem que nunca descobriu nada de jeito para eles, que só os atrapalhou e fez publicidade a si própria.
Rooney achou que era tempo de meter a sua colherada.
Queres ir falar outra vez com ela, Lorraine? Mistress Caley não quer que o faças. Olhou para Nick. Disse à Lorraine que retirava o bónus...
Temos de ir a Nova Orleães interrompeu Lorraine. O Robert Caley ofereceu-me boleia no seu jacto particular. Vou aceitar, pois ficarei com mais tempo para falar com ele.
Nick sorriu.
. Com que então vai entrar no clube dos ricalhaços, hein?
Que é que isso quer dizer?
Nick passou as mãos pela trunfa desgrenhada. Não quero ofender, mas ele é um bonitão e... Vá, estou só a brincar. Foi tudo o que arranjou até agora?
Se já conversou tudo aqui com o Bill, sabe perfeitamente” que não temos mais nada.
Sim, já percebi, mas o que é que você está a esconder? Lorraine riu.
Quem é que disse que eu estou a esconder algo, Nick?
Chame-lhe intuição, querida. Tem o pressentimento de que a rapariga está morta. Que mais é que esse pressentimento lhe diz?
Lorraine sentou-se, aproximando mais a cadeira dele.
Passa-se qualquer coisa naquele palácio a que os Caley chamam lar. A Elizabeth Caley está com medo, provavelmente do Robert Caley, não sei.
Mas a Lorraine tenciona ir no jacto privado dele, não é?
Estou a pensar nessa possibilidade.
Nick voltou a sorrir-lhe, e ela, sentindo que estava a haver demasiada intimidade entre os dois, afastou-se. Ele apoiou-lhe a mão no braço.
Não fique assim tão tensa. O tipo é muito jeitoso. Se eu estivesse no seu lugar, tentava ir para a cama com ele.
Por amor de Deus, deixe-me em paz.
Não, tem de fazer o que for necessário.
Que é que isso quer dizer? perguntou-lhe Lorraine com maus modos.
Se for preciso fornicar com o tipo para obter informações, não hesite. Como já disse, se eu estivesse no seu lugar e fosse mulher, talvez fizesse o mesmo, porque vocês os três ainda têm pouca coisa e o tempo também não vos sobra. Ir para a cama com o tipo seria apenas uma maneira de atalhar caminho. Contudo, já que falo nisso, talvez eu tenha...
Tenha o quê? perguntou Rooney, inclinando-se para o colega.
Nick acendeu novo cigarro na ponta do que acabara de fumar e voltou a inclinar a cadeira para trás.
Muito bem. Então, isso é tudo o que descobriram até ao momento, não é verdade? Imagino que agora seja a minha vez, certo?
Certo respondeu Lorraine, perturbada e ligeiramente embaraçada pelas insinuações de Nick, pois dava a impressão de que lhe lera os pensamentos. Ela achava Robert Caley atraente; contudo, Nick também acertara noutro aspecto: ela... ou a Agência de Investigações Page... até ali pouco material de base tinham arranjado. Talvez uns palpites, mas esses nunca mencionara sequer. Bem, estamos à espera, Mister Bartello insistiu Lorraine, inclinando trocistamente a cabeça para o lado. Estou certa de que deve ter muito mais. Tem andado a trabalhar no caso há muito mais tempo, portanto, ponha as cartas na mesa.
Nick chupou o cigarro e a seguir tirou umas folhas de papel amarrotado do bolso de trás dos jeans. Esticou cuidadosamente algumas páginas, sem pressas. Pareciam folhas arrancadas a um bloco-notas pequeno, com as beiras em mau estado.
Vou consultar os meus ficheiros para ver se há alguma referência que possa comparar com as vossas observou, indicando, a rir, as suas folhas amarfanhadas.
Que tal começar pelas drogas? sugeriu Rooney. Sentia-se cansado e a precisar de uma bebida.
Está bem. Aqui há uma dezena de anos deitei a mão a um tipo chamado Gerry Fisher. Seja como for, descobri que era casado com uma das agentes do Departamento de Narcóticos, não do meu grupo, mas aligeirei a coisa, percebem como é. Deixei o Fisher de fora. Portanto, ele ficou a dever-me um favor, estão a ver? Até que, um ano e meio depois, voltei a apanhar o filho da mãe a passar droga e digo: «Vou meter-te dentro, não me interessa que sejas casado, mesmo que o fosses com a Presidente.» O Fisher era uma espécie de intermediário. Recebia o material do negociante principal e depois transaccionava pela calada com um médico da alta sociedade chamado Hayleden, que tinha uma data de pacientes importantes que não estavam para se contentar com medicamentos prescritos. Ele não sabia com quem estava a lidar, limitava-se a deixar o material na cirurgia. De facto, dizia mesmo que raramente via o tal Hayleden. Eu ia tratar do assunto quando apanhei este chumbo todo na perna e fiquei inválido. Portanto, o Fisher.
Foi interrompido.
O que é que isso tem a ver com o caso? Trata de ser objectivo, Nick! exclamou Rooney, dando um murro na mesa.
Está bem, está bem. Vejamos, antes de me meter sequer neste caso dos Caley, andei a fazer uma investigação sobre o filho de uma outra estrela. A família desconfiava que o rapaz andava no negócio da droga por ter sempre muita massa consigo, de modo que contrataram a agência para o seguir e apanhar em flagrante, percebem, antes que a lei o fizesse, dando-lhe mesmo um pequeno apertão. Ora não é que dou com o Fisher, que continuava em dívida para comigo! Então, dá-me uma dica sobre um tal miúdo que recebe material dele para vender aos colegas do liceu.
A Anna Louise Caley? perguntou Lorraine, subitamente interessada.
Não, espere um pouco. Eu cumpro o combinado, prego um susto ao miúdo, e por aí fora, enquanto a agência recebe um belo pagamento. A seguir, o Fisher, todo acagaçado, pensa que vai haver uma prisão, mas a família não quer, apenas deseja que se pregue um valente susto ao rapaz. Então, o Fisher negoceia comigo, diz que me dará muita informação sobre uma série de gente da alta se eu não denunciar o puto. Digo ao Fisher que vá passear e, para encurtar a história...
Todos soltam um gemido, mas Nick levanta a mão.
Ei, ei, já lá vou. Metem-me na investigação dos Caley e eu recorro ao Fisher, pergunto-lhe se o puto vendia droga à Anna Louise. Disse-me que nunca ouvira falar dela, nem sequer a reconheceu pela foto. Então contei-lhe que era filha da Elizabeth Caley, a antiga estrela de cinema.
Nick mirou, de olhos franzidos, os seus papéis.
Agora é que a coisa começa a aquecer. O Fisher não negoceia com a Anna Louise Caley, mas sim com a mãe dela! Foi assim que, uma noite, o Fisher recebe um telefonema do doutor Hayleden, que está a esquiar em Aspen ou noutro lugar Qualquer, a pedir-lhe que entregue um bocado de material de categoria na sua clínica de cirurgia, adiantando que receberá o Pagamento de uma das enfermeiras. O pedido inclui cocaína, anfetaminas, um pouco de crack e uma boa dose de tranquilizantes... soníferos, temazepam... destinados, obviamente, a alguém que está a dar uma festa. Portanto, o tipo leva a mercadoria até à clínica de cirurgia, recebe o pagamento habitual e depois volta para o carro. Pensa para consigo: porque não cortar com o intermediário? O Fisher aguarda e, passada uma meia hora, chega uma mulher magra, de carro. Vê-a entrar na clínica, depois sair rapidamente e voltar a enfiar-se no carro. Vai atrás dela, pois, como a clínica está fechada, a tipa deve ser a compradora, não é verdade? É então que a mulher o leva direitinho à residência dos Caley. Estaciona ao pé dos portões vigiados, e ele resolve arriscar. Vai até ao carro, a mulher apanha um grande susto e diz que só foi buscar uma receita, e que, se ele não se for embora, chama a Polícia. Depois entra... ele acha que, se calhar, enganou-se, mas mais tarde recebe mais alguns telefonemas de emergência e vê a mesma mulher a repetir a cena. Volta a abordá-la, mas dessa vez ela está muito mais do que assustada, de modo que o Fisher acalma-a e diz-lhe que não é da Polícia, apenas...
Está a falar da Phyllis Collins? perguntou Rosie.
Estou, só que agora está apavorada, com medo de que ele a denuncie mais à sua estrela de cinema, e concorda em lidar directamente com ele dali em diante. A Phyllis telefona-lhe a fazer as encomendas e depois encontram-se em cafés ou coisa do género. Portanto, o doutor perde a sua parte, o Fisher enriquece a olhos vistos, porque resolve fazer o mesmo com vários outros clientes dele. A certa altura, a Phyllis informa-o de que se acabaram os negócios, Mistress Caley vai para um centro de recuperação, de modo que lá se vai uma bela maquia pelo cano abaixo. Mas ainda alguém naquela casa continua a manter um vício dispendioso, segundo o Fisher, no valor de vários milhares de dólares por semana.
Santo Deus, a Elizabeth Caley? murmurou Rooney. Nick encolheu os ombros.
A seguir, e isto pode, ou não, ter a ver com a questão, o meu amigo Fisher...
Posso falar com ele? perguntou Lorraine.
Aguente. Foi encontrado morto há três semanas. Ainda está na morgue. Provavelmente voltou a consumir heroína, tinha uma agulha na mão.
Merda exclamou Lorraine, servindo-se de mais café. Nick virou a página amarrotada seguinte.
Sabemos, portanto, que a secretária é quem arranja o material à patroa. Eu diria que é uma boa área para trabalharmos, ou então fazê-lo com a Phyllis, que deve saber mais do que aparenta. Você disse que sabia que Mistress Caley ainda anda nessa; portanto, ou ela arranjou novo traficante ou voltou ao doutor. Ao mesmo tempo não queremos balançar demasiado o barco, já que Mistress Caley é que nos vai dar o bónus de um milhão.
Esse tal Fisher alguma vez mencionou que se encontrava ou negociava com o Robert Caley? quis saber Rooney.
Não respondeu Nick, apagando a ponta do cigarro.
É tudo? perguntou Lorraine. Nick encolheu os ombros.
A Phyllis devia ser um pouco espremida... talvez encontrássemos alguma ligação com a droga. Quem sabe se os que a vendiam ao Fisher se terão chateado, ou o doutor... Há que verificar isso tudo. Passemos a outra questão, e esta é boa...
Nick examinou os seus apontamentos, mordendo o lábio inferior ao mesmo tempo que lançava um olhar rápido a Lorraine.
Pois, o Robert Caley. O homem pode ser bonito, querida, mas cá por mim é o suspeito número um, e, se não ele, os seus sócios.
Por causa do testamento? perguntou Rooney.
Aí está um bom motivo. Não sabemos se ele não tenciona livrar-se da esposa viciada daqui a uns meses, o certo é que sem filha e se a Elizabeth Caley morrer, ele fica com tudo. Podem crer que se trata de uma fortuna e pêras. Estamos a falar na ordem dos cinquenta milhões. Só aquela mansão onde vivem vale uns doze, e têm muitas propriedades em Nova Orleães.
Mas estamos só no reino das suposições, não é verdade? perguntou Lorraine.
Claro, mas isso é o que acontece com tudo antes de obtermos resultados, e quando eu há pouco disse que o nosso Mister Caley não tem falta de dinheiro, isso não corresponde exactamente à verdade. Sabem qual é o negócio do Robert Caley?
Propriedade horizontal respondeu Rooney com imPaciência.
Exacto, isso mesmo, tem negócios tanto aqui como na Luisiana e está a fazer muita massa. Nick fez uma pausa, para o efeito ser maior. Bem, pelo menos estava.
Rooney e Lorraine trocaram um olhar. Ainda nem sequer tinham abordado aquela área, de modo que esperaram que Nick vasculhasse os seus apontamentos.
O Robert Caley e os sócios andam a tentar abrir um casino em Nova Orleães, não é? A grande parada é o jogo, esse é que dá muita massa; além disso, já convenceram o município a dar-lhes a licença no pressuposto de que fará disparar a economia e dará emprego a quem não o tem. Mas algo correu mal... De repente apareceram objecções ligadas ao ambiente, à arquitectura, à vida em família, e o Robert Caley ainda não conseguiu que lhe passassem a licença, enquanto um outro consórcio local tem tido tempo para sair do anonimato e afirmar que eles é que devem ficar com aquilo. A razão que me leva a colocar o Robert Caley como primeiro suspeito é a de que está a perder credibilidade, e cada adiamento torna mais possível a debandada dos sócios. Se ele não obtém rapidamente luz verde para o seu casino, perderá uns milhões, pois comprou o sítio em questão.
Nick sorriu-lhes; sabia que abrira um vespeiro. Prosseguiu:
Portanto, estamos perante uma série de motivos possíveis, um é o de a filha desaparecida ter sido raptada, em ligação com algum negociante de droga; dois, a miúda foi raptada para pressionarem o Caley a abandonar o projecto do casino, talvez a tenham levado como aviso. O Caley está a lidar com gente graúda e, tanto quanto consigo ver, a mulher é que contratou todos esses detectives, não o Caley...
Ele não queria que fôssemos contratados, mas deu a entender que era por sermos incompetentes observou Rooney, acabando de beber o seu café.
Deixa-me chegar ao fim, Bill. Segundo a minha teoria número três, o Caley precisa de dinheiro para o casino, e desesperadamente. Sabem como a política é aqui por estes lados... Se o Caley tivesse massa suficiente para untar as mãos de quem anda preocupado com os direitos cívicos, veria os seus problemas diluírem-se num abrir e fechar de olhos. Portanto, acaba com a filha, a seguir é a mulher, e nós ficamos com um gajo rico e feliz com uma licença de imprimir dinheiro para o resto da vida. Nick dobrou as folhas em mau estado e voltou a enfiá-las no bolso. Bem, é tudo o que tenho. Posso fazer uma sugestão? Penso que a Lorraine, ou mesmo a Rosie, deviam ver o que conseguem tirar da Phyllis Collins; eu encarrego-me da cena com o doutor da droga e tu, Bill, tentas descobrir mais alguma coisa sobre o tal negócio do casino do Caley.
Por mim, tudo bem concordou Rooney, aliviando o nó da gravata suada do colarinho da camisa, igualmente suado.
Nick acendeu novo cigarro e dirigiu-se para a porta de saída.
Obrigado pelo café, Rosie, e então até à vista... Hesitou e olhou para Lorraine. Já que o senhor simpático lhe ofereceu boleia no seu avião particular, aceite-a, porque cá por mim ele é o nosso alvo principal.
Rooney empurrou a sua cadeira para trás.
Pois, também vou andando. Verei o que consigo descobrir no meu antigo departamento. Ligamos todos para aqui, certo?
Ando ansiosa por ir declarou Rosie, sorrindo.
De ires aonde? perguntou Lorraine, irritada.
A Nova Orleães. Nunca lá estive. Além disso, como temos as despesas pagas, podemos ir para um belo hotel. E posso entrevistar a Phyllis Collins, ela amanhã estará na reunião.
Até logo despediu-se Rooney, já à porta.
Adeus a todos secundou Nick. Lorraine olhou para cima.
Só uma coisa, Mister Bartello. Este caso pertence-me, eu é que dirijo o espectáculo. Portanto, daqui em diante não me diz o que devo fazer.
Ei, isso é porreiro.
Lorraine reparou no olhar que Rooney e Nick trocaram ao sair. Ficou francamente furiosa e também se sentiu zangada consigo mesma por se ter saído com aquela. Devia ter sido bem mais hábil. Levou a louça suja para o lava-louça.
Se calhar quem vai falar com a Phyllis sou eu, Rosie.
Rosie começou a encher o lava-louça com água sem conseguir ocultar a sua desilusão. Lorraine rodeou-lhe os ombros com um braço.
Também podes estar presente, duas cabeças sempre são melhor do que uma.
Lorraine enveredou pela auto-estrada. Rosie contactara já com Phyllis Collins e esta concordara em falar com Lorraine, mas não em casa. Phyllis acabou por sugerir que tomassem um café no Plaza, que ficava na Rodeo Drive, já que precisava de ir à loja de Georgette Klinger buscar algo para Mrs. Caley.
De que se trata? perguntou Lorraine.
Não sei, talvez seja uma boutique, não perguntei.
Está bem, se precisares de falar comigo, terei o telemóvel ligado.
Certo. Até logo.
Lorraine consultou o seu relógio, estacionou o carro alugado num espaço da Rodeo Drive com parquímetro. Dispunha de mais de uma hora livre, de modo que resolveu arranjar o cabelo e escolher um cabeleireiro ao acaso, desde que a atendessem imediatamente.
Muito bem, Lorraine, vamos fazer de si uma nova mulher.
Lorraine viu Noel, o extravagante cabeleireiro afro-americano, cortar daqui e dali, mirá-la com ar crítico, cortar mais um pouco aqui e ali. Reparou que na prateleira por baixo do espelho estavam umas bisnagas brancas com o nome «Georgette Klinger» escrito no rótulo.
O que é aquilo?
O cabeleireiro seguiu a direcção do seu olhar.
Ah, esses é que são os tratamentos verdadeiramente caros, têm uma loja ao cimo da Drive. Temos clientes que se pelam por isso.
E esboçou um gesto amplo com a tesoura.
Às duas e quarenta e cinco, saiu do cabeleireiro munida do cartão de Noel. Ainda dispunha de quinze minutos antes do encontro com Phyllis, de modo que percorreu Rodeo Drive até dar com a loja de Georgette Klinger, para onde espreitou, recuando depois uns passos para se admirar no vidro da montra. O corte estava excelente, o cabelo caía-lhe, escadeado, até à nuca, ficando mais comprido na frente. O cabeleireiro deixara o lado da cicatriz mais comprido, e ela gostava do modo como o cabelo lhe ocultava a face quando se inclinava para a frente. Na verdade, a sua nova imagem agradava-lhe. Estava tão entretida a admirar-se que não viu Phyllis estacionar do outro lado da rua e depois dirigir-se para um Lincoln verde metálico, de janelas escuras, e entrar para o banco de trás.
Viva, venho encontrar-me com uma amiga que ficou de vir aqui buscar algo para Mistress Elizabeth Caley.
A confiança de Lorraine na sua nova aparência vacilou um pouco quando a elegante francesa que estava ao balcão se voltou para ela, atirando o cabelo louro, que lhe chegava à cintura, para trás com um movimento de cabeça.
Desculpe, quem?
Mistress Elizabeth Caley.
Não, lamento mas não estou à espera de ninguém, a não ser... um momento, por favor. Consultou um livro encadernado a couro, enquanto Lorraine se entretinha a olhar para os vários soros e loções Georgette Klinger.
Não, Mistress Caley está à espera de alguns protectores solares da nossa marca, mas sabe que só chegam na próxima semana. Lamento muito.
Lorraine pediu um champô e um creme hidratante, mas por pouco não teve um ataque ao ver a conta. De dentro da loja veio mais uma assistente, ansiosa em vender mais alguns produtos.
Esta senhora é amiga de Mistress Caley, disse que ficou de vir buscar uma encomenda...
A segunda mulher sorriu a Lorraine.
Telefonei há dois dias a pedir desculpa pela demora. Só cá teremos os protectores solares no fim do mês.
Lorraine pegou no elegante saco de plástico que continha as suas coisas e saiu do estabelecimento. Viu as horas e verificou, preocupada, que iria chegar atrasada ao encontro com Phyllis.
Phyllis sentia-se enjoada com a respiração pesada e o perfume adocicado de Juda; detestava a mulher.
Lamento informá-la de que o marido de Mistress Caley está irredutível e eu nada posso fazer. Mistress Caley disse que depois falará consigo.
Compreendo. Bem, é com ela. Mas a senhora sabe que ela não pode fazer marcações e depois cancelá-las assim, sem mais nem menos. Reservei o tempo para ela e tenho muitos clientes à espera.
Phyllis entregou um sobrescrito a Juda.
Penso que isto será suficiente... Juda aceitou o sobrescrito.
Por favor, diga à minha querida Elizabeth que não perca a esperança. Continuo a sentir fortemente a presença da Anna Louise. Peça-lhe que se mantenha firme e não desista.
Esteja descansada.
Juda assentiu com um sinal de cabeça, entregando um pequeno embrulho em papel castanho a Phyllis. Quando esta estendeu a mão para o fecho da porta, interpelou-a:
Talvez Mister Caley vá a algum lado e Elizabeth possa falar comigo...
Tenho a certeza de que Mistress Caley lhe telefonará. Tenho de ir...
Phyllis saiu do carro. O motorista virou-se ligeiramente para trás; era um indivíduo que não teria mais de vinte anos, com uma pele cor de azeitona escura, e usava a camisa branca aberta até ao peito. Viu Juda abrir o sobrescrito e começar a contar as numerosas notas de cem dólares que lá vinham dentro.
Agora para onde vamos, tia Juda?
Juda olhou de relance para cima, enfiando rapidamente o dinheiro numa bolsa de pelica.
Leva-me para casa, Raoul, depois vais a uma mercearia. E olha-me para a frente, senão, segues no próximo autocarro.
O rapaz soltou uma risadinha.
Consigo ninguém brinca, hein?
A vidente recostou-se, olhando através da janela escura.
Dizes bem, doçura, e quando o fazem, metem-se num grande sarilho. Espera, pára aí, acabo de ver uma pessoa.
Lorraine apressou-se pela Rodeo acima, em direcção ao Plaza. Viu Phyllis apear-se do Lincoln e aguardar na beira do passeio; porém, quando atravessou a rua, já Phyllis ia à sua frente.
Lorraine calculou que o Lincoln pertencesse a Mistress Caley e que o motorista tivesse trazido Phyllis para o encontro entre as duas, portanto nem sequer voltou a olhar para o carro. Juda, no entanto, inclinou-se para a frente no seu banco quando o automóvel saiu da zona de estacionamento. Tinha a certeza de que a loura era a mulher que a fora visitar e, a julgar pelo que via, estava no encalço de Phyllis.
A Lorraine... disse Juda em voz baixa.
O quê? Paramos ou vamos em frente?
Segue retorquiu Juda com secura.
É alguma cliente? perguntou Raoul.
Não, aquela não é cliente, mas sim detective. Repetiu o nome de Lorraine para si mesma, depois uniu as mãos gordas, suadas e cheias de anéis. O seu peito começou a subir e a descer, enquanto da garganta lhe saíam uns sons sonoros e entrecortados.
Está com alguma aflição? perguntou Raoul.
Não, não estou com nenhuma aflição, mas aquela senhora é que vai estar, vai estar muito, muito aflita.
O rapaz deixou de gracejar. Quando a tia se punha a dizer coisas daquelas, quando os enormes olhos de pestanas postiças fitavam sem ver, como se estivesse a olhar através e além dele, assustava-o tanto quanto sua mãe... mas também não admirava, eram irmãs. Agarrou fortemente no volante, enquanto lançava nova olhada furtiva a Juda e depois ao espelho lateral, tentando ver a mulher a quem sua tia se referira. Lorraine, porém, desaparecera.
Lorraine recuperou o fôlego, juntando-se a Phyllis quando esta ia a sentar-se numa das mesinhas brancas da esplanada do café.
Desculpe o pequeno atraso, mas não sabia exactamente qual era o café.
Lorraine sorriu.
Quer um café?
Sim, se faz favor, um cappuccino. Não vale a pena ir ao balcão, o empregado vem cá, não é self-service.
Phyllis falava depressa, de maneira nervosa. Reparou nos sacos da loja de Georgette Klinger que Lorraine trazia..
Penso que não foi completamente sincera, Phyllis. Apareceram duas manchas rosadas nas bochechas de Phyllis e a sua boca endureceu.
Desculpe, mas não percebo por que razão o diz. Vejo que foi cortar o cabelo.
Sim, dispunha de algum tempo, e também fui a esta loja. Mostrou o saco com cosméticos e sorriu.
Ah, sim, eu tencionava ir lá buscar uma encomenda para Mistress Caley.
Mas eu sei que a encomenda só chega no fim do mês.
Sim, uma irritante perda de tempo. Mesmo assim, como queria falar comigo, segundo a Rosie me disse, com urgência, aqui estou.
Um criado aproximou-se e Lorraine mandou vir os cappuccinos. Phyllis batia nervosamente com o pé contra a cadeira.
Mas a senhora sabia que eles não tinham a encomenda de Mistress Caley, telefonaram-lhe a informar. Pelo menos, foi o que a recepcionista me disse.
Santo Deus, não me diga que lhes perguntou? Bem, francamente, acho que não era de modo algum necessário.
Talvez, mas já que ali estava...
Se é a isso que chama ser desonesto, então lamento. Tencionava ligar para lá para saber se os produtos tinham chegado ou não. Como também tenho mais algumas coisas para ir buscar, não menti, e fico francamente sentida consigo por achar que o fiz. O sol faz muito mal a Mistress Caley, que nunca pode ficar exposta a ele...
O pezinho continuava a bater contra a cadeira, que tremia ligeiramente sem que ela parecesse dar-se conta do facto, enquanto olhava constantemente em volta, remexendo na gola da blusa. Lorraine deixou-a fumegar» durante algum tempo. Quando Phyllis voltou a falar, as duas manchas rosadas já lhe tinham desaparecido da cara.
O seu cabelo está muito bonito, bom corte, aliás o corte é tudo, não é?
Sim, foi uma sorte, fui àquele cabeleireiro que fica um pouco mais acima da rua.
Ao Saint Julian? admirou-se Phyllis. O seu rosto lembrava a Lorraine um pássaro, agressivo, com o nariz fino afilado, enquanto ia virando a cabeça para um lado e outro, continuando, nervosamente, a fazer estremecer a mesa. Caramba, está a dar-se a esforços francamente exagerados pelo seu trabalho., Como?
Esse é o cabeleireiro onde Mistress Caley vai. Melhor dizendo ia, porque agora eles é que vão lá a casa. Mas a Anna Louise frequentava-o, foi sempre muito exigente com o cabelo.
Não me diga! Pois olhe que foi uma coincidência, escolhi-o ao acaso. Como já disse, cheguei antes da hora.
O café chegou, acompanhado por bolinhos leves. Lorraine agradeceu o café com um sorriso.
Há quanto tempo Mistress Caley é viciada?
As manchas avermelhadas de Phyllis voltaram ainda com mais força. Mexeu o seu café, sempre a bater com o pezinho, e começou também com um tique na cabeça.
Não faço ideia do que está a falar!
Sim, faz, e foi por essa razão que quis falar consigo.
Francamente, não vejo por que razão alguma medicação prescrita pelo médico a Mistress Caley possa ser da sua conta ou da Rosie.
Medicação? Ora, Phyllis, eu sei que Mistress Caley toma estimulantes, calmantes, cocaína, speed e outras coisas. Até o marido dela admite...
Mister Caley contou-lhe? exclamou, estupefacta.
Sim, mas fez questão em esclarecer que eram analgésicos que Mistress Caley tem de tomar por causa de um velho ferimento, dos quais se tornou... bem, dependente. Mas o speed, a cocaína, et cetera não são o que designaria de analgésicos, e quando a vi pela última vez parecia muito acelerada. E muito alterada, também.
Naquele momento, até o queixo de Phyllis tremia.
Acho que qualquer pessoa, nas terríveis circunstâncias em que Mistress Caley se encontra, ficaria perturbada. A filha está desaparecida, se calhar morreu...
Sim, eu sei, Phyllis. É por isso que preciso de investigar todos os motivos possíveis.
Quer dizer que suspeita de Mistress Caley?
Não, mas tenho de saber quem lhe fornece a droga porque pode haver alguma ligação.
Asseguro-lhe que não.
Receio bem que isso não me baste, Phyllis. E se está realmente interessada em descobrir a verdade, parará com esses jogos tolos. Sabe que pode ser presa por procurar drogas, não sabe? É que eu sei como é que isso funcionava, Phyllis. O médico simpático e compreensivo... esse pode ser detido por tráfico. Sei que ia buscá-la à clínica dele, assim como sei que, mais tarde, começou a tratar com um indivíduo chamado Gerry Fisher.
Santo Deus! exclamou Phyllis, naquele momento a tremer. Mister Caley tem conhecimento desta nossa conversa?
Não, esta conversa é particular, entre nós duas, não sairá daqui. Mas preciso de saber se alguém se zangou e começou a ameaçar Mistress Caley. Um hábito de três mil dólares semanais é muito dinheiro para alguns, começa a haver concorrência, percebe o que quero dizer? E sei que a certa altura interrompeu o negócio com o médico, portanto, este perdeu o seu quinhão.
Não são três...
Deixe-se disso, Phyllis, não estamos aqui para nos preocuparmos com mais ou menos cem dólares.
São cinco...
O quê?
Às vezes um pouco menos, e, claro, diria que uma parte substancial é para pagar a... confidencialidade. Quero dizer, se a questão alguma vez viesse a público, ela é muito famosa, preside a uma série de obras de caridade e depois, é claro, há que ter Mister Caley em consideração. Se tudo viesse a saber-se, seria terrível para ele.
Mister Caley não utiliza drogas de nenhuma espécie?
Não, não, de maneira nenhuma, é absolutamente contra. Tentou por todos os meios possíveis persuadir a Elizabeth a parar. Ela passou por muitas clínicas... mas, mal sai... recomeça, e esta tragédia veio piorar a situação ainda mais. Passa a maior parte do dia mergulhada num torpor e depois, quando Mister Caley chega a casa, começa a tomar tudo o que a possa despertar... Claro que, depois, não consegue dormir e a espiral começa. Admira que ainda não tenha posto termo à vida. Deve ter uma constituição de cavalo, tantos são os maus tratos a que submete o seu pobre corpo. O certo é que, sempre que é preciso, consegue fazer boa figura. Ninguém diria, e parte do problema está aí. É muito manhosa, muito matreira, e se for preciso jura de mão sobre a Bíblia...
Lorraine terminou o cappuccino, mas Phyllis mal tocara no seu. A agitação já passara, naquele momento tinha as mãos tranquilamente pousadas no colo.
Nem sei como conseguimos manter o segredo guardado durante tanto tempo, realmente não sei, mas pelo menos não tenho precisado de tratar com aquele homem horrendo.
Então com quem é que negoceia agora, Phyllis?
Por favor, Mistress Page, eu não negoceio. Quando Mistress Caley foi para um centro de recuperação, informei Mister Fisher de que os seus serviços já não eram necessários. Depois, tudo começou de novo, voltei a ir buscar as receitas dela à clínica de cirurgia, apenas algo que a ajudasse a dormir e a aliviar a ansiedade. Ela não se serve das outras substâncias, garanto-lhe. O médico deve ter ficado indignado, mas, se não lhe desse o pretendido, ela iria a outro lado.
Lorraine anuiu, sentindo, como nunca, a falta de um cigarro.
Quer dizer que nunca contactou outro passador de rua, apenas o médico?
Exactamente.
Portanto, ninguém mais sabe, ninguém está a exercer pressão sobre ela por usar as suas drogas?
Se há alguém, eu desconheço.
Mister Caley sabe que é a Phyllis quem lhe arranja o material, não sabe?
Phyllis mordeu os lábios.
Tem conhecimento dos analgésicos.
Eles dormem juntos? Phyllis olhou para ela, chocada.
Francamente, não posso falar sobre semelhante questão.
Partilham o mesmo quarto?
Têm suites diferentes. O que fazem na intimidade é algo que desconheço. Na minha opinião, é muito atencioso e paciente com a mulher, que consegue ser extremamente difícil, não sei se sabe.
E Anna Louise?
Como? Lorraine sorriu.
Phyllis, a Anna Louise sabia do vício da mãe? Phyllis desviou o olhar.
Talvez... Bem, para quem vive na mesma casa é difícil não perceber. Mistress Caley tem muitas alterações de humor e por vezes é bastante irracional.
Discutiam muito?
Phyllis assentiu com a cabeça.
A Anna Louise tomava drogas?
Não, detestava-as, nem sequer tocava num cigarro, e bebidas, nem vê-las. De facto, às vezes ela parecia mais a mãe do que a filha, razão pela qual tudo isto é tão penoso para Mistress Caley.
Lorraine pegou num bolinho.
Em que estado se encontrava Mistress Caley no dia em que foram para Nova Orleães?
Ela... tomara qualquer coisa. Estava muito tensa, sempre com a desculpa de que tinha medo de aviões, que precisava de algo que a acalmasse, mas pareceu-me... penso que a expressão é «eléctrica». Mudava constantemente de opinião entre ir ou não ir, mas lá conseguimos que ficasse pronta e com as malas feitas, e, quando Mister Caley regressou, já acalmara bastante.
Como estava a Anna Louise?
Bem, detestava ver a mãe assim tão ansiosa e creio que, a certa altura, disse que não queria ir. Mas, quando Mister Caley chegou a casa, conversaram um pouco e depois partiram todos juntos.
Portanto, a última vez que falou com a Anna Louise foi quando ela lhe ligou do avião, não foi?
É verdade, foi a última vez. Pediu-me que lhe comprasse um vestido, mas isso já a Lorraine sabe.
E pareceu-lhe bem, não notou nenhuma perturbação?
Pareceu-me descontraída e satisfeita, tal como Mistress Caley.
Quer dizer que também falou com ela?
Sim, falei. Queria certificar-se de que eu mandaria entregar o vestido lá a casa e que depois o piloto iria buscá-lo para o levar a Nova Orleães. De repente, Phyllis baixou a cabeça. Era um vestido lindo, mas... a Anna Louise não chegou a vesti-lo. Seja sincera, acha que ela está morta ou não? Lorraine fez sinal ao empregado.
Não me cabe fazer semelhante afirmação, pelo menos enquanto não souber mais. E a Phyllis?
Como?
Acha que ela está morta, Phyllis?
Phyllis acenou afirmativamente com a cabeça, torcendo as mãos.
Acho que está. Não faria a mãe passar por isto, muito menos o pai, era uma menina muito sensata. Ao ponto de, sabe, telefonar para casa a avisar que chegaria mais tarde e, quando ia para fora, telefonava ao pai duas ou três vezes por dia.
Lorraine pagou os cappuccinos, reparando que aquela soma teria coberto uma refeição completa num dos restaurantes de Orange Grove. Pegou no seu saco de compras e ia a levantar-se quando Phyllis falou de novo.
Tudo se complicava ainda mais quando ela tinha amigos lá em casa disse, acabando, finalmente, de beber o seu cappuccino, que lhe deixou o lábio superior sujo de espuma. Protegia sempre muito Mistress Caley, receosa de que alguém descobrisse. Sabe, hoje em dia é muito difícil ter a certeza de que uma pessoa não vai vender alguma notícia à imprensa sensacionalista. A pobre Anna Louise tinha muito medo do efeito que semelhante ocorrência teria sobre a mãe, de modo que pareceu uma incongruência terrível ter sido ela a sair nos cabeçalhos de tudo o que era jornal. E sabe uma coisa extraordinária, diria mesmo horrível...? Depois de quinze anos passados sem que lhe oferecessem trabalho, só pequenos papéis na televisão, e isso ela não aceitaria nunca, os grandes estúdios começaram de repente a apresentar-lhe numerosos guiões. Custa a acreditar, mas um deles chegou mesmo a sugerir que se fizesse um filme sobre o desaparecimento da Anna Louise e queriam que a Elizabeth desempenhasse o papel de si própria. Um nojo, um verdadeiro nojo. Portanto, até se compreende por que razão ela é tão dependente, não é? Mesmo que seja tão difícil para mim.
Fico-lhe grata por ter concordado em falar comigo e por ser tão sincera, Phyllis. Claro que tudo o que aqui foi dito é confidencial. E se houver algum pormenor, seja ele qual for que lhe pareça que possa ajudar, telefone-me, está bem? Ou à Rosie.
Sim, sim, fá-lo-ei e... Bem, obrigada pelo café.
Lorraine saiu apressadamente do Plaza para a Rodeo, deixando Phyllis a acabar o seu cappuccino. Esta sentia-se aliviada pelo facto de Lorraine só ter querido falar da questão da droga. Receara que soubesse mais, e ela não podia, jamais teria falado sobre Juda Salina, não se atrevia. Limpou os lábios com o guardanapo e olhou em volta. Só depois de ver Lorraine desaparecer de vista é que se pôs de pé e entrou no café para se servir do telefone público. Lançou um olhar rápido e furtivo em redor antes de carregar nos números, ficando depois a aguardar.
Residência da família Caley.
Peters, é capaz de dar um recado a Mistress Caley? Diga-lhe que correu tudo bem e que não precisa de se preocupar. Daqui a cerca de meia hora estarei em casa.
Lorraine entrou no seu carro. Estava abafado e o assento e as costas do banco queimavam de tão quentes, o que a levou a abrir todas as janelas. Marcou um número no telemóvel.
Rosie, és capaz de telefonar ao Robert Caley? Deve estar no seu escritório. Tenta para lá e pergunta-lhe se pode receber-me.
Desculpa, só um segundo respondeu Rosie, que estava a mastigar uma cenoura e tinha a boca cheia. Engoliu rapidamente. O Bill quer dar-te uma palavrinha. Enquanto falas com ele, ligarei ao Caley.
Rooney pegou no auscultador.
Tenho andado a tentar descobrir pormenores sobre o tal negócio do casino.
Sim, e que foi que soubeste?
Não muito, mas sempre foi alguma coisa. O Caley dirige um consórcio formado por ele, um par de tipos endinheirados da zona e um grupo ligado a casinos que é de outro Estado. Estão dispostos a entrar no projecto com cerca de duzentos e cinquenta milhões de dólares.
O quê?
Pois é, muita massa, mas quem ficará com a fatia maior será o Caley, pois foi ele que adiantou o pagamento inicial do terreno, um terreno enorme perto do rio. O complexo terá um hotel e muitas lojas de qualidade, além do casino, claro.
Então, qual é o problema do Caley?
Bem, há uma série de dificuldades. Uma delas reside no facto de andar a tentar firmar este negócio já vai para cinco anos, mas infelizmente o estado da Luisiana leva muito tempo a legalizar o jogo, enquanto os seus bons vizinhos do lado têm tudo facilitado... Grande parte dos lucros do jogo de todo o Sudoeste já encontrou uma boa fonte de acolhimento no Mississipi, a sul da costa, e talvez se fique por aí. Em segundo lugar, existem algumas famílias endinheiradas e antigas na cidade que não querem o repovoamento daquela zona, dizendo que a lei federal o proíbe. Isso não passa de conversa fiada, mas o certo é que são capazes de atrasar muito as coisas. E terceiro, repara só nisto, esta treta do jogo está sujeita a uma série de regras muito esquisitas, ou seja, o município decide qual é o tipo que desenvolve o lugar, mas quem selecciona a pessoa que dirige o casino é o Estado. Todos pensavam que seria o Caley e os seus amigos, mal conseguissem resolver esta confusão legal acerca do local, mas ultimamente as pessoas perguntam-se o que estará a atrasar tanto o assunto. Há por lá uns outros ricaços que parecem ter percebido que talvez devesse ser outra pessoa a obter a licença para dirigir o espectáculo; portanto, agora o Caley tem à perna um consórcio rival chamado Doubloons. Um dos seus apoiantes afastou-se até a licença de funcionamento sair, e o outro também deve fazer o mesmo.
Soubeste o nome dos apoiantes?
Soube, são dois tipos chamados Bodenhamer e Dulay. São donos de grandes empresas, a Construções Bodenhamer e as Bebidas Dulay. Ambos tencionam tirar uma boa maquia do casino, não só através do jogo como também da venda dos seus produtos, e por enquanto ainda não gastaram um cêntimo. O que já não se pode dizer do Caley.
Que queres dizer? perguntou Lorraine, esforçando-se por assimilar toda a informação.
O Caley pagou os terrenos. Se não conseguir a licença, não lhe servirão de nada. Toda a gente está a par disto em Nova Orleães, mas se eu fosse até lá saberia mais pormenores.
Pode ser do conhecimento geral, Bill, mas por que razão não vem referido no relatório que o teu amigo Sharkey nos deu?
Talvez não tenha dado por isso, ou então pensou que não era importante. Não sei.
Não? Pois eu acho que é. Feitas as contas, quiseste dizer que o Robert Caley tem de conseguir a licença do casino, dê por onde der?
Sem dúvida. Há anos que anda na penúria... Liquidou uma série de bens seus, vendeu propriedades em Los Angeles e na Luisiana. Se o seu projecto receber luz verde, esperam-no grandes lucros. Portanto, se calhar, o Nick tem razão em relação ao Caley. Está a sofrer forte oposição, sobretudo do tal outro consórcio, mas a porta já está escancarada para quem quiser entrar.
Temos de saber o máximo que pudermos e depressa. Verei se o Caley me fornece mais pormenores. A Rosie já conseguiu falar com ele?
Rosie pegou no auscultador.
Sim, podes lá estar por volta das quatro e meia da tarde. Ele já avisou a segurança da tua chegada.
Lorraine prendeu o telemóvel sob o queixo e ligou o motor.
Está bem, vou a caminho.
Rosie pousou o auscultador e inclinou-se para começar a tirar embalagens em papel de alumínio, contendo comida, de dentro de um saco, abrindo um jornal a servir de toalha sobre a secretária de Lorraine.
É comida japonesa, Bill, nada que engorde: tens aqui camarão, salmão, e isto aqui é peixe, peixe cru. Da primeira vez não sabe muito bem, mas mergulha-o no molho e mastiga-o bem. Depois temos alface ralada e brócolos.
Não, obrigado, mandarei vir um hambúrguer.
Isto faz-te melhor... Pelo menos, experimenta.
Não, obrigado, esperarei.
Rosie colocou todos os recipientes, depois espetou um pedaço de peixe com um garfo e levou-o até Rooney.
Experimenta só um pouco. É bom e saudável e, se não te importas que seja sincera, ficarias bem melhor sem uns quilitos.
Rooney fez uma careta, mas abriu a boca e mastigou, enquanto Rosie se inclinava para ele, expectante. Depois engoliu e fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Não é mau, faz lembrar a chinesa, não é?
Rosie preparou-lhe dois pratinhos de comida, enquanto Bill verificava o que havia e mordiscava um camarão.
Não mandaram arroz?
Não, não se deve juntar arroz com proteínas porque é um hidrato de carbono e não é bom misturá-los. Na próxima refeição podemos comer uma pratada de massa, a que quisermos, desde que não lhe juntemos proteínas.
Interessante. Onde é que foste buscar isso?
A Lorraine é que me ensinou.
Bill sentou-se em frente do seu prato, prendendo um guardanapo ao colarinho.
A Lorraine sabe umas coisas, lá isso sabe.
Rosie concordou com um aceno de cabeça e encheu dois copos de água natural.
Ela sempre me impressionou, como que me apanha de surpresa. No entanto, é uma mulher curiosa, não quero estar a dizer mal dela pelas costas, mas o certo é que umas vezes tem a língua afiada, outras, é doce como um bebé.
Rooney tinha a boca cheia ou tê-la-ia contradito acerca do facto de descrevê-la como sendo doce como um bebé, mas nada disse, continuando a mastigar em uníssono com Rosie. Embora aquilo que comia lhe soubesse a borracha e tivesse preferido um enorme hambúrguer especial, acompanhado de salsicha e bacon, apreciava o facto de não estar a comer sozinho em casa. Batatas fritas podia comprá-las a caminho de casa, companhia agradável é que não.
Um homem jovem de cabelo penteado para trás com gel, envergando um fato de costureiro e uma gravata com motivos Horais, acompanhou Lorraine até ao gabinete de Robert Caley. Bateu numa porta enorme, que ia do chão até ao tecto, uma luz verde piscou num intercomunicador lateral, e o sujeito da gravata às flores abriu a porta. Espreitou, com Lorraine mesmo atrás de si.
Mister Caley, é Mistress Page.
Robert Caley virou-se com um sorriso mais branco do que o branco dos seus dentes capeados.
Faça favor...
O gabinete era uma sala ampla, cheia de janelas cujas persianas cortavam o sol da tarde. O espaço era dominado por uma secretária preta enorme, com tampo de vidro. A carpete era cinzenta e de pêlo alto, e as cadeiras, forradas de cabedal macio, formavam um semicírculo em frente do monstro negro. Gravuras caras enchiam as paredes; porém, não se via nenhum armário de ficheiros nem mesas espalhadas. Uma escultura em bronze do que parecia ser um homem alongado, em cima de um plinto, a apontar para o céu, estava discretamente colocada a um canto.
Robert Caley falava por um dos oito telefones alinhados sobre a sua secretária. Tinha as costas altas da sua cadeira voltadas para Lorraine, a qual não conseguia vê-lo, mas o seu assistente indicou-lhe uma das cadeiras em cabedal.
Muito bem, Bel Air, até já.
Caley virou-se de frente para Lorraine e pousou o auscultador.
Dê-me licença por um instante, Mistress Page. Olhou para o assistente.
Ligue para o meu compromisso das cinco e passe-o para as seis. Tenho de ir a Bel Air num instante, Mark. E comunique mais qualquer coisa para o escritório do Dulay. Ele está francamente chateado.
Com certeza, senhor. Desejam alguma bebida?
Não, a não ser que... Caley virou a sua atenção para Lorraine.
Para mim nada, obrigada.
Caley fez um pequeno aceno de cabeça e as portas fecharam-se silenciosamente.
Queria falar comigo, Mistress Page?
Girou de um lado para o outro e, sem esperar pela resposta de Lorraine, bateu no telefone que acabara de utilizar com o indicador.
Acabei de receber más notícias.
Lamento. Se vir que estou a incomodar...
Caley sorriu com ar carrancudo e apoiou-se nos cotovelos» pousando o queixo nas mãos.
De facto, mas talvez eu esteja a precisar de algo que me distraia da possibilidade de vir a soçobrar. Quer ver uma coisa?
. pôs-se de pé com ligeireza e carregou num botão que tinha de lado na secretária. Lorraine voltou-se quando parte da parede cinzenta à sua direita deslizou para deixar à mostra um imponente projecto arquitectónico. Isto é que pode vir a deitar-me abaixo. Chegue aqui, deixe-me mostrar-lhe. Indicou-lhe o local proposto para o casino, os hotéis, o recinto das lojas, e falou-lhe dos seus planos, muito à semelhança do que Rooney delineara. Tem um belo aspecto, não tem? Como todo o recinto é meu, eu tornar-me-ia, evidentemente, o accionista principal. Mas não contei que o Estado perdesse tantos anos com comissões e cinquenta relatórios sobre a corrupção que o jogo exerce sobre viúvas e órfãos e nos torna cegos, antes de concluírem que, de facto, se trata de uma faixa emergente da indústria do lazer e dos tempos livres, de uma nova área de desenvolvimento económico válida, da criação de postos de trabalho e de incentivo económico, precisamente aquilo de que a cidade precisa. Lá pela costa dão-se conta disso pela primeira vez. Já meti cinco anos da minha vida neste projecto, e os meus sócios, que não entraram com um chavo, estão a retrair-se, enquanto um grupo de outros tipos da cidade resolvem ter uma fatia do bolo e também conferenciam secretamente para lá chegar. Portanto...
Portanto, se os seus sócios se afastarem, o que é que lhe resta? finalizou Lorraine.
Um terreno que nunca mais acaba e falta de dinheiro. Por isso, está a ver, preciso desses sócios, sem eles nem sequer poderia construir uma cabana. Esta é a trapalhada em que me encontro metido.
Desligou o ecrã, fez retroceder o painel da parede sobre a maqueta e voltou para a sua cadeira. Lorraine sentou-se igualmente na sua.
Os seus sócios estão a deixá-lo para trás?
Estão, um já se retirou e o outro não tarda. Telefonou-me há pouco a perguntar quando é que isto avança, já que é ele que anda a empurrar o malfadado carrinho de golfe do governador todos os fins-de-semana. O que é preciso é manobrar tipos como o Lloyd Dulay, o magnata das bebidas... Não sei se já ouviu falar... Quando se tem assim tanto dinheiro, aparece muita gente como eu a acenar-lhes com negócios, e nós sabemos que esses estupores super-ricos interessam-se sempre por algo que os torne ainda mais ricos, só não querem é esperar.
Importa-se que fume? perguntou Lorraine.
Não, faça favor.
Caley abriu uma gaveta, de onde tirou uma requintada caixa em ónix e ouro, que colocou sobre o tampo da secretária. Lorraine puxou de um cigarro e ele acendeu-lho com o Cartier de ouro incorporado na caixa. Ao inalar o fumo, Lorraine ergueu os olhos e encontrou os dele fixos em si. Entreolharam-se durante mais uns instantes, em seguida ele deixou a tampa da cigarreira fechar-se com um ruído seco e chegou um cinzeiro de vidro negro para perto dela.
Preciso de uma bebida.
Ela viu-o caminhar sobre a espessa carpete até mais um esconderijo por trás das paredes cinzento-claras. Um outro painel deslizou, revelando um bar de tamanho razoável. Lorraine ouviu o tinir do gelo contra o vidro e o seu coração começou a bater rapidamente. Iria oferecer-lhe uma bebida? E o que era mais importante, seria ela capaz de a recusar?
Lorraine encontrava-se ali com um objectivo específico: descobrir se, tal como Rooney soubera, Caley estava metido num sarilho muito grande por causa do casino. E, no entanto, ele dissera-lho espontaneamente. Ou era um actor consumado, ou adivinhara a razão que a levara ali, ou estava a ser sincero. Conseguira confundi-la e, naquele momento, não sabia se não seria melhor suspender a reunião.
Este gabinete é um bocado monótono, não acha? gracejou Caley. Quando vim para cá, costumava ir até ao fim do corredor e descer um lanço de escadas para chegar à casa de banho. Não sabia em que botão carregar para ter acesso aos meus lavabos particulares. É um pesadelo estuporado de cinzento sobre cinzento, mas é apenas alugado. Colocou um longo copo de cristal contendo água gaseificada com gelo e limão em frente de Lorraine. Ele empunhava um pequeno copo quadrado em cristal trabalhado, com uísque.
Obrigada agradeceu Lorraine em voz baixa.
Os seus olhos voltaram a encontrar-se e dessa vez ele sorriu.
Não pensou que eu iria oferecer-lhe álcool, pois não.
Por um momento, achei que sim retorquiu, sentindo que ele a distraía do objectivo da sua visita.
Seria incapaz de lhe fazer uma coisa dessas... Sei que tem um problema. Nem outra coisa seria de esperar de mim, já que vivo com uma mulher que não tem um, mas sim uma série deles. Mas enfim, acho que já falámos do estado em que a Elizabeth se encontra.
Lorraine anuiu com a cabeça, curiosa em saber se uma das paredes cinzentas não deslizaria para o lado, revelando uma cama. Se assim fosse e ele a mostrasse, não sabia bem como reagiria. Estava a achá-lo ainda mais atraente do que no dia anterior; tudo nele lhe agradava: as mãos fortes e bronzeadas, o fato mais despretensioso do que o do assistente da gravata florida, a camisa desprovida de colarinho, com dois botões abertos no pescoço, além dos olhos azuis, tão perigosos como o sorriso.
É possível que amanhã eu tenha de ir a Nova Orleães. Quer ir comigo?
Quero respondeu ela, tomando um gole de água gelada.
Calculo que queira ver o que consegue desenterrar por lá. Riu-se. Desenterrar é mesmo a palavra exacta. Se eu não conseguir concretizar este negócio, é bem possível que passe o resto da vida a cavar.
Mas certamente a sua mulher dispõe de uma fortuna considerável...
Robert Caley interrompeu-a.
Permita-me que esclareça bem um aspecto, Mistress Page. O dinheiro da minha mulher é dela, eu tenho o meu. As nossas contas bancárias são separadas, sempre foram, e no caso de ainda não ter desenterrado outro aspecto da questão, saiba que assinámos um acordo pré-nupcial. Para todos os efeitos, o que é da minha mulher é dela, o que é meu, é meu.
Se ela morrer... observou Lorraine calmamente.
O quê? Caley fitou-a com um olhar fixo e penetrante.
É o seu beneficiário principal, não é?
Não, Mistress Page, a minha filha é que...
Mas... e se a Anna Louise está morta? insistiu, mantendo a voz branda.
Não tinha pensado nisso. Santo Deus, é por essa razão que está aqui? Que raio pensa que eu sou, hein? Estamos a falar da minha filha... O que acha que eu fiz? Que a matei para poder ficar com o dinheiro da minha mulher? Julga que estou a fazer planos para matar a minha mulher, é isso? Por quem me toma? Sacudiu a cabeça. Jesus Cristo, que ideia tão doentia.
Não estou aqui por isso.
Bem, ainda bem que o diz, porque se estivesse quem a punha daqui para fora era eu.
Ando à procura de motivos que possam explicar o desaparecimento da Anna Louise, Mister Caley. Talvez me tenha dado um.
Robert Caley voltou a fitá-la com olhar penetrante.
Acredita seriamente que eu seria capaz de assassinar a minha própria filha?
Não sei, Mister Caley, mas como detective tenho de encarar todas as possibilidades. O senhor é, tanto quanto posso ver e segundo o que acabou de me dizer, a única pessoa que, queira ou não, beneficiaria com a morte da Anna Louise.
Ainda mais se a minha mulher também falecesse, não é?
De facto.
Portanto, pensa que ando a tratar de a matar? Foi o que veio aqui discutir comigo? Para descobrir através de que meio tenciono assassinar a minha mulher? Bem, já que se autodesigna de detective, talvez possa dar-me umas dicas.
Eu não me autodesigno de detective, Mister Caley.
Como polícia não era grande coisa.
Lorraine levantou-se e inclinou-se para ele, por cima da secretária.
O senhor não tem a mínima ideia do que eu fui e não estou disposta a deixar-me ficar aqui sentada a ouvir insultos.
No entanto, pode insultar-me a mim, não é? A Anna Louise é minha filha; agora saia deste gabinete e faça o trabalho para o qual a minha mulher a contratou, porque eu não matei a minha filha nem tenciono assassinar a minha mulher.
Lorraine tossiu, tentando aparentar indiferença.
Quem sabe, um dos sócios do seu negócio possa ter algo a ver com o assunto...
Caley voltou a recostar-se na sua cadeira e fitou-a, fazendo subitamente girar a cadeira de modo a que ela não lhe visse o rosto. A sua voz tornou-se mais profunda e calma.
Continue, Mistress Page...
Bem, o senhor acabou de tornar tudo perfeitamente claro; há muito dinheiro a ganhar, tem um consórcio rival a fazer-lhe frente, e as coisas seriam muito mais simples para eles se, de repente, perdesse o interesse pelo projecto. Depois há os barcos do rio... Se calhar um casino como o seu roubar-lhes-ia uma grande parte do negócio, não é? Portanto, estamos perante a possibilidade de a sua filha ter sido incluída nalguma espécie de trama.
Como, por exemplo? perguntou-lhe Caley secamente.
Bem, alguém pode tê-la raptado para o persuadir a não avançar com o seu projecto. O terreno é seu, até aqui os seus sócios ainda não gastaram um cêntimo...
Robert Caley permaneceu calado por um instante e depois fez girar lentamente a cadeira, ficando novamente de frente para ela.
Continue.
É apenas uma teoria, mas alguém pode ter pensado em se servir da sua filha para o fazer recuar. Alguém o abordou directamente... ou o avisou pessoalmente?
Caley ficou pensativo e depois encolheu os ombros.
Não, não, absolutamente ninguém. Refere-se a manterem-na escondida e pedirem um resgate?
Lorraine anuiu com a cabeça.
Apareceu-lhe alguém a oferecer-se para lhe comprar o terreno?
Robert Caley começou a brincar com o copo vazio, fazendo-o deslizar lentamente ao longo da secretária.
Não, mas diga-me uma coisa, se o que diz for verdade, por que razão não apareceu nenhum bilhete a pedir resgate, nenhum pedido de encontro, não houve absolutamente nenhum contacto? O Consórcio Doubloons tem tanto poder que nem sequer me passa pela cabeça que recorresse ao rapto da Anna Louise para me ameaçar.
Mas podem ter arranjado uns reles bandidos quaisquer para a apanhar, talvez aprisionar, e o processo correu mal...
Quer dizer que a mataram?
A mesma dor horrível surgiu-lhe nos olhos, ao ponto de Lorraine ser obrigada a desviar os seus.
Possivelmente, o que explicaria o motivo pot que não lhe enviaram nenhuma mensagem nem tentaram contactar consigo. Toda a publicidade gerada em torno do desaparecimento da sua filha deve ter exercido um efeito adverso no negócio.
Caley empurrou a cadeira para trás e levantou-se.
Mas eles estão a ser suficientemente bem sucedidos... por isso não precisavam da minha filha para bloquear qualquer desenvolvimento do meu projecto, portanto...
Pensou nessa possibilidade, não pensou? Robert Caley anuiu, suspirando.
Sim, passou-me pela cabeça, mas depois coloquei-a de parte porque, sinceramente, não creio que fossem capazes de descer tão baixo.
Quando estão em causa milhões, o senhor ficaria admirado se soubesse até que ponto as pessoas descem, Mister Caley. Se essa hipótese chegou a passar-lhe pela cabeça, então deve compreender por que razão eu também a devo encarar e porque precisarei de saber quais são todos os seus sócios e, em especial, os seus concorrentes. Depois, através de um processo de eliminação...
Essa chamada eliminação não a conduzirá a parte alguma.
Ponha-me à prova desafiou Lorraine.
Muito bem. Portanto, quer falar com a oposição, não é verdade?
Obviamente.
Bem, Mistress Page, penso que irá contra a mesma parede de tijolos com que todos os outros agentes depararam, mas longe de mim tentar dissuadi-la. Na verdade, farei mesmo tudo o que estiver ao meu alcance para a ajudar, tal como fiz em relação a todos os inquéritos. Agora, se me der licença...
Os outros detectives e a Polícia de LA também o interrogaram acerca dessas mesmas pessoas?
Robert Caley dirigiu-se, em passada larga, para as portas monumentais.
Claro, e todos eles chegaram, também, a suspeitar de mim.
Compreendo.
Não, Mistress Page, não me parece que compreenda.
Esperava que, depois de termos falado, não lhe passasse pela cabeça que eu fosse capaz de fazer mal a um cabelo da minha filha, muito menos que fosse o género de homem capaz de fazer a minha mulher passar por este tipo de tormento. Não me veio com nada de novo, nada por que eu não tivesse já passado. Agora, dê-me licença, o Mark fornecer-lhe-á todos os elementos de que necessitar.
Dito isto, saiu porta fora, fechando-a atrás de si. Momentos depois, o assistente de gravata florida apareceu com uma pasta grossa na mão e aproximou-se de Lorraine.
Mister Caley pediu-me que lhe entregasse estes arquivos, mas, por favor, tenha presente que contêm informações privadas e confidenciais. Pode tomar notas, mas não levar a pasta aqui do escritório. A secretária de Mister Caley estará à sua disposição caso precise de algum esclarecimento...
Lorraine interrompeu-o.
Portanto, tenho de ficar aqui? perguntou Lorraine, pegando na pasta.
Sim. Mister Caley sugeriu que se sirva do seu gabinete, de modo a que, se precisar de alguma informação, alguma fotocópia que concordemos em fazer, possa recorrer à ajuda da sua secretária ou da minha. A pasta contém planos para o desenvolvimento do casino proposto e...
Lorraine interrompeu-o mais uma vez, dando a volta à secretária para se ir sentar no lugar de Robert Caley.
Óptimo, obrigada. Desculpe, ainda não percebi bem qual é o seu nome.
Mark Riley, assistente pessoal de Mister Caley. Lorraine sentou-se na cadeira do empresário e abriu a pasta.
Obrigada, Mark. Já agora diga-me em que botão devo carregar para falar consigo ou...
A Margaret está na linha cinco e eu na dois.
Muito obrigada, Mark. Sorriu-lhe.
O jovem hesitou ao deter-se junto da porta semiaberta.
Vou deixá-la sozinha.
Mark, conhecia a Anna Louise? O rapaz pareceu surpreendido.
Sim, claro.
Ela vinha muito aqui?
Não, só de vez em quando, para almoçar com Mister Caley.
Alguma vez conviveram socialmente?
Não. Só a via quando vinha encontrar-se com Mister Caley.
Lorraine ficou sozinha no gabinete imenso e frio, sentada na cadeira de cabedal macio de Robert Caley. Abriu a pasta e tirou o seu bloco de apontamentos da bolsa. Encontrou-o, mas verificou que não trouxera caneta, por isso baixou os olhos para as filas de gavetas, com as frentes em aço inoxidável, discretamente incorporadas em ambos os lados, tentando encontrar uma. Não havia manípulos. Tentou puxá-las para fora, imaginando como abririam, mas todas pareciam estar fechadas à chave. Franziu o cenho e olhou para o vasto tampo da secretária, reparando então que tinha um quadrado inserido mesmo em frente da cadeira. Carregou nele mas nada aconteceu. Foi então que viu um pequeno botão preto saliente e fez pressão sobre ele: a secção embutida recuou. A concavidade continha um mata-borrão, uma série de canetas e lápis, blocos-notas, memorandos, clipes, tudo em compartimentos impecavelmente arrumados, assim como duas molduras de face para baixo. Lorraine voltou-as: uma era de Anna Louise; a outra, de Elizabeth Caley.
Sentado à sua secretária, no escritório, Mark Riley observava Lorraine através de um pequeno monitor. Virou-se para a mulher de cabelos escuros que estava a dactilografar no seu processador de texto.
Mistress Page está a vasculhar muito bem o gabinete.
Sim, já reparei disse Margaret olhando para o colega, mas tomei medidas para que não conseguisse abrir nenhuma gaveta, não fosse bisbilhotar ainda mais.
Mark olhou para o livro das marcações. Não havia nenhuma reunião apontada.
Com quem é que ele estará a encontrar-se agora?
Não imaginas com quem é? perguntou Margaret, erguendo uma sobrancelha ao de leve.
Saffron Dulay estava atrasada, como era seu costume. Robert Caley voltou a olhar para as horas, não dando pela sua entrada. Isso, porém, não aconteceu com mais ninguém; era difícil não reparar nela. Saffron movia-se graciosamente por entre as mesas, conduzida pelo maítre, que lhe fez uma vénia e indicou a mesa discreta que Caley ocupava num dos reservados do jardim-restaurante de Bel Air. Detendo-se apenas uma fracção de segundo para sorrir a uma série de pessoas conhecidas, Saffron dirigia-lhes com uma inclinação ligeira da linda cabeça, comportando-se como se fosse da realeza, enquanto o maítre a tratava como tal.
Robert pôs-se imediatamente de pé mal Saffron chegou junto dele, oferecendo-lhe a face para que nela depositasse um beijo.
Robert disse com voz sensual, desculpa o atraso, sei que cheguei tarde, por favor não te levantes.
Todavia, ele fê-lo, puxando-lhe a cadeira para que se sentasse, de costas para os cisnes. Sabia que ela gostava de ter uma boa visão do local e quase sempre conhecia quem, de entre os presentes, era importante. Saffron era rica, filha única do barão das bebidas, herdeira única de biliões. Usava a sua riqueza daquela maneira simples que é apanágio só dos muito ricos. Quase com um metro e oitenta e três, a extrema simplicidade do vestido branco, tipo negligee, que usava salientava-lhe a altura, e o seu bronzeado dourado era realçado por umas finas sandálias douradas e um solitário no valor de um milhão de dólares em cada orelha. Ao acomodar o corpo esguio no assento almofadado, retirou o único acessório que levava: os óculos de sol de armação dourada.
Viva, como tens passado?
Saffron encontrava-se no lado errado dos quarenta, porém ninguém lhe adivinharia facilmente a idade; a sua autoconfiança, incentivada pelos milhões e pela sua evidente perfeição física, proporcionava-lhe uma aparência jovem. Quatro casamentos e amantes incontáveis não tinham logrado beliscar a sua postura de menina inocente, que ela aperfeiçoara ainda melhor do que qualquer starlet com metade da sua idade.
Tiveste alguma notícia da tua filha? perguntou com o seu arrastado sotaque sulista.
Não.
Estendeu a mão e tocou ao de leve na de Caley.
Deve ser muito duro.
Sim, é.
Olhou brevemente em redor da mesa, voltando a concentrar-se em Caley.
Escolhes sempre este lugar.
Pois é, pode-se fumar e é mais retirado. Fez sinal a um empregado. Mandei vir o mesmo de sempre. Espero que os teus gostos não tenham mudado.
Saffron riu, continuando a saltitar com os olhos pelo restaurante, enquanto ele só conseguia pensar em Lorraine Page. Esta também era loura e quase tão alta, mas, em comparação com Saffron, era imensamente mais perfeita e verdadeira. Ele já não sentia vontade de ir para a cama com Saffron, isso já fora há muito tempo. Nunca lhe acontecera antipatizar com ela como naquele momento. Se calhar, Lorraine atraía-o por ser tão directa. Adoraria fazer amor com a detective, e só o simples facto de pensar nisso fê-lo sorrir.
Tens um sorriso de arrasar, Robert Caley comentou Saffron suavemente.
Ora, obrigado...
A bela loura apoiou o queixo no côncavo das mãos.
Que foi, querido? Andas outra vez com falta de dinheiro?
O criado trouxe-lhe um cocktail requintadamente decorado e mais outro uísque simples para ele. O facto de ela saber por instinto por que razão ele quisera vê-la, mas obrigando-o, ainda assim, a entrar no jogo, irritava-o. Saffron tomou um pequeno gole da bebida e depois pousou o copo sobre o tampo da mesa; não voltaria a tocar-lhe, nunca o fazia.
Só não entendo porque não pedes a essa estrela de cinema que é tua mulher para te financiar.
Não quero dinheiro da minha mulher.
Pois não, mas que precisas dele é indiscutível, por isso terás de o ir buscar a outro lado qualquer.
Recostou-se, dedicando-lhe, só naquele momento, toda a sua atenção. Como era rica, sabia como manipular as pessoas que precisavam de si; era uma perita nisso.
Não quero um centimo teu, querida, mas de facto preciso que amanses o teu pai. Não vale a pena entrar em pormenores, sabes que estamos os dois metidos neste projecto de empreendimento, mas ouvi dizer que ele está a querer afastar-se, e como sei que o sabes levar à certa...
-Já falei com ele, querido. Assim que acabou de ligar para ti, telefonou para mim. Até parece que andamos a brincar aos telefonemas, ele liga para ti, tu ligas para mim, depois liga ele para mim... O meu pai pode já ter mais de setenta anos, mas olha que é uma velha raposa matreira. Disse que quer que eu vá a uma função qualquer lá na terra, sabes, está sempre com segredinhos para mim. Desde que a mamã morreu que anda a tentar que eu vá viver para lá, que arranje um marido fixo e lhe dê um neto.
É compreensível, afinal de contas és a sua única filha. Mas fez alguma referência ao meu projecto?
Que tal darmos uma volta por aí e falarmos desse assunto?
Fez a sugestão com um sorriso doce e, sem esperar por resposta, pousou o guardanapo de lado. Caley semiergueu-se do seu lugar, viu-a levantar-se e depois ficou a terminar a sua bebida, ciente de que ela ainda continuaria a saltitar de mesa em mesa durante mais uns bons quinze minutos. Pagou a conta, reflectindo que, a seguir, iria pagar bem mais. Ao abrir caminho por entre as mesas, consultou as horas; dispunha de quarenta e cinco minutos antes da reunião seguinte.
A divisória em vidro obscurecido não permitia ver o motorista. A limusina de Saffron dispunha de uma secção com um divã amplo e também de televisão e bar, além de um fax, telefone e computador. Caley ia sentado em frente da amiga, que se estendera sobre o amplo assento acolchoado oposto, a desembrulhar um rebuçado de hortelã-pimenta.
Queres um?
Não.
Nada de calorias.
Caley abriu o bar, deitou gelo num copo e encheu-o de água até acima. Olhou para Saffron e ergueu o copo, porém esta disse que não com a cabeça.
Tenho de estar no meu escritório às seis.
Óptimo, andaremos devagarinho... mesmo como eu gosto.
Baixou uma das alças, a seguir a outra, fazendo deslizar o vestido branco do corpo. Não tinha roupa interior e foi com um alheamento total que depois dobrou o vestido cuidadosamente e abriu as longas pernas bronzeadas. Ficou apenas com as sandálias de tiras finas douradas. Caley bebeu a água toda de olhos fixos nela, deixando apenas os cubos de gelo. Agitou o copo ruidosamente, fazendo-a rir.
Pois é, já há uns tempos que não me enchem de cubos e tu sabes como eu gosto disso...
Robert Caley nem sequer se deu ao trabalho de relaxar o nó da gravata ou de tirar o casaco; não havia necessidade. Saffron não queria que a abraçasse nem lhe estragasse a maquilhagem com beijos ávidos. Ela sabia exactamente o que queria, e ele também. Começou a massajar-se a si mesma, rodeando os seios perfeitos com as mãos em movimento, até os mamilos enrijarem. Ele ajoelhou-se entre as suas pernas e, servindo-se da mão direita, fez deslizar um cubo de gelo sobre os mamilos, levando-a a gemer suavemente, enquanto, com a esquerda, começava a acariciar-lhe as coxas, subindo-lhe gradualmente entre as pernas até a tocar com o polegar, certo do ponto exacto onde a excitaria, enquanto ela, de olhos fechados, abria cada vez mais as pernas.
Oh, sim, sim, gosto assim, ah, gosto assim.
Ele deixou o cubo de gelo deslizar-lhe por entre os seios, fazendo-a estremecer, e quando o inseriu habilmente no fundo da vagina, o corpo dela arqueou-se. Tirou rapidamente os restantes cubos do copo e premiu-os uns atrás dos outros, até poder sentir o frio do gelo com o polegar.
Oh, Deus, sim, sim... Saffron dobrou-se para a frente, baixando a cabeça quando ele começou a lamber-lhe o clitóris. Atingiu rapidamente o clímax, deixando escapar um grito, mas continuou a segurar a cabeça dele entre as suas pernas. Quero vir-me três vezes, faz-me gritar três vezes, querido, faz, faz.
Nick entrou calmamente no escritório a comer um hambúrguer, o que levou Rosie a fazer uma careta.
Isso está cheio de colesterol, não lhe faz nada bem, Nick.
Eu sei, mas gosto.
Sentou-se na cadeira de Lorraine e começou às voltas, acabando de meter os restos do almoço na boca. Nesse momento entrou Rooney.
Apanhei-te, comeste um hambúrguer, ainda lhe sinto o cheiro disse Rooney a Rosie acusadoramente.
Enganas-te replicou Rosie, indignada, ele é que comeu. E apontou para Nick, que limpava a boca à manga da camisa.
Que raio de lugar é este? Alguma casa de saúde? Rooney sentou-se na beira da secretária e sorriu a Rosie.
É só uma brincadeira entre nós. Descobriste alguma coisa?
Nick tirou as suas miseráveis folhas de apontamentos de um dos bolsos.
Consegui informar-me sobre o médico da Elizabeth Caley, pus um amigo meu a bisbilhotar por aí e...
Os outros dois esperaram que continuasse a falar, enquanto ia remexendo nos papéis amarrotados.
A namorada do Fisher anda com um amigo meu que é do Departamento de Narcóticos, de modo que... prosseguiu Nick.
De modo que? instigou Rooney.
Nick voltou a amarfanhar os seus papéis já em mau estado.
Temos de andar depressa. Consta que vão prender o doutor Hayleden por tráfico de droga; portanto, gostaria de chegar a ele antes de a bronca estourar, e se Sua Senhoria pudesse acompanhar-me seria bom, sabem, para ela ver como um verdadeiro profissional actua!
Rosie disse que ligaria para o telemóvel de Lorraine e ia a fazê-lo, quando Nick lhe segurou na mão.
Que se passa com ela? Tem algum problema em relação a mim?
Rooney encolheu os ombros, olhando de lado para Rosie.
Não, porque perguntas? Nick pôs a cabeça de lado.
Bem, o certo é que trabalho que me farto e não quero ser lixado.
Pela Lorraine? perguntou Rosie.
Sim, por ela. Sei que não está nada satisfeita por me ter nesta tarefa, portanto... Quero saber de uma vez por todas: faÇo parte do grupo ou não?
Claro que faz replicou Rosie, enquanto Rooney espetava um dedo no peito de Nick.
Escuta, cortamos o bolo em quatro partes e não se fala mais nisso.
Nick sorriu.
Está bem, só queria ter a certeza... Ela anda a fornicar com alguém? Não metaforicamente. é só curiosidade minha.
Não tens a menor hipótese, Nick declarou Rooney a rir. Não achas, Rosie?
Não sei retorquiu aquela, encolhendo os ombros, mas quer que entre em contacto com ela ou não? Está no escritório do Caley.
Nick voltou a sorrir.
Liga para ela, mas não lhe contes nada... nada de pessoal.
Lorraine ficou no gabinete de Robert Caley a tomar apontamentos, vigiada através do monitor por Mark e Margaret, mas não pediu ajuda a nenhum dos dois. Foi percorrendo metodicamente o ficheiro espesso, ciente de que o mesmo já fora examinado por todos os outros investigadores, o que, ainda assim, não lhe permitia que facilitasse, não fosse deixar escapar algo. Cerca das seis da tarde já tinha meio bloco cheio de apontamentos e, dando o trabalho por terminado, recostou-se no cadeirão de cabedal.
As finanças de Robert Caley tinham esticado até ao limite. Tudo indicava que todo o seu dinheiro se encontrava aplicado em propriedades, o que ainda fazia dele um homem rico, mas com pouca disponibilidade imediata de dinheiro vivo. Como lhe dissera, pagara tudo o que se relacionava com o negócio do casino, e, mesmo que este não fosse para a frente, ainda teria de entrar com mais uma quantia para finalizar o pagamento do terreno. Se os seus sócios se afastassem, perderia milhões e seria obrigado a vender bens rapidamente, portanto, ao desbarato, para poder honrar as suas dívidas. Lorraine não tinha acesso a informações sobre a fortuna de Elizabeth Caley, mas, tanto quanto podia ver, os Caley não tinham nenhum tipo de finanças ou contas conjuntas.
Mark olhou para o monitor e viu Lorraine levantar-se e espreguiçar-se, bocejando. Reparou que fechava a pasta e começava a arrumar as suas coisas.
Parece-me que já terminou disse a Margaret, que conversava com o motorista da família Caley, acabado de chegar ao escritório.
Margaret fez uma cara de desagrado.
Espero bem que ele não se atrase. O Mário deixou-o no Bel Air. Não percebo o que é que ele vê naquela cabra da Saffron.
Mark encolheu os ombros com indiferença e apontou para o ecrã.
É no que dá ser danadamente rico, Margaret! Mistress Page está de saída. És capaz de pôr o ar condicionado no máximo ali dentro? Ela esteve a fumar...
Mark aproximou-se de Lorraine quando esta saiu do gabinete, trazendo a pasta na mão.
Terminou?
Sim, obrigado. Mister Caley está cá?
Não, encontra-se numa reunião e a seguir tem outra, às seis. Precisa de falar com ele?
Bem, não propriamente, basta que lhe agradeça em meu nome. Não se importa? Entregou-lhe a pasta. Ah, só mais uma coisa. Mistress Caley não tem nada a ver com este negócio aqui, pois não?
Não, não tem.
Compreendo, e também não financiou nenhuma das empresas imobiliárias, pois não?
Tanto quanto saiba, não respondeu o assistente secamente.
Sabe se têm interesses conjuntos?
Nenhuns de que eu tenha conhecimento.
Foi guardar a pasta dentro de um armário e Lorraine seguiu-o, colocando-se mesmo atrás dele.
Portanto, a fortuna de Mistress Caley pertence-lhe exclusivamente, não é verdade?
Sim, penso que sim, mas é para Mister Caley que eu trabalho. Nunca me meti nas finanças privadas de Mistress Caley.
Mas deve ter alguma ideia do que ela vale. Quero dizer, serão alguns milhões, um milhão ou uma mão-cheia de milhões? perguntou, sorrindo espirituosamente, mas o rapaz não cedeu um milímetro.
Na verdade não faço ideia, talvez deva fazer essa pergunta ao próprio Mister Caley. Voltou-se para Margaret que se aproximara juntamente com Mário. Mário, não te importas de acompanhar Mistress Page até ao elevador? Informarei a segurança de que vai sair. Mistress Page, este é Mário, o motorista de Mister Caley.
Mário fez-lhe um cumprimento de cabeça e depois dirigiu-se para a porta, abrindo-lha. Desceram juntos no elevador.
Pensei que Mister Caley ainda estava fora.
E está, minha senhora.
É empregado de Mister e Mistress Caley?
Sim, minha senhora, já há oito anos.
Fez-lhe sinal para que fosse até ao balcão dos seguranças, onde desprendeu e entregou o cartão identificativo. A seguir abriu-lhe a porta principal do edifício, para que saísse.
Lorraine hesitou.
Conhecia a Anna Louise?
Sim, minha senhora, de vez em quando levava-a no carro, na companhia de Mistress Caley.
Levou-a a algum lugar específico? A algum sítio fora do comum, sobretudo pouco antes do seu desaparecimento?
Não, minha senhora, costumava apenas levá-la às compras, a um ou outro acontecimento social, mas Miss Caley tinha carro próprio. Era uma menina muito querida, nunca era indelicada, tratou-me sempre com respeito.
E Mistress Caley?
Desculpe? Desviou o olhar.
Mistress Caley trata-o com respeito?
Trata sim, minha senhora.
Continuava a manter a porta aberta; no entanto, Lorraine percebeu que estava ansioso por se ver livre dela.
Era o senhor que costumava levar Mistress Caley ao seu médico?
Não, minha senhora.
Verdade? Portanto, só a conduzia de vez em quando. Apenas às compras e a algumas festas?
Exactamente, minha senhora.
Alguma vez levou Mistress Caley ao apartamento de Mistress Salina, em Doheny?
Levei-as algumas vezes.
Levou-as?
Ah, bem, sim, Miss Anna Louise foi visitar Mistress Salina algumas vezes. Essa senhora costumava ir lá a casa, mas Mister Caley não apreciava o facto, pelo que depois passaram elas a ir a sua casa.
A Anna Louise foi alguma vez sozinha a casa da Juda Salina?
Hum... talvez uma ou duas vezes.
Pouco antes de desaparecer?
Por favor, não me meta em sarilhos. Mister Caley não sabe que as levei, ele não gosta dessa senhora e eu não acredito em nenhuma daquelas tretas.
Quer dizer que a Anna Louise foi a casa de Mistress Salina pouco antes de partir para Nova Orleães, certo?
O motorista acenou afirmativamente com a cabeça.
O Mário é de Nova Orleães, não é?
O motorista pareceu ficar muito incomodado e o suor brotou-lhe da testa.
Sim, minha senhora, muitos dos empregados dos Caley já trabalhavam para a família de Mistress Caley há anos, e às vezes acompanhamos a senhora até lá, quando vão para ficar por algum tempo.
Se eu precisar de falar mais consigo, Mário...
Pode fazê-lo lá em casa ou aqui, Mistress Page. Vivo num apartamento por cima das garagens.
Mário olhou para a secção de segurança e depois de novo para Lorraine. Puxou de um cartão seu e escreveu algo nas costas do mesmo.
Fica aqui o número do meu telemóvel, estou sempre contactável através dele, mas também quero que saiba que não tenho nada a dizer sobre Mistress ou Mister Caley. São muito boas pessoas e lamento verdadeiramente o que aconteceu à Anna Louise, tal como todos aqueles que os conhecem.
Lorraine enfiou o cartão no bolso e sorriu.
- Tenho a certeza de que estão a ser tempos muito difíCeis para todos. Obrigada, Mário.
Lorraine saiu do edifício e dirigiu-se ao parque de estacionamento. Viu a longa limusina branca estacionada ao pé do Portão de segurança. Robert Caley inclinava-se para o banco dos passageiros, de costas para ela. Lorraine percorreu apressadamente o impecável carreiro e atalhou pelo relvado, passando por baixo da barreira pintada de branco. Acercou-se de Robert Caley, que parecia furioso.
Só estou a pedir-te que o convenças a dar-me mais tempo. Meu Deus! Já reparaste que só sabes fazer jogadas?
Eu? Tu é que fazes jogadas, Caley, e depois tens o que mereces. Que queres que eu faça? Que diga ao meu pai que o irás deixar mal?
Eu é que direi ao teu pai o que a cabra da filha anda a fazer...
Viva, já estava de saída disse Lorraine suavemente mesmo atrás de Caley.
Este virou-se de súbito e, como a porta do carro estava aberta, Lorraine pôde ver a figura de Saffron, nua, no banco de trás. Caley atirou com a porta do carro, o qual se afastou da barreira, deu a volta e voltou para trás.
Isso é que foi uma reunião comentou Lorraine, ainda a sorrir.
Robert Caley recuperou prontamente a compostura e encolheu os ombros.
Pois é, mas até mesmo os velhos parceiros às vezes abusam da sua sorte.
Lorraine reparou que um pequeno músculo na zona do queixo lhe tremia, mas continuou a sorrir.
Obrigada por me ter deixado servir do seu gabinete.
Quando quiser. Tinha os braços caídos ao longo do corpo e os punhos cerrados, e, apesar de ela saber que estava a esforçar-se ao máximo por ser cortês, os olhos traíam-no.
Desculpe, mas tenho um compromisso.
Com certeza, contudo, se eu precisar de falar consigo de novo...
Robert Caley começava já a afastar-se.
Sabe onde encontrar-me, Mistress Page.
Quando Lorraine voltou para trás, dirigindo-se para o seu carro, o segurança levou a mão ao boné e aproximou-se dela.
Boa tarde, Mistress Page.
Acompanhou-a ao carro, pegou-lhe mesmo nas chaves para lho abrir, mantendo-lhe a porta escancarada. Naquele sítio, todos pareciam extremamente delicados.
Hoje deve ter chegado quase aos quarenta graus observou o homem, fazendo conversa enquanto esperava pela gorjeta. Lorraine deu-lhe cinco dólares.
Bela limusina aquela.
A grande, branca?
Sim, com matrícula da Luisiana. A quem pertence?
Costumava aparecer muito por aqui, mas ultimamente não. É de um sócio de Mister Caley.
Fechou a porta e deu uma pancadinha no tejadilho com a mão. Lorraine ficou sem saber se, em vez de cinco, lhe tivesse dado dez, ele não se lembraria de quem era a limusina; no entanto, baixou o vidro da janela, mantendo o sorriso.
O homem ergueu a barreira de segurança para ela passar. Ao aproximar-se dele, Lorraine desfez o sorriso.
De quem é a limusina? Poupe-me o tempo de ir verificar à esquadra. Pois é isso mesmo, sou polícia, hoje em dia aparecemos em todos os formatos e tamanhos.
O segurança hesitou.
É de Miss Saffron Dulay, filha de Lloyd Dulay, que utiliza o carro da filha quando vem a LA.
Obrigada agradeceu Lorraine secamente, passando a barreira.
Com que então aquela é que era a reunião de negócios... Bem, no fundo até talvez fosse; Lloyd Dulay, segundo Caley lhe contara, era um dos sócios do casino, o magnata das bebidas.
Lorraine regressava a Hollywood quando Nick lhe telefonou para o telemóvel.
Olá, doçura. Se queremos falar com o médico da Caley, terá de ser depressa. Recebi uma dica de que o vão prender, portanto encontramo-nos lá o mais depressa que puder.
Está bem, vou já para lá, só preciso de fazer um telefonema no caminho.
Carregou nos dígitos do número de telefone do escritório.
Viva, Bill, alguma novidade?
Nenhuma respondeu ele. Como é que isso vai?
Passei um par de horas no gabinete do Caley, tenho uns nomes que preciso de investigar. És capaz de ver o que consegues descobrir sobre a filha do Lloyd Dulay? Vive em Hollywood, chama-se Saffron Dulay. Penso que o Robert Caley tem um namorico qualquer com ela. Importas-te de ver o que há sobre esta senhora?
Claro, mas, Lorraine...
Sabia que ele ia chateá-la por causa da necessidade de não perderem mais tempo em LA.
Agora preciso de ir. Vou-me encontrar com o Nick. E desligou.
Rosie inclinou-se sobre o ombro de Rooney para ler os apontamentos que este tirara.
Quem é que se chama Saffron?
Saffron Dulay, filha de um dos tipos ligados ao negócio do casino, família rica, muito rica. A Lorraine acha que o Robert Caley anda envolvido com ela, portanto vou tirar informações, e começarei por fazer uns telefonemas para as revistas com colunas sociais e ecos da alta sociedade.
Se quiseres, encarrego-me disso propôs-lhe Rosie.
Está bem, obrigado. Cheiras bem, usas perfume? Rosie sorriu, esfuziante.
É gardenia.
Belo cheiro, fresco.
Obrigada.
Não precisas de agradecer.
Nick viu Lorraine entrar no parque de estacionamento adjacente à clínica de cirurgia onde o médico trabalhava, entre Santa Mónica e Bedford, apear-se e dirigir-se para o edifício. Gostava da maneira de ela andar, com passadas largas e ágeis. Era uma mulher assanhada, reflectiu, todas eram. Apesar do cabelo louro despenteado e do fato amarrotado, achava-a com óptimo aspecto. Ele sempre gostara de louras de pernas altas e musculosas, e Lorraine era tudo isso. Não pôde deixar de sorrir, imaginando, instintivamente, que também devia ser assanhada na cama.
O que é que tem tanta graça? perguntou Lorraine, com maus modos.
Nada, mas está com aspecto de quem tem vontade de dar um murro em alguém. É mau humor?
É respondeu, ainda assim sorrindo.
Nick Bartello tinha o condão de pôr uma pessoa imediatamente à vontade. Brindou Lorraine com aquele seu sorriso fantástico.
Muito bem, cá estamos. Quer ir sentar-se no meu jipe? Estou na divisória de estacionamento privado do doutor. A propósito, ele está lá dentro, mas também vai estar dentro mais cedo do que pensa.
Dirigiram-se para um jipe Cherokee velho e em mau estado; até os estofos estavam rasgados e esfiapados.
Diabos me levem, Nick, onde é que arranjou isto?
O motor está bom e foi barato. O meu cão é que deu cabo dos estofos.
Assobiou, e uma cabeça esquisita, coberta de pêlo comprido, esticou-se imediatamente do fundo do banco de trás.
Este é o Tiger. Tiger, apresento-te a Lorraine Page, da Agência de Investigações Page.
O cão, meio pastor-alemão, meio cão-pastor ou meio outro qualquer, tinha um ar pouco cuidado, como o dono, e até os esquisitos olhos azul-claros se pareciam com os de Nick.
Encontrei-o num caixote de lixo há dois anos, é um excelente cão de guarda, mas, como gosta de esfarrapar tudo, vive praticamente no jipe.
É, vejo que sim. Lorraine olhou para os assentos do jipe, em péssimo estado; todo o banco de trás estava ocupado por Tiger, o seu cobertor e as suas tigelas de comida e de água. Quando Lorraine se sentou na frente, o animal rosnou baixinho.
Ei, acaba com isso, é minha colega.
Tiger acalmou, apoiando a cabeça no ombro de Nick, que tirou um cigarro de dentro de um maço amachucado de Kool.
Lembra-se daquele tipo chamado Fisher de que lhe falei? Que era meu informante e morreu?
Lorraine disse que sim com a cabeça.
Bem, fiz umas perguntas por aí e o relatório da autópsia revelou que a morte não foi provocada por uma overdose de heroína, mas sim por um coágulo sanguíneo provocado por uma injecção de temazepam. Até faz sentido, porque ele disse-me, na última vez em que o encontrei, que já não andava a tomar daquilo, mas a mim pareceu-me que voltara ao mesmo.
Os do tipo dele normalmente fazem-no. Este médico vende receitas como se aquilo fosse água e ainda fornece esse material à Elizabeth Caley. Mas se é para irmos lá dentro, deixe que seja eu a falar. Não demoraremos muito porque a namorada do Fisher tem andado a falar com a bófia, deitaram-lhe a mão aqui há umas noites. Nunca me acuse de não me mexer, estou nisto desde manhã cedo. Seja como for, constou-me que eles vão prendê-lo não tarda, portanto, se precisarmos de lhe dar um pouco de incentivo para falar, podemos servir-nos do Fisher.
Está bem, vamos falar com o tipo.
A clínica cirúrgica assemelhava-se a uma ampla sala de espera de luxo, com sofás confortáveis, reposteiros e mesinhas, enquanto o Dr. Hayleden, com os seus trajes antiquados, óculos sem aros, o cabelo tratado por cabeleireiro e o rosto arranjado, era uma personagem digna de um museu de cera.
Não posso falar sobre pacientes meus. A não ser, evidentemente, que estejam presentes ou os senhores apresentem um documento escrito legal a consenti-lo.
Lorraine manteve-se calada. Nick imitou-a.
Portanto, acho que posso dar a nossa entrevista por terminada.
Olhe que não disse Nick em voz branda.
Acho que sim. Os senhores entram aqui, dizem que pertencem a uma agência de investigações, fazem perguntas acerca de uma doente minha, ainda por cima uma que os media conhecem sobejamente, e esperam que eu...
Para abreviarmos esta conversa de treta interrompeu Nick calmamente, sei que tem andado a prescrever à Elizabeth Caley não apenas analgésicos, mas soníferos, tranquilizantes suaves e outros, certo? E já faz muito tempo... O problema é que ela toma o suficiente para pôr um elefante a dormir.
As suas insinuações não me agradam, Mister Bartello.
Para lhe dizer a verdade, doutor, estou-me nas tintas. Não conheço ninguém que, por muitas insónias que tenha, precise da quantidade enorme de temazepam que anda a receitar à Elizabeth Caley. O suficiente para derreter os comprimidos e injectar-se seis ou sete vezes por dia. Vejamos, neste caso não estamos a falar de receitas com quantidades normais, sim de duzentas doses de cada vez. Tenho conhecimento do assunto porque um amigo meu, chamado Fisher, também andava a vender-lhe material. Ele e os colegas assaltavam armazéns de laboratórios de medicamentos e depois entregavam-lhe o material à porta. O doutor sabe, tão bem como eu, que uma pessoa que ande a tomar uma quantidade tão grande é candidata a uma trombose, como aconteceu com o nosso amigo Fisher. Morreu, sabia?
O Dr. Hayleden olhou firmemente para Nick, tentando não demonstrar que sabia exactamente do que ele estava a falar. Sentiam, no entanto, que o tinham deixado preocupado. O suor brotou-lhe da testa e os olhos abriram-se-lhe de pânico. Lorraine deu um ligeiro pontapé a Nick, pois não convinha nada assustarem demasiado o homem.
Lorraine inclinou-se para a frente.
Não somos do Departamento de Narcóticos. Andamos a fazer uma investigação particular. Só precisamos de saber se o Robert Caley tem conhecimento do tipo de vício da mulher.
Não tenho nenhum paciente registado nos meus livros com o apelido Fisher. O Dr. Hayleden suava agora profusamente, o seu penteado impecável começara a ficar húmido nas pontas, e os lábios iam ficando secos de tanto ele lhes passar a língua de um lado para o outro. Têm de compreender que, se um paciente insiste em utilizar mal os remédios prescritos, eu pouco posso fazer.
Nick levantou-se.
Se um médico continua a prescrever drogas estando ciente do perigo, eu diria que está metido em sarilhos até ao pescoço. Porque não responde à pergunta? Melhor ainda, diga-nos se o Robert Caley alguma vez veio buscar, pessoalmente, um dos seus encantadores pacotinhos para a mulher.
Um quarto de hora mais tarde, Nick e Lorraine ficavam a saber que, de vez em quando, Elizabeth Caley encomendava mais de um milhar de comprimidos por semana e que Hayleden, que não conhecia Caley, não tinha razões para crer que este estivesse a par da dependência da mulher. A assistente pessoal de Mrs. Caley viera, várias vezes, buscar material. Anna Louise Caley jamais estivera na sua clínica.
Quando Lorraine e Nick chegaram a Pasadena, o Departamento de Narcóticos de LA já prendera HayJeden, que iria ser acusado da venda de receitas e de medicamentos ilegais, provavelmente sairia apenas com uma fiança e seria expulso da Ordem dos Médicos. Mas uma pessoa daquele tipo mudaria de Estado e começaria tudo de novo. Elizabeth Caley, servindo-se de um nome falso, era apenas uma das suas numerosas clientes. O seu nome verdadeiro quase de certeza jamais viria a lume, sequer, ligado àquele caso.
Mais tarde, durante o jantar, que decorreu no apartamento de Lorraine e Rosie, Nick teimou em afirmar que Robert Caley continuava a ser o suspeito número um. Rooney e Rosie ouviram-nos relatar a sua sessão com o médico. A opinião de todos era a de que deveriam agora passar a trabalhar em Nova Orleães. Lorraine foi a única a hesitar, desagradando-lhe o facto de ainda continuarem a ter Robert Caley como principal suspeito. Os colegas achavam que estava a ficar obcecada com o cenário de Juda Salina, enquanto ela insistia que ainda precisava de falar novamente com Phyllis e ter mais uma conversa tanto com Elizabeth como com Robert Caley.
Nick fez um gesto exasperado com as mãos.
Por que raio há-de andar a perder tempo, doçura? É o Caley, o motivo aplica-se a ele.
Rooney concordou com um aceno de cabeça.
Pois é, mas ainda é preciso prová-lo, Nick.
Nick enrolou um bocado de espaguete com o garfo e olhou para Lorraine.
Dê-nos razões para não nos atirarmos a ele, para não o encostarmos à parede.
Para dizer a verdade não tenho nenhuma, é só um pressentimento.
O que a Lorraine quer é provar-lhe o sabor declarou Nick, rindo.
Lorraine pôs-se de pé com um salto.
Vá à merda, isso não é verdade. Só estou a dizer é que se ele estivesse envolvido no desaparecimento da própria filha, porque me daria acesso aos seus arquivos particulares, porque me daria razões ou o raio de um motivo de peso? Não anda a esconder nada, pelo contrário.
Nick serviu-se de uma cerveja que trouxera para si, pois sabia que nem Lorraine nem Rosie bebiam.
Ei! Calma aí! Um indivíduo culpado tem tendência para contar a verdade antes que os outros descubram. São as regras do jogo, como muito bem sabe, Lorraine. Além disso, apanhou-o com a boca na botija em relação a essa tal Saffron. Temos de andar depressa se queremos que a Elizabeth Caley não se suicide antes de o caçarmos, caso contrário, perdemos o milhão de dólares de bónus.
Lorraine sentiu-se fatigada.
Rosie, descobriste alguma coisa sobre a Saffron Dulay? Rosie, mais profissional que nunca, abriu o seu bloco de apontamentos.
Para começar, ela já teve mais maridos do que jantares quentes. É filha única e herdeira de uma fortuna, facto que ostenta, e muito. Contactei com a Melissa Dewhurst, de uma publicação de mexericos de Hollywood. Informou-me, sem que fosse preciso insistir muito, de que a Saffron moveu um processo chorudo contra a sua revista pelo facto de a Melissa ter escrito um artigo onde dava a entender que a outra é ninfomaníaca. A propósito, ela também processou uma outra revista por ter sugerido que fizera implantações de silicone nos seios. A julgar pelas fotos que consegui que me mandassem, diria que fez muito mais do que levantar as mamas; tem um aspecto fantástico. E reparem só no apartamento onde vive.
Rosie espalhou as fotografias enviadas pela revista. Nick inclinou-se sobre as mesmas e assobiou.
Caramba, não há dúvida de que ela representa um bom motivo. Que corpo, ainda por cima rico. Lorraine, olhe-me para ela vestida. É a mesma tipa que viu de rabo ao léu no banco de trás de uma limusina, ao pé dos escritórios do Robert Caley, não é?
Rooney ficou de boca aberta.
Não me digas!
Lorraine voltou a recostar-se e afastou o prato meio cheio. Abriu a pasta e colocou todos os apontamentos que tirara dos arquivos do escritório de Caley em cima da mesa.
Não os sujem de comida, mas vocês dois, e tu também, Rosie, deviam analisá-los em pormenor.
Levantou-se da mesa.
E quanto ao Robert Caley? perguntou Nick, aborrecido.
Tudo isso é sobre ele, Nick, basta que leia. Nick bocejou, piscando o olho a Rooney.
Que tal um copo? Podemos ir para um bar ver isto. Rooney fechou o livro com uma pancada seca.
Por mim, tudo bem. Até amanhã, Rosie, obrigada pelo espaguete.
Inclinou-se para ela e deu-lhe um beijo na cara. Apanhou-a de surpresa, fazendo-a corar.
Nick piscou o olho a Rosie ao abrir a porta para Rooney passar.
Boa noite, até amanhã.
Rosie começou a levantar a mesa. Era bom ter um homem em casa, dava uma sensação agradável; ao passar diante do espelho a caminho da cozinha, com a louça suja, lançou uma mirada rápida a si mesma. Talvez fosse dar uma cortadela ao cabelo no dia seguinte, começar a usar outra vez um pouco de maquilhagem. O beijo repenicado que Rooney lhe dera na face significara muito; fazia muito tempo que não era beijada por um homem. Não que Rooney a tivesse beijado como devia ser, mas era uma demonstração de afecto, e isso também era algo que já não experimentava há bastante tempo.
Lorraine deixou-se ficar sentada à mesa enquanto Rosie a levantava. Ouvia Nick e Rooney a rir na rua em baixo. Levantou-se e aproximou-se da janela, olhando para eles, depois virou-se para Rosie.
Boa noite, Rosie, vou deitar-me. É tarde e estou estafada.
Boa noite. Desliga o ar condicionado, senão, não dormes.
Lorraine assim fez, seguiram-se as luzes, depois ficou algum tempo na semiobscuridade, ao pé da janela, profundamente imersa nos seus pensamentos. Apercebia-se de que Nick Bartello se apoderara virtualmente do caso, e também sabia que, se quisesse voltar a dirigir o espectáculo, sobretudo diante de Rosie e de Rooney, teria de o suplantar. Sabia que ele ia mais à frente do que ela e que era competente. Apesar de ter chegado ao caso mais tarde, aparecera com motivos, e dos bons. Estaria ela a perder o jeito? A atracção física que sentia por Caley estaria a fazer com que não o encarasse com imparcialidade? Deitada no sofá-cama, suspirou.
Seria Robert Caley capaz de ocultar os motivos pelos quais a própria filha fora raptada, talvez assassinada? Ou estaria Elizabeth Caley a encobrir não só a sua dependência da droga mas algo mais sinistro? Assim sendo, para quê a contratação de detectives particulares? A não ser que fosse um dos papéis que desempenhara num dos seus filmes antigos...
Lorraine bocejou, sentindo os olhos fecharem-se-lhe de fadiga. Fosse como fosse, estava convencida de que a chave para o desaparecimento de Anna Louise tinha a ver com os seus pais. A dúvida era... qual dos dois? Só dispunham de duas semanas para obter o tal milhão e já haviam passado dois dias.
Os rostos misturaram-se na sua mente: ora Nick Bartello a chamá-la, ora Lubrinski. Tentava arrastar o corpo para longe das balas que choviam.... Gritava, o corpo pesava, sangrava e gemia. O rosto de Lubrinski foi substituído pelo de Nick Bartello, depois voltou a ser o de Lubrinski, e ela chorava, ignorando que o fazia sonoramente. Foi despertada pelo próprio choro: pouco antes disso, o homem aninhado nos seus braços passara a ser Robert Caley. Sentou-se de rompante, arquejando, com o corpo encharcado em suor, e levou alguns momentos a compreender onde estava. Depois atirou-se de novo para cima das almofadas e fechou os olhos, mas não conseguiu voltar a adormecer. Não queria que o pesadelo se repetisse, não queria voltar a recordar Jack Lubrinski a morrer-lhe nos braços. Sentiu frio, muito frio.
Nick Bartello parecia-se imenso com Lubrinski. Também guardava os apontamentos no bolso de trás das calças, arrancando as folhas do bloco para nelas escrever com os seus rabiscos miúdos e esquisitos.
Rosie ouviu os seus gritos. Sentou-se de súbito na cama, de ouvido à escuta, e depois aproximou-se silenciosamente da porta do seu quarto. Abriu uma nesga e espreitou lá para dentro. Viu Lorraine enrolada sobre si como uma menina, de mãos cerradas debaixo do queixo.
Estás bem, amiga? sussurrou.
Estou, foi só um pesadelo. Acordei-te?
Não, até amanhã.
Rosie, gostas sempre do mesmo tipo de homem? Rosie inclinou-se sobre Lorraine e afagou-lhe o cabelo com ternura.
Escuta: já não tenho nenhum há tanto tempo que me contentava com o que me saísse na rifa, baixo ou alto, gordo ou magro, careca, louro ou moreno. Ruivo é que talvez não, nunca me agradaram muito.
Lorraine virou-se para Rosie e sorriu-lhe. Tinha um sorriso tão bonito e adorável que era uma pena que o utilizasse tão poucas vezes.
Eu sempre gostei de tipos de cabelo escuro... Sabes, se calhar é disso que preciso.
De quê? perguntou Rosie, com ar preocupado.
De um homem. Rosie riu-se.
Ainda bem que é isso, pensei que me ias falar numa bebida. Repara, a minha experiência diz que ambos te fazem o mesmo mal.
Pois é, também desconfio que sim.
Os movimentos suaves da mão de Rosie no cabelo de Lorraine acalmaram-na e não tardou a adormecer. Nem sequer sentiu Rosie tapá-la cuidadosamente com o seu edredão, não viu que a amiga esperou que adormecesse, observando, meio fascinada, as suas mãos esguias relaxarem lentamente. Era em momentos como aquele que tudo ficava bem entre ambas; Rosie era a única pessoa a quem Lorraine mostrava a sua vulnerabilidade assustadora. Quanto aos pesadelos que a faziam gritar assim, nunca houvera qualquer referência. No entanto, andavam a tornar-se menos frequentes, assim como os seus sorrisos bonitos.
Lorraine chegou a casa dos Caley eram onze menos dois minutos, precisamente o tempo que faltava para a hora da reunião que Rosie combinara com Phyllis; no entanto, Mrs. Caley estava com a sua esteticista, de modo que lhe pediu que fizesse a gentileza de aguardar. Lorraine ficou furiosa e disse a Peters, o mordomo sorumbático, que lhe era impossível esperar, pois tinha outros assuntos urgentes a tratar. Elizabeth acabou, assim, por recebê-la, não obstante a inconveniência, pelo que foi conduzida ao solário.
Elizabeth exibia uma espessa máscara facial, envergava um roupão turco macio amarrado pela cintura e tinha a cabeça enrolada numa toalha. Ladeavam-na duas mulheres jovens, uniformizadas de branco, que se movimentavam à sua volta, uma a arranjar-lhe as unhas das mãos, a outra as dos pés. Encontravam-se numa pequena sala de massagens à saída do ginásio construído nas traseiras da casa, de polido piso flutuante em madeira de pinheiro, pesos, bicicletas e um saco de treinar socos, assim como cadeiras de reclinar em couro. Altifalantes ocultos deixavam ouvir música clássica, e todas as persianas das janelas em arco estavam corridas, não permitindo a entrada do sol matinal.
Mistress Page, aos meus pés está a Angela, e esta aqui é a Barbara.
As duas raparigas, bonitas e imaculadamente trajadas, sorriram e prosseguiram o seu trabalho.
Puxe uma cadeira para perto, querida.
Lorraine aproximou uma cadeira de vime e sentou-se.
Obrigada por me receber, Mistress Caley. Elizabeth beberricava o seu habitual chá de menta de uma chávena de porcelana colocada em cima de uma pequena mesa lateral.
Minha querida, estou a pagar-lhe, seria uma verdadeira estupidez não a receber se precisasse de me perguntar alguma coisa, não é verdade? Ajeitou-se melhor na cadeira e tomou novo gole de chá. Já tem alguma novidade para me dar?
Não, lamento, mas ainda não.
Barbara acabou de passar a última camada de verniz vermelho nas unhas da mão esquerda de Mrs. Caley e levantou-se
Terminei, Mistress Caley.
Obrigada, Barbara.
Já lhe tiro a máscara, Mistress Caley, é só mais um bocadinho disse Angela, massajando os pés delicados com óleo.
Lorraine preferiu não fazer nenhuma pergunta até a máscara facial ser retirada, a pele limpa com tónico e depois massajada e hidratada. Levou muito tempo. Elizabeth manteve os olhos fechados durante todo o processo.
Angela dirigiu uma série de pequenos sorrisos discretos a Lorraine e depois segredou-lhe:
Adormeceu.
Lorraine devolveu o sorriso com ar compreensivo, quando o que lhe apetecia era levantar-se e sacudir Elizabeth até esta acordar do seu torpor. No entanto, deixou-se ficar sentada como uma idiota, enquanto Angela se movia silenciosamente por perto, guardando os materiais na sua maleta de cosméticos. Assim que terminou, agitou a mão ao de leve em sinal de despedida e saiu, fechando a porta sem ruído.
Elizabeth continuou completamente imóvel, de cabeça inclinada para trás, apoiada num encosto próprio e, ao que parecia, profundamente adormecida. Lorraine observou-a primeiro com irritação, depois sentindo um estranho fascínio: não havia uma única ruga no rosto ou no pescoço da mulher que, apesar de não ter a menor maquilhagem, exibia uma pele perfeita. Tinha as mãos pousadas no regaço e mantinha-se completamente imóvel.
De repente, Lorraine sentiu-se invadir pelo pânico: estaria morta? Levantou-se da cadeira e aproximou-se um pouco mais, suspirando de alívio ao ver que Elizabeth Caley respirava profunda, lenta e ritmicamente. Tinha um rosto perfeito: maçãs de rosto, nariz, queixo, lábios nem pareciam de origem terrena. Lorraine olhou para a mulher adormecida: estaria, de facto, a encher-se com toda aquela quantidade de droga que se imaginava? Não lhe via o menor sinal de picadas de agulha ao longo dos braços níveos, assim como no meio dos dedos dos pés. Foi então que deu por uma pequena nódoa negra, no meio da qual estava uma picada, no lado direito do pescoço, mas era só uma. Se Elizabeth Caley andava a injectar-se, devia estar altamente viciada e, se calhar, fá-lo-ia através da virilha. No entanto, levantar-lhe o robe de turco podia despertá-la, e só Deus sabia as implicações que isso poderia ter. Lorraine viu as horas e saiu da sala, deixando Mrs. Caley adormecida ao som do seu concerto de Beethoven.
Peters mostrou-se hesitante, mas Lorraine tornou bem claro que, como os donos da casa a haviam contratado para lhes encontrar a filha, tinha de ver o quarto de Anna Louise.
Talvez fosse melhor pedir licença a Mister Caley sugeriu ela, impacientemente.
Lamento, mas Mister Caley hoje à noite janta fora.
Bem, então é consigo, Peters. Será que não é capaz de tomar decisões sozinho?
Não se tratava de um quarto vulgar, mas sim de uma ampla suite constituída por um quarto, uma sala de estar e uma casa de banho maior do que o apartamento inteiro de Rosie. Parecia fazer parte de uma montra: irreal, sem sinal de ser habitado, tudo no seu lugar. A mobília era em tonalidades de rosa-claro e branco, e a cama enorme exibia uma longa fila de ursinhos brancos tão imaculados que, via-se bem, só serviam para enfeitar e não para brincar.
Lorraine olhou em volta com lentidão; nenhuma rapariga normal, cheia de sangue nas veias, poderia ocupar aquele quarto sem deixar vestígios de si mesma. Sentou-se na cama e deixou os olhos repararem em cada canto, como que na esperança de o próprio quarto lhe falar dela. Perguntou a si mesma onde esconderia algo, caso o desejasse. Haveria algum esconderijo por ali?
Começou a andar pela suite, enterrando os pés no pêlo alto da espessa alcatifa em tons de madrepérola. Espreitou por baixo da cama e nada viu, procurou atrás dos cortinados, sob as almofadas espalhadas e os ursinhos: nada. Foi até à casa de banho, espreitou dentro do armário avantajado, no interior do reservatório de água do autoclismo: nada. Voltou de novo para junto do amplo roupeiro da entrada e vasculhou as prateleiras: nada, nem mesmo o odor ténue a perfume antigo em nenhuma das peças de roupa. Estas pareciam, tal como tudo o mais, não ter sido usadas. Estava prestes a regressar para junto de Mrs. Caley quando algo lhe atraiu o olhar. Todas as caixas de sapatos tinham o conteúdo escrito em rótulos, por fora
sandálias, socas, sapatos, castanhos, pretos, cremes, etc. excepto uma; apesar de ter um rótulo igual às outras, este encontrava-se em branco.
Lorraine pegou na caixa e reparou que era de um fabricante de modelos de sapatos exclusivos, com o cartão forrado a seda branca. Tirou a tampa e sorriu de si para si. Dentro dela encontrou maços de cartas, cartões de aniversário, recordações e um postal alusivo ao Dia dos Namorados. Até que enfim encontrava algo interessante, algo que podia fornecer-lhe pistas. Abriu o cartão do Dia dos Namorados.
À minha querida e única namorada. Beijos, Polar.
A maioria dos outros cartões e postais de aniversário era das várias tias e tios de Anna Louise, da mãe e do pai; porém, cinco deles, acompanhados de pequenas flores secas, haviam sido oferecidos pelo tal indivíduo chamado Polar. Lorraine vasculhou a caixa e leu as cartas. Havia poemas e alguns convites para festejos no liceu.
Quase esvaziara já a caixa sem encontrar algo de interessante, quando reparou nuns preservativos presos com um elástico. Não havia dúvida de que Anna Louise tinha o complexo da arrumação. A seguir apareceram várias carteiras de fósforos, também presas com elástico. Não eram de restaurantes elegantes, mas sim do Viper Room, On the Rox e Snake Pit tudo clubes nocturnos de nomeada. No entanto, só depois de retirar as revistas pornográficas para fora é que precisou de voltar a sentar-se, pois não eram material barato comprado em qualquer balcão, antes pornografia da pesada.
Folheou-as e encontrou um bilhete dobrado numa das folhas centrais. Nele, escrito em maiúsculas pequenas e finas, lia-se o seguinte:
AMO-TE, QUERO FODER-TE, QUERO QUE ME QUEIRAS, QUERO QUE ME DÊS NO CU, QUERO QUE ME LAMBAS A RATA ATÉ” ME VIR E QUERO O TEU CARALHO NA MINHA BOCA, DÁ-ME COM FORÇA, POR FAVOR, POR FAVOR MAGOA-ME E BEIJA-ME MAIS.
Lorraine enfiou o bilhete no bolso; foi a única coisa que levou do quarto. Antes de colocar a caixa de sapatos de novo no seu lugar, comparou aquela letra com a de Anna Louise num dos seus poemas: era a mesma.
Ao descer, lentamente, as escadas, encontrou Peters à sua espera
- É um quarto muito bonito.
Sim, é. Mistress Caley continua a dormir e penso que é melhor não a acordar.
Amanhã de manhã voltarei cá, digamos, por volta das nove horas.
Mistress Caley só se levanta às dez e meia. Lorraine hesitou.
Estarei cá às onze. Bom dia.
Lorraine, ao chegar ao carro, ligou para Nick.
Viva, como vai isso?
Apetece-lhe ir a um clube nocturno?
O quê?
Conhece o Viper Room? Nick riu-se.
Está um bocado velha de mais para lá entrar e, se quer que seja sincero, não é suficientemente famosa. Não passará da porta.
Quer apostar? Vá buscar-me a casa da Rosie às onze e meia.
Nick hesitou.
Caramba, Lorraine, não sei dançar, tenho só perna e meia. O que se passa? Descobriu mais alguma miúda que anda a fornicar com o Robert Caley?
Não, acabei de conhecer um pouco melhor a nossa Anna Louise doce e angelical, um tipo qualquer chamado Polar andava a dar-lhe no traseiro. Até logo. E, Nick, tome um banho, e faça também a barba, está bem?
Lorraine desligou o telemóvel, deveras satisfeita. Calculava ter acabado de descobrir algo que nunca ninguém imaginara sequer. Quando voltou para o apartamento, ia cheia de determinação e energia, tencionando ainda ir a uma reunião dos Aa antes de se encontrar com Nick no Viper Room. Não tencionava voltar a ver Juda Salina, mas, ao passar em Doheny Drive, reparou nas horas e parou o carro, dentro do qual ficou sentada a reflectir por instantes. Não era capaz de perceber por que razão sentia tanta vontade de investigar Juda Salina, o certo é que era assim talvez por Anna Louise a ter visitado, ou o instinto lhe dizer que a mulher sabia muito mais sobre a rapariga desaparecida do que admitira. Se ela tinha a tal ligação mística com Anna Louise que afirmava, talvez pudesse vislumbrar quem era o indivíduo que se fazia passar por Polar... E como estava mesmo à porta dela, porque não?
Lorraine carregou no botão do intercomunicador da entrada principal dos apartamentos. Daquela vez, não tencionava pôr-se com jogadas para tentar entrar sem autorização.
Uma voz entediada perguntou quem era.
Chamo-me Lorraine Page e quero falar com Mistress Salina.
Neste momento está a dormir.
Então acorde-a, é importante.
Como disse que se chamava?
A porta principal que dava para os apartamentos abriu-se e Lorraine entrou, seguindo imediatamente pelo corredor, em direcção à casa de Juda Salina.
Juda desferiu uma violenta bofetada na cara de Raoul, que se refugiou de encontro à parede.
Não sabia quem ela era, pensei que fosse uma dessas malucas que costuma receber por aqui e dizem que é importante. Pareceu-me uma cliente.
Juda voltou a dar-lhe encontrões violentos.
Já te disse para consultares a minha agenda de marcações. Não deixas ninguém aqui entrar sem eu te dar ordem para isso. Agora abriste a porta lá de baixo a essa cabra, mas não a receberei.
Eu disse que estava a dormir e ela mandou-me acordá-la.
Óptimo, agora dizes-lhe que estou doente e não saio da cama nem por ela nem por ninguém, percebeste?
A campainha da porta soou e Juda foi a balançar até ao seu quarto, atirando com a porta. Raoul abriu uma nesga da porta, sem tirar a corrente.
Viva, sou a Lorraine Page.
Ela não pode recebê-la, está doente.
Quem é o senhor?
Raoul. Sou o... motorista.
Muito bem, Raoul, vá dizer a Mistress Salina que, ou me dá dez minutos ou vou ter com o tipo que supervisiona estes apartamentos, para lhe dizer que ela anda a fazer negócio dentro deste bloco. Agora vá e veja se ela percebe que não tenciono sair da frente desta porta.
Banido para a cozinha e com a porta firmemente fechada, Raoul pôs a chaleira ao lume. Já começara a arrepender-se de ter vindo para LA, mas não podia voltar para casa, pelo menos por uns tempos, e não tinha mais nenhum lugar para onde ir. Viver com a tia era horrível, só quando se metia na cozinha minúscula é que conseguia escapar ao corpanzil dela; além disso, ali vivia-se em permanente escuridão, era um lugar claustrofóbico e Raoul não gostava do escuro nem do que acontecia no meio dele.
Juda acendeu um pauzinho de incenso e agitou-o durante uns segundos. Lorraine sentara-se na mesma cadeira da vez anterior.
Não é minha intenção pressioná-la, mas preciso que me responda a umas perguntas.
Estou doente, com uma enxaqueca.
Tinha uns óculos escuros enormes postos e apresentava-se, mais uma vez, com um modelo tipo tenda em torno do corpo maciço e um turbante verde na cabeça. As longas garras vermelhas espalharam o fumo pelo aposento, fazendo chorar os olhos de Lorraine.
Não me disse que a Anna Louise Caley veio vê-la.
Não me lembro de a ter ouvido fazer-me essa pergunta.
Ela veio falar consigo na véspera de ter ido para Nova Orleães?
Juda suspirou.
Consultarei a minha agenda, mas, como já lhe disse, sou obrigada a respeitar o princípio da confidencialidade com os meus clientes. Levantou-se e foi a balançar até à porta, abrindo-a. O apartamento era tão pequeno que não precisava de gritar; no entanto não se absteve de o fazer. Raoul, traz-me o meu livro de marcações.
Raoul apareceu à porta e entregou um livro de capa vermelha à tia.
Vai preparar o carro, Raoul, daqui a um quarto de hora preciso de estar num sítio. Estaciona em frente. Agora vai, mexe-me esse rabo.
Fechou a porta e folheou o livro.
Mistress Salina, eu não quero ver o seu livro de marcações, só pretendo que me diga se a Anna Louise...
Juda aproximou rudemente o livro da cara de Lorraine.
Está a ver, Mistress Page, a senhora ameaça-me e diz que vai dar parte de mim. Agora tem aqui, preto no branco, todas as semanas até quinze de Fevereiro e, como pode ver, não há nenhuma Anna Louise marcada, não é?
Lorraine levantou-se, folheou o livro e viu que nessa tarde, de facto, Juda recebera uma cliente chamada Eunice Bourdreaux. Fechou o livro.
Obrigada. Por que motivo Mistress Caley trouxe a Anna Louise consigo? Também andava a ler-lhe as cartas?
De vez em quando ela precisava de ajuda, nem sempre se sentia muito bem.
Sei por que razão ela não se sentia bem: estava passada da cabeça com droga; portanto, a Anna Louise costumava... quê? Ajudá-la a percorrer o corredor?
Juda encolheu os ombros. Tal como o sobrinho, dava a impressão de gostar de falar com o sotaque arrastado do Sul, umas vezes acentuando-o, outras não. Naquele momento alongava as vogais.
Não sei de droga nenhuma, não compreendo o que está a tentar dizer ou porque se interessa tanto. A menina veio, ficou sentada à espera de que acabássemos e, no fim da sessão com a mãe, saíram.
Conversou com a Anna Louise, quero dizer, leu-lhe a palma da mão ou as cartas do tarot, por exemplo?
Talvez. Não me lembro... A minha cliente era a Elizabeth Caley.
Lorraine reprimiu a sua impaciência. De facto não suportava aquela mulher, mais a sua voz cantarolada e os gigantescos óculos escuros. Cruzou as pernas, com um pé a balouçar-lhe de irritação.
A senhora lê cartas de tarot, lê mãos, sente as auras das pessoas e, a julgar por todas essas credenciais pregadas na parede, também se auto-intitula médium... e diz que não se lembra? Vejamos, eu, pessoalmente, não acredito em nada disto, mas essa é apenas a minha opinião.
Tem direito à sua opinião, querida.
- Também sei que distribuiu um panfleto onde declarava ter participado em inquéritos policiais, mas a Polícia disse-me que nunca os ajudou a resolver nenhum caso. Conseguiu foi muita publicidade com isso, e a julgar pelo livro de marcações encarnado, eu diria mesmo que bastante mais. Agora não está exactamente com excesso de clientela, pois não?
Juda sorriu, de mãos apoiadas no ventre.
No momento não ando a ter muito trabalho; na verdade até é possível que me reforme.
A não ser que nem sempre tome nota dos seus clientes. Portanto, deixe-me que lhe pergunte mais uma vez: a Anna Louise Caley veio alguma vez consultá-la sozinha?
Juda continuou a sorrir e depois encolheu os ombros gordos.
Não, não veio. Tal como já disse, acompanhou apenas a mãe algumas vezes.
Quem é o jovem que me deixou entrar?
Raoul? É meu sobrinho, estou a tomar conta dele, Miss Page, nada mais. Não é nada de ilegal, pois não?
Lorraine inclinou-se para a frente.
A Anna Louise fez-lhe perguntas sobre o quê? Tinha alguma preocupação, medo de alguma coisa?
Juda sorriu, mas não respondeu. Lorraine estava a ficar furiosa com a sua incapacidade para fazer a mulher falar. Tentou uma táctica diferente, tornou-se quase implorante.
Ando a tentar encontrá-la, Mistress Salina... Se algo do que ela lhe disse puder ajudar a esclarecer algum problema que tivesse, até mesmo uma relação...
Juda virou-lhe as costas.
Ela tinha namorado? Mistress Salina, não me venha com mais tretas como essa da confidencialidade que deve aos seus clientes, et cetera. Por favor, a Anna Louise está desaparecida há onze meses.
Já me interrogaram vezes sem conta. Por isso, diga-me: se houvesse algo, acha que já não teria contado à Polícia e aos outros detectives particulares? Mas não há nada, e aquilo de que tratei para Mistress Caley nada tem a ver com o assunto.
Muito bem. De que foi que tratou para Mistress Caley? Se faz favor.
Juda humedeceu os lábios.
Não foi nada de bom: vi que precisava de ir para uma clínica de recuperação, que teria problemas conjugais, que talvez tivesse um ressurgimento na sua carreira, muita publicidade, mas nada de bom relativamente a...
Lorraine sentiu vontade de lhe arrancar os óculos escuros da cara gorda, mas optou por não concretizar o seu desejo.
Sabe, as pessoas como a senhora provocam-me nojo.
Penso que já mo disse na outra vez em que aqui esteve, querida, mas, para ser sincera, a sua pessoa também não me agrada muito. Pensa que pode entrar de qualquer maneira em minha casa e fazer ameaças só porque estão a pagar-lhe muito dinheiro para isso. Não está a oferecer-me nenhum dele, mas, mesmo que o fizesse, atirava-lho à sua cara presunçosa. Sugiro que comece a ter lições de boa educação, porque não passa de uma cabra ordinária. Como já lhe disse, nada tenho a declarar ou a acrescentar a tudo o que relatei à Polícia e a si, quando me invadiu o domicílio na outra vez.
Lorraine foi até à porta da rua e abriu-a.
Ainda vê a enorme aura brilhante em torno da Anna Louise Caley? Continua a dizer àquela pobre mãe para não perder a esperança? Pois olhe, eu posso ser metediça, posso estar a ser paga pelo meu trabalho, mas de certeza que não ando a encher de ilusões a cabeça de duas pessoas desesperadas que, provavelmente, passariam bem melhor com a ajuda de um bom psiquiatra. Obrigada por nada.
Lorraine não esperou que Juda a mandasse sair, atirou-lhe com a porta na cara para que aquela baleia de mulher soubesse que o fizera.
Juda continuou sentada no seu lugar, com as mãos agarradas aos braços. Sentia fortemente a presença de Lorraine Page; por um lado, saltava à vista que a cabra fora da Polícia. Por outro, algo nela lhe fazia confusão. Para começar, tinha a certeza de que sentira algo de mau, muito mau mesmo: seria por ser diferente de todas as outras videntes? Afinal de contas, ela estava a ir muito mais fundo na questão. Ou seria porque sabia que alguém com o nome começado por L iria ter grandes problemas, qual relógio cujo tiquetaque estivesse prestes a parar para sempre? |
Juda tivera aquela sensação mal conhecera Lorraine, apercebera-se de que algo no interior daquela mulher estaria prestes a escapar ao seu controlo. Não sabia definir o que era, mas sabia que teria de mergulhar mais fundo e receava que as consequências disso a sugassem a ela própria para o meio da escuridão.
Lorraine saiu para a rua, que tremeluzia sob a força do sol ofuscante. Ao dirigir-se para o Buick alugado que deixara num espaço com parquímetro, uma limusina saiu do parque de estacionamento. Os vidros obscurecidos não lhe permitiam que visse o motorista; no entanto, reconheceu o veículo. Quando vira Phyllis apear-se dele no princípio daquela manhã, presumira que se tratava do carro de Elizabeth Caley. Naquele momento, quando o motorista baixou o vidro, percebeu que se enganara. Raoul, por detrás dos seus óculos espelhados, olhava para ela e sorria-lhe.
Esta manhã esteve em Rodeo Drive com a Phyllis Collins.
O rapaz não se deu por achado.
A assistente de Mistress Caley acrescentou Lorraine, caminhando na direcção dele. Raoul sorriu ainda mais.
Talvez tenha estado, mas para lhe dizer a verdade, minha senhora, sou novo na cidade, portanto nunca sei onde estou ou quem está no banco de trás.
Lorraine acercou-se um pouco mais, de maneira a ver o seu próprio rosto na superfície espelhada dos óculos de Raoul.
Há quanto tempo está com a sua tia?
Oh, há uns tempos, algumas semanas, talvez.
Veio de Nova Orleães?
Sim, minha senhora, andava sem trabalho lá na terra.
Conheceu a Anna Louise Caley? Raoul desligou o motor e tirou os óculos.
Quem?
A Anna Louise Caley, sabe perfeitamente de quem estou a falar.
O rapaz começou a chupar a mascote, em forma de macaquinho, que usava pendurada na ponta do seu porta-chaves. Se eu sei... Bem, li sobre o que aconteceu, mas não cheguei a conhecê-la. Vi as fotos dela, a minha tia mostrou-mas, e reparei que era muito bonita. Nunca a encontrou lá por Nova Orleães?
Não, minha senhora.
Lorraine retrocedeu, certa de que o rapaz mentia.
Obrigada por me ter deixado entrar no apartamento
Não tem de quê, tenha um bom dia. Quando ela ia a afastar-se, ele gritou-lhe: Ei! Miss! Ei!
Lorraine voltou a aproximar-se; Raoul inclinara-se para fora da janela do carro, apoiando os braços, ainda a chupar o boneco.
Não devia ser tão má para a minha tia.
O quê?
Ela não é o tipo de pessoa com quem deva dar-se mal. Confie em mim, seja simpática com ela.
Porquê?
Porque talvez ela esteja a ver coisas más para si, ela tem o poder de... Bateu no meio da testa. Se lhe levantar problemas, fará com que lhe aconteçam coisas más. Tem esse poder, percebe o que eu quero dizer? E agora adeus, minha senhora, e já agora deixe-me dizer-lhe que tem umas belas pernas.
Voltou a acomodar-se no seu lugar, e aos ouvidos de Lorraine chegou música em altos berros, uma espécie de reggae exuberante, antes de a janela se fechar lentamente. Sentiu-se incomodada porque, embora o dia estivesse quente e ainda a meio, de repente invadira-a um frio gélido.
Abriu a porta do Buick e entrou. Dali conseguia ver o carro estacionado, mais adiante; saltava à vista que Mrs. Juda Salina não tinha tanta estreiteza de meios como dava a entender. Ligou o motor e colocou o cinto de segurança. Ficou assim cerca de cinco minutos, por isso deu literalmente um pulo quando o telemóvel tocou.
Olá, sou apenas eu, a saber como as coisas vão.
Era Rosie. Lorraine não desviou os olhos da limusina de Juda, mais acima.
Aqui o Rooney quer dar-te uma palavrinha disse Rosie, soando ligeiramente alterada e petulante. Rooney apareceu na linha.
Temos de ir para Nova Orleães o mais depressa possível. Não quero falar com os contactos que tenho lá pelo telefone, nada como fazê-lo cara a cara. E tu... descobriste alguma coisa?
Quero que me arranjes tudo o que seja possível saber sobre a cabra da Juda Salina, a chamada vidente.
-Acho que já temos tudo o que foi possível encontrar. Ela é uma fraude, não é?
Lorraine viu Juda sair do bloco de apartamentos e meter-se no carro que a aguardava.
Tem um sobrinho lá em casa, chama-se Raoul, é de Nova Orleães e é assim uma espécie de hotário; quando jovem, à la Robert de Niro. Investiga-o, começa pelo apelido, que é o mesmo. Se não achares nada, tenta a matrícula; a gorda não sabe guiar e o carro tem matrícula da Luisiana.
Rooney tomou nota do registo.
Está bem, mas sabes que temos de ir para lá o mais depressa possível. O tempo passa a correr e só temos duas semanas... menos três dias, já.
Sim, sim, eu sei. Pergunta à Rosie se hoje à noite tenciona ir à reunião e se a Phyllis também lá costuma aparecer... Merda, espera aí.
Lorraine viu Raoul arrancar, buzinando à medida que se metia na corrente de trânsito. Conseguiu enfiar-se, escapando por um triz a um carro que quase embateu nela e se pôs a apitar. Agitou a mão num pedido de desculpas, com o telemóvel preso debaixo do queixo.
Ei, sou eu gritou Rosie.
Hoje à noite vais à reunião? perguntou Lorraine, seguindo pela Doheny acima, uns quatro carros atrás do de Raoul.
Vou, também queres ir?
Só se a Phyllis lá estiver.
Estará... Aparece quase sempre.
Está bem, então até logo. Rosie pousou o auscultador.
Ela tem uma embirração qualquer com a tal Juda Salina. Não sei porquê, mas cá por mim é uma perda de tempo. É que eu estive lá, conheci a mulher, e o Nick investigou-a.
Também achas que é uma aldrabona? perguntou Rooney.
Bem, tenho de ser sincera: não te saberia dizer. Pareceu-me um bocado estranha, transmitiu-me uma sensação esquisita, era como se visse através de mim. Tem uns olhos fora do comum, escuros e profundos, ou talvez fosse apenas das pestanas postiças. Soltou uma risada.
Já perdi dois quilos observou Rooney. Rosie bateu palmas.
Que maravilha! Eu também já perdi algum peso, mas enfim, não tanto como gostaria. Não me achas mais magra?
Rooney mirou-a prolongada e apreciativamente.
Há só uma coisa, Rosie: quando formos para Nova Orleães, não poderemos esquecer a dieta? É que eles têm a melhor comida do mundo, e não quero ir para lá comer peixe cru. Posso ganhar mais alguns quilitos, mas...
Rosie ergueu a mão.
Está combinado! Agora fazemos dieta, mas quando chegarmos a Nova Orleães paramos.
Trocaram um aperto de mão e Rooney sentiu-se, repentinamente, embaraçado. Nunca tivera uma conversa assim tão íntima com uma mulher, nem mesmo com a pobre da esposa, que parecia um pau de virar tripas quando tinham casado e continuou a sê-lo até ao dia da sua morte.
Posso dizer-te uma coisa? perguntou Rooney, hesitante, vendo que Rosie olhava para ele.
Claro. Que foi?
Não contes à Lorraine disse-lhe, como se fosse uma criança.
Rosie ficou à espera, enquanto Rooney coçava a cabeça e esfregava o nariz volumoso.
Talvez seja da idade.
O quê?
Rooney tossiu, ajeitando o nó da gravata.
Bem, não interpretes mal, quero dizer, não estou a fugir a nada, nem pensar, mas... Suspirou, sem saber muito bem o que dizer e como dizer. Não consigo ter a energia de antigamente, sabes prosseguiu, aquela adrenalina que nos enche quando tratamos de um caso. Eu costumava senti-la até na sola dos pés; não descansava enquanto não chegava ao fundo da questão. Não dormia, às vezes nem sequer comia, e sei que viver comigo era um inferno. Devo ter feito a pobre Ellen passar por isso. Não paro de pensar nela, no marido péssimo que certamente fui. Ela nunca teve grande vida.
Parecia tão vulnerável, naquela sua tentativa de exprimir algo de que não conseguia falar, que Rosie chegou-se a ele e abraçou-o, gesto que o embaraçou ainda mais.
Quando me lembro que ela queria que fôssemos dar uma volta pelo país acampando aqui e ali, sinto tantos remorsos, Rosie, que...
Rosie ficou calada e manteve o abraço, afagando-lhe as costas. Rooney apoiou a cabeça contra ela.
Desculpa tudo isto, deves pensar que sou um velho idiota, mas olha que ela era uma boa mulher, Rosie, nunca fez mal a uma mosca.
É sempre bom desabafar, Bill, uma pessoa fica logo melhor, e depois não quero que te preocupes com a tal adrenalina... Acho que és uma pessoa muito especial. Quase toda a gente oculta os seus verdadeiros sentimentos... Eu, por exemplo, costumava esconder os meus numa garrafa, mas estou a ficar melhor, muito melhor.
Gerou-se um momento de embaraço em que Rosie se afastou e Bill se assoou com força.
A Lorraine deve estar mesmo a chegar disse Rosie, para disfarçar a própria atrapalhação.
Gostaria que não lhe contasses nada disto, não quero que pense que não estou a dedicar-me a cem por cento.
Nada aconteceu aqui, meu velho rezingão tranquilizou-o Rosie com um sorriso enternecido, apesar de ambos saberem que algo sucedera. Talvez tivessem receio de o admitir imediatamente, mas o certo é que a partir dali haveria um delicioso elo entre os dois.
Lorraine perseguiu o lunático Raoul o mais longe que pôde, mas a certa altura este saiu da faixa de rodagem e ela perdeu-lhe o rasto. Talvez o rapaz se tivesse apercebido de que o seguia, mas a julgar pelo modo como guiava, o mais provável era apanhar uma multa por excesso de velocidade e Lorraine comer por tabela.
Tinham estacionado no outro lado da rua onde se realizavam as reuniões dos Aa. Eram quase oito da noite. Lorraine olhou pelo espelho retrovisor.
Lá vem ela. Muito bem, vou sair, tu esperas no carro.
Mas eu quero ir à reunião...
Óptimo, podes dar-me só uns minutos a sós com a Phyllis?
Lorraine atravessou a rua em direcção a Phyllis, sorriu e apertou-lhe a mão. A seguir foram-se sentar num banco que havia em frente do átrio da igreja.
Phyllis juntou as mãos.
Realmente não vejo o que isso tenha a ver consigo, eu ia simplesmente a passar ao pé do automóvel, Mistress Salina chamou-me, eu aproximei-me e...
Ela ainda anda a encontrar-se com Mistress Caley?
Hum, não... Bem, Mister Caley não quer que ela lá vá a casa, portanto, não, não anda a encontrar-se com ela.
O Robert Caley tem conhecimento de que a Elizabeth se injecta com temazepam... É o que ela mete nas veias, não é?
Phyllis voltara a ter duas manchas avermelhadas nas faces.
A senhora não compreende.
Estou a tentar, Phyllis, estou realmente a tentar. Faz ideia do perigo que isso representa? Sabe que ela pode induzir uma trombose e matar-se?
Phyllis parecia prestes a rebentar em lágrimas.
Aquele material mata, Phyllis prosseguiu Lorraine, e
se ela acabar por morrer, a senhora será parcialmente responsável. É quem lho arranja, já o admitiu, vai buscá-lo... Portanto, porque não pára de me mentir? O Robert Caley sabe o que a mulher anda a tomar?
Phyllis sacudiu a cabeça em sinal negativo.
Não, não faz ideia. Sabe, na última vez em que ela esteve numa clínica de recuperação, deixou de tomar cocaína, acabou mesmo com as bebidas alcoólicas, mas todo este horror em torno da Anna Louise... Não conseguia dormir, tornou-se muito ansiosa e...
O médico receitou-lhe temazepam, não é verdade? Phyllis assentiu.
Começou por ser uma quantidade pequena, mas depois ela precisou de mais, e... Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e procurou um minúsculo lenço de renda dentro da manga. Oh, Deus me valha, pois não consigo fazer com que acabe com aquilo. Além disso, ameaçou despedir-me se falasse do assunto a Mister Caley, e também o fará se não lhe for buscar o material... Fico numa situação terrível.
Bem, não poderá arranjar-lhe mais, o doutor Hayleden acaba de ser preso.
Santo Deus! exclamou Phyllis, premindo o lencinho contra os olhos chorosos.
Pois é, santo Deus, no entanto devia agradecer-Lhe, Phyllis, porque sem aquela porcaria ela não poderá dar cabo da vida, não é?
Phyllis fechou os olhos e fungou, com uma expressão pesarosa no rosto.
Ora, ela encontrará outra pessoa ou outro sítio. Não sei se conseguirei aguentar isto por muito mais tempo. Foi por isso que voltei a beber, sabe, ela esgota-me. Nunca dorme, não consegue fazê-lo sem ajuda, e agora tem uma desculpa. Só pensa na Anna Louise.
A filha levou-a a ver Juda.
Sim, creio que sim, mas eu não fui com elas; jamais mo permitiria.
Mas, depois, o casal Caley levou Mistress Salina até Nova Orleães, não foi? Para que tentasse descobrir o paradeiro da Anna Louise?
Phyllis anuiu, mordendo o fino lábio inferior.
Sim, a Elizabeth fez questão. Compreende, Mistress Salina tinha a certeza de que, se se encontrasse perto de um local onde a menina estivesse, como no hotel ou noutro sítio qualquer, detectaria a sua aura.
E?
Phyllis encolheu os ombros.
Bem, ela teve a certeza de que a pobre menina estava viva e penso que ainda ficou mais alguns dias por lá depois de a Elizabeth voltar, pois Mister Caley mandou o seu avião particular buscá-la, trazendo-a de novo para LA.
Lorraine acenou com a cabeça.
Porque é que ele a proibiu de voltar a ver a Elizabeth? Phyllis suspirou.
Mister Caley desconfiou que a mulher fosse uma charlatã e andasse a dar falsas esperanças a Elizabeth. Nunca concordara com ela. Até ficou muito zangado quando descobriu que a Elizabeth levara a Anna Louise ao apartamento de Mistress Salina.
Foi nessa altura que proibiu a entrada da vidente lá em casa?
Não, isso aconteceu depois de voltarem de Nova Orleães.
Mas ela era uma influência tranquilizadora!
Sem dúvida, mas não depois do desaparecimento A Elizabeth ficou fora de si e passava a vida a telefonar a Mistress Salina, completamente histérica. Esta deu-lhe esperança e, está a ver... Mister Caley teve a melhor das intenções.
Lorraine assentiu com um sinal de cabeça e consultou as horas.
Porque é que a Anna Louise foi até casa de Mistress Salina?
Não creio que andasse metida em nenhuma daquelas aldrabices, acontece apenas que às vezes Mistress Caley não se sentia muito bem. Penso que depois disso o pai terá conversado com ela, que lhe prometeu nunca mais lá voltar...
E voltou?
Não, não, ela não iria contra a vontade do pai. Era uma menina muito obediente. Na altura, a amiga Tilda Brown estava lá em casa, portanto tinha mais em que pensar. A rapariga costumava vir cá ficar muitas vezes... bem, como a família vivia tão longe, de facto era quase todos os fins-de-semana. Na verdade, a Anna Louise andava ansiosa por ir para Nova Orleães porque...
Phyllis hesitou subitamente, afastando-se um pouco de Lorraine. Era como se tivesse pensado em algo e estivesse a reflectir se o deveria dizer ou não. Disfarçou, enfiando o lencinho de novo na manga.
Porque? insistiu Lorraine.
Bem, nada de importante, acontece apenas que as meninas tiveram uma pequena briga, nada de sério, e a Tilda foi para casa na manhã seguinte. Estava combinado ficar mais um dia e depois viajar na companhia de Mister e Mistress Caley, mas já sabe como é a gente nova, se calhar discutiram por causa de alguma partida de ténis.
Deve ter sido uma discussão importante, dada uma partida tão abrupta, sobretudo porque seguiriam todos juntos no dia seguinte.
Suponho que sim, mas sabe como são as raparigas.
Conhece a Saffron Dulay? Penso que é grande amiga de Mister Caley.
Phyllis olhou para o relógio e levantou-se, alisando a saia.
Não, não tive o prazer. Deseja perguntar-me mais alguma coisa? Tenho de ir.
Não, penso que não. Muito obrigada pelo tempo que me dispensou.
Phyllis fez-lhe uma festa no cabelo.
Lamento que me ache pouco sincera, mas compreenda, Mistress Page, em parte tenho de ter muito cuidado. Assinei um acordo de confidencialidade com Mistress Caley, todo o seu pessoal o fez...
Eu compreendo, Phyllis.
Tenho um medo terrível de perder o emprego. Sustento a minha mãe idosa e uma tia, que estão em Inglaterra. Dependem do meu salário, e os Caley têm sido muito condescendentes em relação ao meu pequeno problema.
Sim, nem esperaria outra atitude de uma pessoa que também tem um, e bem grave.
Phyllis soltou uma risadinha aguda e despropositada. Apertou a mão a Lorraine, que teve a sensação de apertar, e depois largar, uma pequena e frágil pata com garras.
A Juda Salina recebeu muito dinheiro pelos seus serviços?
Dinheiro, Mistress Page, é algo com que Mistress Caley não se preocupa minimamente.
Só mais uma pergunta, Phyllis. O desaparecimento da Anna Louise verificou-se muito perto da altura em que Mister Caley proibiu a mulher de ver Mistress Salina?
Òh, foi umas semanas antes. Foi então que, depois de a Anna Louise desaparecer, Mister Caley concordou em deixar Mistress Salina visitar a esposa. No entanto, suspendeu as visitas três ou quatro meses depois. Agora, se me dá licença, tenho mesmo de ir. Entrou apressadamente no átrio da igreja.
Lorraine franziu o sobrolho, perguntando a si mesma porque teria Elizabeth Caley uma mulher tão amaneirada a cuidar de si.
Rosie atirou com a porta do carro e gritou:
Lorraine, tenho de entrar! Lorraine
Lorraine ainda tinha uma expressão preocupada quando voltou para junto de Rosie.
Sabes, tenho a impressão de que a Phyllis nem sequer gosta de Mistress Caley.
-Vais à reunião.
Lorraine sacudiu a cabeça.
Não, vai tu andando. Rosie suspirou, irritada.
Talvez te fizesse bem ir.
Lorraine deu imediatamente meia volta.
Temos duas semanas, Rosie.
Eu sei, mas depois como é que vou para casa? Lorraine suspirou.
Pede à Phyllis que te dê uma boleia.
Rosie amuou. Às vezes detestava a maneira como Lorraine a tratava. Estava prestes a dizê-lo de viva voz quando a amiga se chegou a ela e lhe deu um abraço.
Desculpa, não era minha intenção pressionar-te... mas o que realmente está a pressionar-nos é o tempo, Rosie, e eu tenho a impressão de ter descoberto alguma coisa.
Rosie deu uma palmadinha no ombro da amiga.
Não te preocupes, chegarei a casa. Sabes que o Nick te protegerá, não sabes?
O quê?
Rosie piscou-lhe o olho.
Nunca te disse nada, mas parece-me que o tipo anda caidinho por ti, portanto trata-o bem.
Lorraine riu. Por vezes, Rosie era mesmo tolinha.
Não, Rosie, o que o Nick quer é uma fatia do milhão, por ela é que anda caidinho, e nunca se sabe se’não estaremos a chegar cada vez mais perto dele. Até logo.
Eram onze e meia da noite, a terceira da investigação, e Lorraine não se sentia tão confiante como levara Rosie a acreditar. Olhou-se com olhar crítico; levava um vestido preto curto, em segunda mão, evidentemente, mas a etiqueta de Donna Karan mostrava que fora caro. Também comprara à filha dos vizinhos de origem hispânica, que viviam no andar por baixo, um par de sapatos vermelhos de salto muito alto. As meias pretas eram suas. Lavou o cabelo, ainda um pouco insegura em relação ao seu novo corte, e estava a reflectir se devia ou não maquilhar-se um pouco mais quando bateram à porta.
Rosie, que conseguira boleia para casa depois da sua reunião, estava sentada em frente da televisão com uma taça de uvas na frente.
Entre, está aberta.
Viva, ela já está pronta? perguntou Nick em voz alta.
Rosie disse que sim com a cabeça, desligando a televisão com o controlo remoto.
Que tal é esse Viper Club?
Nick entrou, com o seu passo ocioso.
Esse Viper Room não é propriamente um clube, Rosie. Quer dizer que ela tenciona mesmo lá ir, não é?
Rosie encolheu os ombros. Lorraine entrou nesse momento, e Nick tentou não reagir demasiado, mas de facto achava-a completamente diferente.
Caramba, vai fazer parar o trânsito. Lorraine olhou para ele.
Gostaria de dizer o mesmo de si, mas veio directamente da cama para aqui, não?
Pode crer. Então sempre vamos nessa?
Acha que me vesti assim por diversão?
Estou de cabeça perdida, acho que são os sapatos. Em cima deles deve chegar ao metro e oitenta e três.
Lorraine colocou uns óculos escuros e disse adeus a Rosie.
Até logo. Vamos, Nick. Olhou melhor para o blusão de ganga do colega. Diabos me levem, está cheio de pêlos de cão.
Bem, não admira, tenho um. Boa noite, Rosie.
Nick olhou de relance para o bilhete encontrado no quarto de Anna Louise Caley. Em seguida devolveu-o a Lorraine, sem proferir palavra. Ainda se sentia deslumbrado pela sua aparência e, quando Lorraine se chegou mais a ele, teve uma erecção. O facto de ela o fazer reagir tão fisicamente perturbava-o.
Quero descobrir quem é esse tal tipo chamado Polar. Como ela tinha carteiras de fósforos do Viper Room, começaremos por aí. Também lá vi da On the Rox e...
Olhe, não é preciso explicar, faremos o que for preciso, está bem?
Nick parecia irritado sem que ela percebesse minimamente que era por achá-la tão atraente. Viraram na Sunset e passaram em frente da parada ruidosa de motoqueiros yuppies conhecidos por «Anjos do Inferno», com as suas reluzentes motas cromadas; seguiu-se a zona iluminada a néon com as prostitutas e os chulos, depois foram os bares e cafés de porta aberta para a rua, até pararem numa zona de estacionamento vazia, junto de uma espelunca chamada Alfredo’s Live Striptease.
É aqui? perguntou Lorraine.
Não, mas preciso de ir falar com um amigo. Aguente aí, são dois segundos.
Nick saltou do jipe e entrou na casa de strip. Lorraine ficou à espera, com o bafo de Tiger a passar-lhe rente ao rosto.
Senta-te aí atrás um bocado, que pivete!
O cão pareceu ficar medianamente vexado e acomodou-se sobre os quartos traseiros; a certa altura, ergueu os cantos da boca e soltou uma rosnadela.
Ei, senta-te nos meus joelhos se isso te faz feliz, só não quero que me mordas. Lorraine ouviu o bater da cauda contra a tigela da comida. Em vez da rosnadela viu que o animal arreganhava as beiças e mostrava os dentes como se sorrisse, o que fez Lorraine rir. Lindo menino. Era capaz de vir a gostar de ti, sabias?
Estava verdadeiramente convencida disso quando dois motoqueiros, a cair de bêbedos, se encostaram ao jipe e um deles espreitou, perguntando a seguir:
Quanto levas?
Tiger atirou-se ao vidro, fazendo pontaria para a jugular do homem, o que o fez recuar, assustado até à medula. Lorraine afagou-lhe a cabeçorra.
Lindo menino.
Já a conquistou, hein? perguntou Nick abrindo a porta do lado do motorista. Ligou o motor. Muito bem, arranjei bilhetes, portanto talvez consigamos entrar... Mas se não se importa que lho diga, é um bocado velha de mais para aquele sítio, poucas miúdas lá estarão com mais de vinte anos. Os homens podem entrar com qualquer idade, desde que sejam famosos e levem as carteiras recheadas. Ainda assim, vamos tentar.
Meteram-se no meio do trânsito nocturno e Lorraine perguntou a Nick se conhecia alguém ligado às estrelas de cinema. O detective riu-se e sacudiu a cabeça.
Não, não conheço. Veja-me aí no bolso, tenho algo bem melhor.
Lorraine enfiou a mão no bolso do blusão de ganga dele e tirou um saco de plástico.
Nick, em que jogada é que está a pensar?
Cocaína... Bem, sempre tem alguma... Uma pessoa só interessa se tem algo que a torne interessante, não é verdade?
Não me diga que arranjou isso, sem mais nem menos.
Não foi bem assim. Lembra-se de eu lhe falar de um tipo chamado Fisher?
Sim, mas...
O Tony T. Loredo foi o responsável pela desgraça dele. Prendi-o em oitenta e cinco, mas fiz-lhe um favor. Depois disso, venceu na vida e fornece carne fresca, miúdas, droga, tudo o que puder imaginar, às estrelas de cinema. Vou recorrer a ele para entrar na cena. Concorda?
Estacionaram perto da entrada escura e indiferenciada do Viper Room; os únicos indícios de que se tratava de um clube nocturno eram os seguranças de grande arcaboiço à entrada e as limusinas que paravam e arrancavam com clientes.
Nick inclinou-se pela janela do jipe e chamou um dos seguranças.
É pá, chega-me aqui um instante, tá? Voltou-se de novo para Lorraine. Baixe a cabeça, ponha um ar pedrado, tape a cara com o cabelo. Já! O segurança chegou-se mais perto. Não te aproximes muito, tenho um cão raivoso no banco de trás e uma bem pior aqui ao lado... Também trago mercadoria que o Tony me pediu que entregasse.
O segurança olhou para Lorraine, depois para Nick, que lhe mostrou rapidamente o saco. Recuou e acenou com a cabeça, fazendo sinal a Nick para que estacionasse mais ao cimo da rua.
Certo, cá vamos nós...
Lorraine arrepiou-se. A sala principal do clube estava de tal maneira às escuras que ela mal conseguia ver, e a música tão alto que ensurdecia. Esforçou-se o máximo que pôde para ver no meio da escuridão. Distinguiu uma rapariga nova vestida de soutien, cuequinhas e meias de rede pretas.
Acha que ela tinha algum vestido quando chegou? perguntou a Nick que, no entanto, olhava em volta. A certa altura voltou-se para ela e segredou-lhe:
Olhe ali para aquele grupo de supermodelos à direita disse Nick, apontando para cima. É uma sala com um espelho de duas faces sobre a pista de dança. Há quem adore fornicar lá, em cima destes nabos todos. Enfim, há gente para tudo...
Pois é, e se calhar a Anna Louise fazia parte desse grupo. Como é que vamos fazer?
Nick encolheu os ombros.
Cá por mim, estamos a perder tempo. Vá, esse bilhete que encontrou no quarto da rapariga não passa de fantasia juvenil, é de uma miúda a escrever palavras porcas, que tem isso de especial?
Se descobríssemos o paradeiro desse tal Polar, talvez significasse alguma coisa.
Nick fez sinal a um empregado de mesa. Lorraine sentia-o nervoso, a olhar incessantemente para todos os lados. Vasculhou os bolsos, de onde tirou uma fotografia de Anna Louise.
Tem algum dinheiro consigo? As notas de quinze e dez não servem, preciso de umas quantas das grandes.
Lorraine abriu a bolsa e de repente ele chegou-se mais, sussurrando-lhe:
Cabeça para baixo e pedrada, querida.
Lorraine reparou que um criado se aproximava de Nick.
Olá, pá, traz-me uma Mexican e uma Coca-Cola Diet. Ah, espera aí.
O criado inclinou-se para ele.
Preciso de me ver livre desta disse-lhe Nick, apontando para Lorraine com o polegar e piscando o olho ao homem. O meu amigo Tony, Loredo T., quer saber se esta miúda esteve aqui. Ela ficou-lhe em dívida, percebes? Muita massa. E se tu lhe deres alguma pista, também ficarás a ganhar com isso... Nick tirou o saco de plástico do bolso. Vale quinze das graúdas... tudo teu. Sê fixe, meu, preciso realmente de saber se ela costumava pairar por aqui.
Com certeza, uma Mexican e uma Coca-Cola Diet. O empregado pegou na foto sem sequer olhar para ela e escondeu as duas notas de cinquenta dólares debaixo do tabuleiro com um gesto rápido e habilidoso.
Cem dólares, Nick, está maluco? sibilou Lorraine. Nick continuava a percorrer a pista de dança obscurecida,
onde uma jovem se despia, sem que ninguém mostrasse grande interesse pelo facto.
Isso é nada. Alguns destes miúdos gastam aqui dez, quinze mil por noite. Vou até aos lavabos, não se importa de ficar aqui sozinha durante um bocado?
Lorraine virou-lhe as costas.
Já estive em lugares bem piores. Nick inclinou-se para bem perto.
Isso é que é classe, querida. Até já.
Nick esteve ausente durante vinte minutos. Lorraine observou os jovens, uns completamente pedrados, outros a aspirarem cocaína sem o menor disfarce. Uma rapariga estava de tal modo fora de si que se sentara de pernas abertas. Os homens que passavam iam-na apalpando, e a única coisa que ela podia fazer era manter a cabeça erguida.
Lorraine levantou-se e foi até aos lavabos. Empurraram-na, deram-lhe encontrões, viu mais linhas de cocaína formadas e adolescentes em grande quantidade, o menos vestidas possível. Lorraine sentiu-se velha; não que alguém se desse, sequer, ao trabalho de olhar para ela, andavam todos demasiado preocupados em dar nas vistas diante de uma ou outra «estrela».
Quando voltou para o lugar onde estivera, Nick ainda não voltara; no entanto, os bancos tinham sido ocupados por um casal que parecia à beira de copular, pelo que ela pegou no seu copo e afastou-se. Tomou um gole e ficou paralisada porque não era só Coca-Cola, também tinha rum, e. muito, misturado só Deus sabia com mais o quê.
O álcool provocou-lhe uma sensação de fogo na garganta Engoliu. Precisou de uma grande dose de força de vontade para pousar o copo, mas assim fez. Afastou-se e foi empurrada contra a parede por um grupo de homens que dançavam uns com os outros. Premiu fortemente as costas contra a parede forrada de suedette, sentiu-se invadir pelo pânico e desejou que Nick aparecesse. Começou a suar, sentindo o vestido colar-se-lhe à pele; o calor era sufocante, a música retumbava nos seus ouvidos não a impedindo, no entanto, de sentir uma premência imensa em terminar a bebida.
Onde está o seu amigo? perguntou-lhe o empregado em voz sibilante, fazendo-a voltar-se para ele, mas ficando cega pela luz dos holofotes que incidiam sobre si. Foi à casa de banho? Lá acima? Não olhe para mim, faça de conta que estou a tomar nota do seu pedido.
Lorraine fechou os olhos; sentia o suor a escorrer-lhe pelo corpo. Engoliu em seco com um sabor a ranço na boca. Nick apareceu mesmo atrás do empregado.
Ei, pá, está um tipo a fornicar com uma rapariga na casa de banho.
E depois? Escute, cheguei ao fim do meu turno e daqui a dez minutos saio pela porta das traseiras, topou?
Nick assentiu e, quando o homem se afastou, sorriu a Lorraine.
Ali dentro vai um autêntico espectáculo.
Tire-me daqui, Nick. Ele riu-se.
O quê? Não aguenta? Mas disse-me que...
De repente apercebeu-se de que Lorraine estava mal e, agarrando-a pelo cotovelo, ajudou-a a sair para o ar fresco da noite.
Lorraine encostou-se ao jipe.
Alguém me baptizou a bebida, ou então peguei na de outra pessoa qualquer e... desculpe, mas fiquei completamente transtornada ali dentro.
Lorraine, que tremia por todos os lados, ficara com um ar muito vulnerável, de modo que Nick rodeou-lhe os ombros com um braço e amparou-a até à porta do jipe.
Venha, sente-se ali dentro, ficará melhor... Quer um pouco de água?
Lorraine cambaleou, mas ele não a deixou cair. Estendeu a mão para o banco de trás, fazendo uma festa na cabeça de Tiger, que entretanto aparecera, e pegou numa garrafa de água Evian, desarrolhando-a.
É do Tiger, mas acho que ele não se importará. Lorraine bebeu uns goles; estava morna, mas sempre era um líquido. O ter ficado tão dependente assustou-a.
Desculpe tudo isto, desculpe. Nick afagou-lhe ternamente o rosto.
Querida, não tem que pedir desculpa, eu não devia ter ficado tanto tempo na casa de banho, mas o espectáculo no chão era de tal maneira que...
Lorraine afastou-se dele, agarrando na garrafa de plástico onde se viam marcas de dentes.
Merda, Nick, isto nunca terá fim? Há meses e meses que não tocava numa bebida...
Nick abriu o porta-luvas e tirou de lá umas pastilhas de hortelã-pimenta. Desembrulhou uma e tocou-lhe nos lábios com ela.
Abra a boca. Enfiou-lhe o rebuçado e fez-lhe uma festa no queixo. Fique aqui quietinha, pois não quero perder o encontro com aquele tipo. Além disso, ele tem cem dólares nossos e... Bateu no bolso. Vai ter uns danos nasais com este material. Não se importa de ficar sozinha?
Lorraine disse que não, com a boca deformada pela pastilha.
Não, fico com o Tiger. Vá, estou bem.
Mas não estava. Não foi capaz de suster as lágrimas, que lhe subiram aos olhos e transbordaram. Chupou furiosamente a pastilha, furiosa consigo mesma.
Eu ali dentro perdi a parada, Tiger sussurrou.
Verificar a rapidez com que a sua confiança podia desaparecer, aperceber-se de que tudo o que era ou pensava ser podia facilmente desvanecer-se, assustava-a. Bastava uma bebida para a ânsia voltar.
Nick encostou-se a uma parede, de onde podia ver o recinto vigiado do pátio das traseiras. Esperou quase dez minutos. Havia seguranças às voltas com os caixotes do lixo, pois até nestes os jovens se escondiam para tentar entrar. Já pensava que acabara de perder cem dele quando o empregado apareceu. Trazia um casaco de cabedal pendurado ao ombro e vinha de óculos escuros.
Vou dar uma olhada aos meus pneus, volto já comunicou aos seguranças.
Nick permaneceu meio oculto pela parede até o homem aparecer junto dele. Aproximou-se, nitidamente nervoso.
Tenho a moto estacionada ali ao cimo, quer ir até lá comigo?
Claro, como é que se chama?
Frankie. Há que ter muito cuidado, pá, se eles apanham alguém a passar alguma coisa cá para fora, nem que seja um maço de cigarros, estamos feitos. Ali dentro ganha-se muita massa, homem, não quero perder o emprego.
O empregado de mesa tinha mais cadeados e alarmes na sua Hurley do que uma firma de segurança. Era uma moto polida, de cromados sobre cromados.
Bela moto.
E, os filhos da puta agora servem-se de camionetas para as gamar. Só a tenho há uns meses.
Como disse, tem um belo ganha-pão e é possível que venha a lucrar ainda mais. Tem alguma coisa para mim?
É a tal miúda que desapareceu, não é? Não me quero envolver com a Polícia, isso está fora de questão...
Eu não sou da Polícia, caraças. O que eu vou é chatear a família dela; o Tony ficou a arder com muita massa. Estou-me nas tintas para o resto.
Não acredito que alguém tenha percebido de quem se tratava, eles têm muito material deste, percebe o que quero dizer?
Estou a fazer um esforço, mas o que me interessa é fazer o negócio e pôr-me a milhas.
Nick mostrou-lhe só uma ponta do saco para o tentar e Frankie olhou em ambas as direcções. Colocou o casaco na frente e expôs um jornal com um envelope castanho dentro.
Nick piscou o olho a Lorraine ao entrar no jipe e ligou imediatamente o motor.
Toca a pôr alguma distância entre mim e o meu novo amigo Frankie.
Guinou para o meio do trânsito com uma chiadela dos seus pneus carecas, enquanto tirava o envelope castanho do bolso do casaco.
Oh, santo Deus! exclamou Lorraine, ao tirar a fotografia.
Tinha razão, isso fazia parte de uma colecção privada que eles têm lá em cima no escritório. De facto, quem estava errado era eu.
Nick vivia numa casa parecida com a de Rosie, mas ainda em pior estado. O seu apartamento era uma confusão de cima a baixo, a cama estava por fazer e a louça suja empilhava-se no lava-louça.
Acho que a casa precisa de um toque feminino. O problema é que, embora traga muitas miúdas cá acima, nenhuma delas fica tempo suficiente para lhe dar um jeito.
Não se desculpava, o mais provável era não se ralar minimamente com a situação. Lorraine viu-o, pelo canto do olho, abrir o frigorífico e agarrar numa garrafa de vodca gelada. Pegou num pequeno copo de vidro grosso, encheu-o uma vez, despejou-o na boca, encheu um segundo e fez o mesmo, esvaziando o seu conteúdo de uma vez e soltando ao mesmo tempo um «Ahhhh» de satisfação.
Lorraine sentiu uma vontade avassaladora de se juntar a ele para saborear a deliciosa vodca gelada. Tinha o corpo a tremer.
Nick... disse, suavemente.
Sim? O café não demora.
Aproximou-se dela e fez-lhe uma festa na cabeça. Era um gesto meigo, de carinho, e Lorraine teve de engolir com força para não começar a chorar.
Como é que isso vai? perguntou-lhe.
Bem.
A sua voz mal se ouvia, de modo que ele agachou-se em frente dela, apoiando-se sobre as velhas botas de cowboy.
Quer falar?
Lorraine respondeu-lhe com voz enrouquecida.
Quero uma bebida, nada mais me interessa.
Está bem, posso ir ao frigorífico e preparar-lhe uma neste mesmo instante, mas seria uma tolice.
Lorraine baixou a cabeça.
Dê-me apenas uma bebida, Nick. Nick pôs-se de pé, de mãos nas ancas.
Quer uma bebida, vá buscá-la! Levante esse rabo, a garrafa está no frigorífico. Vá.
Lorraine levantou-se com lentidão. Passou a língua pelos lábios e foi até ao frigorífico. Estendeu a mão e voltou-se para olhar para ele.
Não a impeço. Conhece, melhor do que eu, o caminho que vai tomar.
Lorraine apoiou a cabeça na superfície fria do enorme frigorífico antiquado, enquanto Nick ficava a observá-la, de mãos apoiadas nas ancas estreitas, onde o velho cinturão mexicano de fivela prateada assentava, largueirão. Aguardou. A maneira como ela apertava o corpo contra o frigorífico excitava-o; estava praticamente a beijá-lo como a um amante perdido. A certa altura viu-a afastar-se e voltar-se para o coador de café, de braços caídos ao longo do corpo e mãos crispadas.
Conhecia bem o Jake Lubrinski? perguntou-lhe com voz tensa, virando-se para ele, de rosto inclinado para o lado, a cicatriz oculta por uma madeixa do cabelo louro macio.
Bom polícia, tipo porreiro.
Lorraine assentiu, e afastou o cabelo da cara, o que lhe permitiu ver a cicatriz que lhe sulcava a cara até ao pescoço. Tinha os olhos mais azuis que Nick já encontrara, no entanto não parecia olhar para ele, mas sim através dele.
Tenho saudades dele.
Sim, eu sei.
De repente, ela voltou a focá-lo, analisando-lhe o rosto, o que o fez corar.
Às vezes, o Nick faz-me lembrá-lo.
Nick acendeu dois cigarros e passou um a Lorraine. Quando lho estendeu, ela tocou-lhe ao de leve com um dedo, depois pegou no cigarro e inalou profundamente.
Sabe, o que acontece, Nick, é como se tivesse recantos abertos no meu cérebro. Isto aparece de repente, como que me tira o equilíbrio e sinto um pânico terrível. Quando penso que tenho tudo sob controlo, quando acho que me recompus... Chupou o cigarro. Uma bebida com álcool, um malfadado gole e... nada mais importa.
Sim, importa, porque não abriu o frigorífico.
Não, não abri, mas tê-lo-ia feito se estivesse sozinha. Isso é que me assusta, Nick, isso e...
E o quê?
Lorraine encolheu os ombros e beberricou o café.
Vá, diga-me, e que mais?
Oh, as minhas filhas, penso nelas e no Michael.
Quem é o Michael?
O meu ex-marido.
Ah, bem, todos temos os nossos fantasmas, os nossos recantos obscuros, Lorraine. Talvez devesse falar deles em vez de os esconder.
Não consigo.
De repente baixou a cabeça, para que ele não lhe visse o rosto e deixou escapar um gemido suave. Nick teve vontade de a abraçar, de a embalar, de a beijar, mas em vez disso pôs-se de pé e afastou-se. Não conseguia lidar com as emoções que ela arrancava dele, já fazia muito tempo desde a última vez em que quisera amar uma mulher, e tinha a noção de que era isso que lhe estava a acontecer: começara a apaixonar-se por ela. Mudou rapidamente de assunto.
Certo, acho que devíamos falar sobre o que se passou esta noite, doçura, porque já é tarde e temos de avançar com este caso e ir para Nova Orleães.
Lorraine fungou.
Sim, tem razão e eu agora já estou bem. Pôs-se de pé com agilidade, puxou a saia para baixo e descalçou os sapatos vermelhos de saltos altos. Dê-me a tal fotografia, vamos examiná-la melhor. E esse Frankie não conhecia ninguém chamado Polar?
Não.
Nick pegou no casaco que deixara cair no chão, procurou dentro dos bolsos e tirou o envelope. Lorraine arrancou-lho da mão e bateu com ele na coxa, agora já sem tremuras, sem vulnerabilidades. Recuperara a velha forma.
Lorraine apoiou-se na beira da mesa de cozinha com tampo em formica a examinar a fotografia. Nick colocou-se a seu lado, bastante próximo mas incapaz de lhe tocar, pelo menos como antes; tinha consciência de que a necessidade que ela sentira dele e de uma bebida já se desvanecera.
Bem, uma coisa é certa, a rapariga está completamente passada, repare nos olhos.
Corpo bonito comentou Nick em voz suave. Anna Louise estava nua, em cima de uma mesa. Perto de um dos ombros viam-se garrafas e um copo tombado. Os três rapazes que a rodeavam não aparentavam mais de vinte anos e pareciam embriagados, meio despidos, as calças para baixo e os rostos completamente em fogo. Um deles fornicava Anna Louise, outro beijava-lhe os seios e o terceiro masturbava-se sobre ela, vendo-se o sémen a brilhar-lhe sobre o ventre liso e bronzeado. A jovem sorria, tendo numa das mãos uma garrafa de tequila,
A menina bem-comportada observou Lorraine em voz baixa. Perscrutava a fotografia de perto. Parece-me que um destes malandros é o puto sardento que interroguei na UCLA, tenho quase a certeza.
Nick acendeu novo cigarro e inalou profundamente.
Segundo o Frankie, e ele só começou a trabalhar no clube na altura em que essas fotos foram tiradas, só a viu uma vez ou duas, acompanhada por uma rapariga loura da mesma idade. Vinham juntas e eram manuseadas e fornicadas até à medula. Não conhecia nenhum desses putos que estão à volta dela, mas viu logo que era ela pela fotografia que lhe mostrámos.
Também sabe de quem se trata? Os jornais publicaram a sua fotografia na primeira página, porque é que ele não entrou em contacto com a Polícia?
Ei, o rapaz tem medo de perder o emprego e, certamente, você não acha que terá sido a única pessoa a reconhecê-la e a manter a boca fechada.
Lorraine compôs uma expressão preocupada.
Mas se este tipo de coisa é vulgar, porque haveria ele de se lembrar de alguém que só utilizou o lugar uma ou duas vezes? Se bem me lembro, você disse-me que estavam a fornicar na casa de banho dos homens.
Bem, antes de mais nada, um suposto saco de cocaína no valor de quinze mil dólares é um incentivo dos diabos, e esta cena que aqui temos não se passou nos lavabos masculinos, mas sim numa sala privada, e foi a altas horas da noite. Repare, só lá ficaram os tipos principais daquilo, as chamadas estrelas que dão o corpo ao manifesto e um par de empregados de serviço, entre os quais o Frankie. Ele disse que se recordava dela porque admitiu que também ficara com vontade de lá ir, mas às tantas a rapariga desmaiara...
Mas não se vê nenhuma estrela de cinema nesta cambada de merdosos e ela não passa de uma miúda.
Vá-se lá saber se não serão suficientemente ricos. Lorraine continuou de cenho franzido.
O Frankie tem alguma fotografia da amiga dela?
Não, disse que essa foi levada para a sala do topo onde não vai. Têm um empregado privativo.
Quem é que tirou esta fotografia? Nick inclinou a cabeça para o lado.
Parece que na sala privada há câmaras ocultas nos espelhos das paredes. Tiram muitas fotografias, daí que ele nem sequer tivesse receio de que dessem pela falta de uma.
Lorraine voltou a enfiar a fotografia no envelope.
Bem, fico com algo para falar com Mistress e Mister Caley, mas não creio que isto lhes vá agradar. Ia a calçar os sapatos vermelhos quando disse: Prefiro ficar descalça. Quer dar-me uma boleia para casa?
Com certeza.
Já no jipe, afagou a cabeça de Tiger, enquanto o cão tentava lamber-lhe o rosto.
Ficamos todos lambuzados, Nick. Este cão é um verdadeiro achado.
Sem dúvida concordou Nick, fechando a porta com força.
Sabe, o novo rumo que as coisas estão a tomar parece excluir o Robert Caley. Acha que terão utilizado a fotografia para fazer chantagem?
Nick ligou o motor.
Como o Frankie disse, têm muitas fotografias que são utilizadas para... como dizer?... fins pouco dignos, mas talvez não devamos excluir a chantagem.
Quando iam a chegar a casa de Rosie, Lorraine riu-se.
Ei! Esta noite demos um grande passo em frente, Nick. Amanhã de manhã telefonarei aos Caley, talvez tente arrancar alguma coisa desse tal Tom Heller, e depois... Deu um pequeno murro no braço do colega. Nova Orleães, cá vamos nós... Bateu as palmas. Oh, Nick, um milhão de dólares! Tenho a certeza de que descobriremos o que aconteceu, havemos de encontrá-la e, como Mistress Caley disse, receberemos o bónus quer esteja viva ou morta. Lorraine fez uma festa na cabeça de Tiger. Boa noite, amanhã falamos. Oh, Nick, não transmitirá esta informação à Agnews, pois não?
Nick sorriu prontamente.
Não, mas decerto não se importa que vá lá levantar o cheque do meu salário, pois não?
Lorraine riu e ele ficou a vê-la subir as escadas a correr de pés descalços, dois degraus de cada vez, até ao primeiro andar. Parecia cheia de energia, com a confiança aparentemente recuperada. Nick também reparou que a colega fizera questão em ficar com a fotografia. Lorraine Page estava de volta ao caso. Esfregou a cabeça a Tiger.
Senhora perigosa aquela. Vai até ao fundo das coisas, percebes? Tiger lambeu-lhe a cara. Não, não me parece.
Nick esvaziou a garrafa de vodca e deixou-se ficar esparramado em cima da cama desalinhada. Pegou na viola, fez soar alguns acordes e começou a entoar as notas. Gostara dela vulnerável, gostava dela quando era ele a encabeçar as coisas, como que se preocupava com ela. Há muito que não sentia aquilo por alguém e sabia que aquele sentimento estava a tornar-se demasiado intenso e profundo.
Oh, Lorraine, Lorraine, que mágoa é a tua... Oh, Lorraine, Lorraine, deixa que...
Tocava melhor viola do que alguma vez admitira; nesse momento dedilhava preguiçosamente as cordas que repetiam o nome dela sem cessar... Lorraine.
Lorraine enrolara-se em cima do seu sofá-cama a planear como jogar com os Caley a cartada que tinha dentro do envelope castanho. Nem sequer pensava em Nick ou na ânsia de bebida por que passara há pouco. A Lorraine vulnerável voltara a esconder-se no seu canto secreto, juntamente com Jack Lubrinski, as filhas e o ex-marido. Na verdade, a pessoa em quem pensou ao adormecer foi Robert Caley, curiosa em saber como reagiria perante a fotografia. De certa maneira, sentia-se mentalmente aliviada por ele já não ser o suspeito principal. Quando adormeceu, ainda pensava no seu possível envolvimento no sumiço da filha e, por último, como seria estar, nua, ao seu lado.
Lorraine deteve-se em frente do mapa de ocorrências, em cortiça, pendurado na parede do escritório. O dia 4 estava sublinhado. Eram sete e um quarto da manhã e ela estava ali desde as seis. Dormira muito poucas horas, porém não sentia fadiga, mas sim uma grande energia.
Por baixo do seu nome viam-se os de Robert Caley, Elizabeth Caley, Tom Heller, o estudante sardento da UCLA, e Noel, o cabeleireiro, quatro pessoas que pretendia interrogar de novo.
A seguir a Nova Orleães surgiam os sócios de Caley no negócio do casino, Tilda Brown, amiga de Anna Louise, e todo o pessoal ao serviço da família Caley. Na lista de Nick e Rooney constava a tarefa de contactar os agentes de Nova Orleães envolvidos na investigação, obtendo-se assim uma actualização de dados e quaisquer antecedentes que pudessem desenterrar em relação a Juda Salina.
Lorraine apreciou Noel a secar o seu cabelo.
Quer o mesmo estilo, não é verdade?
Quero, tal qual como da outra vez. A propósito, alguma vez penteou a Anna Louise Caley?
O cabeleireiro inclinou a cabeça para o lado, desviando o secador por um instante e respondeu:
Costuma ir ao Viper Room?
O cabeleireiro prosseguiu o seu trabalho, com a atenção focada no cabelo.
Não, tenho coisas mais interessantes para fazer com o meu tempo.
A Anna Louise costumava ir lá.
O homem olhou para o reflexo de Lorraine no espelho, aparentemente atento ao seu cabelo.
A sério? Não me parecia desse tipo.
Porque diz isso?
Bem, sempre a achei muito querida, até um pouco tímida. Mas obcecada com o seu cabelo.
Andava sempre sozinha?
Noel desligou o secador e encostou-se à armação com o espelho.
Qual é o problema? Porquê tanta pergunta? Lorraine inclinou-se para a frente, observando-se ao espelho.
Porque fui contratada para a localizar e a única coisa que me dizem é que ela era amorosa, uma menina rica muito simpática. Mas eu não creio que fosse só isso... Estou convencida de que Miss Caley tinha outra faceta.
E acha que eu a conhecia?
Talvez. Noel, eu sou detective particular, não da Polícia, portanto não vale a pena ficar nervoso. Quero mostrar-lhe uma coisa. Lorraine puxou da fotografia. Veja-me isto.
Noel olhou para a foto e depois assobiou, examinando-a mais de perto. Murmurou algo de si para si e depois devolveu-a a Lorraine, que a guardou de novo no envelope. Noel continuou a secar-lhe o cabelo. Os seus olhos encontraram-se com os de Lorraine duas vezes, porém continuou sem proferir palavra.
Conhece alguns dos rapazes que aparecem na foto? O cabeleireiro assentiu com um gesto de cabeça.
Está a ver o gato mesmo ao fundo do salão, a terminar uma pintura? É o que está a dar-lhas. Chama-se Cal, Cal Thompson e é um bom filho da puta, se me permite o palavrão.
Lorraine olhou para a fila de cadeiras do cabeleireiro; Cal estava de costas para ela, pelo que não lhe podia ver o rosto.
Lorraine percorreu o salão até à última cadeira. Deteve-se atrás do jovem que lavava as suas taças e pincéis de aplicação de tinta.
Desculpe, o senhor chama-se Cal, não é?
Cal Thompson voltou-se. Era bem-parecido, estava bronzeado como todos em LA, um desses homens jovens cheio de confiança na sua boa aparência.
Viva, poderei falar consigo por um instante?
Cal ficou com uma expressão intrigada, olhou para a recepção e depois de novo para Lorraine.
Em particular.
Neste momento estou ocupado proferiu, após alguma hesitação. Se quiser fazer uma marcação...
Lorraine tirou a fotografia e mostrou-lha.
Quer isto publicado no National Enquirer? Eu, no seu lugar, arranjaria uns minutinhos, Cal.
Cal correu uma cortina que isolava aquela área do resto do salão. Lorraine sentou-se e puxou dos seus cigarros.
É jornalista?
Não. Sente-se por um instante, Cal.
O rapaz obedeceu, sem perder o seu ar seguro, e puxou um cinzeiro para Lorraine.
Que deseja?
Informações. Sou detective. Olhe para a fotografia, Cal. Violação em grupo é crime, não é? Ela não passava de uma miúda. Responda-me a algumas perguntas que eu depois vou-me embora.
Escute, menor é que ela não era. Repare na expressão dela, estava a adorar.
Eu diria que o que ela estava era completamente pedrada. Sabe de quem se trata, não sabe?
Cal suspirou, desviando o olhar.
Sim, sim, sei.
Lorraine aguardou. O rapaz já começara a perder a serenidade.
Portanto, tem conhecimento de que se encontra desaparecida, não é verdade?
Cal anuiu.
Tenho, mas isso nada tem a ver comigo. Ou seja, não foi mais do que uma trancada, percebe o que quero dizer? Estávamos pedrados e... nada mais.
Nada mais? Três tipos fornicam uma miúda completamente passada da cabeça e ainda me diz que foi só isso? Sabe o nome dos outros?
Não.
Então que aconteceu a seguir? Cal encolheu os ombros.
Guardei o meu instrumento, bebi mais uns copos e fui para casa. Ela já se retirara, na companhia da amiga.
Quem era a amiga?
Sei lá! Veio aqui ao cabeleireiro uma vez.
A Tilda Brown?
Não sei, tenho muitas clientes, algumas vão a passar e entram, nem sequer fazem marcação. Olhe, claro que eu conheço a Anna Louise, mas também todas as outras pessoas. Ela tinha fama de estar aberta a ofertas, já lá estivera mais algumas vezes, sempre para o mesmo. Gostava daquilo.
Ficava sempre pedrada?
Não sei, penso que era bebida e não droga, mas o certo é que todos levam material para ali, está sempre disponível, percebe?
Estou a tentar, Cal. Alguma vez a viu com alguém específico? Por acaso, já ouviu falar num tipo chamado Polar?
Não. Como disse, só a vi aquela vez no clube e umas quantas outras no cabeleireiro. Nem sequer é minha cliente.
Viu-a sair do Viper Room na noite em que esta fotografia foi tirada?
Vi, com a amiga. Nós ficámos um pouco mais.
Nós?
Alguns amigos. De qualquer modo era muito tarde, a casa estava a ficar sossegada, por isso deviam ser umas quatro ou cinco da manhã.
Lorraine enfiou a fotografia no envelope.
Recorda-se de quando isto foi tirado?
Recordo, pois era o dia de anos da minha namorada. Tivemos uma busca no Viper e eu fiquei até mais tarde. Foi no dia treze de Fevereiro do ano passado. Olhe, estou a ser completamente sincero consigo: agora sou um homem casado e não quero voltar a meter-me nesse tipo de coisa.
Lorraine apagou o resto do cigarro.
Lembra-se de como ela voltou para casa? Disse que a viu sair... Foi a guiar, deram-lhe boleia ou apanhou um táxi?
Minha senhora, ela estava demasiado fora de si para guiar. Acho que alguém a levou, mas não vi quem, palavra que não. Eu não fiz nada de errado, ou seja, ela estava a adorar.
Lorraine dirigiu-se para a saída barrada pela cortina.
Obrigada. Cal, espero bem que tenha sido sincero comigo porque não quero cá voltar.
Viva, lembra-se de mim?
Tom Heller, encharcado em suor depois de uma partida de ténis, prendia uma camisola de algodão branca em redor dos ombros. Fitou Lorraine por instantes, a seguir tirou uma toalha, imaculadamente branca do seu saco desportivo e limpou o rosto suado, esfregando depois o cabelo.
Não, desculpe, mas não. Correu o fecho do saco.
Lorraine Page, da Agência de Investigações Page.
Ah, é verdade!
Disse-me que namorou com a Anna Louise Caley. O rapaz pôs o saco ao ombro.
Exacto. Olhe, tenho de ir tomar um duche.
Também disse que era uma relação platónica, só piqueniques, festas na praia... O jogador de ténis fez menção de se afastar. Espere aí. O tom com que falou fê-lo parar imediatamente. Mentiu, conhecia-a muito bem, não é verdade?
Não mais do que qualquer outra pessoa. Lorraine pespegou-lhe com a fotografia no peito.
Não mais do que qualquer outra pessoa? Quer dizer que todos a fornicavam dessa maneira? Olhe bem e verá que não é nenhuma festa de praia nem barbecue de adolescentes, pois não? É uma orgia e você, grande machão, está a vir-se sobre a barriga dela. É você, não é?
O tenista ficou a olhar para a fotografia e a seguir deixou escapar um longo suspiro.
Oh, merda.
Sentemo-nos num banco a conversar. Desta vez, acho bem que seja sincero comigo, caso contrário faço chegar uma cópia desta fotografia aos seus pais, ao director deste lugar... Está a perceber?
Mário estava a polir a limusina dos Caley. Quando Lorraine se aproximou, virou-se para ela, que lhe sorriu.
Belo trabalho, Mário, lembra-se de mim? Lorraine Page.
Mário assentiu com a cabeça e continuou a dar brilho ao automóvel.
Diga-me: na noite do dia treze de Fevereiro foi buscar a Anna Louise ao Viper Room?
O quê?
Lorraine apoiou-se ao carro.
A família partiu para Nova Orleães dois dias depois, a quinze, no mesmo dia em que ela desapareceu. Portanto, eu diria que recorda bem os acontecimentos ocorridos perto dessa data, pois foi interrogado pela Polícia, não é verdade?
O motorista prosseguiu o seu trabalho, acenando de novo com a cabeça.
Portanto, no dia treze de Fevereiro do ano passado, o Mário...
Sim, minha senhora, fui buscar Miss Caley e a amiga e trouxe-as para casa.
Vinham completamente pedradas, não é?
Isso já não lhe saberei dizer, minha senhora, limitei-me a ir buscá-las. Estavam à minha espera no passeio.
Os pais da Anna Louise tinham conhecimento?
Não, minha senhora. A Anna Louise ligou-me para o telemóvel. Tive de me levantar e vestir. Deviam ser umas cinco da manhã.
Por que razão nunca falou disto a ninguém?
O motorista foi até um balde, em cuja sabonária mergulhou o pano de camurça.
Não queria sarilhos. Aquilo não passava de brincadeira de miúdos. Trouxe-as para casa, muito simplesmente.
Alguma vez fora buscar a Anna Louise a esse clube?
Não, minha senhora. Ela costumava telefonar-me para a ir buscar a festas, nunca quis guiar quando não estava sóbria. Tínhamos uma espécie de combinação, era mais seguro assim.
Com quem é que ela andava?
Na maioria das vezes era com a amiga, Tilda. Não saía muito, só quando Miss Brown vinha ficar aqui a casa. Todos achavam Miss Brown boa pessoa, mas eu não. Para mim, era uma má influência para Miss Anna Louise, mas, como não era da minha conta, nunca o disse a ninguém.
Conhece alguém chamado Polar?
Não, minha senhora, não conheço, e agora se me dá licença, preciso de lavar os pneus.
Lorraine afastou-se mais um pouco.
Levou a Tilda Brown ao aeroporto?
Levei.
Ela fez algum comentário?
Não. Sabia que eu não gostava dela, nunca me dirigia a palavra. Miss Tilda Brown é uma menina muito descarada
Lorraine, ao ouvir chamar pelo seu nome, voltou-se. Viu Phyllis no cimo da escadaria da casa. Parecia confusa.
Ora, Mistress Page, acabei de lhe enviar o seu dinheiro. Não esperava vê-la. Há algum problema?
Não, quero apenas falar com Mistress Caley antes da nossa partida. Ela está, não é verdade? Combinei cá vir às onze, mas surgiu-me uma dificuldade retorquiu Lorraine, subindo ao encontro de Phyllis.
Duvido que ela concorde em recebê-la. Não me disse que viria e neste momento está com o seu agente, portanto...
Phyllis entrou no vestíbulo com a nítida intenção de fechar a porta, mas Lorraine seguiu-a de perto.
Preciso de falar com ela, é muito importante.
Realmente não posso interrompê-la, está a vestir-se.
Sim, pode, Phyllis, porque não saio desta casa sem aver.
Lamento, mas Mistress Caley não pode ver ninguém.
Não acha que devia perguntar-me, Phyllis? Elizabeth Caley aparecera no cimo das escadas, de aspecto altivo e imaculado. Desço já, Mistress Page, mas só posso dispensar-lhe meia hora.
Dito isto, desceu as escadas com vivacidade e segurança. Lorraine sentiu o seu perfume muito antes da delicada mão branca lhe dar uma palmadinha no ombro.
Lorraine seguiu Elizabeth até ao solário. Todas as venezianas estavam corridas e o odor forte dos lírios, misturado com o perfume floral de Elizabeth, fizeram-na ansiar por ar fresco. Sentaram-se em duas delicadas cadeiras acolchoadas, diante de uma pequena mesa branca, rodeadas por uma profusão de plantas.
Vou directamente à questão.
Espero que sim, querida. O meu agente está quase a chegar, ao que parece para me oferecer trabalho. Desde o desaparecimento da Anna Louise que tenho andado tanto na imprensa... um horror, na verdade... estou convencida de que muita gente na indústria pensou que eu tinha morrido. Claro que não irei aceitar, mas ele insiste muito em que, pelo menos discutamos as propostas. Não há nada mais triste do que ressuscitar velhas lendas como eu.
Riu-se.
Está com uma aparência esplêndida declarou Lorraine com sinceridade.
No coque impecável onde juntara o cabelo muito negro entrançado na nuca, não havia um único cabelo fora do sítio; a maquilhagem estava impecável, o fato claro, cor de limão, era de grande simplicidade, com a saia justa que deixava ver as pernas esguias e os pés metidos numas sandálias brancas de salto alto. Trazia uma minúscula pulseira de ouro, de onde pendia um diamante em gota, em torno de um dos tornozelos, brincos e um enorme anel de esmeralda e diamante no dedo anelar. Lorraine, a seu lado, sentia-se e parecia uma pobrezinha; o trabalho de pôr Elizabeth Caley em forma custara muito dinheiro e era bem patente.
Nesse momento chegou chá e café, trazidos pelo sorumbático mordomo.
Obrigada, Peters agradeceu Mrs. Caley, servindo-se do chá esverdeado. Olhou para Lorraine. Descobriu alguma coisa, não foi? Falava em voz baixa, quase temerosa.
Sim, descobri. Elizabeth fechou os olhos.
Não são boas notícias, pois não?
Não.
Bem, vá directa ao assunto, Mistress Page, não me deixe nesta aflição.
Lorraine pegou na sua pasta.
Lamento muito, mas aquilo que lhe vou mostrar provocar-lhe-á um grande choque. Entregou a fotografia a Elizabeth Caley e aguardou, observando-a como um falcão. Viu-a olhar para a fotografia da filha e abrir desmesuradamente os olhos, engolir uma, duas vezes, em seco, depois respirar profundamente. Em seguida, devolveu-a a Lorraine.
Porquê? Porque faria ela uma coisa destas? Porquê? Os lábios tremeram-lhe, compondo uma expressão de perplexidade. Parecia estar a fazer um esforço para não chorar e, assim, estragar a maquilhagem. Quem é essa gente ao pé dela?
Conheço dois. Um é cabeleireiro e o outro, estudante. Elizabeth sacudiu a cabeça.
Santo Deus, deviam ser presos. Onde é que isso foi tirado?
Num clube. Chama-se Viper Room.
Não mostre a fotografia ao Robert. Por favor, não o deixe ver essa cena nojenta, senão, ele... ele morre. Se lhe contassem, não acreditaria, não faz ideia.
E a senhora fazia?
O quê? Se eu sabia que a minha filha dava espectáculo em público? Se eu sabia que a minha filha andava a ser fornicada por um grupo de homens como se fosse uma prostituta? Não, Não sabia! Mas quem me dera ter sabido. Apertou fortemente uma mão na outra. Por que tipo de mulher me toma?
Sei que tem um problema de droga.
Como disse?
Paremos com os jogos, Mistress Caley, estou a par do que se passa com o seu médico. Será que conhece, de verdade, os riscos que corre?
Quem foi que lhe contou isso?
Descobri, Mistress Caley, é o meu trabalho. Mas saberá a senhora os riscos que a sua vida corre? Está a usar temazepam em comprimidos para dormir.
Se estivesse nesta situação não faria o mesmo? redarguiu secamente.
O que está a fazer é letal e deve consultar um médico o mais depressa possível. Creio que anda a injectar temazepam...
Mistress Caley empurrou a mesa.
Phyllis, foi a Phyllis quem lhe contou?
O seu médico foi preso...
Oh, meu Deus. Foi ele quem lhe disse? Que mais lhe contou?
Lorraine abriu o maço de cigarros e ofereceu um a Elizabeth Caley, que lhe arrancou o maço da mão.
É suposto andar a investigar o desaparecimento da minha filha e não a meter-se na minha vida particular. Não tinha o direito de fazer quaisquer perguntas acerca do meu...
Lorraine interrompeu-a, falando com voz controlada e firme.
Estou a tentar descobrir o paradeiro da sua filha. E considero possível que o seu problema com a droga tenha algo a ver com o caso. Portanto, volto a perguntar-lhe, Mistress Caley: a sua filha drogava-se?
Não, de maneira nenhuma.
Tinha conhecimento do seu vício? Elizabeth Caley suspirou com impaciência.
Sim, mas jamais pensaria, sequer, em se drogar. Via demasiada angústia, sofrimento, arrependimento e dependência na sua mãe.
Tinha conhecimento de que a Tilda Brown também frequentava este clube juntamente com a sua filha?
A Tilda estava com a Anna Louise?
Acho que sim. Sabe se as duas raparigas tiveram alguma espécie de zanga na véspera de partirem para Nova Orleães?
Não sei qual foi a causa da zanga, apenas que a Tilda resolveu ir-se embora... na verdade, uma tolice. Resolvi não me meter no assunto.
Lorraine tencionava não largar Mrs. Caley. Tentou de novo.
Tem passadores de droga em Nova Orleães? Apercebeu-se de que acertara numa zona vermelha; o rosto de Elizabeth Caley luzia de suor e estava a ficar cada vez mais agitada.
Oh, Deus, o Robert vai ficar muito zangado, isto é terrível. Sabe, está em vias de concretizar um grande negócio e...
Só preciso de um nome, Mistress Caley, alguém que normalmente contacte naquela cidade.
Não, não, por favor, se isto alguma vez constasse, se alguém de lá viesse a saber...
Pareceu desmoronar em frente dos olhos de Lorraine, atirando-se para cima de um sofá, a chorar. A maquilhagem esborratou e a ex-actriz enfiou a cabeça entre as mãos, como se lhe doesse, soltando o cabelo preso. Continuava a suar profusamente.
Lorraine inclinou-se para a frente para lhe tocar.
Por favor, garanto-lhe que serei discreta, mas compreenda que preciso de interrogar todas as pessoas possíveis. Quer que eu encontre a sua filha, não quer?
Sim, sim, quero murmurou Elizabeth. De repente, o seu corpo começou a tremer incontrolavelmente e ela gritou: Phyllis, Phyllis, Phyllis
Phyllis veio a correr, no preciso momento em que Elizabeth perdia o controlo sobre si mesma. A urina deslizou-lhe pelas pernas abaixo, os braços e as pernas agitavam-se espasmodicamente e a cabeça fazia movimentos bruscos.
Está tudo bem, estou aqui, estou aqui, Mistress Caley, agarre-se a mim, isto já lhe passa, agarre-se bem a mim. Oh, meu Deus, por amor de Deus, ajude-me, ela vai ter um espasmo...
Peters apareceu a correr e, entre os dois, ajudaram-na a sair do solário. Lorraine foi atrás deles até ao vestíbulo e ficou a ver Peters levar a patroa em braços escadas acima.
É favor ficar por aqui disse o mordomo a Lorraine em tom irado.
Isso mesmo, deixe-a em paz! reforçou Phyllis.
Lorraine suspirou de irritação, porém nada podia fazer. Tinha consciência de que, naquele momento, pouco bom senso poderia esperar de Mrs. Caley, não parecendo valer a pena permanecer naquela casa. Foi ao solário buscar a bolsa e os cigarros. Uma empregada estava a levantar os tabuleiros do chá.
De repente, Lorraine pegou no bule do chá e cheirou o conteúdo; sentiu o odor a menta e a algo mais, de origem herbácea. Voltou a cheirar.
Dá-me licença que leve o que tem na mão, Mistress Page? Era o soturno Peters.
Que raio é isto?
Apenas um medicamento à base de plantas que Mistress Caley manda vir.
De onde?
Peters pegou no tabuleiro.
Da Casa de Produtos Naturais, creio que é assim que se chama. Desculpe, espero que não fique ofendida, mas porque a incomoda tanto? A senhora está muito doente e é uma tragédia vê-la assim, precisamente quando começava a recuperar e...
Sim, sim... fazendo lembrar bastante o Sunset Boulevard... mas gostaria de saber quem é que acabará na piscina?
O mordomo fitou Lorraine duramente e não escondeu o desdém que sentia.
Talvez não fosse má ideia a senhora ter cuidado, senão, poderá calhar a si.
Dito isto, retirou-se. Lorraine ia a segui-lo quando a criada deu uma pequena tossidela nervosa. Lançou uma olhada furtiva para o sítio onde Peters desaparecera empertigadamente antes de sussurrar a Lorraine:
Ela recebe aquilo da terra dela, minha senhora, não é nenhum remédio.
Desculpe, que foi que disse?
A rapariga mordiscou o lábio inferior e depois fez menção de se afastar de Lorraine, assustada.
Espere aí. Está a falar do chá? Phyllis entrou apressadamente.
Volta para dentro, Sylvana, vá, depressa.
Sylvana lançou um olhar temeroso a Lorraine antes de se afastar apressadamente.
Lorraine voltou-se para Phyllis com ar preocupado.
Mistress Caley já está melhor?
Phyllis assentiu com a cabeça e encolheu os ombros.
Dormirá até ficar bem.
Ao voltarem para dentro, Lorraine pegou em Phyllis pelo braço.
Phyllis, é melhor providenciar para que Mistress Caley faça um tratamento, caso contrário, acabará por se matar.
Sim, eu sei sussurrou Phyllis, detendo-se abruptamente a certa altura. Que foi que lhe disse ao ponto de a deixar assim tão perturbada?
Quem é o passador de droga que ela tem em Nova Orleães?
Phyllis fechou os olhos.
Oh, Deus, se Mister Caley soubesse, seria terrível. Por favor, é indispensável que...
Por amor de Deus, Phyllis, estou a tentar encontrar a filha dela! Mas se a Phyllis continua a reter informações, a contar-me meias verdades...
No preciso instante em que Phyllis ia a fazer confidências a Lorraine, Robert Caley entrou em passadas largas.
O que é que se passa aqui? Phyllis, devia estar à cabeceira da Elizabeth. Quero que fique junto dela até o médico chegar.
Desculpe, Mister Caley, irei imediatamente.
E não se afaste nem por um segundo. Se vomitar pode... Robert Caley suspirou, aguardou que Phyllis se afastasse e depois voltou-se para Lorraine. O que foi que lhe disse? Está histérica.
Estou apenas a tentar fazer o meu trabalho, Mister Caley, mas parece que todos quantos estão empregados aqui andam tão preocupados em proteger a sua mulher que...
Viu-a, acha que não precisa de protecção? perguntou-lhe ele rispidamente.
Sim, acho que precisa, sem dúvida, mas tenho a impressão de que o senhor desconhece a gravidade do estado em que ela se encontra, Mister Caley.
Como se atreve! Meto-a num centro de recuperação para ela se desintoxicar e, mal volta para casa, atira-se de novo a todas as drogas a que pode deitar mão. Pois bem, desta vez vai ficar fechada num estabelecimento, quer queira quer não...
Portanto, o senhor tem conhecimento do que ela anda a tomar?
Ela enfia pelo nariz, pela garganta ou pela veia tudo o que lhe arranjar. Ou a colocamos sob vigilância permanente ou não conseguimos sustê-la. Mas pode crer que já tentei.
Para já, Mister Caley, a sua mulher está a servir-se de drogas que podem matá-la com toda a facilidade. A quantidade que injecta em si mesma é altamente perigosa, correndo grande risco de induzir uma trombose.
Robert Caley fechou os olhos.
Oh, meu Deus, de que se trata, é heroína?
Não, são comprimidos para dormir receitados pelo médico.
Robert Caley suspirou, esboçando um gesto de impotência com as mãos. Agora só o que me faltava era algum malandro ficar a par do estado em que ela está e a história ser publicada em tudo o que é jornal. Os meus adversários adorariam, pode apostar que, com o desaparecimento da Anna Louise, estabeleceriam uma ligação entre a dependência de droga dela e...
E se for assim? interrompeu Lorraine. Robert Caley franziu o sobrolho e olhou para ela. Teria a noção exacta do tipo de drogas que a mulher tomava? Sabe quem lhe fornece a droga em Nova Orleães? A sua mulher tem um hábito muito dispendioso, Mister Caley, e ou ela leva material consigo ou arranja-o por lá... Portanto, talvez haja mesmo uma ligação.
Robert Caley sentou-se, apoiou os cotovelos sobre a mesa e enfiou a cabeça entre as mãos.
Duvido disso. Ela dispõe de uma rede muito bem organizada de pessoas que lhe fornecem o material de que porventura necessita. E pelo qual paga um elevado preço, estou certo.
Conhece alguma delas?
Sei que o contacto principal é o seu próprio médico. É uma loucura, parece uma situação irreal... Se eu der parte dele, claro que utilizará o nome da minha mulher, muito mais agora. Levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos das calças. Parecia esgotado. Proibi a entrada da Juda Salina aqui, mas isso não serviu de nada, pois a Elizabeth passou a ir a sua casa.
A Juda Salina fornecia drogas à sua mulher? Tem a certeza?
Robert Caley inclinou a cabeça para o lado.
Absoluta, mas que podia eu fazer? Pôr-lhe a Polícia em cima e depois ela transmitir o nome da cliente à imprensa?
Lorraine inclinou-se para a frente.
Não me parece que o seu médico possa praticar durante muito tempo. Foi preso há dois dias atrás e, como acho que a sua esposa não utilizou o nome verdadeiro, duvido que tenha alguma publicidade prejudicial. Bem, assim espero, não tanto por ela, mas sobretudo por si.
Obrigado agradeceu Robert Caley suavemente, sorrindo e convidando Lorraine a acompanhá-lo com um gesto. Preciso de um pouco de ar, vamos até ao jardim.
Caminharam lado a lado em silêncio ao longo do carreiro que se estendia pelo relvado bem cuidado. Quando Robert lhe dirigiu o mesmo sorriso gentil da outra vez, Lorraine sentiu que ele começava a descontrair-se.
Importa-se que lhe faça uma pergunta pessoal, Mister Caley?
Não, Mistress Page, não me importo. E se me permite uma observação pessoal, gosto desse seu novo corte de cabelo. Fica-lhe bem.
Lorraine ignorou o elogio.
Ama a sua esposa?
Robert Caley não esperava semelhante pergunta e levou um momento a responder, sacudindo a cabeça.
Claro que sim, mas talvez o termo «gostar» seja mais apropriado. Se não fosse ela, ainda andava por aí... digamos, aos caídos, a vender propriedades horizontais. Era o que eu fazia, tinha a profissão de corretor imobiliário. Na verdade, quando a conheci, estava a tentar vender-lhe uma casa.
Teve sorte observou Lorraine suavemente, vendo que os modos agradáveis de Robert Caley começavam a mudar, fazendo-o perder aquela vulnerabilidade que tanto atraía, a expressão dos seus olhos endurecendo e a sua voz tornando-se fria.
Não, Mistress Page, apaixonei-me por uma mulher linda e meiga. E agora, se não deseja fazer-me mais perguntas pessoais, vou ver a minha mulher... Oh, ofereci-lhe boleia, hoje à noite sigo para Nova Orleães no meu avião. Se quiser acompanhar-me, telefone à Phyllis, mandarei o meu carro buscá-la.
Aceito a boleia, mas chegarei ao aeroporto pelos meus próprios meios.
Muito bem. A Phyllis dar-lhe-á os pormenores sobre o hangar onde tenho o avião estacionado. Por volta das seis e meia da tarde?
Obrigada, lá estarei.
Aposto que sim, Mistress Page.
Robert Caley virou-se em direcção a casa e, sem olhar para trás, deixou Lorraine sozinha e furiosa consigo mesma. Que necessidade tivera de perguntar a Robert Caley se amava a mulher, quando sabia que ele gostava apenas muito dela?
Ia a meter-se no seu carro quando viu a ambulância privada parar em frente da casa. Demorou muito tempo a abrir a porta, reparando que os dois paramédicos entravam apressadamente em casa. Havia um terceiro carro estacionado no acesso, um Mercedes Benz escuro, de quatro portas. Passados instantes, os dois homens apareceram no cimo das escadas a amparar Elizabeth Caley. Esta vinha de óculos escuros, trazia um lenço na cabeça e soluçava, completamente dependente do apoio dos dois homens; porém, não opôs a menor resistência quando a ajudaram a entrar na ambulância.
Phyllis e Robert Caley vinham atrás, acompanhados por um homem alto, de fato cinzento e pasta de médico na mão. Lorraine não podia adiar a sua partida por mais tempo, sobretudo quando os três se voltaram na sua direcção.
Adeus, até logo gritou Lorraine, arrependendo-se logo a seguir de não ter dito algo mais apropriado, sobretudo depois de passar pela ambulância e vislumbrar Elizabeth Caley pouco antes de fecharem as portas. Esta soluçava, inconsolável, repetindo incessantemente o nome da filha. Anna Louise... Anna Louise...
Lorraine contara encontrar um avião pequeno, no entanto Robert Caley possuía um Citation Jet de 1993, que fez o motorista de táxi russo assobiar de indisfarçada admiração. Quando ia a pegar na sua mala, um jovem louro bronzeado desceu lestamente as escadas do avião.
Mistress Page? O sorriso aberto parecia demasiado níveo. Chamo-me Edward Hardy; sou o piloto de Mister Caley. Permita-me que leve a sua mala. Mister Caley está um pouco atrasado, mas telefonou a dizer que não demora muito. O que não é problema, visto ainda não termos autorização para descolar.
Lorraine entrou no avião e Edward seguiu na sua frente para lhe indicar uma poltrona de recosto, forrada em cabedal macio. Guardou-lhe a mala num compartimento à ré do aparelho, mantendo uma conversa amigável.
Se precisar da casa de banho, fica além, e o quarto é logo a seguir.
Lorraine lançou-lhe um olhar perscrutante, porém verificou que não houvera a menor malícia.
Para o caso de precisar de se lavar, ou o que porventura as senhoras fazem. Entretanto, posso oferecer-lhe uma bebida? Temos champanhe, chardonnay gelado ou um belo merlot, se preferir. Também há gim, uísque, martini, ou posso preparar um cocktail... O que desejar.
Lorraine sentou-se na poltrona com muito pouco à-vontade.
Basta água gelada, se faz favor.
Um diminuto homem chinês apareceu, trazendo um cesto fundo e um tabuleiro enorme tapado com folha metálica.
Viva, como estás? Yung Sin, esta senhora é Mistress Page. Lorraine sorriu ao ver o homem começar a mostrar-lhe os vários pratos tapados que trazia.
Gosta de lagosta, Mistress Page? perguntou ele.
Gosto.
Vindas do Maine, de avião.
Abriu uma mesinha, equipando-a destramente com toalha e guardanapos brancos, taças com flores, talheres e copos de cristal trabalhado.
Lorraine pegou numa revista Vogue, cujas páginas folheou. Teria Anna Louise Caley estado naquele mesmo lugar a ler uma revista semelhante?
Conhecia a Anna Louise? perguntou a Edward, que voltava a encher-lhe o copo.
Sim, claro.
Era o senhor quem pilotava o avião no dia quinze de Fevereiro do ano passado?
Sim, era.
Lorraine sorriu, bebendo a água aos goles.
A Anna Louise telefonou para casa?
É verdade. Temos telefone a bordo, deseja fazer alguma chamada?
Não, obrigada. Como é que ela esteve durante o voo?
Estive sempre no cockpit.
Mas deve ter-lhe dado as boas-vindas a bordo.
Sem dúvida. Estava como de costume, sabe, miúda engraçada, sempre muito simpática.
Trabalha para os Caley há muito tempo?
Vai para oito anos.
Portanto, conhecia a Anna Louise muito bem, não? Edward hesitou e depois pousou as mãos nas ancas.
Ela era a filha do meu patrão, minha senhora, era uma menina simpática, mas eu nunca a conheci, nunca a encontrei lá fora, se é a isso que se refere.
O senhor é um homem muito bem-parecido, Edward.
Também sou casado, Mistress Page, e tenho um filho de dois anos. Jamais tomaria qualquer iniciativa que pusesse em perigo o meu emprego, o meu casamento ou mostrasse desrespeito por Mister Caley.
Como era a sua relação com Mistress Caley? Edward começava a mostrar-se irritado com as perguntas de Lorraine.
Mistress Caley é uma das senhoras mais simpáticas que conheço, sempre amável. Sei que tem tido alguns problemas, mas isso não é da minha conta. Quando está a bordo vai sempre muito calada, tem medo de voar. E a senhora, também está nervosa, Mistress Page?
Não.
Também me pareceu que não.
Ia a afastar-se quando Lorraine pousou ostensivamente a revista.
Edward, só um segundo. Não se encrespe comigo. Os Caley contrataram-me para lhes encontrar a filha, daí que seja obrigada a fazer-lhe algumas perguntas, pessoais ou não. Não é minha intenção insultá-lo, mas já muita gente me disse que a Anna Louise era uma menina simpática e querida, quando eu sei que não era assim tão simpática nem tão inocente e gostava de ir para a cama com os homens.
Dê-me licença, minha senhora pediu Edward, encaminhando-se para a porta de saída.
Lorraine suspirou, admirada com a sua própria brusquidão. Olhou pela janela e viu a limusina dos Caley aproximar-se do avião. Edward estava à espera, para trazer a mala do seu patrão. Os dois homens trocaram um sorriso afável.
Caley apareceu, acenou a Lorraine e rodeou os ombros de Edward com um braço.
Desculpem o atraso. Iremos ter problemas com a descolagem?
Não, acabei de receber luz verde, podemos partir a qualquer altura.
Óptimo, então partamos.
Caley dirigiu-se para o cockpit, mas parou e virou-se.
Mistress Page, agradeço que coloque o cinto de segurança, só por precaução. Já venho.
A descolagem foi suave, mal fez tremer os talheres impecavelmente colocados sobre a mesa de jantar. Instantes depois, o avião começava a subir e Caley regressava. Preparou um uísque para si e consultou o relógio.
O voo durará pouco mais de três horas. Daqui a uma hora jantaremos, se não vir inconveniente.
Por mim está bem, obrigada.
Espero que aprecie lagosta...
Sim, gosto muito.
Óptimo.
Sorriu e pegou na sua pasta. Sentou-se em frente de Lorraine e seleccionou alguns papéis dentro da mesma, tirando-os depois para fora. Lorraine continuou a folhear revistas, ciente da presença dele, do facto de ele não estar a prestar-lhe, aparentemente, atenção. O que a enervava.
. Se quiser pode fumar disse-lhe Robert Caley, calmamente.
Não, estou bem assim, obrigada.
Desculpe, mas tenho de ler esta papelada.
Não peça desculpa, estou-lhe grata pela boleia. Obrigada.
Ele não respondeu, centrando a atenção nos documentos. A certa altura, despiu o casaco e atirou-o para o lado. Depois desabotoou um, dois, três dos botões da camisa sem colarinho, sem desviar a atenção da sua leitura. Seguiu-se um botão de punho, depois o outro, após o que enrolou as mangas da camisa até aos cotovelos.
Caley preparou mais duas bebidas para si, falou com Edward e foi sentar-se noutra área do avião, onde se serviu do telefone durante cerca de três quartos de hora, de costas para Lorraine. Esta escutou tudo, apesar de o tom de voz ser baixo. Falou com sócios, Phyllis, para o hospital, a fim de se inteirar do estado da mulher, para o seu pessoal de Nova Orleães, ao que se seguiu uma conversa demorada com Mark, o seu assistente, e com Margaret. Escutou, praguejou por entre dentes, suspirou muito e, por fim, levantou-se para voltar a encher o copo. Deteve-se ao lado de Lorraine.
Quer mais água?
Não, estou bem.
Caley sorriu; no entanto, Lorraine não tinha dificuldade em ver que tinha a cabeça noutro lugar; portanto, passou a outra revista. Naquela altura, já lhe parecia que eram sempre os mesmos modelos a vestir fatos parecidos. Quando ele se sentou de novo à sua frente, não desviou o olhar na sua direcção.
Gosto do seu fato.
Lorraine ergueu os olhos e corou.
É novo.
Tem fome?
Só se o senhor tiver. Se quiser continuar a trabalhar, esteja à vontade.
Não era o caso. Em vez disso, estendeu-lhe a mão e conduziu-a até à mesa, disponibilizou-lhe uma banqueta de couro macio e acendeu as velas.
Durante a refeição, mal falaram. Quando terminaram, ele preparou café enquanto Lorraine voltava para o seu lugar. Não sabia se era do ar na cabina, se do calor no estômago, mas o certo é que estava com dificuldade em respirar, tal era a vontade que sentia de que ele a tocasse. Estava a ficar fora de si, não conseguia pensar noutra coisa e aquela torrente de desejo chegava a ser dolorosa.
Preciso de ir à casa de banho.
Caley apontou para o fundo da cabina, com um charuto preso entre os dentes enquanto lhe servia café e abria uma garrafa de brande para si. Lorraine fechou a porta e arquejou. Só acalmou depois de passar um pouco de água pelas faces. As mãos tremiam-lhe e sentia-se uma autêntica adolescente de dezasseis anos, com receio de que ele adivinhasse o que estava a sentir.
Sabia que o quarto ficava na porta ao lado, teve mesmo um momento de fantasia em que o imaginou à sua espera no lado de fora. Se assim fosse, como reagiria ela? Era uma loucura. Accionou o autoclismo, tentando recompor-se. Viu-se no espelho que estava por cima do pequeno lavatório tinha as bochechas avermelhadas por causa da água fria e o rímel das pestanas borrara um pouco. Pegou num lencinho de papel e passou-o por baixo dos olhos.
O fato pode parecer impecável, mas tu estás uma desgraça disse ao seu reflexo no espelho, obrigando-se a abrir a porta e a sair.
Tinha o seu café em cima da mesa, mas de Robert Caley nem sinal. Olhou para a porta fechada do quarto; teria ido para lá? Estaria, como ela fantasiara, à sua espera?
Edward abriu a porta do cockpit.
Importa-se de colocar o cinto de segurança, Mistress Page? Aterraremos dentro de dez minutos.
Lorraine assentiu com um movimento de cabeça e estava a apertar o cinto quando Edward voltou a meter a cabeça pela abertura da porta.
Só para que não se preocupe, não é Mister Caley quem fará aterrar o avião; diz que bebeu demasiado. Está a terminar um trabalho qualquer, aparecerá quando aterrarmos.
Lorraine reparou que a pasta dele desaparecera. Fechou os olhos, aliviada; o simples facto de o não ter perto acalmava-a.
Caley deitara-se na cama, a fumar o seu charuto. Tinha consciência de que bebera demasiado, porém não conseguia superar o facto de desejar Lorraine, o que o fazia sentir-se como um adolescente desajeitado. Imaginava-a a entrar e, sem precisar de dizer uma palavra, a deitar-se ao seu lado. Sentia a lenta descida em espiral do avião na boca do estômago. Teve de se obrigar a recuperar o aprumo. Consultou as horas, levantou-se, fez a barba e vestiu uma camisa lavada.
Caley juntou-se a Lorraine na altura em que baixaram o trem de aterragem. Prendeu o cinto de segurança com um estalido seco e pousou a pasta, que não abrira, ao seu lado. Lorraine ficou a olhar pela janela escura.
Apaguei as velas.
Ah, obrigado.
Dito isto, ajeitou uma revista em cima da mesa, entre eles, enquanto o avião efectuava uma aterragem suave, quase imperceptível.
Excelente piloto comentou ele.
Sem dúvida concordou.
Não olharam, no entanto, um para o outro.
A limusina aguardava-os em frente do aeroporto privado de Lakefront e, no lado de lá da pista alcatroada, as águas escuras do imenso lago salgado estendiam-se a perder de vista. Caley, ao ajudá-la a entrar no carro, perguntou-lhe onde ficaria hospedada. Lorraine sentou-se o mais afastada dele possível e abriu a bolsa para consultar os apontamentos de Rosie. Seria no Sainte Marie. O motorista esperou que o patrão lhe desse ordens para que seguisse directamente para o seu hotel.
É o mesmo hotel onde ficámos na noite em que a Anna Louise desapareceu. Voltei a alugar as duas suites, pois imaginei que quisesse interrogar o pessoal.
Lorraine assentiu e Caley virou-se para a janela olhando, aparentemente interessado, para um velho barco a vapor impulsionado a rodas, garridamente pintado, reconvertido em casino flutuante e feericamente iluminado, com um letreiro com a palavra CASINO escrita em letras resplandecentes. Seria da concorrência, imaginou Lorraine.
Se quiser, pode ficar na suite da Anna Louise...
Lorraine achou que estava a ser louca, ora receosa de se chegar a ele, ora quase disposta a aceitar uma suite no mesmo hotel. Quanto a Caley, olhava pela janela, interrogando-se sobre o que raio andava a fazer, ora evitando-a, ora convidando-a a dormir na suite contígua ao seu quarto. Se Elizabeth soubesse, teria um ataque de raiva, sempre receosa de que algum escândalo manchasse a fama de que gozava na sua terra natal.
Talvez seja melhor não observou ele suavemente. Desculpe, não quero que fique com uma impressão errada, apenas...
Apenas o quê, Mister Caley?
Virou-se para ela quando o motorista acabava de enveredar pela auto-estrada que conduzia à cidade. As casas, todas com gelosias sulistas e varandas, muitas exibindo já enfeites alusivos ao Carnaval, pareciam diminutas, aninhadas umas contra as outras no meio da escuridão, enquanto a cidade tinha um aspecto atravancado e apertado depois da expansão de LA.
É uma suite com ligação explicou, embaraçado.
Sim, já o tinha dito. O coração pulsava-lhe violentamente e sabia que o melhor que tinha a fazer era recusar o convite. Em vez disso, soltou uma pequena gargalhada, tentando brincar com a questão. Tem medo que vá ter consigo a meio da noite?
Houve uma longa pausa cheia de tensão, durante a qual ele jamais desviou o olhar de Lorraine.
Não tenho medo do que possa fazer, Mistress Page, mas sim de eu conseguir, ou não, deixar de fazer.
Gerou-se novo silêncio tenso. Lorraine aproximou imperceptivelmente a mão, que tinha em cima do banco, da dele. Não conseguia falar, e quando sentiu o toque da mão dele na sua, teve a sensação de que explodiria. Já tinham saído da auto-estrada e aproximavam-se do Bairro Francês. Lorraine ficou contente por ter uma desculpa para desviar o olhar, fingindo observar as ruas da zona histórica. A poucos quarteirões dali ficavam as torres altas e modernas de uma zona comercial semelhante à de qualquer outra na América; mas havia uma atmosfera como Lorraine nunca tinha encontrado antes: era uma cidade meio provinciana, meio cosmopolita, uma espécie de Babilónia.
A princípio, os edifícios tinham um ar atarracado e vulgar, de telhados planos, na sua maior parte prédios de dois pisos, com as frentes de estuque pintadas dentro de uma gama restrita de cores suaves que, em tempos, tinham sido brilhantes ocre, creme, rosa, mostarda. Todas dispunham de janelas amplas e elegantemente protegidas por gelosias e umbrais de porta, que muitas vezes se destacavam por estarem pintados num tom intenso de verde; porém, o que mais se salientava era o ferro forjado, magnificamente trabalhado, com que varandas, galerias, passeios e umbrais de janelas eram fartamente decorados. Nos seus tempos de glória, devia ter sido um lugar digno de se ver, reflectiu Lorraine, porém naquela altura, apesar de ser noite, a tinta a desbotar nas paredes e a cair nas cercas de madeira, assim como os cestos pendentes e as jardinieres deixadas ao abandono, indiciavam uma certa degradação.
Caley fez uma ligeira careta quando a multidão começou a adensar e os edifícios surgiram cada vez mais engalanados com a púrpura, dourado e verde das bandeiras de Carnaval, máscaras e serpentinas. Tiveram de abrandar de novo para não atropelar os pedestres que, de todas as idades e nacionalidades, enchiam as ruas.
Desculpe, mas esta confusão só abrange mais alguns quarteirões: tudo o que é turista converge para aqui.
Lorraine sabia que também ele estava a falar sobre ninharias para disfarçar a tensão entre ambos e, ao virarem para a esquerda, ergueu os olhos e avistou um letreiro de rua que dizia: Bourbon. Mais ao fundo do quarteirão podia ver os letreiros em néon com raparigas nuas e X triplos dos clubes de strip, e não havia frente de loja por onde passassem que não fosse um bar de jazz, um restaurante ou um centro de venda de lembranças a transbordar de T-shirts de mau gosto, canecas, bonecos, máscaras de Carnaval e chapéus de cowboy. A música e o cheiro de especiarias enchia tudo, passando pelas frinchas rasteiras das portas e, às vezes, vindo de varandas amplas no alto; por todo o lado se via gente a comer, beber, cantar, mendigar; a rapaziada nova a olhar e a chamar as raparigas; turistas idosas firmemente agarradas às suas bolsas e aos braços dos seus acompanhantes. Todos, porém, tinham saído para a noite e para «o bairro»: a vida nua e crua do lugar atingiu Lorraine como uma golada de aguardente pura, e, de repente, o que a rodeava deixou de parecer tão desbotado e vulgar. No passeio, um puto negro de dez ou doze anos dançava sapateado sem o menor esforço, com umas sapatilhas com aplicações metálicas nas pontas. Tinha um sorriso rasgado e insinuante na metade inferior do seu rosto; no entanto, Lorraine captou-lhe a idade e a sabedoria nos olhos e, subitamente, sentiu o poder do passado. Apercebeu-se de que aquele lugar já vira muitas fraquezas humanas; ali, não havia nada que não pudesse acontecer.
Um pouco mais adiante, voltaram a ganhar velocidade. Foram surgindo ruas mais tranquilas e as mercadorias à venda foram sendo substituídas por jóias, arte e antiguidades, expostas em lojas mais elegantes, encerradas àquela hora da noite.
Estamos quase a chegar ao hotel, Mister Caley anunciou o motorista ao virarem para um quarteirão quase tão bem preservado como um museu. Lorraine afastou a mão. Pararam em frente de um requintado edifício de três andares, com varandas amplas e um trabalho em ferro forjado tão delicado e elaborado como a renda de um vestido de baile. Nada indicava tratar-se de um hotel, mas, quando o motorista tocou à campainha de um par de portas duplas enormes, apareceu um jovem impecavelmente fardado que cumprimentou Caley pelo nome com afabilidade.
Fê-los passar por uma porte cochère em arco que deitava para um pátio pavimentado, iluminado por lanternas. Lorraine apercebeu-se de que acabara de penetrar num mundo afastado do burlesco de mau gosto das ratoeiras para turistas, um mundo onde todos os aspectos relacionados com o que a rodeava tinham sido cuidadosamente concebidos de modo a que nenhum dos sentidos ficasse por satisfazer e apaziguar. As árvores exalavam um intenso perfume adocicado, estranho a princípio, mas depois delicioso, revigorante, enquanto, ao fundo, o som de duas fontes soava muito ao de leve no meio de uma série de samambaias, palmeiras, árvores de citrinos e trepadeiras que ’ cresciam luxuriantemente e, na aparência, a esmo nos terrenos que circundavam os pátios e as varandas. No entanto, Lorraine percebeu imediatamente que aquela negligência agradável resultara de um grande investimento em termos de tempo e dinheiro: o equilíbrio entre o selvagem e o cultivado era perfeito como uma nota de música.
O jovem fê-los entrar para um gabinete pequeno e graciosamente mobilado. Pareceu decorrer uma quantidade enorme de tempo durante o qual Caley trocou amabilidades, primeiro com o rapaz, depois com o gerente, ainda mais cortês e urbano, antes de o paquete levar as malas. Lorraine notou, melancolicamente, que o Sul, embora talvez em circunstâncias ligeiramente reduzidas, ainda se conduzia com o seu velho ritmo de grande dama.
A tenente Page desejará fazer algumas perguntas ao seu pessoal disse Caley ao gerente quando, por fim, este os acompanhou até ao elevador.
Eu e o meu pessoal estaremos à disposição em tudo em que pudermos ajudar.
O paquete esperava junto do elevador, uma graciosa gaiola de espelhos e talha dourada. Apesar do espaço confinado, Lorraine e Robert Caley mantiveram-se bem afastados um do outro e não trocaram uma palavra. Ao chegarem ao terceiro piso, Robert tirou as chaves ao rapaz e foi à frente.
Acompanhe a tenente à sua suite, se faz favor ordenou, sem olhar para trás.
Sim, senhor. Importa-se de me acompanhar, minha senhora?
Lorraine foi levada até uma porta branca lisa; saltava à vista que o hotel era demasiado requintado para assinalar as suas portas com números, ou mesmo nomes. Um pouco mais à frente, no corredor, a porta do quarto de Caley fechou-se.
Boa estada, minha senhora.
Obrigada.
Sozinha, olhou em seu redor: a saleta era ampla e arejada, iluminada por um pesado candelabro de cristal e Lorraine deu-se conta, mais uma vez, de que o sofá-cama, a lareira e os espelhos magníficos, assim como os tapetes com motivos, macios e delicados ao toque como a orelha de um gato, eram antiguidades genuínas, não as imitações pomposas tão do agrado de todos os hotéis caros por onde já passara.
A seguir ficava o quarto. Do aro por cima da cama dupla pendia um meio dossel bordado, e a zona separada de vestiário e banho encontrava-se defendida da varanda por portas de vidro altas com cortinas de musselina. Lorraine abriu-as e saiu para a varanda, reparando que havia uma escada em espiral, provavelmente para efeitos de incêndio, coberta de trepadeiras e dentilárias, que dava acesso à varanda de baixo e, a seguir, ao chão. Lorraine perguntou-se, meio entristecida, se Anna Louise não teria saído através daquele meio. Se assim fosse, só alguém que estivesse no pátio é que poderia tê-la visto.
Desfez as malas, pendurou as roupas novas e ainda pensou em contactar imediatamente Rosie e os outros colegas, mas depois concluiu que, se o fizesse, talvez tivesse de dar algumas explicações. Foi à casa de banho, colocou os poucos cosméticos em cima do imponente lavatório de mármore e preparou um banho de imersão bem quente.
Nick Bartello bateu à porta de Rosie no momento em que Rooney aparecia ao fundo do corredor.
Tenho cinco camas no meu quarto, e tu quantas tens, Nick?
Oh, só uma de casal, outra de solteiro e mais uma de criança!
Rooney encolheu os ombros.
Ora, não pagamos mais por isso. Rosie abriu a porta e sorriu-lhes.
Olá, entrem. O quarto é enorme e tem casa de banho privativa, uma delícia.
Alguma notícia da Lorraine? perguntou Nick, sentando-se num sofá recheado a espuma e estofado com o mesmo tecido e franjas dos cortinados. Havia um velho aparelho de televisão empoleirado em cima de um armário alto com gavetas, a imitar o antigo. Os enormes abajures em náilon estavam cheios de pó, e o quarto cheirava a tabaco e a ambientador.
Ainda não, mas liguei para casa, para o escritório e ninguém atendeu, portanto é provável que venha a caminho,
Estou com fome declarou Rooney sem mais preâmbulos, e Rosie voltou a sorrir. Que tal irmos comer alguma coisa, passar uma vista de olhos por aí, quem sabe darmos mesmo uma volta pelo Bairro Francês? Como é a nossa primeira noite, acho que podemos descontrair um pouco, não? Vamos disse Rooney, ansioso por uma cerveja. Nick hesitou, depois encolheu os ombros. Por mim, tudo bem, mas olhem que temos de nos pôr à perna com a Polícia daqui, Bill, para tentarmos arranjar alguém que nos passe alguma informação lá de dentro.
Pelo que sei, qualquer chui fará o que for preciso por umas massas extra.
Ei, podemos apanhar o eléctrico, dar uma volta e visitar os casinos flutuantes do rio.
Nick olhou para Rooney quando Rosie saiu.
A parva da gaja pensa que estamos em férias. Rooney encolheu os ombros.
Esta noite podemos estar... por que raio não?
Dizes bem, pá, porque não? Nick saiu atrás de Rooney, enquanto Rosie fechava o quarto à chave, de panfletos e guias turísticos na mão. Mas já passaram cinco dias, o que só nos deixa nove para deslindar o caso.
Tenho andado ansiosa por isto comentou Rosie quando desciam as escadas, passando por quatro idosas com as permanentes encrespadas a escaparem-se-lhes dos chapéus de palha onde se lia a frase «Laissez lês Bons Temps Rouler.
Caramba, Rosie, escolheste um lugar cheio de velhadas observou Nick.
Não comece, Nick Bartello. Como disse, tivemos sorte em arranjar lugar numa zona central como esta, com o Carnaval mesmo aí a rebentar.
Mas não há dúvida de que é insistiu Nick quando um grupo de mulheres ainda mais tagarelas entrou na recepção, ao encontro do seu guia turístico.
Senhoras, estamos todas preparadas? Hoje à noite vamos ao Museu do Vodu, um lugar de grande interesse histórico. Agradeço que tenham os vossos bilhetes especiais de grupo à mão berrou o untuoso guia de cabelo preto.
Rosie enfiou a mão no braço de Rooney.
Quero ir lá. Ao Museu do Vodu.
Primeiro vamos comer, está bem? sugeriu Rooney, sentindo o apelo da cerveja.
Lorraine manteve vestido o robe, cortesia do hotel, enquanto secava o cabelo, consciente da porta que dava para o quarto adjacente e que se mantivera cerrada. Caley, na sua suite, fez alguns telefonemas, o primeiro dos quais ao pai de Saffron Dulay, a combinar uma reunião.
Eram quase dez e meia da noite; no entanto, telefonou a todos os seus sócios a informá-los de que estava na cidade e precisava de reunir com eles. Numa situação normal, teria esperado pelo dia seguinte; todavia, necessitava de manter a cabeça ocupada. A porta que interligava as duas suites atraía-O| como um íman. Teria ele dito mesmo aquilo, perguntou Lorraine a si mesma, ou fora confusão sua? Não teria ele dito que tinha medo do que poderia fazer? Merda murmurou ela, ciente do ridículo da situação. Volta a fazer as malas e sai daqui antes que faças algo de que venhas a arrepender-te.
Porém, deixou-se ficar, compenetrando-se de que devia ir até à recepção e começar a fazer algumas perguntas. Aquele era o quarto de onde Anna Louise desaparecera; o vestido que ia envergar estivera em cima daquela cama e Caley afirmara ter visto a bolsa dela na salinha de espera. Que porta utilizara para entrar na suite? A que estabelecia a ligação com a do lado? Não dissera que a encontrara trancada? Não conseguia lembrar-se. Acabou de secar o cabelo, resolveu ir para a cama e guardar as perguntas para a manhã seguinte. Lorraine fechara as portas que deitavam para a varanda e estava a puxar a coberta da cama para trás quando ouviu uma batida na porta principal. Ao ouvir a chave girar na fechadura, sentiu um aperto no coração.
Uma criada espreitou.
Oh, desculpe, deseja a cama preparada, minha senhora?
Não, obrigada. Ah... um segundo. Entre.
A criada manteve-se à entrada do quarto. Tinha na mão dois rebuçados de hortelã-pimenta, embrulhados em papel metálico, e fez uma vénia a Lorraine enquanto esta se apoiava na cama.
Importa-se que lhe faça algumas perguntas? inquiriu Lorraine em voz branda.
Não, minha senhora.
- Lembra-se da Anna Louise?
Sim, minha senhora, ela ficava aqui muitas vezes. Lorraine aproximou-se um pouco mais.
Estava de serviço na noite em que ela desapareceu? Foi a quinze de Fevereiro do ano passado.
Oh, sim, estava sim, minha senhora.
Lorraine viu as horas no seu relógio de pulso. Eram dez e quarenta e cinco.
Preparou-lhe a cama para a noite?
Não, minha senhora, bati mas ninguém respondeu.
Mas acabou de abrir a minha porta, portanto obviamente tem as chaves, e, como eu não respondi, entrou.
Mas a senhora não tinha o aviso de «É FAVOR NÃO INCOMODAR» na porta.
E a Anna Louise Caley?
Tinha, sim, minha senhora, mas vim mais cedo do que hoje. Esta noite entraram muitos hóspedes novos, por isso atrasei-me na minha ronda.
Portanto, a que horas é que veio abrir a cama a Miss Caley no dia quinze de Fevereiro?
A criada olhou para o tecto com ar pensativo.
Deviam ser umas oito e meia da noite.
Voltou a tentar?
Não, minha senhora, não voltei, porque quando terminei a minha ronda, o letreiro continuava na porta. Eram umas dez e meia.
Obrigada. Diga-me, como se chama?
Ellie, minha senhora, Ellie Paton.
Lorraine enfiou-lhe dois dólares na mão e sentou-se na cama. Se Anna Louise Caley ficara ali muitas vezes, devia conhecer a rotina do pessoal da noite, pelo que tivera realmente a intenção de que não a incomodassem ou encontrassem.
Boa noite, minha senhora, tenha uma boa estada. Ellie fechou a porta silenciosamente e Lorraine ficou à escuta, curiosa em saber se a rapariga também iria preparar a cama de Robert Caley. Como não ouvia o menor ruído, entreabriu ligeiramente a porta e saiu para o corredor. Dali via o aviso a dizer É FAVOR NÃO INCOMODAR na maçaneta da porta da suite de Caley.
Lorraine desapertou o robe e enfiou-se no meio dos lençóis frios. Os dois rebuçados tinham sido deixados em cima da mesinha-de-cabeceira da cama, ao pé do telefone. As onze da noite aproximavam-se, por isso regulou o candeeiro de modo a diminuir a intensidade da luz. Das ruas no lado de fora do pátio chegavam vozes distantes: música, alguém a cantar. Deixou-se ficar deitada, aguardando, tentando imaginar o que ele estaria a fazer. Dormir, nem pensar.
Nick sentia-se estafado. Bebera de mais e a comida, muito condimentada e picante, dera-lhe uma sede dos diabos. Também sentia o clima entre Rosie e Rooney. Custava a acreditar, mas pareciam um casal de adolescentes, a provarem a comida um do outro, a mandarem vir pratos cada vez mais ridículos. O restaurante cajun, apesar de ter as dimensões de um celeiro, estava excessivamente quente e à cunha, repleto de turistas a quem «vendiam» o ambiente típico através de criados superexpansivos. Todos os estrangeiros estavam ansiosos por comer os seus camarões enegrecidos e a jambalaya. nas gordurentas toalhas de oleado em xadrez, e depois juntar os seus cartões profissionais presos aos milhares nos postes que suportavam o telhado. Uma banda tocava música zydeco, acelerada e sacolejante, enquanto a cantora se lamuriava sobre a sua rainha cajun, e casais de meia-idade se arrastavam pela pista de dança como se não se tocassem há anos. O lugar irritou-o solenemente.
Vocês dois não se importam de que me ponha a andar, pois não? Estou um bocado cansado.
Ah, não, então não quer ir de eléctrico até aos barcos do rio? perguntou-lhe Rosie.
Fica para outra altura. Vou dormir um bocado.
Fez menção de tirar a carteira dos jeans, porém Rosie susteve-o com a mão e disse-lhe: Deixe estar, Nick, é por conta da agência, lembra-se? Nick sorriu e levantou-se.
Encontramo-nos amanhã de manhã para nos cumprimentarmos ao estilo crioulo. Boa noite.
E saiu na sua passada larga, pronto a dar uma saltada a algumas das casas de strip na cidade a sério; na zona turística era tudo espectáculo, tudo preparado para ganhar dinheiro e, a julgar pelo restaurante atravancado de gente, muitos chegariam ao fim bem espremidos, provavelmente alheios ao facto de nada terem visto do que de facto se passava algumas ruas mais abaixo. Lorraine afastou o lençol para o lado e, completamente nua, pegou no robe. Sabia que, se parasse, retrocederia, mas, quando se aproximou da porta que dava para a suite adjacente, esta abriu-se. Não disseram uma palavra. Ele fez deslizar as suas mãos por entre o robe aberto e puxou-a para si. Ela apoiou a cabeça na curva do seu pescoço, inalando o seu cheiro limpo, a sabonete perfumado, e sentiu-lhe o coração a bater contra o seu ao enrolar-lhe as pernas à volta do corpo. Ergueu-a mais alto e para mais perto de si, levando-a para a sua cama e depositando-a suavemente de maneira a ficar com as costas apoiadas nos lençóis e as pernas ainda enroladas à sua cintura. Acariciou-lhe lentamente as pernas ao ajoelhar-se, até estas se abrirem para que ele lhe beijasse as coxas e o ventre. Ela sentiu-se abrir completamente quando ele a lambeu e beijou, até a fazer gemer e sentir o acesso de calor atravessá-la, levando-a a arquear as ancas para cima. Só depois de se vir com um gemido suave e ronronante é que ele se libertou da sua toalha. A seguir fê-la apoiar a cabeça na almofada e deitou-se a seu lado. Acariciou-a e percorreu-lhe o corpo com beijos suaves e meigos. Deitou-se sobre ela e aninhou a cabeça no seu pescoço, até os seus lábios encontrarem a boca dela e as línguas de ambos se tocarem. Só depois de levantar a cabeça de modo a chegar mais perto dele e de sentir a sua paixão voraz é que lhe guiou a mão até ao seu pénis erecto, como que a pedir-lhe permissão para fazerem amor, e ela murmurou: «Sim... sim...» Caley era o amante mais experiente que já conhecera. Nunca pareceu, em nenhum momento, estar apenas a fornicá-la; era simultaneamente terno e vigoroso, mas a certa altura começou a aperceber-se de que ele queria apenas dar-lhe prazer, conduzi-la ao orgasmo, perguntando-lhe suavemente do que gostava, do que queria que fizesse. E respondeu-lhe, sem embaraço; deu-lhe a sensação de estar no controlo da situação, quando sabia que era o contrário. E só depois de começar a fazer amor com ele, acariciando-o por sua vez, é que o sentiu retrair-se ligeiramente, o que a levou a afastar-se.
Deixa-me amar-te...
Ele fechou os olhos ao senti-la deslizar para cima dele e olhá-lo no rosto. Ela aproximou mais o seu rosto.
Olha para mim, abre os olhos... Quero que me vejas, me conheças.
Robert abriu os olhos lentamente. O amante experiente desaparecera; em vez disso, ela viu nele pura inocência, quase medo. Afagou-lhe o rosto.
De que tens medo?
De ti respondeu em voz branda, pois as inúmeras mulheres que fornicara, mulheres como Saffron Dulay, nunca o tinham tocado tão profundamente como Lorraine. Não estava acostumado a aceitar prazer sexual, apenas a dá-lo, e não havia truque que não conhecesse. Naquela noite, porém, não havia jogos, apenas duas pessoas dominadas pela mesma paixão física uma pela outra, e quanto mais ela o excitava, mais ele se descontraía e se permitia ser desejado, até se tornarem iguais. O seu primeiro orgasmo deixou-o arquejante. Os seus corpos luziam de suor e permaneceram agarrados um ao outro até a exaustão os fazer resvalar para o sono. Acordaram alternadamente, despertando e excitando o outro. A noite estava a ser longa, a madrugada iria chegar e, no entanto, não se cansavam um do outro.
Estou a apaixonar-me por ti, Lorraine Page sussurrou-lhe Caley.
E eu por ti, Robert Caley respondeu-lhe ela com um sorriso, apoiando-se sobre um cotovelo e olhando para o belo rosto. Para mim, já faz muito tempo.
Caley riu-se suavemente.
Para mim muito mais, meu amor, nunca acreditei que voltasse a sentir tudo isto.
Voltar a sentir? troçou Lorraine. Caley atraiu-a para mais perto de si.
É como se fosse a primeira vez que estou com uma mulher que não se põe com jogos, pois... Beijou-lhe os lábios. Não precisamos disso e, o que ainda é mais importante, eu não quero. Dito isto, qual foi a última posição?
Lorraine riu-se e contornou-lhe o rosto à luz fraca que reinava no quarto, sentindo-lhe o queixo áspero, agradada pelo facto de estar tão macio quando tinham começado a beijar-se.
Faz-me recordar.
Rooney observou o enorme casino flutuante; pomposo como uma árvore de Natal graças às suas fiadas de lanternas douradas e à coroa iluminada, no mesmo tom, que rodeava a chaminé, fazia saltitar o reflexo das luzes no vasto Mississipi.
Talvez não fosse má ideia aproveitarmos a nossa vinda aqui para jogarmos umas fichas, não? sugeriu Rosie.
Excelente ideia, nunca entrei num casino flutuante concordou Rooney.
Continuaram de braço dado, Rosie completamente à vontade com o facto.
Sabes, segundo os jornais, dois destes casinos flutuantes foram à falência. Na verdade...
Rosie parou e olhou em volta.
Não devemos estar longe do local onde o Caley pretente construir o seu casino.
Rosie ia a puxar dos seus mapas de ruas quando ele lhe pegou na mão e a meteu debaixo do seu braço.
Começamos a trabalhar amanhã. Talvez não fosse má ideia voltarmos ao hotel.
Por mim tudo bem. Ele sorriu.
És uma excelente companhia, Rosie. Gostei desta noite, boa escolha de restaurante, ambiente genuinamente típico. Não percebo porque é que o Nick se pôs ao largo daquela maneira, que filho da mãe tão anti-social.
Ainda bem que o fez declarou Rosie, continuando a andar.
Também acho concordou Rooney sem cerimónia, apertando mais o braço dela contra si. Portanto, já foste casada, não é?
Já, e tive um filho, mas prefiro esquecer essa parte da minha vida. O meu filho não, mas sabes, Bill, eu era uma mãe péssima. Tinha um problema de alcoolismo; e agora eles mudaram-se para a Califórnia. O meu marido voltou a casar, tal como aconteceu com a Lorraine e o seu ex, que arranjou outra mulher e deu estabilidade às filhas. Com o meu filho foi o mesmo. Mas um dia, bem, espero que um dia ele venha ver-me para eu poder explicar-lhe que, independentemente de tudo o que aconteceu, nunca deixei de o amar.
Eu teria gostado de ter um filho observou Rooney melancolicamente.
Talvez seja melhor irmos para junto dos grandes hotéis, onde deve ser mais fácil apanhar um táxi disse Rosie, como que adivinhando os seus pensamentos.
Voltaram para trás e prosseguiram a caminhada em passo lento.
Costumas pensar nisso? indagou Rooney.
Pensar em quê? perguntou Rosie.
Em ter outra família?
Rosie parou e ergueu os olhos para o rosto redondo de Rooney.
Não penso noutra coisa, Bill, mas já tenho quarenta e dois anos...
Apareceu um táxi vazio e Rooney interrompeu-a, dirigindo-se para a rua pavimentada, a fim de lhe fazer sinal.
Como se chama o nosso hotel, Rosie? berrou Rooney.
É o Sainte Marie respondeu, enquanto Rooney lhe abria a porta do lado dos passageiros.
O motorista fez um sinal de entendimento e ia a fazer uma curva em U quando Rooney lhe perguntou:
Conhece algum casino novo que esteja a ser construído por estes lados?
Ouvi dizer que andam a pensar nisso. Esses ricaços dizem sempre que estão a criar postos de trabalho para os locais, mas é tudo conversa. Trazem gente de fora, não contratam pessoal daqui, dizem que não têm classe suficiente, a inteligência que têm não chega para lidarem com um baralho de cartas. Para gastarem lá o seu dinheiro já prestam. São corruptos, a cidade inteira é corrupta, eu sei porque tenho um primo que é polícia.
Não me diga observou Rooney, inclinando-se para a frente com ar interessado.
Nick caminhara um pouco mais do que planeara: seguira pela Dauphine durante um bom bocado, satisfeito por se afastar das luzes brilhantes, e depois virara à esquerda, algures. Mas aquele bar barato já o entediava; em tempos devia ter sido uma casa de strip e ainda tinha a lâmpada pintada de cor-de-rosa que tornava as raparigas, envelhecidas e de pele acinzentada, mais jovens, assim como o palco, rodeado de uma miríade de espelhinhos. A velha tubagem eléctrica e de água pendia agora das paredes, cobertas de cartazes dos anos setenta, em mau estado, mas nem mesmo a luz vermelha conseguia ocultar a sujidade e a negligência. Havia rapaziada a entreter-se com as máquinas vídeo de póquer, enquanto uma banda de jazz, formada por quatro elementos de idade já avançada, tocava com surpreendente vivacidade e expressão sob a velha esfera reluzente.
Os indivíduos eram bons, mas, como Nick já se fartara, fez sinal à empregada de mesa a pedir a conta e levantou-se. Entretanto, dois rapazolas começaram aos gritos com um velho negro que se mantivera sentado ao balcão do bar, praticamente durante todo o tempo em que Nick ali estivera. O velhote tocara um pouco e mostrara-se exímio com o seu trombone. Durante a sua actuação, a casa vibrara de entusiasmo. Um dos rapazes deu-lhe um empurrão que o fez balançar perigosamente no alto do seu banco. Nick, sempre de olho neles, puxou da carteira e pagou à indolente criada de mesa, que parecia mais preocupada com a gorjeta do que com a algazarra.
Os dois rapazes, ambos negros, já tinham começado a gritar a sério.
Nós pagámos, pá, agora queremos a mercadoria, estás em dívida para connosco.
O barman, de olhos arregalados, ia-se chegando para junto do telefone. Os miúdos tornaram-se mais barulhentos.
Nick ia já perto da porta quando a arma surgiu. Fez-se silêncio. Ninguém parecia disposto a mexer um dedo que fosse.
Vamos estoirar a tua cabeça. Premiram o cano contra o rosto do velhote.
Tudo em Nick lhe dizia que se fosse embora; no entanto, algo no velhote e no seu trombone escaqueirado o levou a ficar.
Ei, tem calma, rapaz.
O rapaz voltou-se de rompante para Nick e apontou-lhe a Magnum, evidenciando claramente, ao aproximar-se um pouco mais, que estava completamente fora de si.
A quem estás tu a dizer para ter calma, cabrão? Não te metas nisto, não é da tua conta.
Nick acercou-se mais.
Estás a ameaçar-me?
Queres levar um tiro na cabeça, pá?
Nick colocou-se em posição atrás do velhote, que tremia visivelmente.
Olha, rapaz, sugiro que guardes esse brinquedo que tens na mão e esfries porque estás a enervar este pessoal todo.
És da Polícia?
Não, sou apenas um gajo que deu uma saída para desfrutar da noite respondeu Nick com um sorriso, entrando imediatamente em acção. Foi rápido, atingindo o rapazote na virilha e, logo a seguir, torcendo-lhe o braço atrás das costas. Larga isso... A arma estatelou-se no meio do chão. Nick afastou-a com um pontapé, porém, nenhuma pessoa fez menção de a apanhar. Pega no raio da arma, pá disse Nick ao velhote, que saiu de cima do banco, pousou o trombone em cima do balcão do bar e apanhou a arma.
Muito bem, agora está tudo calmo. Vocês dois ponham-se ao fresco.
Nick empurrou o rapaz pedrado, que caiu de costas no chão, sendo depois ajudado pelo amigo. Espumava de raiva.
Hei-de apanhar-te, cabrão!
Afastaram-se a correr, sem deixar de gritar impropérios, enquanto Nick ajudava o velhote a sentar-se de novo no banco.
Está tudo bem consigo?
Claro, irmão. Vai uma cerveja?
Nick não aceitou, mas agradeceu com um aceno de cabeça. O barman afastou a arma e pousou uma cerveja gelada em cima do balcão. O velhote voltou-se para o quarteto.
Então, rapazes, perderam o pio?
O quarteto retomou funções, e o bar encheu-se novamente de ruído, enquanto o velhote mandava servir uma rodada por sua conta. Depois voltou o rosto enrugado para Nick e sorriu, exibindo quatro dentes de ouro, dois em cima, dois em baixo.
Este bar é meu, e você quem raio é?
Nick, Nick Bartello.
Cumprimentou Nick com a mão curtida pelo tempo.
Chamo-me Fryer Jones. Bela manobra a sua. É da Polícia?
Já fui, há muito tempo.
Ah, exclamou Fryer, tomando um gole da sua cerveja.
A que se deveu aquela cena? O velho mexeu no trombone.
Nada de especial. Acontece quase todas as noites, eles passam-se. Sou obrigado a pagar umas massas para obter protecção, mas, como pode ver, a casa não é nenhuma mina de ouro. Chamamos a Polícia, mas essa pede ainda mais dinheiro. ÀS vezes deixamo-los escavacar um bocado a casa, não me incomoda, quero lá saber, os meus tempos já lá vão.
Nick bebeu a sua cerveja, que foi prontamente substituída por outra.
Quer então dizer que tem uns negócios paralelos, é? O velhote soltou uma risada.
Para quem já não é polícia, não há dúvida de que faz muitas perguntas. Mas que raio é que anda a fazer por estas bandas?
Contrataram-me para encontrar a Anna Louise Caley. O velhote fez sibilar o ar por entre os dentes.
Ah, a pequena dos Caley, tem saído muita coisa sobre ela na imprensa.
Portanto, sabe de quem estou a falar.
Nick não contara com uma resposta tão directa.
Conheço a mãe dela, todos sabem quem a Elizabeth Caley é, pá. E se quer um conselho...
Aceito qualquer um que tenha para me dar retorquiu Nick, simpatizando com o velhote.
Ponha-se a andar daqui para fora ou ainda arranja grandes sarilhos, homem.
Porquê?
Como já lhe disse, muita gente passou por aqui antes de si.
Por onde, por este bar? Fryer riu, sacudindo a cabeça.
Não, homem... Neste momento a cidade anda aos pulos, a rebentar de milhões de dólares, e só meia dúzia é que consegue apanhar as migalhas... o que turva as águas. Basta agitá-las um pouco para, como lhe disse, se ficar metido em grandes sarilhos. Esta noite, se calhar, já arranjou sarna para se coçar. Esses dois putos... Fryer passou os dedos no seu trombone. São da pesada.
Não me pareceram nada da pesada observou Nick, acabando de beber a sua cerveja.
As aparências enganam, homem, alguns têm ligações com bandidos, outros têm raízes profundas... Estou só a dar-lhe um conselho de amigo. E agora, se me dá licença, vem aí a minha segunda actuação, gosto de manter as engrenagens oleadas.
Nick levantou-se do banco alto, enquanto Fryer tirava algo que tinha ao pescoço, algo que parecia serem pequenos ossos de animais presos a uma tira de cabedal.
Tome, irmão, ponha isto e agora vá com calma. Ajuda a espantar o demónio, este é dos verdadeiros. Agora, vá em paz.
Fryer viu Nick sair e, depois, voltou-se para o seu barman com expressão preocupada.
Estupor chanfrado.
Fez sinal a um jovem que bebia sozinho, ao fundo do bar, que saiu atrás de Nick.
O barman meteu as garrafas de cerveja que Nick acabara de esvaziar numa grade que tinha por baixo do balcão. Mesmo ao lado desta encontrava-se uma espingarda de dois canos; se Nick Bartello não tivesse ido em socorro de Fryer, os rapazes teriam levado um tiro na cabeça. Ele, porém, jamais o saberia. Fryer Jones era velho e só chegara àquela idade por se precaver. Estavam ali vários tipos, a beber tranquilamente, prontos a entrar em acção; no entanto, Fryer costumava resolver as coisas ao seu modo e, se não lhes fizesse sinal, deixavam tudo por conta dele.
Anda à procura da rapariga dos Caley disse Fryer, soprando no bocal do seu trombone e limpando-o depois à camisa.
O barman lavou uns copos, observando a sala com um olhar mortiço, vendo que começava a encher. Na verdade, o ambiente só aquecia depois da meia-noite, altura em que a maioria dos clientes habituais começava a chegar, vinda de trabalhar em outros clubes e restaurantes. Alguns dos músicos, depois de terem estado a tocar velhos êxitos a noite toda, sentiam necessidade de improvisar um pouco, por isso iam até ao bar de Fryer Jones.
Aquelas sessões representavam quase um ritual nocturno. Muitas prostitutas iam até lá de madrugada para umas cervejas e umas danças, antes de se porem a dormir o resto do dia.
Fryer dirigiu-se para a pequena plataforma onde se viam umas cadeiras de plástico muito usadas, um microfone e uma caixa acústica de cerca de 1956. Distribuiu umas palmadinhas em ombros, depois deteve-se junto de uma jovem negra com o cabelo penteado em trancinhas enfeitadas com contas de metal. A rapariga abanava-se com um jornal dobrado, de olhos fechados, a imitação barata de um vestido de cetim colado ao seu jovem corpo pubescente que, em vez de tapar, salientava os pequenos seios de grandes mamilos castanhos.
Olá, Sugar May, a tua mãe sabe que andas por aqui a estas horas?
Claro que sim. Quero ser cantora, Fryer, e ela sabe que venho para aqui, mas seja como for não se interessa.
Hum, disseste que querias ir para junto da tua tia que mora em LA, que precisavas de duzentos dólares, portanto, porque é que não estás a cantar num daqueles clubes chiques de Hollywood?
Sugar May encolheu os graciosos ombros franzinos.
O meu irmão levou-me o dinheiro, Fryer. O Raoul até a cereja me tirava se eu não tivesse as pernas fechadas. Já se foi embora há umas semanas. Então, deixas-me cantar?
Fryer olhou em redor e depois inclinou-se de maneira a ficar bem perto de Sugar May, puxando-lhe pelas tranças de modo a inclinar-lhe a cabeça para trás.
Diz à tua mãe que, se me manda mais parentes apertar comigo para que lhes pague protecção, enfio-lhe o meu trombone pelo rabo acima. Foi uma estupidez, percebeste, rapariga?
Não sabia que os meus irmãos vinham cá, Fryer, eles estão só passados da cabeça.
Disseram barbaridades, ameaçaram-me com uma pistola velha em frente da minha clientela, Sugar May, e estava cá um tipo de fora.
Eu digo-lhe, Fryer, a sério que digo, e quando falei que ia ficar com a minha tia Juda, não menti, juro que não.
Fryer largou-lhe as tranças.
Diz-lhe também que o tipo anda à procura da Anna Louise Caley e que este não tem cara de quem largará o osso seja a que preço for. Apareceu aqui, não é? Portanto sabe alguma coisa. E agora põe-te a andar para casa.
Sugar May, assustada, afastou-se do velho de olhos arregalados, enquanto este subia para a plataforma que rangia. Não se atreveria a insistir para cantar naquela noite, mas não se esqueceria daqueles dois estupores que tinham dado bronca. Não deixaria de os denunciar.
Nick Bartello deixou-se cair numa das várias camas que atravancavam o seu quarto de hotel, sem mesmo se despir ou tirar do pescoço o fio com ossinhos de animais que Fryer lhe dera. Agradava-lhe, fazia-lhe lembrar os seus tempos de hippie. Não reparara que fora seguido desde que saíra do bar de Fryer.
Edith Corbello, irmã de Juda Salina, que pesava uns bons noventa e tal quilos, dormia em frente da televisão. A casa, de um piso em mísero estado, tinha um telhado todo encurvado e uma fachada de quatro metros voltada para a rua. Dispunha de uma varanda, sem dúvida, minúscula, já sem cerca de metade dos varões de ferro, mas nem mesmo nos fins de tarde mais agradáveis Edith se sentava ali fora a olhar para o terreno vazio cheio de mato que estava em frente, para o lixo retido no arame farpado que rodeava um velho armazém abandonado ou para os cabos pendentes que passavam mesmo em frente da casa, não dava grande gozo. Portanto, ela deixava-se ficar lá dentro e sonhava. Quando Sugar May lhe deu um abanão, acordou sobressaltada.
O Fryer está pior que estragado, mãe. O Willy e o Jesse foram lá ao bar esta noite ameaçá-lo com uma arma. Também disse que apareceu por lá um tipo a fazer perguntas sobre a Anna Louise Caley e que não parece do género de largar o osso com facilidade.
Edith Corbello pôs-se em cima dos enormes pés chatos, a tumefacção dos tornozelos a pender-lhe sobre os calcanhares. Calçava uns velhos chinelos muito sujos, praticamente o único calçado onde conseguia enfiar os pés inchados.
Juro que lhes vou dar uma lição aos dois. Vou pregar-lhes um susto de morte.
Eles estavam pedrados, mãe acrescentou Sugar May, quase alegremente, recebendo uma palmada na cabeça desferida pela mãe.
E tu devias estar na cama, toca a andar, pira-te. Fora! Edith percorreu penosamente o corredor escuro. Passou pela porta fechada que dava para a sua sala de estar e seguiu até à cozinha sufocantemente quente. Espreitou para dentro. O local estava um nojo, havia gordura nas paredes e no chão, viam-se embalagens descartáveis antigas e garrafas de cerveja vazias espalhadas por tudo o que era sítio, para além de pairar um fedor a restos de comida em decomposição e cigarros. Puxou a corda que fazia accionar uma ventoinha de tecto e empurrou a porta de rede que dava para o quintal. Willy e Jesse dormiam a sono solto, um em cima de uma rede presa entre duas árvores, o outro no banco de trás da carcaça velha de um carro. O tamanho não a impediu de se mover com rapidez: pegou numa vassoura e primeiro acertou com ela na cabeça de Jesse, dando depois com ela em Willy, de modo a fazê-lo cair da rede com um grito.
Vou dar-vos cabo do canastro aos dois! Bem vos avisei. Que ideia foi essa de irem ao bar do Fryer e porem-se aos berros?
A vassoura voltou a atacar, apanhando Jesse nos olhos. Este urrou, enquanto Willy tentava escapar-lhe, porém, levou com ela violentamente em cima da cabeça, caindo de joelhos a agarrar nela com as duas mãos. Edith resfolegava violentamente, tinha os olhos esbugalhados e o suor escorria-lhe pelo corpo.
Vocês os dois vão-me para aquela cozinha e ponham-na apresentável. Ou fazem as pazes com o Fryer ou juro por Deus que vos enfio uma serpente pela goela abaixo, e vocês sabem que não faço ameaças em vão. Mexam-se!
Deixou-se cair em cima do assento da velha campana e atirou a vassoura para o lado. Já não sabia que fazer com aqueles dois desde que Raoul se fora embora, e às vezes sentia-se furiosa com Juda. Tanto dinheiro e ela ali a viver naquela lixeira com quatro filhos. Desejava nunca ter posto os olhos na cabra rica da Elizabeth Caley.
Lorraine foi acordada com um raio de sol, difuso e atenuado pelos cortinados de musselina, que entrava pela porta aberta da casa de banho e da varanda por trás. Por instantes, não soube bem onde estava, até ver Robert Caley, que já tomara o seu duche e se barbeara.
Que horas são? perguntou ela num murmúrio.
Sete.
Robert foi até aos roupeiros, apenas com uma pequena toalha em volta dos quadris, e escolheu camisa, fato e gravata, que atirou para cima de uma elegante cadeira de costas arqueadas. Lorraine sentou-se e pestanejou. Robert virou-se para ela e sorriu.
Quando dormes, se não fosse essa cicatriz, parecerias uma menina de dez anos. Onde é que arranjaste isso?
Lorraine embrulhou-se no lençol.
Oh, num bar qualquer. Acho melhor voltar para o meu quarto.
Queres que mande vir o pequeno-almoço? Lorraine olhou para ele de olhos franzidos.
Achas sensato?
Ele riu-se, deixando cair a toalha para vestir as cuecas, completamente descontraído em relação à sua nudez.
Talvez não, mas podes telefonar do teu quarto e depois comemos juntos.
Lorraine ajeitou-se melhor, ficando a vê-lo vestir as calças.
Tenho uma reunião às oito horas acrescentou.
Lorraine balançou as pernas para fora da cama e ele aproximou-se dela, depositando-lhe um beijo no alto da cabeça. Depois inclinou-se para melhor observar as cicatrizes que Lorraine tinha nas costas e também nos braços.
Como é que tudo isto aconteceu? Lorraine afastou-se dele.
Bem, passei por uma certa fase em que não sentia muito gosto pela vida. Essas são as auto-infligidas, quanto às outras...
Robert tomou-lhe o rosto entre as mãos.
O que passou, passou, minha querida. Agora estás comigo.
Lorraine ergueu os olhos para o seu rosto, tentando decifrar-lhe o íntimo.
No entanto estive lá, Robert, quer queira ou não, fui uma alcoólatra.
Robert beijou-a, apertando-a fortemente contra si.
Mas tudo isso já passou. Agora és a minha adorável Lorraine e tão cedo não esquecerei a noite de ontem.
Eu também não retorquiu ela, desejosa de que ele pudesse voltar para a enorme cama em forma de barco, onde poderia ficar bem apertada contra o seu corpo nu, fazendo novamente amor. Por um instante, sentiu que também era esse o seu desejo, porém o telefone tocou e ele afastou-se para atender.
Olá, Phyllis. Não, não, já estou vestido. Como é que ela está?
Lorraine apanhou o robe do chão e colocou-o aos ombros. Robert estava de costas para ela.
Está? Óptimo. Bem, diga-lhe que mais tarde lhe telefono. Voltou-se para Lorraine, ao mesmo tempo que carregava no botão para atender uma chamada em espera na linha 2. É a Phyllis, diz que a Elizabeth está melhor, talvez saia daqui a uma semana.
Voltou à sua chamada e os seus modos alteraram-se.
Quando? Foi marcada para as oito desta manhã... O quê? Merda, está bem, não, posso ir. Volta a ligar para ele e diz-lhe que estarei lá. Obrigado, Mark. Pousou o auscultador e suspirou. O Lloyd Dulay quer que eu me encontre com ele em sua casa, portanto, tenho de me apressar. Podes deixar-me o número do teu hotel, para depois te telefonar.
Lorraine assentiu. Robert acabou de se vestir e colocou os óculos escuros.
Depois falamos.
Deu-lhe um beijo na face e fechou a porta depois de sair.
Lorraine voltou à sua suite e sentou-se na varanda. Que diabo pensava ela que andava a fazer? Devia ter enlouquecido... Independentemente do que aquela noite fora, ou significara, não conseguia deixar de se sentir deprimida e alheada. Ligou à recepção a pedir um bule de café quente e forte; só depois de esvaziar três chávenas e fumar dois cigarros é que se sentiu pronta para sair.
Lorraine voltou à suite de Robert Caley. Para sua surpresa, já fora arrumada e a cama feita. Não havia o menor indício da noite que haviam passado juntos, era como se nunca tivesse acontecido. Foi até à escrivaninha dele para lhe deixar o nome e o número de telefone do seu hotel e, ao puxar a tampa para baixo, a fim de poder escrever, viu uma série de documentos impecavelmente arrumados e uma pasta de arquivo em cuja lombada se lia «EMPREENDIMENTO DO CASINO». Imaginou que Caley se tivesse esquecido dela na sua pressa de ir para a reunião. Abriu-a e viu o local onde deveria ficar o casino, sublinhado três vezes: Convention Centre em Rivergate.
Lorraine pegou na pasta e levou-a para a sua própria suite, onde começou a tirar apontamentos. Alguns dos dados deixaram-na de boca aberta: duzentos mil metros quadrados de área de jogo, duzentas mesas, seis mil slot machines e uma perspectiva de cinco milhões e meio de clientes anuais. Salários estimados na base dos cento e sete milhões. A lista das fontes de financiamento era igualmente avassaladora: acções no valor de cento e setenta milhões, cerca de cinco milhões em obrigações, mais uns cento e quarenta milhões de crédito bancário, tudo perfazendo para cima de oitocentos milhões. O documento listava os custos em espécie, incluindo as estruturas de parqueamento, equipamento de jogo, taxas estatais e municipais, juros, provimento monetário de pré-inauguração e gastos de última hora. Reparou que as despesas totalizavam o mesmo, se não mesmo mais, do que as fontes de financiamento. Por fim, vinha a projecção de rendibilidade, que apontava para uma margem de lucro na ordem dos cento e vinte milhões.
Nas páginas seguintes vinham pormenorizadas as propostas do que parecia ser o consórcio rival, Doubloons, formado por nove residentes na Luisiana, nove homens abastados, claramente ansiosos por o serem ainda mais. Não admirava que Caley estivesse tão preocupado com a atribuição da concessão. Lorraine reparou que os custos que excediam os quarenta milhões de dólares tinham sido cobertos por contratos de financiamento sobre o local onde o casino seria completado; ficou a pensar se Caley não os teria assumido ele mesmo. Se assim tivesse sido, não só devia ser muito rico como também fora até ao seu próprio limite.
Lorraine levou de novo a pasta para o quarto dele, mas não resistiu a abrir todas as gavetas da escrivaninha. Encontrou a licença de propriedade, a morada do seu escritório em Nova Orleães, pormenores sobre os novos empreendimentos hoteleiros, na sua maioria na frente ribeirinha, e um dos hotéis que pertencia tanto a Robert como a Elizabeth Caley. Contrariando o que ele lhe dissera sobre o facto de a mulher não ter nada a ver com os seus negócios, o nome desta aparecia em muitos deles. No entanto, o que mais impressionou Lorraine foi um documento dobrado, em nome de Anna Louise Caley. Estava protegido por um selo e uma fita vermelha e continha pormenores sobre o fideicomisso de Anna Louise. Lorraine pegou numa faca de cortar papel, aqueceu a lâmina com o isqueiro e conseguiu desprender o selo do papel sem o quebrar. O papel grosso e amarelado estava muito enrugado e frágil, pelo que teve de o abrir com todo o cuidado. O que leu fê-la arquejar: nunca houvera a mais leve menção a um fideicomisso para Anna Louise Caley e o montante era, nem mais nem menos, de cem milhões de dólares. O fideicomisso deveria ser gerido pela mãe até a jovem completar vinte e um anos de idade e, caso esta não chegasse a essa idade, reverteria automaticamente para Elizabeth Caley.
Rooney vestira um fato que não usava há muito e verificara, surpreendido, que lhe servia. Não havia dúvida: os quilos que já perdera faziam com que se sentisse e parecesse melhor.
Caramba, estás todo elegante comentou Rosie quando o viu entrar no restaurante que ficava em frente do Sainte Marie, fazendo-o corar.
Lembras-te do que combinámos? Nada de dietas enquanto aqui estivermos.
Claro, alinho nisso: durante a nossa estada, comeremos o que nos apetece.
Rooney bateu as palmas e sorriu.
Então, vamos: eles aqui têm umas panquecas deliciosas. O Nick e a Lorraine não devem tardar.
Nick, com uma grande ressaca, as roupas com que dormira e óculos escuros, ouviu Lorraine relatar as suas descobertas. Esta, só quando viu Rooney e Rosie a comer panquecas com melaço é que se apercebeu da fome que tinha. Não comera nada desde o jantar no avião particular de Caley. Mandou vir ovos mexidos e salmão fumado, o que fez com que Nick se sentisse ainda mais agoniado.
Como é que conseguiste deitar as mãos a tudo isso?
perguntou Rooney, com a boca cheia.
Fiquei no mesmo hotel e no mesmo quarto de onde a Anna Louise desapareceu. Quando entrei para agradecer a Mister Caley, já não o encontrei.
Entrou? inquiriu Nick.
Sim, havia uma porta de ligação e a chave estava comigo. O Caley tinha uma reunião ao pequeno-almoço com o Lloyd Dulay.
Nick serviu-se de mais café.
Quer dizer que ficou no quarto ao lado do do Caley?
É verdade assentiu Lorraine. Interroguei o pessoal, razão pela qual aceitei o convite de lá ficar, portanto, acabe com as insinuações, Bartello. Que porcaria é essa que tem ao pescoço?
É um gris-gris. Inclinou-se um pouco para Lorraine. E que é isso no seu pescoço, querida? Foi mordida naquele hotel janota, foi?
Antes de Lorraine poder responder, Nick foi-se embora e ela ajeitou a gola.
Picada de mosquito. Devo ter proporcionado ao estuporzinho uma noite e pêras.
Vou dar-te algo para isso disse Rosie imediatamente. Trouxera um estojo com tudo aquilo de que poderiam eventualmente precisar.
Deixa estar, não tem importância.
Rooney coçou o tornozelo, agora certo de que também fora mordido por algo.
Acho que fui apanhado pelo mesmo estupor que te mordeu. Está um calor dos diabos e ainda só vamos em Janeiro. Não consigo nem imaginar como este lugar deve ser no pino do Verão.
Bem, se tudo correr de acordo com o previsto, daqui a uns dias já cá não estamos disse Lorraine com uma certa aspereza, já que ninguém parecia reagir minimamente às suas descobertas. De facto, todos pareciam aceitá-las como se já as conhecessem: Robert Caley continuava a ser o suspeito número um!
Bom, até logo. Encontramo-nos no meu quarto. A propósito, Rosie, lá sinto-me uma espécie de Branca de Neve... são nada mais nada menos do que cinco camas.
Rosie estava a ficar farta das queixas quanto à sua escolha do hotel.
Escuta, se achas que és capaz de fazer melhor, está à vontade, mas não te esqueças de que estamos no Carnaval e, portanto, a oferta escasseia.
Não te aborreças, falei por falar. Rooney fungou.
Se tivermos falta de dinheiro, sempre podemos ocupar só um quarto, ou então ganhar umas patacas alugando o resto das camas. Querem mais café?
Lorraine esvaziou a sua chávena e acenou que sim com a cabeça.
Já volto.
Levantou-se e foi aos lavabos, enquanto Rooney fazia sinal à empregada para que trouxesse mais café.
Onde está o Nick?
A lavar-se, eu sei lá respondeu Rosie, ainda irritada.
O que se passa com vocês esta manhã? perguntou Rooney, intrigado.
Eu estava muito bem-disposta quando desci para tomar o pequeno-almoço retorquiu-lhe Rosie asperamente.
Vejamos, não fiques assim toda aborrecida por causa da Lorraine. Todos nós falámos do facto de haver camas suficientes para uma equipa de futebol.
Rosie bateu na mesa.
Pois bem, podemos ir embora daqui, um de vocês procura acomodações noutro sítio onde possam receber-nos aos quatro ao mesmo tempo. Gastei tempo suficiente a conseguir o melhor possível, e nem sequer um obrigado recebi. Estou pior que estragada.
Vá, ninguém se importa, e quem sabe algum de nós tem sorte.
Que quer isso dizer? perguntou Rosie, muito vermelha.
Podemos receber a visita de alguns amigos! É só uma brincadeira, querida.
Pois, mas eu não acho graça nenhuma, a minha autoconfiança fica abalada. Vocês podem andar a fazer este trabalho de investigação há muito tempo, o que não é o meu caso, por isso sinto-me desajeitada.
Nesse caso desculpa, Rosie, mas sabes, devias encarar a coisa como um elogio... Na Polícia, andamos sempre a meter-nos uns com os outros, na paródia, é assim que convivemos entre nós. Se te tratássemos de outra maneira é que seria caso para te preocupares.
Rosie corou e, de repente, sorriu.
A sério?
Podes crer. Diz-me, não querias outro café? Rosie anuiu com a cabeça.
Sentia-se muito melhor na verdade, era o que acontecia sempre que estava com Rooney. Ele começara, em mais aspectos do que ela jamais imaginaria, a restituir-lhe a autoconfiança, sobretudo como mulher.
No virar do século, a mansão dos Dulay, uma amálgama de torres e torreões góticos vitorianos, assim como um pórtico frontal de ar incongruentemente mediterrânico, poderia ter sido considerada um híbrido vulgar e ostentoso; no entanto, a sua construção custara uma autêntica fortuna, e Lloyd gostava de fazer constar que a sua família nunca tivera nada a ver com o povo e a pobreza: então e agora, houvera sempre dinheiro.
Robert Caley conduziu o seu carro ao longo da álea de carvalhos plantados em fileiras especialmente dispostas, que se estendiam através da vasta propriedade de Lloyd, delimitando vários espaços: o jardim formal, o jardim tropical, o jardim hortícola, o jardim das flores trabalhadas e o jardim da água que os Dulay tinham espalhado por vários acres de localização privilegiada, próximos da frescura agradável de parques e clubes privados entre margens de rio e de lago. Aquele local de excepção brilhava como veludo verde mesmo quando tudo à sua volta ostentava manchas cinzento-acastanhadas. Tocou à porta e foi atendido por uma criada uniformizada, que o acompanhou até à sala do pequeno-almoço, depois de o fazer passar diante dos bronzes, que chegavam à cintura, representando os cães e cavalos preferidos dos Dulay. Caley nunca cessava de se maravilhar, tanto com a grosseria inerente ao gosto de Lloyd como com o arrojo da sua execução: a escultura em gesso e madeira espalhada pela casa era, em termos gerais, pesada, e Lloyd resolvera atenuar a escuridão dos tectos apainelados da sala do pequeno-almoço mandando fazer murais modernos nas paredes em volta, onde ninfas e sátiros espreitavam por entre folhagem densa. Havia algo de lascivo na pintura, e Caley perguntou a si mesmo se a jovem deusa crioula, vestida de criada francesa, que naquele momento servia café na mesa de mogno, não teria servido de modelo a um dos voluptuosos nus com os quais apresentava uma semelhança extraordinária. Havia um único lugar na mesa, onde se viam terrinas tapadas, em prata jorgiana, voltadas para uma escultura abstracta, em perspex colorido, que fazia de centro de mesa. Lloyd tinha-se na conta de um coleccionador de arte moderna, mas o seu zelo reformista ainda não abrangera os sessenta metros de chintz lustroso, espalhafatosamente cheio de folhos e pregas, pendurado nas enormes janelas panorâmicas da sala pela avó, nem os lustres de vidro dos primórdios do vidro anglo-irlandês, com meia centena de quilos, pendurados no tecto, cujos pendentes monstruosos quase tocavam na estrutura de plástico que ficava por baixo. O efeito era grotesco.
Apenas café pediu Caley, recebendo um aceno de cabeça quase imperceptível da linda criada, com as suas maçãs de rosto largas, a pele cor de café com leite, o nariz delicado e largo e os olhos castanhos amendoados.
A pesada porta abriu-se repentinamente e Lloyd Dulay entrou. Apesar de estar na casa dos setenta, ainda mantinha o seu metro e noventa de altura bem empertigado, e a cabeleira branca, penteada para trás, punha a descoberto a testa alta. Era um homem formidável, e Caley, a seu lado, sentia-se comparativamente pequeno.
Senta-te, rapaz, desculpa a mudança de local da reunião, mas esta manhã tive uma partida de golfe que não pude interromper. Fiz cinco birdies, cinco. Obrigado, Imelda querida.
Lloyd tocou ao de leve na criada com a mão enorme e esta sorriu, de olhos baixos, quase demasiado acanhada, demasiado encantadora. Caley sabia que o mais provável era ela ser amante de Dulay, que era famoso por tê-las em casa», e quem sabe se naquele caso, para a exibir diante dos seus convidados.
Como vai a Elizabeth? perguntou Dulay, tirando a tampa a uma das terrinas e servindo-se de uma avantajada fatia de melão charentais e de morangos.
Está bem, Lloyd, não tardará a voltar para casa.
Espero sinceramente que sim. Sem ela, o Carnaval não será o mesmo, e este ano temos umas animações muito interessantes.
Lloyd prosseguiu a conversa falando sobre os barcos, as grandes festas e os bailes de máscaras que diferentes grupos tencionavam realizar, o novo rei do Carnaval e a jovem de sociedade que seria eleita sua rainha. A seguir, sentado no seu cadeirão em madeira trabalhada que mais parecia um trono e gesticulando abundantemente, elogiou o tempo em que a filha ocupara aquele lugar, fazendo ressoar estrondosamente a voz na enorme sala cavernosa.
Naquele dia, a Saffron estava mais linda do que nunca. Podes crer, Robert, aquela rapariga podia ter escolhido qualquer dos homens que se rojaram aos seus lindos pés, implorando-lhe uma dança. Sabes, cheguei mesmo a oferecer-lhe dez milhões de dólares para ela se manter casada tempo suficiente para me dar um herdeiro. Esse é um dos fracassos da minha vida.
Caley manteve-se circunspecto. Já não saberia contar as vezes em que estivera ali sentado em frente daquele homem enorme, sem poder deixar de escutar aquela adulação ruidosa da puta da filha que ele tinha. Houve ocasiões em que perguntou a si mesmo se Dulay não estaria, de certo modo, a instigar Caley para ir para a cama com a filha coisa que Caley e quase tudo o que era homem já fizera, mas se estava a par da fama da filha, nunca o deu a entender minimamente. Parecia simplesmente adorar o som áspero da sua própria voz e só depois de terminar a fruta, os pastéis de salsicha, as suas guloseimas saborosas e as tradicionais bolachas sulistas é que se calou.
Imelda, como que chamada por via telepática, apareceu para levantar a mesa, e Caley reparou, mais uma vez, que uma das mãos enormes de Lloyd acariciava a sua mulherzinha «em casa». Tinha a certeza de que, se não dispusesse de um herdeiro legitimo, não lhe faltariam muitos ilegítimos. Corriam boatos de que andariam à volta de dez ou onze.
Dulay olhou para a caixa de charutos que Imelda mantinha, aberta, à sua frente. Escolheu um, cheirando-o com o seu enorme nariz adunco, depois a criada cortou-lhe a ponta, trouxe para cima da mesa um frasco de perfume transformado em isqueiro e retirou-se silenciosamente. Só depois de o fumo do charuto formar um halo por cima da cabeça de Dulay é que este focou os olhos azuis miúdos em Caley.
A reunião do governador com alguns dos líderes legislativos em Baton Rouge vai ter lugar esta semana. Cá por mim, ele devia era poupar-se a essa viagem... Aquilo com que temos de nos preocupar está aqui mesmo, em Nova Orleães. Há pessoas que dão a impressão de querer impedir o progresso até este lhes passar mesmo por cima, embora esta gaita da lei federal deva trazer água no bico. Pelo menos, é o que o meu advogado não se cansa de dizer.
Isso é um disparate, Lloyd, e tu bem sabes. Eles estão apenas a ver se pega.
Robert, não me estás a ouvir. É a demora. Então não vês que, quanto mais tempo levam a conceder-te a licença para avançar, mais a questão se arrasta... e por mais que esperneies contra isso e digas que não é contra ti que eles viram o nariz, ninguém acreditará.
Caley recostou-se. Nem mesmo o frígido ar condicionado da sala impediu que o suor lhe brotasse pelo corpo, pois sabia que Dulay invocara as objecções relacionadas com a zona apenas como pretexto para disfarçar alguma jogada sua.
Queres dizer que vais desistir? perguntou-lhe, nervoso.
Raios, claro que não, tu contas com o meu apoio. Mas vais ter de me provar que não sou o único a estar metido nisto até ao pescoço.
Até agora, Lloyd, a única pessoa nessas condições sou eu. As licenças foram compradas exclusivamente com o meu dinheiro. Tu ainda não meteste uma moeda nisto.
Dulay fitou-o com dureza, ao ponto de os seus olhos darem a impressão de encolher.
Não, Robert, tens o meu nome ligado ao negócio e aqui isso é muito importante, percebes? Nestas paragens, o meu nome tem muito peso.
Eu sei, eu sei... desculpa, mas até agora, Lloyd, têm-me espremido até mais não, tu deves saber.
Claro que sei, ninguém gosta de ter os tomates presos num torno, mas ao mesmo tempo vais ser o homem a lucrar mais... Portanto, se não queres partilhar o teu naco...
Não quero.
Talvez não agora, não hoje, mas olha que devias pensar nessa possibilidade. Se fores ao fundo, ninguém irá financiar o teu negócio, mesmo que a terra que tens valha alguma coisa...
Vale mais do que alguma coisa, Lloyd.
Certo, certo, mas consegues manter-te à tona?
Depende do tempo que é preciso. O que está o amigo Siphers a fazer em Baton Rouge?
Lloyd encolheu os ombros.
Eles têm de disfarçar um pouco relativamente à proposta da Doubloons: amachucar as páginas antes de as deitarem fora.
Tens a certeza de que o governador vai fazer isso mesmo?
Lloyd empurrou a cadeira para trás.
Claro. Este show pertence-te, Robert. Tu é que te empenhaste e abriste caminho por onde as pessoas diziam que era impossível. Um bando de tipos que queira saltar para a carruagem em andamento verá que dá com os burros na água.
Então quando é que achas que saberemos se a resposta é positiva ou negativa?
Oh, já não faltará muito, Robert. Serás o primeiro a ter conhecimento. Como sabes, o governador é meu amigo pessoal acrescentou Dulay com ar cativante.
Nos seus modos havia algo um tudo-nada de excessivamente brando; Caley, porém, estava demasiado cansado para continuar a pressionar o velho, de modo que se levantou, forçando um sorriso.
Aguardarei ansiosamente, Lloyd.
Está descansado disse Dulay, fazendo um gesto para a porta. A reunião terminara. Quando iam a entrar no enorme vestíbulo com a sua colecção de animais, ele deteve-se. Já encontraram a tua menina?
Caley sacudiu a cabeça.
Ainda não, mas a Elizabeth contratou uma nova agência, talvez obtenham alguns resultados, parecem muito capazes.
Lloyd exaltou-se.
Capazes? Santo Deus, Robert, ela é tua filha! Vocês só contrataram alguém capaz... Eu cá removeria céus e terra para encontrar uma filha minha, contrataria o que de melhor há neste país...
Foi o que fizemos disse Caley.
Dulay rodeou os ombros de Caley com um braço, dando a este a impressão de ter ali um peso morto.
Tens a certeza de que consegues continuar? No que diz respeito ao dinheiro?
Caley assentiu e o homenzarrão abraçou-o com mais força.
Lamento muito por ti e pela minha adorável Elizabeth, que deve estar a viver um inferno.
É verdade.
A única coisa que Caley desejava era afastar-se; no entanto, o velho mantinha-o preso como um torno.
Podes contar comigo, Robert, a sério. Para mim és como família, e à noite tenho dificuldade em dormir só de pensar naquela doce criança. O que é que essas agências acham que deve ter acontecido?
Caley conseguiu afastar-se.
Que pode ter sido levada à força, sabes, raptada pela oposição, talvez para impedir que eu abra o casino.
Disparate, eles são demasiado poderosos para estar com esse tipo de jogo. Jesus! Conheço todos os tipos que fazem parte da direcção da Doubloons, muitos são velhos amigos, alguns andaram comigo de calções, e posso garantir-te que são todos uns gentlemen.
Porque não te juntaste a eles? perguntou Caley calmamente.
Dulay encolheu os ombros e entrou no corredor de mármore.
Não fui convidado... e gosto de sê-lo. Não sou homem para entrar à força no negócio de ninguém, eles é que têm de vir ter comigo. Tenho capital suficiente para só me meter nalguma coisa desde que me mostrem algum respeito. Pairou, enorme, acima de Caley. Tu sempre me mostraste respeito, Robert, e é só por essa razão que estou contigo neste negócio. És um homem que veio do nada e eu admiro-te. Também gosto da tua mulher, já nos conhecemos faz muito tempo, e estou ansioso por revê-la assim que chegar. Tu sabes que a minha casa está à tua disposição, Robert. Caley virou-se e olhou para o casarão enorme, que fazia lembrar um transatlântico a galgar as ondas de relvado imaculadamente cuidado, e as palavras vazias de Dulay soaram-lhe aos ouvidos: «Sabes que a minha casa está à tua disposição, Robert.» Que piada! Era óbvio que Dulay queria espremer-lhe um pedaço maior, aguardando pela oportunidade de aparecer como grande salvador e safá-lo por uma percentagem que Caley não tinha dificuldade em adivinhar, em que a fatia mais grossa não seria para si, mas para ele, Dulay.
O motorista seguiu para o hotel. Caley fechou os olhos e pensou em Lorraine e na noite anterior. Não era de admirar que estivesse tão esgotado. No entanto, queria voltar a vê-la, precisava de a ver, porque naquele momento tinha a certeza de que Dulay andava a arranjar lenha para o queimar, e ele não queria ir para a fogueira.
Nick dirigiu-se à mesa de ferro do pátio; lavara-se, barbeara-se e vestira roupa limpa. Rooney tomava apontamentos nas costas de um envelope.
Vou ter uma conversa com o tal motorista, pá.
Ah sim? És capaz de me esclarecer: quem é esse motorista e o irmão dele?
Rosie inclinou-se para a frente.
Ontem à noite metemo-nos num táxi, Nick, e quando íamos a passar em frente do lugar onde o Caley pensa construir o seu casino, o tipo fartou-se de falar. Disse que o primo, não o irmão, era da Polícia e que aí são todos corruptos.
Lorraine estava sentada, de rosto voltado para o sol e com os olhos fechados.
Muito bem, eu vou voltar ao bar onde fui parar ontem à noite. O velho tocador de trombone quase me avisou que; me pusesse a milhas.
A milhas de quê? perguntou Lorraine sem se mexer.
Da Anna Louise Caley. Lorraine virou-se para o colega.
Continue.
Nick encolheu os ombros.
Só isso, disse-me apenas para me pôr a milhas e, pensando melhor, acho que deve ter uma boa razão e outra ainda melhor do que... Inclinou-se para a frente, de cenho franzido; «Águas turvas»... disse algo parecido com isso, raízes profundas... Só sei é que fiquei com a sensação de que ele está a par de alguma coisa. E você, que vai fazer? Lorraine bocejou.
Bem, talvez comece a entrevistar os sócios do Caley, e... como se chama a amiga da Anna Louise? Acho que será mais que suficiente para preencher o meu dia. Consultou o relógio de pulso. Que me dizem a encontrarmo-nos todos aqui às seis da tarde?
Rosie olhou para Bill, que examinava os seus apontamentos.
Alguém quer que eu faça alguma coisa? Caso contrário, vou ao Museu do Vodu.
Rooney meteu o envelope no bolso e levantou-se.
Vou alugar um carro e se quiseres deixo-te lá, Rosie.
Oh, agradeço. Até logo a todos. Lorraine ergueu uma mão.
Só um instante, Rosie. Antes de te pores a andar, és capaz de me marcar reuniões com todos os sócios do Caley e com a Tilda Brown?
Rosie assentiu.
Claro, é para já. Vai tratando do carro, Bill, que eu já vou ter contigo à entrada.
Lorraine ficou a vê-los afastarem-se, abrindo caminho por entre as mesas.
Estão a tornar-se grandes amigos, não acha? Nick fez a sua cadeira balançar.
É mesmo, fui comer fora com eles e foi um horror. Custa a suportar um Rooney todo acanhado e uma Rosie toda tímida.
A sério? admirou-se Lorraine, rindo.
Pode crer retorquiu Nick observando-a, cheio de desejo. Sabia, instintivamente, que ela fizera algo mais do que jantar no avião de Caley. Que foi que descobriu junto do pessoal do hotel do Caley? perguntou.
Nada de especial. O único dado que não consta em nenhum relatório é o de que a criada não preparou a cama da Anna Louise para a noite, o que costumava ser feito por volta das oito, porque havia um NÃO INCOMODAR pendurado na porta. O que significa que ela já saíra ou...
Era bonita a suite, não?
Sim, era.
Lorraine reparou no sorriso irritante dele e teve vontade de lhe tirar os óculos para lhe ver os olhos.
Foi para a cama com ele?
Lorraine pegou na sua bolsa e no bloco de apontamentos.
Que ideia faz de mim, Nick?
Eu cá por mim não perderia uma oportunidade dessas, mas nem sempre aparecem, não é?
É como diz.
Lorraine passou perto da cadeira de Nick e este agarrou-lhe na mão.
Não fique ofendida.
Não fiquei, Nick, mas deixe-se de piadas sobre mim e o Caley; começo a ficar irritada com isso.
Nick levantou-se e acompanhou-a.
É apenas por precaução, querida. Afinal de contas, ele é o nosso suspeito número um, não é verdade? Ainda mais depois de ter encontrado aquele pequeno legado. Tirou os óculos. Sabe, talvez o Caley tenha andado a retirar fundos desse fideicomisso. Deve ser uma verdadeira tentação, cem milhões de dólares é muita fruta.
Lorraine sentiu-se confundida.
Sem dúvida, também pensei nisso e estava a ver se descobria maneira de investigar esse ponto.
Nick rodeou-lhe os ombros com um braço ao entrarem no vestíbulo.
Podia perguntar-lhe. Lorraine suspirou.
Podia, mas assim ele ficava a saber que andei a mexer-lhe nos papéis. Não quero espantá-lo, estamos mesmo...
Tem aí uma bruta picada de mosquito, devia pôr-lhe uma pomada à base de calamina. Lorraine virou-se para ele, furiosa, e Nick puxou-a contra si. Não tente enganar-me. Sei o que é. A mim tanto se me dá que tenha dormido com ele ou não, só não quero que comece a...
Que comece a quê?
A gostar dele. Porque não quero que se magoe, se não se importa que lhe diga.
Lorraine apoiou-se a ele, o que o apanhou completamente desprevenido, levando-a a mantê-la abraçada durante instantes.
Também não posso deixar de admitir que fico com uns ciúmes danados. Não que haja a mínima esperança para mim, mas...
Lorraine sorriu-lhe.
Nunca se sabe, Nick, consigo assim todo lavadinho e a cheirar bem, até que não está nada mal. Acontece apenas que...
Não sou o seu tipo? Lorraine riu suavemente.
Em tempos poderia ter sido, como aconteceu com o Lubrinski, mas, Nick, a mulher que gostar de si passará por um inferno. Conheço o seu género, adora a caça, porém, depois de terminada, farta-se e passa à presa seguinte.
Com que então andou a investigar-me... Mas, sabe, eu e o Tiger andamos a tentar arranjar poiso, sobretudo se tiver quintal para ele deixar de urinar as carpetes, além da mulher certa...
Eu não sou a mulher certa, Nick, e estamos a perder tempo.
Lorraine viu um ar magoado passar-lhe rapidamente pelo rosto, após o que ele lhe sorriu debilmente. Beijou-a nos lábios, antes de se afastar a gingar dentro das suas botas de cowboy já gastas.
Ao abrir a porta do seu quarto no Sainte Marie, Lorraine desejou não ter sido tão áspera com Nick, porque este, tal como Jack, raramente se permitia exprimir semelhantes sentimentos. Nick atraía-a sob muitos pontos de vista, seria difícil tal não acontecer; no entanto, ela jamais se deixaria levar, pois o que lhe dissera era verdade. Nick nunca assentaria, nem mesmo com o dito quintal. Era e seria sempre um solitário, tal como Jack.
Sentou-se sobre a colcha colorida da cama e ergueu os olhos para o papel de parede cheio de bolhas de ar, para a ventoinha carregada de pó; depois da noite anterior, tudo lhe parecia feio e deprimente, e, embora ainda só fossem onze da manhã, sentia-se estafada. Não conseguia fazer desaparecer aquela sensação horrível que sentia na boca do estômago quando pensava na possibilidade de Caley estar envolvido no desaparecimento da filha; mesmo depois de uma noite com ele, uma noite maravilhosa e especial, não conseguia deixar de ser lógica. Era capaz de passar os sentimentos que nutria por ele para segundo plano, deixando prevalecer a sua capacidade de raciocínio profissional.
De repente bateram à porta e Rosie espreitou, de folha de papel na mão.
Estive a fazer a lista daquilo que já consegui tratar e do que terás de ser tu a ver, talvez amanhã. Reservei um carro com motorista para ti a um bom preço, pois alguns destes sítios ficam muito longe uns dos outros, como é o caso da casa da Tilda Brown, a cerca de cem quilómetros da cidade.
Lorraine olhou de relance para os apontamentos escritos à mão.
Portanto, primeiro é a Tilda Brown e depois o Lloyd Dulay, não é? Está bem, vou avançar.
O telefone tocou. Era Robert Caley.
Viva, podes almoçar comigo?
Ah, até há dez minutos podia, mas agora já estou de saída.
Pareceu desiludido.
E quanto a jantar?
Poderá ficar para outra vez?
Com certeza. Voltarei para o hotel ao fim da tarde, talvez vá até casa... Portanto, telefona-me.
Fica combinado.
Houve um momento de silêncio, ambos com vontade de dizer algo terno, mas não se atrevendo. Rosie mantinha-se perto, pretensamente absorta nos seus apontamentos, mas de ouvido à escuta. Gostaria de saber de quem era o telefonema, já que Lorraine ficara subitamente acanhada e corara.
Até logo.
Até logo, por volta das seis retorquiu ela, pousando depois o auscultador e olhando para Rosie.
Quem era?
O Robert Caley respondeu ela com indiferença.
Oh, parece que estão a dar-se muito bem um com o outro.
A ideia é essa, Rosie: quando nos damos melhor com uma pessoa, ela passa-nos mais informações, fala com maior à-vontade. Hum, sem dúvida. Portanto, vamos a saber, hoje à noite sais com ele ou reunimos para fazer o ponto da situação? Tenho de informar o Bill e o Nick.
Lorraine escovou o cabelo.
Eu só disse que lhe telefonaria, Rosie.
Está bem, tomarei nota disso, sim? Encontramo-nos lá em baixo no vestíbulo.
Óptimo, até logo.
Até logo.
Dito isto, Rosie fez menção de se dirigir para a porta.
Tu e o Bill também parecem estar a dar-se muito bem observou Lorraine com despreocupação.
Rosie pousara a mão na maçaneta e estava de costas para Lorraine; no entanto, toda a sua postura se pôs subitamente na defensiva.
Sim, claro, faço os possíveis por me dar bem com ele. Afinal de contas somos colegas e, como tu disseste, obtemos muito mais das pessoas quando nos damos bem com elas.
Mas ele não é nenhum suspeito lembrou Lorraine, divertida.
Talvez não, mas, para alguém que anda a tentar aprender a profissão como eu, preciso de um pouco de orientação para me manter ao nível de uma pessoa tão experiente como tu.
Oh, essa foi um bocado puxada, Rosie exclamou Lorraine, rindo.
Não era essa a minha intenção, mas, como és bastante antipática comigo quando cometo algum erro, ando apenas a esforçar-me por não abusar deles.
Lorraine mostrou-se subitamente preocupada.
Caramba, Rosie, tu já me conheces o suficiente para saberes que, se te digo alguma piada, tens o direito de me responder na mesma moeda.
Rosie sorriu.
Eu sei. Bem, às vezes tenho a impressão de que me dás pouco valor, mas de agora em diante não me esquecerei do que acabaste de dizer.
Lorraine atravessou o quarto e abraçou a amiga.
Só te peço que sejas sempre sincera comigo. Caramba, todos nós cometemos erros.
Não! exclamou Rosie, sorrindo de novo e fingindo que ficava indignada, o que fez com que Lorraine voltasse a rir ao dirigir-se de novo para o toucador.
Ainda bem que tu e o velho Rooney estão a entender-se.
Ele é bom homem. Também era bom como polícia... Agora está um bocado enferrujado, ou, quem sabe, já não tem a mesma garra de antigamente. Rosie corou.
Tu diminuis-lhe a autoconfiança, tal como fazes comigo, Lorraine. Ele e o Nick andam a trabalhar no duro, todos nós. O nosso objectivo é o mesmo e ninguém tem o direito de se achar mais importante que os outros.
Lorraine aceitou a censura com boa disposição, algo impressionada com a amiga: nunca vira Rosie tão ponderada.
Sim, desculpa, tens razão. Então, até logo. Rosie abriu a porta.
Bom trabalho. Depois vem fazer o ponto da situação connosco, porque estamos todos a fazer muita força para que te saias bem.
A porta fechou-se e Lorraine franziu o cenho. Rosie andava diferente, quem sabe se seria por trabalhar ao lado de Bill, ou então era a dieta a aumentar-lhe a auto-estima. Lorraine ficou a olhar para o seu próprio reflexo no espelho.
Talvez fosse bom murmurou de si para si também tu começares a tomar juízo.
Tocou na marca da mordida de amor com que ficara no pescoço e não pôde impedir a sensação de calor que se espalhou pelo seu corpo, vinda das virilhas, levando-a a abraçar-se a si mesma. Há muito tempo que não se sentia tão feliz.
A casa da família de Tilda Brown fora construída no lago durante os anos setenta. Era constituída por um conjunto de rectângulos e cubos brancos, com um toque de tradição sob a forma de remodelações recentemente efectuadas, que lhe haviam imprimido linhas arquitectónicas tradicionais, colunas quadradas e varandas em socalcos a menos de dois metros do chão, as quais fizeram lembrar a Lorraine cotos de asas de alguma ave não voadora. Apesar de tudo, a simplicidade das suas linhas não se devera a falta de dinheiro, pois este ainda se encontrava bem patente: um descapotável de marca europeia e um sofisticado jipe estavam estacionados em frente, e via-se um jardineiro a trabalhar no lado de fora. Havia um pátio amplo, de aparência cuidada, logo a seguir ao declive, e Lorraine disse ao motorista...
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