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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SE HOUVER AMANHÃ / Sidney Sheldon
SE HOUVER AMANHÃ / Sidney Sheldon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

Figurando entre os melhores romancistas contemporâneos - e também entre os mais lidos em todo o mundo - o escritor Sidney Sheldon, cujas personagens famosas e infames de O Outro Lado da Meia-Noite, A Herdeira, A Ira dos Anjos e O Reverso da Medalha encantaram e às vezes chocaram seus milhões de leitores, apresenta-nos agora a mais atraente de suas heroinas.

A adorável e idealista Tracy Whitney não consegue livrar-se de uma acusação falsa e é condenada a 15 anos de prisão, pena que vai cumprir numa penitenciária da qual é impossível fugir. Ela, porém, não se abate e luta para destruir os intocáveis senhores do crime que a mandaram para lá.

Suas únicas armas são a inteligência e uma estonteante beleza, e com elas Tracy se lança numa sucessão de aventuras ousadas contra os golpes inescritipulosos que lhe aplicam - e desafiam tanto a Interpol como as polícias de meia dúzia de países. A acção incessante da história se movimenta de Nova Orleans a Londres, Paris, Biarritz, Madri e Amsterdam, e numa confrontação explosiva a heroina de Se Houver Amanhã encontra seu igual no irresistível Jeff Stevens, de passado tão pitoresco quanto o dela. E sempre ao fundo, vigiando e esperando, está o génio maligno Daniel Cooper, que precisa destruir Tracy, a fim de garantir sua própria salvação.

 

 

 

Primeira Parte

 

 

Nova Orleans

QUINTA-FEIRA, 20 DE FEVEREIRO - 23 HORAS

Ela despiu-se devagar, em devaneio; quando estava nua, escolheu um negligê vermelho vivo para usar, a fim de que o sangue não aparecesse. Doris Whitney olhou ao redor pela última vez, a fim de certificar-se de que o quarto agradável, que tanto passara a amar ao longo dos últimos 30 anos, se encontrava arrumado e impecável.

Abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira e tirou a arma, com todo cuidado. Colocou-a ao lado do telefone e discou para a filha em Filadélfia.

- Tracy... senti vontade de repente de ouvir o som de sua voz, querida.

- Que surpresa boa, mamãe.

- Espero não tê-la acordado.

- E não acordou. Eu estava lendo. Aprontando-me para dormir. Charles e eu íamos sair para jantar fora, mas o tempo está horrível. Neva muito por aqui. Como está aí?

"Santo Deus, estamos falando sobre o tempo", pensou Doris Whitney, "quando há tanta coisa que quero lhe dizer. E não posso".

- Mamãe? Você ainda está aí?

Doris Whitney olhou pela janela.

- Está chovendo.

E ela pensou: Como é melodramaticamente apropriado. Parece até um filme de Alfred Hitchcock.

- Que barulho é esse, mamãe?

Trovoada. Tão absorta em seus pensamentos, Doris Whitney percebera. Nova Orleans sofria uma tempestade. Chuva contínua dissera o homem da previsão do tempo. Dezanove graus em Nova Orleans. Ao cair da noite haverá chuvas torrenciais, acompanhadas de trovoadas. Não se esqueçam de sair com o guarda-chuva. Ela não precisaria de um guarda-chuva.

- É uma trovoada, Tracy. - Ela forçou um tom de jovialidade na voz. - Conte-me o que está acontecendo aí em Filadélfia.

- Eu me sinto como uma princesa num conto de fadas mamãe. Nunca imaginei que alguém pudesse ser tão feliz. E amanhã de noite conhecerei os pais de Charles.

Ela engrossou a voz, como se estivesse fazendo uma proclamação oficial, ao dizer:

- Os Stanhopes, de Chestnut Hill. - Tracy soltou uma risada. - Eles são uma instituição. Estou no maior nervosismo.

- Não se preocupe. Tenho certeza de que eles vão adorá-la querida.

- Charles diz que não tem a menor importância. Ele me ama. E eu o adoro . Mal posso esperar o momento em que você o conhecerá. Ele é fantástico.

- Tenho certeza que é mesmo. - Ela jamais conheceria Charles. Nem teria um neto no colo. Não! Não devo pensar sobre isso. - Ele sabe como é afortunado por tê-la, meu bem?

- É o que estou sempre lhe dizendo. - Tracy sorriu. - Mas já chega de falar a meu respeito. Conte-me o que está acontecendo por aí. Como se sente?

 

Você goza de perfeita saúde, Doris, foram as palavras do Dr. Rush. Viverá até os cem anos. Uma das pequenas ironias da vida.

- Eu me sinto maravilhosa. Falando com você.

- Já tem um namorado? - indagou Tracy, meio zombeteira,

Desde que o pai de Tracy morrera, cinco anos antes, Doris Whitney jamais sequer considerara a possibilidade de sair com outro homem, apesar das exortações de Tracy.

- Nada de namorados. - Ela mudou de assunto. - Como está o seu trabalho? Ainda gostando?

- Adorando. Charles não se incomoda que eu continue a trabalhar depois de casarmos.

- Isso é maravilhoso, meu bem. Ele parece ser um homem muito compreensivo.

- E é mesmo. Vai confirmar pessoalmente.

Houve uma trovoada mais alta, como uma deixa oportuna dos bastidores. Estava na hora. Não havia mais nada a dizer, excepto uma despedida final.

- Adeus, minha querida.

Doris manteve a voz cuidadosamente firme.

- Eu a verei no casamento, mamãe. Telefonarei assim que Charles e eu marcarmos a data.

- Está certo. - Havia uma última coisa a dizer, no final das contas. - Eu a amo muito, Tracy. Mas muito mesmo.

Lentamente, Doris Whitney repôs o telefone no gancho.

 

Ela pegou a arma. Só havia uma maneira de fazê-lo. Depressa. Ela levantou a arma para a têmpora e puxou o gatilho.

 

Filadélfia

SEXTA-FEIRA, 21 DE FEVEREIRO 8 HORAS

Tracy Whitney saiu do saguão do seu prédio de apartamentos para uma chuva implacável, misturada com neve, que caía imparcialmente sobre as polidas limusines que desciam pela Market Street, conduzidos por motoristas uniformizados, e sobre as casas abandonadas e, fechadas com tábuas dos cortiços do norte de Filadélfia. A chuva lavava as limusines, deixando-as ainda mais limpas, ao mesmo tempo em que convertia numa confusão molhada o lixo acumulado na frente das fileiras de casas negligenciadas. Tracy Whitney estava a caminho do trabalho. Seu ritmo era animado enquanto seguia para leste, pela Chestnut Street, na direcção do banco. Tinha de fazer um esforço para não se pôr a cantar em voz alta. Usava capa e botas amarelas, um chapéu de chuva também amarelo, que mal conseguia conter uma massa de cabelos castanhos lustrosos. Tinha vinte e poucos anos, um rosto exuberante e inteligente, a boca cheia e sensual, olhos faiscantes, que podiam mudar de um suave verde-musgo para um jade escuro de um momento para outro, um corpo esbelto e atlético. A pele passava por toda a gama de branco translúcido a um rosa profundo, dependendo se estava irada, cansada ou excitada. A mãe lhe dissera certa ocasião:

- Sinceramente, criança, há ocasiões em que não a reconheço. Você muda de um instante para outro.

Agora, enquanto Tracy descia pela rua, as pessoas se viravam para sorrir, invejando a felicidade que brilhava em seu rosto. Ela retribuía aos sorrisos.

É indecente para qualquer pessoa ser tão feliz, pensou Tracy Whitney. Estou casando com o homem que amo e terei o seu filho. O que mais alguém poderia pedir?

Ao se aproximar do banco, Tracy olhou para o relógio. Oito e vinte. As portas do Philadelphia Trust and Fidelity Bank não se abririam para os empregados por outros dez minutos, mas Clarence Desmond, o vice-presidente sénior, no comando do departamento internacional, já estava desligando o alarme externo e abrindo a porta. Tracy gostava de assistir ao ritual matutino. Ficou parada na chuva, esperando, enquanto Desmond entrava no banco e trancava a porta.

Os bancos do mundo inteiro possuem misteriosos processos de segurança e o Philadelphia Trust and Fidelity Bank não era excepção. A rotina jamais variava, a não ser pelo CÓDIGO de segurança, que era mudado todas as semanas. O CÓDIGO daquela semana era uma persiana parcialmente abaixada, indicando aos empregados esperando lá fora que se realizava uma revista, a fim de verificar se não havia intrusos escondidos nas instalações, aguardando a entrada deles para convertê-los em reféns. Clarence Desmond estava efectuando uma busca pelos banheiros, depósito, caixa-forte e área dos cofres particulares, Somente depois de estar plenamente convencido de que se encontrava sozinho no interior do banco é que levantaria a persiana, como um sinal de que estava tudo bem.

 

O contador sénior sempre era o primeiro empregado a ser admitido. Ele ocuparia o seu lugar ao lado do alarme de emergência, até que todos os outros empregados entrassem, depois trancaria a porta.

Pontualmente às oito e meia Tracy Whitney entrou no saguão ornado com seus colegas de trabalho, tirou a capa, o chapéu e as botas, escutou com um divertimento secreto os outros se, queixarem do tempo chuvoso.

- O maldito vento arrancou-me o guarda-chuva - lamentou um caixa. - Estou encharcado.

- Passei por dois patos nadando na Market Strect - comentou jovialmente o chefe dos caixas.

- A previsão do tempo é de que podemos esperar por mais uma semana assim. Eu gostaria de estar na Flórida.

Tracy sorriu e começou a trabalhar. Era encarregada do departamento de transferências por cabo. Até recentemente, transferência de dinheiro de um banco para outro, de um país para outro, era um processo lento e trabalhoso, exigindo o preenchimento de muitos formulários e dependendo dos serviços postais nacionais e internacionais. Com o advento dos computadores, a situação mudara drasticamente. Quantias enormes podiam ser transferidas instantaneamente. A função de Tracy era extrair do computador as transferências, processadas durante a noite e, processa as transferências por computador para outros bancos. Todas as transacções eram em CÓDIGO, mudado regularmente para impedir o acesso não-autorizado. A cada dia, milhões de dólares electrónicos passavam pelas mãos de Tracy. Era um trabalho fascinante, o sangue vital que alimentava as artérias dos negócios por todo o globo. Até que Charles Stanhope III entrara em sua vida, a actividade bancária era a coisa mais emocionante do mundo para Tracy. O Philadelphia Trust and Fidelity Bank tinha uma grande divisão internacional e durante o almoço Tracy e os colegas discutiam tudo o que acontecera pela manhã. Era uma conversa inebriante.

Deborah, uma contadora, anunciou:

- Acabamos de fechar o empréstimo associado de cem milhões de dólares para a Turquia.

Mae Trenton, secretária do vice-presidente do banco, disse:

- Foi decidido na reunião de directoria desta manhã a participação na nova linha de crédito para o Peru . A taxa inicial é acima de cinco milhões de dólares...

Jon Creighton, o fanático do banco, acrescentou:

- Soube que vamos entrar no pacote de socorro ao México com cinquenta milhões. Eles não merecem um único centavo.

- Isso é muito interessante - comentou Tracy. - Os países que atacam a América por ser muito obcecada por dinheiro são sempre os primeiros a nos suplicarem empréstimos.

Fora o assunto pelo qual ela e Charles haviam travado a sua primeira discussão.

Tracy conhecera Charles Stanhope III num simpósio financeiro. Charles era o orador convidado. Ele dirigia a empresa de investimentos fundada por seu bisavô e fazia muitas operações com o banco para o qual Tracy trabalhava. Depois da conferência de Charles, Tracy se aproximara para discordar de sua análise da capacidade das nações do Terceiro Mundo de pagarem as quantias assombrosas que haviam tomado emprestado dos bancos do mundo inteiro e dos governos ocidentais. Charles a princípio se mostrara divertido e depois atraído pelos argumentos veementes da linda moça à sua frente. A discussão se prolongara pelo jantar no velho restaurante Bookbinder's.

 

No começo, Tracy não se impressionara com Charles Stanhope III, mesmo sabendo que ele era considerado o grande prémio de Filadélfia. Charles tinha 35 anos, era rico e vitorioso, pertencia a uma das famílias mais tradicionais de Filadélfia. Com 1,78 metros de altura, cabelos cor de areia ficando ralos, olhos castanhos e uma atitude confiante, até mesmo um pouco pedante, ele era um dos ricos maçantes, na opinião de Tracy.

Como se lesse os seus pensamentos, Charles se inclinara sobre a mesa e dissera:

- Meu pai está convencido de que lhe deram o bebé errado no hospital.

- Como?

- Sou um retrocesso. Acontece que não penso que o dinheiro é o fim de tudo e a coisa mais importante na vida. Mas, por favor, jamais conte a meu pai que eu lhe disse isso.

Havia nele uma despretensão tão encantadora que Tracy se descobrira a apreciá-lo. Imagino como seria estar casada com alguém assim... um homem da alta sociedade.

O pai de Tracy levara a maior parte de sua vida para construir um negócio que os Stanhopes desdenhariam como insignificante. Os Stanhopes e os Whitneys jamais se misturariam, pensara ela. Óleo e água. E os Stanhopes são o óleo. E por que estou reagindo como uma idiota? É ego demais. Um homem me convida para jantar e já estou decidindo se quero ou não casar com ele. Provavelmente nunca mais tornaremos a nos encontrar...

Charles estava dizendo nesse instante:

- Por acaso está livre para jantarmos de novo amanhã?

Filadélfia era uma cornucópia espectacular de coisas para ver e fazer. Nas noites de sábado, Tracy e Charles iam ao balé ou assistiam Riccardo Muti conduzir a Sinfónica de Filadélfia. Durante a semana, exploravam New Market e o singular amontoado de lojas de Society Hill, vagueavam pelo Museu de Arte de Filadélfia e o Museu Rodin.

Tracy parara um dia diante da estátua de O Pensador. Olhara para Charles e sorrira.

- É você!

Charles não se interessava por exercício, mas Tracy adorava Assim, nas manhãs de domingo, ela corria pelo West River Drive ou pelo passeio que acompanhava o Rio Schuylkifl. Na tarde de sábado frequentava uma aula de t'ai chi ch'uan. Depois de uma hora de exercício, exausta mas exultante, ia se encontrar com Charles, no apartamento dele. Ele era um cozinheiro gourmet e gostava de preparar pratos esotéricos como bistilla marroquins, guo bu li, os bolinhos de massa e carne do norte da China, e tahine de poulet au citron.

Charles era a pessoa mais meticulosa que Tracy já conhecera. Ela chegara um dia atrasada 15 minutos para o jantar e o desprazer de Charles lhe estragara o resto da noite. Depois disso, ela jurara que seria sempre pontual com ele.

Tracy tinha muito pouca experiência sexual, mas parecera-lhe que Charles fazia amor da mesma maneira como levava a sua vida; meticulosamente, sempre da maneira conveniente. Houvera uma ocasião em que Tracy decidira ser ousada e anticonvencional na cama. Deixara Charles tão chocado que secretamente se perguntou, se ela não seria alguma espécie de maníaca sexual.

 

A gravidez fora inesperada; quando acontecera, Tracy se descobrira dominada pela incerteza. Charles não levantara a questão do casamento e ela não queria que ele se sentisse na obrigação de casar por causa do bebé. Não tinha certeza se poderia enfrentar um aborto, mas a alternativa era uma opção igualmente angustiosa. Poderia criar uma criança sem a ajuda do pai? Isso seria justo com a criança?

Uma noite, depois do jantar, Tracy resolvera dar a notícia a Charles. Preparara um cassoulet para ele, em seu próprio apartamento, acabara deixando-o queimar, de tanto nervosismo. Ao pôr a carne chamuscada na mesa, ela esquecera o discurso cuidadosamente ensaiado e balbuciara desordenadamente:

- Sinto muito, Charles. Eu... estou grávida.

Houvera um silêncio insuportavelmente prolongado. Quando Tracy já estava prestes a rompê-lo, Charles dissera:

- Vamos casar, é claro.

Tracy experimentara uma sensação de enorme alívio.

- Não quero que você pense que eu... Não precisa casar comigo por causa disso.

Ele levantara a mão para impedi-la de continuar.

- Quero casar com você, Tracy. Tenho certeza que dará uma esposa maravilhosa. - E um instante depois ele acrescentara, falando bem devagar: - É claro que meu pai e minha mãe ficarão um tanto surpresos.

Charles sorrira e a beijara. Tracy indagara, suavemente:

- Por que eles ficarão surpresos?

Charles suspirara.

- Querida, creio que você não compreende em que está se metendo. Os Stanhopes sempre casam... e saiba que estou usando aspas... "com sua própria espécie". Nas famílias tradicionais de Filadélfia.

- E já lhe escolheram uma esposa - adivinhara Tracy.

Charles a tomara nos braços.

- Isso não tem a menor importância. O que conta é quem eu escolhi. Jantaremos com mamãe e papai na próxima sexta-feira. Já é tempo de você conhecê-los.

 

Quando faltavam cinco minutos para as nove horas, Tracy percebeu uma diferença no nível de ruido no banco. Os empregados passavam a falar um pouco mais depressa, a se movimentarem um pouco mais rapidamente. As portas do banco seriam abertas dentro de cinco minutos e tudo tinha de estar pronto. Pela janela da frente, Tracy podia divisar os clientes em fila na calçada lá fora, esperando sob a chuva fria.

Tracy observou enquanto o guarda do banco terminava de distribuir fichas de depósito e retirada pelas bandejas de metal nas seis mesas no corredor central. Os clientes regulares recebem fichas de depósito com um CÓDIGO magnetizado pessoal no fundo; assim, a cada vez que se efectuava um depósito, o computador creditava-o automaticamente na conta apropriada. Mas, frequentemente, os clientes apareciam sem suas fichas de depósito e preenchiam as comuns.

O guarda levantou os olhos para o relógio na parede. Enquanto o ponteiro das horas se aproximava do nove, ele encaminhou-se para a porta e cerimoniosamente destrancou-a.

O dia bancário começara.

 

Durante as horas subsequentes, Tracy se manteve ocupada demais no computador para pensar em qualquer outra coisa. Cada transferência tinha de ser conferida, a fim de certificar-se de que exibia o CÓDIGO correcto. Quando havia um débito, ela registrava o número da conta, a quantia e o banco para o qual o dinheiro estava sendo transferido. Cada banco possuía o seu próprio número de CÓDIGO; havia um catálogo confidencial que continha os CÓDIGOs de todos os principais bancos do mundo.

A manhã passou voando. Tracy planejava aproveitar a hora do almoço para arranjar o cabelo e tinha uma hora marcada com Larry Stefla Botte. Ele cobrava caro, mas valia a pena, pois ela queria que os pais de Charles a conhecessem em sua melhor aparência. Tenho de fazer com que eles gostem de mim. Não me importo com quem escolheram para Charles, pensou Tracy. Ninguém pode fazer Charles tão feliz quanto eu farei.

à uma hora da tarde, quando Tracy pegava sua capa, Clarence Desmond convocou-a para seu gabinete. Desmond era a própria imagem de um executivo importante. Se o banco fizesse comerciais de televisão, ele seria o porta-voz perfeito. Vestia-se conservadoramente, com um ar de autoridade sólida e antiquada, parecia uma pessoa em quem se podia confiar.

- Sente-se, Tracy. - Ele se orgulhava de conhecer o primeiro nome de cada empregado. - Um tempo horrível, não é, mesmo?

- É, sim.

- Mas as pessoas ainda precisam cuidar dos seus problemas bancários. - Desmond esgotara todo o seu estoque de conversa amena. Inclinou-se agora sobre a mesa e acrescentou: - Soube que você e Charles Stanhope estão noivos.

Tracy ficou surpresa.

- Ainda não anunciamos. Como...

Desmond sorriu.

- Qualquer coisa que os Stanhopes fazem é notícia. Estou muito feliz por você. Presumo que voltará a trabalhar connosco. Depois da lua-de-mel, é claro. Não gostariamos de perdê-la. Você é uma das nossas funcionárias mais valiosas.

- Charles e eu conversamos a esse respeito e concordamos que eu seria mais feliz se continuasse a trabalhar aqui.

Desmond sorriu, satisfeito. Stanhope & Sons era uma das casas de investimentos mais importantes na comunidade financeira e seria maravilhoso se obtivesse a sua conta exclusiva para a sucursal que dirigia. Ele recostou-se na cadeira.

- Quando voltar da lua-de-mel, Tracy, haverá uma boa promoção à sua espera, assim como um aumento substancial.

- Puxa, obrigada Isso é sensacional.

Ela sabia que merecia e experimentou um sentimento de orgulho. Ficou ansiosa em contar a Charles. Parecia a Tracy que os deuses conspiravam para fazer tudo o que podiam para inundá-la de felicidade.

 

Os pais de Charles Stanhope III viviam numa mansão antiga e imponente, na Rittenhouse Square. Era um marco na cidade pelo qual Tracy passara muitas vezes. E agora, pensou ela, vai se tornar uma parte da minha vida.

 

Ela estava nervosa. Seu fino penteado sucumbira à umidade no ar. Trocara de vestido quatro vezes. Deveria se apresentar com simplicidade? Formalmente? Tinha um Yves Saint-Laurent que economizara para comprar na Wanamaker's. Se eu o usar, eles pensarão que sou uma esbanjadora. Por outro lado, se puser algum dos meus vestidos de liquidação da Pôst Hom, elas pensarão que o filho está casando com alguém abaixo de sua classe. Ora essa, eles pensarão assim de qualquer maneira, concluiu Tracy. Ela escolheu finalmente uma saia de lã cinza bem simples e uma blusa branca de seda, pondo no pescoço a corrente fina de ouro que a mãe lhe mandara de presente de Natal.

 

A porta da mansão foi aberta por um mordomo de libré.

- Boa noite, Senhorita Whitney.

O mordomo conhece meu nome, pensou Tracy. Isso é um bom sinal? Um mau sinal?

- Posso ajudá-la a tirar o casaco?

Ela estava pingando água no lindo tapete persa. O mordomo conduziu-a por um vestibulo de mármore que parecia duas vezes maior do que todo o banco. Tracy pensou, em pânico: Oh, Deus, estou vestida completamente errada! Deveria ter usado o Yves Laurent. Ao entrar na biblioteca, ela sentiu um fio correr no tornozelo da meia-calça, mas estava frente a frente com os pais de Charles.

Charles Stanhope, pai, era um homem de aparência austera, com sessenta e poucos anos. Parecia de fato um homem bem-sucedido; era uma projecção do que Charles seria dentro de 30 anos. Tinha olhos castanhos, como os de Charles, queixo firme, uma orla de cabelos brancos. Tracy gostou dele instantaneamente. Era o perfeito avô para seu filho.

A mãe de Charles tinha uma aparência impressiva. Era um tanto baixa e corpulenta, mas apesar disso irradiava uma impressão sumptuosa. Ela parece fina e digna de confiança, pensou Tracy. Dará uma avó maravilhosa. A Sra. Stanhope estendeu a mão.

- Minha cara, foi muita gentileza sua vir nos visitar. Pedimos a Charles que nos concedesse uns poucos minutos a sós com você. Não se importa?

- Claro que ela não se importa - declarou o pai de Charles. - Sente-se... Tracy, não é mesmo?

- Isso mesmo, senhor.

Os dois sentaram-se num sofá, diante dela. Por que me sinto como se estivesse prestes a sofrer um interrogatório? Tracy podia ouvir a voz da mãe: Meu bem, Deus jamais lhe impingirá qualquer coisa que não possa manipular. Basta apenas que dê um passo de cada vez.

O primeiro passo de Tracy foi um sorriso que saiu completamente errado, porque naquele instante podia sentir o fio corrido na meia-calça subir para o joelho. Tentou escondê-lo com as mãos.

- Pois muito bem! - A voz do Sr. Stanhope era vigorosa. - Você e Charles querem casar.

A palavra querem perturbou Tracy. Certamente Charles lhes dissera que iam casar.

- Isso mesmo - murmurou Tracy.

- Você e Charles não se conhecem há muito tempo, não é? - perguntou a Sra. Stanhope.

Tracy fez um esforço para reprimir o ressentimento. Eu estava certa. Será um interrogatório.

- Tempo suficiente para saber que nos amamos, Sra. Stanhope.

- Amor? - disse o Sr. Stanhope.

A Sra. Stanhope interveio:

- Para ser franca, Senhorita Whitney, a notícia de Charles foi um choque para seu pai e para mim. - Ela sorriu indulgentemente. - Charles lhe falou sobre Charlotte, não é mesmo?

 

Ela percebeu a expressão no rosto de Tracy e se apressou em acrescentar:

- Entendo. O fato é que ele e Charlotte cresceram juntos. Sempre foram muito ligados e... francamente, todos esperavam que, anunciassem seu noivado este ano.

Não havia necessidade de uma descrição de Charlotte. Tracy podia perfeitamente imaginá-la. Morava na casa ao lado. Rica, do mesmo meio social de Charles. Todas as melhores escolas. Adorava cavalos e ganhara taças.

- Fale-nos a esse respeito de sua família - sugeriu o Sr. Stanhope.

Por Deus, esta é uma cena do filme da madrugada na televisão, pensou Tracy, irritada. Sou a personagem de Rita Hayworth, encontrando-me pela primeira vez com os pais de Cary Grant. Preciso de um drinque. Nos filmes antigos, o mordomo, sempre aparece em socorro com uma bandeja de drinques.

- Onde nasceu, minha cara? - perguntou a Sra. Stanhope.

- Na Louisiana. Meu pai era um mecânico.

Não havia necessidade de acrescentar isso, mas Tracy fora incapaz de resistir. Que eles fossem para o inferno. Ela tinha o maior orgulho do pai.

- Um mecânico?

- Isso mesmo. Ele abriu uma pequena fábrica em Nova Orleans e desenvolveu-a numa das grandes companhias em seu sector. Quando papai morreu, há cinco anos, minha mãe assumiu o comando da empresa.

- O que essa... hen... companhia produz?

- Canos de descarga e outras peças de automóveis.

Sr. e Sra. Stanhope trocaram um olhar e murmuraram em uníssono:

- Hen...

O tom deles deixou Tracy tensa. Quanto tempo precisarei para amá-los?, perguntou a si mesma. Olhou para os dois rostos impassíveis à sua frente e, para seu horror, começou a balbuciar meio contrafeita:

- Tenho certeza de que gostarão muito de minha mãe. Ela é bonita, inteligente, simpática. Uma mulher do Sul. Bem pequena, é claro, mais ou menos de sua altura, Sra. Stanhope...

As palavras de Tracy ficaram pairando no ar, sufocadas pelo silêncio opressivo. Ela soltou uma risadinha tola, que se desvaneceu sob o olhar severo da Sra. Stanhope. Foi o Sr. Stanhope quem rompeu o silêncio, dizendo sem qualquer expressão:

- Charles nos disse que você está grávida.

Ah, como Tracy gostaria que ele não tivesse revelado isso! A atitude dos seus pais era de franca desaprovação. Era como se o filho nada tivesse a ver com o que acontecera. Eles a faziam sentir como se fosse um estigma. Sei agora o que deveria ter usado, pensou Tracy. Uma letra escarlate.

- Não compreendo como actualmente e...

A Sra. Stanhope não pôde continuar a falar porque nesse momento Charles entrou na sala. Tracy nunca se sentira tão contente por ver alguém, em toda a sua vida.

- E então? - disse Charles, radiante. - Como se estão dando?

Tracy levantou-se e correu para os seus braços.

- Muito bem, querido.

 

Ela se aconchegou a ele, pensando: Graças a Deus que Charle, não é como os pais. Nunca poderia ser como eles. São pessoas de mentalidade tacanha, senobes e frias.

Houve uma tosse discreta por trás deles e o mordomo se adiantou com uma bandeja de drinques. Tudo acabará bem, disse Tracy a si mesma. Este filme terá um final feliz.

 

O jantar foi excelente, mas Tracy estava nervosa demais para comer. Discutiram negócios bancários e política, a situação aflitiva do mundo, uma conversa sempre impessoal e polida. Ninguém chegou a dizer em voz alta: "Você preparou uma armadilha para levar nosso filho ao casamento." Para ser justa, pensou Tracy, devo admitir que eles têm todo o direito de estar preocupados com a mulher com quem o filho vai casar. Charles possuirá a firma um dia e é importante que ele tenha a esposa certa. Tracy prometeu a si mesma: E ele terá.

Gentilmente, Charles pegou-lhe a mão, que torcia o guardanapo por baixo da mesa, sorriu e piscou-lhe um olho. O coração de Tracy se reanimou.

- Tracy e eu preferimos um casamento pequeno - disse Charles. - E depois...

- Não diga bobagem - interrompeu-o a Sra. Stanhope. - Nossa família não tem casamentos pequenos, Charles. Haverá dezenas de amigos que desejarão vê-lo casar.

Ela fez uma pausa, olhando para Tracy, como a avaliar sua figura.

- Talvez devêssemos providenciar para que os convites do casamento sejam expedidos imediatamente. - Uma pausa e, com uma reflexão posterior, ela acrescentou: - Isto é, se for aceitável para você.

- Claro que é.

Haveria mesmo um casamento. Por que cheguei a duvidar disso? A Sra. Stanhope disse:

- Alguns dos convidados virão do exterior. Tomarei as providências para que fiquem hospedados na casa.

O Sr. Stanhope indagou:

- Já decidiram onde passarão a lua-de-mel?

Charles sorriu.

- Essa é uma informação confidencial, papai.

Ele apertou a mão de Tracy, enquanto a Sra. Stanhope perguntava:

- Qual o prazo da lua-de-mel que estão planeando?

- Cerca de cinquenta anos - respondeu Charles.

Tracy adorou-o por isso. Depois do jantar, eles foram tomar conhaque na biblioteca. Tracy correu os olhos pela sala antiga e adorável, com painéis de carvalho, as prateleiras com livros encadernados em couro, dois Corots, um pequeno Copley e uma Reynolds. Não faria a menor diferença para ela se Charles não tivesse qualquer dinheiro, mas admitiu para si mesma que seria uma vida bastante agradável.

Já passava da meia-noite quando Charles levou-a de volta a seu pequeno apartamento, ao lado do Fairmont Park.

- Espero que a noite não tenha sido muito difícil para você, Tracy. Mamãe e papai podem ser às vezes um pouco irredutíveis.

- Oh, não... eles foram maravilhosos - mentiu Tracy.

Ela estava exausta da tensão da noite, mas mesmo assim indagou, quando chegaram à porta de seu apartamento:

- Não vai entrar, Charles?

 

Ela precisava aconchegar-se em seus braços. Tinha vontade de lhe dizer: "Eu o amo, querido. E ninguém neste mundo jamais poderá nos separar".

- Esta noite não será possível - disse ele. - Terei uma manhã sobrecarregada.

Tracy ocultou seu desapontamento.

- Eu compreendo querido.

- Falarei com você amanhã.

Ele deu-lhe um beijo rápido e Tracy observou-o se afastar pelo corredor.

 

O apartamento estava em chamas e o som insistente das sirenes dos bombeiros romperam abruptamente o silêncio da noite. Tracy soergueu-se abruptamente na cama, tonta de sono, farejando a fumaça no quarto às escuras. A campainha continuou e lentamente ela percebeu que era o telefone. O relógio na mesinha-de-cabeceira informava que eram duas e meia da madrugada. Seu primeiro pensamento de pânico foi que alguma coisa acontecera com Charles. Ela pegou o telfone bruscamente.

- Alô?

Uma voz de homem distante indagou:

Tracy Whitney?

Ela hesitou. Se era um telefonema obsceno...

- Quem está falando?

- Aqui é o Tenente Miller, do Departamento de Polícia de Nova Orleans. Estou falando com Tracy Whitney?

- Ela mesma.

O coração de Tracy começou a disparar.

- Infelizmente, tenho uma má notícia a lhe dar.

A mão de Tracy apertou o telefone com toda a força.

- É sobre sua mãe.

- Ela... mamãe sofreu algum acidente?

- Ela está morta, Senhorita Whitney.

- Não!

Foi um grito. Era de facto um trote. Algum maluco tentando assustá-la Não havia nada de errado com sua mãe. Ela estava viva. Eu a amo muito, Tracy. Mas muito mesmo.

- Detesto ter de lhe dar a notícia desse jeito, Senhorita Whitney.

Era real. Era um pesadelo, mas estava acontecendo. Ela não podia falar. A mente e a língua ficaram paralisadas. A voz do tenente acrescentou:

- Alô? Está me ouvindo, Senhorita Whitney? Alô?

- Pegarei o primeiro avião.

 

Tracy sentou na pequena cozinha do apartamento, pensando na mãe. Era impossível que ela estivesse morta. Sempre fora uma mulher vibrante, cheia de vida. Haviam desfrutado um relacionamento intimo, repleto de amor. Desde que era garotinha que Tracy podia levar seus problemas à mãe, falar sobre a escola e os garotos, posteriormente sobre os homens. Quando o pai de Tracy morrera, haviam sido apresentadas muitas propostas por pessoas que queriam comprar a empresa. Ofereceram a Doris Whitney dinheiro suficiente para ela viver confortavelmente pelo resto de sua vida. Mas a mãe se recusara obstinadamente a vender.

- Seu pai fez esta empresa. Não posso agora jogar fora todo o trabalho árduo.

 

E ela mantivera a empresa em plena prosperidade. Oh, mamãe. eu a amo tanto!, pensou Tracy. Agora, você nunca conhecerá Charles, nunca verá o seu neto. Ela se pôs a chorar.

Tracy fez um café e deixou esfriar, enquanto continuava sentada, no escuro. Queria desesperadamente telefonar para Charles e contar-lhe o que acontecera, tê-lo a seu lado. Olhou para o relógio da cozinha. Eram três e meia da madrugada. Não o acordaria; ligaria para ele de Nova Orleans. Especulou se aquilo afectaria os planos de casamento e no mesmo instante sentiu-se culpada pelo pensamento. Como podia pensar em si mesma num momento como aquele? O Tenente Miller dissera:

- Quando chegar aqui, pegue um táxi e venha directo para a chefatura da polícia.

Porquê a chefatura da policia? O que acontecera?

 

Parada no apinhado aeroporto de Nova Orleans, esperando por sua mala, cercada por viajantes impacientes, a se empurrarem, Tracy sentia-se sufocada. Tentou chegar mais perto do carrossel de bagagem, mas ninguém lhe dava passagem. Estava ficando cada vez mais nervosa, receando o que teria de enfrentar dali a pouco. Empenhava-se em dizer a si mesma que tudo não passava de um equívoco, mas as palavras ressoavam em sua cabeça: Infelizmente tenho uma má noticia a lhe dar.. Ela está morta, Senhorita Whitney... Detesto ter de lhe dar a notícia assim...

Depois que finalmente pegou a mala, Tracy embarcou num táxi e repetiu o endereço que o tenente lhe fornecera:

- South Broad Street, sete-um-cinco, por favor.

O motorista sorriu-lhe pelo espelho retrovisor.

- Uma encrenca, hem?

Nada de conversa. Não agora. A mente de Tracy estava dominada demais pelo turbilhão. O táxi seguiu para leste, pela Lake Ponchartrain Causeway. O motorista puxou conversa:

- Veio aqui para a grande festa, moça?

Tracy não tinha a menor idéia do que ele estava falando, mas pensou: Não. Vim aqui para a morte. Ela estava consciente do zumbido da voz do motorista, mas não escutava as palavras. Sentada muito rigída, alheia ao ambiente famíliar por que passava. Foi somente quando se aproximaram do Bairro Francês que Tracy tornou-se cônsciente do crescente barulho. Era o som de uma multidão enlouquecida, amotinados berrando alguma antiga litania frenética.

- Só dá para trazê-la até aqui - informou o motorista.

Foi nesse instante que Tracy levantou os olhos e viu. Era uma visão incrível. Havia centenas de milhares de pessoas gritando, usando máscaras, fantasiadas de dragões e crocodilos, de deuses pagãos, povoando as ruas e calçadas à frente, com uma cacofonia de som desvairada. Era uma explosão insana de corpos, música e dança.

- É melhor saltar antes que eles virem o meu táxi - advertiu o motorista. - Esse maldito Mardi Gras...

Mas é claro! Era fevereiro, o momento em que toda a cidade celebrava o início da Quaresma, fazendo o seu carnaval. Tracy saltou do táxi e parou por um instante junto ao meio-fio, com a mala na mão. E no momento seguinte foi envolvida pela multidão a gritar e dançar. Era obsceno, um sabá de feiticeiras, um milhão de Fúrias comemorando a morte de sua mãe. A mala foi arrancada da mão de Tracy e desapareceu. Ela foi agarrada e beijada por um homem gordo, com uma máscara de demónio. Um cervo apertou-lhe os seios e um panda gigante agarrou-a por trás e levantou-a. Tracy tentou se desvencilhar e fugir dali, mas era impossível. Estava cercada, acuada, uma parte da celebração de canto e dança. Foi se deslocando com a multidão frenética, as lágrimas escorrendo pelas faces. Não havia escapatória. Encontrava-se à beira da histeria quando finalmente conseguiu se livrar e fugir para uma rua mais sossegada. Ficou parada por um longo tempo, encostada num lampião, respirando fundo, lentamente recuperando o controle de si mesma. E, depois, encaminhou-se para a chefatura de polícia.

 

O Tenente Miller era um homem de meia-idade, de expressão mortificada, o rosto enrugado, parecendo genuinamente contrafeito no papel que tinha de desempenhar.

- Lamento não poder recebê-la no aeroporto, mas a cidade inteira enlouqueceu - disse ele . - Examinamos as coisas de sua mãe e você foi a única que pudemos encontrar para chamar.

- Por favor, tenente, conte-me o que... o que aconteceu com minha mãe.

- Ela cometeu suicídio.

Tracy sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.

- Mas... mas isso é impossível! Por que ela haveria de se matar? Ela tinha tudo para viver!

A voz de Tracy era trémula.

- Ela deixou um bilhete para você

 

O necrotério era frio, indiferente e aterrador. Tracy foi conduzida por um corredor comprido e branco até uma sala grande, asséptica e vazia. E subitamente compreendeu que a sala não se achava vazia.

Estava povoada pelos mortos. Pela sua morta.

Um atendente de jaleco branco aproximou-se de uma parede, estendeu a mão para uma alça e puxou uma gaveta enorme.

- Quer dar uma olhada?

Não! Não quero ver o corpo vazio e sem vida estendido nessa caixa. Ela queria sair dali. Queria voltar algumas horas no tempo, quando o alarme de incêndio soava. E que seja um incêndio de verdade, não o telefone, não minha mãe morta. Tracy adiantou-se, lentamente, cada passo um grito interior. E depois estava olhando para o corpo inanimado que a gerara, alimentara, rira com ela e a amara. Ela inclinou-se e beijou o rosto da mãe . O rosto estava frio e flexível.

- Oh, mamãe! - sussurrou Tracy. - Por quê? Por que fez isso? - Temos de efectuar uma autópsia - disse o atendente. É a lei estadual nos casos de suicídio.

O bilhete que Doris Whitney deixara não oferecia qualquer resposta:

 

               Minha querida Tracy:

Perdoe-me, por favor. Fracassei e não podia suportar ser um fardo para você. Esta é a melhor solução. Eu a amo muito.

                               Mamãe

 

O bilhete era tão inanimado e desprovido de sentido quanto o corpo que se achava na gaveta.

 

Tracy tomou as providências para o enterro naquela tarde, depois pegou um táxi para a casa da família. à distância, podia ouvir o rugido dos foliões do Mardi Gras, como alguma celebração estranha e lúgubre

A residência dos Witneys era uma casa vitoriana no Garden District, na área residencial conhecida como Uptown. Como a maioria das residências de Nova Orleans, era construida em madeira e não tinha porão, pois o lugar situava-se abaixo do nível do mar.

Tracy crescera naquela casa, que estava povoada por recordações agradáveis e afetuosas. Ela não estivera em casa no ano anterior. Quando o táxi diminuiu, a fim de parar diante do prédio ela ficou chocada com o cartaz grande que avistou no gramado: à VENDA - COMPANHIA IMOBILIáRIA DE NOVA ORLEANS. Era impossível. Nunca venderei esta casa, a mãe dissera muitas vezes. Fomos muito felizes aqui.

Dominada por um medo insólito e irracional, Tracy passou por uma enorme magnólia, encaminhando-se para a porta da frente. Ganhara a chave de casa quando estava na sétima série e a carregava desde então como um talismã, uma lembrança do refúgio que sempre estaria ali, à sua espera.

Ela abriu a porta e entrou. Parou prontamente, aturdida. Os cómodos estavam inteiramente vazios, desprovidos de móveis. Todas as peças antigas e bonitas haviam desaparecido. A casa era como uma casca vazia, abandonada pelas pessoas que outrora a ocupavam. Tracy correu de um cómodo para outro, com uma incredulidade crescente. Era como se tivesse ocorrido um desastre repentino. Subiu apressadamente e parou na porta do quarto que ocupara durante a maior parte de sua vida. O quarto a fitava, frio e vazio. Oh, Deus, que pode ter acontecido? Tracy ouviu a campainha da porta da frente e desceu a escada para atender, como se estivesse em transe.

Otto Schmidt estava parado na porta. O capataz da Whitney Automotive Parts Company era um homem idoso, o rosto todo enrugado, um corpo muito magro, em que se destacava a barriga de cerveja. Uma tonsura de cabelos brancos emoldurava o crânio.

- Acabei de receber a notícia, Tracy - disse ele, com um forte sotaque alemão - Eu... eu não sei como lhe dizer o quanto lamento.

Tracy segurou-lhe as mãos.

- Oh, Otto, não sabe como estou feliz em vê-lo! Mas entre. - Ela levou-o para a vazia sala de estar. - Lamento que não haja lugar para sentar. Importa-se de se sentar no chão?

- Claro que não.

Sentaram-se de frente um para o outro, os olhos aturdidos pela dor. Otto Schmidt fora empregado da companhia por tanto tempo quanto Tracy podia se lembrar. Ela sabia o quanto o pai dependia dele. Quando a mãe herdara a companhia, Schmidt continuara para dirigi-la.

- Não entendo o que está acontecendo, Otto. A polícia diz que mamãe cometeu suicídio. Mas você sabe muito bem que não havia motivo para ela se matar. - Um pensamento súbito ocorreu-lhe. - Ela não estava doente, não é mesmo? Ela não tinha alguma doença terrível. . .

- Não. Não foi isso.

Ele desviou os olhos, contrafeito, alguma coisa em suspense nas suas palavras. Tracy disse, lentamente:

- Você sabe o que foi.

Ele fitou-a com os olhos azuis remelentos.

 

- Sua mãe não lhe contou o que vinha acontecendo ultimamente. Não queria preocupá-la.

Tracy franziu o rosto.

- Não queria me preocupar com o quê? Continue... por favor.

As mãos calejadas de Otto Schmidt se abriram e fecharam.

- Já ouviu falar de um homem chamado Joe Romano?

- Joe Romano? Não. Por quê?

Otto Schmidt piscou os olhos.

- Romano procurou sua mãe há seis meses e disse que queria comprar a companhia. Ela respondeu que não estava interessada em vender. Mas ele ofereceu dez vezes mais do que a companhia valia e ela não pôde recusar. Ficou muito animada. Investiria todo o dinheiro em aplicações seguras, que proporcionariam uma receita de que vocês duas poderiam viver, confortavelmente, pelo resto de suas vidas. Tencionava fazer-lhe uma surpresa. Fiquei muito satisfeito por ela. Há três anos que eu estava querendo me aposentar, mas não podia deixar a Sra. Doris sozinha, não é mesmo? Esse Romano... - Otto pronunciou a palavra com uma fúria evidente. - Esse Romano deu a ela uma pequena entrada. O dinheiro grande... o pagamento do saldo... deveria entrar no mês passado.

Tracy disse, impaciente:

- Continue, Otto. O que aconteceu?

- Assim que assumiu, Romano despediu todo mundo e trouxe o seu próprio pessoal. E começou a depredar a companhia. Vendeu todos os bens e encomendou uma porção de equipamentos, vendendo tudo, mas não pagando. Os fornecedores não se preocuparam com o atraso no pagamento, porque pensavam que ainda estavam tratando com sua mãe. Quando finalmente começaram a pressionar sua mãe pelo pagamento, ela procurou Romano e exigiu que ele explicasse o que estava acontecendo. Ele disse que desistira da transação e estava lhe devolvendo a companhia. A esta altura, porém, a companhia já não valia mais nada e ainda por cima sua mãe devia meio milhão de dólares, que não tinha condições de pagar quase me matou e à minha mulher, Tracy. Acompanhamos a luta de sua mãe para salvar a companhia. Mas não havia jeito. Eles a forçaram à falência. Tomaram-lhe tudo... a companhia, esta casa, até mesmo seu carro.

- Oh, Deus!

- Há mais. O promotor distrital comunicou à sua mãe que ia pedir uni indiciamento por fraude, que ela se arriscava a uma sentença de prisão. Acho que foi nesse dia em que ela realmente morreu.

Tracy fervilhava com uma onda de raiva impotente.

- Mas tudo o que ela tinha de fazer era contar a verdade... explicar o que aquele homem lhe fez.

O velho capataz sacudiu a cabeça.

- Joe Romano trabalha para um homem chamado Anthony Orsatti. E Orsatti manda em Nova Orleans- Descobri tarde demais que Romano já tinha feito a mesma coisa com outras companhias. Mesmo que sua mãe o levasse aos tribunais, muitos anos se passariam antes que tudo ficasse esclarecido. E ela não tinha dinheiro para lutar contra ele.

- Por que ela não me disse nada?

Era um brado de angústia, um brado pela angústia da mãe.

- Sua mãe era uma mulher orgulhosa. E o que você podia fazer? Não há nada que alguém possa fazer.

Você está enganado, pensou Tracy, furiosa.

 

- Quero falar com Joe Romano. Onde posso encontrá-lo?

Schmidt disse, incisivamente:

- Esqueça-o. Não faz idéia de como ele é poderoso.

- Onde ele mora, Otto?

Ele tem uma casa perto de Jackson Square. Mas não adiantará ir até lá, Tracy.

Tracy não respondeu. Estava dominada por uma emoção que lhe era totalmente desconhecida: o ódio. Joe Romano pagará pela morte de minha mãe, jurou Tracy para si mesma.

 

Ela precisava de tempo. Tempo para pensar, tempo para planejar o seu próximo movimento. Não suportava voltar para a casa despojada e por isso foi hospedar-se num pequeno hotel na Magazine Street, longe do Bairro Francês, onde o carnaval desvairado ainda continuava. Não tinha bagagem e o desconfiado recepcionista disse:

- Terá de pagar adiantado. São quarenta dólares pela noite.

Tracy telefonou do quarto para Charles Desmond, a fim de comunicar-lhe que não poderia trabalhar por alguns dias. Ele disfarçou a irritação pela inconveniência e disse a Tracy:

- Não se preocupe. Arrumarei alguém para ficar no seu lugar até voltar.

Desmond esperava que ela se lembrasse de contar a Charles Stanhope como ele fora compreensivo e prestativo. O telefonema seguinte de Tracy foi para Charles.

- Charles, querido...

- Onde diabo você está, Tracy? Mamãe tentou encontrá-la durante toda a manhã. Ela queria almoçar hoje com você. As duas têm muitas coisas para combinar.

- Desculpe, querido. Estou em Nova Orleans.

- Você está onde? O que foi fazer em Nova Orleans?

- Minha mãe... morreu.

A palavra quase ficou presa na garganta de Tracy.

- Oh... - O tom de voz de Charles mudou no mesmo instante. - Sinto muito, Tracy. Deve ter sido muito súbito. Ela não era bastante jovem?

Ela era muito jovem, pensou Tracy, desesperada. Em voz alta, ela disse:

- Era, sim.

- O que aconteceu? Você está bem?

Por algum motivo, Tracy não podia contar a Charles que fora suicídio. Queria ansiosamente contar toda a história terrível do que haviam feito com sua mãe, mas se conteve. O problema é meu, pensou ela. Não posso descarregar meu fardo em Charles.

- Não se preocupe, querido. Estou bem.

- Quer que eu vá até aí, Tracy?

- Não, obrigada. Posso cuidar de tudo. Enterrarei mamãe amanhã. E estarei de volta a Filadélfia na segunda-feira.

Depois de desligar, ela estendeu-se na cama do hotel, os pensamentos à deriva. Pôs-se a contar as placas acústicas no teto. Um... dois... três... Romano... quatro... cinco... Joe Romano... seis... sete... ele pagaria. Ela não tinha qualquer plano. Sabia apenas que não permitiria que Joe Romano escapasse impune ao que fizera, que encontraria algum meio de fazê-lo pagar.

Tracy deixou o hotel ao final da tarde e seguiu a pé pela Canal Strect, até encontrar uma loja de penhores. Um homem de aspecto cansado, usando uma antiquada pala verde, estava sentado num guichê, por trás do balcão.

- O que deseja?

- Eu... quero comprar um revólver

- De que tipo?

- Sabe como é... apenas um revólver...

- Quer um 32, um 45, um...

Tracy nunca empunhara uma arma de fogo.

- Um... um 32 servirá.

 

- Tenho aqui um excelente Smith & Wesson calibre 32 por 229 dólares. Tenho também um Charter Arms 32 por 159...

Tracy não trouxera muito dinheiro na viagem.

- Não tem alguma coisa mais barata?

Ele deu de ombros.

- O mais barato é um bodoque, dona. Mas podemos fazer uma coisa. Eu lhe venderei o 32 por 150 dólares e ofereço de brinde uma caixa de balas.

- Está bem.

Tracy observou enquanto o homem se deslocava para um arsenal sobre uma mesa mais atrás e seleccionava um revólver. Ele levou-o para o balcão.

- Sabe como usá-lo?

- Sei... basta puxar o gatilho.

O homem soltou um grunhido.

- Quer que eu lhe ensine a carregar?

Ela já ia dizer que não precisava, que não tencionava usar o revólver, que queria apenas assustar alguém. Mas compreendeu como isso pareceria absurdo.

- Quero, sim, por favor.

Tracy observou enquanto ele inseria as balas no tambor.

- Obrigada.

Ela abriu a bolsa e contou o dinheiro.

- Precisarei de seu nome e endereço para o registro policial. Era uma coisa que não ocorrera a Tracy. Ameaçar Joe Romano com um revólver era um ato criminoso. Mas ele é o criminoso e não eu. A pala verde dava aos olhos do homem uma impressão lúgubre enquanto observavam Tracy.

- Nome?

- Smith... Joan Smith.

Ele fez uma anotação num cartão.

- Endereço?

- Dowman Road... Dowman Road, 32.

Sem levantar os olhos, ele comentou:

- Não existe Dowman Road, 32. Seria no meio do rio. Vamos passar para 25.

Ele estendeu o recibo para Tracy. Ela assinou JOAN SWMITH.

- Isso é tudo?

- É sim.

Cuidadosamente, ele empurrou o revólver pelo guichê. Tracy fitou-o imóvel por um instante, depois pegou-o e guardou na bolsa, virou-se e deixou a loja apressadamente.

- Ei, dona! - gritou o homem, enquanto ela se afastava. - Não esqueça que a arma está carregada!

 

A Jackson Square fica no coração do Bairro Francês, com a bela Catedral de St- Louis dominando-a como uma bênção. As casas antigas e aprazíveis da praça ficam ao abrigo do tráfego intenso por sebes altas e graciosas magnólias. Joe Romano vivia numa daquelas casas.

Tracy esperou até o anoitecer para partir. O carnaval deslocara-se para a Chartres Strect; à distância, ela podia ouvir o som do pandemónio em que fora engolfada anteriormente.

 

Tracy parou nas sombras, observando a casa, consciente do peso do revólver em sua bolsa. O plano que elaborara era simples. Tentaria argumentar com Joe Romano, pediria que limpasse o nome da mãe. Se ele recusasse, iria ameaçá-lo com o revólver, obrigá-lo a escrever uma confissão. E a levaria para o Tenente Miller, que prenderia Romano, resguardando assim o nome da mãe. Desejava desesperadamente que Charles estivesse ali, a seu lado, mas sabia que era melhor cuidar de tudo sozinha. Tinha de deixar Charles de fora daquilo. Contaria a ele depois que tudo terminasse, com Joe Romano atrás das grades, que era o lugar a que ele pertencia. Um pedestre se aproximava. Tracy esperou até que ele se afastasse e a rua ficasse completamente deserta.

Ela subiu os degraus da casa e tocou a campainha. Ninguém atendeu. Ele está provavelmente num dos bailes particulares oferecidos durante o Mardi Gras. Mas posso esperar, pensou Tracy. Posso esperar até que ele volte para casa. Subitamente, a luz da varanda foi acesa, a porta se abriu e um homem apareceu. Sua aparência foi uma surpresa para Tracy. Ela imaginara um gangster de aspecto sinistro, o mal estampado no rosto. Em vez disso, deparava-se com um homem atraente e simpático, que poderia facilmente ser tomado por um professor universitário. Sua voz era baixa e amistosa:

- Olá. Em que posso ajudá-la?

- Você é Joseph Romano?

A voz de Tracy estava trémula.

- O próprio. O que deseja?

Ele tinha um comportamento insinuante e agradável. Não é de admirar que minha mãe se tenha deixado enganar por esse homem pensou Tracy.

- Eu... eu gostaria de lhe falar, Sr. Romano.

Ele contemplou-a por um momento, de alto a baixo.

- Claro. Entre, por favor.

Tracy acompanhou-o a uma sala de estar cheia de móveis antigos, bonitos e lustrosos. Joseph Romano vivia muito bem. à custa do dinheiro de minha mãe, pensou Tracy, amargurada.

- Eu ia me servir de um drinque. O que deseja tomar?

- Nada.

Ele fitou-a com uma expressão curiosa.

- Sobre o que deseja me falar, Senhorita ...

- Tracy Whitney. Sou a filha de Doris Whitney.

Romano fitou-a impassível por um momento e depois uma expressão de reconhecimento aflorou em seu rosto.

- Ah, sim... Soube o que aconteceu com sua mãe. Uma coisa lamentável.

Uma coisa lamentável! Ele causara a morte de sua mãe e esse era o único comentário que tinha a fazer.

- Sr. Romano, o promotor distrital acha que minha mãe foi culpada de fraude. Mas sabe que isso não é verdade. E quero que me ajude a limpar o nome dela.

Ele soltou uma risada.

- Nunca falo de negócios durante o Mardi Gras. É contra a minha religião. - Romano foi até o bar e começou a servir dois drinques. - Creio que se sentirá melhor depois que tomar um drinque.

Ele não lhe deixava opção. Tracy abriu a bolsa e tirou o revólver. Apontou para ele.

- Eu lhe direi o que fará com que eu me sinta melhor, Sr. Romano: obrigá-lo a confessar o que exactamente fez à minha mãe. - Joseph Romano virou-se e viu a arma.

- É melhor guardar isso, Senhorita Whitney. Pode disparar.

 

- E vai mesmo disparar, se não fizer exactamente o que eu mandar. Escreverá como saqueou a companhia, levando-a à falência e causando o suicídio de minha mãe.

Ele a observava atentamente agora, uma expressão cautelosa nos olhos escuros.

- E se eu recusar?

- Então eu vou matá-lo.

Tracy podia sentir o revólver tremendo em sua mão.

- Não me parece uma assassina, Senhorita Whitney. - Ele se aproximava dela agora, com um copo na mão. A voz era suave e sincera. - Nada tive a ver com a morte de sua mãe e pode estar certa de que eu...

Ele jogou o drinque no rosto de Tracy. Ela sentiu a ardência do álcool em seus olhos e um instante depois a arma foi derrubada de sua mão.

- Sua velha me escondeu uma coisa - disse Joe Romano. - Ela não me contou que tinha uma filha tão gostosa.

Ele a segurava, imobilizando-lhe os braços. Tracy não podia ver nada e sentia-se apavorada. Tentou se desenvencilhar, mas ele a encostou numa parede, comprimindo-se contra o seu corpo.

- Tem coragem, boneca. Gosto disso. E me deixa com o maior tesão.

A voz dele soava rouca. Tracy podia sentir o seu corpo ardente contra o dela. Tentava novamente se desenvencilhar, mas estava impotente em seu aperto.

- Veio aqui por um pouco de excitamento, hem? Pois é o Joe vai lhe dar.

Ela tentou gritar, mas a voz saiu sufocada:

- Largue-me!

Ele rasgou-lhe a blusa, sussurrando:

- Ei, olhe só para esses peitos! - Ele começou a apertar-lhe os mamilos. - Lute comigo, boneca. Gosto disso.

- Largue-me!

Romano apertou-a com mais força ainda, machucando-a. Tracy sentiu que estava sendo forçada para o chão.

- Aposto que você nunca foi comida por um homem de verdade.

Ele se achava agora montado por cima dela, o corpo pesado a comprimi-la, as mãos subindo por suas coxas. Tracy tacteou às cegas, os dedos encontraram o revólver. Agarrou-o e houve uma explosão súbita, estrondosa.

- Oh, Deus! - exclamou Romano.

A pressão dele relaxou de repente. Através de uma névoa vermelha, Tracy observou horrorizada, enquanto ele saia de cima dela, arriando no chão, as mãos comprimindo o lado.

- Você atirou em mim... sua puta... atirou em mim...

Tracy estava paralisada, incapaz de se mexer. Sentiu que ia vomitar, os olhos se achavam cegos pela dor intensa. Conseguiu se levantar, virou-se e cambaleou para uma porta no outro lado da sala. Abriu-a. Era um banheiro. Ela foi até a pia, encheu-a de água fria, molhou os olhos, até que a dor começou a se desvanecer e a visão clareou. Contemplou-se no espelho por cima da pia. Os olhos estavam injectados, com um aspecto horrível. Santo Deus, acabei de matar um homem! Ela voltou correndo à sala. Joe Romano estava caído no chão, o sangue se espalhando sobre o tapete branco. Tracy parou ao lado, o rosto muito pálido.

- Sinto muito - murmurou ela, atordoada. - Eu não tinha intenção...

- Ambulância...

 

A respiração de Romano era entrecortada. Tracy correu para o telefone na mesa e discou para a telefonista. A voz saiu estrangulada quando tentou falar:

- Telefonista, providencie uma ambulância imediatamente. O endereço é Jackson Square, 421. Um homem foi baleado.

Ela repôs o telfone no gancho e olhou para Joe Romano. Oh, Deus, rezou ela, não deixe que ele morra, por favor. Sabe que eu não tencionava matá-lo. Ela ajoelhou-se ao lado do corpo no chão, a fim de verificar se ele ainda estava vivo. Os olhos se achavam fechados, mas Romano ainda respirava.

- Uma ambulância está a caminho - murmurou Tracy.

E ela fugiu.

Fez um esforço para não correr, com medo de atrair a atenção. Fechou o casaco, a fim de esconder a blusa rasgada. A quatro quarteirões da casa, tentou parar um táxi. Meia dúzia passaram directo em alta velocidade, cheios de passageiros risonhos e felizes. à distância, Tracy ouviu uma sirene se aproximando. Pouco depois, uma ambulância passou por ela em disparada, seguindo na direcção da casa de Joe Romano. Tenho de sair daqui, pensou Tracy. Um táxi parou à sua frente e descarregou os passageiros. Tracy correu, com medo de perdê-lo.

- Está livre?

- Depende. Para onde vai?

- Para o aeroporto.

Ela prendeu a respiração.

- Entre.

A caminho do aeroporto, Tracy pensou na ambulância. E se chegassem tarde demais e encontrassem Joe Romano já morto? Ela seria uma assassina. Deixara o revólver na casa, suas impressões digitais lá estavam. Poderia dizer à polícia que Romano tentara estuprá-la e a arma disparara acidentalmente. Mas nunca acreditariam nela. Comprara a arma que estava no chão, ao lado de Joe Romano. Quanto tempo passara? Meia hora? Uma hora? Tinha de sair de Nova Orleans o mais depressa possível.

- Gostou do carnaval? - perguntou o motorista.

Tracy engoliu em seco.

- Ahn... gostei.

Ela tirou o espelhinho da bolsa e fez o que era possível para se tornar apresentável. Fora estúpida ao tentar obrigar Joe Romano a confessar. Tudo saira errado. Como posso dizer a Charles o que aconteceu? Sabia como ele ficaria chocado; mas, depois que explicasse, ele compreenderia. Charles saberia o que fazer.

Quando o táxi chegou ao Aeroporto Internacional de Nova Orleans, Tracy pensou: Foi somente esta manhã que passei por aqui? Tudo aconteceu num dia apenas? O suicídio da mãe... o horror de ser engolfada pelo carnaval... o homem gritando... "Você atirou em mim... sua puta..."

Quando entrou no terminal, Tracy teve a impressão de que todos a fitavam acusadoramente. É isso o que a consciência culpada faz, pensou ela. Gostaria que houvesse algum meio de saber qual era o estado de Joe Romano, mas não tinha a menor idéia do hospital para onde ele fora levado ou para quem poderia telefonar. Ele vai ficar bom. Charles e eu voltaremos a Nova Orleans para o enterro de mamãe e Joe Romano se salvará. Ela tentou afastar da mente a visão do homem caído sobre o tapete branco, o sangue manchando-o de vermelho. Tinha de voltar correndo para casa, para Charles...

 

Tracy foi até o balcão da Delta Airlines.

- Quero uma passagem de ida para Filadélfia no próximo voo, por favor. Classe turista.

O funcionário consultou o computador.

- Será o vôo três-zero-quatro. Está com sorte. Ainda resta um lugar.

- A que horas o avião parte?

- Dentro de vinte minutos. Está em cima da hora para embarcar.

Ao abrir a bolsa, Tracy sentiu mais do que viu dois guardas uniformizados se postarem nos seus lados. Um deles disse:

- Tracy Whitney?

O coração dela parou de bater por um instante. Seria estupidez negar minha identidade.

- Sou eu.

- Está presa.

E Tracy sentiu o aço frio das algemas estalarem em seus pulsos.

 

Tudo estava acontecendo em câmara lenta com outra pessoa. Tracy observou-se sendo levada pelo aeroporto, algemada a um dos guardas, as pessoas se virando para olhar. Foi empurrada para o banco traseiro de uma radiopatrulha preta e branca, com uma grade de aço a separá-la do banco da frente. O carro partiu abruptamente, a luz vermelha piscando, a sirene gemendo. Ela se encolheu no banco, tentando tornar-se invisível. Era uma assassina. Joseph Romano morrera. Mas fora um acidente. Ela explicaria como acontecera. Tinham de acreditar nela. Tinham de acreditar... A delegacia de polícia para onde Tracy foi levada ficava no distrito de Algiers, na zona oeste de Nova Orleans, um prédio sombrio e agourento, com uma aparência de desolação. A sala da frente estava apinhada de pessoas de aspecto deprimente... prostitutas, cafetões, assaltantes e suas vitimas . Tracy foi conduzido à mesa do sargento de plantão. Um dos guardas disse:

A mulher Whitney, sargento. Nós a pegamos no aeroporto, tentando escapar.

- Eu não estava...

- Tirem as algemas.

As algemas foram removidas. Tracy recuperou a voz.

- Foi um acidente. Eu não tinha a menor intenção de matá-lo. Ele tentou me estuprar e...

- Você é mesmo Tracy Whitney?

- Sou, sim. Eu...

- Levem-na para a cela.

- Não! Espere um instante! - suplicou Tracy. - Preciso telefonar para alguém. Eu... eu tenho o direito de dar um telefonema.

O sargento soltou um grunhido irónico.

- Conhece a rotina, hem? Quantas vezes já esteve em cana, meu bem?

- Nenhuma. Esta é...

- Pode dar um telefonema. Três minutos. Que número você quer?

Tracy estava tão nervosa que não conseguia lembrar o telefone de Charles. Não conseguia sequer recordar o CÓDIGO de área para Filadélfia. Seria dois-cinco-um? Não. O número era outro. Ela agora tremia.

- Vamos logo. Não posso ficar esperando a noite inteira.

 

Dois-um-cinco. Era isso!

- Dois-um-cinco-cinco-cinco-cinco-nove-três-zero-um.

O sargento discou o número e entregou o telfone para Tracy. Ela podia ouvir a campainha tocando. E tocando. Ninguém atendia.Charles tinha de estar em casa. O sargento disse:

- Seu tempo acabou.

Ele estendeu a mão para arrancar o telfone de Tracy.

- Espere, por favor! - gritou ela.

Mas, subitamente, lembrou-se que Charles desligava seu telefone à noite, a fim de não ser incomodado. Ela escutou a campainha por mais um instante e compreendeu que não havia a menor possibilidade de entrar em contacto com Charles. O sargento indagou:

- Já acabou?

Tracy fitou-o apaticamente e murmurou:

- Já, sim.

Um guarda em mangas de camisa levou Tracy para uma sala, onde ela foi fichada e lhe tiraram as impressões digitais. Depois, foi conduzida por um corredor e trancada numa cela, sozinha.

- Terá uma audiência pela manhã - informou o guarda afastando-se e deixando-a sozinha.

Nada disso está acontecendo, pensou Tracy. Tudo não passa de um terrível pesadelo. Oh, Deus, por favor, não permita que nada disso seja real!

Mas o catre fétido na cela era real, o vaso sanitário sem tampa no canto era real, as barras eram reais.

 

As horas da noite se arrastaram interminavelmente. Se ao menos eu conseguisse entrar em contacto com Charles! Precisava dele agora mais do que já precisara de qualquer outra pessoa, em toda a sua vida. Eu deveria ter-lhe contado, em primeiro lugar. Se o fizesse, nada disso teria acontecido.

às seis horas da manhã, um guarda entediado trouxe para Tracy um café morno e um mingau de aveia frio. Ela não foi capaz de tocar. O estômago se achava completamente contraído. Uma inspectora veio buscá-la às nove horas.

- Está na hora, queridinha.

A mulher destrancou a porta da cela,

- Preciso dar um telefonema - disse Tracy. - É muito.

- Mais tarde. Não vai querer deixar o juiz esperando. Ele é um filho da puta mesquinho.

Ela acompanhou Tracy por um corredor e através de uma porta que dava para um tribunal. Um juiz idoso presidia o tribunal. A cabeça e as mãos se mantinham em constante movimento, arrancos pequenos e rápidos. à sua frente se encontrava o promotor distrital, Ed Topper, um homem franzino, na casa dos 40 anos, cabelos grisalhos ondulados, olhos pretos e frios. Tracy foi levada a uma cadeira e um momento depois o meirinho anunciou:

- O povo contra Tracy Whitney.

Tracy descobriu-se a avançar. O juiz examinava um papel à sua frente, a cabeça balançando para cima e para baixo. Agora. Agora. Agora era o momento de Tracy explicar a alguém com autoridade o que realmente acontecera. Ela comprimiu as mãos, a fim de evitar que tremessem.

- Meritissimo, não foi homicídio. Atirei nele, é verdade, mas foi um acidente. Eu só pretendia assustá-lo. Ele tentou me violentar e...

 

O promotor distrital interrompeu-a:

- Meritissimo, não vejo sentido em desperdiçar o tempo deste tribunal. Esta mulher arrombou a casa do Sr. Romano, armada com um revólver de calibre 32, roubou um quadro de Renoir no valor de meio milhão de dólares. Quando o Sr. Romano surpreendeu-a em flagrante, ela alvejou-o a sangue frio e deixou-o como morto.

Tracy sentiu que o sangue se esvaía de seu rosto.

- Mas... mas do que está falando?

Nada daquilo fazia qualquer sentido. O promotor acrescentou bruscamente:

- Temos a arma com que o Sr. Romano foi ferido. As impressões digitais da mulher estão na arma.

Ferido! Então Joseph Romano estava vivo! Ela não matara ninguém.

- Ela fugiu com o quadro, Meritissimo. Provavelmente se encontra nas mãos de algum receptador, a esta altura. Por esse motivo, o Estado solicita que Tracy Whitney seja julgada por tentativa de homicídio e assalto à mão armada, com a fiança fixada em meio milhão de dólares.

O juiz virou-se para Tracy, que se encontrava imóvel, em estado de choque.

- Está representada neste tribunal?

Ela não ouviu. O juiz alteou a voz:

- Tem um advogado?

Tracy sacudiu a cabeça.

- Não. Eu... o que... o que esse homem disse não é verdade. Eu nunca...

- Tem dinheiro para contratar um advogado?

Havia o fundo dos empregados no banco. E havia Charles.

- Eu... não, Meritissimo. Mas não compreendo...

- O tribunal designará um advogado para você . Será mantida sob custódia, com uma fiança de quinhentos mil dólares. Próximo caso.

- Espere! Isso tudo é um equívoco! Eu não...

Ela não se lembrou depois de ter sido retirada do tribunal.

O nome do advogado designado pelo tribunal era Perry Pope. Ele se aproximava dos 40 anos, possuía um rosto rude e inteligente, olhos azuis simpáticos. Tracy gostou dele imediatamente. Ele entrou na cela, sentou-se no catre e disse:

- Você criou uma sensação e tanto para uma mulher que se encontra na cidade há apenas 24 horas. - Ele sorriu. - Mas tem sorte. É uma péssima atiradora. O ferimento foi superficial . Romano sobreviverá.

Ele tirou um cachimbo do bolso e acrescentou:

- Importa-se que eu fume?

- Não.

Ele encheu o cachimbo de fumo, acendeu-o, estudou atentamente o rosto de Tracy.

- Não parece a criminosa comum desesperada, Senhorita Whitney.

- E não sou. Juro que não sou.

- Pois então me convença. Conte o que aconteceu. Desde o início. Leve o tempo que julgar necessário.

E Tracy contou. Tudo. Perry Pope escutou a história em silêncio, não falando até que Tracy terminou. Recostou-se então na parede da cela, uma expressão sombria no rosto. E disse, baixinho:

 

- Aquele filho da puta...

- Não entendo do que eles estavam falando. - Havia confusão nos olhos de Tracy. - Não sei de nada sobre um quadro.

- É realmente muito simples. Joe Romano usou-a como bode expiatório, da mesma forma como fez com sua mãe . Você caiu direitinha numa armadilha.

- Ainda não compreendo.

- Pois então vou explicar. Romano reclamará o seguro de meio milhão de dólares pelo quadro de Renoir que escondeu em algum lugar e receberá. A seguradora ficará atrás de você e não dele. Quando as coisas esfriarem, Romano venderá o quadro a algum coleccionador particular e ganhará mais meio milhão de dólares, graças à sua ingenuidade. Não sabia que uma confissão obtida sob a mira de uma arma não tem valor?

- Eu... eu acho que sabia. Pensei apenas que, se conseguisse lhe arrancar a verdade, alguém poderia iniciar uma investigação.

O cachimbo se apagara. Ele tornou a acendê-lo.

- Como entrou na casa?

- Toquei à campainha da frente e o Sr. Romano abriu a porta.

- Não é a história que ele conta. Há uma janela arrombada nos fundos da casa e Romano garante que foi por lá que você entrou. Ele disse à polícia que a surpreendeu a pegar o Renoir; quando tentou impedi-la, você atirou nele e fugiu.

- Mas isso é uma mentira! Eu...

- Mas é a mentira dele, assim como a sua casa... enquanto a arma pertence a você. Tem alguma idéia das pessoas que está enfrentando?

Tracy sacudiu a cabeça, em silêncio.

- Pois então lhe contarei os factos da vida, Senhorita Whitney. Esta cidade é controlada pela Família Orsatti. Nada acontece por aqui sem a aprovação de Anthony Orsatti. Se quer uma permissão para construir um prédio, pavimentar uma rua, explorar as muralhas, a lotaria dos números ou os tóxicos, tem de falar com Orsatti. Joe Romano começou como um pistoleiro dele. Agora, é o homem principal na organização de Orsatti.

Ele fez uma pausa, fitando-a com admiração, antes de acrescentar:

- E você entrou na casa de Romano e apontou-lhe um revólver!

Tracy continuou sentada, atordoada e exausta. Finalmente perguntou:

- Acredita na minha história?

O advogado sorriu.

- Você está absolutamente certa. É tanta estupidez que só pode ser verdade.

- Pode me ajudar?

Ele respondeu bem devagar:

- Vou tentar. Eu daria qualquer coisa para pôr todos eles por trás das grades. São os donos desta cidade e da maioria dos nossos juizes. Se você for a julgamento, eles a enterrarão tão fundo que nunca mais tornará a ver a luz do dia.

Tracy fitou-o, perplexa.

- Se eu for a julgamento?

Pope levantou-se e começou a andar de um lado para outro da cela, enquanto dizia:

 

- Não quero levá-la à presença de um júri porque será o júri dele. Pode estar certa disso. Há somente um juiz que Orsatti nunca foi capaz de comprar. O nome dele é Henry Lawrence. Se eu puder dar um jeito para que ele assuma o caso, tenho certeza de que arrumarei um acordo para você. Não é rigorosamente ético, mas conversarei com ele particularmente. Lawrence odeia Orsatti e Romano tanto quanto eu. Agora, tudo o que temos de fazer é atrair o Juiz Lawrence.

 

Perry Pope providenciou um telefonema de Tracy para Charles Tracy ouviu a voz famíliar da secretária de Charles:

- Escritório do Sr. Stanhope.

- Harriet, aqui é Tracy Whitney. Eu...

- Oh, Senhorita Whitney, ele vem tentando lhe falar há bastante tempo, mas não tínhamos o seu telefone. A Sra. Stanhope está ansiosa em acertar todas as providências para o casamento. Se puder procure-a o mais depressa possível...

- Harriet, posso falar com o Sr. Stanhope, por favor?

- Lamento muito, Senhorita Whitney, mas não será possível. Ele está a caminho de Houston. para uma reunião. Se me der seu número tenho certeza de que ele lhe telefonará assim que puder.

- Eu...

Ela não podia deixar que Charles lhe telefonasse para cadeia. Não antes de primeiro ter a oportunidade de lhe explicar tudo o que acontecera.

- Eu... eu telefonarei de novo para o Sr. Stanhope.

Ela desligou. Amanhã, pensou Tracy, cansada. Explicarei tudo a Charles amanhã.

Tracy foi transferida naquela tarde para uma cela maior. Foi-lhe servido um jantar delicioso no Cyalatoire's e pouco depois chegaram flores frescas com um bilhete. Ela abriu o envelope e tirou o cartão: âNIMO, VAMOS DERROTAR OS MISERÁVEIS. PERRY POPE.

 

Ele veio visitar Tracy na manhã seguinte. Ela compreendeu que havia boas notícias no instante em que viu o sorriso em seu rosto.

- Estamos com sorte - declarou ele . - Acabei de conversar com o Juiz Lawrence e com Topper, o promotor distrital. Toppe protestou furiosamente, mas chegamos a um acordo.

- Um acordo?

- Eu contei a sua história ao Juiz Lawrence. Ele concordou em aceitar um reconhecimento de culpa de sua parte.

Tracy ficou chocada.

- Um reconhecimento de culpa? Mas eu não...

- Preste atenção. Declarando-se culpada, você poupa ao Estado a despesa de um julgamento. Persuadi o juiz que você não roubou o quadro. Ele conhece Joe Romano e acreditou em mim.

- Mas... se eu me declarar culpada, o que eles farão comigo?

- O Juiz Lawrence a condenará a três meses de prisão, com...

- Prisão!

- Espere um instante. Ele suspenderá a sentença e você poderá cumpri-la em liberdade condicional, fora do Estado.

- Mas neste caso eu.- eu terei uma ficha policial.

Perry Pope suspirou.

- Se a levarem a julgamento por assalto à mão armada e tentativa de homicídio, durante o ato, você pode ser condenada a dez anos.

Dez anos de cadeia! Perry Pope observava pacientemente e acrescentou:

 

- Só posso lhe oferecer o meu melhor conselho. Já é um milagre o que eu consegui. Eles querem uma resposta agora. Você não precisa aceitar o acordo. Pode arrumar outro advogado e...

- Não.

Tracy sabia que aquele homem era honesto. Nas circunstâncias, considerando o seu comportamento insano, ele fizera tudo o que era possível por ela. Se ao menos pudesse falar com Charles... Mas eles precisavam de uma resposta agora. Ela provavelmente tinha sorte de escapar com uma sentença de três meses em suspensão.

- Eu... eu aceitarei o acordo.

Tracy teve de fazer muita força para que as palavras saíssem. O advogado assentiu.

Está sendo esperta.

 

Tracy não teve permissão de dar qualquer telefonema antes de voltar ao tribunal. Ed Topper postou-se num lado dela e Perry Pope no outro. Sentado no assento do juiz estava um homem de aparência distinta, na casa dos 50 anos, o rosto liso, sem rugas, cabelos abundantes e impecáveis. O Juiz Lawrence disse a Tracy:

- O tribunal foi informado que a ré deseja mudar sua alegação de inocente para culpada. Isso é correcto?

- É, sim, Meritissimo.

- Todas as partes estão de acordo?

Perry Pope assentiu.

- Estão, Meritissimo.

- O Estado concorda, Meritissimo - acrescentou o promotor.

O Juiz Lawrence permaneceu em silêncio por um longo momento. Depois, inclinou-se para a frente e fitou Tracy nos olhos.

- Um dos motivos para que este nosso grande país se encontre em situação tão lamentável é que as ruas fervilham de vermes que pensam que podem escapar impunes de qualquer coisa. Pessoas que zombam da lei. Alguns sistemas judiciais neste país tratam bem os criminosos. Pois não agimos assim na Louisiana. Quando alguém, ao cometer um assalto, tenta matar uma pessoa a sangue-frio, achamos que a culpada deve ser punida de maneira exemplar.

Tracy começou a experimentar as primeiras pontadas de pânico. Virou o rosto para Perry Pope. Os olhos do advogado fixavam-se no juiz.

- A ré admitiu que tentou assassinar um dos cidadãos eminentes desta comunidade... um homem notório por sua filantropia e boas acções. A ré alvejou-o no ato de roubar um objecto de arte no valor de meio milhão de dólares. - A voz do juiz tornou-se mais áspera. - Pois este tribunal vai providenciar para que não possa desfrutar esse dinheiro... não durante os próximos 13 anos. É que durante os próximos 15 anos você estará encarcerada na Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres.

 

Tracy sentiu que algum gracejo horrível lhe haviam impingido. O juiz era um actor seleccionado para o papel, mas estava lendo as linhas erradas. Não deveria dizer nenhuma daquelas coisas. Ela virou-se para explicar isso a Perry Pope, mas ele desviou os olhos. Ele arrumava papéis em sua pasta e pela primeira vez Tracy notou que suas unhas eram roídas até o sabugo. O Juiz Lawrence se levantara e começava a recolher os seus papéis. Tracy ficou parada ali, atordoada, incapaz de compreender o que estava-lhe acontecendo. Um guarda aproximou-se e segurou-a pelo braço.

- Vamos embora.

- Não! - gritou Tracy. - Não, por favor!

Ela levantou os olhos para o juiz e acrescentou:

- Houve um engano terrível, Meritissimo. Eu...

Enquanto sentia a mão do guarda lhe apertar o braço, Tracy compreendeu que não houvera qualquer erro. Fora enganada. Eles iam destrui-la.

Assim como haviam destruido sua mãe.

 

A notícia dos crimes e da condenação de Tracy Whitney apareceu na primeira página do New Orleans Courier, acompanhada por uma fotografia sua, tirada pela polícia. Os principais serviços noticiosos transmitiram a história para jornais de todo o país. Quando foi retirada do tribunal, a fim de aguardar a transferência para a penitenciária estadual, Tracy foi confrontada por uma turma de repórteres de televisão. Escondeu o rosto em humilhação, mas não havia como escapar das câmaras. Joe Romano era uma notícia importante, e um atentado contra a sua vida por uma linda assaltante era notícia ainda mais sensacional. Tracy tinha a sensação de que se encontrava cercada por inimigos. Charles me tirará daqui, ela insistia em dizer a si mesma. Oh, por favor, Deus, permita que Charles me tire daqui. Nosso filho não pode nascer na prisão.

Foi somente na tarde seguinte que o sargento de plantão permitiu que Tracy usasse o telefone. Harriet atendeu:

- Escritório do Sr. Stanhope.

- Harriet, aqui é Tracy Whitney. Eu gostaria de falar com o Sr. Stanhope.

- Um momento, por favor, Senhorita Whitney. - Ela percebeu a hesitação na voz da secretária. Eu... vou verificar se o Sr. Stanhope está.

Depois de uma espera prolongada e angustiante, Tracy ouvia finalmente a voz de Charles. Quase chorou de alívio.

- Charles...

- Tracy? É você, Tracy?

- Sou eu mesma, querido. Oh, Charles, eu tentei falar com você...

- Eu estava enlouquecendo, Tracy. Os jornais daqui estão repletos de histórias terríveis a seu respeito. Não posso acreditar no que eles dizem.

- Nada é verdade, querido. Absolutamente nada. Eu...

- Onde você está agora?

- Estou... estou numa cadeia em Nova Orleans. Eles vão me mandar para a prisão por algo que não fiz, Charles.

Para horror de Charles, Tracy começou a chorar.

- Fique calma. E preste atenção. Os jornais dizem que você atirou num homem. Isso não é verdade, não é mesmo?

- Atirei nele, mas...

- Então é verdade!

- Não é como parece, querido. A história foi totalmente diferente. Posso explicar tudo. Eu...

- Tracy, você se declarou culpada de tentativa de homicídio e de roubar um quadro?

- É verdade, Charles. Mas só fiz isso porque...

- Se precisava de dinheiro tão desesperadamente deveria ter falado comigo ... E tentar matar alguém... Não posso acreditar nisso. Nem meus pais. Você é a manchete do Daily News de Filadélfia desta manhã. É a primeira vez em que um sopro de escândalo atinge a família Stanhope.

Foi o amargo autocontrole na voz de Charles que fez Tracy compreender os sentimentos profundos dele. Ela contara desesperadamente com Charles e agora descobria que seu noivo estava do lado deles. Fez um esforço para não gritar.

- Preciso de você, querido. Por favor, venha até aqui. Pode endireitar tudo.

 

Houve um silêncio prolongado.

- Parece que não há muita coisa para endireitar. Não se você confessou ter feito todas essas coisas. A família não pode se envolver em algo assim. E tenho certeza de que pode compreender isso. Foi um choque terrível para nós. Obviamente, eu nunca a conheci de verdade.

Cada palavra era um tremendo golpe. O mundo desmoronava sobre Tracy. Ela sentia-se mais sozinha do que em qualquer outra ocasião anterior de sua vida. Não havia agora ninguém a quem pudesse recorrer, absolutamente ninguém.

- E... e o bebé?

- Terá de fazer o que julgar melhor com seu filho - disse Charles. - Lamento muito, Tracy.

E a ligação foi cortada. Tracy ficou imóvel, segurando o telfone mudo. Outro preso, por trás dela, disse:

- Se já acabou com o telefone, meu bem, eu gostaria de chamar meu advogado.

Quando Tracy voltou à cola, a guarda tinha instruções a lhe transmitir:

Esteja pronta para partir amanhã de manhã. Virão buscá-la às seis horas.

 

Ela recebeu um visitante. Otto Schmidt parecia ter envelhecido muitos anos durante as poucas horas transcorridas desde que Tracy o vira pela última vez. Ele dava a impressão de estar doente.

- Só vim lhe dizer o quanto minha mulher e eu lamentamos tudo isso. Sabemos que não foi culpa sua o que aconteceu.

Se ao menos Charles tivesse dito isso...

- Minha mulher e eu estaremos no enterro da Sra. Doris amanhã,

- Obrigada, Otto,

Eles enterrarão nós duas amanhã, pensou Tracy.

Ela passou a noite acordada, deitada em seu estreito catre na prisão, olhando fixamente para o teto. Reconstituiu mentalmente, por muitas vezes, a conversa com Charles. Ele nunca lhe dera a oportunidade de explicar.

Ela tinha de pensar no filho. Lera sobre mulheres que tinham filhos na prisão, mas as histórias eram tão distantes de sua própria vida que era como se estivesse tomando conhecimento de relatos sobre pessoas de outro planeta. Agora, porém, estava acontecendo com ela. Terá de fazer o que julgar melhor para seu filho, dissera Charles. Ela queria ter o filho. Mas eles não me deixarão mantê-lo, pensou Tracy. Vão tirá-lo de mim porque passarei os próximos 15 anos na prisão. É melhor que ele nunca saiba quem é a mãe.

E Tracy chorou.

 

às seis horas da manhã, um guarda entrou na cela de Tracy, acompanhado pela matrona que, cuidava da prisão.

- Tracy Whitney?

- Sou eu.

Ela ficou surpresa ao perceber como sua voz soava estranha - Por ordem do Tribunal de Justiça Criminal do Estado da Louisiana, Condado de Orleans, você será transferida imediatamente para a Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres. Vamos embora, garota.

 

Ela foi conduzida por um corredor comprido, passando por celas cheias de reclusos. Houve uma porção de assobios.

- Tenha uma boa viagem, querida...

- Diga-me onde aquele quadro está escondido, Tracy querida, e repartirei o dinheiro com você...

- Se está indo para a casa grande, procure a Ernestine Littlechap. Ela cuidará direitinho de você...

Tracy passou pelo telefone do qual ligara para Charles. Adeus, Charles.

 

Ela estava do lado de fora, num pátio. Um ónibus da prisão, amarelo, as janelas gradeadas, esperava ali, o motor ligado. Meia dúzia de mulheres já se encontravam sentadas no ónibus, vigiadas por dois guardas armados. Tracy olhou para os rostos de suas companheiras de viagem. Uma delas mantinha uma atitude de desafio, outra se mostrava entediada, as demais exibiam expressões de desespero. As vidas que levaram até então estavam prestes a terminar. Eram párias, sendo conduzidos a jaulas em que seriam trancafiadas como animais. Tracy se perguntou que crimes teriam cometido e se alguma era tão inocente quanto ela... e também se perguntou o que as outras viam em seu rosto.

A viagem no ónibus da prisão foi interminável, o ónibus quente e malcheiroso. Mas Tracy nem percebeu. Retraíra-se para dentro de si mesma, não estava mais consciente dos campos verdes viçosos pelos quais o ónibus passava. Encontrava-se em outro tempo, em outro lugar.

Era uma garotinha na praia, com a mãe e o pai. O pai levava-a para o mar nos ombros e disse quando ela gritou: Não seja como um bebé, Tracy. E ele largou-a na água fria. Quando a água se fechou por cima de sua cabeça, ela entrou em pânico e começou a sufocar. O pai levantou-a e depois tornou a mergulhá-la. Desse momento em diante ela tivera pavor da água...

O auditório universitário se apresentava lotado de estudantes, seus pais e parentes. Ela era a oradora da turma. Falou por 15 minutos e seu discurso estava impregnado de um idealismo elevado, com referências engenhosas ao passado e sonhos fulgurantes para o futuro. O reitor a presenteara com uma chave de Phi Beta Kappa. Quero que você fique com isto, Tracy dissera à mãe . E o orgulho no rosto da mãe fora maravilhoso...

Vou para Filadélfia, mamãe. Tenho um emprego num banco lá.

Annie Mahier, sua melhor amiga, estava telefonando. Você vai adorar Filadélfia, Tracy. Tem todas as coisas culturais. Além disso, é também uma linda cidade e tem escassez de mulheres. Ou seja, os homens daqui são realmente famintos! E posso lhe arrumar um emprego no banco em que trabalho...

Charles estava lhe fazendo amor. Ela observou as sombras em movimento no teto e pensou: Quantas mulheres gostariam de estar no meu lugar? Charles era um grande prémio. E no mesmo instante ela sentiu-se envergonhada do pensamento. Amava Charles. Podia senti-lo dentro de si, arremetendo com mais força, cada vez mais depressa, prestes a explodir. E ele balbuciou: Você está pronta? E ela mentiu, dizendo que sim. Foi maravilhoso para você? Foi, sim, Charles. E ela pensou: Isso é tudo o que existe? E novamente o sentimento de culpa...

 

- Você! estou falando com você. Por acaso é surda? Vamos logo.

 

Tracy levantou os olhos e se descobriu no ónibus amarelo da prisão. Parara num pátio cercado por uma pilha sombria de alvenaria. Uma sucessão de nove cercas, encimadas com arame farpado, cercava os 500 acres de pastagens e bosques que constituiam a Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres.

- Saia - ordenou o guarda. - Estamos aqui.

Aqui era o inferno.

 

Uma mulher corpulenta, de rosto impassível, cabelos pintados de castanho, falava para as recém-chegadas:

- Algumas de vocês passarão uma longa temporada aqui. Só há uma maneira de aguentarem e é a de esquecerem tudo sobre o mundo exterior. Podem fazer com que seu tempo aqui seja fácil ou difícil. Temos regulamentos aqui e vocês obedecerão a esses regulamentos. Nós lhes diremos quando se levantarem, quando trabalharem, quando irem ao banheiro. Violem qualquer um dos regulamentos e desejarão estar mortas. Gostamos de manter as coisas pacíficas por aqui e sabemos como lidar com as encrenqueiras.

A mulher fez uma pausa, os olhos se fixando em Tracy.

- Serão levadas agora para os exames físicos. Depois, passarão pelos chuveiros e irão para suas celas. Pela manhã, receberão as suas tarefas. Isso é tudo.

Ela começou a se virar. Uma jovem pálida, ao lado de Tracy, disse:

- Com licença, por favor, mas eu...

A mulher tornou a se virar, bruscamente, o rosto dominado pela fúria.

- Cale a porra de sua boca. Só pode falar quando lhe dirigirem a palavra. Entendido? Isso se aplica a todas vocês.

O tom, assim como as palavras, fora um choque para Tracy. A mulher fez um sinal para as duas guardas armadas no fundo da sala.

- Tirem essas sacanas imprestáveis daqui.

Tracy descobriu-se sendo retirada da sala junto com as outras, levada por um corredor comprido. As prisioneiras entraram numa sala grande, de ladrilhos brancos, onde um homem gordo, de meia-idade, numa bata suja, estava parado ao lado de uma mesa de exame. Uma das guardas ordenou:

- Entrem em fila.

As mulheres formaram uma fila comprida. O homem anunciou:

- Sou o Dr. Glasco. Tirem as roupas.

As mulheres se entreolharam, indecisas. Uma delas disse:

- Até onde precisamos...

- Não sabem o que significa tirem as roupas? Dispam-se... tirem todas as roupas!

Lentamente, as mulheres começaram a se despir. Algumas se mostraram inibidas, algumas indignadas, algumas indiferentes. à esquerda de Tracy estava uma mulher quase chegando aos 50 anos, tremendo violentamente; à sua direita, havia uma garota pateticamente magra, que parecia não ter mais do que 17 anos. Sua pele se achava coberta de espinhas. O médico gesticulou para a primeira mulher na fila.

- Deite na mesa e ponha os pés nos estribos.

A mulher hesitou.

- Vamos logo. Está atrasando a fila.

Ela obedeceu. O médico inseriu um espéculo em sua vagina. Enquanto sondava, ele perguntou:

- Tem alguma doença venérea?

- Não.

- Pois descobriremos em breve.

A mulher seguinte subiu na mesa. Quando o médico fez menção de inserir-lhe o espéculo, Tracy gritou:

- Espere um pouco!

 

O médico parou, levantando os olhos, surpreso.

- Como?

Todos olhavam fixamente para Tracy. Ela disse:

- Eu... o senhor não esterilizou o instrumento.

O Dr. Glasco presenteou Tracy com um sorriso lento e frio.

- Ora, ora, temos uma ginecologista na casa! Está preocupada com os germes, hem? Pois passe para o fim da fila.

- Como?

- Não entende inglês? Vá para o fim da fila.

Sem compreender o motivo, Tracy deslocou-se para o último lugar na fila.

- E agora, se não se importam - disse o médico - vamos continuar.

Ele inseriu o espéculo na mulher que se encontrava na mesa e Tracy compreendeu subitamente o motivo pelo qual se tornara a última. Ele examinaria a todas com o mesmo espéculo não-esterilizado e ela seria a última em quem o usaria. Tracy sentiu a raiva fervendo dentro de si. O médico poderia examiná-las em separado, em vez de privá-las deliberadamente de sua dignidade. estavam deixando que ele escapasse impune com uma coisa assim. Se todas protestassem... Chegou a sua vez.

- Na mesa, Madame Doutora.

Tracy ainda hesitou, mas não tinha opção. Subiu na mesa e fechou os olhos. Pôde senti-lo a abrir suas pernas, depois o espéculo frio a penetrá-la, sondando, pressionando, machucando. Deliberadamente machucando. Ela rangeu os dentes.

- Tem sifilis ou gonorreia? - indagou o médico.

- Não.

Ela não lhe falaria do filho. Não àquele monstro. Falaria a esse respeito com a directora. Sentiu o espéculo sendo retirado bruscamente. O Dr. Glasco pôs um par de luvas de borracha.

- Muito bem - disse ele. - Entrem em fila e inclinem-se. Vamos examinar as suas lindas bundinhas.

Antes que Tracy pudesse se conter, as palavras saíram:

- Por que está fazendo isso?

O Dr. Glasco lançou-lhe um olhar irado.

- Vou explicar porquê, Doutora. Porque os rabos são grandes esconderijos. Tenho uma colecção grande de marijuana e cocaína que tirei de mulheres como você. E agora trate de se inclinar.

Enquanto ele percorria a fila, enfiando os dedos num ânus depois de outro, Tracy sentiu-se enjoada. Podia sentir a bilis quente subir pela garganta e começou a ter ânsias de vómitos.

- Vomite aqui e esfregarei a sua cara na sujeira. - O médico virou-se para as guardas. - Podem levá-las para os chuveiros. Elas fedem.

Carregando as roupas, as presas nuas foram conduzidas por outro corredor, até uma sala grande de concreto, com uma dúzia de boxes de chuveiro abertos.

- Deixem as roupas no canto - ordenou uma das guardas. - E entrem nos chuveiros. Usem o sabão desinfectante. Lavem todas as partes do corpo, da cabeça aos pés. E ensaboem bem os cabelos.

 

Tracy passou do chão de cimento áspero para o chuveiro. O jacto de água era frio. Ela esfregou-se com toda a força, pensando: Nunca mais voltarei a ser limpa. Que espécie de pessoas são estas? Como podem tratar outros seres humanos assim? Não posso suportar 15 anos disso. Uma guarda gritou-lhe:

- Ei, você! O tempo já acabou. Saia logo.

Tracy saiu do chuveiro e outra presa tomou o seu lugar. Tracy recebeu uma toalha fina e usada, enxugou mais ou menos o corpo.

Depois que a última reclusa deixou o chuveiro, elas foram levadas a uma sala de suprimentos grande, onde havia prateleiras com roupas, aos cuidados de uma reclusa latina, que calculou o tamanho de cada uma e distribuiu os uniformes cinzas. Tracy e as outras receberam dois uniformes, duas calcinhas, dois soutiens, dois pares de sapatos, duas camisolas, um cinto sanitário, uma escova de cabelos e um saco para a roupa suja. As guardas ficaram observando enquanto as prisioneiras se vestiam. Depois que terminaram, elas foram levadas a uma sala em que uma presa de confiança operava uma câmara fotográfica grande, montada num tripé.

- Fiquem paradas ali naquela parede.

Tracy foi para a parede.

- Cara de frente.

Ela olhou para a câmara. Clique.

- Vire a cabeça para a direita.

- Ela obedeceu. Clique.

- Para a esquerda. - Clique. - Vá para a mesa.

A mesa continha o equipamento para tirar impressões digitais. Os dedos de Tracy foram rolados por uma almofada com tinta, depois comprimidos contra um cartão branco.

- Mão esquerda. Mão direita. Limpe as mãos com aquele pano. Você está acabada.

Ela tem razão, pensou Tracy atordoada. Estou acabada. Sou um número. Sem nome, sem rosto. Uma guarda apontou para Tracy.

- Whitney? O director quer falar com você. Acompanhe-me.

O coração de Tracy disparou, animado. Charles fizera alguma coisa, no final das contas! E claro que ele não a abandonara, assim como ela também nunca poderia abandoná-lo. Fora o súbito choque que o levara a se comportar daquela maneira estranha. Ele já tivera tempo de pensar em tudo e compreender que a amava. Falara com o director e explicara o erro terrível que fora cometido. Ela seria libertada.

Tracy foi levada por um corredor diferente, passando por duas portas de barras grossas, vigiadas por guardas dos dois sexos. Ao ser admitida pela segunda porta, ela foi quase derrubada por uma presa. Era uma gigante, a maior mulher que Tracy já vira... chegando a 1,90 metros de altura, pesando em torno de 130 quilos. Tinha um rosto achatado, bexiguento, os olhos de um amarelo-claro. Ela agarrou o braço de Tracy para firmá-la, comprimiu seu próprio braço contra os seios de Tracy.

- Ei! - disse a mulher à guarda - Temos franga nova. Por que não põe esta comigo?

Ela tinha um forte sotaque sueco.

- Sinto muito, Bertha, mas esta já foi designada.

A amazona afagou o rosto de Tracy, que se afastou bruscamente. A gigante soltou uma risada.

- Está tudo bem, Littbam. Big Bertha a verá depois. Temos bastante tempo. Você não vai sair daqui tão cedo.

 

Chegaram ao gabinete do director. Tracy estava trémula de expectativa. Charles estaria ali? Ou teria enviado seu advogado? A secretária do director acenou com a cabeça para a guarda.

- Ele está esperando você. Fique aqui.

 

O director George Brannigan estava sentado a uma escrivaninha escalavrada, estudando alguns documentos à sua frente. Era um homem de quarenta e poucos anos, magro, de aparência ansiosa com um rosto sensível, olhos fundos, castanhos-claros.

Brannigan se achava no comando da Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres há cinco anos. Ali chegara com o preparo de um penologista moderno e o empenho de um idealista, determinado a efectuar profundas reformas na prisão. Mas o sistema vigente o derrotara, como já o fizera com muitos outros antes.

A prisão fora originalmente construida para alojar duas prisioneiras em cada cela, mas agora havia quatro ou até mesmo seis. Ele sabia que a mesma situação se encontrava por toda a parte. As prisões do país sofriam de excesso de lotação e uma deficiência de funcionários. Milhares de criminosos eram sentenciados dia e noite, nada tinham para fazer, além de acalentar seu ódio e tramar sua vingança. Era um sistema estúpido e brutal, mas era tudo o que existia. Ele chamou a secretária.

- Muito bem, pode mandá-la entrar

A guarda abriu a porta para sua sala e Tracy entrou. O director Brannigan levantou os olhos para a mulher parada à sua frente. Vestida no tosco uniforme da prisão, rosto marcado pela fadiga, Tracy Whitney ainda parecia bonita. Tinha um rosto adorável e franco, e Brannigan se perguntou por quanto tempo mais permaneceria assim. Ficou particularmente interessado naquela prisioneira porque lera a respeito de seu caso nos jornais e estudara a sua ficha. Ela era primária, não matara ninguém e 15 anos era uma sentença excessivamente rigorosa. O fato de Joseph Romano ser o acusador fazia com que a sua condenação se tornasse ainda mais suspeita. Mas o director era simplesmente o guardião dos corpos. Não podia investir contra o sistema. Ele era o sistema.

- Sente-se, por favor.

Tracy ficou contente pela oportunidade de se sentar. Sentia os joelhos fracos. Ele ia falar-lhe agora sobre Charles, informá-la que seria libertada em breve.

- Estive verificando a sua ficha - começou o director.

Charles teria lhe pedido para fazer isso.

- Vejo que passará uma longa temporada connosco. Sua sentença é de 15 anos.

Tracy levou um momento para absorver as palavras. Alguma coisa estava terrívelmente errada.

- Não... fa-falou com... Char-Charles?

Em seu nervosismo, ela estava gaguejando. O director fitou-a com uma expressão impassível.

- Charles?

E Tracy compreendeu tudo. Teve a sensação de que o estômago se dissolvia em água.

- Por favor... tem de me escutar, por favor. Sou inocente. Não pertenço a este lugar.

Quantas vezes ele já ouvira isso? Cem? Mil? Sou inocente. O director disse:

 

- O tribunal considerou-a culpada. O melhor conselho que posso dar é o de tentar fazer com que tudo lhe seja mais fácil aqui. A partir do momento em que aceitar os termos de sua prisão, tudo se tornará mais fácil. Não há relógios na prisão, apenas calendários.

Não posso ficar trancafiada aqui por 15 anos, pensou Tracy, desesperada. Quero morrer. Por favor, Deus, deixe-me morrer. Mas não posso morrer, não é mesmo? Eu mataria meu filho. É seu filho também, Charles. Por que não está aqui me ajudando? Foi nesse momento que ela começou a odiá-lo.

- Se tiver problemas especiais - disse Brannigan - se eu puder ajudá-la de alguma forma, quero que venha me procurar.

Mesmo enquanto falava, ele sabia como suas palavras eram inúteis. Ela era jovem, bonita e viçosa. As homossexuais da prisão cairiam em cima dela como animais. Nem mesmo havia uma cela segura para a qual pudesse encaminhá-la. Quase todas as celas eram controladas por uma homossexual. O director Brannigan ouvira rumores de estupros nos chuveiros, nos toaletes e nos corredores à noite. Mas eram apenas rumores, porque as vitimas sempre se mantinham em silêncio depois. Ou morriam. Brannigan acrescentou, gentilmente:

- Com bom comportamento, você pode ser libertada em doze ou...

- Não!

Era um brado de, profundo desespero. Tracy sentia as paredes da sala se comprimindo sobre ela. Estava de pé, gritando. A guarda entrou correndo e agarrou-lhe os braços.

- Calma, calma... - murmurou o director Brannigan.

Ele ficou sentado ali. impotente, observando Tracy ser levada de sua sala.

 

Ela foi conduzida por uma série de corredores, passando por celas cheias de detidas de todos os tipos . Havia pretas, brancas, mulatas e amarelas. Olhavam fixamente para Tracy, enquanto ela passava, gritando-lhe em uma dúzia de sotaques. Os gritos não faziam o menor sentido para Tracy.

- Carta forte...

- Carro fino...

- Canto fresco...

- Carne fraca...

Foi somente quando chegou a seu bloco que Tracy compreendeu o que as mulheres estavam entoando:

Carne fresca.

 

Havia 60 mulheres no Bloco C, quatro em cada cela. Rostos espiavam de trás das barras, enquanto Tracy era conduzida pelo corredor comprido e malcheiroso. As expressões variavam da indiferença ao desejo e ao ódio. Tracy tinha a sensação de que

andava por baixo d'água, em alguma terra estranha e desconhecida, uma forasteira num sonho que se desenrolava lentamente. A chamada ao gabinete do director fora a sua última ténue esperança. Agora, nada mais restava. Nada além da perspectiva atordoante de ficar encarcerada naquele purgatório pelos próximos 15 anos. A guarda abriu a porta de uma cela.

- Entre!

Tracy piscou, olhou ao redor. Havia três mulheres na cela, observando-a em silêncio.

- Vamos logo - insistiu a guarda.

Tracy hesitou por mais um instante, depois entrou na cela. Ouviu a porta bater nas suas costas.

Estava em casa.

Na cela apertada mal cabia os quatro catres, uma mesinha com um espelho quebrado por cima, quatro armários pequenos, um vaso sem tampa no canto. As companheiras de cela fitavam-na fixamente. A mulher porto-riquenha rompeu o silêncio:

- Parece que temos uma nova colega de cela.

Sua voz era profunda e gutural. Seria bonita se não fosse por uma cicatriz lívida de faca, que se estendia da têmpora à garganta. Parecia não ter mais que 14 anos, até que se fitava seus olhos. Uma mexicana atarracada, de meia-idade, disse:

- Que surte verte! Prazer em vê-la. Por que a mandaram para cá, querida?

Tracy estava paralisada demais para responder.

A terceira mulher era preta. Tinha mais de 1,80 metros de altura, olhos estreitos e vigilantes, um rosto frio e duro, mais parecendo uma máscara. A cabeça era rapada e o crânio tinha um brilho preto-azulado na débil claridade.

- Seu catre é ali no canto.

Tracy aproximou-se do catre. O colchão era imundo, manchado com os excrementos que só Deus sabia de quantas ocupantes anteriores. Ela não foi capaz de tocá-lo. E, involuntariamente, manifestou sua repulsa:

- Eu... eu não posso dormir neste colchão...

A gorda mexicana sorriu.

- Nem precisa, meu bem. Hay tiempo. Pode dormir no meu.

Tracy percebeu subitamente as tendências ocultas na cela, atingindo-a como uma força física. As três mulheres observavam-na, atentamente, fazendo-a sentir-se nua. Carne fresca. Ela sentiu-se subitamente aterrorizada. Estou enganada, pensou Tracy. Oh, por favor, permita que eu esteja enganada. Ela recuperou a voz:

- Quem... com quem eu posso falar para conseguir um colchão limpo?

- Com Deus - grunhiu a preta, - Mas ele não tem aparecido por aqui ultimamente.

Tracy virou-se para olhar novamente o colchão. Diversas baratas pretas e grandes rastejavam por cima. Não posso ficar neste lugar, pensou Tracy. Acabarei louca. Como se lesse os seus pensamentos, a preta comentou nesse momento:

- Siga com a correnteza, meu bem.

 

O melhor conselho que posso dar é o de tentar fazer com que tudo lhe seja mais fácil aqui... A voz do director soava nitidamente nos ouvidos de Tracy. A preta continuou a falar:

- Sou Ernestine Littlechap. - Ela acenou com a cabeça para a mulher da cicatriz. - Aquela é Lola. É de Porto Rico. E a gorda aqui é Paulita, do México. Quem é você?

- Eu... eu sou Tracy Whitney.

Ela quase dissera "Eu era Tracy Whitney" . Tinha a sensação de pesadelo de estar perdendo a identidade. Um espasmo de náusea percorreu-lhe o corpo e segurou-se na beira do catre para se firmar.

- De onde você vem, meu bem? - indagou a gorda.

- Desculpe, mas... mas não estou com vontade de conversar. Tracy sentia-se subitamente fraca demais para ficar de pé. Arriou na beira do catre imundo, enxugou as gotas de suor frio no rosto com a saia. Meu filho, pensou ela. Eu deveria ter falado com o director que vou ter um filho. Ele me transferirá para uma cela limpa. Talvez até me deixem ficar numa cela sozinha.

Ela ouviu passos se aproximando pelo corredor. Uma guarda passava pela cela. Tracy adiantou-se rapidamente até à porta.

- Com licença, mas preciso falar com o director. Eu estou...

- Mandarei chamá-lo imediatamente - disse a guarda, virando a cabeça para trás, enquanto continuava a seguir adiante.

- Você não compreende. Eu estou...

Mas a guarda já estava longe.

Tracy comprimiu o punho contra a boca, com toda a força, para não chorar.

- Está doente ou algo parecido, meu bem? - perguntou a porto-riquenha.

Tracy sacudiu a cabeça, incapaz de falar. Voltou para o catre, contemplou-o por um momento, depois se deitou, lentamente. Era um acto de desesperança, um acto de rendição. Ela fechou os olhos.

 

O décimo aniversário fora o mais emocionante de sua vida. Vamos jantar no Antoine's, anunciou o pai.

Antoine's! Era um nome que evocava outro mundo, um mundo de beleza, encanto e riqueza. Tracy sabia que o pai não tinha muito dinheiro: Poderemos sair em férias no próximo ano, era um refrão constante na casa. E agora eles iam jantar no Antoine's! A mãe de Tracy vestiu-a com o casaco verde novo.

É maravilhoso olhar para vocês duas, o pai se gabou. Estou com as duas mais lindas mulheres de Nova Orleans. Todos ficarão com inveja de mim.

O Antoine's era tudo o que Tracy sonhara que seria e ainda mais. Muito mais. Era um palácio encantado, elegante e decorado com bom gosto, a toalha de mesa branca, pratos com monograma, em prateado e dourado. É um autêntico palácio, pensou Tracy. Aposto que reis e rainhas vêm aqui. Ela estava excitada demais para comer, muito absorvida a contemplar todos os homens e mulheres tão bem vestidos. Quando eu crescer, Tracy prometeu o mesmo: virei ao Antoine's todas as noites e trarei papai e mamãe comigo.

Você não está comendo, Tracy, disse a mãe.

 

E, para agradá-la, Tracy forçou-se a comer um pouco. Havia um bolo para ela, com dez velas, os garçons cantaram os Parabéns Pra Você, os outros fregueses se viraram e aplaudiram, Tracy sentiu-se como uma princesa. Podia ouvir lá fora o barulho de um bonde passando.

 

A campainha do bonde era alta e insistente.

- Hora do jantar - anunciou Ernestine Littlechap.

Tracy abriu os olhos. Portas de celas se abriam estrepitosamente por todo o bloco. Tracy permaneceu deitada no catre, tentando desesperadamente se apegar ao passado.

- Ei, hora do grude! - gritou a jovem porto-riquenha.

A simples idéia de comida deixava-a enjoada.

- Não estou com fome.

Paulita, a gorda mexicana, falou:

- Es Ilano. É simples. Não querem saber se você está ou não com fome. Todo mundo tem de ir para o refeitório.

As presas estavam entrando em fila no corredor lá fora.

- É melhor você ir ou cairão em cima - advertiu Ernestine.

Não posso me mexer, pensou Tracy. Ficarei aqui.

As companheiras de cela saíram e entraram na fila dupla. Uma guarda baixa e atarracada, de cabelos oxigenados, viu Tracy deitada no catre e gritou:

- Você! Não ouviu a campainha? Saia logo daí!

Tracy respondeu:

- Obrigada, mas não estou com fome. Gostaria que me dispensasse.

Os olhos da guarda se arregalaram em incredulidade. Ela entrou furiosa na cela e se aproximou do catre de Tracy.

- Que merda você pensa que é? Está esperando pelo serviço de quarto? Entre logo na porra da fila. Eu poderia inclui-la no relatório por causa disso. Se acontecer novamente, você vai se dar mal. Entendido?

Tracy não entendia. Não era capaz de entender coisa alguma do que estava lhe acontecendo . Ela deixou o catre quase se arrastando e foi para a fila. Ficou parada ao lado da preta.

- Por que eu...

- Cale a boca! - Ernestine Littlechap resmungou pelo canto da boca. - Não fale na fila.

As mulheres foram levadas por um corredor estreito e sem qualquer ventilação, passando por duas portas gradeadas e entrando num enorme refeitório, cheio de mesas grandes de madeira e muitas cadeiras. Havia um balcão de serviço comprido, com compartimentos fumegantes, pelo qual as presas passavam para pegar a comida. O cardápio do dia consistia de um ensopado de atum aguado, vagens murchas, um creme pálido e a opção entre um café fraco ou um suco de fruta artificial. Conchas da comida de aspecto repulsivo eram despejadas nos pratos de metal das presas, enquanto elas avançavam pela fila. As reclusas que serviam por trás do balcão gritavam incessantemente:

- Todas andando na fila... A próxima... Mantenham a fila em movimento... A próxima...

 

Depois que foi servida, Tracy ficou parada por um momento, indecisa, sem saber para onde ir. Ela olhou ao redor, à procura de Ernestine Littlechap, mas a preta desaparecera. Tracy encaminhou-se para o lugar em que estava sentada Paulita, a gorda mexicana. Havia 20 mulheres à mesa, devorando vorazmente a comida. Tracy olhou o que havia em seu prato, depois empurrou-o para o lado, enquanto a bílis subia e aflorava em sua garganta. Paulita se inclinou e pegou o prato de Tracy.

- Se não vai comer, então eu fico com isto.

Lola disse:

- Ei, é melhor você comer ou não durará muito aqui.

Eu não quero durar, pensou Tracy, desesperada. Quero morrer. Como essas mulheres suportam viver assim? Há quanto tempo estarão aqui? Meses? Anos? Ela pensou na cela fétida, no colchão imundo, sentiu vontade de gritar. Comprimiu as mandíbulas com tanta força que nenhum som podia escapar. A mexicana estava dizendo:

- Se a pegarem sem comer, vão mandá-la para a geladeira. - Ela viu a expressão de perplexidade no rosto de Tracy e explicou: -

O buraco ... a solitária. Você não gostaria.

Lola fez uma pausa, inclinando-se para a frente, antes de acrescentar:

- É a sua primeira vez aqui, hem? Pois vou lhe dar um aviso, querida. Ernestine Littlechap, manda neste lugar. Seja boazinha com ela e estará feita.

Trinta minutos depois que as mulheres entraram no refeitório, soou uma campainha alta e todas se levantaram. Paulita arrebatou uma vagem solitária de um prato a seu lado. Tracy juntou-se a ela na fila dupla e as mulheres começaram a marchar de volta às celas. O jantar terminara. Eram quatro horas da tarde... cinco longas horas suportar antes que as luzes se apagassem.

Quando Tracy voltou à cela, Ernestine Littlechap já estava lá. Tracy se perguntou, sem qualquer curiosidade, onde ela estivera durante o jantar. Ela olhou para o vaso no canto. Precisava desesperadamente usá-lo, mas não podia fazê-lo na frente das outras. Esperaria até que as luzes se apagassem. Sentou na beira do catre.

Ernestine Littlechap disse:

- Soube que você não comeu nada do seu jantar. Isso é uma estupidez.

Como ela poderia ter descoberto? E por que se Importaria?

- Como posso falar com o director?

- Apresente um pedido por escrito. As guardas usam para limpar a bunda. Acham que qualquer mulher que quer falar com o director é uma encrenqueira. - Ernestine aproximou-se de Tracy. - Há uma porção de coisas que podem criar problemas para você aqui. O que precisa é de uma amiga que possa manter você fora de encrencas.

Ela sorriu, mostrando um dente, da frente de ouro, antes de acrescentar, suavemente:

- Alguém que conheça os caminhos do jardim zoológico.

Tracy levantou os olhos para o rosto sorridente da preta. Parecia estar flutuando em algum lugar perto do teto.

Era a coisa mais alta que ela já vira.

Isto é uma girafa, disse o pai.

Estavam no jardim zoológico, no Audubon Park. Tracy adorava o parque. Sempre iam lá aos domingos, a fim de escutar os concertos da banda. Depois, a mãe e o pai levavam-na ao aquário ou ao zoológico, Circulavam devagar, contemplando os animais em suas jaulas.

Eles não detestam ficar trancados, papai?

O pai riu. Não, Tracy. Eles têm uma vida maravilhosa. São bem cuidados e alimentados, seus inimigos não podem pegá-los.

 

Os bichos pareciam infelizes a Tracy. Ela sentiu vontade de abrir as jaulas e deixá-los escapar. Jamais vou querer ficar trancafiada assim, pensou.

A campainha de aviso soou por toda a prisão às 8 e 45 da noite. As companheiras de cela de Tracy começaram a se despir. Tracy não se mexeu. Lola disse:

- Você tem quinze minutos para se aprontar para dormir.

As mulheres puseram as camisolas. A guarda loura oxigenada passou pela cela. Parou ao ver Tracy estendida no catre.

- Dispa-se. - Ela olhou para Ernestine e perguntou: - Não disse a ela?

- Claro. Já falamos com ela.

A guarda tornou a se virar para Tracy, advertindo:

- Temos um jeito todo especial de lidar com as encrenqueiras. Faça o que lhe for mandado ou vai se dar mal.

A guarda afastou-se pelo corredor. Paulita avisou.

- É melhor fazer o que ela diz, meu bem. A velha Calcinha de Ferro é uma sacana muito escruta.

Lentamente, Tracy levantou-se e começou a tirar as roupas, mantendo-se de costas para as outras. Tirou todas as roupas à excepção das calcinhas e vestiu a camisola áspera pela cabeça. Sentia os olhos das outras a observarem-na.

- Você tem um corpo muito bonito - comentou Paulita.

- Isso mesmo, muito bonito - murmurou Lola.

Tracy sentiu um calafrio percorrer-lhe. Ernestine aproximou-se.

- Somos suas amigas. Cuidaremos direitinho de você.

Sua voz estava rouca de excitamento. Tracy virou-se bruscamente.

- Deixem-me em paz! Todas vocês. Eu... eu não sou desse tipo.

A preta soltou uma risada.

- Você será qualquer coisa que a gente quiser, meu bem.

- Hay tiempo. Há bastante tempo.

As luzes se apagaram.

 

A escuridão era inimiga de Tracy. Ela sentou na beira do catre, o corpo tenso. Podia sentir as outras esperando para agarrá-la. Ou era sua imaginação? Estava tão nervosa que tudo lhe parecia uma ameaça: Elas haviam-na ameaçado? Não realmente. Provavelmente tentavam apenas ser amistosas e ela interpretara implicações sinistras em tudo o que diziam. Ouvira falar de actividade homossexual nas prisões, mas isso tinha de ser a excepção e não a regra. Uma prisão não permitiria esse tipo de comportamento.

Mesmo assim, persistia uma dúvida inquietante. Ela decidiu que passaria a noite inteira acordada. Se uma delas fizesse qualquer movimento, ela gritaria por socorro. Era responsabilidade das guardas providenciar para que nada acontecesse às reclusas. Tracy garantiu a si mesma que não havia motivo para se preocupar. Precisaria apenas se manter alerta.

 

Tracy continuou sentada na beira do catre, no escuro, atenta a cada som. Uma a uma, ouviu as três mulheres irem ao vaso, usá-lo, voltar a seus catres. Quando não conseguia mais aguentar, Tracy também foi ao vaso. Tentou a descarga, mas não funcionava. O fedor era quase insuportável. Ela voltou apressadamente ao catre e tornou a sentar-se na beira. Estará clareando em breve, pensou ela. E pela manhã pedirei para falar com o director. Contarei a ele que espero um filho. Ele me transferirá para outra cela.

O corpo de Tracy estava tenso, cheio de cãibras. Estendeu-se no catre e segundos depois sentiu uma coisa rastejar por seu pescoço. Sufocou um grito. Tenho de ficar acordada até de manhã. Depressa será manhã, pensou Tracy. Um minuto de cada vez.

Ás três horas da madrugada ela não pôde mais manter os olhos abertos. E mergulhou no sono.

 

Foi despertada com uma mão a lhe tapar a boca e outras duas lhe apertando os seios. Tentou sentar e gritar, sentiu que lhe arrancavam a camisola e a calcinha. Mãos se insinuaram entre suas coxas abrindo-lhe as pernas. Tracy lutou selvagemente, fazendo o maior esforço para se levantar.

- Fique calma e não sairá machucada -sussurrou uma voz na escuridão.

Tracy golpeou com os pés na direcção da voz. Acertou em carne sólida.

- Carajo! - balbuciou a voz. - Vamos dar uma lição na sacana. Ponham ela no chão.

Um punho duro acertou o rosto de Tracy, outro atingiu-a na barriga. Alguém estava por cima dela, imobilizando-a, sufocando-a, enquanto mãos obscenas a violavam.

Tracy desenvencilhou-se por um instante, mas uma das mulheres tornou a agarrá-la, bateu com a sua cabeça contra as grades. Ela sentiu o sangue esguichar de seu nariz. Foi derrubada outra vez no chão de concreto, imobilizaram suas mãos e pernas. Tracy lutou como uma louca, mas não era uma adversária para as três. Sentiu mãos frias e línguas quentes acariciando seu corpo. Suas pernas estavam abertas e um objecto duro e frio foi empurrado para dentro dela. Debateu-se impotente, tentando com desespero gritar. Um braço passou diante de sua boca e Tracy cravou-lhe os dentes, mordendo com toda a sua força. Houve um grito abafado:

- Sua puta!

Punhos lhe socaram o rosto... Ela mergulhou no pavor, cada vez mais fundo, até que finalmente não sentia mais nada.

 

Foi o clangor metálico da campainha que a despertou. Estava deitada no chão frio de cimento da cela, nua. As três companheiras de cela se achavam em seus catres. No corredor, Calcinha de Ferro gritava:

- Hora de levantar!

Ao passar pela cela, a guarda viu Tracy estendida no chão, no meio de uma pequena poça de sangue, o rosto todo machucado, um olho fechado, de tão inchado.

- Que diabo está acontecendo por aqui?

Ela destrancou a porta e entrou na cela. Ernestine Littlechap sugeriu:

- Ela deve ter caído de seu catre.

A guarda aproximou-se de Tracy e cutucou-a com o pé.

- Levante-se!

Tracy ouviu a voz de uma longa distância. Isso mesmo, pensou ela, tenho de me levantar. Tenho de sair daqui. Mas ela foi incapaz de se mexer. O corpo vibrava de dor.

A guarda agarrou os cotovelos de Tracy e puxou-a para uma posição sentada. Tracy quase desmaiou da agonia.

 

- O que aconteceu?

Através de um olho, Tracy divisou os contornos meio indefinidos de suas companheiras de cela, esperando silenciosamente por sua resposta.

- Eu... eu... - Tracy tentou falar, mas as palavras não saíam. Ela tentou de novo e algum instinto atávico, profundamente arraigado, levou-a a balbuciar: - Caí do meu catre...

A guarda disse rispidamente:

- Detesto as espertinhas. Vamos metê-la na geladeira até você aprender algum respeito.

 

Era uma forma de esquecimento, um retorno ao útero. Ela estava sozinha no escuro. Não havia móveis na sala de porão apertada, apenas um colchão fino e velho, sobre o chão frio de cimento. Um buraco fétido no chão servia como vaso. Tracy ficou deitada no escuro, cantarolando para si mesma cantigas folclóricas que o pai lhe ensinara há muitos e muitos anos. Não tinha noção de quão perto se encontrava da beira da insanidade.

Não sabia direito onde se achava, mas isso não tinha importância. Somente o sofrimento de seu corpo viciado importava. Devo ter caído e me machucado, mas mamãe cuidará disso. Ela gritou em voz trémula.

- Mamãe...

Como não houvesse resposta, tornou a resvalar para o sono. Dormiu por 48 horas e a agonia finalmente desvaneceu para a dor, a dor foi diminuindo. Tracy abriu os olhos. Estava cercada pelo nada. Era tão escuro que não podia sequer divisar os contornos da cela. Recordações afloraram. Haviam-na levado ao médico. Podia ouvir a voz dele:

- ...uma costela quebrada e um pulso fracturado. Faremos uma atadura... Os cortes e equimoses estão bem ruins, mas vão sarar. Ela perdeu o filho...

Tracy balbuciou:

- Oh, meu filho... assassinaram meu filho...

E ela chorou. Chorou pela perda do filho. Chorou por si mesma. Chorou por todo o mundo doente.

Tracy continuou deitada no colchão fino, na escuridão fria. Foi dominada por um ódio tão intenso que literalmente sacudiu-lhe o corpo. Os pensamentos ardiam e flamejavam, até que a mente se esvaziou de toda a emoção, a não ser uma única: vingança. Não era uma vingança dirigida contra as suas companheiras de cela. As três eram tão vitimas quanto ela. Nada disso. Ela queria vingança contra os homens que haviam destruído a sua vida.

Joe Romano: "Sua velha me enganou. Não disse que tinha uma filha tão gostosa."

Anthony Orsatti: "Joe Romano trabalha para um homem chamado Anthony Orsatti, Orsatti manda em Nova Orleans."

Perry Pope: "Declarando-se culpada, você poupa ao Estado a despesa de um julgamento..."

Juiz Henry Lawrence: "Pelos próximos quinze anos você estará encarcerada na Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres."

Esses eram os seus inimigos. E havia ainda Charles, que não a escutara: "Se precisava de dinheiro tão desesperadamente deveria ter falado comigo... Obviamente, eu nunca a conheci de verdade... Terá de fazer o que julgar melhor com seu filho..."

 

Ela faria com que todos pagassem. Até o último. Não tinha idéia como. Mas sabia que o faria. Amanhã, pensou ela. Se houver amanhã.

 

O tempo perdeu todo o significado. Nunca havia luz na cela e assim não havia qualquer diferença entre dia e noite. Ela não tinha a menor idéia do tempo a que estava no confinamento solitário. De vez em quando lhe empurravam refeições frias por uma abertura na base da porta. Tracy não sentia apetite, mas forçava-se a comer cada porção. Tem de comer ou não vai durar muito aqui. Ela compreendia isso agora; sabia que precisaria de todas as suas energias para o que planejava fazer. Encontrava-se numa situação que qualquer outra pessoa consideraria desesperadora: condenada a 15 anos de prisão, sem dinheiro, sem amigos, sem recursos de qualquer tipo. Mas havia uma fonte profunda de força dentro dela. Eu sobreviverei, pensou Tracy. Enfrento meus inimigos nua e minha coragem é meu escudo. Sobreviveria como seus ancestrais haviam sobrevivido. Nela se misturava o sangue do inglês, irlandês e escocês, herdara o melhor de suas qualidades, a inteligência, a coragem e a determinação. Meus ancestrais sobreviveram à fome, pragas e inundações. Eu sobreviverei, a isto. Estavam com ela agora naquela cela do inferno, os pastores e caçadores, os camponeses e mercadores, os médicos e professores. Os fantasmas do passado e todos eram uma parte dela. Não os desapontarei, sussurrou Tracy para a escuridão.

Ela começou a planejar sua fuga.

 

Tracy sabia que a primeira coisa que precisava fazer era recuperar a força física. A cela era apertada demais para exercícios amplos, mas suficientemente grande para o t'ai chi ch'uan, a arte marcial milenar que era ensinada aos guerreiros que se preparavam para o combate. Os exercícios exigiam pouco espaço e accionavam todos os músculos do corpo. Tracy levantou-se e executou os movimentos iniciais. Cada movimento possuía um nome e um significado. Ela começou pelo agressivo Socando os Demónios, passou para o Acumulando Luz, mais suave. Os movimentos eram fluidos e graciosos, executados bem devagar. Cada gesto provinha do tan tien, o centro psíquico; todos os movimentos eram circulares. Tracy podia ouvir a voz de seu mestre: Desperte a sua chi, a sua energia vital. Começa pesada como uma montanha e se torna leve como a pena de um pássaro. Tracy podia sentir a chi fluindo por seus dedos. Concentrou-se até que todo o seu ser se focalizava em seu corpo se movimentando através de padrões eternos.

Agarre a cauda da ave, torne-se a cegonha branca, repila o macaco, enfrente o tigre, deixe as mãos se tornarem nuvens e circule a água da vida. Deixe a serpente branca rastejar e monte no tigre. Abata o tigre, reuna a sua chi e volte ao tan tien, o centro.

O ciclo completo levou uma hora; quando acabou, Tracy estava exausta. Efectuava o ritual pela manhã e à tarde, até que o corpo começou a reagir, foi se tornando forte.

 

Quando não estava exercitando o corpo, Tracy exercitava a mente. Deitada no escuro, Efectuava complexas equações matemáticas, operava mentalmente o computador do banco, recitava poesia, recordava as falas de peças em que participara na escola. Era um perfeccionista. Quando obtinha um papel numa peça em que exigia usar sotaques diferentes, estudava esses sotaques por semanas, antes que a peça fosse apresentada. Um caçador de talentos a abordara certa vez, oferecendo-lhe um teste para o cinema em Hollywood.

- Não, obrigada - respondera Tracy. - Não quero a fama. É uma coisa que não me serve.

A voz de Charles: Você é a manchete no Dady News desta manhã.

Tracy afastou a recordação. Havia portas em sua mente que tinham de permanecer fechadas por enquanto.

Ela lançou-se ao jogo do ensino: Indique três coisas absolutamente impossíveis de ensinar.

Ensinar a uma formiga a diferença entre católicos e protestantes.

Fazer uma abelha compreender que é a terra que viaja em torno do sol.

Explicar a um gato a diferença entre comunismo e democracia.

Mas ela se concentrava principalmente na maneira como destruiria seus inimigos, um de cada vez. Lembrou-se de um jogo que fazia quando era pequena. Levantando uma das mãos para o céu, era possível bloquear o sol, apagá-lo por completo. Era o que haviam feito com ela. Levantaram a mão e apagaram a sua vida.

 

Tracy não tinha idéia de quantas prisioneiras haviam sido quebradas pelo confinamento, na solitária e isso também não faria diferença para ela. No sétimo dia, quando a porta da cela foi aberta, Tracy ficou ofuscada pela súbita luz que inundou a cela. Um guarda estava parado do lado de fora.

- Levante-se. Você vai subir agora.

Ele se inclinou para ajudar Tracy. Contudo, para sua surpresa, ela se levantou facilmente e saiu da cela sem qualquer ajuda. As outras prisioneiras que tirara da solitária saíam abaladas ou com uma atitude de desafio, mas aquela não exibia qualquer das duas reacções. Havia nela uma aura de dignidade, uma confiança que não condizia com aquele lugar. Tracy parou na claridade, deixando que os olhos gradativamente se acostumassem. É uma mulher e tanto, pensou o guarda . Com uma boa limpeza, dá para se levá-la a qualquer lugar. E aposto que ela faria qualquer coisa por uns poucos de favores. Em voz alta, ele disse:

- Uma garota bonita como você não deveria passar por esse tipo de coisa. Se nós fôssemos, amigos, eu cuidaria para que, isso nunca mais acontecesse.

Tracy virou-se para fitá-lo; quando o guarda viu a expressão em seus olhos, decidiu prontamente não insistir.

Ele acompanhou Tracy até lá em cima e entregou-a a uma inspectora, que farejou por um instante e murmurou:

- Deus do céu, como você fede! Vá tomar uma chuveirada. E queimaremos estas roupas.

A água fria estava maravilhosa. Tracy ensaboou os cabelos, esfregou-se vigorosamente da cabeça aos pés com o sabão áspero. Enxugou-se e vestiu-se. A inspectora estava à sua espera:

- O director quer falar com você.

Na última vez em que ouvira essas palavras, Tracy pensara que significassem a liberdade. Nunca mais seria tão ingénua.

O director Brannigan estava de pé junto a uma janela quando Tracy entrou em sua sala. Ele virou-se e disse:

 

- Sente-se, por favor. - Tracy ocupou uma cadeira. - Estive em Washington numa conferência. Voltei esta manhã e encontrei um relatório sobre o que aconteceu. Você não deveria ter sido confinada na solitária.

Ela o observava atentamente, o rosto impassível não traindo coisa alguma. O director olhou para um papel em sua mesa.

- Segundo este relatório, você foi agredida por companheiras de cela.

- Não, senhor.

Brannigan acenou com a cabeça, uma expressão de compreensão.

- Entendo o seu medo, mas não posso permitir que as reclusas comandem esta prisão. Quero punir quem fez isso com você, mas preciso do seu testemunho. Providenciarei para que seja devidamente protegida. Quero agora que me conte o que aconteceu exactamente e quem foram as responsáveis.

Tracy fitou-o nos olhos.

- Fui eu. Cai do catre.

O director estudou-a por um longo tempo e ela percebeu o desapontamento em seu rosto.

- Tem certeza?

- Tenho, sim, senhor.

- Não vai mudar de idéia?

- Não, senhor.

Brannigan suspirou.

- Está bem. Se é essa a sua decisão, mandarei transferi-la para outra cela...

- Não quero ser transferida.

Ele ficou surpreso.

- Está querendo dizer que pretende voltar à mesma cela?

- Isso mesmo, senhor.

O director ficou perplexo. Talvez houvesse se enganado em relação a ela; talvez ela tivesse atraído o que lhe acontecera. Só Deus sabia o que aquelas malditas presas estavam pensando ou fazendo. Ele gostaria de ser transferido para alguma penitenciária de homens, boa e sã. Mas a esposa e Amy, a filha pequena, gostavam dali. Residiam num chalé encantador, havia um terreno aprazível em torno da prisão. Para elas, era como viver no campo; mas ele, no entanto, tinha de lidar com aquelas mulheres doidas 24 horas por dia. O director olhou a mulher à sua frente e murmurou, contrafeito:

- Muito bem. Mas trate de se manter longe de encrencas no futuro.

- Está certo, senhor.

 

Voltar à cela foi a coisa mais difícil que Tracy já fizera. Foi dominada pelo horror do que acontecera ali no momento em que entrou. As companheiras de cela estavam ausentes, no trabalho. Tracy deitou no catre e ficou olhando para o teto, planeando. Finalmente se inclinou para baixo do catre e arrancou um pedaço de metal solto no lado. Escondeu-o por debaixo do colchão. Quando soou a campainha do almoço, às 11 horas, Tracy foi a primeira à entrada na fila do corredor.

No refeitório, Paulita e Lola sentaram-se a uma mesa perto da entrada. Não havia qualquer sinal de Ernestine Littlechap.

Tracy escolheu uma mesa ocupada por estranhas, sentou e comeu toda a refeição insípida. Passou o início da tarde sozinha na cela. As três companheiras de cela 2:45. Paulita sorriu de surpresa quando viu Tracy.

- Então voltou para nós, coisinha bonita. Gostou do que lhe fizemos, hem?

 

- Isso é óptimo - disse Lola. - Temos mais para você,

Tracy não deu qualquer indicação de que ouvira as zombarias. Estava se concentrando na preta. Ernestine Littlechap era o motivo para Tracy voltar àquela cela. Tracy não confiava absolutamente em Ernestine. Mas precisava dela.

- Vou lhe dar um aviso, querida. Ernestine Littlechap manda naquele lugar...

Naquela noite, quando a campainha assinalou o prazo de 15 minutos antes das luzes apagarem, Tracy levantou-se do catre o começou a despir-se. Não houve agora falso recato. Tirou todas as roupas. A mexicana deixou escapar um assobio longo e baixo ao contemplar os seios cheios e firmes de Tracy, as pernas compridas e bem torneadas, as coxas roliças. Lola respirava fundo. Tracy pôs uma camisola e deitou-se de costas no catre. As luzes se apagaram. A cela mergulhou na escuridão.

Trinta minutos se passaram. Tracy permaneceu imóvel, escutando a respiração das outras. Do outro lado da cela, Paulita sussurrou:

- Mamãe vai lhe dar um amor de verdade esta noite, meu bem. Tire a camisola

- Vamos ensinar você a chupar uma cona e terá de fazer até aprender direito - murmurou Lola, soltando uma risadinha.

Ainda não havia qualquer palavra da preta. Tracy sentiu o movimento quando Lola e Paulita se aproximaram. Mas estava pronta para elas. Levantou o pedaço de metal que escondera e golpeou com toda a força, atingindo uma das mulheres no rosto. Houve um grito de dor. Tracy desferiu um chute no outro vulto, que caiu no chão.

- Cheguem perto de mim outra vez e eu as matarei - disse Tracy.

- Sua puta!

Tracy ouviu-as avançarem de novo em sua direcção e levantou o pedaço de metal. A voz de Ernestine soou abruptamente na escuridão:

- Já chega, Deixem a garota em paz.

- Estou sangrando, Ernie. Vou dar um jeito nela...

- Pare de merda e faça o que estou mandando.

Houve um longo silêncio. Tracy ouviu as duas mulheres voltaram a seus catres, a respiração ofegante. Ela continuou deitada, tensa, pronta para o próximo movimento delas. Ernestine Littlechap disse:

- Você tom coragem, menina.

Tracy ficou em silêncio.

- Não contou nada ao director. - Ernestine riu baixinho na escuridão. - Se tivesse falado, seria carne morta.

Tracy acreditava nela.

- Por que não deixou que o director a transferisse para outra cela.

Então ela sabia até disso.

- Eu queria voltar para cá.

- É mesmo? Por quê?

Havia um tom de perplexidade na voz de Ernestine Littlechap. Aquele era o momento que Tracy estava esperando.

- Porque você vai me ajudar a fugir daqui.

 

Uma inspectora aproximou-se de Tracy e anunciou:

- Um visitante, Whitney.

Tracy fitou-a com uma expressão de surpresa.

- Um visitante?

Quem poderia ser? E subitamente ela compreendeu. Charles. Ele viera procurá-la, no final das contas. Mas chegara atrasado demais. Não estava ali quando precisava dele desesperadamente. Pois nunca mais precisarei dele. Nem de qualquer outra pessoa.

Tracy acompanhou a inspectora pelo corredor até a sala das visitas.

Tracy entrou.

Um homem totalmente estranho estava sentado a uma pequena mesa de madeira. Era um dos homens mais desprovidos de atractivos que Tracy já conhecera. Era baixo, o corpo inchado, andrógino, um nariz saliente, a boca pequena, com uma expressão amargurada. Tinha a testa alta e projectada para a frente, olhos castanhos profundos, ampliados pelas lentes grossas dos óculos. Ele não se levantou.

- Meu nome é Daniel Cooper, O director me concedeu permissão para falar com você.

- Sobre o quê? - indagou Tracy, desconfiada.

- Sou um investigador da AIPS... Associação Internacional de Protecção do Seguro, Um de meus clientes segurou o Renoir que você roubou do Sr. Joseph Romano.

Tracy respirou fundo.

- Não posso ajudá-lo, pois não roubei o quadro,.

Ela encaminhou-se para a porta, mas parou ao ouvir as palavras seguintes de Cooper:

- Sei disso.

Tracy tornou a virar-se e fitou-o, todos os sentidos alerta, cautelosa.

- Ninguém roubou o quadro. Foi vítima de uma armadilha, Senhorita Whitney.

Lentamente, Tracy se arriou numa cadeira.

 

O envolvimento de Daniel Cooper com o caso começou três semanas antes, quando fora chamado à sala de seu superior, J. J. Reynolds, na sede da AIPS, em Manhattan.

- Tenho um trabalho para você, Dan.

Daniel Cooper detestava ser chamado de Dan.

- Serei breve.

 

Reynolds tencionava ser o mais breve possível porque Cooper o pusera nervoso. Na verdade, Cooper o deixava nervoso. Na verdade, Cooper deixava a todos nervosos na organização. Era um homem estranho - esquisito, como muitos o descreviam. Daniel Cooper se mantinha totalmente isolado. Ninguém sabia onde ele morara, se era casado ou tinha filhos. Não confraternizava com ninguém, jamais comparecia às festas do escritório ou mesmo às reuniões. Era um solitário. Reynolds só o tolerava porque o homem era um verdadeiro génio. Era, excepcionalmente, tendo um computador como cérebro. Daniel Cooper era responsável sozinho por recuperar mais mercadorias roubadas e denunciar mais fraudes de seguros do que todos os outros investigadores da organização reunidos. Mas Reynolds bem que gostaria de saber quem era Cooper afinal. Sentia-se inquieto só de ter o homem sentado à sua frente, com aqueles olhos castanhos profundos a fitá-lo. Reynolds disse:

- Um dos nossos clientes segurou um quadro por meio milhão de dólares e...

- O Renoir Nova Orleans, Joe Romano, Uma mulher chamada Tracy Whitney foi condenada a quinze anos. O quadro não foi recuperado.

Filho da puta!, - pensou Reynolds. Se fosse qualquer outro, eu pensaria que estava se exibindo.

- Isso mesmo - confirmou Reynolds, relutantemente. - A mulher Whitney escondeu o quadro em algum lugar e o queremos de volta. Cuide do caso.

Cooper deixou a sala sem dizer mais nada. Observando-o se retirar, J. J. pensou, não pela primeira vez: Algum dia descobrirei o que faz esse desgraçado se mexer.

Cooper passou pelo escritório, onde 50 funcionários trabalhavam lado a lado, programando computadores, dactilografando relatórios, atendendo a telefonemas. Era um tumulto total. Quando Cooper passou por uma mesa, um colega comentou:

- Soube que pegou o caso de Romano. Sorte sua. Nova Orleans é...

Cooper seguiu adiante sem responder. Por que não podiam deixá-lo em paz, era tudo o que pedia aos outros, mas estavam sempre atormentando-o com suas aberturas intrometidas.

Tornara-se um jogo no escritório. Todos estavam determinados a romper sua misteriosa reserva e descobrir quem ele era realmente.

- O que vai fazer na noite de sexta-feira, Dan...?

- Se não é casado, Sarah e eu conhecemos uma garota sensacional, Dan...

Será que não podiam compreender que não precisava de nenhum deles... e não queria nenhum deles?

- Vamos tomar um drinque, Dan...

Mas Daniel Cooper sabia ao que isso podia levar. Um drinque inocente podia levar a um jantar, um jantar podia iniciar amizades, amizades podia levar a confidências. Era perigoso demais.

Daniel Cooper vivia no terror mortal de que um dia alguém pudesse descobrir o seu passado. Deixem que os mortos enterrem seus mortos, era uma mentira. Os mortos nunca permaneciam enterrados. A cada dois ou três anos, uma das publicações sensacionalistas desencabava o velho escândalo e Daniel Cooper desaparecia por vários dias. Eram as únicas ocasiões em que ele se embriagava.

Daniel Cooper poderia manter-se ocupado em tempo integral, seria capaz de expor suas emoções. Mas nunca seria capaz de falar do passado a ninguém. A única peça de evidência física que conservava daquele dia terrível, há tanto tempo, era um recorte de jornal, desbotado e amarelo, trancado seguramente em seu quarto, onde ninguém podia encontrá-lo. Ele o olhava de vez em quando, como uma punição, mas cada palavra da notícia se achava gravada a fogo em sua mente.

 

Ele tomava um banho de chuveiro pelo menos três vezes por dia, mas nunca se sentia limpo. Acreditava firmemente no inferno e no inferno, sabia que a sua única Salvação neste mundo era a expiação. Tentara ingressar na força polícial de Nova York, mas fora reprovado no exame físico, por estar dez centímetros abaixo da altura mínima. Tornara-se então um investigador particular. Pensava em si mesmo como um caçador, perseguindo aqueles que violavam a lei. Era a vingança de Deus, o instrumento que lançava a ira de Deus sobre as cabeças dos malfeitores. Era a única maneira pela qual podia expiar o passado e preparar-se para a eternidade.

E ele especulou se haveria tempo de tomar um banho de chuveiro antes de pegar o avião.

 

A primeira parada de Daniel Cooper foi em Nova Orleans. Passou cinco dias na cidade. Antes de terminar, já sabia de tudo o que precisava saber a esse respeito de Joe Romano, Anthony Orsatti, Perry Pope e o Juiz Henry Lawrence. Cooper leu as transcrições da audiência inicial de Tracy Whitney e da pena a que ela foi condenada. Conversou com o Tenente Miller e soube do suicídio da mãe de Tracy Whitney. Procurou Otto Schinidt e descobriu como a companhia das Whitneys fora roubada.. Daniel Cooper não tomou qualquer anotação em todas as conversas, mas poderia repetir cada uma literalmente. Tinha 99 por cento de certeza que Tracy Whitney era uma vítima inocente. Mas, para Daniel essa era uma precentagem inaceitável. Ele voou para Filadélfia e conversou com Clarence Desmond, o vice-presidente do banco em que Tracy Whitney trabalhara. Charles Stanhope III recusou-se a recebê-lo.

 

Agora, olhando para a mulher sentada à sua frente, Cooper estava cem por cento convencido de que ela nada tinha a ver com o roubo do quadro. Estava pronto para escrever seu relatório.

- Romano a incriminou falsamente, Senhorita Whitney. Mais cedo ou mais tarde ele alegaria o roubo do quadro e reclamaria o seguro. Você simplesmente apareceu por acaso no momento oportuno e facilitou-lhe tudo.

Tracy podia sentir seu coração disparar. Aquele homem sabia que ela era inocente. Provavelmente dispunha de suficientes motivos contra Joe Romano para inocentá-la. Falaria com o governador, haveria de tirá-la daquele pesadelo, Descobriu subitamente que tinha dificuldade para respirar.

- Então vai me ajudar?

Daniel Cooper ficou perplexo.

- Ajudá-la?

- Isso mesmo. Obter um perdão ou.

- Não.

A palavra foi como uma bofetada.

- Não? Mas por quê? Se sabe que sou inocente...

Como as pessoas podiam ser tão estúpidas?

- Meu trabalho está encerrado - murmurou Daniel Cooper, indiferente.

 

Quando voltou a seu quarto no hotel, a primeira providência de Cooper foi despir-se e entrar debaixo do chuveiro. Esfregou-se da cabeça aos pés, deixando que a água quente enxaguasse o corpo por quase meia hora. Depois de se enxugar e vestir, sentou e escreveu seu relatório.

 

PARA: J. J. Reynolds             Relatório N? Y-72-830-412

DE: Daniel Cooper

ASSUNTO: Deux Femmes dans le Café Rouge, Renoir - óleo sobre Tela

 

É minha conclusão que Tracy Whitney não está absolutamente envolvida no roubo do quadro acima. Creio que Joe Romano fez o seguro com a intenção de simular um roubo, cobrar a apólice e vender o quadro a um coleccionador particular. A esta altura, o quadro provavelmente já se encontra fora do país. Como a obra é bastante conhecida, eu esperaria que aparecesse na Suíça, onde existe uma lei de protecção à compra de boa fé. Se um coleccionador declarar que comprou uma obra de arte em boa fé, o governo suíço permite que a mantenha, mesmo sendo roubada.

 

Recomendação: Como não há prova concreta da culpa de Romano, nosso cliente terá de pagar. Além disso, seria inútil procurar Tracy Whitney para recuperação do quadro ou a cobrança de indemnização, já que ela não tem conhecimento do quadro nem quaisquer bens para cobrir os prejuízos, ao que eu pudesse descobrir. Acresce que ela estará encarcerada na Penitenciária Meridional de Louisiana Para Mulheres pelos próximos 15 anos.

 

Daniel Cooper fez uma pausa, pensando em Tracy Whitney. Calculou que outros homens poderiam considerá-la bonita. E especulou, sem qualquer interesse real, o que 15 anos na prisão lhe fariam. Mas não era relevante.

Daniel Cooper assinou o relatório e debateu se havia tempo para tomar outro banho de chuveiro.

 

Calcinha de Ferro providenciou para que Tracy Whitney fosse destacada para a lavanderia. Entre os 35 trabalhos disponíveis para as prisioneiras, a lavanderia era o pior. A sala enorme e quente estava cheia de máquinas de lavar roupa e tábuas de passar, as cargas de roupa suja eram intermináveis. Encher e esvaziar as máquinas de lavar e carregar os cestos pesados para a secção de passar era um trabalho brutal e exaustivo.

O trabalho começava às seis horas da manhã e as prisioneiras tinham um descanso de dez minutos a cada duas horas. Ao final do dia de nove horas, a maioria das mulheres estava prestes a cair de exaustão. Tracy cumpria seu trabalho mecanicamente, sem falar com ninguém, encasulada em seus pensamentos. Ao saber do trabalho para o qual Tracy fora designada, Ernestine Littlechap comentou.

- Calcinha de Ferro está mesmo a fim de arrancar o seu couro.

Ao que Tracy respondeu:

- Ela não me incomoda.

Ernestine Littlechap estava espantada. Aquela era uma mulher completamente diferente da mocinha apavorada que chegara à prisão três semanas antes. Alguma coisa a mudara e Ernestine Littlechap estava curiosa em descobrir o que fora.

 

No oitavo dia de trabalho de Tracy na lavanderia um guarda foi procurá-la, no inicio da tarde.

- Tenho aqui a sua transferência. Você foi destacada para a cozinha.

O trabalho mais cobiçado na prisão. Havia dois padrões de alimentação: as prisioneiras comiam picadinho, cachorro-quente, feijão ou guisados incomíveis, enquanto as refeições para as guardas e as autoridades da penitenciária eram preparadas por cozinheiros profissionais, incluindo bifes, peixe fresco, costeletas, galinha, legumes e trutas frescas, sobremesas apetitosas. As condenadas que trabalhavam na cozinha tinham acesso a essas refeições e se aproveitavam ao máximo. Quando se apresentou na cozinha, Tracy não ficou surpresa ao deparar com Ernestine Littlechap ali. Aproximou-se dela e disse:

- Obrigada.

Com alguma dificuldade, ela forçou um tom amistoso à voz. Ernestine soltou um grunhido, não disse nada.

- Como conseguiu me livrar de Calcinha de Ferro?

- Ela não está mais com a gente.

- O que lhe aconteceu?

- Temos um pequeno sistema. Se uma guarda é sacana e começa a nos criar muitos problemas, a gente se livra dela.

- Está querendo dizer que o director...

- Por que pensa que o director tem alguma coisa a ver com isso?

- Então como conseguem...

 

- É fácil. Quando a guarda de quem a gente quer se livrar está de serviço, começam a surgir problemas. Vêm as reclamações. Uma presa informa que Calcinha de Ferro agarrou-a pela xoxota. E no dia seguinte outra presa a acusa de brutalidade. E depois alguém reclama que ela tirou alguma coisa de sua cela... um rádio, por exemplo... e com toda a certeza vai aparecer no quarto de Calcinha de Ferro . E foi assim que acabamos tirando Calcinha de Ferro daqui. Não são os guardas que mandam nesta prisão, mas nós.

- Por que você está aqui? - perguntou Tracy.

Ela não tinha o menor interesse na resposta. O importante era estabelecer um relacionamento amistoso com aquela mulher.

- É melhor acreditar que não foi por culpa de Ernestine Littlechap. Eu tinha todo um bando de garotas trabalhando para mim.

Tracy fitou-a nos olhos.

- Está querendo dizer como...

Ela hesitou.

- Como vigaristas? - Ernestine riu. - Não. Elas trabalhavam como criadas em casas ricas. Abri uma agência de empregos. Tinha pelo menos 20 garotas. A gente rica tem a maior dificuldade para arrumar criadas. Pus uma porção de anúncios bonitos nos melhores jornais e mandava as minhas garotas quando telefonavam. As garotas estudavam as casas, e quando os patrões estavam trabalhando ou viajando pegavam toda a pratearia, jóias, peles e todo o resto que valesse alguma coisa, desaparecendo em seguida.

Ernestine fez uma pausa, suspirando.

- Não acreditaria se eu lhe dissesse quanto dinheiro livre de impostos estávamos ganhando assim.

- E como você foi apanhada?

- Foi o dedo caprichoso do destino, meu bem. Uma das minhas criadas estava servindo um banquete na casa do prefeito. Uma das convidadas era uma velha para a qual ela trabalhara e limpara. Quando a polícia encheu-a de porrada, minha garota se pôs a falar e cantou a ópera inteira. E aqui está a pobre Ernestine.

Elas estavam paradas ao lado de um fogão, afastadas das outras.

- Não posso ficar aqui -sussurrou Tracy. -Tenho de cuidar de alguém lá fora. Vai me ajudar a fugir? Eu...

- É melhor começar a cortar as cebolas. Teremos guisado irlandês esta noite.

E Ernestine Littlechap se afastou.

 

O serviço de informações da prisão era incrível. As prisioneiras sabiam de tudo o que estava para acontecer muito antes que ocorresse. Reclusas conhecidas como ratazanas de lixo recolhiam os memorandos descartados, escutavam os telefonemas, liam a correspondência do director. Todas as informações eram cuidadosamente digeridas e transmitidas às presas importantes. Ernestine Littlechap figurava no alto da lista. Tracy percebeu como os guardas e as outras reclusas tratavam Ernestine com toda deferência. Como as outras concluíram que Ernestine se tornara a protectora de Tracy, ela foi deixada em paz. Tracy esperou cautelosamente que Ernestine lhe fizesse avanços, mas a preta enorme se manteve à distância. Por quê?, perguntou-se Tracy.

A regra número 7, no folheto oficial de dez páginas entregue às prisioneiras novas, dizia: "Qualquer forma de sexo é rigorosamente proibida. Não haverá mais que quatro reclusas em cada cela. Não mais que uma prisioneira terá permissão para ocupar uma cama de cada vez."

 

A realidade era tão incrívelmente diferente que as prisioneiras se referiam ao folheto como o livro de piadas da prisão. à medida que as semanas foram passando, Tracy observou as novas prisioneiras chegarem à prisão todos os dias. O padrão era sempre o mesmo. As criminosas primárias que eram sexualmente normais nunca tinham a menor chance. Entravam tímidas e assustadas, as homossexuais lá estavam, esperando. O drama se desenrolava em actos planejados. Num mundo aterrador e hostil, a sapatão se mostrava amistosa e simpática. Convidava a vitima ao salão de lazer, onde assistiam TV juntas; quando a outra lhe segurava a mão, a nova prisioneira deixava, com receio de ofender sua única amiga. A prisioneira nova percebia rapidamente que as outras reclusas deixavam-na em paz; à medida que aumentava a sua dependência da sapatão, também se aprofundavam as intimidades, até que finalmente estava disposta a fazer qualquer coisa para manter sua única amiga.

As que se recusavam a ceder eram violentadas. Noventa por cento das mulheres que entravam na prisão eram forçadas a actividades homossexuais - voluntária ou involuntariamente - nos primeiros 30 dias. Tracy estava horrorizada.

- Como as autoridades podem permitir que isso aconteça? - ela perguntou a Ernestine.

- É o sistema. Acontece a mesma coisa em todas as prisões, meu bem. Não há qualquer possibilidade de se separar mil e duzentas mulheres de seus homens e esperar que não fodam com alguém. E não violentamos apenas por sexo. É também por poder, para mostrar quem é que manda. As garotas novas que entram aqui são alvos para todas que querem fodê-las. A única protecção delas é se tornarem a esposa de uma sapatão. Só assim ninguém mais se mete com elas.

Tracy tinha motivos para saber que estava ouvindo a análise de uma profunda conhecedora.

- E não são apenas as presas - continuou Ernestine. - As guardas são igualmente terríveis. Aparece uma carne fresca e está na pior. Não se aguenta, precisa desesperadamente de uma dose. Está suando e tremendo, caindo aos pedaços. A guarda arruma uma dose de heroina para ela, mas em troca quer um favor. Entende? A carne fresca topa e a inspectora a mantém satisfeita. Os guardas machos são ainda piores. Eles têm chaves de todas as celas e, tudo o que precisam fazer é aparecer à noite e se servir de xoxota de graça. Podem engravidar uma garota, mas também podem arrumar uma porção de seus favores. Você quer uma barra de chocolate ou uma visita de seu namorado, pois basta dar para o guarda. É o que se chama de permuta e acontece em todas as prisões do país.

- É horrível!

- É sobrevivência. - A luz no teto da cela brilhava sobre a cabeça rapada de Ernestine. - Sabe por que não permitem goma de mascar neste lugar?

- Não.

- Porque as garotas usam para prender as fechaduras e impedir de trancarem, saindo à noite para se visitarem. Aceitamos as regras que queremos. As garotas que as fazem por aqui podem ser estúpidas, mas são estúpidas espertas.

 

As relações amorosas dentro dos muros da prisão floresciam. O protocolo entre amantes era respeitado ainda mais rigorosamente do que no mundo exterior. Num mundo antinatural, os papéis artificiais de maridos e mulheres eram criados e devidamente representados. As sapatões assumiam um papel de homem num mundo em que não havia homens. Mudavam seus nomes. Ernestine era chamada Ernie; Tessie era Tex; Barbara se tornava Bob; Katherine era Keuy. Cortavam os cabelos bem curtos ou raspavam a cabeça, não cuidavam dos chamados afazeres domésticos. A mary femme, a esposa, tinha de fazer a limpeza, costurar as roupas, passá-las para seu marido. Lola e Paulita competiam ferozmente pelas atenções de Ernestine, uma lutando para superar a outra.

O ciúme era intenso e frequentemente levava à violência; se a esposa era surpreendida a olhar para outra sapatão ou a conversar no pátio da prisão, os ânimos se exaltavam. Cartas de amor circulavam constantemente pela prisão, levadas pelas ratazanas de lixo.

As cartas eram dobradas em pequenos formatos triangulares, conhecidos como pipas, podendo assim ser facilmente escondidas num soutien ou sapato. Tracy observava pipas sendo trocadas pelas mulheres, ao passarem umas pelas outras na entrada do refeitório ou a caminho do trabalho.

Tracy observou muitas vezes as reclusas se apaixonarem pelos guardas. Era um amor nascido do desespero, desamparo e submissão. As prisioneiras eram dependentes dos guardas em tudo: na comida, no bem-estar e às vezes nas próprias vidas. Mas Tracy não se permitia sentir emoção por ninguém.

O sexo acontecia noite e dia. Ocorria nos chuveiros, nos banheiros, nas celas e à noite havia sexo oral através das grades. As mary femmes que pertenciam aos guardas dos dois sexos ficavam fora das celas à noite para irem aos alojamentos deles.

Depois que as luzes se apagavam, Tracy ficava deitada em seu catre e tapava os ouvidos com as mãos, num esforço para não escutar os sons.

Houve uma noite em que Ernestine tirou uma caixa de sucrilhos de arroz de sob seu catre e se pôs a espalhá-los pelo corredor fora da cela. Tracy ouviu reclusas em outras celas fazendo a mesma coisa.

- O que está acontecendo? - perguntou ela.

Ernestine virou-se para Tracy e disse asperamente:

- Não é da sua conta. Trate de ficar na sua cama. Simplesmente fique na porra da sua cama.

Poucos minutos depois houve um grito aterrorizado numa cela próxima.

- Oh, Deus, não! Não! Por favor, deixem-me em paz!

Tracy compreendeu então o que estava acontecendo e sentiu uma náusea profunda. Os gritos continuaram por um longo tempo, até que finalmente se desvaneceram para soluços desamparados. Tracy apertou os olhos com toda a força, dominada por uma raiva ardente. Como mulheres podiam fazer uma coisa assim a outras? Ela pensara que a prisão a deixara calejada, mas quando despertou pela manhã tinha o rosto manchado por lágrimas ressequidas. Ela estava determinada a não deixar transparecer seus sentimentos para Ernestine e perguntou-lhe casualmente:

- Para quê os sucrilhos?

- É o nosso sistema de aviso. Se os guardas tentam nos surpreender podemos ouvir se aproximando.

 

Tracy logo aprendeu por que as reclusas se referiam a uma pena na penitenciária como "ir ao colégio". A prisão era uma experiência educacional, mas o que as prisioneiras aprendiam era heterodoxo.

A prisão se achava repleta de especialistas em todos os tipos concebíveis de crimes. Elas trocavam métodos de vigarices, roubos em lojas, suadouros em bêbados. Espalhavam informações sobre alcaguetes e agentes policiais disfarçados.

Uma manhã, no pátio de recreação, Tracy ouviu uma reclusa mais velha dar uma conferência sobre punga para um grupo jovem fascinado.

 

- Os grandes profissionais vêm da Colômbia. Há uma escola em Bogotá que é conhecida como a escola dos dez sinos. Paga-se duzentos e cinquenta dólares para se aprender a ser punguista. Eles penduram um boneco do teto, vestindo um terno com dez bolsos, cheios de dinheiro e jóias.

- E qual é o truque?

- O truque é que cada bolso tem um sino. Ninguém se forma até conseguir esvaziar todos os bolsos sem tocar um sino sequer.

Lola suspirou.

- Eu costumava sair com um cara que circulava pelas multidões num sobretudo, com as duas mãos à vista, enquanto pungueava as pessoas como um louco.

- E como diabo ele conseguia fazer isso?

- A mão direita era falsa. Ele estendia a mão verdadeira por uma abertura no sobretudo, fazia a festa com bolsos, carteiras e bolsas.

A educação continuava na sala de lazer.

 

- Gosto muito do golpe da chave - disse uma veterana. - A gente fica por uma estação ferroviária até aparecer uma velhinha tentando meter uma mala ou um pacote grande num desses armários de aluguel. A gente ajuda e lhe entrega a chave. Só que a chave é de um armário vazio. Depois que ela vai embora, a gente esvazia seu armário e some.

No pátio, em outra tarde, duas reclusas condenadas por prostituição e, posse de cocaína conversavam com uma recém-chegada, uma garota bonita, que parecia não ter mais do que 17 anos.

- Não é de admirar que você tenha sido encanada, meu bem - disse uma das mulheres mais velhas. - Antes de falar em preço com um cara, você tem de apalpá-lo para se certificar de que ele não ia carregar uma arma. E nunca diga a ele o que você vai fazer. Em vez disso, faça ele dizer o que quer. E se depois descobrir que ele é um tira, a coisa vira uma armadilha, entende?

A outra profissional acrescentou:

- É isso mesmo. E sempre examine as mãos. Se um cara diz que é operário, veja se suas mãos são calosas. Muitos tiras à paisana usam roupas de operários, mas esquecem que suas mãos são lisas.

 

O tempo não passava devagar nem depressa. Era simplesmente o tempo. Tracy pensava no aforismo de Santo Agostinho: "O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei, Mas se tenho de explicar não sei."

 

A rotina da prisão jamais variava:

4 e 40: Campainha de aviso

4 e 45: Levantar e vestir

5: Café da manhã

5 e 30: Volta à cela

5 e 55: Campainha de aviso

6: Fila para o trabalho

10: Pátio para exercício

10 e 30: Almoço

11: Fila para o trabalho

15 e 30: Jantar

16: Volta à cela

17: Salão de recreação

18: Volta à cela

20 e 45: Campainha de aviso

21: Luzes apagadas

 

As regras eram inflexíveis. Todas as presas tinham de comparecer às refeições e não se permitiam conversas na fila. Não se podia guardar mais de cinco itens cosméticos nos pequenos armários antes do café da manhã e assim mantidas durante o dia inteiro.

A penitenciária tinha a sua própria música: o retinir da campainha, o arrastar de pés pelo cimento, o bater de portas de ferro, os sussurros de dia e os gritos de noite... o crepitar rouco dos wakie-talkies dos guardas, o estrépito das bandejas nas refeições. E sempre havia o arame farpado, os muros altos, a solidão e o isolamento, a aura penetrante de ódio.

Tracy tornou-se uma prisioneira exemplar. Seu corpo, reagia automaticamente aos sons da rotina da prisão: a barra deslizando através da cela na hora de deitar e na hora de acordar; a campainha para se apresentar ao trabalho, a sirene quando o trabalho acabava.

O corpo de Tracy era prisioneiro naquele lugar, mas a mente estava livre para planear a fuga.

 

As presas não podiam dar telefonemas para fora, mas tinham permissão de receber dois telefonemas de cinco minutos por mês. Tracy recebeu um telefonema de Otto Schmidt.

- Achei que você gostaria de saber - disse ele. - Foi um enterro muito bonito. E eu paguei todas as contas, Tracy.

- Obrigada, Otto. Eu... obrigada,

Não havia mais nada que qualquer dos dois pudesse dizer. E não houve mais telefonemas para ela.

- Garota, é melhor você esquecer o mundo exterior - advertiu-a Ernestine. - Não tem ninguém lá fora para você.

Está enganada, pensou Tracy.

Joe Romano.

Perry Pope.

Juiz Henry Lawrence.

Anthony Orsatti.

Charles Stanhope III.

 

Foi no pátio de exercício que Tracy tornou a encontrar Big Bertha. O pátio era um rectângulo grande, descoberto, limitado num lado pelo alto muro externo e no outro pelo muro interno. As reclusas tinham permissão de ficar no pátio por 30 minutos todas as manhãs. Era um dos poucos lugares em que se permitia conversar e grupos de prisioneiras se reuniam para trocar as últimas notícias e rumores, antes do almoço. Quando entrou no pátio pela primeira vez, Tracy experimentou uma súbita sensação de liberdade. Compreendeu que isso acontecia porque se encontrava ao ar livre. Podia ver o sol lá no alto, assim como as nuvens; ouviu em algum lugar no céu azul distante o zumbido de um avião, voando livre.

- Você! - disse uma voz. - Eu estava à sua procura.

Tracy virou-se para deparar com a enorme sueca que roçara nela em seu primeiro dia na prisão.

- Soube que arrumou uma sapatão negra.

Tracy tentou se afastar, mas Big Bertha agarrou-a pelo braço, com uma pressão implacável.

- Ninguém se afasta de mim assim - sussurrou ela. - Seja boazinha, littbarn.

Ela empurrava Tracy para o muro, comprimindo-se contra o seu corpo.

- Largue-me!

- O que você está precisando é de uma boa chupada. Sabe do que estou falando? Pois é o que vou dar a você. Vai ser toda minha, alskade.

Uma voz famíliar soou irritada por trás de Tracy:

- Tire as porras das suas mãos de cima dela, sua idiota.

Ernestine Littlechap estava parada ali, as enormes mãos cerradas, os olhos faiscando, o sol se reflectindo em seu crânio rapado.

- Você não é homem bastante para ela, Ernie.

- Sou homem bastante para você - explodiu a preta. - Torne a chateá-la e comerei seu rabo no café da manhã. Frito.

O ar estava subitamente carregado. As duas amazonas se fitavam com um ódio intenso. Elas estão prestes a se matar por minha causa, pensou Tracy. E depois ela compreendeu que tinha muito pouco a ver com aquilo. Lembrou-se de uma coisa que Ernestine lhe dissera:

- Neste lugar, você tem de lutar, foder ou pular a cerca. Ou você finca pé ou está morta.

Foi Big Bertha quem recuou. Ela lançou um olhar desdenhoso para Ernestine.

- Não tenho pressa. - Contemplando Tracy com um olhar lúgubre, ela acrescentou: - Ficará por aqui durante muito tempo, meu bem. E eu também. Ainda tornaremos a nos encontrar.

Ela virou-se e afastou-se . Ernestine observou-a por um momento e comentou:

- Ela é uma terrível mãe. Lembra daquela enfermeira em Chicago que matou todos os seus pacientes? Encheu-os de cianureto e ficou assistindo eles morrerem? Pois é esse anjo de misericórdia que está agora cheio de tesão por você, Whitney. Merda! Você está mesmo precisando de uma porra de uma guardiã. Ela não vai deixar você em paz.

- Vai me ajudar a escapar?

Uma campainha soou.

- Está na hora da bóia - disse Ernestine Littlechap.

Naquela noite, deitada em seu catre, Tracy ficou pensando em Ernestine. Apesar de Ernestine nunca mais tentar tocá-la, Tracy ainda não confiava nela. Nunca poderia esquecer o que Ernestine e as outras companheiras de cela lhe haviam feito. Mas precisava dela.

 

Todas as tardes, depois do jantar, as reclusas tinham permissão para passar uma hora na sala de recreação, onde podiam assistir televisão, conversar ou ler as últimas revistas e jornais. Tracy folheava uma revista quando uma fotografia atraiu sua atenção. Era uma foto de casamento de Charles Stanhope III, saindo da capela de braço dado com a esposa, rindo. Atingiu Tracy como um golpe físico. Contemplando a foto, o sorriso feliz no rosto de Charles, ela foi invadida por uma angústia, que logo se transformou em fúria fria. Planeara outrora partilhar sua vida com aquele homem, mas ele lhe virara as costas, deixara que a destruíssem, deixara que o filho dos dois morresse. Mas isso acontecera em outro lugar, outro tempo. Aquilo era fantasia. Isto é a realidade.

Tracy fechou a revista bruscamente.

 

Nos dias de visita era fácil saber quais as reclusas que tinham amigos ou parentes que vinham vê-las. Elas tomavam um banho de chuveiro, punham roupas limpas, maquilavam-se. Ernestine geralmente voltava da sala de visitas sorridente e jovial.

- Meu amor sempre vem me visitar - ela disse a Tracy. - Estará esperando quando eu sair. E sabe por quê? Porque dou a ele o que nenhuma outra mulher pode dar.

Tracy não pôde esconder a sua confusão.

- Está querendo dizer... sexualmente?

- Pode apostar que sim. O que acontece dentro destes muros não tem nada a ver com o mundo lá fora. Aqui, a gente precisa às vezes de um corpo quente para abraçar... alguém para nos acariciar e dizer que nos ama. Temos de sentir que há alguém que se importa com a gente. Não importa que não seja real ou que não dure muito. É tudo o que temos. Mas quando estou lá fora... - Ernestine se desmanchou num sorriso largo - ... então me transformo numa sacana de uma ninfomaníaca, entende?

Havia uma coisa que deixava Tracy aturdida. Ela resolveu levantar o assunto agora.

- Ernie, você está sempre me protegendo. Por quê?

Ernestine encolheu os ombros.

- Sei lá.

- Eu gostaria realmente de saber. - Tracy escolheu cuidadosamente as palavras. - Todas as outras que são... suas amigas pertencem a você. Elas fazem tudo o que você manda.

- Se não quiserem se estripar, é isso mesmo.

- Mas não eu. Por quê?

- Está se queixando?

- Não. Estou apenas curiosa.

Ernestine pensou a esse respeito por um momento.

- Muito bem. Você tem uma coisa que eu quero. - Ela viu a expressão no rosto de Tracy. - Não é isso. Já tenho tudo o que quero, meu bem. Você tem classe. E estou falando de classe de verdade. Como aquelas donas frias que a gente vê em Vogue e Town and Country, todas muito bem vestidas e servindo chá em bules de prata. É o lugar a que você pertence. Este não é o seu mundo. Não sei como você se envolveu com toda aquela merda lá fora, mas meu palpite é que foi enganada por alguém.

Ela fez uma pausa, fitou Tracy nos olhos e acrescentou, quase timidamente:

 

- Não encontrei muitas coisas decentes na minha vida. Você é uma delas. - Ernestine virou-se e suas palavras seguintes soaram quase inaudíveis. - E lamento muito sobre o seu garoto. Lamento de verdade.

Naquela noite, depois que as luzes se apagaram, Tracy sussurrou no escuro:

- Ernestine, tenho de fugir. Ajude-me. Por favor.

- Estou tentando dormir, pelo amor de Deus       Cale essa boca, está bem?

 

Ernestine iniciou Tracy na linguagem misteriosa da prisão. Grupos de mulheres no pátio estavam falando:

- A sapatão largou o cinto em cima da garotinha e depois disso tinha de se dar comida a ela com uma colher de cabo bem comprido...

Ela estava curta, mas a pegaram numa tempestade de neve e um tira de pedra entregou-a ao carniceiro. Isso acabou com a sua estrutura. Adeus, Ruby-do...

Para Tracy, era como escutar uma conversa de marcianos. E ela perguntou:

- Sobre o que estão falando?

Ernestine explodiu numa gargalhada.

- Não sabe falar inglês, garota? Quando a lésbica "largou o cinto", significa que passou de machona para mary femme. Envolveu-se com uma "garotinha"... uma dona como você. Não merecia confiança, o que significava que você se manteve à distância. Ela estava "curta", significando que se aproximava o fim de sua sentença de prisão. Mas foi apanhada tomando heroina por um tira de pedra... isto é, alguém que vive pelos regulamentos e não dá para comprar.. e despachada para o "carniceiro", o médico da prisão.

- O que é "Ruby-do" e "estrutura"?

- Ainda não aprendeu nada? "Ruby-do" é livramento condicional. E "estrutura" é o dia da libertação.

Tracy sabia que não poderia esperar por nenhuma das duas coisas.

 

A explosão entre Ernestine Littlechap e Big Bertha aconteceu no pátio no dia seguinte. As prisioneiras jogavam softball, uma variação mais suave do beisebol, sob a supervisão dos guardas. Big Bertha, com o bastão, acertou uma bola com toda a força e correu para a primeira base, que Tracy estava cobrindo. Big Bertha golpeou Tracy, derrubando-a, depois montou em cima dela. Suas mãos se insinuaram entre as pernas de Tracy, enquanto ela murmurava:

- Ninguém me diz não, sua puta. Vou agarrá-la esta noite, littbam, vou foder você até não aguentar mais.

Tracy lutou freneticamente para se desenvencilhar. Subitamente, sentiu que Big Bertha era arrancada de cima dela. Ernestine segurava a imensa sueca pelo pescoço e a sufocava.

- Sua puta escrota! - Ernestine estava gritando. - Eu avisei!

Ela meteu as unhas no rosto de Big Bertha, atingindo os olhos.

- Estou cega! - berrou Big Bertha. - Estou cega!

Ela agarrou os seios de Ernestine e começou a puxá-los. As duas mulheres estavam se esmurrando e se dilacerando quando quatro guardas se aproximaram correndo. Os guardas precisaram de cinco minutos para separá-las. As duas foram levadas para a enfermaria. Já era noite quando Ernestine voltou à cela. Lola e Paulita foram para sua cama, a fim de consolá-la.

 

- Você está bem? - sussurrou Tracy.

- Claro que estou - respondeu Ernestine. A voz soava abafada e Tracy se perguntou até que ponto ela ficara gravemente ferida. - Recebi meu Ruby-do ontem e vou sair daqui. Você está com um problema. Aquela mulher não vai deixá-la em paz. De jeito nenhum. E quando acabar de fodê-la, vai matar você.

Elas ficaram deitadas em silêncio na escuridão. Finalmente, Ernestine acrescentou:

- Talvez esteja na hora da gente conversar sobre a maneira de tirá-la daqui.

 

- Vai perder a sua governanta amanhã - anunciou o director Brannigan à esposa.

Sue Ellen Brannigan levantou os olhos, com uma expressão de surpresa.

- Por quê? Judy é muito boa com Amy.

- Sei disso. Mas acontece que a sentença dela acabou. Será solta pela manhã.

Os dois tomavam o café da manhã no confortável chalé que era um dos privilégios do cargo de Brannigan. Outros benefícios incluíam uma cozinheira, uma arrumadeira, um motorista e uma governanta para a filha Amy, que tinha quase cinco anos. Todas as criadas eram presas de confiança. Quando Sue Ellen Brannigan ali chegara, cinco anos antes, estava nervosa com a perspectiva de viver na área de uma penitenciária e ainda mais apreensiva por ter a casa cheia de criadas que eram criminosas condenadas.

- Como sabe que elas não nos roubarão e não nos cortarão a garganta no meio da noite? - perguntara Sue Ellen.

- Se fizerem isso - prometera Brannigan - serão devidamente punidas

Ele persuadira a esposa, sem chegar a convencê-la plenamente. Mas ficara constatado que os temores de Sue Ellen eram infundados. As presas de confiança estavam ansiosas em causar uma boa impressão e reduzir sua pena ao máximo possível, por isso se mostravam conscienciosas.

- Logo agora que eu começava a me sentir tranquila com a idéia de deixar Amy aos cuidados de Judy - queixou-se a Sra. Brannigan.

Ela gostava de Judy e lhe queria bem, mas não desejava que ela fosse embora. Quem podia saber que tipo de mulher seria a próxima governanta de Amy? Havia tantas histórias de horror sobre as coisas terríveis que estranhas faziam com crianças.

- Já tem em mente alguém em particular para substituir Judy, George?

 

O director pensara bastante a esse respeito. Havia uma dúzia de presas de confiança em condições de assumir o encargo de cuidar de sua filha. Mas ele não conseguia tirar Tracy Whitney do pensamento. Havia alguma coisa no caso dela que ele achava profundamente perturbador. Era um criminologista profissional há 15 anos e se orgulhava de incluir entre suas qualidades a capacidade de avaliar prisioneiras. Algumas das condenadas aos seus cuidados eram criminosas empedernidas, outras se achavam na prisão por terem cometido crimes de paixão ou sucumbido a uma tentação momentânea. Mas Brannigan tinha a impressão de que Tracy Whitney não pertencia a qualquer categoria. Ele não fora influenciado por seus protestos de inocência, pois esse era o procedimento normal de todas as condenadas. O que o perturbava era o conhecimento das pessoas e haviam conspirado para enviar Tracy Whitney à prisão. O director fora designado por uma comissão cívica de Nova Orleans, liderada pelo governador do Estado. Embora ele se recusasse firmemente a qualquer envolvimento em política, sabia quem eram todos os participantes do caso. Joe Romano era da Máfia, um subordinado de Anthony Orsatti. Perry Pope, o advogado que defendera Tracy Whitney, estava na folha de pagamento da Máfia, o mesmo acontecendo com o Juiz Henry Lawrence. Não podia haver a menor dúvida de que havia algo estranho na condenação de Tracy Whitney. E agora, Brannigan tomou finalmente uma decisão, declarando à esposa:

- Tenho, sim... estou pensando numa certa pessoa.

 

Havia uma alcova na cozinha da prisão, com uma pequena mesa de tampo de fórmica e quatro cadeiras, o único lugar em que era possível se ter um mínimo de privacidade. Ernestine Littlechap e Tracy estavam sentadas ali, tomando café, durante o intervalo de descanso de dez minutos.

- Acho que está na hora de você me contar por que toda a pressa de sair daqui - sugeriu Ernestine.

Tracy hesitou por um instante. Podia confiar em Ernestine? Mas não tinha opção.

- Há... há algumas pessoas que fizeram coisas à minha família e a mim. Tenho de sair daqui para fazê-las pagar.

- É mesmo? E o que essas pessoas fizeram?

As palavras de Tracy saíram lentamente, cada palavra uma pontada de angústia:

- Eles mataram minha mãe.

- Quem são eles?

- Não creio que os nomes signifiquem alguma coisa para você. Joe Romano, Perry Pope, um juiz chamado Henry Lawrence, Anthony Orsatti...

Ernestine fitava-a fixamente, com a boca escancarada.

- Santo Deus! Está querendo me gozar, garota?

Tracy ficou surpresa.

- Já ouviu falar deles?

- Se já ouvi? Mas quem não ouviu falar deles? Nada acontece em Nova Orleans se Orsatti ou Romano não permitirem. Não pode se meter com eles. Vão explodir você como fumaça, apagá-la por completo.

Tracy disse, sem qualquer inflexão na voz:

- Já me apagaram.

Ernestine olhou ao redor, a fim de certificar-se que ninguém podia ouvi-las.

- Você está louca ou então é a mulher mais estúpida que conheci. Como pode falar assim sobre os intocáveis? - Ela sacudiu a cabeça. - Esqueça esses homens. E depressa!

- Não posso. Tenho de sair daqui. Isso é possível?

Ernestine manteve-se em silêncio por um longo tempo. E finalmente murmurou:

- Conversaremos no pátio

 

Elas estavam no pátio, num canto, isoladas.

- Já houve doze fugas daqui - disse Ernestine. - Duas das prisioneiras foram baleadas e mortas. As outras dez foram apanhadas e trazidas de volta.

Tracy não fez qualquer comentário e Ernestine continuou:

 

- A torre é guarnecida vinte e quatro horas por dia por guardas armados de metralhadoras. Eles são uns filhos da puta. Se alguém escapa, isso lhes custa o emprego. Por isso, não pensam duas vezes no momento de matá-la. Há arame farpado em torno de toda a prisão. Se você conseguir passar pelo arame farpado e pelas metralhadoras, eles ainda têm cachorros que podem farejar o peido de um mosquito. Há um quartel da Guarda Nacional a poucos quilómetros daqui. Quando uma prisioneira escapa, eles mandam helicópteros, armados e com holofotes. Ninguém se importa se a trazem de volta viva ou morta, garota. Acham que morta é melhor. Desencoraja qualquer outra que esteja com planos.

- Mas as pessoas ainda tentam - insistiu Tracy, obstinadamente.

- As que conseguiram escapar tiveram ajuda do exterior... amigos que contrabandearam armas, dinheiro e roupas. Tinham carros de fuga à sua espera. - Ernestine fez uma pausa, a fim de aumentar o efeito. - E ainda assim elas foram recapturadas.

- Não vão me recapturar - garantiu, Tracy.

Uma inspectora se aproximava. E gritou para Tracy.

- O director Brannigan quer falar com você. Depressa!

 

- Precisamos de alguém para cuidar de nossa filha pequena - disse Brannigan. - É um trabalho voluntário. Você não precisa aceitar, se não quiser.

Alguém para cuidar de nossa filha pequena. A mente de Tracy estava em disparada. Isso poderia facilitar a sua fuga. Trabalhando na casa do director, poderia provavelmente aprender muito mais sobre a organização da prisão.

- Eu gostaria de ficar com o trabalho - murmurou Tracy.

O director Brannigan ficou satisfeito. Tinha o sentimento estranho e irracional de que devia alguma coisa àquela mulher.

- Óptimo. O salário é de sessenta cêntimos por hora. O dinheiro será depositado numa conta em seu nome no final de cada mês.

As prisioneiras não tinham permissão de manipular dinheiro, e tudo o que ganhavam lhes era entregue no momento em que saíam da prisão.

Não estarei aqui no final do mês, pensou Tracy. Mas, em voz alta, ela disse:

- Será óptimo.

- Pode começar pela manhã. A inspectora-chefe lhe dará instruções detalhadas.

- Obrigada, senhor director.

George Brannigan fitou Tracy e sentiu-se tentado a acrescentar mais alguma coisa. Não tinha muita certeza do que era. Mas limitou-se a murmurar:

- Isso é tudo.

 

Quando Tracy lhe transmitiu a notícia, Ernestine comentou, pensativa:

- Isso significa que vão convertê-la numa presa de confiança. Saberá como a prisão funciona. E isso pode tornar a fuga um pouco mais fácil.

- Como posso fazer?. - perguntou Tracy.

- Tem três opções e todas são arriscadas. A primeira é uma fuga furtiva. Usa goma de mascar uma noite para prender as trancas de sua cela e das portas do corredor. Sai para o pátio, joga um cobertor sobre o arame farpado, pula para o lado de fora e começa a correr.

Com cachorros e helicópteros em seu encalço. Tracy podia sentir as balas das armas, dos guardas a lhe dilacerarem a carne. Ela estremeceu.

- Quais são os outros meios?

 

- A segunda opção é uma fuga na marra. Você usa uma arma e leva um refém. Se a pegarem, vai levar um duque para quina. - Ela viu a expressão de perplexidade no rosto de Tracy e explicou. - É o aumento de sua sentença em dois a cinco anos.

- E qual é o terceiro meio?

- Um passeio. É para as presas de confiança em serviços especiais. Assim que você se descobre fora dos muros, garota. começa a andar e não pára mais.

Tracy pensou a esse respeito. Sem dinheiro, sem um carro e sem um lugar para se esconder, não teria muita chance.

- Eles descobririam a fuga na primeira chamada e partiriam à minha procura.

Ernestine suspirou.

- Não há plano de fuga perfeito, garota. É por isso que ninguém jamais conseguiu escapar para sempre deste lugar.

Pois eu escaparei, jurou Tracy. Eu escaparei.

 

A manhã em que Tracy foi levada para a casa do director Brannigan assinalou o seu quinto mês como prisioneira. Ela estava nervosa com a perspectiva de encontrar a esposa e a filha do director, pois queria o cargo desesperadamente. Seria a sua chave para a liberdade.

Tracy entrou na cozinha grande e agradável e sentou-se. Pôde sentir a gota de suor aflorar na axila e escorrer. Uma mulher num chambre rosa-claro apareceu na porta, dizendo:

- Bom dia.

- Bom dia.

A mulher fez menção de se sentar, mudou de idéia e continuou de pé. Sue Ellen Brannigan era uma loura de rosto simpático, trinta e poucos anos, um comportamento vago e distraído. Era esguia e nervosa, nunca sabia direito como tratar as presas que a serviam como criadas. Deveria se mostrar amistosa ou tratá-las friamente como prisioneiras? Sue Ellen ainda não se acostumara à idéia de viver no meio de viciadas em drogas, sequestradoras e assassinas.

- Sou a Sra. Brannigan Amy tem quase cinco anos e você sabe como as crianças são activas nesta idade. Infelizmente, ela precisa ser vigiada durante todo o tempo.

Ela fez uma pausa, olhando para a mão esquerda de Tracy. Não havia aliança ali, mas também isso nada significava actualmente. Particularmente com as classes inferiores, pensou Sue Ellen perguntou, delicadamente:

- Você tem filhos?

Tracy pensou no filho que não chegara a nascer.

- Não.

- Entendo... - Sue Ellen sentia-se confusa com aquela mulher. Não era absolutamente o que imaginara. Havia algo nela quase elegante. - Vou buscar Amy.

Ela deixou apressadamente a cozinha. Tracy olhou ao redor. Era um chalé relativamente grande, bem arrumado e atraentemente decorado. Pareceu-lhe que já se haviam passado muitos anos desde que entrara pela última vez na casa de alguma pessoa. Isso tudo era parte do outro mundo... o mundo exterior. Sue Ellen voltou, puxando uma garotinha pela mão.

- Amy, esta é... - Devia chamar uma prisioneira pelo primeiro nome ou pelo sobrenome? Ela ficou num meio termo. Esta é Tracy Whitney.

- Oi - disse Amy.

 

Ela era esguia como a mãe, tinha os mesmos olhos castanhos-claros, fundos e inteligentes. Não era uma criança bonita, mas irradiava uma cordialidade tão franca que chegava a ser comovente.

Não deixarei que ela me comova, jurou Tracy.

- Você vai ser minha nova babá?

- Ajudarei sua mãe a cuidar de você.

- Sabia que Judy saiu sob livramento condicional? Você também vai embora sob livramento condicional?

Não, pensou Tracy.

- Ficarei aqui por um longo tempo, Amy.

- Isso é óptimo, - disse Sue Ellen, jovialmente. Ela ficou ruborizada em constrangimento, mordeu o lábio. - Isto é...

Pôs-se a andar nervosamente pela cozinha, explicando os deveres de Tracy:

- Fará as refeições com Amy. Pode preparar o café da manhã para ela e passar a manhã a brincar. A cozinheira fará o almoço aqui. Depois de comer, Amy sempre tira um cochilo. à tarde, ela gosta de passear pelo terreno da fazenda. Não acha que é bom para uma criança ver as coisas crescendo?

- Acho, sim.

A fazenda ficava no outro lado do conjunto principal da prisão, tinha legumes e árvores frutíferas, cultivados por reclusas de confiança. Havia um enorme lago artificial usado para a irrigação, cercado por um muro de pedra.

 

Os cinco dias subsequentes foram quase que uma vida nova para Tracy. Em circunstâncias diferentes, ela teria desfrutado o fato de se afastar dos muros sombrios da prisão, poder andar livremente pela fazenda, respirar o ar puro dos campos. Mas tudo o que podia pensar agora era em sua fuga. Quando não estava trabalhando com Amy, ela tinha de retornar à prisão. à noite, era sempre trancafiada, em sua cela; mas, durante o dia, tinha a ilusão de liberdade. Depois do café da manhã na cozinha da prisão, ela ia para o chalé do director e preparava a primeira refeição de Amy. Tracy aprendera com Charles muita coisa sobre cozinhar e sentia-se tentada pela variedade de alimentos na despensa do director. Mas Amy preferia uma refeição simples, de mingau de aveia ou cereais com frutas. Depois, Tracy brincava com a menina ou lia para ela. Sem pensar, Tracy pôs-se a ensinar a Amy as brincadeiras que aprendera com a mãe.

Amy adorava marionetes. Tracy tentou lhe fazer uma cópia do cordeiro de Shari Lewis com uma meia velha do director, mas acabou saindo uma coisa intermediária entre uma raposa e um pato.

- Acho que está muito bonito - comentou Amy, lealmente.

Tracy fazia a marionete falar com sotaques diferentes: francês, italiano, alemão e o que Amy mais adorava, a cadência mexicana de Paulita. Tracy contemplava o prazer no rosto da criança e pensava: Não me deixarei envolver. Ela é apenas um meio para eu sair daqui.

Depois do cochilo de Amy à tarde, as duas faziam longos passeios. Tracy sempre dava um jeito para que percorressem áreas da prisão que ainda não conhecia. Observava cuidadosamente cada entrada e saída e como as torres de guarda eram guarnecidas, registrava as mudanças de turno. Logo ficou patente que nenhum dos planos de fuga que discutira com Ernestine poderia dar certo.

 

- Alguém já tentou escapar escondendo-se num dos camiões de entrega que trazem coisas para a prisão? Já vi camiões de leite e de alimentos.

- Esqueça - disse Ernestine, taxativamente. - Cada veículo que entra e sai do portão é revistado.

 

Uma manhã, quando fazia a sua primeira refeição, Amy disse:

- Eu amo você, Tracy. Quer ser minha mãe?

As palavras provocaram uma pontada de angústia em Tracy.

- Uma mãe já é suficiente. Não precisa de duas.

- Preciso, sim. O pai de minha amiga Sally Ann casou de novo e ela tem agora duas mães.

- Você não é Sally Ann - disse Tracy, bruscamente. - Acabe logo de comer.

Amy fitava-a com uma expressão magoada.

- Não estou mais com fome.

- Está bem. Vou ler para você.

Quando começou a ler, Tracy sentiu a mãozinha de Amy na sua.

- Posso sentar no seu colo?

- Não.

Dê toda a sua atenção à sua própria família, pensou Tracy. Você não pertence a mim. Nada pertence a mim.

 

Os dias tranquilos, longe da rotina da prisão, de certa forma tornavam as noites piores. Tracy detestava voltar à cela, detestava ser enjaulada como um animal. Ainda era incapaz de se acostumar aos gritos que partiam das celas próximas, na escuridão indiferente.

Rangia os dentes até que as mandíbulas doíam. Uma noite de cada vez, ela prometia a si mesma. Posso suportar uma noite de cada vez.

Ela dormia pouco, pois sua mente estava ocupada em planear. O primeiro passo era fugir. O segundo era cuidar de Joe Romano, Perry Pope, Juiz Henry Lawrence e Anthony Orsatti. O terceiro era Charles. Mas esse era angustiante demais até para pensar a esse respeito: Cuidarei disso quando chegar o momento, ela dizia a si mesma.

 

Começava a se tornar impossível ficar longe do caminho de Big Bertha. Tracy tinha certeza de que a enorme sueca a espionava. Se Tracy ia para o salão de recreação, Big Bertha aparecia poucos minutos depois; quando Tracy saia para o pátio, Big Bertha lá se mostrava um momento mais tarde. Houve um dia em que Big Bertha se aproximou de Tracy e disse:

- Está linda hoje, littbam. Mal posso esperar o momento em que estaremos juntas.

- Fique longe de mim - advertiu Tracy.

A amazona sorriu.

- Ou o quê? Sua negra está saindo. E eu estou dando um jeito para que você seja transferida para a minha cela.

Tracy fitou-a nos olhos. Big Bertha assentiu.

- Posso fazer isso, meu bem. Acredite em mim.

O tempo de Tracy estava se esgotando . Ela tinha de fugir antes que Ernestine fosse solta.

 

O passeio predilecto de Amy era através da campina, onde havia um arco-íris de flores silvestres. O vasto lago artificial ficava próximo, cercado por um muro baixo de concreto, caindo por uma boa distância para a água profunda.

 

- Vamos nadar - suplicou Amy. - Por favor, Tracy, podemos nadar?

- Não é para nadar - disse Tracy - Usam a água para irrigação.

A visão do lago frio, de aparência assustadora, fazia Tracy sentir calafrios. O pai carregando-a para o mar nos ombros; quando ela gritava, o pai dizia: Não seja criança, Tracy, largando-a na água fria; e quando a água se fechava sobre a sua cabeça, ela entrava em pânico e começava a sufocar...

 

Foi um choque quando a notícia chegou, embora Tracy já a esperasse.

- Sairei daqui dentro de uma semana, a contar do sábado - informou Ernestine.

As palavras provocaram um calafrio em Tracy. Não falaria a Ernestine sobre a conversa com Big Bertha. Ernestine não estaria ali para ajudá-la, Big Bertha provavelmente teria influência suficiente para que Tracy fosse transferida para a sua cela. O único jeito de Tracy evitar era falar com o director; mas ela sabia que, se fizesse isso, poderia se considerar morta. Cada presa se viraria contra ela. Você tem de lutar, poder ou pular o muro. Pois ela pularia o muro.

Tracy e Ernestine repassaram as possibilidades de fuga. Nenhuma delas era satisfatória.

- Você não tem carro e não tem ninguém lá fora para ajudá-la. Certamente será apanhada e ficará então numa situação ainda pior. É melhor esfriar e terminar sua sentença.

Mas Tracy sabia que não haveria tempo para isso. Não com Big Bertha atrás dela. O simples pensamento do que a gigante sueca tencionava fazer com ela deixava-a fisicamente doente.

 

Foi na manhã de sábado, sete dias antes da soltura de Ernestine. Sue Ellen Brannigan levara Amy para passar o fim de semana em Nova Orleans e Tracy trabalhava na cozinha da prisão.

- Como vai o trabalho de babá? - perguntou Ernestine.

- Muito bem .

- Já vi a garotinha. Ela parece sensacional.

- É, sim .

O tom de Tracy era de indiferença.

- Terei o maior prazer em sair daqui. E vou lhe dizer uma coisa: nunca mais voltarei para este lugar. Se houver alguma coisa que Al ou eu pudermos fazer por você lá fora...

- Olha a passagem! - gritou uma voz de homem.

Tracy virou-se. Um homem empurrava um imenso carrinho de mão, empilhado até o alto com uniformes e outras roupas sujas. Tracy observou, perplexa, enquanto ele se encaminhava para a saída .

- O que eu estava dizendo é que se Al e eu pudermos fazer alguma coisa por você... sabe como é mandar coisas para você ou...

- Ernie, o que um camião de lavanderia está fazendo aqui? A prisão dispõe de sua própria lavanderia.

 

- É para os guardas. - Ernestine soltou uma risada. - Eles costumavam mandar os uniformes para a lavanderia da prisão, mas todos os botões acabavam arrancados, as mangas se despregavam, bilhetes obscenos eram costurados por dentro, camisas encolhiam, tudo se rasgava misteriosamente. Não é uma pena? Agora, os guardas mandam as suas coisas para uma lavanderia de fora.

Ernestine tornou a rir, na sua imitação de Butterfly McQueen. Mas Tracy não prestava mais atenção.

 

- George, não tenho certeza se devemos manter Tracy.

O director Brannigan levantou os olhos de seu jornal.

- Por quê? Qual é o problema?

- Não sei direito. Mas tenho a impressão de que Tracy não gosta de Amy. Talvez ela simplesmente não goste de crianças.

- Ela não tem sido má com Amy, não é mesmo? Não tem lhe batido nem gritado?

- Não.

- Então o que é?

- Ontem Amy correu para ela e abraçou-a, mas Tracy afastou-a. Isso me incomodou, porque Amy é louca por ela. Para dizer a verdade, acho que estou com um pouco de ciúme. Isso é possível?

Brannigan riu.

- Pode explicar muita coisa, Sue Ellen. Creio que Tracy Whitney é a pessoa certa para o trabalho. Mas se ela lhe causar algum problema de verdade, trate de me comunicar imediatamente e tomarei uma providência.

- Está bem, querido.

Mas Sue Ellen ainda não se sentia satisfeita. Ela pegou a agulha de tricô e pôs-se a trabalhar. O assunto ainda não estava encerrado.

 

- Por que não pode dar certo?

- Já lhe disse, garota. Os guardas revistam todos os camiões que passam pelo portão.

- Mas um camião levando roupa suja... eles não vão tirar todas as roupas para verificar.

- Nem precisam. O cesto de roupa suja é levado para uma sala, onde um guarda observa enquanto é enchido.

Tracy pensou por um momento.

- Ernie... alguém poderia distrair esse guarda por cinco minutos?

- Mas de que diabo serviria... - Ela parou de falar subitamente, um sorriso iluminando seu rosto. - Enquanto alguém distrai o guarda, você se mete no fundo do cesto e se cobre de roupa suja!

Ernestine balançou a cabeça, acrescentando:

- Quer saber de uma coisa? Acho que o negócio pode perfeitamente dar certo!

- E vai me ajudar?

Ernestine pensou por um momento. E depois falou suavemente:

- Claro que a ajudarei. É a minha última oportunidade de sacanear Big Bertha.

O serviço de informações da prisão fervilhou com a notícia da fuga iminente de Tracy Whitney. Uma fuga era um evento que afectava todas as prisioneiras. Elas viviam indirectamente cada tentativa, desejando ter a coragem de executá-la pessoalmente. Mas havia os guardas, os cães e os helicópteros; e, ao final, os corpos das prisioneiras que eram trazidos de volta.

 

Com a ajuda de Ernestine, o plano de fuga entrou rapidamente em execução. Ernestine tirou as medidas de Tracy, Lola desviou o material necessário para um vestido da oficina de costura, Paulita providenciou uma costureira em outro bloco para fazê-lo. Um par de sapatos da prisão foi roubado do almoxarifado e pintado para combinar com o vestido. Apareceram chapéu, luvas e uma bolsa, como num passe de mágica.

- Agora temos de arrumar alguns documentos de identidade para você - informou Ernestine a Tracy. - Precisará de uns dois cartões de crédito e carteira de motorista.

- Mas como eu poderia...

Ernestine sorriu.

- Basta deixar tudo isso aos cuidados da velha Ernie Littlechap.

Na noite seguinte, Ernestine entregou a Tracy três cartões de crédito, em nome de Jane Smith.

- Você precisa agora de uma carteira de motorista.

 

Em algum momento, depois da meia-noite, Tracy ouviu a porta da cela sendo aberta. Alguém entrara sorrateiramente. Tracy sentou-se em sua cama, instantaneamente de guarda. Uma voz sussurrou:

- Whitney? Vamos embora.

Tracy reconheceu a voz de Lillian, uma presa de confiança.

- O que você quer?

A voz de Ernestine soou na escuridão:

- Que tipo de criança idiota sua mãe criou? Cale a boca e não faça perguntas.

Lillian acrescentou, baixinho:

- Temos de agir depressa. Se formos tirarão o couro. Vamos logo.

- Para onde estamos indo? - perguntou Tracy, enquanto seguia Lillian pelo corredor escuro, na direcção de uma escada.

Elas subiram para o patamar superior. Depois de se certificarem de que não havia guardas por perto, seguiram apressadamente por um corredor, até a sala em que Tracy fora fotografada e tirara as impressões digitais. Lillian empurrou a porta, sussurrando:

- É aqui.

Tracy seguiu-a pelo interior da sala. Outra prisioneira já estava ali, esperando.

- Encoste na parede.

A reclusa parecia bastante nervosa. Tracy foi se postar junto à parede, o estômago todo contraído.

- Olhe para a câmara. Tente parecer relaxada.

Muito engraçado, pensou Tracy. Ela nunca se sentira tão nervosa, em toda a sua vida. A câmara disparou.

- A fotografia será entregue pela manhã - disse a presa. - É para sua carteira de motorista. E agora saiam daqui... depressa!

Tracy e Lillian voltaram pelo mesmo caminho. No caminho, Lillian comentou.

- Ouvi dizer que você vai mudar de cela.

Tracy sentiu um calafrio.

- Como?

- Não sabia? Vai para a cela de Big Bertha.

 

Ernestine, Lola e Paulita estavam à espera quando Tracy voltou à cela.

- Como foi?

- Tudo bem.

Não sabia? Vai para a cela de Big Bertha.

- Seu vestido ficará pronto no sábado - informou Paulita.

 

O dia da soltura de Ernestine. Esse é o meu prazo final, pensou Tracy. Ernestine sussurrou:

- Temos tudo sob controle. O recolhimento da lavanderia no sábado é às duas horas da tarde. Você tem de estar na sala de serviço à uma e meia. Não precisa se preocupar com o guarda. Lola o manterá ocupado na sala ao lado. Lola e Paulita estarão lá à sua espera. Paulita levará suas roupas. O documento de identidade estará na bolsa. Você atravessará os portões da prisão às duas e quinze.

Tracy sentiu alguma dificuldade em respirar. Só falar sobre a fuga já a fazia tremer. Ninguém se importa se a trazem de volta viva ou morta... Acham até que morta é melhor.

Dentro de poucos dias ela estaria tentando a sua fuga para a liberdade. Não tinha ilusões. Todas as chances eram contra ela. Acabariam por encontrá-la e trazê-la de volta. Mas tinha uma coisa que ela jurara resolver primeiro.

 

O serviço de informações da prisão sabia de tudo sobre a competição entre Ernestine Littlechap e Big Bertha por causa de Tracy. Agora que circulara a notícia de que Tracy seria transferida para a cela de Big Bertha, não era por acaso que ninguém lhe mencionara o plano de fuga de Tracy. Afinal, Big Bertha não gostava de ouvir más notícias. Era propensa com frequência a confundir a notícia com a portadora e tratar a pessoa de acordo. Big Bertha só teve conhecimento do plano na própria manhã em que deveria ocorrer a fuga de Tracy. Foi-lhe revelado pela presa de confiança que, tiraram a fotografia de Tracy.

Big Bertha recebeu a notícia num silêncio ominoso. Seu corpo pareceu se tornar ainda maior, enquanto escutava.

- A que horas? - foi tudo o que ela perguntou.

- Esta tarde, às duas horas, Bert. Vão escondê-la no fundo de um cesto de roupa suja.

Big Bertha pensou a esse respeito por um longo tempo. Depois, procurou uma inspectora e disse:

- Preciso falar imediatamente com o director Brannigan.

 

Tracy não dormira durante a noite inteira. Sentia-se nauseada de tanta tensão. Os meses que passara na prisão pareciam uma dúzia de eternidades. Imagens do passado afloraram em sua mente enquanto estava deitada, os olhos perdidos na escuridão.

Eu me sinto como uma princesa num conto de fadas, mamãe. Não sabia que alguém podia ser tão feliz.

Com que então você e Charles querem casar.

Estão planeando uma lua-de-mel por quanto tempo?

Você me baleou, sua puta estúpida!

Sua mãe cometeu suicídio...

Eu nunca a conheci de verdade...

A fotografia do casamento de Charles sorrindo para a noiva.

Há quantos séculos atrás? A quantos planetas de distância?

 

A campainha da manhã ressoou pelo corredor como uma onda de choque. Tracy sentou no catre, inteiramente alerta. Ernestine observava-a.

- Como está se sentindo, garota?

- Muito bem - mentiu Tracy.

Ela sentia a boca ressequida, o coração batia descompassadamente.

 

- Nós duas estaremos saindo daqui hoje.

Tracy encontrou dificuldade para engolir em seco.

- Hum-hum...

- Tem certeza de que pode sair da casa do director por volta da uma e meia?

- Não há problema. Amy sempre tira um cochilo depois do almoço.

Paulita disse.

- Não pode se atrasar ou não dará certo.

- Estarei lá.

Ernestine meteu a mão por baixo de seu colchão e tirou um rolo de notas.

- Precisará de algum dinheiro para circular. São apenas duzentos dólares, mas darão para você se afastar.

- Ernie, eu não sei o que...

- Ora, garota, basta calar a boca e pegar logo o dinheiro.

 

Tracy forçou-se a comer alguma coisa ao café da manhã. A cabeça latejava, cada músculo do corpo doía. Nunca conseguirei sobreviver até o final do dia, pensou ela. Tenho de conseguir aguentar firme durante todo o dia.

Havia um silêncio tenso e anormal na cozinha. Tracy compreendeu subitamente que era a causa para isso. Era o alvo de olhares furtivos e sussurros nervosos. Uma fuga estava prestes a acontecer e ela era a heroina do drama. Dentro de poucas horas estaria livre. Ou morta.

Ela levantou-se do café da manhã inacabado e foi para a casa do director Warden. Enquanto esperava que um guarda abrisse a porta do corredor, Tracy deparou com Big Bertha. A enorme sueca estava lhe sorrindo.

Ela terá uma grande surpresa, pensou Tracy.

Ela será toda minha agora, pensou Big Bertha.

 

A manhã passou tão devagar que Tracy teve a impressão de que acabaria perdendo o juízo. Os minutos pareciam se arrastar interminavelmente. Ela leu para Amy, mas não tinha a menor idéia do que estava lendo. Percebeu que a Sra. Brannigan observava da janela.

- Tracy, vamos brincar de esconde-esconde.

Tracy se achava nervosa demais para brincadeiras, mas não se atrevia a fazer qualquer coisa que pudesse despertar as suspeitas da Sra. Brannigan.

- Claro. Por que você não se esconde primeiro, Amy?

Estavam no jardim na frente do chalé. à distância, Tracy podia divisar o prédio em que ficava a sala de serviço. Tinha de estar ali exactamente à uma e meia. Vestiria as roupas que lhe haviam sido feitas e 15 minutos depois estaria deitada no fundo do enorme cesto de roupa suja, coberta por uniformes. às duas horas o cesto seria posto no camião e levado para fora da prisão, seguindo para acidadezinha próxima, onde se localizava a lavanderia.

 

- O motorista não pode ver o que acontece na traseira lá do banco da frente. Quando o camião chegar à cidade e parar num sinal vermelho, basta abrir a porta e saltar, parecendo absolutamente calma, pegar um ónibus para qualquer lugar que queira ir.

- Pode me ver? - gritou Amy.

 

Ela se escondera parcialmente por trás do tronco de uma magnólia. Levou a mão à boca para reprimir uma risadinha.

Sentirei saudade dela, pensou Tracy. Quando for embora, as duas pessoas de que eu terei saudade serão, uma sapatão negra e careca e uma garotinha. Ela se perguntou o que Charles Stanhope III pensaria disso.

- Já vou procurá-la - disse Tracy.

 

Sue Ellen observava a brincadeira do interior da casa. Parecia-lhe que Tracy se comportava de maneira estranha. Ela passara a manhã inteira olhando a todo instante para o relógio, como se esperasse alguém; seus pensamentos não estavam obviamente concentrados em Amy.

Devo falar com George sobre isso quando ele chegar para o almoço, decidiu Sue Ellen. Insistirei para que ele a substitua.

 

No jardim, Tracy e Amy brincaram de amarelinha por algum tempo, depois Tracy leu para Amy- E finalmente, graças a Deus, era meio-dia e meia, hora do almoço de Amy. E hora de Tracy entrar em acção.

Ela levou Amy para a casa.

- Vou embora agora, Sra. Brannigan.

- Como? hen... Ninguém lhe disse, Tracy? Temos hoje uma delegação de visitantes importantes. Almoçarão aqui e por isso Amy não tirará seu cochilo. Pode levá-la com você.

Tracy ficou imóvel, fazendo um tremendo esforço para não gritar.

- Eu... eu não posso fazer isso, Sra. Brannigan.

Sue Ellen Brannigan empertigou-se.

- Que história é essa de que não pode fazer isso?

Tracy percebeu a ira no rosto da mulher e pensou: Não posso irritá-la. Ela chamará o director e serei levada de volta à minha cela. Tracy forçou um sorriso.

- Eu estava querendo dizer... Amy não almoçou. Ela sentirá fome.

- Mandei a cozinheira preparar uma cesta de piquenique para vocês duas. Podem sair para um passeio pela campina e comer lá. Amy adora piqueniques... não é mesmo, querida?

- Adoro piqueniques. - Ela olhou para Tracy com uma expressão suplicante. - Podemos ir, Tracy? Podemos?

Não! Sim. Cuidado. Ainda pode dar certo.

Esteja na sala de serviço à uma e meia. Não se atrase.

Tracy virou-se para a Sra. Brannigan.

- A que horas... quer que eu traga Amy de volta?

- Por volta das três horas. A esta altura, eles já deverão ter ido embora.

E o camião da lavanderia também! O mundo desmoronava sobre Tracy.

- Eu...

- Sente-se bem? Parece muito pálida.

Era isso! Ela diria que estava doente. Iria para o hospital. Mas, nesse caso, haveriam de querer examiná-la e a manteriam lá. Nunca conseguiria se esquivar a tempo. Tinha de haver algum outro meio.

A Sra. Brannigan fitava-a fixamente.

- Estou bem.

 

Há alguma coisa errada com ela, concluiu Sue Ellen Brannigan. Não dá mais para adiar. Pedirei a George que arrume outra pessoa. Os olhos de Amy brilhavam de alegria.

- Eu darei a você os sanduíches maiores, Tracy. E vamos nos divertir muito, não é mesmo?

Tracy não tinha resposta a dar.

 

Era uma visita de surpresa. O próprio Governador William, Haber acompanhava o comité de reforma penitenciária. Era uma coisa que Brannigan tinha de suportar uma vez por ano.

- É algo inevitável ao cargo, George - explicara o governador. - Basta limpar o lugar, mandar as suas mulheres sorrirem bonito e teremos outro aumento no orçamento.

O chefe da guarda dera o aviso naquela manhã:

- Livrem-se de todos os tóxicos, facas e consolos.

O Governador Haber e sua comitiva deveriam chegar às 10 horas, inspeccionariam primeiro o interior da penitenciária, visitariam a fazenda e depois almoçariam no chalé do director.

 

Big Bertha estava impaciente. Fora informada ao apresentar o pedido para falar com o director:

- O director estará muito ocupado hoje. Amanhã seria mais fácil. Ele...

- Foda-se amanhã! - explodira Big Bertha. - Quero falar com ele agora. É importante.

Havia poucas reclusas que poderiam escapar impunes a uma reacção assim, mas Big Bertha era uma delas. As autoridades da prisão estavam perfeitamente a par de seu poder. Haviam testemunhado Big Bertha desencadear motins e também suspendê-los. Nenhuma prisão do mundo podia ser controlada sem a cooperação dos líderes dos reclusos... e Big Bertha era uma líder.

 

Ela se encontrava sentada na sala de espera do gabinete do director há quase uma hora, o corpo imenso transbordando da cadeira. Ela é uma criatura de aspecto repulsivo, pensou a secretária do director. E me deixa arrepiada.

- Quanto tempo mais? - indagou Big Bertha.

- Não deve demorar muito mais. Ele está com um grupo importante esta manhã, muito ocupado.

Big Bertha disse:

- Pois ele vai ficar ainda mais ocupado.

Ela olhou para o relógio. Faltavam 15 minutos para uma hora. Tempo suficiente.

 

Era um dia perfeito, sem nuvens e quente, uma brisa amena espalhava uma mistura de fragrâncias pela campina verdejante. Tracy estendera uma toalha sobre a relva, perto do lago, Amy mastigava feliz um sanduíche de salada de ovo. Tracy olhou para seu relógio. Já era uma hora da tarde. Ela não pôde acreditar. A manhã se arrastara lentamente, mas a tarde parecia voar. Tinha de pensar em alguma coisa depressa ou o tempo a privaria de sua última chance de alcançar a liberdade.

 

Uma e dez. No gabinete de Brannigan, sua secretária desligou o telefone e disse a Big Bertha:

- Sinto muito. O director diz que é impossível falar com você hoje. Marcaremos outra reunião para...

Big Bertha levantou-se abruptamente.

 

- Mas ele tem de me receber! É...

- Passaremos a reunião para amanhã.

Big Bertha já ia dizer "Amanhã será tarde demais", mas conteve-se a tempo. Somente o próprio director podia saber o que ela estava fazendo. As delatoras costumavam sofrer acidentes fatais. Mas ela não tinha a menor intenção de desistir. Não havia possibilidade de permitir que Tracy Whitney lhe escapasse. Ela foi para a biblioteca da prisão, sentou-se numa das mesas compridas no fundo da sala. Escreveu um bilhete. Assim que a inspectora se afastou por um corredor, a fim de ajudar uma reclusa, Big Bertha largou o bilhete em sua mesa e se retirou.

Quando a inspectora voltou, encontrou o bilhete e abriu-o. Leu duas vezes:

É MELHOR VERIFICAR O CamiãO DA LAVANDERIA

HOJE

 

Não havia assinatura. Uma brincadeira? A inspectora não tinha meio de saber com certeza. Ela pegou o telefone.

- Ligue-me com o superintendente dos guardas...

 

Uma e doze.

- Você não está comendo - disse Amy. - Quer um pedaço do meu sanduíche?

- Não! Deixe-me em paz!

Tracy não tivera intenção de falar tão asperamente. Amy parou de comer.

- Está zangada comigo, Tracy? Por favor, não fique zangada comigo. Eu a amo muito. E nunca fiquei zangada com você.

Os olhos ternos da menina estavam cheios de mágoa.

- Não estou zangada.

Ela estava no inferno.

- Também não sinto fome, se você não sente. Vamos jogar bola, Tracy.

Amy tirou a sua bola de borracha do bolso.

Uma e dezasseis. Ela deveria estar a caminho. Levaria pelo menos 15 minutos para chegar à sala de serviço. Poderia chegar a tempo, se se apressasse. Mas não podia deixar Amy sozinha. Tracy olhou ao redor. Avistou à distância um grupo de presas de confiança, colhendo os produtos da plantação. E no mesmo instante Tracy compreendeu o que ia fazer.

- Não quer jogar bola, Tracy?

Tracy levantou-se.

- Quero, sim. Vamos fazer um jogo novo. Quem consegue jogar a bola mais longe. Eu jogarei primeiro e depois será a sua vez.

Tracy pegou a bola de borracha dura e jogou o mais longe que podia, na direcção das trabalhadoras.

- Puxa, foi sensacional! - comentou Amy, com genuína admiração. - É um bocado longe.

- Vou buscar a bola - disse Tracy. - Fique esperando aqui.

E no instante seguinte ela estava correndo, correndo por sua vida, os pés voando pelos campos. Uma e dezoito. Se atrasasse um pouco, esperariam por ela. Ou não? Tracy correu ainda mais depressa. Por trás dela, ouviu Amy gritando, mas não deu atenção. As mulheres que trabalhavam na plantação se deslocavam agora na outra direcção. Tracy gritou-lhes e elas pararam. Estava ofegante quando alcançou-as.

- Algum problema? - perguntou uma delas.

 

- Não... nada. - Tracy ofegava, lutando para respirar. - A garotinha lá atrás. Uma de vocês cuide dela. Tenho algo importante para fazer e...

Ela ouviu seu nome ser chamado Á distância e virou-se. Amy estava em cima do muro de concreto que cercava o lago. E acenava.

- Olhe para mim, Tracy.

- Não! - gritou Tracy. - Desça daí!

E enquanto Tracy observava, horrorizada, Amy perdeu o equilíbrio e mergulhou no lago.

- Oh, Deus!

O sangue esvaiu-se do rosto de Tracy. Ela tinha uma opção a fazer... só que não havia qualquer opção. Não posso ajudá-la. Não agora. Alguém mais a salvará. Eu tenho de salvar a mim mesma. Tenho de sair deste lugar ou morrerei. Era uma e vinte.

Tracy virou-se e recomeçou a correr, mais depressa do que jamais o fizera em toda a sua vida. As outras chamaram-na, mas ela não lhes deu atenção. Voava pelo ar, sem perceber que perdera os sapatos, sem se importar que o chão estivesse lhe cortando os pés. O coração batia forte, os pulmões pareciam prestes a estourar, mas ela se obrigava a correr cada vez mais depressa. Alcançou o muro em torno do lago e pulou em cima. Lá embaixo, podia avistar Amy na água profunda e aterradora, debatendo-se para permanecer à tona. Sem um segundo de hesitação, Tracy pulou atrás dela. E, no instante em que bateu na água, Tracy pensou: Oh, meu Deus! Não sei nadar...

 

Nova Orleans

SEXTA-FEIRA, 25 DE AGOSTO - 10 HORAS

Lester Torrance, um caixa do First Mercharits Bank de Nova Orleans, orgulhava-se de duas coisas: suas proezas sexuais com as mulheres e sua capacidade de avaliar os clientes. Lester era um homem que se aproximava dos 50 anos, magro, rosto pálido, um bigode de Tom Selleck, suiças compridas. Já fora preterido duas vezes numa promoção; em represália, Lester usava o banco como um serviço de encontros pessoais. Podia reconhecer vigaristas a um quilómetro de distância e gostava de tentar persuadi-las a lhe conceder seus favores de graça. As viúvas solitárias eram presas especialmente fáceis. Apresentavam-se em todos os formatos, idades e estados de desespero, mais cedo ou mais tarde surgiam no guinche de Lester. Se estavam temporariamente a descoberto, Lester se mostrava compreensivo e retardava os cheques que chegavam pela compensação. Em troca, não poderiam talvez ter um tranquilo jantar a sós? Muitas de suas clientes lhe solicitavam ajuda e confidenciavam segredos deliciosos: Precisavam de um empréstimo sem o conhecimento do marido... Queriam manter confidenciais determinados cheques que haviam emitido... Estavam cogitando de um divórcio; Lester não poderia ajudar a encerrar imediatamente a conta conjunta?... Lester mostrava-se sempre ansioso em agradar. E em ser agradado.

Lester compreendeu que tirara a sorte grande naquela manhã de sexta-feira em particular. Viu a mulher no momento em que ela passou pela porta do banco. Era absolutamente espectacular. Tinha cabelos pretos lustrosos caindo pelos ombros, usava uma saia e uma suéter justas que delineavam um corpo que faria inveja a uma corista de Las Vegas.

Havia quatro caixas no banco e os olhos da jovem se deslocaram de um guinche para outro, como se procurasse ajuda. Quando ela olhou para Lester, ele acenou com a cabeça ansiosamente e presenteou-a com um sorriso encorajador. Ela se aproximou de seu guinche, como Lester sabia que aconteceria.

- Bom dia - disse Lester, efusivamente. - Em que posso servi-la?

Ele podia ver os mamilos se comprimindo contra a suéter de cashmere e pensou: Meu bem, quanta coisa eu gostaria de fazer por você!

- Receio estar com um problema - disse a mulher, suavemente.

Ela possuía o mais delicioso sotaque sulista que Lester já ouvira.

- É para isso que estou aqui - disse ele, exuberante. - Para resolver problemas.

- Espero que sim. Infelizmente, fiz uma coisa horrível.

Lester ofereceu-lhe o seu melhor sorriso paternal, o sorriso pode-contar-comigo.

- Não consigo acreditar que alguém tão adorável como você tenha feito alguma coisa horrível.

 

- Mas eu fiz! - Os olhos castanhos suaves estavam arregalados pelo pânico. - Sou a secretária de Joseph Romano. Ele me mandou providenciar um novo talão de cheques de sua conta há uma semana e eu simplesmente esqueci. Os cheques agora acabaram e não sei o que ele fará comigo quando descobrir que não providenciei outro talão.

A explicação saiu num ímpeto suave, aveludado. Lester conhecia muito bem o nome de Joseph Romano. Era um importante cliente do banco, embora mantivesse quantias relativamente reduzidas em sua conta. Todos sabiam que o seu verdadeiro dinheiro era "lavado" em outros lugares.

Ele certamente tem um excelente gosto em matéria de secretárias, pensou Lester, tornando a sorrir.

- Ora, isso não é tão sério assim, Sra....

- Senhorita Hartford... Lureen Hartford.

Senhorita Era o seu dia de sorte. Lester pressentiu que tudo correria de maneira esplêndida.

- Pedirei imediatamente um novo talão de cheques. Deverá o receber dentro de duas ou três semanas e...

Ela deixou escapar um pequeno gemido, um som que pareceu a Lester conter uma promessa infinita.

- Oh, mas isso já seria tarde demais e o Sr. Romano anda muito zangado comigo! Não consigo manter meus pensamentos concentrados no trabalho, entende?

Ela inclinou-se para a frente, os seios tocando o guinche, e acrescentou, num sussurro:

- Se pudesse dar um jeito de apressar o talão, eu pagaria um preço extra.

Lester disse, pesaroso:

- Infelizmente, Lureen, seria impossível...

Ele parou de falar percebendo que ela estava à beira das lágrimas.

- Para dizer a verdade, isso pode custar meu emprego. Por favor... farei qualquer coisa.

As palavras soaram como música nos ouvidos de Lester.

- Darei um jeito, Lureen. Pedirei um prazo especial e poderá receber na segunda-feira. Está bom assim?

- Oh, você é maravilhoso!

A voz dela transbordava de gratidão.

- Mandarei para o escritório e...

- Seria melhor se eu viesse buscar pessoalmente. Não quero que o Sr. Romano saiba como fui estúpida.

Lester sorriu, indulgentemente.

- Não tem nada de estúpida, Lureen. Todos esquecemos às vezes de algumas coisas.

Ela murmurou:

- Nunca o esquecerei. Até segunda-feira.

- Estarei à sua espera.

Seria preciso estar com as duas pernas quebradas para que ele ficasse em casa. Ela presenteou-o com um sorriso deslumbrante e saiu do banco, andando devagar, oferecendo um espectáculo inesquecível. Lester sorria ao se inclinar sobre um arquivo, verificando o número da conta de Joseph Romano e telefonando para pedir outro talão de cheques.

 

O hotel na Carmen Street não se distinguia de uma centena de outros hotéis em Nova Orleans e fora justamente por isso que Tracy o escolhera. Ela ocupava um quarto pequeno, com uma decoração ordinária, há uma semana. Em comparação com a cela na penitenciária, era um palácio para ela.

 

Ao voltar do encontro com Lester, ela tirou a peruca preta, passou os dedos por seus próprios cabelos abundantes, removeu as lentes de contacto e limpou com creme a maquilhagem escura. Sentou na única cadeira no quarto e respirou fundo. Tudo estava correndo bem. Fora fácil descobrir onde Joe Romano tinha a sua conta bancária. Tracy verificara o cheque cancelado do espólio de sua mãe, emitido por Joe Romano.

Joe Romano? Você não pode tocar nele, dissera Ernestine.

Pois Ernestine estava enganada. Joe Romano era apenas o primeiro. Os outros se seguiriam. Um a um.

Ela fechou os olhos e reconstituiu o milagre que a levara até ali...

 

Ela sentiu as águas frias e escuras fechando-se sobre a sua cabeça. Estava se afogando, dominada pelo terror. Mergulhou e suas mãos encontraram a criança, agarrando-a e puxando-a para a superfície. Amy debateu-se em pânico cego para se desenvencilhar, tornando a arrastar as duas para o fundo, sacudindo braços e pernas freneticamente. Os pulmões de Tracy pareciam prestes a estourar. Ela lutou para emergir daquele túmulo de água, agarrando a menina firmemente. Sentiu que suas forças se desvaneciam. Não vamos conseguir, pensou ela. Estamos perdidas. Vozes chamavam e ela sentiu o corpo de Amy escapar de seus braços. E gritou:

- Oh, Deus, não!

Mãos fortes seguravam a cintura de Tracy e uma voz disse:

- Está tudo bem agora. Fique calma. Já acabou.

Tracy olhou ao redor, desesperada, à procura de Amy. Descobriu a menina sã e salva nos braços de um homem. E momentos depois as duas foram retiradas da água profunda e cruel...

O incidente não teria merecido mais que um parágrafo numa página interna dos jornais da manhã se não fosse pelo fato de uma prisioneira que não sabia nadar ter arriscado a vida para salvar a filha do director. Da noite para o dia, os jornais e as emissoras de televisão transformaram Tracy numa heroina. O próprio Governador Haber foi ao hospital da prisão junto com o director Brannigan para visitar Tracy.

- Foi um ato de extrema coragem de sua parte - disse o director. - A Sra. Brannigan e eu queremos que saiba que, somos profundamente gratos.

A voz dele estava embargada de emoção. Tracy ainda se sentia fraca e abalada da emoção.

- Como está Amy?

- Ela ficará boa.

Tracy fechou os olhos. Eu não poderia suportar se alguma coisa acontecesse com a menina, pensou ela. Lembrou-se de sua frieza, quando tudo o que a menina queria era amor. E sentiu-se envergonhada. O incidente lhe custara a chance de escapar, mas Tracy sabia que, nas mesmas circunstâncias, faria tudo de novo.

Houve um inquérito sumário sobre o acidente.

- A culpa foi minha - disse Amy ao pai. - Estávamos jogando bola. Tracy correu atrás da bola e me disse para esperar. Mas eu subi no muro para poder ver Tracy melhor, acabei caindo na água. Mas Tracy me salvou, papai.

 

Mantiveram Tracy em observação no hospital naquela noite. Ela foi conduzida ao gabinete do director Brannigan na manhã seguinte. Os meios de comunicação a aguardavam. Sabiam reconhecer uma história de interesse humano quando a encontravam e lá estavam correspondentes da UPI e Associated Press. A emissora de televisão local mandara uma equipe.

A notícia do heroísmo de Tracy se espalhou naquela tarde. O relato do seu ato de salvação foi divulgado pela televisão nacional e transformou-se numa autêntica bola de neve. Time, Newsweek, People e centenas de jornais de todo o país publicaram a história. à medida que a cobertura da imprensa continuava, cartas e telegramas se despejaram sobre a penitenciária, exigindo o perdão de Tracy Whitney.

O Governador Haber discutiu o assunto com o director Brannigan.

- Tracy Whitney está aqui por crimes graves - comentou o director.

O governador ficou pensativo.

- Mas ela não tinha antecedentes, não é mesmo, George?

- Não, senhor, não tinha.

- Não me importo de lhe contar: estou sofrendo uma tremenda pressão para fazer alguma coisa por ela.

- Eu também, governador.

- É claro que não podemos deixar o público nos dizer como devemos dirigir nossas prisões, não é mesmo?

- Claro que não.

- Por outro lado, a garota Whitney certamente demonstrou uma coragem extraordinária. E se tornou uma heroina.

- Não resta a menor dúvida.

O governador fez uma pausa para acender um charuto.

- Qual é a sua opinião, George?

George Brannigan escolheu suas palavras com todo cuidado.

- Deve saber, governador, que tenho um interesse muito especial neste caso. Mas, mesmo pondo isso de lado, não creio que Tracy Whitney seja do tipo criminoso. Não posso acreditar que ela constituísse uma ameaça à sociedade, se estivesse solta no mundo. Minha recomendação é que lhe conceda o perdão.

O governador, que estava prestes a anunciar sua candidatura a um novo mandato, sabia reconhecer uma boa idéia quando a ouvia.

- Vamos esperar mais um pouco.

Em política, a escolha do momento certo era tudo.

 

Depois de conversar sobre o assunto com o marido, Sue Ellen disse a Tracy:

- O director Brannigan e eu gostaríamos muito que viesse morar no chalé. Temos um quarto vago nos fundos. Você pode tomar conta de Amy a tempo integral.

- Obrigada - disse Tracy, sinceramente agradecida. - Nada poderia me dar mais prazer.

 

Tudo corria à perfeição. Não apenas Tracy não precisava mais passar a noite trancafiada numa cela, mas também o seu relacionamento com Amy mudou completamente. Amy adorava Tracy e Tracy retribuía. Gostava da companhia daquela garota inteligente e amorosa. Divertiam-se com brincadeiras antigas, assistiam a filmes de Disney pela televisão, liam juntas. Era quase como ser parte da família.

Mas sempre que tinha de fazer alguma coisa nas celas, Tracy invariavelmente esbarrava em Big Bertha.

 

- Você é uma sacana de sorte - resmungava Big Bertha. - Mas um dia, muito em breve, voltará para cá, junto das presas comuns. Estou trabalhando para isso, littbam.

 

Três semanas depois da salvação de Amy, Tracy brincava com a menina no jardim da frente quando Sue Ellen Brannigan saiu apressadamente da casa. Parou por um momento, observando-as, antes de dizer:

- Tracy, o director acaba de telefonar. Gostaria de lhe falar imediatamente em seu gabinete.

Tracy foi invadida por um medo repentino. Aquilo significava que seria transferida de volta à prisão? Big Bertha usara a sua influência para conseguir isso? Ou a Sra. Brannigan chegara à conclusão de que Amy e Tracy estavam se tornando chegadas demais?

- Está bem, Sra. Brannigan.

O director esperava na porta de sua sala quando Tracy chegou, devidamente escoltada.

- É melhor você sentar - disse ele.

Tracy tentou descobrir uma indicação do seu destino pelo tom de voz de Brannigan.

- Tenho notícias para você. - Ele fez uma pausa, dominado por uma emoção que Tracy não podia compreender. - Acabei de receber uma ordem do governador da Louisiana, concedendo-lhe o perdão, a entrar em vigor imediatamente.

Santo Deus, ele disse mesmo o que julgo ter ouvido? Tracy ficou com medo de falar.

- Quero que saiba que isso não está sendo feito porque foi a minha filha que você salvou - continuou o director. - Você agiu instintivamente, como qualquer cidadão decente teria feito. Não há a menor possibilidade de eu acreditar que você seria uma ameaça à sociedade.

Ele fez uma pausa, sorrindo, antes de, acrescentar:

- Amy sentirá muita saudade de você. E nós também.

Tracy não tinha palavras. Se o director soubesse a verdade... que seus homens a estariam caçando como uma fugitiva, se o acidente não tivesse ocorrido...

- Será libertada depois de amanhã.

Tracy ainda não era capaz de absorver.

- Eu... eu não sei o que dizer...

- Não precisa dizer nada. Todos aqui sentem muito orgulho de você. A Sra. Brannigan e eu esperamos que faça grandes coisas lá fora.

Então era verdade: Ela estava livre. Tracy sentia-se tão fraca que teve de se apoiar na mesa do director. Mas sua voz era segura quando finalmente falou:

- Há muitas coisas que eu quero fazer, director Brannigan.

 

No seu último dia na prisão, Tracy foi procurada por uma companheira do seu antigo bloco.

- Então você vai sair.

- É verdade.

A mulher, Betty Franciscus, tinha quarenta e poucos anos, ainda era atraente, com uma aura de orgulho.

- Se precisar de ajuda lá fora, há um homem em Nova York que deve procurar. O nome dele é Conrad Morgan. - Ela entregou um papel a Tracy. - Ele se empenha na reforma criminal. E gosta de ajudar as pessoas que já passaram pela prisão.

- Obrigada, mas acho que não precisarei...

- Nunca se sabe. Guarde o endereço.

 

Duas horas depois Tracy passava andando pelos portões da penitenciária, diante das câmaras de televisão. Ela não falaria com os repórteres. Mas quando Amy se desenvencilhou da mãe e correu para se jogar nos braços de Tracy, as câmaras enlouqueceram. Foi a imagem que apareceu em todos os serviços noticiosos daquela noite.

A liberdade para Tracy não era mais simplesmente uma palavra abstracta. Era uma coisa concreta, uma condição física a ser desfrutada e saboreada. Significava respirar ar fresco, privacidade, não entrar em fila para comer, não ouvir campainhas. Significava banhos quentes e sabonetes perfumados, lingerie macia, bonitos vestidos, sapatos de saltos altos. Significava ter um nome ao invés de um número. Liberdade significava escapar de Big Bertha e bandos de estupradoras, da terrível monotonia da rotina da prisão.

A liberdade recém-descoberta de Tracy exigiu que ela se habituasse aos poucos. Andando por uma rua, ela tomava cuidado para não esbarrar em ninguém. Na penitenciária, esbarrar em outra presa podia ser a faísca que desencadearia um incêndio. O mais difícil para Tracy era se ajustar à ausência de ameaça constante. Ninguém a ameaçava.

Ela estava livre para executar seus planos.

 

Em Filadélfia, Charles Stanhope III viu Tracy pela televisão, saindo da penitenciária. Ela ainda é linda, pensou ele. Observando-a, pareceu-lhe impossível que ela tivesse cometido os crimes pelos quais fora condenada. Ele olhou para sua esposa exemplar, sentada placidamente no outro lado da sala, tricotando. Será que cometi um erro?

 

Daniel Cooper viu Tracy no serviço noticioso da televisão em seu apartamento em Nova York. Manteve-se totalmente indiferente ao facto dela sair da prisão. Desligou o aparelho e voltou a se concentrar no arquivo em que trabalhava.

 

Joe Romano soltou uma risada quando assistiu à notícia da televisão. A garota Whitney tinha muita sorte. Aposto que a prisão foi uma boa coisa para ela. Deve estar com o maior tesão a esta altura. Talvez um dia desses tornemos a nos encontrar.

Romano estava muito satisfeito consigo mesmo. Já entregara a um receptador o Renoir, que fora comprado por um coleccionador particular de Zurique. Meio milhão de dólares da seguradora, outros 250 mil do receptador. Naturalmente, Romano dividira o dinheiro com Anthony Orsatti. Era muito meticuloso em suas transacções com Orsatti, pois já testemunhara o que acontecia com as pessoas que não eram correctas em seus negócios com o chefão de Nova Orleans.

 

Na segunda-feira, ao meio-dia, apresentando-se como Lureen Hartford, Tracy voltou ao First Merchants Bank de Nova Orleans, àquela hora, apinhado de clientes. Diversas pessoas formavam uma fila diante do guinche de Lester Torrance. Tracy entrou na fila. Quando a viu, Lester ficou radiante e acenou com a cabeça. Ela era ainda mais fina do que ele se lembrara. E quando Tracy chegou finalmente ao guinche, Lester disse, exultante:

- Não foi fácil, Lureen, mas fiz isso por você.

 

Um sorriso ardente iluminou o rosto de Lureen.

- Você é maravilhoso.

- Está aqui mesmo. - Lester abriu uma gaveta, retirou o talão de cheques que guardara cuidadosamente e entregou a ela. - Aqui estão. São quatrocentos cheques. Será suficiente?

- Oh, mais do que suficiente, a menos que o Sr. Romano resolva fazer uma orgia de preenchimento de cheques. - Ela fitou Lester nos olhos e suspirou. - Salvou-me a vida.

Lester sentiu uma agradável comichão na virilha.

- Acredito que as pessoas devem ser prestativas com as outras. Não concorda, Lureen?

- Tem toda a razão, Lester.

- Você também deveria abrir uma conta aqui, Lureen. Eu cuidaria bem de você. Muito bem mesmo.

- Sei que cuidaria - respondeu Tracy, suavemente.

- Por que nós dois não conversamos a esse respeito durante um jantar sossegado em algum lugar?

- Eu adoraria.

- Onde posso encontrá-la, Lureen?

- Eu telefonarei para si, Lester.

Ela se afastou.

- Espere um...

O cliente seguinte já se adiantara, entregando ao frustrado Lester um saco com moedas.

No meio do banco havia quatro mesas, em que se encontravam fichas de depósitos em branco. Todas as mesas se achavam ocupadas por pessoas empenhadas em preencher as fichas. Tracy afastou-se para um ponto em que Lester não poderia vê-la. Assim que um cliente abriu vaga numa mesa, Tracy ocupou o seu lugar. Lester lhe entregara oito talões de cheques. Mas não era nos cheques que Tracy estava interessada e sim nas fichas de depósitos, no fundo dos talões.

Ele separou cuidadosamente as fichas de depósitos dos cheques; em menos de três minutos tinha 80 fichas de depósitos na mão. Certificando-se de que não era observada, Tracy colocou 20 fichas de depósitos na estante de metal sobre a mesa.

Deslocando-se para a mesa seguinte, ela deixou ali outras 20 fichas de depósitos. Em poucos minutos distribuíra todas pelas diversas mesas. As fichas de depósitos estavam em branco, mas cada uma continha um código magnetizado na base; o computador creditaria automaticamente cada depósito na conta de Joe Romano. Pela sua experiência trabalhando num banco, Tracy sabia que em dois dias todas as fichas de depósitos magnetizadas teriam sido usadas e que transcorreriam pelo menos cinco dias antes que a confusão fosse descoberta. Isso lhe proporcionaria tempo mais do que suficiente para o que planeava fazer.

Voltando para o hotel, Tracy largou os cheques em branco numa cesta de lixo. O Sr. Joe Romano não precisaria deles.

A próxima parada de Tracy foi na Agência de Viagens Holiday de Nova Orleans. A moça por trás do balcão perguntou-lhe:

- O que deseja?

- Sou a secretária de Joseph Romano. O Sr. Romano quer fazer uma reserva para o Rio de Janeiro. Tenciona viajar nesta sexta-feira.

- Só uma passagem?

- Isso mesmo. Primeira classe. Uma poltrona no corredor. E na secção de fumantes, por favor.

 

- Passagem de ida e volta?

- Só de ida.

A moça virou-se para o terminal de computador. E informou alguns segundos depois:

- Está tudo acertado. Uma poltrona em primeira classe no Voo 728 da Pan American, partindo às 6 e 35 da tarde de sexta-feira, com uma rápida escala em Miami.

- Ele ficará muito satisfeito - assegurou Tracy.

- São 1.929 dólares. Pagamento à vista ou facturado?

- O Sr. Romano sempre paga à vista. Na entrega. Pode fazer o favor de enviar a passagem a seu escritório na quinta-feira?

- Podemos entregar amanhã, se quiser.

- O Sr. Romano não estará no escritório amanhã. Pode deixar para as onze horas de quinta-feira?

- Claro. Qual é o endereço?

- Sr. Joseph Romano, Poydras Street, 217, Suíte 408.

A mulher anotou.

- Está certo. Providenciarei para que a passagem seja entregue na manhã de quinta-feira.

- às onze horas em ponto - disse Tracy. - Obrigada.

A meio quarteirão de distância ficava a Loja de Malas Acme. Tracy observou a vitrine antes de entrar. Um vendedor aproximou-se.

- Bom dia. Em que posso servi-la?

- Quero comprar uma mala para meu marido.

- Pois veio ao lugar certo. Estamos fazendo uma liquidação. Temos algumas malas óptimas e baratas...

- Não, obrigada.

Tracy encaminhou-se para um mostruário de malas Vuitton, encostado numa parede.

- Isto é mais o que estou procurando. Vamos fazer uma viagem.

- Estou certo que ele ficará satisfeito com uma destas. Temos três tamanhos diferentes. Qual deles...

- Levarei uma mala de cada tamanho.

- Ahn... Óptimo. Pagamento à vista ou a prazo?

- Contra entrega. O nome é Joseph Romano. Poderia entregar no escritório de meu marido na manhã de quinta-feira?

- Claro, Sra. Romano.

- às onze horas?

- Providenciarei tudo pessoalmente.

Como só agora se lembrasse disso, Tracy acrescentou:

- Ah, sim.... poderia pôr as iniciais de meu marido nas malas... em ouro? J. R.

- Claro. Será um prazer, Sra. Romano.

Tracy sorriu e deu o endereço do escritório.

Numa agência próxima da Westem Union, Tracy mandou um telegrama para o Rio Othon. Palace, na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro:

QUERO RESERVAR SUÍTE, MAIS CARA A PARTIR DESTA SEXTA-FEIRA POR DOIS MESES. CONFIRMEM POR FAVOR EM TELEGRAMA A COBRAR. JOSEPH ROMANO, POYDRAS STREET, 217, SUÍTE, 408, NOVA ORLEANS, LOUISIANA, EUA.

 

Tracy telefonou para o banco três dias depois e pediu para falar com Lester Torrance. Ao ouvir a voz dele, ela disse suavemente:

 

- Provavelmente não se lembra de mim, Lester, mas aqui é Lureen Hartford, a secretária do Sr. Romano...

Não se lembrava dela? A voz de Lester soou extremamente ansiosa:

- Mas é claro que me lembro de você, Lureen! Eu...

- Lembra mesmo? Ora, eu me sinto lisonjeada. Deve conhecer uma porção de pessoas.

- Mas não como você. Não esqueceu o nosso compromisso para o jantar, não é mesmo?

- Não pode imaginar como estou ansiosa por essa oportunidade. Poderia ser na próxima terça-feira, Lester?

- Claro!

- Então está combinado. Oh, mas que idiota que eu sou! Você me deixou tão excitada que quase esquecia o motivo para o telefonema. O Sr. Romano pediu-me para conferir seu saldo. Podia me dizer a cifra?

- Não há problema.

Normalmente, Lester Torrance teria pedido a data de nascimento ou alguma forma de identificação da interlocutora. Mas, naquele caso, isso não era necessário. De jeito nenhum.

- Espere um instante, Lureen.

Ele foi até o arquivo e puxou a ficha de Joseph Romano. Teve uma surpresa. Houvera diversos depósitos na conta de Romano durante os últimos dias. Romano nunca mantivera tanto dinheiro em sua conta antes. Lester Torrance se perguntou o que estaria acontecendo. Obviamente, alguma transação em larga escala. Arrancaria toda a história quando jantasse com Lureen Hartford. Uma pequena informação confidencial nunca fazia mal. Ele voltou ao telefone.

- Seu patrão vem nos mantendo bastante ocupados. Ele tem pouco mais de trezentos mil dólares em sua conta.

- Isso é óptimo. Confere com os meus cálculos.

- Ele não gostaria que transferíssemos uma parte para uma conta de investimentos? Não haverá juros como está e eu poderia...

- Não. Ele quer deixar o dinheiro assim mesmo.

- Muito bem.

- Obrigada, Lester. Você é maravilhoso.

- Ei, espere um momento! Devo telefonar para o seu escritório a fim de acertar o jantar na terça-feira?

- Eu telefonarei para você.

A ligação foi cortada.

 

O moderno prédio do escritório pertencente a Anthony Orsatti ficava na Poydras Street entre a beira do rio e o gigantesco Louisiana Superdome. Os escritórios da Pacific Import-Export Company situavam-se no quarto andar. Numa extremidade ficava a sala de Orsatti e na outra a de Joe Romano. O espaço entre as duas era ocupado por quatro jovens recepcionistas, sempre disponíveis à noite para divertir os amigos e os associados de negócios de Anthony Orsatti. Na frente da suíte de Orsatti sentavam-se dois homens enormes, cujas vidas eram devotadas a guardar o chefe. Também serviam como motoristas, massagistas e mensageiros do capo.

Orsatti estava em sua sala naquela manhã de quinta-feira, conferindo as receitas do dia anterior do jogo dos números, apostas em cavalos, prostituição e uma dúzia de outras actividades lucrativas controladas pela Pacific Import-Export Company.

 

Anthony Orsatti se achava próximo dos 70 anos. Era um homem de estranha constituição, com um tronco enorme e largo, pernas curtas e finas, que pareciam ter sido projectadas para um homem menor. De pé, ele parecia um sapo sentado. Tinha o rosto coberto por uma teia irregular de cicatrizes que poderia ter sido feita por uma aranha embriagada, uma boca descomunal, olhos pretos e empapuçados. Era totalmente calvo desde a idade de 15 anos, depois de um ataque de alopecia, usava uma peruca preta desde então. Não se ajustava a ele, ficava inteiramente deslocado, mas durante todos aqueles anos ninguém se atrevera a fazer qualquer comentário, na sua frente. Os olhos frios de Orsatti eram os de um jogador, nada deixando transparecer; o rosto, a não ser quando em companhia das cinco filhas, às quais adorava, era inexpressivo. A única pista para as emoções de Orsatti estava na voz. Tinha a voz rouca e dissonante, resultado de um fio que fora apertado em seu pescoço quando contava 21 anos e o deram por morto. Os dois homens que cometeram esse erro apareceram no necrotério na semana seguinte, Quando Orsatti ficava realmente furioso, sua voz baixava para um sussurro estrangulado que mal podia ser ouvido.

Anthony Orsatti era um rei que comandava seus domínios com subornos, armas de fogo e chantagem. Controlava Nova Orleans e a cidade lhe prestava homenagem sob a forma de riquezas incalculáveis. Os capos das outras famílias do país respeitavam-no e constantemente, solicitavam os seus conselhos.

No momento, Anthony Orsatti achava-se num Animo benevolente. tomara o café da manhã com sua amante, a quem mantinha num prédio de apartamentos que possuía em Lake Vista. Visitava-a três vezes por semana e a visita daquela manhã fora particularmente satisfatória. Ela fazia-lhe coisas na cama que nenhuma outra mulher jamais sonhara. Orsatti acreditava sinceramente que isso acontecia porque ela o amava muito. Sua organização funcionava com perfeição. Não havia qualquer problema, porque Anthony Orsatti sabia como resolver as dificuldades antes que se transformassem em problemas. Ele explicara um dia sua filosofia a Joe Romano:

- Nunca permita que um pequeno problema se transforme num grande problema, Joe, ou crescerá como a porra de uma bola de neve descendo a ladeira. Tem um capitão de delegacia que acha que deve receber uma grana maior... pois acabe com ele, entende? Nada de bola de neve. Tem algum cara de Chicago que pede permissão para abrir uma pequena operação sua aqui em Nova Orleans? Sabe que muito em breve essa "pequena" operação vai se tornar uma grande operação e começar a reduzir seus lucros. Pois diga que sim e quando ele chegar aqui acabe com o filho da puta. Nada de bola de neve. Entende a coisa?

Joe Romano entendia.

Anthony Orsatti amava Romano. Era como um filho para ele. Orsatti o recolhera quando Romano era um delinquente juvenil, roubando bêbados nos becos. Treinara Romano pessoalmente e agora o garoto podia se igualar aos melhores. Era rápido, esperto e honesto. Em dez anos Romano subira ao posto de lugar-tenente de Anthony Orsatti. Supervisionava todas as operações da Família e se reportava somente a Orsatti

 

Lucy, a secretária particular de Orsatti, bateu na porta e entrou na sala. Ela tinha 24 anos, diploma universitário, com um rosto e um corpo que haviam ganhado concursos de beleza locais. Orsatti gostava de ter finas mulheres ao seu redor.

Ele olhou para o relógio em sua mesa. Eram 10 e 45. Dissera a Lucy que não queria interrupções antes do meio-dia. Orsatti franziu o rosto.

- O que é?

- Desculpe incomodá-lo, Sr. Orsatti. Uma tal de Senhorita Gigi Dupres está ao telefone. Ela parece histérica, mas não quer me dizer o que deseja. Insiste em lhe falar pessoalmente. Achei que poderia ser importante.

Orsatti ficou imóvel por um momento, passando o nome pelo computador em seu cérebro. Gigi Dupres? Não podia se lembrar e orgulhava-se de possuir uma mente que não esquecia coisa alguma. Por curiosidade, Orsatti pegou o telefone e acenou com a mão, dispensando Lucy.

- Quem está falando?

- É o Sr. Anthony Orsatti?

Ela tinha um sotaque francês.

- E daí?

- Oh, graças a Deus que consegui lhe falar, Sr. Orsatti!

Lucy tinha razão. A mulher era histérica. Anthony Orsatti perdeu o interesse pela mulher. Ele já ia desligar quando a voz acrescentou:

- Tem de impedi-lo, por favor!

- Dona, não tenho a menor idéia de quem você está falando e estou ocupado...

- Meu Joe,... Joe Romano. Ele prometeu que me levaria junto, comprenez-vous?

- Se tem alguma coisa a acertar com Joe, fale com ele directamente. Não sou babá de Joe.

- Ele mentiu para mim! Acabei de descobrir que Joe vai viajar sozinho para o Brasil. E metade daqueles trezentos mil dólares me pertence.

Anthony Orsatti descobriu subitamente que, no final das contas, o caso interessava.

- Que dólares são esses de que está falando?

- O dinheiro que Joe está escondendo em sua conta no banco. O dinheiro que ele... como é mesmo que se diz?... desviou.

Anthony Orsatti estava muito interessado.

- Por favor, diga a Joe que deve me levar também para o Brasil. Por favor! Pode fazer isso para mim?

- Claro - prometeu Anthony Orsatti. - Pode deixar que cuidarei de tudo.

 

A sala de Joe Romano era moderna, toda branca e cromada, feita por um dos decoradores mais em voga em Nova Orleans. Os únicos toques de cores eram os três quadros valiosos de impressionistas franceses nas paredes. Romano orgulhava-se de seu bom gosto. Lutara muito para subir dos cortiços de Nova Orleans, e no processo se instruíra. Possuía bom olho para quadros e um óptimo ouvido para música. Quando jantava num restaurante, sustentava conversas longas e conhecedoras com o sommelier sobre vinhos. Isso mesmo, Joe Romano tinha todos os motivos para sentir-se orgulhoso. Enquanto seus contemporâneos sobreviveram pelo uso dos punhos, ele usara o cérebro. Se era verdade que Anthony Orsatti possuía Nova Orleans, também era verdade que Joe Romano controlava a cidade para ele. Sua secretária entrou na sala.

 

- Sr. Romano, há um mensageiro aqui com sua passagem de avião para o Rio de Janeiro. Devo fazer um cheque. É pagamento contra entrega.

- Rio de Janeiro? - Romano sacudiu a cabeça. - Diga a ele que houve algum engano.

O mensageiro uniformizado estava na porta.

- Mandaram entregar a Joseph Romano, neste endereço.

- Pois então mandaram errado. Que história é, hen? Uma idéia de promoção de alguma nova empresa de aviação?

- Não, senhor. Eu...

- Deixe-me ver isso. - Romano arrancou a passagem da mão do mensageiro e deu uma olhada. - Sexta-feira... Por que eu haveria de viajar para o Rio na sexta-feira?

É uma boa pergunta - disse Anthony Orsatti, parado por trás do mensageiro. - Por que faria isso, Joe?

- É algum erro estúpido, Tony. - Romano devolveu a passagem ao mensageiro. - Leve isso de volta ao lugar de onde veio e...

- Não tão depressa. - Anthony Orsatti pegou a passagem e examinou-a. - Aqui diz que é primeira classe, poltrona no corredor, secção de fumantes, para o Rio de Janeiro, na sexta-feira. Passagem só de ida.

Joe Romano soltou uma risada.

- Alguém cometeu um engano. - Ele virou-se para sua secretária. - Madge, telefone para a agência de viagens e diga que deram uma mancada. Algum idiota vai perder a sua passagem de avião.

Joleen, a outra secretária, entrou na sala.

- Com licença, Sr. Romano. As malas acabaram de chegar. Quer que eu assine o recibo?

Joe Romano fitou-a aturdido.

- Que malas? Não encomendei mala nenhuma.

- Mande trazê-las para cá - ordenou Anthony Orsatti.

- Santo Deus! - exclamou Joe Romano. - Será que todo mundo enlouqueceu?

Um mensageiro entrou na sala com as três malas Vuitton.

- Mas o que é isso? Não encomendei essas malas.

O mensageiro conferiu a factura de entrega.

- Diz aqui Sr. Joseph Romano, Poydras Street, 217. Esta não é a Suíte 408?

Joe Romano começava a perder o controle.

- Não me interessa a porra que diz aí. Não encomendei coisa nenhuma. E agora leve essas malas daqui.

Anthony Orsatti agora examinava as malas.

- Elas têm as suas iniciais, Joe.

- Como? Ei, espere, um instante! Provavelmente são um presente de alguém.

- É seu aniversário?

- Não. Mas sabe como são as mulheres, Tony. Estão sempre dando presentes.

- Tem alguma coisa acontecendo no Brasil? - perguntou Anthony Orsatti.

- Brasil? - Joe Romano riu. - Deve ser a idéia de brincadeira de alguém, Tony.

Orsatti sorriu gentilmente, depois virou-se para as secretárias e os dois mensageiros.

- Saiam.

Depois que eles saíram e a porta foi fechada, Anthony Orsatti acrescentou para Romano:

 

- Quanto dinheiro tem na sua conta bancária, Joe?

Joe Romano ficou perplexo.

- Acho que mil e quinhentos dólares, talvez dois mil, Tony. Por quê?

- Apenas por curiosidade, por que não liga para o seu banco e confere?

- Para quê? Eu...

- Verifique, Joe.

- Está certo, se isso o deixará feliz. - Romano chamou a secretária pelo intertelfone. - Ligue-me para a tesoureira no First Mercharits.

Um minuto depois ela estava na linha.

- Olá, meu bem. Aqui é Joseph Romano. Poderia me dar o saldo actual da minha conta? Minha data de nascimento é catorze de outubro.

Anthony Orsatti pegou a extensão do telefone. A tesoureira voltou à linha um momento depois.

- Desculpe mantê-lo à espera, Sr. Romano. Nesta manhã, o saldo em sua conta é de 310.905 dólares e 35 cents.

Romano pôde sentir o sangue se esvair de seu rosto.

- Quanto?

- O saldo é de 310.905 dólares e...

- Sua puta estúpida! - berrou Romano. - Não tenho todo esse dinheiro na minha conta. Está cometendo um erro. Quero falar com...

Ele sentiu o telefone ser retirado de sua mão. Anthony Orsatti repôs o telfone, no gancho.

- De onde saiu esse dinheiro, Joe?

O rosto de Joe Romano tornou-se muito pálido.

- Juro por Deus, Tony, que não sei de nada a respeito desse dinheiro.

- Não?

- Ei, você tem de acreditar em mim! Sabe o que está acontecendo? Alguém quer me meter numa encrenca!

- Pois então deve ser alguém que gosta muito de você. E lhe dá um presente de 310 mil dólares.

Orsatti arriou pesadamente na poltrona Scalamander forrada com seda e ficou olhando para Joe Romano por um longo tempo, antes de acrescentar, suavemente:

- Tudo foi planeado, hem? Uma passagem só de ida para o Rio, malas novas... Parece até que você estava preparando para si mesmo toda uma vida nova.

- Não! - Havia pânico na voz de Joe Romano. - Por Deus, Tony, você me conhece. Sempre fui honesto com você. É como um pai para mim.

Ele estava suando agora. Houve uma batida na porta e Madge meteu a cabeça. Tinha um envelope na mão.

- Desculpe, interromper, Sr. Romano. Acaba de chegar um telegrama, mas o senhor tem de assinar o recibo.

Com o instinto de um animal acuado, Joe Romano respondeu:

- Não agora. Estou ocupado.

- Pode deixar que eu recebo - disse Anthony Orsatti.

Ele se levantou antes que a secretária tivesse tempo de fechar a porta. Levou algum tempo a ler o telegrama e depois olhou atentamente para Joe Romano. E numa voz tão baixa que Romano mal conseguiu ouvir, Anthony Orsatti disse:

 

- Lerei o telegrama para você, Joe. "Confirmo sua reserva para nossa suíte presidencial por dois meses a partir desta sexta-feira, primeiro de setembro. S. Montalband, gerente, Rio Othon Palace, Praia de Copacabana, Rio de Janeiro." É sua reserva, Joe. Mas não vai precisar, não é mesmo?

 

André Gillian estava na cozinha, preparando o spaghetti alla carbonara, uma grande salada italiana e uma torta de pêra, quando ouviu um estalo alto e ominoso; um momento depois, o confortável zumbido do ar-condicionado central silenciou. André bateu com o pé no chão e disse.

- Merde! Não na noite do jogo!

Ele foi apressadamente para a caixa de controle eléctrico e puxou os disjuntores, um a um. Nada aconteceu.

O Sr. Pope ficaria furioso. Simplesmente furioso! André sabia o quanto seu patrão apreciava o jogo de pôquer semanal, na noite de sexta-feira. Era uma tradição que se mantinha há anos e sempre com o mesmo grupo de elite. Sem ar-condicionado, a casa ficaria insuportável. Simplesmente insuportável! Nova Orleans em setembro era apenas para os bárbaros. Mesmo depois do pôr-do-sol, não havia qualquer alívio do calor e da humidade.

André voltou à cozinha e olhou para o relógio na parede. Quatro horas. Os convidados chegariam às oito horas. André pensou em telefonar para o Sr. Pope e comunicar-lhe o problema. Mas, depois, lembrou-se que o advogado dissera que estaria ocupado no tribunal durante o dia inteiro. O pobre coitado vivia sempre tão ocupado... Precisava de sua distracção. E agora acontecia isto!

André tirou de uma gaveta da cozinha um pequeno caderninho preto de endereços, procurou um número e discou. Depois de três toques de campainha, uma voz metálica entoou:

- Aqui é o Serviço de Ar-Condicionado Esquimó. Nossos técnicos não estão disponíveis neste momento. Se deixar seu nome e telefone, assim como uma breve mensagem, entraremos em contacto o mais depressa que for possível. Por favor, espere pelo bip.

Foutre! Somente na América é que se era obrigado a conversar com uma máquina. Um bip estridente e irritante soou no ouvido de André. Ele disse pelo telefone:

- Aqui é a residência de Monsieur Perry Pope, Charles Street, 42. Nosso ar-condicionado parou de funcionar. Devem mandar alguém aqui o mais depressa possível. Vite!

Ele bateu com o telfone. É claro que não havia ninguém disponível. O ar-condicionado provavelmente estava pifando por toda aquela horrível cidade. Era impossível aos aparelhos de ar-condicionado acabar com o maldito calor e humidade. Pois era melhor que alguém viesse logo. O Sr. Pope era um homem que se irritava com facilidade.

Nos três anos em que trabalhava como cozinheiro para o advogado, André Gillian aprendera como seu patrão era influente. Era simplesmente espantoso. Toda aquela importância em alguém tão jovem. Perry Pope simplesmente conhecia todo mundo. Quando ele estalava os dedos, as pessoas pulavam.

André Gillian, teve a sensação de que a casa já estava mais quente. Ça va chier dur. Se alguma coisa não for feita depressa, a merda vai bater no ventilador.

Voltando a cortar em fatias finas como papel o salame e o queijo provolone, André não pôde se desenvencilhar do terrível pressentimento de que a noite estava condenada a ser um desastre.

 

Quando a campainha da porta tocou, meia hora depois, as roupas de André se achavam encharcadas de suor e a cozinha parecia um forno. Gillian foi apressadamente abrir a porta dos fundos.

Dois operários de macacão achavam-se parados ali, carregando caixas de ferramentas. Um deles era um negro alto. Seu companheiro era branco, vários centímetros mais baixo, com uma expressão sonolenta e entediada no rosto. Um furgão estava parado lá atrás.

- Algum problema com o ar-condicionado? - perguntou o negro.

- Sim! Graças a Deus que vocês estão aqui. Precisam pôr a coisa para funcionar imediatamente. Os convidados não demoram a chegar.

O preto passou pelo fogão, farejou a torta no forno e comentou:

- O cheiro é gostoso.

- Por favor! - exortou Gillian. - Façam alguma coisa!

- Vamos dar uma olhada no aparelho - disse o homem baixo. - Onde fica?

- Por aqui.

André levou-os por um corredor até a sala em que estava a unidade de ar-condicionado.

- Esta é uma boa unidade, Ralph - disse o preto a seu companheiro.

- Tem razão, Al. Não fazem mais com essa qualidade.

- Mas então por que não está funcionando, pelo amor de Deus? - perguntou Gillian.

Os dois se viraram para fitá-lo.

- Acabamos de chegar - comentou Ralph, em tom de censura.

Ele ajoelhou-se e abriu uma portinhola na base da unidade, pegou uma lanterna, deitou-se de barriga e espiou o interior. Levantou-se depois de um momento.

- O problema não é aqui.

- Onde é então? - indagou André.

- Deve ter havido um curto em alguma saída. E provavelmente parou todo o sistema. Quantas são as saídas do ar-condicionado?

- Cada cómodo tem uma. Deixe-me ver... Deve haver pelo menos nove.

- Provavelmente, é esse o problema. Excesso de carga. Vamos dar uma olhada.

Os três voltaram pelo corredor. Ao passarem pela sala de estar, Al disse:

- É um bonito lugar o que o Sr. Pope tem aqui.

A sala de estar era decorada com requinte, com muitas antiguidades autenticadas que valiam uma fortuna. O assoalho era coberto por tapetes persas de cores suaves. à esquerda ficava uma ala de jantar, grande e formal, à direita outra sala, com uma mesa de jogo grande no centro. Num canto dessa sala havia uma mesa redonda, já posta para o jantar. Os dois técnicos entraram ali. Al iluminou com a lanterna a saída do ar-condicionado no alto da parede.

- Hum...- Ele olhou para o teto, por cima da mesa de jogo. - O que tem acima desta sala?

- O sótão.

- Vamos dar uma olhada.

Os técnicos seguiram André para o sótão comprido, de teto baixo, empoeirado e com muitas teias de aranha. Al encaminhou-se para uma caixa eléctrica na parede, examinou o emaranhado de fios.

 

- Ah!

- Descobriu alguma coisa? - indagou André, ansiosamente.

- Problema de condensador. É a humidade. Devemos ter recebido uma centena de chamadas esta semana. Entrou em curto. Teremos de substituir o condensador.

- Oh, Deus! Vai demorar muito?

- Não. Temos um condensador novo no carro.

- Por favor, apressem-se - suplicou André. - O Sr. Pope estará em casa daqui a pouco.

- Deixe tudo com a gente - disse Al.

De volta à cozinha André confidenciou:

- Preciso terminar de preparar o molho da salada. Podem encontrar sozinhos o caminho de volta ao sótão?

Al levantou a mão.

- Não se preocupe, companheiro. Cuide do seu trabalho e nós cuidaremos do nosso.

- Obrigado... muito obrigado

André observou os homens saírem para o furgão e voltarem um instante depois com duas bolsas grandes de lona.

- Se precisarem de alguma coisa - disse ele, - basta me chamarem.

- Está certo.

Os técnicos subiram a escada e André voltou à cozinha. Chegando ao sótão, Ralph e Al abriram as bolsas de lona e removeram uma pequena cadeira dobrável de acampamento, uma perfuradora com broca de aço, uma bandeja com sanduíches, duas latas de cerveja, um binóculo Zeiss 12 por 40 para observar objectos distantes com pouca claridade e dois hamsters vivos, que haviam sido injectados com três quartos de miligrama de, promazine acetifica.

Os dois homens se puseram a trabalhar.

- A velha Ernestine ficará orgulhosa de mim - comentou Al, com uma risadinha.

 

A princípio, Al resistira obstinadamente à idéia.

- Deve ter perdido o juízo, mulher. Não vou me meter com Perry Pope. O cara vai me dar uma porrada tão forte que nunca mais verei a luz do dia.

- Não precisa se preocupar com ele. O cara nunca mais tornará a sacanear ninguém.

Os dois se encontravam nus, na cama de água, no apartamento de Ernestine.

- Afinal, meu bem, o que está ganhando com esse negócio? - perguntou Al.

- Ele é um filho da puta.

- Ora, querida, o mundo está cheio de filhos da puta, mas você não passa a vida cortando os colhões deles.

- Tem razão. Estou fazendo isso por uma amiga .

- Tracy?

- Exactamente.

Al gostava de Tracy. Haviam jantado juntos no dia em que ela saíra da prisão.

- Ela é uma dona de classe - admitiu Al. - Mas por que estamos arriscando nossos pescoços por ela?

- Porque se não a ajudarmos, ela terá de arrumar alguém que não é tão bom quanto você nem de longe, e se a apanharem será despachada de volta à prisão.

Al sentou na cama e olhou para Ernestine, curioso.

 

- Isso significa tanto para você?

- Significa, sim, querido.

Ela nunca poderia fazê-lo compreender, mas a verdade pura e simples era que Ernestine não podia suportar a idéia de Tracy voltar à prisão e ficar à mercê de Big Bertha. E não era apenas com Tracy que Ernestine se preocupava, mas também consigo mesma. Assumira o papel de protectora de Tracy e se Big Bertha pusesse as mãos nela seria uma derrota para a própria Ernestine. E, por isso, ela acrescentou:

- E significa muito. Fará isso por mim?

- Não dá para fazer sozinho - resmungou Al.

E Ernestine compreendeu que vencera. Ela começou a mordiscar seu caminho pelo corpo comprido e esguio de Al, murmurando:

- O velho Ralph não deverá ser libertado dentro de poucos dias?

 

Eram seis e meia quando os dois homens voltaram à cozinha de André, cobertos de suor e poeira.

- Está consertado? - indagou André, ansiosamente.

- Não foi fácil - informou Al. - O que tem aqui é um condensador com um dispositivo AC/DC que...

Não se preocupe com isso - interrompeu-o André, impacientemente. - Deram um jeito?

- Claro. Está tudo consertado. Em cinco minutos voltará a funcionar, como se estivesse novo.

- Formidável! Se deixarem a conta na mesa da cozinha...

Ralph sacudiu a cabeça.

- Não se preocupe com isso. A companhia mandará a conta depois.

- Abençoados sejam vocês dois. Au revoir.

André observou os dois homens saírem pela porta dos fundos, carregando as bolsas de lona. Fora de vista, eles contornaram o pátio e foram abrir a caixa que alojava o condensador externo da unidade de ar-condicionado. Ralph segurou a lanterna, enquanto Al religava os fios que soltara duas horas antes. A unidade de ar-condicionado voltou a funcionar imediatamente.

Al anotou o número do telefone na etiqueta presa no condensador. Pouco depois, fez a ligação; ao ouvir a mensagem gravada do Serviço de Ar-Condicionado Esquimó, Al disse:

- Aqui é da residência de Perry Pope, na Charles Street, 42. Nosso ar-condicionado está funcionando direito agora. Não precisam mais mandar alguém. Obrigado.

 

O jogo de pôquer semanal, na noite de sexta-feira, na casa de Perry Pope, era um evento aguardado ansiosamente por todos os jogadores. Era sempre o mesmo grupo selecto: Anthony Orsatti, Joe Romano, Juiz Henry Lawrence, um vereador, um senador estadual e o anfitrião. As apostas eram altas, a comida sensacional e a companhia representava o poder.

Perry Pope se achava em seu quarto, vestindo uma calça branca de seda e uma camisa que combinava. Cantarolava feliz, pensando na noite pela frente. Estava numa maré vencedora ultimamente. Na verdade, toda a minha vida é uma grande maré vencedora, pensou ele.

 

Se alguém precisava de um favor judicial em Nova Orleans, Perry Pope era o advogado que devia procurar. Seu poder derivava das Ligações com a Família Orsatti. Era conhecido como O Arrumador e podia dar um jeito em qualquer coisa, de uma multa de trânsito a uma acusação de tráfico de tóxicos ou de homicídio. A vida era boa.

Anthony Orsatti chegou com um convidado e anunciou:

- Joe Romano não estará mais jogando connosco. Todos vocês

conhecem o Inspector Newhouse.

Os homens trocaram apertos de mão.

- Os drinques estão no aparador - informou Perry Pope. - E teremos uma ceia mais tarde. Por que não entramos logo em acção?

Os homens ocuparam seus lugares habituais em torno da mesa de feltro verde. Orsatti apontou para a cadeira vazia de Joe Romano e disse ao Inspector Newhouse:

- Aquele será o seu lugar daqui por diante, Mel.

Enquanto um dos homens abria os baralhos novos, Pope começou a distribuir as fichas. Ele explicou ao Inspector Newhouse:

- As fichas pretas valem cinco dólares, as vermelhas dez, as azuis cinquenta e as brancas cem. Cada homem começa comprando quinhentos dólares de fichas. Jogamos o pôquer à escolha de quem dá as cartas, com três aumentos.

- Está óptimo para mim - comentou o Inspector.

Anthony Orsatti parecia de mau humor.

- Vamos começar logo de uma vez.

Sua voz era um sussurro estrangulado, o que não constituía um bom sinal. Perry Pope daria muito para saber o que acontecera com Joe Romano, mas a experiência lhe dizia que era melhor não levantar o assunto. Orsatti falaria com ele a esse respeito quando achasse que o momento era oportuno.

Os pensamentos de Orsatti eram sombrios: Fui como um pai para Joe Romano. Confiei nele, promovi-o a meu lugar-tenente. E o filho da puta me apunhalou pelas costas. E se aquela francesa maluca não tivesse me telefonado, ele poderia escapar impune. Mas agora nunca mais escapará de coisa alguma. Não onde está. Se ele é tão esperto, que trate de poder com os peixes lá embaixo.

- Tony, você entra ou passa?

Anthony Orsatti tornou a concentrar sua atenção no jogo. Enormes quantias haviam sido ganhas e perdidas naquela mesa. Anthony Orsatti sempre ficava aborrecido ao perder, embora isso nada tivesse a ver com o dinheiro. Ele não podia suportar estar no lado perdedor de qualquer coisa. Pensava em si mesmo como um vencedor natural. Somente os vencedores ascendiam à sua posição na vida. Nas últimas seis semanas Perry Pope estava numa maré vencedora e naquela noite Anthony Orsatti queria rompê-la de qualquer maneira.

Como a variedade de pôquer era determinada por quem dava as cartas, cada um escolhia aquela em que se considerava mais forte. Jogavam o pôquer fechado comum, o stick, o canadense de cinco e sete cartas... naquela noite, porém, não importava o jogo escolhido, pois Anthony Orsatti se descobria sempre no lado perdedor. Ele passou a aumentar as apostas, jogando temerariamente, tentando recuperar os prejuízos. Por volta da meia-noite, quando pararam para comer a refeição que André preparara, Orsatti já estava a perder 50 mil dólares e Perry Pope era o grande vencedor.

A comida estava deliciosa. Geralmente Anthony Orsatti gostava da refeição prática à meia-noite. Naquele dia, no entanto, ele ansiava em voltar à mesa.

 

- Não está comendo, Tony - comentou Perry Pope.

- Não sinto fome.

Orsatti pegou o bule de prata com café ao seu lado, encheu uma xícara de porcelana Herend e sentou à mesa de pôquer. Ficou observando os outros comerem, desejando que se apressassem. Estava impaciente em recuperar seu dinheiro. Quando começou a mexer o café, uma pequena partícula caiu na xícara. Com repugnância, Orsatti removeu a partícula com a colher e examinou-a. Parecia um pedaço de reboco. Ele levantou os olhos para o teto e nesse instante alguma coisa bateu em sua testa. E percebeu subitamente um ruído de correria por cima.

- Que diabo está acontecendo lá em cima? - indagou Anthony Orsatti.

Perry Pope estava no meio de uma piada que contava ao Inspector Newhouse.

- Desculpe, mas o que foi mesmo que disse, Tony?

O barulho de correria era mais perceptível agora. Fragmentos de reboco se despejavam sobre o feltro verde.

- A impressão é de que são camundongos - disse o senador.

- Não nesta casa - protestou Perry Pope, indignado.

- Mas com toda a certeza tem alguma coisa - resmungou Orsatti.

Um pedaço maior de reboco caiu sobre o feltro verde da mesa.

- Terei de mandar André cuidar disso - declarou Pope. - Se todos já terminaram de comer, por que não voltamos ao jogo?

Anthony Orsatti olhava fixamente para um pequeno buraco no teto, bem por cima de sua cabeça.

- Espere um pouco. Vamos primeiro dar uma olhada lá em cima.

- Para quê, Tony? André pode...

Orsatti já se levantara e se encaminhava para a escada. Os outros se entreolharam por um instante e depois partiram atrás dele.

- Provavelmente um esquilo entrou no sótão - sugeriu Perry Pope. - Eles estão por toda a parte nesta época do ano. Provavelmente escondendo as suas nozes para o inverno.

Ele riu de sua piada. Quando chegaram ao sótão, Anthony Orsatti abriu a porta bruscamente. Perry Pope acendeu a luz. Vislumbraram dois hamsters brancos correndo freneticamente de um lado para outro.

- Santo Deus! - exclamou Perry Pope. - Tenho ratos no meu sótão!

Anthony Orsatti não estava prestando atenção. Olhava fixamente para o meio do sótão. Havia ali uma cadeira dobrável de acampamento, com uma bandeja de sanduíches por cima e duas latas de cerveja. Havia um binóculo no chão, ao lado.

Orsatti adiantou-se, pegou os objectos, um a um, examinando-os cuidadosamente. Depois ficou de joelhos no chão empoeirado, removeu o pequeno cilindro de madeira que escondia um buraco perfurado no teto. Encostou o olho nesse buraco. A mesa de jogo era claramente visível por baixo. Perry Pope estava parado no meio do sótão, atordoado.

- Quem trouxe todas estas porcarias aqui para cima? André vai se ver comigo por causa disso.

Orsatti levantou-se lentamente, limpou a poeira das calças. Perry Pope baixou os olhos para o chão.

- Olhem só! - exclamou ele. - Deixaram um buraco no chão. Os operários atuais não valem mais merda nenhuma.

 

Ele agachou-se e deu uma espiada pelo buraco. O rosto empalideceu de repente. Levantou-se e olhou ao redor, desesperado, encontrando todos os homens a fitá-lo fixamente.

- Ei! - disse Perry Pope. - Vocês não podem estar pensando que eu... Ora, pessoal, sou eu. Não sei de nada a respeito disso. Eu não enganaria vocês. Por Deus, somos amigos!

Sua mão voou para a boca e ele se pôs a roer furiosamente as cutículas. Orsatti apalpou-lhe o braço.

- Não se preocupe com isso.

Sua voz era quase inaudível. Perry Pope continuou a roer desesperadamente a carne do polegar direito.

 

- Agora já são dois, Tracy - disse Ernestine Littlechap, soltando uma risadinha. - A notícia pelas ruas é de que seu amigo advogado Perry Pope não poderá mais exercer a sua profissão. Ele sofreu um terrível acidente.

As duas tomavam café au tait com beignets num pequeno café com mesinhas na calçada, perto da Royal Street. Ernestine soltou outra risada e acrescentou:

- Você tem cabeça, garota. Não gostaria de entrar no negócio comigo?

- Obrigada, Ernestine, mas tenho outros planos.

Ernestine indagou, ansiosamente:

- Quem é o próximo?

- Juiz Henry Lawrence.

 

Henry Lawrence iniciara sua carreira como um advogado de cidade pequena, em Leesville, Louisiana. Não tinha muita aptidão para a advocacia, mas possuía dois atributos muito importantes: era fisicamente impressivo e moralmente flexível. Sua filosofia era de que a lei não passava de uma vara frágil, destinada a ser entortada de acordo com as necessidades de seus clientes. Com essa orientação, não era de surpreender que, pouco depois de se transferir para Nova Orleans, o escritório de advocacia de Henry Lawrence começasse a prosperar, com um grupo especial de clientes. Ele passou de contravenções e acidentes de trânsito para crimes mais graves. Ao subir para os altos escalões, já era um especialista em comprar jurados, desacreditar testemunhas e subornar qualquer um que pudesse ajudar em seus casos. Em suma, era o tipo de advogado que Anthony Orsatti queria. Assim, era inevitável que os caminhos dos dois se cruzassem. Foi um casamento efectuado no paraíso da Máfia. Lawrence tornou-se o porta-voz da Família Orsatti. E quando chegou o momento oportuno, Orsatti providenciou a sua promoção a juiz.

 

- Não sei como você poderá pegar o juiz - comentou Ernestine - Ele é rico, poderoso e intocável.

- Ele é rico e poderoso, mas não é intocável - corrigiu-a Tracy.

Tracy já elaborara seu plano, mas quando telefonou para o gabinete do Juiz Lawrence compreendeu imediatamente que teria de mudá-lo.

- Eu gostaria de falar com o Juiz Lawrence, por favor.

A secretária respondeu:

- Lamento, mas o juiz não está.

- Quando poderei encontrá-lo?

- Não sei dizer.

- É muito importante. Ele estará aí amanhã?

- Não. O Juiz Lawrence está viajando.

- E eu não poderia localizá-lo em algum lugar?

- Infelizmente, não será possível. O juiz está fora do país.

Tracy tomou o cuidado de impedir que o desapontamento transparecesse em sua voz.

- Posso saber onde ele se encontra?

- O juiz está na Europa, participando de um simpósio judiciário internacional.

- Mas que pena!

 

- Quem está falando, por favor?

A mente de Tracy estava em disparada.

- Aqui é Elizabeth Rowane Dastin, presidente da divisão sul da Associação Americana de Advogados Criminais. Vamos promover o nosso banquete anual de reconhecimentos em Nova Orleans, no dia 20 deste mês, e escolhemos o Juiz Henry Lawrence para ser o nosso homem do ano.

- Isso é maravilhoso! - exclamou a secretária. - Mas, infelizmente, o juiz não estará de volta antes disso.

- É uma pena. Aguardávamos com ansiedade a oportunidade de ouvir um dos seus famosos discursos. O Juiz Lawrence foi a escolha unânime de nosso comité de selecção.

- Tenho certeza que ele ficará desapontado por perder essa oportunidade.

- Estou certa que você compreende como isso é uma grande honra. Alguns dos juizes mais proeminentes do país já foram eleitos no passado. E, espere um pouco! Tenho uma idéia. O juiz não poderia gravar um pequeno discurso de aceitação para nós... umas poucas palavras de agradecimentos?

- Bom... não posso responder por ele. O juiz anda muito ocupado...

- Haverá uma grande cobertura nacional de jornais e emissoras de televisão.

Houve um momento de silêncio. A secretária do Juiz Lawrence sabia o quanto o Meritíssimo apreciava a cobertura dos meios de comunicação. Na verdade, até onde ela podia saber, a viagem que ele fazia parecia ter justamente esse propósito.

- Talvez ele encontre tempo para gravar algumas palavras. Posso perguntar a ele.

- Mas isso seria sensacional - declarou Tracy, entusiasmada. - O grande momento da noite!

- Gostaria que o juiz fizesse os seus comentários sobre alguma coisa específica?

- Claro que sim. Gostaríamos que ele falasse sobre... - Tracy hesitou. - Receio que seja um pouco complicado. Seria melhor se eu pudesse explicar a ele directamente.

Houve outro silêncio momentâneo. A secretária enfrentava um dilema. Tinha ordens para não revelar o itinerário de seu chefe. Por outro lado, seria típico do juiz culpá-la se deixasse de receber uma distinção tão importante.

- Eu não deveria dar qualquer informação, mas tenho certeza de que o juiz gostaria que se abrisse uma excepção para algo tão prestigioso. Poderá encontrá-lo em Moscovo, no Hotel Rossia. Ele estará lá durante os próximos cinco dias e depois disso.

- Isso é óptimo! Entrarei em contacto com ele imediatamente. Muito obrigada.

- Eu é que lhe agradeço, Senhorita Dastin.

 

Os telegramas eram endereçados ao Juiz Henry Lawrence, Hotel Rossia, Moscovo. O primeiro dizia: CONSELHO JUDICIÁRIO PRÓXIMO ENCONTRO PODE AGORA SER ACERTADO. CONFIRME DATA CONVENIENTE COMO ESPAÇO A SER SOLICITADO BORIS.

O segundo telegrama, que chegou no dia seguinte, dizia: ACONSELHE SOBRE PROBLEMAS PLANOS VIAGEM. AVIÃO IR. CHEGOU ATRASADO MAS POUSOU SEGURANÇA. PERDEU PASSAPORTE E DINHEIRO. ELA VAI SER COLOCADA HOTEL PRIMEIRA CLASSE Suíça. MAIS TARDE ACERTAREMOS CONTAS. BORIS.

 

O último telegrama dizia: SUA IRMÃ VAI TENTAR EMBAIXADA AMERICANA PARA OBTER PASSAPORTE TEMPORÁRIO. SEM INFORMAÇÕES Disponíveis SOBRE O NOVO VISTO. SUÍÇO FAZ RUSSO PARECER SANTO. DE NAVIO ELA PARTIRá MAIS DEPRESSA POSSÍVEL. BORIS.

Os homens do NKVD ficaram aguardando a chegada de novos telegramas. Como não houvesse mais nenhum, eles prenderam o Juiz Lawrence.

O interrogatório durou dez dias e noites.

- Para quem enviou as informações?

- Que informações? Não sei do que estão falando.

- Estamos falando sobre os planos. Quem lhe deu os planos?

- Que planos?

- Os planos do novo submarino atómico soviético.

- Vocês devem estar loucos. O que pensam que eu sei sobre submarinos soviéticos?

- É o que tencionamos descobrir. Com quem foi o seu encontro secreto?

- Que encontro secreto? Não tenho nada de secreto.

- Óptimo. Pode então nos dizer quem é Boris.

- Que Boris?

- O homem que depositou o dinheiro em sua conta na Suíça

- Que conta na Suíça?

Eles estavam furiosos.

- Você é um idiota obstinado. Vamos fazer um exemplo de você e de todos os outros espiões americanos que tentam solapar a nossa grande pátria.

Quando o embaixador americano teve permissão para visitá-lo, o Juiz Henry Lawrence já perdera sete quilos. Não podia se lembrar da última vez em que seus algozes lhe haviam permitido dormir, transformara-se num trémulo farrapo humano.

- Por que estão fazendo isso comigo? - lamuriou-se o juiz. - Sou um cidadão americano. E um juiz. Pelo amor de Deus, tire-me daqui!

- Estou fazendo tudo o que posso.

O embaixador ficou chocado com a aparência de Lawrence. Recepcionara o Juiz Lawrence e os outros membros do Comité Judiciário ao chegarem, duas semanas antes. O homem que o embaixador conhecera então não tinha qualquer semelhança com a criatura trémula e apavorada que agora rastejava à sua frente.

Que diabo os russos estão querendo desta vez?, especulou o embaixador. O juiz não é mais espião do que eu. Uma pausa e ele pensou, ironicamente: Eu poderia ter escolhido um exemplo melhor.

O embaixador exigiu uma audiência com o presidente do Politburo. O pedido foi recusado e ele se contentou com um dos ministros.

- Devo apresentar um protesto formal - declarou o embaixador, furioso. - O comportamento de seu país no tratamento dispensado ao Juiz Henry Lawrence é indesculpável. Classificar um homem de sua estatura de espião é um absurdo.

- Se já acabou de falar - disse o ministro, friamente - eu gostaria que desse uma olhada nisto.

Ele entregou cópias dos telegramas ao embaixador. Depois de ler, o embaixador levantou os olhos, perplexo.

- O que há de errado com estes telegramas? São perfeitamente inocentes.

- Acha mesmo? Talvez seja melhor lê-los de novo. Devidamente decifrados.

Ele entregou ao embaixador outras cópias dos telegramas.

 

Cada quarta palavra estava sublinhada.

 

CONSELHO JUDICIÁRIO PRÓXIMO ENCONTRO PODE AGORA SER ACERTADO, CONFIRME DATA CONVENIENTE COMO ESPAÇO A SER SOLICITADO.

BORIS

 

ACONSELHE SOBRE PROBLEMAS PLANOS VIAGEM. AVIÃO IRMA CHEGOU ATRASADO MAS POUSOU SEGURANÇA. PERDEU PASSAPORTE E DINHEIRO. ELA VAI SER COLOCADA HOTEL PRIMEIRA CLASSE SUÍÇA. MAIS TARDE ACERTAREMOS CONTAS.

BORIS

 

SUA IRMÃ VAI TENTAR EMBAIXADA AMERICANA PARA OBTER PASSAPORTE TEMPORÁRIO. SEM INFORMAÇÕES DISPONÍVEIS SOBRE O NOVO VISTO. SUÍÇO FAZ RUSSO PARECER SANTO. DE NAVIO ELA PARTIRá MAIS DEPRESSA POSSÍVEL.

BORIS

 

Mas que filho da puta!, pensou o embaixador.

 

A imprensa e o público não tiveram acesso ao julgamento. O prisioneiro permaneceu obstinado até o fim, continuando a negar que estivesse na União Soviética em missão de espionagem. A promotoria prometeu clemência se ele revelasse quem eram os seus superiores. O Juiz Lawrence daria a própria alma para poder fazer isso, mas infelizmente não era possível.

No dia seguinte ao julgamento saiu uma pequena notícia no Pravda, informando que o notório espião americano Juiz Henry Lawrence fora considerado culpado de espionagem e condenado a 14 anos de trabalhos forçados na Sibéria.

A comunidade de informações americana estava espantada com o Caso Lawrence. Os rumores fervilhavam na CIA, FBI, Serviço Secreto e Departamento do Tesouro.

- Ele não é um dos nossos - garantiu a CIA. - Provavelmente pertence ao Tesouro.

O Departamento do Tesouro negou qualquer conhecimento do caso:

- Nada disso. Não temos nada a ver com Lawrence. Provavelmente é a porra do FBI se intrometendo mais uma vez em nosso território.

Mas o FBI afirmou:

- Nunca ouvimos falar do homem. Provavelmente ele era controlado pelo Departamento de Estado ou pela Agência de Informações do Departamento de Defesa.

A Agência de Informações do Departamento de Defesa estava tão no escuro quanto as outras organizações, mas limitou-se a declarar, astutamente:

- Sem comentários

Cada serviço estava absolutamente convencido de que o Juiz Henry Lawrence fora enviado ao exterior por um dos outros.

- Não podemos deixar de reconhecer a sua coragem - comentou o director da CIA. - Ele é dos mais duros. Não confessou e não revelou o nome de ninguém. Para dizer a verdade, eu bem que gostaria de ter muitos agentes como ele.

 

As coisas não corriam bem para Anthony Orsatti e o capo era incapaz de compreender o motivo . Pela primeira vez em sua vida, a sorte lhe era adversa. Começara com a deserção de Joe Romano, depois viera a traição de Perry Pope e agora era o juiz que se envolvia em alguma história maluca de espionagem. Todos eram partes intrínsecas da máquina de Orsatti, homens em quem se apoiava.

Joe Romano era a alavanca na organização da Família e Orsatti não encontrara ninguém para substitui-lo. Os negócios estavam agora descuidados, começavam a se acumular queixas de pessoas que nunca antes haviam se atrevido a reclamar. Espalhara-se a notícia de que Tony Orsatti estava ficando velho, não era mais capaz de manter os seus homens na linha, sua organização começava a desmoronar.

A gota d'água final foi um telefonema de Nova Jersey.

- Soubemos que está com um pequeno problema por aí, Tony. Gostaríamos de ajudar.

- Não tenho problema nenhum - respondeu Orsatti, bruscamente. - É verdade que tivemos duas dificuldades recentemente, mas já foi tudo resolvido.

- Não é o que soubemos, Tony. A informação é de que sua cidade se encontra à deriva. Não há ninguém para controlá-la.

- Eu estou controlando.

- Talvez tenha se tornado demais para você. Quem sabe você não tem trabalhado excessivamente? Talvez precise de um pequeno descanso.

- Esta é a minha cidade. Ninguém vai tirá-la de mim.

- Ora, Tony, quem falou em tirá-la de você? Só queremos ajudar. As Famílias aqui no leste se reuniram e decidiram mandar alguns dos nossos homens para lhe dar uma mãozinha. Não há nada de errado numa colaboração entre velhos amigos, não é mesmo?

Anthony Orsatti sentiu um calafrio subir-lhe pela espinha. Só havia uma coisinha errada com aquilo: a mãozinha se transformaria numa enorme mão, viraria uma bola de neve.

 

Ernestine fizera camarão corri quiabo para o jantar e estava fervendo no fogão em fogo brando, enquanto elas esperavam pela chegada de Al. A onda de calor de setembro já afectara profundamente os nervos de todo mundo. Quando Al finalmente entrou no pequeno apartamento, Ernestine gritou:

- Onde diabo você se meteu? A porra do jantar está queimando e eu também!

Mas Al se achava eufórico demais para se incomodar com a rispidez de Ernestine.

- Eu estava ocupado a saber das notícias, mulher, E espere só até ouvir o que descobri. - Ele virou-se para Tracy. - A Máfia agarrou Tony Orsatti pelo colarinho. A Família de Nova Jersey vem assumir tudo aqui.

Al fez uma pausa, o rosto se desmanchando num largo sorriso.

- Você liquidou mesmo o filho da puta! - Ele fitou Tracy nos olhos e o sorriso se desvaneceu. - Não está feliz, Tracy?

Que estranha palavra, pensou Tracy. Feliz. Ela esquecera o que isso significava. E se perguntou se algum dia poderia ser feliz outra vez, se algum dia tornaria a sentir quaisquer emoções normais. Há muito tempo que todo seu pensamento em vigília se concentrava em vingar o que haviam feito à sua mãe e a si mesma. Agora que, estava quase acabado, restava apenas um vazio interior.

 

Tracy foi a um florista na manhã seguinte.

- Quero mandar flores para Anthony Orsatti. Uma coroa fúnebre, de cravos brancos, montada numa estante, com uma fita larga. E quero que na fita esteja escrito "DESCANSE EM PAZ".

Ela pegou um pequeno cartão em branco e escreveu, para acompanhar a coroa: "DA FILHA DE DORIS WHITNEY."

 

Filadélfia

TERÇA-FEIRA, 7 DE OUTUBRO - 16 HORAS

Chegara a hora de cuidar de Charles Stanhope III. Os outros eram estranhos. Charles fora seu amante, o pai de seu filho que não nascera... e ele virara as costas a ambos.

 

Ernestine e Al foram ao aeroporto de Nova Orleans para se despedirem de Tracy.

- Sentirei sua falta - dissera Ernestine - Você pôs esta cidade de pernas pro ar. Deveriam elegê-la prefeita do povo.

- O que vai fazer em Filadélfia? - perguntara Al.

Ela respondera a metade da verdade:

- Voltarei a meu antigo emprego no banco.

Ernestine e Al trocaram um olhar.

- Eles... ahn... sabem que você está voltando?

- Não. Mas o vice-presidente gosta de mim. Não haverá qualquer problema. É difícil encontrar pessoas qualificadas, para operar nos computadores.

- Boa sorte. Mantenha-se em contacto, está bem? E não se meta em encrencas, garota.

Meia hora depois Tracy seguia de avião rumo a Filadélfia.

 

Ela hospedou-se no Hilton Hotel e lavou a vapor o seu único vestido bom, por cima da banheira cheia de água quente. às 11 horas da manhã seguinte foi para o banco e procurou a secretária de Clarence Desmond.

- Olá, Mae.

Ela olhou aturdida para Tracy, como se estivesse vendo um fantasma.

- Tracy! - A moça ficou visivelmente embaraçada. - Eu... Como vai?

- Muito bem. O Sr. Desmond está?

- Eu... eu não sei. Deixe-me verificar. Com licença.

Ela se levantou, afogueada, entrou apressadamente na sala do vice-presidente. Voltou um momento depois.

- Pode entrar.

Mae ficou de lado quando Tracy se encaminhou para a porta. O que há com ela?, pensou Tracy.

Clarence Desmond estava de pé, ao lado de sua mesa.

- Olá, Sr. Desmond - disse Tracy, jovialmente. - Eu voltei.

- Para quê?

O tom era inamistoso. Decididamente hostil. Pegou Tracy de surpresa. Ela insistiu:

- Disse que eu era a melhor operadora de computador que já conheceu e pensei...

- Pensou que eu lhe devolveria o seu antigo emprego?

- Isso mesmo, senhor. Não esqueci nada do que sabia. Ainda posso...

 

- Lamento muito, Senhorita Whitney. - Não era mais Tracy. - O que está me pedindo é inteiramente impossível. Tenho certeza de que pode compreender que nossos clientes não ficariam satisfeitos em lidar com uma pessoa que cumpriu pena numa penitenciária por assalto à mão armada e tentativa de homicídio. Isso não estaria de acordo com a nossa imagem ética. E acho improvável que, tendo em vista os seus antecedentes, qualquer banco possa contratá-la. Sugiro que tente encontrar emprego mais condizente com as suas circunstâncias. E espero que compreenda que não há nada de pessoal nesta decisão.

Tracy escutou as palavras primeiro com choque e depois com uma raiva crescente. Ele a fazia parecer uma pária, uma leprosa. Não gostaríamos de perdê-la. É uma de nossas funcionárias mais valiosas.

- Deseja mais alguma coisa, Senhorita Whitney?

Era uma maneira de encerrar a entrevista. Havia uma centena de coisas que Tracy sentia vontade de dizer, mas sabia que de nada adiantariam.

- Não. Acho que você já disse tudo.

Tracy virou-se e deixou a sala, o rosto ardendo. Todos os funcionários do banco pareciam observá-la. Mae espalhara a notícia: A condenada voltara. Tracy encaminhou-se para a saída, a cabeça erguida, morrendo por dentro. Não posso permitir que façam isso comigo. O orgulho é tudo o que me resta e ninguém vai tirá-lo de mim.

 

Tracy passou o dia inteiro no quarto, angustiada. Como pudera ser tão ingénua para acreditar que a receberiam de braços abertos? Era agora uma pessoa notória.

- Você é a manchete no Daily News de Filadélfia.

Pois Filadélfia que se dane, pensou Tracy. Tinha um negócio inacabado ali, mas iria embora depois que o concluísse. Seguiria para Nova York, onde seria anónima. A decisão fê-la sentir-se melhor.

Tracy presenteou-se naquela noite com um jantar no Café Royal, um dos melhores restaurantes de Filadélfia. Depois do sórdido encontro com Clarence Desmond naquela manhã, ela precisava do clima tranquilizador de luzes suaves, ambiente elegante e música de fundo. Pediu um martíni de vodca. Quando o garçom o trouxe, Tracy levantou os olhos e sentiu que o coração subitamente parava. Sentados num reservado, no outro lado da sala, estavam Charles e sua esposa. Ainda não a tinham visto. O primeiro impulso de Tracy foi se levantar e ir embora. Ainda não se sentia preparada para enfrentar Charles, enquanto não tivesse uma oportunidade de pôr seu plano em execução.

- Gostaria de pedir o jantar agora? - o garçon estava perguntando.

- Eu... eu esperarei mais um pouco. Obrigada.

 

Ela precisava de decidir se ia ou não ia ficar. Olhou novamente para Charles e um fenómeno espantoso ocorreu: Era como se contemplasse um estranho. Viu um homem pálido, de meia-idade, aparência cansada, calvo, ombros encurvados, tendo no rosto uma expressão de inefável tédio. Era impossível acreditar que ela tivesse pensado outrora que amava aquele homem, fora para a cama com ele, planeara passar o resto da vida em sua companhia. Tracy olhou para a esposa. Ela exibia a mesma expressão entediada de Charles. Davam a impressão de duas pessoas encurraladas juntas pela eternidade, congeladas no tempo. Simplesmente se sentavam ali, sem dizerem uma só palavra um para o outro. Tracy pôde visualizar os anos tediosos e intermináveis que os dois teriam pela frente. Sem amor. Sem alegria. Essa é a punição de Charles, pensou ela, experimentando uma repentina sensação de alívio, uma libertação das profundas e sinistras correntes emocionais que antes a agrilhoavam. Tracy fez sinal para o garçon e disse:

- Estou pronta para pedir agora.

Estava acabado. O passado fora finalmente sepultado.

Foi somente quando voltou ao quarto no hotel, naquela noite, que Tracy se lembrou que tinha dinheiro a receber do fundo dos funcionários do banco. Sentou-se e calculou a quantia. Dava exactamente 1.376 dólares e 65 cents.

Ela escreveu uma carta para Clarence Desmond e dois dias depois recebeu uma resposta de Mae:

 

           Prezada Senhorita Whitney:

Em resposta a seu pedido, o Sr. Desmond pediu-me que lhe comunicasse que, por causa da política moral do plano financeiro dos funcionários, sua cota reverteu para o fundo geral. O Sr. Desmond pede também para lhe assegurar que não guarda qualquer ressentimento pessoal.

             Atenciosamente,

            Mae Trenton, Secretária do Vice-Presidente Sénior.

 

Tracy não podia acreditar. Estavam roubando o seu dinheiro, sob o pretexto de resguardar a moral do banco! Ela sentiu-se indignada. E jurou: Não deixarei que me enganem. Nunca mais deixarei que qualquer pessoa me engane.

 

Dois dias depois Tracy se achava parada do lado de fora da entrada familiar do Trust and Fidelity Bank de Filadélfia. Usava uma peruca preta comprida, uma maquilhagem morena, uma cicatriz vermelha no queixo. Se alguma coisa saísse errada, seria da cicatriz que se lembrariam. Apesar do disfarce, Tracy tinha a sensação de estar nua, pois trabalhara naquele banco durante cinco anos e os empregados eram pessoas que haviam-na conhecido muito bem. Teria de tomar todo cuidado para não se trair.

Ela entrou claudicando no banco. Havia muitos clientes lá dentro, pois Tracy escolhera deliberadamente a hora do pique do movimento. Aproximou-se de uma das mesas de atendimento dos clientes. O homem sentado por trás concluiu um telefonema e disse:

- Pois não?

Era Jon Creighton, o fanático do banco. Odiava judeus, pretos e porto-riquenhos, mas não necessariamente nessa ordem. Sempre fora um motivo de irritação para Tracy durante os anos em que ali trabalhara. Agora, não houve qualquer sinal de reconhecimento no rosto dele.

- Buenos días, senhor. Eu gostaria de abrir uma conta corrente, agora.

O sotaque de Tracy era mexicano, o mesmo sotaque que ouvira por tantos meses de Paulita, sua companheira de cela. Havia uma expressão de desdém no rosto de Creighton.

- Nome?

- Rita Gonzales.

- E quanto gostaria de depositar em sua conta?

- Dez dólares.

A voz de Creighton era escaminha:

- Em cheque ou em dinheiro?

 

- Acho que em dinheiro.

Ela tirou cuidadosamente da bolsa uma nota de dez dólares, toda amassada, meio rasgada, entregou a Creighton. Ele estendeu um formulário em branco para ela.

- Preencha isto.

Tracy não tinha a menor intenção de escrever qualquer coisa com sua letra. Franziu o rosto.

- Desculpe, senhor. Machuquei minha mão... num acidente. Importa-se de escrever para mim, se faz favor.

Creighton, bufou. Esses mexicanos analfabetos!

- Disse que seu nome é Rita Gonzales?

- Sim.

- Endereço?

Tracy forneceu o endereço e o telefone do hotel em que estava hospedada.

- Nome de solteira de sua mãe?

- Gonzales. Minha mãe casou com seu tio.

- E sua data de nascimento?

- 20 de dezembro de 1958.

- Lugar de nascimento?

- Gudad de México.

- Cidade do México. Assine aqui.

- Terei de usar a mão esquerda.

Tracy pegou uma caneta e desajeitadamente escreveu uma assinatura ilegível. Jon Creighton preencheu uma ficha de depósito.

- Eu lhe darei um talão de cheques provisório. Seus cheques impressos serão remetidos pelo correio dentro de três ou quatro semanas.

- Bom. Muito agradecida, senhor.

- De nada.

Ele observou-a sair do banco. Malditos mexicanos.

 

Há diversos meios ilegais de se obter acesso a um computador e Tracy era uma especialista no assunto. Ajudara a montar o sistema de segurança do banco e agora estava prestes a contorná-lo.

Seu primeiro passo era encontrar uma loja de computadores, onde poderia usar um terminal para fazer contacto com o computador do banco. Encontrou uma a vários quarteirões do banco, quase vazia. Um vendedor ansioso se aproximou.

- Em que posso servi-la, dona?

- Eso si que no, senhor. Estou apenas dando uma olhada.

Os olhos dele foram atraídos por um adolescente empenhado num jogo de computador.

- Com licença.

O vendedor afastou-se apressadamente. Tracy virou-se para o computador à sua frente, um modelo de mesa, ligado a um telefone. Entrar no sistema seria fácil, mas ela estaria obstruída sem o código de acesso apropriado. Esse código era mudado diariamente. Tracy participara da reunião em que fora decidido o código de autorização original.

- Devemos mudá-lo constantemente - dissera Clarence Desmond - a fim de que ninguém possa violá-lo. Contudo, queremos que seja bastante simples para as pessoas que estão autorizadas a usá-lo.

O código finalmente escolhido usava as quatro estações do ano e o dia corrente.

 

Tracy ligou o computador e bateu o código para o Trust and Fidelity Bank de Filadélfia. Ouviu um zumbido estridente e pôs o receptor do telefone no módulo do computador. Um aviso apareceu na pequena tela: SEU CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO, POR FAVOR?

Era o dia 10.

OUTONO 10, bateu Tracy.

ESTE É UM CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO IMPRÓPRIO. A tela do computador ficou em branco.

Eles teriam mudado o código? Pelo canto do olho, Tracy percebeu o vendedor a se aproximar novamente. Ela deslocou-se para outro computador, lançando-lhe um olhar casual e seguindo para o corredor. O vendedor diminuiu as passadas. Uma curiosa, concluiu ele. E adiantou-se apressadamente para cumprimentar um casal de aparência próspera que entrava na loja. Tracy voltou ao primeiro computador.

Tentou se situar na mente de Clarence Desmond. Ele era um homem de hábitos e Tracy tinha certeza de que não teria variado demais o código. Provavelmente mantivera o conceito original das estações e dos números. Mas como os mudara? Seria complicado demais inverter todos os números; portanto, era provável que ele tivesse apenas trocado as estações.

Tracy tentou de novo.

SEU CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO, POR FAVOR?

INVERNO 10.

ESTE É UM CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO IMPRÓPRIO. A tela tornou a ficar vazia.

Não vai dar certo, pensou Tracy, desesperada. Farei só mais uma tentativa.

SEU CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO, POR FAVOR?

PRIMAVERA 10.

A tela ficou vazia por um instante e depois a mensagem apareceu: CONTINUE, POR FAVOR.

Então Desmond trocara mesmo as estações. Ela bateu rapidamente: TRANSAÇÃO INTERNA DE DINHEIRO.

No mesmo instante, o cardápio do banco, as categorias de transacções disponíveis, apareceu na tela:

 

VOCÊ DESEJA

  1. A) DEPÓSITO DE DINHEIRO
  2. B) TRANSFERENCIA DE DINHEIRO
  3. C) RETIRADA DE DINHEIRO DE CONTA DE POUPANÇA
  4. D) TRANSFERENCIA ENTRE SUCURSAIS
  5. E) RETIRADA DE DINHEIRO DE CONTA CORRENTE

REGISTRE POR FAVOR SUA OPÇÃO

 

Tracy escolheu o B. A tela tornou a se apagar e logo um novo cardápio apareceu.

 

VALOR DA TRANSFERêNCIA?

PARA ONDE?

DE ONDE?

 

Ela bateu: DO FUNDO DE RESERVA GERAL PARA RITA GONZALES. Quando chegou o momento de indicar o valor, ela hesitou por um instante. Tentador, pensou Tracy. Como tinha acesso, não havia limite para a quantia que o computador agora subserviente poderia lhe dar. Se quisesse, tomaria milhões. Mas não era uma ladra. Tudo o que queria era o que lhe pertencia por direito.

 

Ela bateu 1.375,65 dólares e acrescentou o número da conta de Rita Gonzales.

A tela comunicou: TRANSAÇÃO CONCLUÍDA, DESEJA EFECTUAR OUTRAS OPERAÇÕES?

NÃO.

SESSÃO ENCERRADA. OBRIGADO.

O dinheiro seria automaticamente transferido pela Câmara de Compensação Interbancária que manipulava os 220 bilhões de dólares deslocados entre os bancos todos os dias

O vendedor se aproximava outra vez de Tracy, o rosto franzido. Tracy se apressou em apertar uma tecla e a tela do computador apagou,

- Está interessada em comprar esse aparelho, dona?

- Não, obrigada. Não consigo mesmo entender esses computadores.

Ela telefonou para o banco de uma drugstore na esquina e pediu para falar com o chefe dos caixas.

- Olá. Aqui é Rita Gonzales. Eu gostaria que minha conta corrente fosse transferida para a matriz do First Hanover Bank, em Nova York, por favor.

- O número de sua conta, Senhorita Gonzales?

Tracy deu a informação.

Uma hora depois, Tracy deixou o Hilton e partiu para a cidade de Nova York.

Quando o First Hanover Bank de Nova York abriu, às 10 horas da manhã seguinte, Rita Gonzales ali estava, a fim de retirar todo o dinheiro de sua conta.

- Quanto tem? perguntou ela.

O caixa verificou.

- Tem 1.385 dólares e 65 cents.

- Sim, está correcto.

- Gostaria de levar um cheque visado nesse valor, Senhorita Gonzales?

- Não, obrigada. Não confio em bancos. Quero tudo em dinheiro.

 

Tracy recebera os 200 dólares habituais ao deixar a penitenciária estadual e mais a pequena quantia que ganhara tomando conta de Amy. Contudo, mesmo com o dinheiro do fundo do banco, ela não tinha segurança financeira. Era indispensável que conseguisse um emprego o mais depressa possível.

Ela hospedou-se num hotel barato na Lexington Avenue e começou a enviar seu currículo aos bancos de Nova York, solicitando um emprego como técnica em computadores. Logo descobriu que o computador se tornara subitamente o seu inimigo. Sua vida não era mais particular. Os bancos de memória dos computadores continham a história de sua vida e prontamente a revelavam a qualquer um que apertasse as teclas certas. E no instante em que a ficha criminal de Tracy aparecia, seu pedido de emprego era rejeitado.

 

Acho improvável que, tendo em vista os seus antecedentes, qualquer banco possa contratá-la. Clarence Desmond estava certo.

Tracy enviou outros pedidos de empregos a seguradoras e outras empresas que operavam com computadores. As respostas eram sempre iguais: negativo.

 

Muito bem, pensou Tracy, sempre posso fazer outra coisa. Ela comprou um exemplar de The New York Times e começou a procurar os anúncios de emprego.

Havia uma vaga de secretária numa firma de exportação. No momento em que Tracy passou pela porta, o gerente de pessoal disse:

- Ei, eu a vi na televisão. Você salvou uma garota na prisão, não é mesmo?

Tracy virou-se e fugiu.

No dia seguinte ela foi contratada como vendedora no departamento infantil da Saks, na Quinta Avenida. O salário era muito menor do que ganhava antes, mas pelo menos daria para se sustentar.

Em seu segundo dia de trabalho, uma freguesa histérica reconheceu-a e comunicou ao gerente do andar que se recusava a ser servida por uma assassina que afogara uma criancinha. Tracy não teve sequer a oportunidade de explicar. Foi imediatamente despedida.

Parecia a Tracy que os homens contra os quais executara a sua vingança estavam dando a última palavra, no final de contas, convertendo-a numa criminosa pública, uma pária. A injustiça do que estava lhe acontecendo era corrosiva. Não tinha idéia de como odiaria viver e pela primeira vez começou a experimentar um sentimento de desespero. Ela vasculhou a bolsa naquela noite para verificar quanto dinheiro lhe restava. Num canto da carteira viu o pedaço de papel que Betty Franciscus lhe dera na prisão. CONRAD MORGAN, JOALHEIRO, QUINTA AVENIDA, 640, CIDADE DE NOVA YORK. Ele se empenha na reforma criminal. E gosta de ajudar as pessoas que já passaram pela prisão.

 

Conrad Morgan et Cie Joalheiros era um estabelecimento elegante, com um porteiro de libré do lado de fora e um guarda armado dentro. A loja propriamente dita era simples, mas as jóias eram requintadas e caras. Tracy disse à recepcionista:

- Eu gostaria de falar com o Sr. Conrad Morgan, por favor.

- Tem um encontro marcado?

- Não. Uma... uma amiga comum sugeriu que eu o procurasse.

- Seu nome?

- Tracy Whitney.

- Um momento, por favor.

A recepcionista pegou um telefone e murmurou alguma coisa que Tracy não pôde entender. Ela repôs o telefone no gancho.

- O Sr. Morgan está muito ocupado neste momento Pergunta se poderia voltar às seis horas.

- Posso, sim. Obrigada.

Tracy saiu da loja e parou na calçada, indecisa. Vir para Nova York fora um erro. Provavelmente não havia nada que Conrad Morgan pudesse fazer por ela. E por que deveria fazer? Ela era uma estranha total. Ele me fará uma prelecção e me dará uma esmola. Não preciso de qualquer das duas coisas. Nem dele nem de qualquer outra pessoa. Sou uma sobrevivente. Darei um jeito, de alguma forma. Que se dane Conrad Morgan. Não voltarei a procurá-lo.

Tracy vagueou pelas ruas a esmo, passando pelos salões reluzentes da Quinta Avenida, os prédios de apartamentos guardados na Park Avenue, as lojas movimentadas na Lexington e na Terceira Avenida. Passeava pelas ruas de Nova York sem pensar, sem ver nada, dominada por uma amarga frustração.

 

às seis horas descobriu-se de volta à Quinta Avenida, diante de Conrad Morgan et Cie Joalheiros. O porteiro se fora e a porta estava trancada. Tracy bateu na porta, num gesto de desafio, depois virou-se. Mas, para sua surpresa, a porta abriu-se abruptamente.

Um homem de aparência paternal estava parado ali, a fitá-la. Era calvo, com tufos de cabelos brancos por cima das orelhas, um rosto rubicundo e jovial, olhos azuis faiscantes. Parecia um alegre gnomo.

- É a Senhorita Whitney?

- SOU...

- E eu sou Conrad Morgan. Não quer entrar, por favor?

Tracy entrou na loja deserta.

- Eu estava à sua espera - disse Conrad Morgan. - Vamos para o meu escritório, onde poderemos conversar mais à vontade.

Ele conduziu-a através da loja até uma porta fechada, que destrancou com uma chave. O escritório era elegantemente mobiliado e mais parecia um apartamento que um lugar de negócios, sem escrivaninhas, apenas sofás, cadeiras e mesas distribuídas com bom gosto. As paredes estavam cobertas por quadros de velhos mestres.

- Gostaria de tomar um drinque? - ofereceu Conrad Morgan. - Uísque, conhaque ou talvez um xerez?

- Não quero nada, obrigada.

Tracy sentia-se subitamente nervosa. Descartara a idéia de que aquele homem faria alguma coisa para ajudá-la; contudo, ao mesmo tempo, descobriu-se a torcer desesperadamente para que ele pudesse fazê-lo.

- Betty Franciscus sugeriu que eu o procurasse, Sr. Morgan. Ela disse que o senhor... ajudava pessoas que já estiveram... em dificuldades.

Ela não foi capaz de dizer prisão. Conrad Morgan cruzou as mãos e Tracy notou que as unhas eram impecavelmente cuidadas.

- Pobre Betty. Uma moça maravilhosa. Mas não teve sorte.

- Não teve sorte?

- Isso mesmo. Foi apanhada.

- Eu... eu não compreendo...

- É realmente muito simples, Senhorita Whitney. Betty trabalhava para mim. Era bem protegida. Mas a pobre coitada se apaixonou por um chofer de Nova Orleans, e resolveu operar por conta própria. E... acabou sendo apanhada.

Tracy estava confusa.

- Ela trabalhou aqui como uma vendedora?

Conrad Morgan recostou-se na cadeira e riu até que os olhos ficaram mareejados de lágrimas.

- Não, minha cara - disse ele, enxugando as lágrimas. - Obviamente, Betty não lhe explicou tudo.

Ele tornou a se recostar e uniu as pontas dos dedos, antes de continuar:

- Tenho um pequeno negócio paralelo muito lucrativo, Senhorita Whitney. Sinto o maior prazer em partilhar esses lucros com meus colegas. Sou bem-sucedido em contratar pessoas como você... se me perdoa dizê-lo ... que já cumpriram uma pena de prisão.

Tracy estudou o rosto dele, mais perplexa do que nunca.

 

- Deve compreender que me encontro numa posição singular. Tenho uma clientela extremamente rica. Meus clientes tornam-se meus amigos E me fazem suas confidências. - Ele bateu com os dedos, delicadamente. - Sei quando meus clientes viajam. Bem poucas pessoas viajam com jóias nestes tempos perigosos. Assim, suas jóias ficam guardadas em casa. Recomendo as medidas de segurança que devem adoptar para protegê-las. Sei exactamente quais as jóias que possuem, pois as compraram de mim. E os clientes.

Tracy descobriu-se de pé.

- Obrigada por seu tempo, Sr. Morgan.

- Já vai embora?

- Se está dizendo o que eu penso...

- Claro que estou.

Tracy podia sentir as suas faces ardendo.

- Não sou uma criminosa. Vim aqui à procura de um emprego.

- E é justamente o que estou lhe oferecendo, minha cara. Ocupará uma ou duas horas de seu tempo e posso lhe prometer vinte e cinco mil dólares. - Ele sorriu maliciosamente. - E livre de impostos, é claro.

Tracy fazia um grande esforço para controlar sua raiva.

- Não estou interessada. Pode me deixar sair, por favor?

- Pois não, se é isso o que deseja. - Ele levantou-se e acompanhou-a até à porta. - Deve compreender, Senhorita Whitney, que se houvesse o menor perigo de alguém ser apanhado eu não estaria envolvido. Tenho uma reputação a zelar.

- Prometo que não falarei nada a esse respeito - disse Tracy friamente.

Morgan tornou a sorrir.

- Não há nada que possa dizer, minha cara, não é mesmo? Afinal, quem acreditaria em você? Eu sou Conrad Morgan.

Ao chegarem à porta da loja, ele acrescentou:

- Não quer me avisar se mudar de idéia? O melhor momento para me telefonar é depois das seis horas da tarde. Ficarei à espera de sua ligação.

- Pois não fique - disse Tracy bruscamente.

Ela saiu para a noite que caía. Ainda tremia quando chegou a seu quarto.

Mandou um empregado do hotel buscar um sanduíche e café. Não tinha vontade de falar com ninguém. A conversa com Conrad Morgan deixara-a com a sensação de ter sido contaminada. Ele a confundira com todas as criminosas tristes, confusas e derrotadas que a cercavam na Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres. Mas ela não era uma delas. Era Tracy Whitney, uma perita em computadores, uma cidadã decente, que respeitava as leis.

A quem ninguém queria contratar.

Tracy passou a noite inteira acordada, pensando em seu futuro. Não tinha emprego e lhe restava muito pouco dinheiro. Tomou duas decisões: Pela manhã, iria se mudar para um lugar mais barato e arrumaria um emprego. Qualquer tipo de emprego.

 

O lugar mais barato em um horrível apartamento de um só cómodo, no quarto andar de um prédio sem elevador, no Lower East Side. De seu quarto, através das paredes finas como papel, Tracy podia ouvir os vizinhos gritando uns para os outros, em línguas estrangeiras. As janelas e portas das lojas que margeavam as ruas eram gradeadas e Tracy podia compreender por quê. A área parecia povoada por bêbados, prostitutas e mendigos.

 

A caminho do supermercado para fazer compras, Tracy foi abordada três vezes... duas vezes por homens e a outra por uma mulher.

Não posso suportar isso. Não ficarei aqui por muito tempo, Tracy garantiu a si mesma.

 

Ela foi a uma pequena agência de empregos, a poucos quarteirões de seu apartamento. Era dirigida por uma certa Sra. Murphy, uma mulher corpulenta, de aparência matronal. Ela examinou o currículo de Tracy com uma expressão irónica.

- Não sei para que precisa de mim. Deve haver pelo menos uma dúzia de empresas que brigariam para ter alguém como você.

Tracy respirou fundo.

- Acontece que tenho um problema.

Ela explicou tudo. A Sra. Murphy escutou em silêncio e disse, quando Tracy terminou:

- Pode esquecer a procura de um emprego em computadores.

- Mas acabou de dizer...

- As companhias andam muito preocupadas actualmente com os crimes por computador. Não contratarão ninguém que tenha uma ficha criminal.

- Mas preciso de um emprego. Eu...

- Há outros tipos de emprego. Já pensou em trabalhar como vendedora?

Tracy lembrou-se de sua experiência na loja de departamentos. Não podia suportar passar de novo pela mesma situação.

- Há mais alguma coisa?

A mulher hesitou. Tracy Whitney era obviamente alguém muito acima do emprego que tinha em mente.

- Sei que não é da sua classe, mas há uma vaga de garçonete no Jackson Hole. É uma lanchonete no Upper East Side.

- Um emprego de garçonete?

- Isso mesmo. Se quiser aceitar, não cobrarei qualquer comissão. Acabei de ser informada.

Tracy ficou em silêncio por um momento, pensando. Servira a mesas no refeitório da universidade. Fora então divertido. Agora, era uma questão de sobrevivência.

- Vou experimentar.

 

Jackson Hole era um tumulto, com fregueses ruidosos e impacientes, cozinheiros mortificados e irritados. A comida era boa e os preços razoáveis, a lanchonete estava sempre apinhada. As garçonetes trabalhavam num ritmo frenético, sem tempo para descansar. Ao final do primeiro dia, Tracy encontrava-se exausta. Mas estava ganhando dinheiro.

No segundo dia, por volta de meio-dia, quando Tracy servia a uma mesa cheia de vendedores, um dos homens subiu a mão por baixo de sua saia. Tracy deixou cair um pote de chili em sua cabeça. Foi o fim do emprego.

Ela voltou à Sra. Murphy e relatou o que acontecera.

- Talvez eu tenha uma boa notícia - disse a Sra. Murphy. - O Wellington Arnis precisa de uma arrumadeira-assistente. Mandarei você para lá.

O Wellington Arais, era um hotel pequeno e elegante na Park Avenue que atendia aos ricos e famosos. Tracy foi entrevistada pela chefe das arrumadeiras e contratada. O trabalho não era difícil, as colegas simpáticas e o horário razoável.

Uma semana depois, Tracy foi chamada à sala de sua superior. O gerente-assistente também estava ali.

 

- Verificou a Suíte 827 hoje? - perguntou-lhe a sua superior.

A Suíte era ocupada por Jennifer Marlowe, uma actriz de Hollywood. Parte das funções de Tracy era inspeccionar cada suíte e verificar se as arrumadeiras tinham feito seu trabalho direito.

- Verifiquei, sim.

- A que horas?

- às duas. Algum problema?

O gerente-assistente interveio:

- A Senhorita Marlowe voltou às três horas e descobriu que um valioso anel de diamante desaparecera.

Tracy pôde sentir seu corpo ficar tenso.

- Você entrou no quarto, Tracy?

- Claro. Verifico todos os cómodos.

- Viu alguma jóia quando esteve no quarto?

- Bom... não. Acho que não.

O gerente-assistente insistiu:

- Você acha que não? Não tem certeza?

- Eu não estava procurando por jóias - respondeu Tracy. - Apenas verificava as camas e as toalhas.

- A Senhorita Marlowe afirma que deixou o anel na penteadeira quando saiu da suíte.

- Não sei de nada a esse respeito.

- Ninguém mais tem acesso à suíte. E as arrumadeiras já estão connosco, há muitos anos.

- Não peguei nenhum anel.

O gerente-assistente suspirou.

- Teremos de chamar a polícia para investigar.

- Só pode ter sido outra pessoa - protestou Tracy. - Ou talvez a Senhorita Marlowe tenha esquecido onde guardou o anel...

- Com a sua ficha...

Lá estava, às claras. Com a sua ficha...

- Terei de pedir-lhe que faça o favor de esperar no escritório da segurança até a chegada da polícia.

Tracy sentiu o rosto corar.

- Está bem, senhor.

Ela foi acompanhada até à sala por um dos agentes de segurança, teve a sensação de que estava de volta à prisão. Lera sobre ex-condenados que eram perseguidos porque tinham passado pela prisão, mas nunca lhe ocorrera que isso pudesse acontecer com ela. Haviam-lhe posto um rótulo e esperavam que ela vivesse de acordo. Ou em desacordo, pensou Tracy, amargurada.

Meia hora depois o gerente-assistente entrou na sala e disse, sorrindo:

- A Senhorita Marlowe encontrou seu anel. No final das contas, ela esquecera onde o guardara. Foi apenas um pequeno equívoco.

- Maravilhoso - murmurou Tracy.

Ela deixou o hotel e seguiu directamente para Conrad Morgan, et Cie Joalheiros.

 

- É ridiculamente simples - Conrad Morgan estava dizendo. - Uma cliente minha, Lois Bellamy, acaba de viajar para a Europa. Sua casa é em Sea Cliff, Long Island. Os empregados tiram folga nos fins de semana e não há ninguém por lá. Uma patrulha particular efectua uma inspecção a cada quatro horas. Você pode entrar e sair da casa em poucos minutos.

 

Eles estavam sentados no escritório de Conrad Morgan.

- Conheço o sistema de alarme e tenho a combinação do cofre. Tudo o que você tem de fazer, minha cara, é entrar, pegar as jóias e sair. Traga-me as jóias, eu tiro as pedras dos engastes, torno a lapidar as maiores e as vendo.

- Se é tão simples assim, por que você não faz tudo pessoalmente? - indagou Tracy, bruscamente.

Os olhos azuis de Morgan faiscaram.

- Porque estou saindo da cidade a negócios. Sempre que um desses pequenos incidentes ocorre", eu me encontro invariavelmente fora da cidade a negócios.

- Entendo...

- Se está com escrúpulos sobre a possibilidade de o roubo afectar a Sra. Bellamy, pode esquecer. Ela é uma mulher horrível, que tem casas por todo o mundo, cheias das coisas mais caras. Além disso, segurou as jóias pelo dobro do valor real. Naturalmente, eu fiz todas as avaliações.

Tracy olhava fixamente para Conrad Morgan, pensando: Devo ter ficado louca. Aqui estou a discutir calmamente um roubo de jóias com este homem.

- Não quero voltar à prisão, Sr. Morgan.

- Não há qualquer perigo. Nenhuma das pessoas que trabalhou para mim foi apanhada. Pelo menos não enquanto trabalhavam para mim. E então... o que me diz?

A resposta era óbvia. Ela diria que não. Toda a idéia era insana.

- Você disse vinte e cinco mil dólares?

- Pagamento contra entrega.

Era uma fortuna, o suficiente para sustentá-la até poder definir o que fazer com sua vida. Tracy pensou no apartamento sinistro em que vivia, nos berros dos inquilinos. Lembrou-se da mulher a gritar:

- Não quero uma assassina me servindo.

E lembrou-se das palavras do gerente-assistente do hotel:

- Teremos de chamar a polícia para investigar.

Mas Tracy ainda não tinha condições de dizer sim.

- Eu sugeriria esta noite de sábado - acrescentou Conrad Morgan. - Os empregados saem ao meio-dia de sábado. Providenciarei uma carteira de motorista para você, sob um nome falso. Alugará um carro aqui em Manhattan e seguirá para Long Island, lá chegando às onze horas. Pegará as jóias, voltará a Nova York e devolverá o carro... Sabe guiar, não é mesmo?

- Sei, sim.

- Excelente. Há um trem partindo para St. Louis às 7 e 45. Reservarei um compartimento para você. Irei encontrá-la na estação em St. Louis e você me entregará as jóias. Eu lhe darei então os vinte e cinco mil dólares.

Ele fazia com que tudo parecesse muito simples.

Aquele era o momento de dizer não, levantar e ir embora... ir embora para onde?

- Precisarei de uma peruca loura - disse Tracy, falando muito devagar.

 

Depois que Tracy se retirou, Conrad Morgan permaneceu sentado em seu escritório, no escuro, pensando nela. Uma fina mulher. Muito fina. Era uma pena. Talvez devesse tê-la avisado que não estava realmente tão familiarizado assim com aquele sistema de alarme contra ladrões em particular.

 

Com os mil dólares que Conrad Morgan lhe adiantara, Tracy comprou duas perucas, uma loura e uma preta, com uma infinidade de pequenas tranças. Comprou uma calça comprida azul-marinho, um macacão preto e uma valise, imitação de Gucci, num ambulante que estava na Lexington Avenue. Até agora, tudo corria perfeitamente. Conforme Morgan prometera, Tracy recebeu um envelope contendo uma carteira de motorista, em nome de Ellen Branch, um diagrama do sistema de segurança da casa da Sra. Bellamy, a combinação do cofre no quarto e uma passagem da Amtrack para St. Louis, numa cabina particular. Tracy recolheu seus poucos pertences e partiu. Nunca mais tornarei a viver num lugar como este, ela prometeu a si mesma. Alugou um carro e seguiu para Long Island. Estava indo cometer um roubo.

O que fazia tinha a irrealidade de um sonho e ela sentia-se apavorada. E se fosse apanhada? O que estava prestes a fazer valia o risco?

É ridiculamente simples, dissera Conrad Morgan.

Ele não estaria envolvido em qualquer coisa assim se não tivesse certeza absoluta. Ele tem sua reputação a zelar. Eu também tenho uma reputação, pensou Tracy, amargurada, só que é a pior possível. A qualquer momento que uma jóia esteja desaparecida, eu serei culpada até que se prove a minha inocência.

Tracy sabia o que estava fazendo. Tentava se pôr num estado de raiva, tentava se preparar psicologicamente para cometer um crime. Mas não deu certo. Ao chegar a Sea Cliff, era um destroço nervoso. Por duas vezes quase saiu com o carro da estrada. Talvez a polícia me detenha por condução perigosa, pensou ela, esperançosa. Poderei então dizer ao Sr. Morgan que tudo saiu errado antes mesmo de começar.

Mas não havia qualquer carro da polícia à vista. Claro, pensou Tracy, furiosa, eles nunca estão por perto quando se precisa.

Ela foi para o estreito de Long Island, seguindo a orientação de Conrad Morgan. A casa fica à beira do mar. Tem o nome de Embers. É uma antiga mansão vitoriana. Não pode errar.

Por favor, Deus, faça-me errar, rezou Tracy.

Mas lá estava a casa, assomando da escuridão, como algum castelo de ogre num pesadelo. Parecia deserta. Como os criados se atrevem a tirar folga no sábado!, pensou Tracy, indignada. Todos deveriam ser despedidos.

Ela levou o carro para trás de um grupo de enormes salgueiros, onde ficaria escondido. Desligou o motor. Ficou escutando os ruídos nocturnos dos insectos. Nada mais perturbava o silêncio. A casa ficava longe da estrada principal e não havia qualquer tráfego àquela hora.

A propriedade é protegida por árvores, minha cara, o vizinho mais próximo está a acres de distância. Portanto, não precisa se preocupar com a possibilidade de ser vista. A patrulha de segurança efectua a sua inspecção às dez horas da noite e novamente às duas da madrugada. Você já estará muito longe às duas da madrugada.

 

Tracy olhou para o seu relógio. Eram 11 horas. A primeira inspecção já fora feita. Ela tinha três horas antes que a patrulha voltasse para a segunda inspecção. Ou três segundos para fazer a manobra com o carro e voltar a Nova York, esquecer toda aquela loucura. Mas voltar para o quê? As imagens afloraram espontâneas em sua mente. O gerente-assistente no Saks: "Lamento profundamente, Senhorita Whitney, mas devemos fazer a vontade de nossos fregueses." "Pode esquecer a idéia de trabalhar com um computador. Eles não contratarão alguém que tenha uma ficha criminal.. . "São 25 mil dólares, livres de impostos, por uma ou duas horas. Se tem escrúpulos, saiba que ela é realmente uma mulher horrível."

O que estou fazendo?, pensou Tracy. Não sou realmente uma ladra. Não uma ladra genuína. Sou uma estúpida amadora, que está prestes a sofrer um colapso nervoso.

Se eu tivesse metade de um cérebro, escaparia daqui enquanto ainda há tempo. Antes que os homens da SWAT me encontrem, haja um tiroteio e levem meu corpo crivado de balas para o necrotério. Posso ver a manchete: PERIGOSA CRIMINOSA MORTA DURANTE TENTATIVA DE ROUBO FRUSTRADA.

Quem haveria de chorar em seu enterro? Ernestine e Amy, Tracy olhou para o relógio.

- Oh, Deus!

Estava sentada ali, pensando, há 20 minutos. Se vou fazer, é melhor começar logo.

Ela não podia se mexer. Estava paralisada pelo medo. Não posso ficar sentada aqui eternamente, disse a si mesma. Por que não dou uma olhada na casa? Apenas isso, nada mais.

Tracy respirou fundo e saiu do carro. Usava o macacão preto. Podia sentir os joelhos tremendo. Aproximou-se da casa lentamente e constatou que se achava completamente às escuras.

Não se esqueça de usar luvas.

Tracy meteu a mão no bolso, tirou um par de luvas, vestiu-as. Oh, Deus, eu vou fazer!, pensou ela. Vou realmente seguir em frente e cometer um roubo. Seu coração batia tão alto que não podia mais ouvir quaisquer outros sons.

O alarme fica à esquerda da porta da frente. Há cinco botões. A luz vermelha estará acesa, o que significa que o alarme se acha activado. O código para desligá-lo é três-dois-quatro-um-um. Quando a luz vermelha se apagar, você saberá que o alarme está desactivado. Aqui está a chave da porta da frente. Depois de entrar, não se esqueça de fechar a porta. Use esta lanterna. Não acenda nenhuma das luzes da casa, pois sempre é possível que alguém passe de carro. O quarto principal fica no segundo andar, à esquerda, de frente para o mar. Encontrará o cofre por trás de um retracto de Lois Bellamy. É um cofre muito simples. Tudo o que tem a fazer é seguir esta combinação.

Tracy ficou imóvel, tremendo, pronta para fugir ao menor ruído. Silêncio. Lentamente, ela se inclinou e apertou a sequência dos botões do alarme, rezando para que não desse sinal. A luz vermelha se apagou. O passo seguinte a comprometeria irremediavelmente. Ela lembrou-se de que os pilotos de avião tinham uma frase para isso: o ponto do qual não se podia mais voltar.

 

Tracy inseriu a chave na fechadura e a porta se abriu. Ela esperou um minuto inteiro antes de entrar. Todos os nervos de seu corpo vibravam num ritmo frenético quando parou no vestíbulo, escutando, com medo de se mexer. Um silêncio de deserto povoava a casa. Ela pegou a lanterna, acendeu-a, viu a escada. Adiantou-se e começou a subir. Tudo o que queria agora era acabar com aquilo o mais depressa possível e fugir.

O vestíbulo superior parecia fantasmagórico ao clarão da lanterna, o facho bruxuleante fazia com que as paredes tremessem. Tracy espiou em cada cómodo por que passou. Estavam todos vazios.

O quarto principal ficava no final do corredor, dando para o mar, exactamente como Morgan o descrevera. Era aconchegante, numa tonalidade rosa suave, uma cama de dossel e uma cómoda adornada com rosas. Havia duas poltronas, uma lareira e uma mesa pequena de refeição na frente. Eu quase vivi numa casa assim, com Charles e nosso filho, pensou Tracy.

Ela foi até a janela panorâmica e contemplou os barcos distantes, ancorados na baía. Diga-me, Deus, o que o levou a decidir que Lois Bellamy deveria viver nesta linda casa e que eu deveria estar aqui para roubá-la? Vamos, menina, ela disse a si mesma, não se torne filosófica. Será uma vez só. Tudo acabará em poucos minutos, mas não se ficar parada aqui sem fazer nada.

Tracy virou-se e foi até o retracto que Morgan descrevera. Lois Bellamy tinha uma expressão dura e arrogante. É verdade. Ela parece mesmo uma mulher horrível. O quadro virava para fora, afastando-se da parede, havia um pequeno cofre por trás. Tracy memorizara a combinação. Três voltas para a direita, pare em quarenta e dois. Duas voltas para a esquerda, pare em dez. Uma volta para a direita, pare em trinta. Suas mãos tremiam tanto que ela teve de começar duas vezes. Ouviu um clique. A porta do cofre estava aberta.

Em seu interior havia diversos envelopes grossos e documentos, mas Tracy ignorou-os. Lá no fundo, sobre uma pequena prateleira, ela viu um saco de jóias de camurça. Tracy estendeu a mão e levantou-o da prateleira. E foi nesse instante que o alarme começou a soar, o barulho mais alto que Tracy já ouvira em toda a sua vida. Parecia reverberar de todos os cantos da casa, gritando o seu alerta. Ela ficou imóvel, paralisada pelo choque.

O que saíra errado? Conrad Morgan não sabia do alarme dentro do cofre, que era accionado quando se removiam as jóias da prateleira?

Ela tinha de sair dali rapidamente. Meteu a bolsa de camurça no bolso e começou a correr para a escada. E de repente, acima do som do alarme, ouviu outro ruído, o barulho de sirenes se aproximando. Tracy parou no alto da escada, apavorada, o coração disparado, a boca seca. Correu em direcção a uma janela, entreabriu uma cortina, espiou. Uma radiopatrulha preta e branca estava parando diante da casa. Enquanto Tracy observava, um policial uniformizado correu para os fundos do prédio, enquanto um segundo se encaminhava para a porta da frente. Não havia escapatória. O alarme ainda ressoava e subitamente parecia a terrível campainha nos corredores da Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres.

Não!, pensou Tracy. Não permitirei que me mandem de volta para lá.

A porta da frente soou estridentemente.

 

O Tenente Melvin Durkin integrava a força policial de Sea Cliff há dez anos. Sea Cliff era uma cidadezinha tranquila e a principal actividade da polícia era reprimir o vandalismo, uns poucos roubos de carros e ocasionais brigas de bêbados nas noites de sábado. A activação do alarme Bellamy se enquadrava numa categoria diferente, Era o tipo de actividade criminosa pelo qual o Tenente Durkin ingressara na polícia . Ele conhecia Lois Bellamy e tinha conhecimento da valiosa colecção de quadros e jóias que ela possuía. E com a Sra Bellamy viajando, ele fizera questão de inspeccionar a casa periodicamente, pois constituía um alvo tentador para qualquer ladrão. E agora, pensou o Tenente Durkin, parece que peguei um ladrão. Ele se encontrava apenas a dois quarteirões de distância quando recebera a chamada pelo rádio da companhia de segurança. Isto ficará sensacional na minha folha,

O Tenente Durkin apertou a campainha da porta da frente. Queria poder registrar em seu relatório que tocara a campainha três vezes, antes de forçar a entrada . Seu companheiro cobria os fundos e assim não havia qualquer possibilidade de o ladrão escapar. Ele tentaria provavelmente se esconder no interior da casa, mas teria uma surpresa. Ninguém podia se esconder de Melvin Durkin.

Quando o tenente estendia a mão para tocar a campainha pela terceira vez, a porta da frente se abriu subitamente. Ele ficou aturdido. Parada à sua frente se achava uma mulher, numa camisola fina, que deixava muito pouco à imaginação. O rosto se apresentava coberto por um creme escuro, os cabelos metidos numa touca. Ela perguntou:

- Que diabo está acontecendo?

Tenente Durkin engoliu em seco.

- Eu... quem é você?

- Sou Ellen Branch. Uma hóspede de Lois Bellamy. Ela está na Europa.

- Sei disso. - O tenente ficou confuso. - Ela não nos disse que teria uma hóspede.

A mulher na porta balançou a cabeça ironicamente.

- Isso não é típico de Lois? Com licença, mas não posso suportar este barulho.

Enquanto o Tenente Durkin observava, a hóspede de Lois Bellamy estendeu a mão para os botões do alarme, apertou uma sequência de números. O som cessou.

- Assim está melhor. - Ela suspirou. - Não posso lhe dizer o quanto estou contente em vê-lo.

A mulher fez uma pausa, rindo, trémula.

- Eu estava me aprontando para deitar quando o alarme começou a tocar. Tinha certeza de que havia ladrões na casa e me encontro sozinha aqui. Todos os criados saíram de folga ao meio-dia.

- Não se importa se dermos uma olhada?

- Por favor, eu insisto!

O tenente e seu companheiro levaram apenas poucos minutos para se certificarem de que não havia ninguém à espreita no interior da residência.

- Tudo certo - anunciou o Tenente Durkin. - Alarme falso. Algum defeito deve tê-lo activado. Nem sempre se pode confiar nesses inventos electrónicos. Eu ligaria para a companhia de segurança e pediria que verificassem o sistema.

- É exactamente o que vou fazer.

- Acho melhor eu ir. . .

- Obrigada por ter vindo. Eu me sinto muito mais segura agora.

 

Ela tem mesmo um corpo sensacional, pensou o Tenente Durkin. Ele se perguntou como a mulher pareceria sem o creme no rosto e sem a touca.

- Ficará aqui muito tempo, Senhorita Branch?

- Mais uma ou duas semanas, até Lois voltar.

- Se houver algo que eu possa fazer, basta me avisar.

- Obrigada. Não esquecerei.

Tracy ficou observando enquanto o carro da polícia se afastava pela noite. Sentiu que podia desmaiar de alívio. Depois que o carro sumira, ela subiu correndo a escada, tirou do rosto o creme que encontrara no banheiro, arrancou a touca e a camisola de Lois Bellamy, tornou a vestir o seu macacão preto e saiu pela porta da frente, tornando cuidadosamente a ligar o alarme.

Foi somente quando já atingira a metade do caminho de volta a Manhattan que Tracy absorveu completamente a audácia do que fizera. Ela soltou uma risadinha, que acabou se transformando em gargalhadas trémulas e incontroláveis, até que finalmente parou o carro à beira da estrada. E continuou a rir, as lágrimas escorrendo pelas faces. Era a primeira vez que ria em um ano inteiro. E a sensação era maravilhosa.

 

Somente depois que o trem Amtrack partiu da Estação Pensilvânia é que Tracy começou a relaxar. Esperara a cada segundo que uma mão pesada pousasse em seu ombro e uma voz dissesse:

- Você está presa.

Ela observara atentamente os outros passageiros que haviam embarcado no trem e nada percebera de alarmante . Mesmo assim, os ombros de Tracy se achavam contraídos em tensão. Ela insistia em garantir a si mesma que era improvável que alguém tivesse descoberto o roubo tão cedo; e mesmo que isso acontecesse, não havia nada que pudesse ligá-la. Conrad Morgan estaria à sua espera em St. Louis, com 25 mil dólares. Todo esse dinheiro para fazer o que bem lhe aprouvesse! Teria de trabalhar um ano inteiro no banco para ganhar tanto dinheiro. Viajarei para a Europa, pensou Tracy. Paris. Não. Paris, não. Charles e eu passaríamos lá a nossa lua-de-mel. Irei para Londres. Ali não serei uma ex-condenada. De certa forma, a experiência por que passou fazia com que Tracy se sentisse uma pessoa diferente. Era como se tivesse renascido.

Ela trancou a porta da cabina, pegou a bolsa de camurça e abriu-a. Uma cascata de cores faiscantes despejou-se em suas mãos. Havia três enormes anéis de diamantes, um broche de esmeralda, uma pulseira de safira, três pares de brincos e dois colares, um de rubis, outro de pérolas.

Estas jóias devem valer mais de um milhão de dólares, especulou Tracy. Enquanto o trem rolava pelos campos, ela recostou-se no banco e reconstituiu mentalmente a noite. Alugando o carro... seguindo para Sea Cliff... o silêncio da noite... desligando o alarme e entrando na casa... abrindo o cofre... o choque do alarme disparando, a polícia aparecendo. Nunca lhes ocorrera que a mulher de creme no rosto, com uma camisola transparente e uma touca na cabeça, era a ladra que procuravam.

Agora, sentada na cabina do trem, seguindo para St. Louis, Tracy permitiu-se um sorriso de satisfação. Gostara de enganar a polícia. Havia alguma coisa de maravilhosamente inebriante de se colocar à beira do perigo. Ela sentia-se ousada, inteligente e invencível. Sentia-se absolutamente sensacional.

Houve uma batida na porta da cabina. Tracy tornou a guardar as jóias na bolsa de camurça apressadamente e pós a bolsa em sua mala. Pegou a passagem e destrancou a porta para entregá-la ao cabineiro.

Dois homens de terno cinza estavam parados no corredor. Um deles parecia ter trinta e poucos anos, o outro era uns dez anos mais velho. O mais jovem era atraente, com o corpo de um atleta. Tinha um queixo forte, bigode pequeno e aparado, usava óculos de aros de osso, por trás dos quais brilhavam olhos azuis inteligentes. O mais velho tinha uma vasta cabeleira preta e era corpulento, os olhos castanhos se mostravam frios.

- Desejam alguma coisa? - perguntou Tracy.

- Desejamos, sim.

O homem mais velho tirou uma carteira do bolso e exibiu uma identificação:

FBI

DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA DOS ESTADOS UNIDOS

 

- Sou o Agente Especial Dennis, Trevor. E este é o Agente Especial Thomas Bowers.

Tracy sentiu a boca subitamente ressequida. Forçou um sorriso.

- Eu... eu receio não estar entendendo. Algum problema?

- Infelizmente, sim, madame - disse o agente mais jovem, com um suave sotaque sulista. - Este trem cruzou a fronteira de Nova Jersey há poucos minutos. Transportar mercadoria roubada por uma fronteira estadual constitui um crime federal.

Tracy teve a sensação de que ia desmaiar. Uma película vermelha surgiu diante de seus olhos, tornando tudo indefinido. O homem mais velho, Dennis Trevor, estava dizendo:

- Poderia abrir sua bagagem, por favor?

Não era um pedido, mas sim uma ordem. A única esperança de Tracy era blefar.

- Claro que não! Como se atreve a entrar em minha cabina desse jeito? - A voz dela transbordava de indignação. - Isso é tudo o que vocês têm a fazer... andar por aí incomodando cidadãos inocentes? Vou chamar o cabineiro.

- Já falamos com o cabineiro - informou Trevor.

O blefe não estava funcionando.

- Vocês... vocês têm um mandato judicial?

O homem mais jovem disse, gentilmente:

- Não precisamos de um mandado judicial, Senhorita Whitney. Estamos prendendo-a em flagrante.

Eles sabiam até o seu nome. Ela estava acuada. Não havia saída. Absolutamente nenhuma.

Trevor já se adiantara para a sua mala, começava a abri-la. Era inútil tentar impedi-lo. Tracy observou enquanto ele retirava a bolsa de camurça. O agente abriu-a, olhou para o seu companheiro, acenou com a cabeça. Tracy arriou no banco, sentindo-se de repente fraca demais para ficar de pé.

Trevor tirou uma lista do bolso, conferiu o conteúdo da bolsa, guardou-a consigo.

- Está tudo aqui, Tom.

- Como... como descobriram? - indagou Tracy, desesperada.

- Não temos permissão para fornecer qualquer informação - respondeu Trevor. - Você está presa. Tem o direito de permanecer em silêncio e chamar um advogado antes de falar qualquer coisa. E tudo o que disser poderá ser usado como prova contra você.

A resposta de Tracy foi um sussurro quase inaudível.

- Entendido.

Tom Bowers disse.

- Lamento muito. Sei de seus antecedentes e lamento sinceramente.

- Pelo amor de Deus - interveio o homem mais velho - isto não é um encontro social.

- Sei disso. Mesmo assim...

O homem mais velho estendeu um par de algemas para Tracy.

- Dê os pulsos, por favor.

Tracy sentia o coração se contorcendo em agonia. Lembrou-se do aeroporto em Nova Orleans, quando haviam-na algemado, as pessoas se virando para olhar.

- Por favor! Tem mesmo... de fazer isso?

- Tenho, sim, madame.

O homem mais jovem interveio.

- Posso lhe falar a sós por um instante, Dennis?

Dennis Trevor encolheu os ombros.

 

- Está certo.

Os dois homens saíram para o corredor. Tracy continuou sentada, atordoada, dominada pelo desespero. Podia ouvir trechos da conversa dos dois.

- Pelo amor de Deus, Dennis, não há necessidade de algemá-la. Ela não vai fugir...

- Quando você vai parar de se comportar como um escoteiro? Depois que estiver no FBI há tanto tempo quanto eu...

- Ora, deixe disso. Dê uma chance à moça. Ela já está bastante constrangida e...

- Ainda não é nada em comparação com o que ela vai...

Ela não pôde ouvir o resto da conversa. Os agentes voltaram à cabina um momento depois. O mais velho parecia irritado.

- Está bem - disse ele. - Não vamos algemá-la. Você desembarcará na próxima estação. Pediremos pelo rádio um carro do FBI. Até lá, não deixará esta cabina. Entendido?

Tracy acenou com a cabeça, angustiada demais para falar. O homem mais jovem, Tom Bowers, encolheu os ombros com uma expressão compreensiva, como a dizer: "Bem que gostaria que houvesse mais alguma coisa que eu pudesse fazer."

Mas não havia nada que alguém pudesse fazer. Não agora. Era tarde demais. Ela fora apanhada em flagrante . De alguma forma, a polícia a descobrira e comunicara ao FBI.

Os agentes estavam no corredor, conversando com o cabineiro. Trevor apontou para Tracy e disse alguma coisa que ela não pôde ouvir. O cabineiro assentiu. Trevor fechou a porta da cabina. Para Tracy, foi como bater a porta de uma cela.

Os campos passavam velozmente, parecendo vinhetas emolduradas brevemente pela janela. Mas Tracy tornou-se indiferente à paisagem. Achava-se paralisada pelo medo. Havia um troar em seus ouvidos que nada tinha a ver com os ruídos do trem. Não existiria uma segunda oportunidade. Era uma criminosa condenada. Receberia agora a sentença máxima e desta vez não haveria a filha do director para salvar, não haveria coisa alguma além dos anos terríveis e intermináveis de prisão pela frente. E Big Bertha. Como conseguiram agarrá-la? A única pessoa que sabia do roubo era Conrad Morgan e ele não teria qualquer motivo possível para entregá-la e às jóias ao FBI. Possivelmente algum empregado de sua loja tomara conhecimento do plano e comunicara à polícia. Mas não fazia a menor diferença como acontecera. Ela fora apanhada. E na próxima estação desembarcaria e seguiria outra vez para a prisão. Passaria por uma audiência preliminar, em seguida o julgamento e depois...

Tracy apertou os olhos com toda força, recusando-se a pensar mais a esse respeito. Sentiu lágrimas quentes lhe escorrerem pelas faces.

 

O trem começou a reduzir a velocidade. Tracy começou a sufocar. Não conseguia absorver ar em quantidade suficiente. Os dois agentes do FBI viriam buscá-la a qualquer momento. Uma estação surgiu à frente e o trem parou poucos segundos depois, com um solavanco. Estava na hora de partir. Tracy fechou a mala, levantou-se para vestir o casaco, tornou a se sentar. Ficou olhando fixamente para a porta fechada da cabina, esperando que se abrisse. minutos foram passando. Os dois agentes não apareciam. O que poderiam estar fazendo? Ela recordou o que lhe haviam dito: "Você desembarcará na próxima estação. Pediremos pelo rádio um carro do FBI. Até lá, não deixará esta cabina."

Ela ouviu o chefe do trem gritar:

- Todos a bordo!

Tracy começou a entrar em pânico. Talvez os agentes tivessem dito que a esperariam na plataforma. Devia ser isso. Se ela ficasse no trem, seria acusada de tentar fugir, o que, tornaria sua situação ainda pior. Tracy pegou a mala, abriu a porta da cabina, e afastou-se apressadamente pelo corredor. O cabineiro, se aproximou.

- Vai saltar aqui, dona? É melhor se apressar. Deixe-me ajudá-la. Uma mulher no seu estado não deveria carregar peso.

Ela fitou-o, aturdida.

- No meu estado?

- Não precisa se sentir embaraçada. Seus irmãos me disseram que está grávida e, me pediram para ficar de olho em você.

- Meus irmãos... ?

- Óptimos rapazes. Pareciam realmente preocupados com você.

O mundo girava vertiginosamente. O mundo estava virado pelo avesso.

O cabineiro levou a mala até a extremidade do vagão e ajudou Tracy a descer os degraus. O trem começou a andar.

- Sabe para onde meus irmãos foram? - gritou Tracy.

- Não, dona. Eles pegaram um táxi assim que o trem parou.

Levando jóias no valor de um milhão de dólares.

 

Tracy seguiu para o aeroporto. Foi o único lugar em que pôde pensar. Se os homens pegaram um táxi, isso significava que não dispunham de transporte próprio e certamente haveriam de querer deixar a cidade o mais depressa possível. Ela recostou-se no banco do táxi, dominada por uma raiva intensa pelo que lhe haviam feito e com vergonha por ter sido enganada tão facilmente. Mas não podia negar que os dois eram bons. Realmente bons. Haviam-se mostrado extremamente convincentes. Tracy corou ao pensar como caíra no golpe antigo do tira mau e tira bonzinho.

Pelo amor de Deus, Dennis, não há necessidade de algemá-la. Ela não vai fugir.

Quando você vai parar de se comportar com um escoteiro? Depois que estiver no FBI há tanto tempo quanto eu...

O FBI? Eles eram provavelmente fugitivos da lei. Mas ela haveria de recuperar as jóias. Sofrera demais para se deixar enganar por dois vigaristas. Tinha de chegar ao aeroporto a tempo. Ela inclinou-se para a frente e disse ao motorista:

- Pode ir mais depressa, por favor?

 

Eles estavam parados na fila de embarque, no portão de partida. Tracy não os reconheceu imediatamente. O mais jovem, que dissera chamar-se Thomas Bowers, não mais usava óculos, os olhos haviam passado de azuis para cinzas, o bigode desaparecera. O outro homem, Dennis Trevor, que tinha uma vasta cabeleira preta, era agora completamente calvo, Mesmo assim, não havia possibilidade de equívoco. Eles não tiveram tempo para trocar as roupas. Já estavam quase passando pelo portão de embarque quando Tracy os alcançou.

- Esqueceram-se uma coisa - disse ela.

Os dois se viraram para fitá-la, surpresos. O mais jovem franziu o rosto.

 

- O que faz aqui? Um carro do serviço deveria estar na estação para recolhê-la.

O sotaque sulista não mais existia.

- Então por que não voltam e verificam se está mesmo lá? - sugeriu Tracy.

- Não podemos, pois já começamos a trabalhar em outro caso - explicou Trevor. - Temos de pegar este avião.

- Devolvam-me as jóias antes.

- Lamento, mas não podemos fazer isso - protestou Thomas Bowers. - É a prova. Nós lhe mandaremos um recibo.

- Não quero um recibo. Quero as jóias.

- Lamento, mas não podemos entregá-las - disse Trevor.

Eles já se achavam no portão. Trevor entregou os passes de embarque ao atendente. Tracy olhou ao redor, desesperada. Avistou um guarda do aeroporto parado ali perto. E chamou:

- Guarda! Guarda!

Os dois homens se entreolharam, espantados.

- Que diabo pensa que está fazendo? - sussurrou Trevor. - Quer que todos nós sejamos presos?

O guarda estava se aproximando.

- Pois não, madame? Algum problema?

- Não há problema nenhum - respondeu Tracy, jovialmente. - Estes dois cavalheiros maravilhosos encontraram algumas jóias valiosas que eu havia perdido e estão me devolvendo. Eu já pensava em procurar o FBI e pedir que as procurassem.

Os dois homens trocaram um olhar frenético.

- Eles sugeriram que seria melhor se um guarda me escoltasse até um táxi - acrescentou Tracy.

- Certamente. Terei o maior prazer.

Tracy virou-se para os dois homens.

- É seguro me entregarem as jóias agora. Este simpático guarda tomará conta de mim.

- Não há necessidade - protestou Tom Bowers. - Será melhor se nós...

- Oh, não, eu insisto! - disse Tracy. - Sei como é importante para vocês pegarem seu avião.

Os dois homens olharam para o guarda, depois um para o outro, impotentes. Não havia nada que pudessem fazer. Relutantemente, Tom Bowers tirou a bolsa de camurça de seu bolso.

- É isso! - Tracy pegou a bolsa, abriu-a, deu uma espiada. - Graças a Deus! Está tudo aqui.

Tom Bowers ainda fez uma última e desesperada tentativa:

- Por que não ficamos com as jóias, por segurança, até você...

- Isso não será necessário - disse Tracy, jovialmente.

Ela abriu sua bolsa de uso próprio, guardou as jóias, tirou duas notas de cinco dólares. Entregou uma a cada homem.

- Aqui está um pequeno símbolo da minha gratidão.

Todos os outros passageiros já haviam passado pelo portão. O atendente disse:

- Esta foi a última chamada. Vocês terão de embarcar agora, senhores.

- Outra vez obrigada - disse Tracy, radiante, já se afastando com o guarda. - É tão raro encontrar pessoas honestas actualmente...

 

Thomas Bowers - nascido Jeff Stevens - sentou-se junto à janela do avião e ficou olhando para fora, enquanto o aparelho descolava. Levantou o lenço para os olhos, enquanto seus ombros subiam e desciam.

Dennis Trevor - também conhecido como Brandon Higgins - sentado ao seu lado, fitou-o espantado.

- Ei, era apenas dinheiro! - disse ele. - Não há motivo para chorar.

Jeff Stevens virou-se para ele, as lágrimas escorrendo pelas faces. Espantado, Higgins, descobriu que Jeff se encontrava convulsionado pelo riso.

- Que diabo deu em você? - indagou Higgins. - Também não é motivo para rir.

Para Jeff, em, sim. A maneira como Tracy Whitney os enganara no aeroporto era o golpe mais engenhoso que ele já testemunhara. Um golpe por cima de um golpe. Conrad Morgan lhes dissera que a mulher era uma amadora. Por Deus, pensou Jeff, como seria se ela fosse uma profissional? Tracy Whitney era certamente a mulher mais linda que Jeff Stevens já vira. E esperta. Jeff orgulhava-se de ser o melhor vigarista em acção e ela conseguira passá-lo para trás. Tio Willie a teria adorado, pensou Jeff.

 

Foi tio Willie quem educou Jeff. A mãe de Jeff era a herdeira confiante de uma fortuna em implementos agrícolas, casada com um homem improvidente, com muitos projectos de enriquecer depressa que nunca davam certo. O pai de Jeff era encantador, moreno, bonito, persuasivo. Conseguiu acabar com a herança da esposa nos primeiros cinco anos de casamento. As recordações mais antigas de Jeff eram do pai e a mãe brigando por causa de dinheiro e das ligações extraconjugais do pai. Era um casamento amargo e o garoto resolvera: Nunca me casarei. Nunca.

O irmão do pai, tio Willie, possuía um pequeno parque de diversões ambulante. Sempre que passava perto de Marion, Ohio, onde os Stevens viviam, ele ia visitá-los. Era o homem mais jovial que Jeff já conhecera, transbordando de optimismo, e promessas de um amanhã róseo. Sempre dava um jeito de levar para o garoto presentes emocionantes. Ensinou a Jeff truques de mágica maravilhosos. Tio Willie começara como mágico num parque de diversões e assumira o comando quando a empresa falira.

Jeff tinha 14 anos quando a mãe morreu num acidente de automóvel. Dois meses depois, o pai de Jeff casou com uma garçonete de 19 anos, explicando:

- Não é natural um homem viver sozinho.

Mas o rapaz experimentou um profundo ressentimento, sentindo-se traído pela insensibilidade do pai.

O pai de Jeff arrumou um emprego de caixeiro-viajante e passava três dias por semana viajando. Uma noite, quando somente Jeff e a madrasta se encontravam na casa, ele foi acordado pelo barulho da porta de seu quarto se abrindo. E momentos depois ele sentiu um corpo macio e nu se estendendo ao lado do seu. Jeff sentou-se na cama, alarmado.

- Abrace-me, Jeffie - sussurrou a madrasta. Estou com medo da trovoada.

- Mas... mas não está trovejando - balbuciou Jeff.

- Pode trovejar. O jornal dizia que ia chover. - Ela comprimiu o corpo contra o dele. - Faça amor comigo, meu bem.

O garoto entrou em pânico.

- Está bem. Mas podemos fazer na cama de papai?

- Claro. - Ela riu. - Taradinho, hem?

- Irei para lá num instante.

Ela saiu da cama e foi para o outro quarto. Jeff nunca se vestira tão depressa em sua vida. Saiu pela janela e seguiu para Cimarron, Kansas, onde o parque de diversões de tio Willie estava se apresentando. Nunca olhou para trás.

Quando tio Willie perguntou por que ele fugira de casa, Jeff limitou-se a responder:

- Não me dou bem com minha madrasta.

Tio Willie telefonou para o pai de Jeff. Depois de uma longa conversa, ficou decidido que o garoto permaneceria no parque de diversões. Tio Wille prometeu:

- Ele terá aqui uma educação melhor do que qualquer escola poderia oferecer.

 

O parque de diversões era um mundo em si mesmo.

- Não promovemos um show de escola de catecismo - explicou tio Willie a Jeff. - Somos artistas da vigarice. Mas nunca se esqueça, filho, que não se pode enganar pessoas que não sejam gananciosas para começar. W.C. Fieids estava certo. Não se pode passar para trás um homem honesto.

Todos no parque se tornaram amigos de Jeff. Havia os homens da "fachada", que tinham as concessões, e a turma dos "bastidores", que comandava os espectáculos, como a mulher gorda e a dama tatuada, sem falar nos operadores das barracas em que se promoviam os jogos. O parque tinha a sua cota de moças núbeis e todas se sentiram atraídas pelo rapaz. Jeff herdara a sensibilidade da mãe e a beleza morena do pai. As moças disputaram quem aliviaria Jeff de sua virgindade. Sua primeira experiência sexual foi com uma linda contorcionista e durante anos ela foi a nota alta a que todas as outras mulheres tinham de corresponder.

Tio Willie providenciou para que Jeff trabalhasse em diversas funções no parque.

- Algum dia tudo isto lhe pertencerá - disse tio Willie ao rapaz. - A única maneira de você conservar é conhecer mais do parque que qualquer outra pessoa.

Jeff começou com o golpe dos seis gatos. Os fregueses pagavam para jogar bolas, tentando derrubar numa rede seis gatos feitos de lona, com uma base de madeira. O operador dirigindo a barraca mostrava como era fácil derrubar os gatos. Mas quando o freguês tentava, um "artilheiro" escondido por trás da lona da barraca levantava uma vareta para firmar as bases de madeira. Nem mesmo Sandy Koufax podia afogar aqueles gatos.

- Ei, você acertou muito baixo! - dizia o operador. - Tudo o que precisa fazer é jogar firme e forte.

Firme e forte em a senha. No momento em que o operador a dizia, o artilheiro retirava a vareta. Assim, o operador não tinha a menor dificuldade para derrubar o gato. Ele acrescentava então:

- Vê como é fácil?

 

Esse era o sinal para que o artilheiro tornasse a levantar a vareta. Havia sempre um caipira que queria mostrar à namorada risonha como tinha o braço forte e certeiro.

Jeff trabalhou também com a barraca dos pinos. Os fregueses tinham de jogar argolas de borracha sobre pinos numerados, dispostos em filas; se o total fosse de 29, ele ganharia um brinquedo caro. Mas o que o otário não sabia era que os pinos tinham números diferentes nas duas extremidades e que o operador podia esconder o número que daria a soma de 29, providenciando assim para que ele jamais ganhasse. E tio Willie disse um dia a Jeff.

- Você está indo muito bem, garoto. Sinto-me orgulhoso de você. Está pronto para ser promovido ao skillo.

Os operadores do skillo eram o máximo, convidados por todos os parques. Ganhavam mais dinheiro que qualquer outro, hospedavam-se nos melhores hotéis e guiavam carros vistosos. O jogo de skillo consistia de uma roda horizontal, com uma flecha equilibrada cuidadosamente em vidro e um pedaço de papel fino no centro. Cada secção era numerada; o freguês girava a roda, a agulha apontava para um número ao parar, esse número era tapado. O freguês pagava para girar outra vez a roda, outro número ficava tapado. O operador do skillo explicava que o freguês ganharia uma quantia fabulosa quando todos os números estivessem tapados. à medida que o freguês se aproximava da cobertura de todos os números, o operador encorajava-o a aumentar suas apostas. Ele olhava nervosamente ao redor e sussurrava:

- Não sou o dono deste jogo e gostaria que você vencesse. Se isso acontecer, talvez me dê uma pequena comissão.

O operador chegava mesmo a entregar sub-repticiamente ao freguês uma nota de cinco ou dez dólares, murmurando:

- Aposte isso por mim, está bem? Você não pode perder agora.

O otário sentia que conquistara um cúmplice. Jeff tornou-se um perito em ordenhar os fregueses. à medida que diminuíram os espaços abertos no tabuleiro e aumentavam as chances de ganhar, o excitamento se intensificava.

- Você não pode perder agora! - exclamava Jeff.

Ansiosamente, o jogador empenhava mais dinheiro. Por fim, quando só restava um espaço a preencher, o excitamento chegava ao clímax. O otário jogava todo o dinheiro que tinha, muitas vezes ia apressadamente a casa para buscar mais. O freguês nunca vencia, no entanto, porque o operador ou seu preposto dava um empurrão imperceptível na mesa e a flecha passava a parar invariavelmente no lugar errado.

Jeff aprendeu rapidamente os termos do parque. "Fisgar" significava arrumar os jogos para que os otários nunca pudessem ganhar. Os homens que se postavam na frente de uma barraca, anunciando seu espectáculo, eram conhecidos como "faladores". O falador ganhava dez por cento por aumentar a ponta... a "ponta" sendo uma multidão. "Cortiço" era um prémio dado. O "carteiro" era um tira que precisava ser subornado.

Jeff tomou-se um perito na "explosão". Quando os fregueses pagavam para assistir a um espectáculo, Jeff jogava a sua conversa:

 

- Senhoras e senhores, verão no interior desta barraca tudo por que pagaram e está anunciado no lado de fora. Mas... imediatamente depois que a moça na cadeira eléctrica terminar de ser torturada, o pobre corpo atormentado por 50 mil watts de electricidade, temos uma atracção extra que não tem absolutamente nada a ver com o espectáculo e não está anunciada no lado de fora. Lá dentro vocês verão algo realmente extraordinário, tão assustador e arrepiante que não nos atrevemos a mostrar do lado de fora, porque não deve ser visto por crianças inocentes ou mulheres impressionáveis.

E depois que os otários pagavam um dólar extra, Jeff os introduzia para verem uma mulher sem a parte do meio do corpo ou um bebé com duas cabeças... tudo, é claro, um jogo de espelhos.

Um dos jogos mais lucrativos do parque era a "corrida de camundongo". Um camundongo vivo era posto no centro de uma mesa, com uma tigela por cima. Havia dez buracos em torno do perímetro da mesa e o camundongo podia correr para qualquer um, quando a tigela fosse levantada. Cada freguês apostava num buraco numerado. O prémio ficava para quem acertasse o buraco para o qual o camundongo corria.

- Como fisga uma coisa assim? - perguntou Jeff a tio Willie - Usa camundongos treinados?

Tio Willie explodiu em gargalhadas.

- Quem tem tempo para treinar camundongos? Nada disso. A coisa é muito simples. O operador vê qual é o número em que ninguém apostou, põe um pouco de vinagre na ponta do dedo e toca na beira do buraco em que quer que o camundongo corra. E o camundongo seguirá invariavelmente para esse buraco.

Karen, uma jovem e atraente dançarina do ventre, introduziu Jeff no golpe da "chave".

- Depois de jogar a sua conversa na noite de sábado - disse-lhe Karen - chame alguns fregueses para um lado, um de cada vez, venda-lhes uma chave do meu trailer.

As chaves custavam cinco dólares. Por volta da meia-noite, uma dúzia ou mais de homens circulavam em torno do trailer. A esta altura, Karen já se achava num hotel na cidade, passando a noite com Jeff. Quando os otários voltavam ao parque na manhã seguinte, a fim de se vingarem, as barracas já tinham sido desmontadas e há muito que o pessoal caíra na estrada.

 

Jeff aprendeu muita coisa sobre a natureza humana durante os quatro anos seguintes. Descobriu como era fácil atiçar a ganância, como as pessoas podiam ser crédulas. Acreditavam em histórias inacreditáveis porque a ganância as levava a quererem acreditar. Aos 18 anos, Jeff era excepcionalmente bonito. Até mesmo a observadora feminina mais casual notava instantaneamente os seus olhos cinzas, bem espaçados, o corpo alto e forte, os cabelos pretos crespos. Os homens gostavam de sua inteligência e de seu bom humor. Até as crianças, como se falassem a uma criança receptiva nele, concediam-lhe a sua confiança imediata. As freguesas flertavam abertamente com Jeff, mas tio Willie não perdia a oportunidade de advertir:

- Fique longe das garotas das cidades, rapaz. Os pais delas são sempre os xerifes.

 

Foi a mulher do lançador de facas que levou Jeff a deixar o parque. Haviam acabado de chegar a Milledgeville, Geórgia, as barracas estavam sendo armadas. Um novo actor fora contratado, um atirador de facas siciliano conhecido como Grande Zorbini e sua atraente esposa loura. Enquanto o Grande Zorbini se encontrava no parque, preparando seu equipamento, a mulher convidou Jeff para uma visita a seu quarto no hotel na cidade.

 

- Zorbini estará ocupado durante o dia inteiro - ela disse a Jeff. - Vamos nos divertir um pouco.

Parecia bastante promissor.

- Dê-me uma hora e depois suba para o quarto - disse ela.

- Por que esperar uma hora? - indagou Jeff.

Ela sorriu e respondeu:

- É o tempo que precisarei para aprontar tudo.

Jeff esperou, a curiosidade aumentando. Quando finalmente chegou ao quarto do hotel, ela recebeu-o na porta inteiramente nua. Jeff agarrou-a, mas ela tirou sua mão e disse:

- Entre aqui.

Ele foi para o banheiro e ficou espantado com o que viu. Ela enchera a banheira com seis sabores de gelatina, misturada com água quente.

- O que é isso? - perguntou Jeff.

- É a sobremesa. Dispa-se, meu bem.

Jeff despiu-se.

- E agora entre na banheira.

Ele entrou na banheira e sentou. Foi a sensação mais incrível que já experimentara. A gelatina macia e escorregadia parecia preencher todas as fendas de seu corpo, massageando-o por completo. A loura também entrou na banheira.

- Agora - disse ela - o almoço.

A loura começou pelo peito de Jeff e foi descendo para a virilha, lambendo a gelatina pelo caminho.

- Hum... Você tem um gosto delicioso. Gosto mais do morango...

Entre a língua veloz da loura e a fricção da gelatina quente e viscosa, era uma experiência erótica incrível. No meio da coisa, porém, a porta do banheiro abriu-se bruscamente e o Grande Zorbini entrou. O siciliano lançou um olhar para a esposa e o aturdido Jeff, depois berrou:

- Tu sei una puttana! Vi ammazzo e duel Dove sono i miei coltelli?

Jeff não reconheceu qualquer das palavras, mas o tom era familiar. Enquanto o Grande Zorbini saia correndo do banheiro para buscar suas facas, Jeff pulou da banheira, o corpo parecendo um arco-íris com a gelatina multicolorida grudada, pegou suas roupas. Pulou pela janela, nu, desatou a correr pelo beco. Ouviu um grito atrás dele e sentiu uma faca passar zunindo perto de sua cabeça. Zing! Outra faca e depois ele se achava fora do alcance. Vestiu-se num bueiro, pondo a camisa e a calça por cima da gelatina viscosa. Foi para a estação rodoviária, onde pegou o primeiro ónibus que saía da cidade.

Seis meses depois estava no Vietname.

Cada soldado luta uma guerra diferente e Jeff saiu da experiência do Vietname com um profundo desprezo pela burocracia e um ressentimento permanente contra a autoridade. Passou dois anos numa guerra que nunca poderia ser vencida, ficou consternado com o desperdício de dinheiro, material e vidas, revoltado com a traição e fraude dos generais e políticos que executavam a sua prestidigitação verbal. Fomos levados como otários a uma guerra que ninguém quer, pensou Jeff. É uma vigarice. A maior vigarice do mundo.

Uma semana antes da baixa, Jeff recebeu a notícia da morte de tio Willie. O parque de diversões se dissolvera. O passado acabara. Estava na hora de ele começar a desfrutar o futuro.

 

Os anos subsequentes foram repletos de aventuras. Para Jeff, o mundo inteiro era um parque de diversões e as pessoas que continha eram os seus otários. Ele criava os seus próprios golpes. Colocava anúncios nos jornais oferecendo uma fotografia a cores do Presidente dos Estados Unidos por um dólar. Quando recebia o dólar, mandava para a vitima um selo postal com um retracto do presidente.

Pôs anúncios em revistas avisando ao público que restavam apenas 60 dias para o envio de cinco dólares; depois disso, seria tarde demais. O anúncio não especificava o que os cinco dólares comprariam, mas o dinheiro se despejou.

Por três meses Jeff trabalhou numa sala de caldeira, vendendo falsas acções de companhias petrolíferas pelo telefone.

Adorava barcos, e, quando um amigo ofereceu-lhe emprego numa escuna de partida para o Taiti, Jeff assinou um contrato como marujo.

A escuna era uma beleza, branca, com 165 pés, rebrilhando ao sol, todas as velas enfunadas. Tinha o de que de teca, pinheiro do Oregon no casco, um salão de jantar que acomodava 12 pessoas, uma cozinha moderna, com fogões eléctricos. Os alojamentos da tripulação eram no porão de vante. Além do comandante, do camareiro e do cozinheiro, havia cinco marujos. O trabalho de Jeff consistia em ajudar a içar as velas, polir as vigias de latão, subir pelo enfrechate para mastrear a vela principal. A escuna estava transportando oito passageiros.

- A pessoa que possui a escuna se chama Hollander - informou o amigo de Jeff.

Hollander era Louise Hollander, uma beldade loura de 25 anos, cujo pai possuía metade da América Central. Os outros passageiros eram seus amigos, aos quais os amigos de Jeff se referiam desdenhosamente como "jest set", usando o jest (pilhéria) para alterar a expressão "jest set".

Em seu primeiro dia no mar, Jeff trabalhava ao sol, polindo os metais no deque, quando Louise Hollander se aproximou e parou ao seu lado.

- Você é novo a bordo.

Ele levantou os olhos.

- Isso mesmo.

- Tem um nome?

- Jeff Stevens.

- Um nome bonito. - Ele não fez qualquer comentário. - Sabe quem eu sou?

- Não.

- Louise Hollander. Dona deste barco.

- Ou seja, estou trabalhando para você.

Ela presenteou-o com um sorriso lento.

- Isso mesmo.

- Pois então, se quer que eu mereça o dinheiro que me paga, é melhor deixar-me continuar a trabalhar.

E Jeff passara para o espeque seguinte.

 

Em seus alojamentos, à noite, os tripulantes depreciavam os passageiros e contavam piadas a seu respeito. Mas Jeff admitia para si mesmo que os invejava - por sua criação, instrução e vida fácil. Tinham famílias ricas e haviam cursado as melhores escolas. A sua escola fora tio Willie e o parque de diversões.

 

Um dos homens do parque fora professor de arqueologia, até ser expulso da universidade por roubar e vender relíquias valiosas. Ele e Jeff mantinham longas conversas. O professor incutira em Jeff um entusiasmo pela arqueologia.

- Pode-se ler todo o futuro da humanidade no passado - dizia o professor. - Pense nisso, filho. Há milhares de anos existiam pessoas como você e eu, acalentando sonhos, inventando histórias, vivendo as suas vidas, gerando os nossos ancestrais.

Os olhos do ex-professor assumiam uma expressão distante, enquanto continuava a falar:

- Cartago... é lá que eu gostaria de fazer uma escavação. Era uma grande cidade, muito antes de Cristo nascer, a Paris da antiga África. O povo tinha seus jogos, banhos, as corridas de carros. O Circo Máximo era tão grande quanto cinco campos de futebol americano.

Os olhos do rapaz se iluminavam de interesse.

- Sabe como Catão, o Velho, terminava seus discursos no Senado romano? Ele dizia: Delenda est Cartago. Cartago deve ser destruída. Seu desejo finalmente se consumou. Os romanos reduziram a cidade a escombros, mas voltaram 25 anos depois para construir uma grande cidade sobre as cinzas. Eu gostaria de poder levá-lo algum dia para fazermos uma escavação, meu rapaz.

O professor morrera de alcoolismo um ano depois, mas Jeff prometera a si mesmo que um dia se empenharia numa escavação. Cartago primeiro, pelo professor.

 

Na última noite, antes da escuna atracar em Taiti, Jeff foi chamado ao camarote de Louise Hollander. Ela usava um chambre de seda.

- Queria me falar, madame?

- Você é homossexual, Jeff?

- Não creio que isso seja da sua conta, Senhorita Hofiander, mas a resposta é não. Apenas sou exigente.

A boca de Louise Hollander se contraiu.

- Que tipo de mulheres você aprecia? Suponho que prostitutas.

- às vezes - disse Jeff, amavelmente. - Deseja mais alguma coisa, Senhorita Hollander?

- Desejo, sim. Oferecerei um jantar amanhã de noite. Gostaria de comparecer?

Jeff fitou-a em silêncio por um longo tempo antes de responder:

- Por que não?

E foi assim que começou.

 

Louise Hollander já tivera dois maridos antes de completar 21 anos. Seu advogado fez um acordo com o terceiro marido quando ela conheceu Jeff. Na segunda noite em que estavam ancorados na enseada de Papeete, enquanto passageiros e tripulantes iam para a terra, Jeff recebeu outro chamado ao camarote de Louise Hollander. Quando Jeff ali chegou, ela vestia um páreo de seda colorido, aberto no lado até a coxa.

- Estou tentando tirar isto, mas estou tendo dificuldade com o zíper - disse ela.

Jeff adiantou-se e examinou o páreo.

- Não tem nenhum zíper.

Ela virou-se para fitá-lo e sorriu.

- Sei disso. É justamente o meu problema.

 

Eles fizeram amor no tombadilho, onde o suave ar tropical lhes acariciava os corpos como um bálsamo. Depois, ficaram de lado, fitando-se. Jeff soergueu-se, apoiado no cotovelo, contemplou Louise de alto a baixo.

- Seu pai não é o xerife, não é mesmo?

Ela sentou, surpresa.

- Como?

- Você é a primeira garota de cidade com quem faço amor. Tio Willie costumava me avisar que os pais delas sempre eram os xerifes.

Depois disso, eles passavam todas as noites juntos. A princípio, os amigos de Louise acharam divertido. Ele é outro dos caprichos de Louise, pensaram. Mas ficaram frenéticos quando ela informou-os que tencionava casar com Jeff.

- Pelo amor de Deus, Louise, ele é um nada! Ele trabalhou num parque de diversões. Por Deus, é a mesma coisa que casar com um cavalariça. Ele é bonito... não se pode deixar de admitir. E tem um corpo fabuloso. Mas, fora do sexo, vocês não têm absolutamente nada em comum, querida.

- Louise, Jeff é para o café da manhã, não para um jantar.

- Você tem uma posição social a resguardar.

- Francamente, meu anjo, ele não vai se adaptar, não é mesmo?

Mas nada do que disseram os amigos pôde dissuadir Louise. Jeff era o homem mais fascinante que ela já conhecera. Descobrira que os homens extraordinariamente bonitos eram monumentalmente estúpidos ou insuportavelmente insípidos. Jeff era inteligente e divertido, o que fazia uma combinação irresistível.

Quando Louise falou em casamento, Jeff ficou tão surpreso quanto os amigos dela.

- Para quê casamento? Você já tem meu corpo. Não posso lhe dar qualquer coisa que já não possua.

- É muito simples, Jeff. Eu o amo. Quero partilhar o resto da minha vida com você.

O casamento fora uma idéia estranha, mas subitamente deixou de ser. Sob o verniz mundano e sofisticado de Louise Hollander havia uma garotinha vulnerável e perdida. Ela precisa de mim, pensou Jeff. A perspectiva de uma vida doméstica estável e filhos tornou-se subitamente atraente. Jeff tinha a impressão de que vivia correndo desde que podia se lembrar. Chegara o momento de parar.

Eles casaram na prefeitura de Taiti três dias depois.

 

Quando voltaram a Nova York, Jeff foi convocado ao escritório de Scott Fogarty, o advogado de Louise Hollander, um homem pequeno e frio, de lábios comprimidos.

- Tenho um documento aqui para você assinar - anunciou o advogado

- Que documento?

- É uma declaração. Diz simplesmente que no caso de dissolução de seu casamento com Louise Hollander...

- Louise Stevens.

- ...Louise Stevens, você não participará financeiramente de qualquer...

Jeff sentiu os músculos das mandíbulas se contraindo.

- Onde eu assino?

- Não quer que eu termine de ler?

- Não. Acho que você não entendeu. Não casei com ela pela porra do dinheiro.

- Por favor, Sr. Stevens! Eu apenas...

 

- Quer que eu assine ou não?

O advogado estendeu o documento para Jeff. Ele assinou e saiu furioso do escritório. A limusine e o motorista de Louise estavam à sua espera lá embaixo. Ao embarcar, Jeff teve de rir para si mesmo. Por que diabo estou tão furioso? Fui um vigarista durante toda a minha vida; quando me torno honesto pela primeira vez e alguém pensa que estou dando um golpe, eu me comporto como a porra de um professor de catecismo.

 

Louise levou Jeff ao melhor alfaiate de Manhattan, comentando:

- Você ficará fantástico num smoking.

E foi exactamente o que aconteceu. Antes do segundo mês de casamento, cinco das melhores amigas de Louise já haviam tentado seduzir o atraente recém-chegado a seu círculo. Mas Jeff ignorou-as. Estava determinado a fazer com que seu casamento desse certo. Budge Hofiander, o irmão de Louise, apresentou a proposta de Jeff para sócio do exclusivo Pilgrim. Club, de Nova York. Jeff foi aceite. Budge era corpulento, de meia-idade, ganhara esse apelido, que significava mover, na equipe de futebol americano de Harvard, pela reputação de ser um jogador que os oponentes não podiam deslocar. Possuía uma empresa de navegação, uma plantação de banana, ranchos de gado, um frigorifico e inúmeras outras empresas, mais do que Jeff podia contar. Budge Hofiander não era súbtil em esconder seu desdém por Jeff Stevens.

- Você é realmente abaixo de nossa classe, não é mesmo, meu velho? Mas não tem problema enquanto divertir Louise na cama. Gosto muito de minha irmã.

Jeff teve de recorrer a toda a sua força de vontade para se controlar. Não estou casado com este idiota. Casei com Louise.

Os outros sócios do Pilgrim Club se mostravam igualmente ofensivos. Mas achavam Jeff muito engraçado. Almoçavam no clube todos os dias e pediam a Jeff que lhes contasse histórias sobre os seus dias no parque de diversões. E Jeff fazia questão de contar histórias cada vez mais chocantes.

 

Jeff e Louise viviam numa casa de vinte cómodos, cheia de criados, no East Side de Manhattan. Louise tinha propriedades em Long Island e nas Bahamas, uma villa na Sardenha e um enorme apartamento na Avenue Foch, em Paris. Além do iate, ela possuía uma Maserati, um RolIs Corniche, um Lamborgbini e um Daimler.

É fantástico, pensou Jeff.

É sensacional, pensou Jeff.

É tedioso, pensou Jeff. E degradante.

Ele levantou-se uma manhã da cama de dossel do o XVIII, pôs um chambre Sulka e foi procurar Louise. Encontrou-a na sala do café da manhã.

- Tenho de arrumar um emprego - declarou Jeff.

- Pelo amor de Deus, querido, por quê? Não precisamos do dinheiro.

- Não tem nada a ver com dinheiro. Você não pode esperar que eu passe a vida toda refestelado, com alguém a me dar comida na boca. Preciso trabalhar.

Louise pensou por um momento.

- Está bem, meu anjo. Falarei com Budge. Ele possui uma firma de corretagem de valores. Você gostaria de ser um corrector, querido?

- Quero apenas começar a trabalhar - murmurou Jeff.

 

Ele foi trabalhar para Budge. Nunca antes tivera um emprego de horário regular. Vou adorar, pensou Jeff.

Ele detestou. Só continuou porque queria levar seu pagamento para a esposa.

- Quando vamos ter um filho? - ele perguntou a Louise numa tarde de domingo, depois de um almoço prolongado.

- Em breve, querido. Estou tentando.

- Pois então vamos para a cama. Tentemos de novo.

 

Jeff estava sentado à mesa reservada para seu cunhado e meia dúzia de outros lideres industriais da América, no Pilgrim Club. Budge anunciou:

- Acabamos de divulgar nosso relatório anual do frigorífico. - Os lucros aumentaram em 40 por cento.

- Por que não haveriam de aumentar? - disse um dos homens à mesa, rindo. - Você subornou os inspectores.

Ele virou-se para os outros à mesa e explicou:

- O velho Budge, sempre esperto, compra carne de terceira, obtém a classificação de carne de primeira e depois vende por uma fortuna.

Jeff ficou chocado.

- Mas as pessoas comem essa carne, pelo amor de Deus! E dão para seus filhos! Ele está brincando, não é mesmo, Budge?

Budge sorriu e gritou:

- Olhem só quem está querendo bancar o moralista!

 

Durante os três meses seguintes Jeff passou a conhecer muito bem os seus companheiros de mesa. Ed Zeller pagara um milhão de dólares em subornos para construir uma fábrica na Líbia. Mike Quincy, o líder de um conglomerado, era um trapaceiro que adquiria empresas e ilegalmente avisava aos amigos quando comprar e vender as acções. Alan Thompson, o homem mais rico à mesa, gabava-se da política de sua companhia:

- Antes de mudarem, a maldita lei, costumávamos despedir os velhos um ano antes de terem direito a suas pensões. E com isso poupávamos uma fortuna.

Todos os homens sonegavam impostos, cometiam fraudes de seguros, falsificações nas contas de representação e punham as amantes correntes na folha de pagamento, como secretárias ou assistentes.

Por Deus, pensou Jeff, eles são simplesmente vigaristas bem vestidos. Todos dão os seus golpes sujos.

As esposas não eram melhores. Agarravam tudo o que podiam com suas mãos gananciosas e enganavam os maridos abertamente. Elas estão no jogo da chave, pensava Jeff. Quando tentou explicar a Louise como se sentia, ela riu.

- Não seja ingénuo, Jeff. Você está gozando a vida, não é mesmo?

A verdade é que ele não sentia assim. Casara com Louise porque acreditava que ela precisava dele. Achava que os filhos mudariam tudo.

- Vamos ter um casal. Está na hora. Afinal, já estamos casados há um ano.

- Seja paciente, meu anjo. Fui ao médico e ele me disse que estou bem. Talvez você devesse fazer um checkup para descobrir se também está certinho.

 

Foi o que Jeff fez.

- Você não deve ter qualquer problema para gerar filhos saudáveis - garantiu o médico.

E nada acontecia.

 

O mundo de Jeff desmoronou na Segunda-Feira Negra. Começou pela manhã, quando foi ao armarinho de remédios de Louise para pegar uma aspirina. Encontrou uma prateleira cheia de vidros de pílulas anticoncepcionais. Um dos vidros estava quase vazio. Ao lado, inocentemente, havia um frasco com um pó branco e uma colherzinha de ouro. E isso foi apenas o começo do dia.

Ao meio-dia, Jeff se encontrava sentado numa poltrona profunda, no Pilgrim Club, esperando por Budge, quando ouviu dois homens por trás dele conversando.

- Ela jura que o pau do seu italiano tem mais de vinte e cinco centímetros de comprimento.

Houve uma risadinha.

- Louise, sempre gostou de pau grande.

Eles estão falando sobre outra Louise, disse Jeff a si mesmo.

- Provavelmente foi por isso que ela casou com aquele sujeito do parque de diversões. Mas Louise conta as histórias mais engraçadas a respeito dele. Não vai acreditar no que ele fez outro dia...

Jeff levantou e saiu do clube às cegas.

Estava dominado por uma raiva como nunca conhecera. Tinha vontade de matar. Queria matar o italiano desconhecido. Queria matar Louise. Com quantos outros homens ela se teria deitado durante o último ano? Riam dele sem parar. Budge, Ed Zeller, Mike Quiney e Alan Thompson. e suas esposas vinham-se divertindo enormemente à sua custa. E Louise, a mulher que ele quisera proteger. A reacção imediata de Jeff era pegar suas coisas e ir embora. Mas isso não era suficiente. Não tinha a menor intenção de permitir que os filhos da puta rissem por último.

Louise não estava quando Jeff chegou em casa naquela tarde. Pickens, o mordomo, informou:

- Madame saiu de manhã. Creio que tinha diversos compromissos.

Aposto que tinha mesmo, pensou Jeff. Deve estar fodendo com a porra do italiano com um pau de vinte e cinco centímetros. Oh, Deus!

Quando Louise chegou, Jeff já conseguira recuperar um controle firme e perguntou-lhe:

- Teve um bom dia?

- As coisas tediosas de sempre, querido. Uma hora no salão de beleza, compras... E como foi o seu dia, meu anjo?

- Foi interessante - respondeu Jeff, com toda a sinceridade. - Aprendi uma porção de coisas.

- Budge me disse que você está indo muito bem.

- Estou, sim. E muito em breve, estarei ainda melhor.

Louise afagou-lhe a mão.

- Meu marido brilhante. Por que não vamos cedo para a cama?

- Não esta noite - disse Jeff. - Estou com dor de cabeça.

 

Ele passou a semana seguinte fazendo seus planos. E começou pelo almoço no clube.

 

- Algum de vocês sabe qualquer coisa sobre as fraudes de computador?

- Por quê? - perguntou Ed Zeller. - Está planejando cometer alguma?

Houve uma explosão de risos.

- Estou falando sério - insistiu Jeff. - É um grande problema. Muitas pessoas estão interferindo nos computadores e roubando bilhões de dólares dos bancos, seguradoras e outras empresas. E a coisa se torna pior a cada dia.

- Parece matéria que você conhece muito bem - murmurou Budge.

- Conheci um homem que afirma ter inventado um computador que é à prova de interferência.

- E você quer mandar liquidá-lo por causa disso - gracejou Mike Quincy.

- Para dizer a verdade, estou interessado em levantar um dinheiro para financiá-lo. E pensei que algum de vocês poderia conhecer um pouco de computadores.

- Não, não sabemos. - Budge sorriu. - Mas conhecemos tudo sobre o financiamento a inventores. Não é mesmo, pessoal?

Houve outra explosão de risos.

Dois dias depois, no clube, Jeff passou por sua mesa habitual e explicou a Budge:

- Desculpe, mas não poderei me juntar a vocês hoje. Tenho um convidado para o almoço.

Depois que Jeff se afastou para outra mesa, Alan Thompson comentou, sorrindo:

- Provavelmente ele vai almoçar com a mulher barbada do circo.

Um homem grisalho e meio encurvado entrou no restaurante e foi conduzido à mesa de Jeff.

- Ei, aquele não é o Professor Ackerman? - indagou Mike Quiney.

- E quem é o Professor Ackerman?

- Nunca lê qualquer coisa além dos relatórios financeiros, Budge? Vernon Ackerman saiu na capa do Time no mês passado. É o presidente do Conselho Cientifico Nacional que assessora o nosso presidente. O cientista mais brilhante do país.

- Que diabo ele está fazendo com o meu caro cunhado?

Jeff e o professor se mantiveram absorvidos em profunda conversa durante todo o almoço. Budge e seus amigos foram ficando cada vez mais curiosos. Depois que o professor foi embora, Budge fez sinal para que Jeff viesse até sua mesa.

- Quem era aquele, Jeff?

Jeff assumiu uma expressão culpada.

- Oh... está se referindo a Vernon?

- Isso mesmo. Sobre o que estavam conversando?

- Nós... ahn... - Os outros quase que podiam observar o processo de pensamento de Jeff, enquanto tentava se esquivar à pergunta. - Eu... ahn... posso escrever um livro sobre ele. É uma personalidade muito interessante.

- Eu não sabia que você era escritor.

- Ora, acho que todos temos de começar algum dia.

 

Três dias depois Jeff teve outro convidado para o almoço. Desta vez foi Budge quem o reconheceu:

- Ei, aquele é Seymour Jarrett, presidente do Conselho de Administração da Jarrett Internacional Computer. Que diabo ele está fazendo aqui...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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