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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA SOMBRA DO PERIGO / J. R. Ward
NA SOMBRA DO PERIGO / J. R. Ward

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

1761, PAÍS ANTIGO
Xcor viu o pai ser morto apenas cinco anos depois da sua transição.
Tudo aconteceu à sua frente e, contudo, mesmo com tal proximidade, não teve como perceber o que teve lugar. A noite começou como qualquer outra, com a escuridão a abater-se sobre a paisagem de floresta e grutas, com as nuvens altaneiras a garantirem-lhe, e aos que cavalgavam consigo, uma proteção contra o luar. O grupo de soldados era composto por seis elementos: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E havia também o pai.
O Derramador de Sangue.
Anteriormente um elemento da Irmandade da Adaga Negra.
O que os levara a sair naquele serão fora o mesmo que os impelia a cada pôr-do-sol: procuravam minguantes, as armas desprovidas de alma do Ómega, que pretendia exterminar a raça dos vampiros. E encontravam-nos com frequência.
Claro que os sete não eram a Irmandade.
Ao contrário desse grupo de guerreiros secretos e louvados, o bando de bastardos, liderado pelo Derramador de Sangue, não passava de um acumular de soldados. Não tinham cerimónias. Não eram venerados pela populaça civil. Não eram alvo de histórias nem de louvores. A sua ascendência talvez fosse aristocrática, mas todos haviam sido rejeitados pelas famílias, já que tinham nascido com defeitos, ou fora de acasalamentos respeitáveis.
Nunca passariam de carne dispensável na guerra pela sobrevivência.
Claro que, mesmo sendo tudo verdade, aquele grupo representava a elite dos soldados, sendo os mais ferozes, os mais fortes, aqueles que mais vezes tinham dado provas do seu valor ao mestre mais duro de toda a raça: o pai de Xcor. Selecionados individualmente e escolhidos com sagacidade, tais machos eram mortíferos contra o inimigo e ignoravam os códigos da sociedade vampírica. Também ignoravam os códigos no que dizia respeito à matança: pouco lhes importava se a presa era um matador, um humano, um animal ou uma criatura lupina. Haveria sangue.
Tinham feito um único juramento: o seu mestre era o seu senhor e mais ninguém. Para onde ele ia, eles seguiam, e nada mais havia a dizer. Muito mais simples do que a idiotice da Irmandade - mesmo que Xcor fosse um potencial candidato pelo sangue que nele fluía, não lhe interessava ser um Irmão. Pouco lhe importava a glória, já que tal não acarretava a doce libertação que era a matança. Era melhor deixar tais tradições inúteis e rituais vãos para quem se recusava a empunhar outra coisa que não uma adaga negra.
Ele usaria a arma que estivesse disponível.
O pai também era assim.
O estrondo dos cascos abrandou e reduziu-se a silêncio quando os guerreiros saíram da floresta e chegaram a um enclave rodeado por carvalhos e arbustos. O fumo das lareiras caseiras chegava-lhes trazido pela brisa, mas havia algo mais que confirmava que tinham, por fim, encontrado a pequena povoação que buscavam. Bem lá em cima, sobre um penhasco íngreme, empoleirava-se um castelo fortificado, qual águia cujas garras eram os alicerces cravados na rocha.
Humanos. A guerrear-se entre si.
Tão enfadonho.
Mesmo assim, não havia como deixar de respeitar a edificação. Se Xcor alguma vez se reformasse, talvez massacrasse a dinastia ali residente e tomasse para si o baluarte.
Seria muito mais simples pilhar do que construir.
- Para a aldeia - ordenou o pai. - Avancemos para os divertimentos.
Dizia-se que havia ali minguantes, tendo os monstros pálidos se imiscuído entre os aldeões que haviam delineado talhões e plantado casas de pedra à sombra do castelo.
Era típico da estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se numa povoação, dominar os machos um a um, matar ou vender as mulheres e as crianças, desaparecer com armas e cavalos, e passar ao povoado seguinte em maior número.
Nesse aspeto, Xcor assemelhava-se ao inimigo: quando terminava um combate levava sempre consigo o que podia, antes de partir a caminho da batalha seguinte. Todas as noites, o Derramador de Sangue e seus soldados avançavam por aquilo a que os humanos chamavam de Inglaterra, e quando chegavam ao extremo do território dos Escoceses davam meia volta e regressavam para sul, cada vez mais para sul, até que o calcanhar de Itália os obrigava a recuar. Depois voltavam a percorrer todos esses muitos quilómetros. E outra vez. E mais outra.
- Deixamos ali as nossas provisões - declarou Xcor, apontando para o tronco grosso de uma árvore que tombara sobre um ribeiro.
Nada se ouviu, além do som do cabedal a ranger e da fungadela ocasional por parte dos garanhões, enquanto se procedeu à transferência dos suprimentos modestos. Quando tudo ficou armazenado por baixo do carvalho abatido voltaram a montar e juntaram-se com os cavalos de raça - os únicos bens que possuíam, para além das armas. Xcor não via qualquer utilidade nos objetos belos ou confortáveis - mero peso que servia apenas para atrasar. Agora, um cavalo forte e uma adaga bem equilibrada? Isso, sim, era inestimável.
Os sete não fizeram qualquer tentativa de abafar o estrondear dos cascos das montadas. Contudo, não houve gritos de guerra. Tal seria um desperdício de energia, já que o inimigo não precisava de grande incentivo para os vir receber.
Um humano ou dois espreitaram à porta, à laia de boas-vindas, voltando rapidamente a trancar-se nas suas casas. Xcor ignorou-os. Em vez disso perscrutou as atarracadas habitações de pedra, em busca de formas bípedes pálidas como assombrações e que tresandavam a cadáveres besuntados com melaço.
O pai aproximou-se dele e ofereceu-lhe um sorriso maléfico.
- Talvez mais logo desfrutemos dos frutos destes pomares.
- Talvez - murmurou Xcor, com o garanhão a abanar a cabeça. A bem da verdade, não estava muito interessado em levar fêmeas para a cama ou em obrigar machos a submeterem-se, mas o seu progenitor não admitia recusas, nem sequer no que dizia respeito aos caprichos do prazer.
Usando sinais gestuais, Xcor orientou três dos elementos do bando para a esquerda, onde se encontrava uma pequena estrutura com o telhado inclinado encimado por uma cruz. Ele e os outros seguiriam para a direita. O pai faria o que lhe aprouvesse. Como sempre.
Obrigar os garanhões a manter-se a passo era uma tarefa hercúlea mesmo para os braços mais poderosos, mas ele estava habituado a tal desafio e permaneceu hirto na sela. Sombrios, os olhos atravessaram as sombras lançadas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de matadores que apareceu de trás do ferreiro estava bem armado.
- Cinco - rosnou Zypher. - Mas que bela noite.
- Três - corrigiu Xcor. - Dois ainda são humanos... Embora matar esse par também seja um prazer.
- Com qual ficarás, meu senhor? - perguntou o camarada com uma deferência conquistada e não recebida como parte de um qualquer direito de nascença.
- Os humanos - indicou Xcor, chegando-se à frente para se preparar para o momento em que desse liberdade ao garanhão. - Se houver mais minguantes, isso vai atraí-los.
Incitou a grande montada e cingiu-se mais à sela, exibindo um sorriso quando os minguantes, de cotas de malhas e armas empunhadas, se mantiveram firmes. Os dois humanos ao lado deles, contudo, não ficariam tão desafiantes. Embora o par apresentasse os mesmos aprestos de combate, dariam meia volta e fugiriam à primeira vista das presas, assustados como bestas agrícolas com um tiro de canhão.
Foi por isso que cortou subitamente para a direita após três únicas galopadas. Atrás da cabana do ferreiro puxou as rédeas e saltou do garanhão, uma besta selvagem que se revelava obediente quando o cavaleiro desmontava, pelo que esperaria...
Uma fêmea humana irrompeu vinda da porta das traseiras, com a camisa de dormir a criar um raio brilhante nas trevas enquanto procurava equilibrar-se na lama. Assim que o viu gelou, aterrorizada.
Era uma reação lógica: Xcor tinha o dobro do tamanho dela, se não fosse três vezes maior e, ao contrário da mulher, não estava vestido para dormir mas sim trajado para a guerra. Quando a mão dela subiu até ao pescoço, ele cheirou o ar e captou-lhe o aroma. Mmm, talvez o pai tivesse razão em querer desfrutar do pomar...
Ao pensar nisso soltou um rosnido que levou os pés da mulher a darem início a uma fuga desesperada. Ver a evasão libertou o predador em Xcor. Com a sede de sangue a revolver-lhe as entranhas, recordou-se de que havia semanas que se alimentara de um membro da sua espécie, e embora aquela rapariga fosse humana, seria suficiente para aquela noite.
Infelizmente, naquele momento não haveria tempo para tal distração - embora não houvesse dúvida de que mais tarde o pai a capturaria. Se Xcor precisasse de sangue para se nutrir, iria obtê-lo com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Virou as costas à fugitiva, firmou os pés e desembainhou a sua arma de eleição: embora as adagas fossem eficazes, ele preferia a gadanha, uma arma de cabo comprido e modificada para a bainha que tinha presa às costas. Era mestre na utilização daquele peso e sorriu enquanto trespassava o vento com a lâmina curva e temível, à espera de fazer as vezes de rede com o par de peixes que de certeza iriam nadar...
Ah, sim, como era agradável ter razão.
Na sequência imediata de um clarão forte e de um estampido na estrada principal, os dois humanos apareceram aos gritos atrás do ferreiro, como se fossem perseguidos por salteadores.
Mas tinham-se enganado, não era verdade? O salteador aguardava ali.
Xcor não gritou, não praguejou, nem sequer rosnou. Iniciou uma corrida com a gadanha, a arma equilibrada entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas cobriam a distância. Bastou vê-lo para que os humanos tentassem travar, com os braços abertos à procura de equilíbrio, quais asas de patos que pousam na água.
O tempo abrandou quando chegou ao duo, com a arma preferida a descrever um grande círculo à altura do pescoço dos humanos.
Foram decapitados com um único golpe limpo, os rostos surpreendidos a deixarem-se ver e a desapareceram à medida que a parte decepada do corpo rodopiava, deixando o sangue a jorrar para salpicar o peito de Xcor. Na ausência da coroa craniana, as partes inferiores dos corpos tombaram com uma bizarra graciosidade fluida, ficando inanimados numa confusão de membros.
Agora sim, gritaria.
Dando meia volta, Xcor firmou as botas de cabedal na lama, inspirou bem fundo e libertou o fôlego num brado enquanto girava a gadanha à sua frente, com o aço tingido de vermelho esfomeado por mais cor. Embora as presas tivessem sido meros humanos, o furor da matança era melhor do que um orgasmo, e sentia a consciência de ter ceifado vidas e deixado cadáveres atrás de si a percorrê-lo como hidromel.
Assobiou entre dentes para chamar o garanhão, que de imediato lhe obedeceu. Com um salto voltava à sela, a gadanha erguida na mão direita enquanto manobrava as rédeas com a esquerda. Lançou a montada a galope, percorreu um estreito carreiro de terra e surgiu no meio da batalha.
Os companheiros bastardos estavam no auge da luta, com as espadas a retinir e os gritos a preencherem a noite à medida que os adversários se enfrentavam. E, tal como Xcor previra, outra meia dúzia de minguantes apareceu montada em garanhões de raça, quais leões que pretendem defender o território.
Xcor abateu-se sobre os inimigos que surgiam, prendendo as rédeas na sela e brandindo a gadanha enquanto o garanhão corria de dentes arreganhados na direção dos outros cavalos. Saltou sangue negro e partes de corpos à medida que retalhava os oponentes, com o vampiro e o cavalo unos no seu ataque.
Ao trespassar outro matador com o seu aço, cortando-o ao meio ao nível do peito, tinha noção de que nascera para aquilo, que este era o melhor e mais nobre uso que lhe poderiam dar no seu tempo na terra. Era um assassino e não um defensor.
Não lutava pela sua raça, mas sim por ele próprio.
Tudo acabou demasiado rápido, com a neblina noturna a envolver os minguantes tombados que se contorciam em poças de sangue negro. Eram poucos os ferimentos entre os elementos do seu bando. Throe tinha um lanho no ombro, feito pelo embate de algum tipo de lâmina na carne. E Zypher coxeava, com uma mancha vermelha que lhe descia a perna e chegava à bota. Nenhum deles foi abrandado ou parecia de todo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e devolveu a gadanha à bainha. Ao sacar da adaga de aço para começar a trespassar os matadores, lamentou ter de devolver o inimigo ao seu criador. Queria mais para combater e não menos...
Um grito lancinante fê-lo virar a cabeça. A humana de camisa de noite corria pela estrada de terra batida da aldeia, o corpo pálido a toda a brida, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor cavalgava o garanhão, com o corpo imenso do Derramador de Sangue a inclinar-se para o lado na sela quando chegou junto à fêmea. A bem da verdade não era de todo uma corrida, e quando a flanqueou agarrou-a com o braço e atirou-a sobre o regaço.
Não se deteve, nem sequer abrandou depois da captura, mas houve movimento: o garanhão a galope e a humana a debater-se, o pai de Xcor conseguiu, mesmo assim, morder o pescoço magro com as presas, prendendo-se ao pescoço da mulher como se a pretendesse imobilizar com os caninos.
E ela teria morrido. De certeza que morreria.
Acaso o Derramador de Sangue não morresse primeiro.
Do nevoeiro em volutas surgiu uma figura espectral, quase como se ela se tivesse formado a partir dos filamentos de humidade que pairavam no ar. E assim que Xcor viu a imagem semicerrou os olhos e confiou no seu faro apurado.
Parecia ser uma fêmea. Da sua espécie. Com vestes brancas.
E o cheiro recordou-o de algo que não era capaz de identificar.
Ela estava diretamente no caminho do pai, mas parecia não estar de todo preocupada com o cavalo ou com o guerreiro sádico que em breve estaria em cima dela. O progenitor de Xcor, contudo, ficou arrebatado com ela. Assim que a viu largou a mulher humana, como se esta não passasse de um osso de cordeiro já limpo de carne.
Aquilo estava errado, pensou Xcor. Por sua fé, era um macho de ação e poderoso, de todo alguém que se acobardasse perante um membro do sexo mais fraco... mas tudo no seu corpo o alertava para o facto de aquela entidade etérea ser perigosa. Mortífera.
- Ei! Pai! - chamou. - Vira-te!
Xcor assobiou para chamar o garanhão, que obedeceu de imediato. Saltando para a sela, bateu com os calcanhares nos flancos da montada e lançou-se numa corrida para intercetar o caminho do pai, levado por um pânico bizarro.
Não foi a tempo. O pai chegou à fêmea, que se acocorara lentamente.
Pelas Parcas, ela ia saltar para...
Num movimento coordenado, a fêmea elevou-se a agarrou a perna do pai de Xcor, servindo-se dela como forma de saltar para o cavalo. Depois, agarrando-se ao peito sólido do Derramador de Sangue, saltou para o outro lado e levou o macho consigo até ao chão, com o ímpeto poderoso a pôr em causa tanto o seu género como a sua natureza etérea.
Não era um fantasma, mas sim de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor se preparava para lançar o garanhão contra os dois, a fêmea soltou um grito que não era, de todo, feminino: mais próximo do seu próprio grito de guerra, o brado abafou o ribombar dos cascos e os sons do seu bando de bastardos que se preparava para responder àquele ataque inesperado.
No entanto, não havia necessidade imediata de interceder por ele.
O pai, apesar do choque de ter sido arrancado da sela, rolou sobre as costas e desembainhou a adaga, com uma expressão animalesca no rosto. Xcor praguejou e deteve o salvamento, pois era certo que o progenitor assumira o controlo. O Derramador de Sangue não era o tipo de homem que se ajudasse - já espancara Xcor por isso, uma lição aprendida da maneira mais dura, mas que seria sempre lembrada.
Mesmo assim, Xcor desmontou e ficou preparado, para o caso de haver mais daquele género de Valquírias na floresta.
E foi essa proximidade que lhe permitiu ouvi-la a dizer claramente um nome.
- Vishous.
A fúria do pai acompanhou-o na breve confusão que se seguiu. Antes que pudesse retomar a autodefesa, ela começou a brilhar com o que seria garantidamente uma luz ímpia.
- Pai! - bradou Xcor enquanto corria em frente.
Mas foi demasiado tarde. O contacto estabeleceu-se.
Em torno do rosto barbado do progenitor irromperam chamas que lhe envolveram a forma corpórea como se lambessem feno seco. A fêmea saltou para trás com a mesma graciosidade com que o tinha derrubado e observou-o a tentar abafar freneticamente o fogo, embora em vão. Gritou na noite enquanto ardia vivo, com as roupas de cabedal a não lhe protegerem a pele e os músculos.
Não havia como se aproximar das chamas e Xcor parou, erguendo o braço à frente e curvando-se para se afastar do calor exponencialmente mais quente do que deveria.
Entretanto, a fêmea erguia-se sobre o corpo que se contorcia e esperneava... com o brilho alaranjado tremeluzente a iluminar-lhe o rosto belo e cruel.
A cabra estava a sorrir.
Foi então que ergueu o rosto na direção dele. Quando Xcor avistou devidamente as feições, começou por se recusar a acreditar no que lhe era mostrado. Contudo, o brilho das chamas não mentia.
Fitava uma versão feminina do Derramador de Sangue. O mesmo cabelo preto, tez pálida e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Mais ainda, a mesma luz vingativa nos olhos quase violeta, sendo o arrebatamento e a satisfação de provocar a morte uma combinação que Xcor conhecia bem.
A fêmea desapareceu instantes depois, dissolvendo-se no nevoeiro de uma forma diferente da maneira como a sua espécie se desmaterializava, indo-se como uma nuvem de fumo que vai desaparecendo palmo a palmo.
Assim que pôde, Xcor correu para junto do pai, mas não havia nada a salvar... praticamente nada a enterrar. Caindo de joelhos à frente dos ossos fumegantes e do fedor, sentiu um momento de fraqueza deplorável: as lágrimas afloraram-lhe os olhos. O Derramador de Sangue fora um animal bruto mas, enquanto único descendente masculino reconhecido, Xcor e ele tinham sido chegados... Com efeito, pertenciam-se um ao outro.
- Por tudo quanto é sagrado - exclamou Zypher, num tom rouco. - O que foi aquilo?
Xcor pestanejou com força antes de lançar um olhar furioso sobre o ombro.
- Ela matou-o.
- Sim. E de que maneira.
À medida que o bando de bastardos se chegava a ele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Levantando-se rigidamente, fez menção de chamar o cavalo, mas tinha a boca demasiado seca para assobiar. O seu pai... desde há muito o seu nemésis, mas também a sua âncora, estava morto. Morto. E tudo acontecera tão depressa, demasiado depressa.
Morto por uma fêmea.
O pai desaparecera.
Assim que o conseguiu, olhou para cada um dos machos à sua frente, os dois a cavalo, os dois a pé, o que estava à sua direita. Com uma consciência pesada, percebeu que o destino que os esperava seria ditado por aquilo que fizesse naquele momento, ali onde se encontrava.
Não se preparara para aquilo, mas não se esquivaria ao que tinha de fazer:
- Ouçam bem, pois só o direi uma vez. Ninguém vai comentar o que aqui se passou. O meu pai morreu em combate com o inimigo. Queimei-o para lhe prestar homenagem e para o manter comigo. Jurem-me que assim será.
Os bastardos com quem há tanto tempo vivia e lutava juraram, e quando o som das vozes graves se perdeu na noite, Xcor baixou-se e passou com os dedos pelas cinzas.
Levando as mãos ao rosto, deixou a fuliginosa desde as faces até às veias grossas que lhe subiam ambos os lados do pescoço - e depois agarrou no crânio duro que era tudo o que lhe restava do pai. Erguendo os restos fumegantes e calcinados, tomou como seus os soldados que tinha à frente.
- Agora sou o vosso único senhor. Unam-se a mim neste momento ou sejam meus inimigos. O que dizem?
Não houve hesitação. Os machos caíram sobre um joelho, desembainharam as adagas e soltaram o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra aos pés de Xcor.
Xcor fitou as cabeças baixas e sentiu um manto a pousar-lhe sobre os ombros.
O Derramador de Sangue estava morto. Sem vida tornava-se uma lenda que começava naquela noite.
E tal como era correto, o filho ocupava agora o lugar do progenitor, comandando aqueles soldados que não serviriam Wrath, o rei que não governava, nem a Irmandade, que não se dignava a descer àquele nível... mas unicamente Xcor.
- Seguimos na direção de onde veio a fêmea - declarou. - Vamos encontrá-la, nem que demore séculos, e ela vai pagar pelo que fez esta noite. - Xcor assobiou então pelo garanhão. - Vai pagar com a pele por esta morte.
Saltando para o cavalo, pegou nas rédeas e levou a grande montada para a noite, com o seu bando de bastardos a segui-lo em formação, preparados para morrer por ele.
Ao estrondearem para longe da aldeia, enfiou o crânio do pai por dentro da camisa de combate de cabedal, por cima do coração. A vingança seria dele. Nem que morresse por isso.

 

 

 

 

 

 

Capítulo 1
PRESENTE
HIPÓDROMO AQUEDUCT, QUEENS, NOVA IORQUE
-Quero fazer-te um broche.
O doutor Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que falara com ele. Não era de todo a primeira vez que ele ouvia essa combinação de palavras,
e a boca que as tinha proferido ostentava certamente silicone quanto bastasse para garantir um bom resultado. Mas não deixou de ser uma surpresa.
Candace Hanson sorriu-lhe e endireitou o chapéu Jackie O. com a mão de unhas arranjadas. Ao que parecia, ela decidira que a combinação de dama e rameira era atraente
- e talvez para alguns homens fosse.
Que raios, numa outra altura da vida, seria provável que ele aceitasse a proposta, segundo a teoria do e-porque-não? Agora? Era mais um nem-por-isso.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo de Manny, ela chegou-se à frente, mostrando-lhe um par de seios que não só desafiavam a gravidade, como a viravam do
avesso, insultavam-lhe a mãe e mijavam-lhe nos sapatos.
- Sei onde podemos ir.
Apostava que sim.
- A corrida está quase a começar.
Candace fez beicinho. Ou talvez fosse mesmo assim que os lábios pós-injeção tinham ficado. Cristo, há uma década, provavelmente teria ficado renovada; agora, os
anos concediam-lhe uma pátina de desespero - a par do normal processo de envelhecimento que ela combatia com a tenacidade de um pugilista.
- Então depois.
Manny não lhe deu resposta e desviou-se, sem saber ao certo como ela conseguira entrar na zona dos proprietários. Devia ter sido durante a pressa de voltar para
ali, depois de os animais terem sido selados na baia - e não havia dúvida de que ela estaria habituada a entrar em sítios onde, para todos os efeitos, não seria
autorizada a permanecer. Candace era uma daquelas melgas sociais de Manhattan que estavam a um chulo de distância de se tornarem prostitutas e, em muitos aspetos,
ela era como qualquer outra vespa - se não ligássemos ao incómodo, acabava por ir pousar noutro sítio qualquer.
Ou, melhor dizendo, em qualquer outra pessoa.
Levantando o braço para a impedir de se aproximar mais, Manny inclinou-se sobre o parapeito do seu camarote de proprietário e esperou que a sua menina fosse levada
para a pista. Encontrava-se no exterior, o que não era problema: ela preferia não estar no meio da confusão e andar mais um pouco nunca a incomodara.
O Aqueduct de Queens, Nova Iorque, não se encontrava ao nível de prestígio de Belmont ou Pimlico, nem do pai venerável de todos os hipódromos, Churchill Downs. Claro
que também não era de se deitar fora. As instalações tinham praticamente três quilómetros de terra, e também uma pista de relva e outra mais curta. A capacidade
total de espetadores andaria à volta dos noventa mil. A comida não era grande coisa, mas ninguém lá ia para comer, e tinham lugar boas corridas, como a daquele dia:
a Wood Memorial Stakes tinha um acumulado de prémios de $750 000 e, como se realizava em abril, era um bom teste para os contendores da Triple Crown...
Ah, lá estava ela. Lá estava a sua menina.
Quando os olhos de Manny se prenderam a GloryGlo-ryHallelujah, o barulho da multidão, a luz forte do dia e a linha ondulante dos outros cavalos desapareceram. Só
via a sua magnífica poldra preta, com a pelagem a refletir a luz do sol e a cintilar, as pernas extremamente elegantes a fletirem-se, os cascos delicados a curvarem-se
ao sair da terra da pista e depois a voltarem a assentar. Quase a dezassete mãos-travessas de altura, o jóquei parecia um mosquito enfezado às costas do animal,
e tal diferença de tamanho era bem representativo da divisão de poder. Ela deixara-o bem claro logo a partir do início do treino: até podia tolerar os incómodos
humanos, mas eles só lá estavam à boleia. Quem mandava era ela.
O temperamento algo controlador da égua já lhe custara dois treinadores. O terceiro que tinham agora? O tipo parecia um bocado frustrado, mas isso era apenas a sensação
de controlo a ser escoiceada: os tempos de Glory eram espantosos - só não tinham nada que ver com ele. E Manny não se preocupava de todo com o ego inchado de homens
que ganhavam a vida a mandar em cavalos. A menina dele era uma lutadora e sabia o que fazia, pelo que não tinha problemas em deixá-la à vontade e divertir-se a vê-la
esmagar a competição.
Quando começou a segui-la com os olhos lembrou-se do papalvo a quem a comprara havia pouco mais de um ano. Tendo em conta a ascendência da égua, os vinte mil tinham
sido uma pechincha mas, ao mesmo tempo, eram uma fortuna quando se pensava no temperamento e no facto de não ser claro se obtivera permissão para competir. Fora
uma poldra fogosa à beira de ser retirada das corridas - ou pior, transformada em alimento para cão.
Mas ele estivera certo. Era uma égua espetacular, conquanto lhe dessem rédea livre e lhe permitissem dominar o espetáculo.
Quando o alinhamento se aproximou do portão, alguns dos cavalos começaram a bater as patas, mas a menina dele estava firme como uma rocha, como se soubesse como
era inútil desperdiçar energia com aquelas tretas pré-corrida. Gostava também das probabilidades, apesar de estarem na linha da frente, pois o jóquei que ela tinha
às costas era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse aspeto, era mais responsável pelo êxito do que os treinadores. A filosofia que seguia com
a égua era garantir que ela via o melhor percurso e depois deixá-la escolher e seguir em frente.
Manny levantou-se e agarrou o peitoril de ferro pintado que tinha à sua frente, juntando-se à multidão que se erguera dos lugares e levara aos olhos um sem fim de
binóculos. Ficou satisfeito quando sentiu o coração aos pulos, pois salvo se estivesse no ginásio, nos últimos tempos era quase como se estivesse morto. Ao longo
do último ano, a vida acarretara uma dormência terrível, e talvez em parte fosse por isso que aquela poldra era tão importante.
Talvez ele não tivesse mais nada além da égua.
Não que pretendesse ir por aí.
No portão tudo era acelerado: não se desperdiça tempo quando se enfiam nas minúsculas caixas metálicas quinze cavalos excitados com pernas como varas e glândulas
suprarrenais a cuspir como morteiros. No espaço de um minuto, a pista foi fechada e os auxiliares corriam para as vedações.
Batimento cardíaco.
Sino.
Pum!
Os portões abriram-se, a multidão bradou e os cavalos saltaram em frente como se tivessem sido disparados de canhões. As condições estavam perfeitas. Seco. Fresco.
Era uma corrida rápida.
Não que a menina dele se importasse. Se fosse preciso, corria em areias-movediças.
Os puros-sangues galopavam e o som coletivo dos cascos e o ritmo da voz locutor elevavam a energia nas bancadas a um nível extático. Manny, no entanto, permaneceu
calmo, mantendo as mãos firmes no peitoril à sua frente e os olhos na pista, à medida que os animais faziam a primeira curva numa confusão de lombos e caudas.
O ecrã grande mostrava-lhe tudo o que precisava de ver. A sua poldra era a penúltima, com todos os animais a correrem desenfreados enquanto ela parecia trotar -
que raios, nem tinha o pescoço estendido. Claro que o jóquei estava a desempenhar bem a sua tarefa, afastando-a da vedação, dando-lhe a opção de cavalgar pela zona
externa da confusão, ou de a atravessar quando se sentisse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela faria. Ia cortar por entre os outros cavalos como se fosse um buldózer.
Era assim que ela funcionava.
E, tal como esperado, quando surgiu a reta, ela começou a dar ares da sua graça. Baixou a cabeça, estendeu o pescoço e a passada começou a alargar-se.
- Assim é que é - murmurou Manny. - Vai-te a eles, menina.
Quando Glory entrou na pista atulhada transformou-se num raio a ultrapassar os outros corredores, com um rebentar de velocidade tão poderoso que se ficava com a
noção de que fora propositado. Não bastava vencê-los a todos, tinha de ser feito nas últimas centenas de metros, arrasando os desgraçados no último momento.
Manny soltou um riso rouco. Ela era exatamente o seu tipo de mulher.
- Cristo, Manello, olha só para ela.
Manny assentiu sem olhar para o indivíduo que falara com ele, pois na frente do grupo desenrolava-se algo inusitado: o potro à cabeça perdeu o ímpeto, ficando para
trás à medida que as pernas perdiam a força. Em resposta, o jóquei incitou-o, vergastando-lhe o lombo - reação que deu tanto resultado como alguém a praguejar com
um automóvel cujo depósito estivesse vazio. O potro em segundo lugar, um grande animal castanho com mau feitio e uma passada tão grande como um campo de futebol,
aproveitou de imediato o abrandamento, com o jóquei a permitir que o cavalo tivesse toda a liberdade.
O par avançou taco a taco durante breves instantes, até que o cavalo castanho assumisse o controlo da corrida. Claro que isso não iria durar muito tempo. A menina
de Manny escolheu o momento ideal para passar por entre um grupo de três animais e colar-se à traseira do líder como um autocolante.
Pois é, Glory estava como peixe na água, de orelhas coladas à cabeça e dentes arreganhados.
Ia dar cabo do desgraçado. E era impossível não extrapolar para o primeiro sábado de maio e o dérbi do Kentucky...
Tudo aconteceu muito depressa.
Chegou tudo ao fim... num abrir e fechar de olhos.
O potro foi contra Glory numa pancada lateral propositada, com o impacto a atirá-la contra o rail. A menina dele era grande e forte, mas não estava à altura de um
embate como aquele, pelo menos quando seguia a mais de sessenta quilómetros por hora.
Durante uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela seria capaz de recuperar. Apesar da forma como se desviara e atrapalhara, esperava que ela se equilibrasse
e desse àquele sacana uma lição de boas maneiras.
O problema foi ter caído, mesmo à frente dos três cavalos que ultrapassara.
A carnificina foi imediata, com os cavalos a desviarem-se bruscamente para evitar o obstáculo que tinham pelo caminho, e os jóqueis a agarrarem-se com força às rédeas
curtas na esperança de se manterem em cima das montadas.
Todos conseguiram. Exceto Glory.
Enquanto a multidão arquejava, Manny saltou do camarote e depois passou por cima de pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Por cima do rail, para a terra.
Correu até ela, com os anos de atletismo a levarem-no a uma velocidade vertiginosa em direção ao espetáculo devastador.
Estava a tentar levantar-se. Louvado fosse o seu enorme coração destemido, estava a debater-se para se levantar da terra, com os olhos fitos no grupo de corredores,
como se ela se estivesse borrifando para o facto de estar ferida; só queria apanhar os que a tinham deixado ficar para trás.
Tragicamente, a pata dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, essa direita anterior contorceu-se abaixo do joelho, e Manny não precisou dos seus anos
enquanto cirurgião ortopédico para perceber que ela estava em sarilhos.
Grandes sarilhos.
Quando se aproximou da égua, o jóquei estava lavado em lágrimas.
- Doutor Manello, eu tentei... ai, meu Deus...
Manny travou na lama e procurou-lhe as rédeas enquanto os veterinários se aproximavam e se erguia um biombo à volta do drama.
Quando os três homens de trajes oficiais se chegaram à poldra, os olhos dela ficaram desvairados de dor e confusão. Manny fez o que pôde para a acalmar, permitindo-lhe
que agitasse a cabeça quanto quisesse enquanto lhe afagava o pescoço. E a égua acalmou-se quando lhe deram um tranquilizante.
Pelo menos, o coxear desesperado parou.
O veterinário olhou para a perna e abanou a cabeça, algo que no mundo das corridas de cavalos significava: ela tem de ser abatida.
Manny aproximou-se do rosto do indivíduo.
- Nem pense nisso. Estabilize a fratura e leve-a já para o Tricounty. Percebeu?
- Ela nunca mais vai voltar a correr... isto parece uma fratura mul...
- Tire a porra do meu cavalo desta pista e leve-o para o Tricounty...
- Ela não vale...
Manny agarrou com força a frente do casaco do veterinário e puxou o senhor Facilidades até estarem de nariz praticamente colado.
- Faça o que eu disse. Já. - Seguiu-se um momento de incompreensão total, como se o monte de esterco não soubesse o que era ser agarrado à bruta. E, para que não
houvesse lugar a mal-entendidos, Manny rosnou: - Não a vou perder... mas não tenho problema nenhum em dar cabo de si. Aqui mesmo. Neste momento.
O veterinário recuou, como se soubesse que se arriscava a ser socado.
- Está bem... está bem.
Manny não ia perder o cavalo. Passara os últimos doze meses a chorar a única mulher de quem gostara, a pôr em causa a sua sanidade e a beber uísque, embora sempre
tivesse detestado a bebida.
Se agora perdesse a Glory... não lhe sobrava grande coisa na vida, pois não?
Capítulo 2
CALDWELL, NOVA IORQUE
CENTRO DE TREINO, COMPLEXO DA IRMANDADE
Porra... de Bic... monte de merda...
Vishous encontrava-se no corredor da clínica da Irmandade, com um cigarro feito à mão nos lábios e um polegar que estava a fazer um exercício desgraçado. No entanto,
por mais vezes que esfregasse a pequena roda do isqueiro, não conseguia desencantar uma chama.
Chic. Chic. Chic...
Atirou a porcaria para o caixote do lixo com uma repulsa tremenda e procurou a luva forrada a chumbo que lhe cobria a mão. Depois de arrancar o cabedal, fitou a
palma brilhante, fletindo os dedos e dobrando-a pelo pulso.
A coisa era parte lança-chamas e parte bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, de transformar pedra em vidro e de fazer churrasco de qualquer avião, comboio
ou automóvel. Era também o motivo pelo qual podia fazer amor com a sua shellan, e um dos dois legados que a deidade que era a sua mãe lhe dera.
Ah, e a treta da segunda visão era tão divertida como aquela coisa da mão-da-morte.
Aproximou a arma mortífera do rosto e deixou o cigarro enrolado à mão na vizinhança, mas não demasiado perto, caso contrário imolaria o sistema de transmissão de
nicotina e teria de perder tempo a enrolar outro. Isso era algo para o qual não tinha paciência num dia bom, e muito menos numa altura daquelas...
Ah, que maravilha de inalação.
Encostando-se à parede, firmou as botas no linóleo e fumou. O prego para o caixão não lhe ajudava a melhorar o estado de espírito, mas sempre ficava com alguma coisa
que fazer que era melhor do que a opção que lhe percorrera a mente durante as últimas duas horas. Voltou a calçar a luva, sempre com vontade de pegar na sua «dádiva»
e ir queimar alguma coisa, fosse o que fosse...
Estaria mesmo a sua irmã gémea no outro lado da parede? Deitada numa cama de hospital... paralisada?
Cristo... ter trezentos anos e descobrir que se tem uma irmã.
Bem jogado, mãe. Bem jogado como o caraças.
E pensar que havia resolvido todos os problemas que tinha com os pais... Claro que só um deles estava morto. Se a Virgem Escrivã seguisse o exemplo do Derramador
de Sangue e batesse a bota, talvez ele conseguisse equilibrar-se.
No entanto, da maneira que as coisas estavam agora, com aquele exclusivo de jornal sensacionalista, a par da caça aos gambozinos que a sua Jane levava a cabo sozinha
no mundo dos humanos, tudo isso estava a deixá-lo...
Pois, nem sequer tinha palavras.
Tirou o telemóvel. Confirmou-o. Voltou a guardá-lo no bolso das calças de cabedal.
Raios partam, era tão típico. Jane concentrava-se em qualquer coisa e pronto. Nada mais interessava.
Não que ele fosse diferente, mas em alturas como aquelas, uma atualização quanto ao que se passava seria bem-vinda.
Maldito Sol, que o aprisionava dentro de quatro paredes. Se pelo menos estivesse com a sua shellan, «o grande» Manuel Manello não teria hipótese de se armar em mete-nojo
e recusar-se a ajudar. V limitar-se-ia a apagar o desgraçado, enfiar o corpo no Escalade e regressar para ali com as tais mãos famosas para que operasse Payne.
Para ele, o livre arbítrio era um privilégio e não um direito.
Quando chegou ao fim do cigarro apagou-o na sola da bota e atirou a beata para o balde do lixo. Queria muito uma bebida - mas nada de refrigerantes ou de água. Meia
caixa de Grey Goose talvez ajudasse, mas com um pouco de sorte em breve estaria na sala de operações, pelo que tinha de ficar sóbrio.
Ao entrar na sala de observações, ficou com os ombros rígidos, cerrou os molares e, por uma fração de segundo, pensou não ser capaz de aguentar mais. Se havia coisa
que garantidamente o deixava furibundo era ter a mãe a fazer mais uma gracinha, e seria difícil bater aquela suprema das mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um sistema de «tilt» incluído para parar a diversão quando a máquina de flippers se começava a passar.
- Vishous?
Ao ouvir a voz gentil e baixa, V fechou brevemente os olhos.
- Sim, Payne - concluiu, mudando para a língua antiga: - Sou eu.
Dirigiu-se ao centro da sala e voltou a ocupar o seu lugar no banco ao lado da maca. Deitada por baixo de uma série de cobertores, Payne estava imobilizada, com
a cabeça fixa por blocos laterais e um colarinho desde o queixo à clavícula. Um tubo ligava-lhe o braço a um saco pendurado num poste de aço inoxidável e havia tubagens
inseridas no cateter que Ehlena lhe introduzira.
Mesmo sendo a sala forrada a azulejos, clara, limpa e brilhante, e os equipamentos e produtos clínicos tão ameaçadores como canecas e pires numa cozinha, ele sentia-se
como se estivessem numa caverna húmida, cercados por ursos.
Seria muito melhor se pudesse matar o cabrão que deixara a sua irmã naquele estado. O problema era... que isso significava que teria de eliminar Wrath, e tal morte
faria furor. Esse sacana enorme não só era o rei como também era um irmão... e além disso, o que a levara àquele sítio, naquela situação, tinha sido consensual.
As sessões de combate entre os dois duravam há dois meses e mantinham ambos em forma - era óbvio que Wrath não fazia ideia da pessoa com quem lutava, pois o macho
era cego. O facto de ser uma fêmea? Ora. Tudo acontecera no Outro Lado, e aí não havia machos. Mas a falta de visão do rei fizera com que não se apercebesse daquilo
que V e todos os outros fitavam assim que entravam naquela sala: a comprida trança de Payne era da cor exata do cabelo de V, a pele era do mesmo tom da dele, e tinha
uma constituição física idêntica, alta, magra e forte. Mas os olhos... porra, os olhos.
V esfregou o rosto. O pai deles, o Derramador de Sangue, tinha tido inúmeras bastardas antes de ter sido morto durante uma escaramuça com minguantes, no País Antigo.
Claro que V nem sequer pensava em qualquer dessas relações aleatórias com fêmeas.
Payne era diferente. Tinham a mesma mãe, e não era uma qualquer mahmen. Era a Virgem Escrivã. A derradeira mãe da raça.
Uma cabra, a bem da verdade.
O olhar de Payne desviou-se para ele e V sentiu um aperto na garganta. As íris que se cruzaram com as suas eram de um branco gelo, tal como as dele, e a orla azul-escura
à volta delas era algo que via todas as noites ao espelho. E a inteligência... a esperteza que corria naquelas profundezas árticas era exatamente igual à que tinha
por baixo da sua cúpula óssea.
- Não sinto nada - disse Payne.
- Eu sei. - V abanou a cabeça e repetiu: - Eu sei.
A boca dela contorceu-se, como se em outras circunstâncias pudesse ter sorrido.
- Podes falar na língua que desejares - informou ela num inglês carregado. - Sou fluente em... muitas. - Ele também. O que o deixava incapaz de formular uma resposta
em dezasseis línguas diferentes. Que bom para ele. - Soubeste alguma coisa... da tua shellan? - perguntou ela, num tom entrecortado.
- Não. Queres mais alguma coisa para as dores? - Parecia mais fraca do que quando V saíra.
- Não, obrigada. Elas fazem-me sentir... estranha.
Seguiu-se um longo silêncio.
Que se prolongou.
E ainda mais.
Cristo, talvez devesse segurar-lhe a mão - afinal de contas, ela ainda sentia acima da cintura. Pois, mas o que poderia ele oferecer-lhe no que dizia respeito a
mãos? A esquerda estava a tremer e a direita era mortífera.
- Vishous, o tempo não está...
A frase da gémea perdeu-se e V concluiu-a na sua mente, do nosso lado.
Meu, quem lhe dera que ela estivesse errada. Claro que no que dizia respeito a lesões na espinal-medula, tal como acontecia no caso de apoplexias e ataques cardíacos,
as oportunidades iam-se perdendo a cada minuto que o paciente passava sem tratamento.
Era bom que o tal humano fosse tão brilhante como Jane afirmava.
- Vishous?
- Sim?
- Desejavas que eu não tivesse vindo?
V franziu o cenho.
- O que estás para aí a dizer? É claro que te quero comigo.
V começou a bater o pé enquanto se interrogava quanto tempo teria de ficar ali antes de poder sair para fumar mais um cigarro. Não era capaz de respirar ali sentado,
impotente enquanto a irmã sofria, o que lhe atulhou o cérebro de questões. Tinha dez mil interrogações às voltas na cabeça, mas não podia perguntar. A dor parecia
deixar Payne à beira do coma a qualquer momento, pelo que não era de todo altura para dar início a uma amena cavaqueira.
Porra, os vampiros podiam curar-se com a velocidade do pensamento, mas não eram, de todo, imortais.
Podia perfeitamente ficar sem a irmã, antes mesmo de a começar a conhecer.
Tendo isso em mente, confirmou os sinais vitais no monitor. A raça tinha uma pressão arterial muito baixa, mas a dela estava perto de ser inexistente. O ritmo cardíaco
era lento e irregular, qual secção rítmica composta por meninos brancos. E o sensor de oxigénio teve de ser silenciado, pois o alarme estivera a disparar continuamente.
Quando ela fechou os olhos, V receou que fosse pela última vez. E o que tinha feito por ela? Nada, além de lhe gritar quando ela lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se, sentindo-se um palerma.
- Tens de te aguentar, Payne. Vou conseguir aquilo de que precisas, mas tens de te aguentar.
As pálpebras da gémea abriram-se e Payne olhou-o a partir da sua cabeça imobilizada.
- Vim trazer demasiado para a tua casa.
- Não te preocupes comigo.
- Nunca fiz outra coisa.
V voltou a franzir o sobrolho. Tornava-se óbvio de que aquela história de irmão/irmã só era novidade para ele, e não pôde deixar de se interrogar como raios ela
ficara a saber da sua existência.
E o que sabia.
Porra, mais uma oportunidade para desejar não ser nada de especial.
- Estás muito seguro quanto a esse curandeiro que procuras - balbuciou Payne.
Ah, nem por isso. A única certeza que tinha era que se o desgraçado a matasse, naquela noite ia haver um funeral duplo - isso, partindo do princípio de que restaria
alguma coisa do humano para enterrar ou para queimar.
- Vishous?
- A minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne viraram-se para cima e aí permaneceram. Estaria a olhar para o teto?, interrogou-se. Para a lâmpada de observação por cima dela? Para alguma coisa
que ele não era capaz de ver?
- Pergunta-me quanto tempo passei à sombra da nossa mãe - acabou por dizer.
- De certeza que tens força para isso? - V teve vontade de sorrir quando a única resposta que obteve foi um olhar furioso. - Quanto tempo?
- Em que ano se está aqui na Terra? - Arregalou os olhos quando V lhe respondeu. - Deveras? Bem, foram centenas de anos. A nossa mahmen manteve-me presa durante...
centenas de anos de vida.
Vishous sentiu a ponta das presas a formigarem de raiva. Aquela mãe deles... já devia saber que a paz que encontrara com a fêmea não iria durar muito.
- Agora estás livre.
- Estarei? - Olhou na direção das pernas. - Não posso viver em mais uma prisão.
- Não vai acontecer.
O olhar gelado endureceu.
- Não posso viver assim. Compreendes o que te estou a dizer?
V sentiu o interior do corpo a gelar.
- Escuta, vamos trazer aqui o tal médico e...
- Vishous - atalhou Payne, num tom rouco. - Por minha fé, eu própria o faria, se pudesse, mas não posso, e não tenho mais ninguém a quem recorrer. Compreendes-me?
Teve vontade de gritar quando cruzou o olhar com o dela. Sentiu um nó no estômago e o suor a rebentar-lhe na testa. Era um assassino por natureza e por formação,
mas tal competência não era algo que pretendesse usar em alguém do seu sangue. Bom, à exceção da mãe, claro. Talvez o pai, mas esse tinha morrido sozinho.
Pronto, correção: não era algo que alguma vez usasse contra a sua irmã.
- Vishous. Tu...
- Sim. - Olhou para a malfadada mão. - Eu compreendi.
Bem por baixo da sua pele, no seu âmago, a corda interior começou a vibrar. Era o tipo de coisa com que passara grande parte da vida familiarizado - e era também
um choque profundo. Não tinha essa sensação desde que Jane e Butch lhe tinham aparecido, e senti-la a regressar era... mais uma dose de Grande Porra.
No passado, isso fizera-o descarrilar à grande, entrando no mundo do sexo masoquista e das ações arriscadas e extremas. Num abrir e fechar de olhos.
A voz de Payne soava esganiçada.
- E o que me dizes?
Raios o partam, tinha acabado de a conhecer.
- Sim. - Fletiu mais uma vez a mão mortífera. - Eu trato de ti. Se chegarmos a esse ponto.
Quando Payne olhou para cima na prisão que era o seu corpo imóvel, só conseguiu ver o perfil sombrio do gémeo e desprezou-se pela posição em que o colocara. Desde
que chegara àquele lado que tentava descortinar outro rumo, outra opção... qualquer coisa.
Mas aquilo de que precisava era algo que nunca poderia solicitar a um estranho.
Claro que ele não deixava de ser um estranho.
- Obrigada - agradeceu. - Meu irmão.
Vishous limitou-se a assentir uma única vez e continuou a olhar em frente. Pessoalmente era muito mais do que a soma das feições e do tamanho impressionante do corpo.
Antes de ter sido aprisionada pela mahmen deles, Payne desde há muito o observava nas taças sagradas de visão das Escolhidas, e sabia o que ele lhe era desde que
pela primeira vez aparecera na água rasa - bastara-lhe olhá-lo para se ver a si própria.
Que vida ele tivera, começando pelo acampamento de guerra e pela brutalidade do pai deles... e agora isto.
E, por baixo da aparência fria, ele fervia de fúria. Payne sentia-o nos ossos, havendo uma qualquer ligação entre os dois que lhe dizia mais do que os olhos lhe
transmitiam: à superfície era firme como uma parede, com todos os elementos que o constituíam dispostos numa ordem precisa e cimentados no lugar correto. No entanto,
por baixo da pele ele fervia... e o indício externo que transparecia encontrava-se na mão direita enluvada. Por baixo do punho brilhava uma luz forte... que se ia
tornando cada vez mais forte. Especialmente depois de lhe ter feito o seu pedido.
Apercebeu-se de que aquele poderia ser o último momento juntos e voltou a mover o olhar.
- Estás acasalado com a fêmea curandeira? - murmurou ela.
- Sim.
No silêncio que se seguiu, ela desejou poder manter a troca, mas era óbvio que ele só respondia por mera cortesia. Mesmo assim, acreditava no que ele lhe dissera,
que estava satisfeito por ali ter chegado. Não lhe parecia alguém capaz de mentir - não por se preocupar com a moralidade ou com a educação, mas antes por considerar
tal esforço um desperdício de tempo e de propensão.
Payne devolveu o olhar ao anel de fogo brilhante que ardia por cima de si. Gostaria que ele lhe desse a mão, ou que lhe tocasse de alguma forma, mas já lhe pedira
demasiado.
Ali deitada naquela plataforma ambulante, o corpo parecia-lhe anómalo, a um tempo pesado e sem peso, e agarrava-se à esperança que eram os espasmos que lhe percorriam
as pernas e faziam formigar os pés, levando-os a contorcerem-se. Se isso acontecia, talvez nem tudo estivesse perdido, dizia para consigo.
No entanto, enquanto procurava o abrigo proporcionado por essa ideia, uma parte ínfima e discreta da sua mente dizia-lhe que o telhado cognitivo que tentava construir
não suportaria a tormenta que pairava sobre o que lhe restava da vida. Embora não as pudesse ver, quando movia as mãos sentia as cobertas frias e macias, e o gelo
quase húmido da mesa em cima da qual se encontrava. No entanto, quando ordenava aos pés que fizessem o mesmo... era como se estivesse nas águas serenas e tépidas
das piscinas do Outro Lado, encasulada num abraço invisível, sem nada sentir contra si.
Onde estaria o curandeiro?
O tempo... estava a passar.
Quando a espera passou de intolerável a pura e simplesmente agonizante, deixou de conseguir perceber se a sensação de garganta embargada se devia ao seu estado ou
ao silêncio daquela sala. Por sua fé, tanto ela como o gémeo tinham mergulhado na imobilidade, embora por dois motivos díspares. Ela não tinha como ir para lado
nenhum. Ele estava à beira de uma explosão.
- Fala-me sobre o curandeiro que aí vem - pediu num murmúrio, desesperada por algum estímulo, algo... qualquer coisa.
A brisa fresca que lhe afagou o rosto e o aroma de especiarias que lhe violou as narinas confirmaram-lhe que se tratava de um macho. Tinha de ser.
- É o melhor - resmungou Vishous. - A Jane sempre falou dele como se fosse uma espécie de deus.
O tom não era de todo elogioso, mas era verdade que os vampiros machos não apreciavam que outros rondassem as suas fêmeas.
Quem seria, no seio da raça? interrogou-se. O único curandeiro que Payne vira nas taças fora Havers, e por certo não haveria a necessidade de o procurar.
Talvez existisse mais algum que ela não observara. Afinal de contas, ela não dedicara muito tempo a inteirar-se do que se passara no mundo e, segundo o gémeo, tinham
decorrido muitos, muitos, muitos anos entre o seu confinamento e a sua liberdade, por assim dizer...
A exaustão atalhou-lhe os pensamentos numa onda súbita que lhe chegou ao âmago e a pressionou ainda mais contra a mesa metálica.
No entanto, quando fechou os olhos só conseguiu suportar a escuridão por um instante, até que o pânico lhe fez abrir as pálpebras. Quando a mãe a detivera em animação
suspensa tivera perfeita consciência do vazio ilimitado que a circundava e da penosamente lenta passagem dos momentos e dos minutos. A paralisia atual era demasiado
semelhante ao que sofrera durante séculos.
Era esse o motivo do terrível pedido que fizera a Vishous. Não podia chegar àquele lado apenas para replicar aquilo de que pretendera fugir com tamanho desespero.
As lágrimas toldaram-lhe a visão, fazendo estremecer a brilhante fonte de luz.
Como desejava que o irmão lhe desse a mão.
- Por favor, não chores - disse Vishous. - Não... chores.
A bem da verdade, o facto de ele ter notado surpreendera-a.
- Por minha fé, estás correto. Chorar nada resolve.
Decidida, obrigou-se a ser forte, mas era uma batalha tremenda. Embora o seu conhecimento das artes da medicina fosse limitado, a lógica mostrava-lhe aquilo que
enfrentava. Tendo uma ascendência extraordinariamente forte, o corpo dera início à reparação assim que fora lesionada durante o combate com o Rei Cego. Contudo,
o grande problema era que o processo regenerativo, que em situações normais lhe salvaria a vida, estava a tornar a sua condição ainda mais delicada - e provavelmente
permanente.
As colunas fraturadas que se remendavam sozinhas não poderiam alcançar um resultado correto, algo tornado óbvio pela paralisia das pernas.
- Porque estás sempre a observar a tua mão? - perguntou, sempre a olhar para a luz.
Seguiu-se um momento de silêncio, a juntar-se a todos os outros.
- Porque é que achas que o estou a fazer?
Payne suspirou.
- Porque te conheço, meu irmão. Sei tudo acerca de ti.
Não tendo mais palavras do irmão, o silêncio tornou-se tão agradável como as inquirições do País Antigo.
Ah, o que desencadeara ela?
E onde estariam quando tudo chegasse ao fim?
Capítulo 3
Por vezes, a única maneira de saber onde se tinha chegado era regressar ao ponto onde já se estivera.
Quando a doutora Jane Whitcomb entrou no complexo do Hospital St. Francis foi sugada para a sua vida anterior. De certa foram, a viagem era curta - ainda há um ano
era chefe do departamento de traumatologia do hospital, vivia num condomínio cheio de coisas familiares e passava vinte e quatro horas por dia a correr entre as
urgências e as SO.
Já não o fazia
Uma prova de que se tinham verificado grandes mudanças foi a forma como entrou no edifício das cirurgias. Não precisava de se preocupar com as portas giratórias.
Nem com as que davam acesso ao átrio.
Atravessou as paredes de vidro e passou pelos seguranças sem que eles a vissem.
Os fantasmas eram bons nisso.
Desde que se transformara podia entrar onde quisesse sem que ninguém desse por ela. Claro que também se podia tornar palpável como qualquer outra pessoa, solidificando
a seu bel-prazer. Numa das formas era etérea; na outra era humana como sempre, capaz de comer, de amar e de viver.
Era uma grande vantagem no seu trabalho enquanto cirurgiã privada da Irmandade.
Como agora, por exemplo. De que outra forma seria capaz de se infiltrar mais uma vez no mundo humano sem que houvesse confusão?
Apressando-se sobre o soalho polido do átrio, atravessou a parede de mármore onde se viam os nomes de benfeitores e abriu caminho por entre a multidão. Reconheceu
muitos rostos, desde pessoal administrativo a médicos e enfermeiras com quem trabalhara durante anos. Até os pacientes nervosos e as suas famílias eram anónimos,
mas ao mesmo tempo seus íntimos - a um certo nível, as máscaras de dor e de preocupação eram sempre as mesmas, independentemente das feições que as envergavam.
Dirigiu-se às escadas traseiras em busca do seu antigo chefe. Cristo, até tinha vontade de rir. Durante todos os anos em que tinham trabalhado juntos, ela procurara
Manny Manello sempre em emergências, mas aquilo que a trazia superava qualquer choque em cadeira, acidente de aviação ou colapso de edifício.
Atravessando uma saída metálica de emergência, subiu as escadas traseiras, sem que os pés tocassem nos degraus, mas flutuando acima deles, enquanto ascendia como
uma brisa, elevando-se sem esforço.
Aquilo tinha de resultar. Tinha de convencer Manny a acompanhá-la e a tratar aquela lesão na espinal-medula. Ponto final. Não havia quaisquer outras opções, contingências,
nada de desvios no caminho a seguir. Era o grande passe de final de jogo... e esperava que o avançado junto à grande área recebesse a porra da bola.
Graças a Deus funcionava bem sob pressão. E conhecia o homem que procurava como a palma da mão.
Manny aceitaria o desafio. Mesmo que nada daquilo lhe fizesse sentido a muitos níveis, e mesmo que ficasse estarrecido por ela ainda estar «viva», não teria como
ignorar um paciente necessitado. Não era assim que ele funcionava.
No nono andar atravessou outra saída de emergência e entrou na zona administrativa do departamento de cirurgia. O local fazia lembrar uma firma de advogados, escuro,
sombrio e com um ar abastado. Fazia sentido. A cirurgia era uma enorme fonte de rendimentos para qualquer hospital universitário, e gastava-se muito para recrutar,
manter e alojar as flores de estufa brilhantes e arrogantes que retalhavam pessoas para ganhar a vida.
De todos os manejadores de bisturis em St. Francis, Manny Manello estava no topo da hierarquia, sendo o chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela fora,
mas de todo o departamento. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento de recruta e o presidente dos Estados Unidos, tudo reunido num sacana de
um metro e oitenta. Tinha um mau-feitio terrível, um intelecto magnífico e um pavio de um milímetro.
Num dia bom
E era espantoso.
O pão-nosso de cada dia do tipo tinham sido sempre os atletas profissionais mais destacados, pelo que operara muitos joelhos, ancas e ombros que em outras mãos teriam
representado o fim da carreira de jogadores de futebol, de basebol e de hóquei. No entanto, a par disso tinha também muita experiência com a coluna, e embora um
neurocirurgião de reserva fosse bom, tendo em conta o que os exames de Payne mostravam, aquilo tratava-se de um problema ortopédico. Se a espinal-medula estivesse
cortada, não havia nenhum neurocirurgião que a pudesse salvar. A ciência médica ainda não tinha chegado a esse ponto.
Ao contornar a esquina da secretária da rececionista, viu-se obrigada a parar. À esquerda ficava o seu antigo gabinete, o lugar onde passara horas sem fim a tratar
de papelada e reunida com Manny e com o resto da equipa. A placa na porta dizia agora, DR. THOMAS GOLDBERG, CHEFE, CIRURGIA TRAUMÁTICA.
Goldberg era uma excelente escolha.
Por algum motivo, ainda se sentia magoada por ver a nova placa.
Mas, e depois? Estaria à espera que Manny lhe conservasse a secretária e o gabinete como uma espécie de monumento?
A vida continuava. A dela. A dele. A do hospital.
Fez-se despertar e percorreu o corredor acarpetado, enquanto remexia na bata branca, na caneta que tinha no bolso e no telemóvel que ainda não tivera motivo para
usar. Não havia tempo para explicar o seu regresso dos mortos, nem para persuadir Manny ou ajudá-lo a digerir a história inacreditável que estava prestes a contar-lhe.
Também não tinha qualquer outra hipótese que não fosse levá-lo consigo.
Parou à frente da porta dele, respirou fundo e avançou...
Não estava à secretária. Nem na mesa de conferências.
Uma espreitadela rápida à casa de banho privativa... também lá não estava, nem havia humidade nas portas de vidro ou toalhas húmidas junto ao lavatório.
Regressando ao gabinete propriamente dito voltou a respirar fundo... e o aroma ténue do aftershave que permanecera no ar fê-la engolir em seco.
Cristo, as saudades que tinha dele.
Abanando a cabeça, contornou a secretária e deu uma vista de olhos à confusão. Ficheiros de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios do comité
de Avaliação e Qualidade dos Cuidados a Pacientes. Como eram apenas cinco horas da tarde de sábado, ela esperara encontrá-lo ali: as aulas não decorriam ao fim de
semana pelo que, a menos que estivesse de banco e a tratar de um trauma, deveria estar atrás daquela confusão, a tratar da papelada.
Manny era o típico workaholic sem pausas.
Ao sair do gabinete procurou na secretária da assistente administrativa. Não encontrou pistas, já que o seu plano de trabalho deveria estar no computador.
A próxima paragem seriam as SO. O Hospital de St. Francis tinha vários níveis diferentes de salas de operação, todas dispostas por subespecialidade, e Jane dirigiu-se
ao setor onde ele costumava trabalhar. Ao espreitar pelas janelas de vidro das portas duplas viu que estavam a trabalhar num manguito rotador e numa fratura exposta.
Embora os cirurgiões tivessem máscaras e toucas, sabia que nenhum deles era Manny. Os ombros dele eram largos o suficiente para retesarem até a maior das batas e,
além disso, a música em ambos os casos não era a correta. Mozart? Nem pensar. Pop? Nem morto.
Manny ouvia acid rock e heavy metal, a tal ponto que, se não fosse contra o protocolo, há anos que as enfermeiras usariam tampões de ouvidos.
Raios partam... mas onde é que ele estava? Não havia conferências naquela altura do ano, e ele não tinha vida fora do hospital. As outras opções seriam estar no
Commodore - ou adormecido no sofá do apartamento com a exaustão ou no ginásio do prédio.
Ao sair, ligou o telemóvel e marcou o número do serviço de atendimento do hospital.
- Sim, boa tarde - disse, quando lhe atenderam a chamada. - Gostaria de enviar uma mensagem ao doutor Manuel Manello. O meu nome? - Merda. - Ah... Hannah. Hannah
Whit. E este é o meu número.
Ao desligar, não fazia ideia do que dizer se ele respondesse à mensagem, mas era excelente em agir sob pressão - e rezava para que esse dom a ajudasse naquela ocasião.
Não fosse o sol ainda não se ter posto e um dos Irmãos poderia ter vindo exercer os seus dons mentais sobre Manny, para facilitar a sua ida ao complexo.
Mas não Vishous. Outro. Fosse quem fosse.
Os instintos diziam-lhe que deveria manter os dois afastados o mais possível. Já tinham uma emergência médica entre mãos. A última coisa de que precisava era do
seu antigo chefe todo engessado porque o marido se sentira territorial e decidira partir também algumas colunas. Imediatamente antes da morte dela, Manny demonstrara
mais do que um interesse profissional em Jane. Por isso, a menos que ele tivesse casado com uma daquelas Barbies com quem insistia em sair, o mais provável seria
que ainda estivesse solteiro... e seguindo a regra da ausência-amolece-o-coração, os sentimentos dele poderiam ter-se mantido.
Por outro lado, era igualmente provável que a mandasse passear por lhe ter mentido quando à história do «morta e enterrada».
Ainda bem que ele não se lembraria de nada daquilo.
Claro que ela, por seu lado, receava nunca mais vir a esquecer as vinte e quatro horas seguintes.
O Hospital Equino Tricounty era topo de gama em todos os aspetos. Situado a cerca de quinze minutos do Aqueduct, tinha tudo, desde salas de operação a suítes de
recuperação completas, piscinas de hidroterapia e imagiologia avançada. E tinha como profissionais pessoas que viam os cavalos como sendo mais do que meras fontes
de lucro com cascos.
Na SO, Manny observou as radiografias da perna anterior da sua «menina» e quis ser o cirurgião responsável pela operação. Via claramente as fissuras no rádio, mas
não era isso que o preocupava. Tinham-se separado algumas lascas, estando esses fragmentos afiados a orbitar a extremidade bolbosa do comprido osso, quais satélites
em torno de um planeta.
O facto de se tratar de outra espécie não implicava que não fosse capaz de realizar a operação. Conquanto o anestesista a mantivesse inconsciente e em segurança,
ele trataria do resto. Osso era osso.
Mas não se ia armar em idiota.
- O que lhe parece? - perguntou.
- Segundo a minha opinião profissional - replicou o veterinário, a situação é muito complicada. Trata-se de uma fratura múltipla com deslocamento. A recuperação
vai ser muito longa e não há sequer a garantia de uma potencial cura.
E esse era o grande problema: era suposto que os cavalos ficassem de pé, com o peso distribuído equitativamente por quatro pontos. Quando se partia uma perna, o
pior não era a lesão; era o facto de terem de redistribuir o peso e dependerem desproporcionalmente do lado bom para que se mantivesse de pé. E era assim que surgiam
os problemas.
Com base naquilo que via, a maior parte dos proprietários teriam optado pela eutanásia. A «menina» dele nascera para correr, e aquela lesão catastrófica faria com
que isso fosse impossível, mesmo a nível recreativo - caso ela sobrevivesse. Enquanto médico, estava familiarizado com a crueldade dos trabalhos de «salvamento»
clínico que acabavam por deixar o paciente num estado pior do que a morte - ou que não faziam nada, além de prolongarem o inevitável.
- Doutor Manello? Ouviu o que eu disse?
- Sim. Ouvi. - Mas, ao contrário do idiota na pista, pelo menos aquele homem parecia tão devastado como Manny se sentia.
Virou-se e dirigiu-se ao lugar onde a tinham deitado, levando-lhe a mão à cabeça. O pelo preto brilhava sob as luzes fortes e, no meio de todos aqueles azulejos
claros e de todo o aço inoxidável, ela parecia uma sombra descartada e esquecida no meio da sala.
Demorou-se bastante a olhar para a caixa torácica a expandir-se e a contrair-se com a respiração. Vê-la deitada ali, com as belas pernas pousadas como aras e a cauda
pendurada sobre os mosaicos fê-lo perceber, mais uma vez, que animais como aquele deviam estar de pé. Aquilo não era de todo natural. Além de ser injusto.
Naquele caso, mantê-la viva só para não ter de enfrentar a sua morte não era a resposta correta.
Respirando fundo, Manny abriu a boca...
A vibração no interior do bolso do casaco não o deixou continuar. Praguejando, tirou o BlackBerry e confirmou-o, na eventualidade de ser do hospital. Hannah Whit?
Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse, e não estava de serviço.
Provavelmente teria sido um erro da telefonista.
- Quero que opere - ouviu-se a dizer enquanto guardava o aparelho.
O breve silêncio que se seguiu deu-lhe tempo suficiente para se aperceber de que não querer perdê-la parecia cobardia. Mas não podia deixar-se levar por essas tretas
psicológicas, caso contrário perderia o juízo.
- Não lhe posso garantir nada. - O veterinário voltou a observar as radiografias. - Não sei como isto vai correr, mas garanto-lhe... vou dar o meu melhor.
Cristo, agora sabia como aquelas famílias se sentiam quando falava com elas.
- Obrigado. Posso assistir?
- É claro. Vou buscar-lhe uma bata, e já sabe os procedimentos com a lavagem, doutor.
A operação teve início vinte minutos depois e Manny assistiu junto à cabeça da égua, afagando-lhe a crina com a mão enluvada, mesmo estando o animal inconsciente.
Manny não pôde deixar de aprovar a metodologia e a competência do veterinário durante o trabalho - basicamente as únicas coisas que tinham corrido bem desde que
Glory caíra. A operação terminou em menos de uma hora, com as lascas de osso retiradas, ou encaixadas no lugar. Depois enfaixaram a pata e levaram-na da SO para
uma piscina, para que não partisse outra perna ao sair da anestesia.
Manny ficou até a égua acordar e depois seguiu o veterinário para o corredor.
- Os sinais vitais estão bons e a operação correu bem - declarou o veterinário, mas é claro que a situação pode sofrer alterações repentinas. E ainda vai demorar
algum tempo para sabermos com o que contar.
Porra. Era exatamente o tipo de discurso que fazia aos familiares diretos e a outros parentes quando chegava a altura dos seus pacientes irem para casa repousar
e esperar para ver como corria o pós-operatório.
- Nós mantemo-nos em contacto - garantiu o veterinário. - Com atualizações do estado.
Manny descalçou as luvas e tirou um cartão-de-visita.
- Para o caso de não terem os dados na ficha dela.
- Nós temos. - Mesmo assim, o homem aceitou o cartão. - Se houver alguma alteração, será o primeiro a saber, e eu informo-o pessoalmente a cada doze horas, quando
fizer as rondas.
Manny aquiesceu e estendeu a mão.
- Obrigado por cuidar dela.
- Não tem de quê.
Depois de apertarem as mãos, Manny acenou com a cabeça na direção das portas duplas.
- Importa-se que me vá despedir?
- Por favor.
De volta à sala, dedicou um momento à poldra. Cristo... aquilo custava.
- Aguenta-te aí, estás a ouvir, menina. - Teve de murmurar, pois parecia não ser capaz de respirar devidamente.
Quando se endireitou, a equipa de operação olhava-o com uma tristeza que ele tinha consciência de que o iria acompanhar.
- Vamos cuidar muito bem dela - garantiu o veterinário, com gravidade.
Manny acreditava que assim fosse, e foi esse o único motivo que o levou a conseguir sair para o corredor.
As instalações de Tricounty eram vastas e precisou de algum tempo até mudar de roupa e encontrar o caminho até onde estacionara o carro, junto à entrada principal.
Lá à frente, o Sol já se tinha posto, e uma claridade alaranjada que se desvanecia rapidamente deixava Manhattan com o aspeto de estar em combustão lenta. O ar estava
fresco mas fragrante com os primeiros esforços da primavera para dar vida à paisagem invernal estéril, e Manny respirou fundo tantas vezes que se sentiu tonto.
Deus, o tempo estava a passar muito depressa, mas agora, com o arrastar dos minutos, tornava-se óbvio que o ritmo frenético lhe esgotara a fonte de energia. Ou isso
ou fora de encontro a um muro e desfizera-se.
Ao pegar na chave do carro sentia-se velho como o mundo. A cabeça latejava-lhe e a anca artrítica doía-lhe. A corrida até à pista para chegar a Glory fora excessiva
para os malfadados ossos.
Não fora de todo assim que imaginara o fim daquele dia. Partira do princípio de que iria pagar bebidas aos proprietários vencidos... e talvez com a embriaguez da
vitória tivesse aceitado a generosa oferta oral da dona Hanson.
Entrou no Porsche e ligou o motor. Caldwell ficava a cerca de quarenta e cinco minutos a norte de Queens, e o carro podia praticamente fazer sozinho a viagem até
ao Commodore. O que era bom, pois ele sentia-se como um zombie.
Nada de rádio. Nada de música no iPod. E nada de telefonar a ninguém.
Quando entrou na autoestrada limitou-se a olhar para a estrada à sua frente e resistir ao impulso de dar meia volta e... pois, e fazer o quê? Dormir ao lado do cavalo?
Se conseguisse chegar a casa inteiro, a ajuda já vinha a caminho. Tinha uma garrafa por abrir de Lagavulin à sua espera, e podia ou não perder tempo a usar um copo.
No que dizia respeito ao hospital, ele estava de folga até às seis da manhã de segunda-feira, e tencionava embebedar-se e assim ficar.
Segurou no volante forrado a pele com uma mão e levou a outra ao interior da camisa de seda, onde encontrou a imagem de Cristo. Apertou a cruz de ouro e rezou.
Meu Deus... por favor faz com que ela fique bem.
Não seria capaz de aguentar a perda de mais uma das suas meninas. Não ainda. Jane Whitcomb morrera já há um ano, mas isso era apenas o que o calendário lhe dizia.
Em tempo de mágoa, a desgraça só acontecera há cerca de minuto e meio.
Não queria voltar a passar por isso.
Capítulo 4
A baixa de Caldwell tinha muitos edifícios altos e envidraçados, mas poucos eram como o Commodore. Com uns bons trinta pisos de altura, era dos mais altos da floresta
de betão, e os cerca de sessenta apartamentos que albergava eram de um luxo à Trump, todos de mármore, cromados e atulhados de marcas.
No vigésimo sexto andar, Jane percorreu o apartamento de Manny, em busca de sinais de vida e encontrou... zero. Literalmente. A casa dele tinha tanto de pista de
obstáculos como de salão de dança, sendo a mobília composta por três peças na sala e uma cama enorme no quarto principal.
E pronto.
Bem, e alguns bancos de pele na bancada da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que tinha pendurada era um televisor de plasma do tamanho de um outdoor. E o
soalho de madeira não tinha tapetes, apenas sacos desportivos e... mais sacos desportivos e... calçado desportivo.
O que não queria dizer que ele fosse desleixado. Não tinha coisas suficientes para poder ser considerado desleixado.
Com um pânico crescente, Jane dirigiu-se ao quarto e viu meia dúzia de batas de hospital em monte no chão, quais poças que ficam depois de uma trovoada e... mais
nada.
Mas a porta do roupeiro estava aberta, pelo que espreitou o seu interior...
- Raios partam.
O conjunto de malas de viagem alinhadas no chão era composto por uma grande, outra média e finalmente uma pequena - e a média não estava lá. Também faltava um fato,
a julgar pelo cabide vazio pendurado entre os outros conjuntos de casaco e calças.
Estava de viagem. Talvez durante o fim de semana.
Sem grande esperança, ligou para o sistema do hospital e voltou a enviar-lhe uma mensagem...
Ouviu o sinal de chamada em espera e quando olhou para o número voltou a praguejar.
Respirando fundo, atendeu
- Então, V.
- Nada?
- Nem no hospital, nem aqui no apartamento dele. - O rosnido discreto que ouviu acentuou-lhe a sensação de não estar a conseguir nada. - E também confirmei o ginásio
ao subir.
- Entrei no sistema do Saint Francis e consegui a agenda dele.
- Onde está ele?
- Só dizia que o Goldberg estava de banco, correto? Olha, o sol está a pôr-se. Posso sair daqui a... tipo...
- Não, não... fica com a Payne. A Ehlena é excelente, mas acho que devias ficar aí.
Seguiu-se uma pausa longa, como se ele percebesse que estava a ser afastado.
- Para onde vais a seguir?
Jane apertou o telefone e interrogou-se a quem deveria rezar. A Deus? À mãe dele?
- Não sei. Mas já lhe enviei mensagens. Duas.
- Quando o encontrares liga-me e eu vou buscá-los.
- Eu consigo fazer-nos chegar a casa...
- Não o vou magoar, Jane. Não estou incentivado para o desfazer.
Pois, mas a julgar pelo tom frio de voz, ela tinha de pôr em causa se as garantias de um vampiro seriam de fiar... Acreditava que Manny viveria para tratar da gémea
de Vishous. E depois disso? Tinha as suas dúvidas - especialmente se as coisas corressem mal na SO.
- Vou esperar mais um bocado. Talvez ele apareça. Ou ligue. Se não, eu penso em alguma coisa.
No longo silêncio que se seguiu, Jane praticamente sentiu um vento frio a chegar-lhe pelo telemóvel. O parceiro dela fazia muitas coisas bem: lutar, fazer amor,
lidar com qualquer coisa relacionada com computadores. Ser obrigado a permanecer imóvel? Não era um dos seus talentos inatos. Verdade fosse dita, era garantido que
o deixava fora de si.
Mesmo assim, o facto de V não confiar nela fazia-a sentir-se distante.
- Fica com a tua irmã, Vishous - disse-lhe, num tom de voz calmo. - Eu vou dando notícias. - Silêncio. - Vishous. Desliga e vai ter com ela.
V não disse mais nada, limitando-se a desligar a chamada.
Jane praguejou ao desligar também.
Uma fração de segundos depois estava a marcar outra vez um número e assim que ouviu uma voz grave a atender, teve de limpar uma lágrima que, pesasse embora a sua
transparência, era muito real.
- Butch - disse, num tom rouco. - Preciso da tua ajuda.
* * *
Quando o pouco que restava do pôr-do-sol desapareceu e a noite picou o ponto para assumir o turno seguinte, o carro de Manny deveria estar a caminho de casa. Devia
ter seguido quase sozinho até Caldwell.
Em vez disso, acabou no extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões relvadas ultrapassavam os hectares de alcatrão numa relação de dez para
um.
Fazia sentido. Os cemitérios precisavam de boas áreas de terra macia, pois não era muito viável tentar enfiar um caixão no betão.
Bem, talvez até fosse - chamava-se mausoléu.
O cemitério de Pine Grove estava aberto até às dez da noite, com os imensos portões de ferro escancarados e os inúmeros candeeiros de ferro forjado a lançar a sua
luz amarelada sobre o labirinto de veredas. Ao entrar seguiu para a direita, com os faróis de xénon do Porsche a varrer e a iluminar grandes extensões de lápides
e relvados.
Estava a ser atraído por um ponto que, em última análise, não significava nada. Não havia um corpo enterrado por baixo da lápide de granito para onde se dirigia
- não houvera corpo para enterrar. Também não houvera cinzas que se pudessem guardar num recipiente - pelo menos que se tivesse a certeza não pertencer ao Audi que
se incendiara.
Cerca de oitocentos metros de curvas depois, Manny tirou o pé do acelerador e deixou que o carro parasse sozinho. Imaginava que fosse o único no cemitério, e por
ele tudo bem. Não havia motivo para ter público.
Ao sair do carro, o ar frio não ajudou a clarear-lhe a mente, mas serviu para dar trabalho aos pulmões enquanto respirava fundo e se dirigia à relva primaveril.
Teve o cuidado de não pisar em nenhuma das sepulturas enquanto andava - era verdade que os mortos não saberiam que ele se encontrava no seu espaço aéreo, mas parecia-lhe
uma atitude respeitosa.
A campa de Jane ficava um pouco mais à frente e Manny abrandou o passo à medida que se aproximava do que restava dela, por assim dizer. À distância, o som do apito
de um comboio rasgou a calmaria - e o som cavo e lamentoso pareceu-lhe tanto um cliché que se imaginou num filme que nunca teria paciência de ver em casa, e muito
menos pagaria para assistir no cinema.
- Porra, Jane.
Baixando-se, passou com os dedos pelo cimo da lápide irregular. Escolhera a pedra negra porque ela não teria querido nada em tons de pastel ou deslavado. E a inscrição
também era simples e direta, apenas o nome, as datas e uma frase ao fundo: descansa em paz.
Pois. Nisso, merecia um 20 pela originalidade.
Lembrava-se exatamente onde estava quando soubera que ela tinha morrido. No hospital - é claro. Fora no fim de um dia e uma noite muito compridos, que tinham começado
com o joelho de um jogador de hóquei e acabado com uma espetacular reconstrução de ombro, cortesia de um drogado que decidira experimentar voar.
Saíra da SO e encontrara Goldberg à espera junto aos lavatórios. Bastou olhar para o colega para que Manny interrompesse o processo de retirar a máscara cirúrgica.
Com o tecido pendurado no rosto como um bibe no queixo, exigiu saber o que raio se passava - sempre a imaginar que seria um choque em cadeia de quarenta veículos
na autoestrada, ou um acidente de aviação, ou um incêndio num hotel... uma tragédia de escala comunitária.
Mas olhara sobre o ombro do médico e vira cinco enfermeiras e três outros médicos. Todos no mesmo estado de Goldberg... e ninguém com pressa para reunir mais elementos
ou preparar as salas de operação.
Certo. Acontecera qualquer coisa na comunidade. A comunidade deles.
- Quem - quis saber.
Goldberg olhara para as tropas de apoio e foi então que Manny adivinhou. E contudo, mesmo com as entranhas em estado líquido, agarrara-se a uma qualquer esperança
irracional de que o nome a surgir da boca do cirurgião fosse outro que não...
- A Jane. Acidente de viação.
Manny nem sequer hesitara.
- Qual a hora de chegada?
- Não há.
A essa informação, Manny não respondera. Limitara-se a retirar a máscara do rosto, a amarfalhá-la e a atirá-la para o balde do lixo mais próximo.
Ao passar por Goldberg, o médico voltara a abrir a boca.
- Não digas nada - vociferara Manny. - Não. Digas. Nada.
O resto da equipa atrapalhara-se para sair do caminho, apartando-se como um tecido rasgado em dois.
Regressando ao presente, não se lembrava do que fizera, nem para onde fora depois disso - por mais que se esforçasse, essa parte não passava de um buraco negro.
A dada altura, contudo, regressara ao apartamento, pois dois dias depois acordara aí, ainda com a bata ensanguentada com que estivera a operar.
Uma das coisas mais chocantes em toda a situação era o facto de Jane ter salvado muitas pessoas envolvidas em acidentes de viação. A ideia de que ela se fora dessa
forma dava a entender que se tratava da vingança da Morte por todas as almas que Jane resgatara das mãos ossudas da ceifadora.
O som de outro apito de comboio fê-lo ter vontade de gritar.
Isso e a merda do pager a soar.
Hannah Whit. Outra vez?
Mas quem é que...
Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Se bem se lembrava, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?
Mas o problema era que tinha morrido jovem.
Não fora?
* * *
Zangada. Às voltas.
Cristo, devia ter trazido os sapatos de marcha, pensou Jane enquanto voltava a dar uma nova volta à casa de Manny. Outra vez.
Se soubesse para onde ir, já teria saído do apartamento, mas nem o seu cérebro, por mais arguto que fosse, parecia conseguir formular outra opção...
Ter o telefone a tocar não era propriamente bom sinal. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois ainda não tinha novidades.
Pegou no telemóvel.
- Ai... meu Deus.
Aquele número. Os dez algarismos que registara na marcação rápida de todos os telefones que possuíra antes daquele. Manny.
Quando atendeu tinha a mente vazia e os olhos marejados de lágrimas. O seu querido amigo e colega...
- Estou? - disse ele. - Dona Whit? - Em fundo, Jane ouviu um apito débil. - Estou? Hannah? - Aquele tom de voz... era igual ao de há um ano: grave, autoritário.
- Está aí alguém?
O apito ténue voltou a fazer-se ouvir.
Cristo... pensou Jane. Sabia onde ele estava.
Jane desligou e partiu do apartamento, passando pelos subúrbios. Viajando numa espécie de borrão à velocidade da luz, as moléculas atravessaram a noite num avanço
rodopiante que percorreu quilómetros como se fossem centímetros.
O Grove Cemetery era aquele tipo de sítio para o qual se precisava de um mapa, mas quando não se passava de éter no ar era possível vasculhar cinquenta hectares
num instante e meio.
Ao surgir das trevas junto à sua campa, Jane inspirou um fôlego entrecortado e quase soluçou. Lá estava ele, em carne e osso. O seu chefe. O seu colega. Aquele que
ela deixara para trás. E estava junto a uma lápide preta com o nome dela gravado.
Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa não indo ao seu funeral. O mais próximo fora ler sobre a notícia no Caldwell Courier Journal - e a imagem de
todos os cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes tinha-a deixado devastada.
O que via agora era muito pior.
E Manny parecia estar exatamente como ela se sentia: com o interior em ruínas.
Cristo, aquele aftershave dele ainda cheirava tão bem... e mesmo tendo perdido peso, continuava atraente como o pecado, com o seu cabelo escuro e rosto duro. O fato
de lista fina era de um corte perfeito - mas tinha sujidade à volta da bainha das calças engomadas. E os sapatos estavam igualmente sujos, o que a fez interrogar-se
onde poderia ele ter estado. De certeza que não se sujara ali junto à campa. Passado um ano, a terra endurecera e estava coberta de erva...
Ah, espera. É provável que o seu túmulo estivesse assim desde o primeiro momento. Afinal de contas, ela não deixara nada que pudesse ser enterrado.
Quando os dedos dele se apoiaram na pedra, Jane percebeu que fora ele a escolher a lápide. Mais ninguém teria o bom senso de encontrar exatamente aquilo que ela
teria desejado. Nada de extravagante ou palavroso. Breve, gentil, direto.
Jane pigarreou.
- Manny.
Ele levantou a cabeça repentinamente, mas não olhou - era como se estivesse convencido de que a ouvira simplesmente na sua cabeça.
Jane materializou-se completamente e falou mais alto.
- Manny.
Em qualquer outra circunstância, a reação seria hilariante. Manny deu meia volta, gritou, depois tropeçou na lápide e caiu de rabo no chão.
- Mas o que é que... Jesus... o que estás aqui a fazer? - arquejou Manny. A expressão no rosto dele começou por ser de horror, mas rapidamente se transformou numa
descrença absoluta.
- Desculpa.
Foi uma saída absolutamente inútil, mas não se lembrou de mais nada para dizer.
E era bem feita por não ter pensado. Quando encontrou aqueles olhos castanhos, de repente ficou sem mais nada para dizer.
Manny levantou-se de um ápice e o seu olhar sombrio percorreu-a da cabeça aos pés. E outra vez. E depois subiu... e fixou-se no rosto dela.
Depois surgiu a fúria. E uma dor de cabeça, obviamente, a julgar pela maneira como esfregava as frontes e franzia o cenho.
- Isto por acaso é uma piada?
- Não. - Como desejava que fosse. - Lamento.
A expressão furibunda dele era profundamente familiar, o que não deixava de ser irónico, sentir tal nostalgia por um olhar furioso.
- Lamentas.
- Manny, eu...
- Eu enterrei-te. E tu lamentas? Mas que merda é esta?
- Manny, eu não tenho tempo para explicar. Preciso de ti.
Manny fitou-a durante algum tempo.
- Apareces um ano depois de teres morrido e precisas de mim?
A realidade da imensidão de tempo que passara assentou sobre ela. Pesando-lhe em cima de tudo o resto.
- Manny... Eu não sei o que te diga.
- A sério? Que não seja, olha, já agora, estou viva. - Fitou-a. Limitou-se a fitá-la. - Por acaso fazes ideia do que foi perder-te? - disse então, com um tom de
voz rouco. - Passou rapidamente a mão pelos olhos. - Fazes?
A dor que Jane sentia no peito dificultava-lhe a respiração.
- Sim. Porque eu perdi-te... perdi a minha vida contigo e no hospital. - Manny começou a andar, às voltas à frente da lápide. E embora Jane o quisesse, sabia que
não devia aproximar-se.
- Manny... se houvesse maneira de ter voltado a ti, eu tinha-o feito.
- E fizeste-o. Uma vez. Pensei que fosse um sonho, mas não foi. Pois não?
- Não.
- Como é que entraste no meu apartamento?
- Entrei, só isso.
Manny parou e olhou-a, com a lápide entre os dois.
- Porque é que o fizeste? Para quê forjares a tua morte?
Bem, por acaso não o tinha feito.
- Não tenho tempo para explicar agora.
- Então, o que é que estás aqui a fazer? E que tal explicares isso?
Jane tossicou.
- Tenho alguém com um problema para o qual não tenho competência e quero que vejas a situação. Não te posso dizer para onde te tenho de levar, nem te posso avançar
grandes pormenores, e sei que isto não é justo... mas preciso de ti. - Sentia vontade de arrancar os cabelos. De cair de joelhos em pranto. De o abraçar. Mas limitou-se
a continuar, pois tinha de o fazer. - Há mais de uma hora que ando à tua procura, por isso o tempo está a esgotar-se. Sei que estás furioso e confuso, e não te censuro.
Mas zanga-te comigo depois... agora vem comigo. Por favor.
Só podia esperar. Manny não era o tipo de pessoa que alguém pudesse convencer. Ele teria de decidir fazê-lo... ou não.
E se infelizmente fosse este o caso, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse o antigo chefe e sentisse a falta dele, o homem dela era Vishous, e nem pensar
em deixar que acontecesse alguma coisa à irmã dele.
De uma maneira ou de outra, Manny ia fazer uma operação naquela noite.
Capítulo 5
Butch O’Neal não era o tipo de homem que deixasse uma dama em apuros.
Era o velho guarda dentro dele... o polícia dentro dele... o católico devoto e praticamente dentro dele. Dito isto, no caso da conversa que acabara de ter ao telefone
com a adorável e talentosa doutora Jane Whitcomb, o cavalheirismo não teve nada que ver com a sua prestabilidade. De todo.
Ao sair do Fosso e praticamente correr através do túnel subterrâneo que dava acesso ao centro de treino da Irmandade, os interesses de ambos estavam em perfeita
sintonia, mesmo que a eles não se aplicasse a história do «ser cavalheiro». Ambos receavam que V voltasse a perder o controlo.
Os indícios estavam todos visíveis. Bastava olhar para ele e podia ver-se que a tampa da panela de pressão estava prestes a ceder com todo o calor em polvorosa por
baixo dela. O que aconteceria a essa pressão? Teria de sair por algum lado e no passado os resultados tinham sido muito pouco agradáveis.
Depois de entrar na porta oculta que desembocava no escritório, Butch virou à direita e apressou-se pelo longo corredor até às instalações clínicas. O discreto aroma
a tabaco turco que pairava no ar disse-lhe ao certo onde encontrar o seu alvo, mas não era como se houvesse alguma dúvida quanto a isso.
Junto à porta fechada da sala de observações, esticou os punhos da camisa Gucci e ajeitou o cinto.
Os dedos bateram devagar. O coração batia com força.
Vishous não respondeu com um «entra». Em vez disso, o irmão saiu e fechou a porta atrás dele.
Porra, estava com mau aspeto. E tinha as mãos a tremer ao de leve enquanto enrolava um dos seus pregos para o caixão. Quando ele humedeceu a mortalha para a fechar,
Butch levou a mão ao bolso e puxou do isqueiro, acendendo a chama e oferecendo-a.
Quando o melhor amigo se inclinou sobre o brilho alaranjado percebeu cada sinal naquele rosto cruel e impassível.
Jane tinha toda a razão. O desgraçado estava em ebulição e guardava tudo dentro de si.
Vishous inalou profundamente e depois voltou a encostar-se à parede cinzenta, os olhos fitos em frente, as botas firmes no chão.
- Não me vais perguntar como estou? - acabou por resmungar.
Butch assumiu uma posição idêntica ao lado do amigo.
- Não preciso.
- Agora lês mentes?
- Pois é.
V inclinou-se para o lado e bateu a cinza para dentro do caixote do lixo.
- Então diz-me lá em que estou a pensar.
- Tens a certeza que queres que eu diga palavrões assim tão perto da tua irmã? - Ao receber uma gargalhada breve como resposta, Butch mirou o perfil de V. Tendo
em conta a nuvem de autocontrolo que cercava o irmão como um inverno nuclear, as tatuagens que tinha à volta dos olhos assumiam uma expressão particularmente sinistra.
- Não queres que o tente adivinhar em voz alta, V - disse, calmamente.
- Experimenta.
Isso queria dizer que V precisava de falar, mas, tal como era seu hábito, estava demasiado encerrado em si mesmo para dizer alguma coisa. O macho sempre se recusara
a abrir-se, mas pelo menos estava melhor do que antigamente. Em tempos idos nem sequer teria aberto aquela fresta.
- Pediu-te para tratares dela se isto não resultar, não foi? - aventou Butch, dando voz aos piores receios. - E não estou a referir-me a cuidados paliativos. A resposta
de V foi uma exalação que durou, mais coisa menos coisa, um quarto de hora além do infinito. - O que vais fazer? - indagou Butch, mesmo sabendo a resposta.
- Não vou hesitar. - O nem que isso me mate estava implícito.
Merda de vida. Por vezes, as situações em que ela deixava as pessoas eram demasiado cruéis.
Butch fechou os olhos e deixou que a cabeça se recostasse contra a parede. Para os vampiros, a família era tudo. O nosso companheiro, os irmãos que combatiam ao
nosso lado, o nosso sangue... esse era o mundo de cada um.
E segundo essa teoria, o sofrimento de V era o sofrimento de Butch. E de Jane. E do resto da Irmandade.
- Esperemos que não seja preciso chegar a esse ponto. - Butch olhou para a porta fechada. - A doutora Jane vai encontrar o tipo. Ela é um buldogue...
- Sabes o que é que me ocorreu há uns dez minutos?
- O quê?
- Mesmo que não fosse de dia, ela teria ido sozinha à procura do gajo.
Quando o odor de acasalamento do macho lhe chegou às narinas, Butch pensou, A sério? Jane e o cirurgião tinham sido muito chegados durante anos, pelo que se fosse
preciso convencê-lo, Jane iria sair-se melhor sozinha - isso, partindo do princípio de que ela seria capaz de passar da questão do de-regresso-dos-mortos. Além disso,
V era um vampiro. Olá?! Como se fosse preciso juntar mais uma complicação.
E por falar nisso, bem vistas as coisas, seria excelente se o cirurgião tivesse metro e meio, fosse míope e cheio de pelos nas costas. Se o lado de macho acasalado
de V estava a ser ativado, era melhor que o homem fosse horrendo.
- Não leves a mal - murmurou Butch -, mas será que a podes censurar?
- É a minha gémea. - O macho passou os dedos pelo cabelo preto. - Raios partam, Butch... a minha irmã.
Butch sabia bem o que era perder uma irmã, por isso, compreendia perfeitamente o macho. E, bolas, nem pensar em sair de junto do irmão. Ele e Jane eram os únicos
capazes de acalmar Vishous quando ele ficava naquele estado. E Jane ia estar bastante ocupada com o cirurgião e com a sua paciente...
O som do telemóvel de V fê-los saltar, mas o Irmão recuperou rapidamente, levando-o ao ouvido antes de tocar uma segunda vez.
- Sim? Encontraste? Graças... porra... sim. Sim. Estou à vossa espera aqui na garagem. Está bem. - Seguiu-se uma breve pausa e V olhou para o lado, como se desejasse
estar sozinho.
Ansioso por desaparecer dali, Butch olhou para os sapatos Dior Homme. O irmão nunca fora de demonstrar sentimentos em público ou de falar sobre assuntos pessoais
com Jane. Mas sendo de espécie pura, Butch não podia desmaterializar-se, nem tinha para onde ir.
Depois de murmurar uma despedida rápida, V deu uma passada profunda no cigarro.
- Podes parar de fingir que não estás aí - resmungou ao exalar.
- Que alívio. Sou péssimo nisso.
- Não tens culpa de ocupar espaço.
- Quer dizer que ela o encontrou? - Quando Vishous assentiu, Butch ficou muito sério. - Promete-me uma coisa.
- O quê?
- Não vais matar o cirurgião. - Butch sabia muito bem como era estar no mundo exterior e cair naquela toca de coelhos vampírica. No caso dele, as coisas tinham funcionado,
mas em relação a Manello? - O tipo não tem culpa, nem é problema dele.
V atirou a beata para o balde do lixo e relanceou Butch, com os olhos de diamante frios como uma noite no Ártico.
- Veremos como as coisas correm, chui.
Com isso, deu meia volta e regressou para junto da irmã.
Bem, pelo menos o filho da puta estava a ser sincero, pensou Butch, praguejando.
Manny Manello não gostava que outras pessoas conduzissem o seu Porsche. Com efeito, salvo o mecânico, nunca ninguém o fizera.
Contudo, naquela noite, Jane Whitcomb estava ao volante porque: primeiro, ela era competente e conseguia meter mudanças sem arranhar a caixa; segundo, ela argumentara
que só o poderia levar ao destino se fosse ela a conduzir; e terceiro, ele ainda não recuperara, depois de ter visto alguém que enterrara a cumprimentá-lo alegremente.
Tantas perguntas. Muita irritação, também. Ah, sim, e esperava chegar a um sítio todo bonito, e tal, mas ia esperar sentado. O que revelava uma certa ironia. Quantas
noites passara em branco, aninhado na cama com uma garrafa de Lagavulin, a rezar para que a sua antiga chefe do serviço de traumas voltasse para ele?
Manny olhou para o perfil dela. Iluminada pelo brilho do tabliê, continuava elegante. Continuava forte.
Continuava a ser o seu tipo de mulher.
Mas é claro que isso já não iria acontecer. Aparte todas as mentiras acerca da morte dela, Jane tinha agora uma aliança cinzento-escura na mão esquerda.
- Casaste-te - comentou Manny.
Jane não o olhou, limitando-se a prosseguir com a condução.
- Pois foi.
A dor de cabeça que lhe surgira assim que Jane aparecera detrás da campa passou imediatamente de desagradável a horrenda, e recordações enevoadas espreitaram à superfície
da sua mente consciente, provocando-o, fazendo-o querer esforçar-se por obter uma revelação total.
Todavia, viu-se obrigado a abortar essa missão de salvamento, antes que a tensão lhe provocasse um aneurisma. Por mais enlouquecedor que fosse andar perdido na sua
própria mente, Manny tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes caso continuasse a debater-se.
Olhando pelo vidro do carro, viu agigantarem-se ao luar pinheiros e carvalhos, com a floresta que rodeava os limites de Caldwell a tornar-se cada vez mais densa
à medida que seguiam para norte, afastando-se do centro urbano e das pontes gémeas da baixa.
- Tu morreste ali - constatou ele, num tom lúgubre. - Ou pelo menos fingiste ter morrido.
Tinham encontrado o Audi dela entre as árvores, num troço de estrada ali perto, depois de o carro se ter despistado num gancho. Mas não havia corpo por causa do
incêndio.
Jane pigarreou.
- Sinto-me como se só tivesse «desculpa» para dizer, o que é uma treta.
- De minha parte também não parece uma alegria.
Silêncio. Muito silêncio. Mas Manny não era homem para continuar a fazer perguntas, quando a única resposta era Desculpa. Além disso, ele não se encontrava num estado
de ignorância total. Sabia que ela tinha um paciente que queria que ele observasse, e sabia... Bem, basicamente era isso, certo?
Jane acabou por virar à direita para... uma estrada de terra batida?
- Já agora - resmungou Manny -, este carro foi feito para alcatrão e não para todo o terreno.
- É a única entrada.
Para onde, interrogou-se ele.
- Vais ficar a dever-me um grande favor.
- És o único que a pode salvar.
Manny relanceou-a.
- Não disseste que era uma «ela».
- Isso interessa?
- Tendo em conta aquilo que não entendo no meio desta situação, tudo importa.
Meros dez metros mais à frente passaram por inúmeras poças tão fundas como lagos. À medida que o Porsche as atravessava, Manny reclamou:
- E que se dane essa paciente. Vou querer compensação pelo que estás a fazer-me à carroçaria.
Jane soltou uma breve risada e, sem saber bem porquê, isso fez com que Manny sentisse uma pontada no peito - mas agarrar-se às tretas emocionais não ia trazer nada
de bom. Não que os dois alguma vez tivessem estado juntos - certo, da parte dele houvera atração. Uma grande atração. E, tipo, um beijo. Mas nada mais além disso.
E agora, ela era a Sr.ª de Outro.
Cerca de cinco minutos depois chegaram a um portão que parecia ter sido erigido durante as Guerras Púnicas. A coisa estava sustida em ângulos dignos da Alice no
País das Maravilhas, com a rede metálica apodrecida pela ferrugem e partida em certos pontos, não passando a vedação que ela cruzava de um metro e oitenta de arame
farpado para gado que já vira melhores dias.
No entanto, os portões abriram-se suavemente. Ao entrarem, Manny viu a primeira câmara de vídeo.
Enquanto avançavam a passo de caracol, um estranho nevoeiro apareceu vindo do nada, com a paisagem a tornar-se difusa até não conseguir ver mais do que um palmo
à frente do capô. Cristo, até parecia que estavam num episódio do Scooby-Doo.
O portão seguinte estava ligeiramente em melhores condições, o outro ainda melhor, bem como o que se seguiu.
O último portão por que passaram era novinho em folha e só lembrava Alcatraz. O sacana tinha mais de sete metros de altura e exibia sinais de Alta Voltagem um pouco
por todo o lado. E quanto ao muro onde estava preso? Aquela merda não era, de todo, para gado, mais parecendo destinado a velociraptors, e quase que apostava que
a fachada de betão ocultava um bom palmo ou dois de pedra horizontal sólida.
Manny virou a cabeça na direção de Jane quando o atravessaram e deram início a uma descida para um túnel que bem podia ter uma placa a anunciar «Holland» ou «Lincoln,»
tal era a aparência robusta e a iluminação da coisa. Quanto mais desciam, mais se intensificava a grande questão que o atormentava desde que a tinha visto. Para
quê simular a morte? Para quê provocar tal caos na vida dela e na vida das outras pessoas com quem ela trabalhara no St. Francis? Ela nunca fora cruel, nunca se
revelara falsa, nem tinha problemas financeiros, ou quaisquer outros dos quais fugir.
Percebia agora, sem que ela dissesse uma palavra que fosse.
Governo dos EUA.
Aquele tipo de instalação, com tais medidas de segurança... oculto nos arredores de uma cidade de tamanho considerável, mas nada tão grande como Nova Iorque, LA,
ou Chicago? Tinha de pertencer ao governo. Quem mais teria dinheiro para uma coisa daquelas?
E quem seria a mulher que ele iria tratar?
O túnel desembocou numa garagem típica, com pilones e lugares desenhados a amarelo e, no entanto, por maior que parecesse ser, só havia um par de carrinhas anónimas
com vidros escurecidos e um pequeno autocarro que também exibia vidros escuros.
Antes de ela estacionar o Porsche, uma porta de aço escancarou-se e...
Bastou uma olhadela para o tipo enorme que apareceu para que a cabeça de Manny explodisse, com a dor que se instalou atrás dos olhos de tal forma intensa que ele
ficou inerte no banco, os braços a tombarem-lhe para os lados, o rosto a contorcer-se com a agonia.
Jane disse-lhe qualquer coisa. Abriu-se uma porta. Depois a dele entreabriu-se.
O ar que lhe chegou ao rosto tinha um cheiro a qualquer coisa seca, que vagamente o lembrava de terra... mas havia mais qualquer coisa. Perfume. Um aroma com um
toque de madeira, que era a um tempo dispendioso e agradável, mas também algo do qual tinha uma vontade curiosa de fugir rapidamente.
Manny obrigou-se a abrir as pálpebras. Tinha a visão completamente desfocada, mas era espantoso o que conseguíamos fazer quando era preciso e, quando o rosto à frente
dele se focou, deu consigo a olhar para o cabrão de pera que tinha...
Com uma onda de dor, os olhos reviraram-se e Manny quase vomitou.
- Tens de libertar as recordações - ouviu Jane a dizer.
Nesse momento seguiu-se um pouco de conversa, com a voz da antiga colega a misturar-se com o tom grave do indivíduo com as tatuagens nas frontes.
- Está a matá-lo...
- O risco é muito grande...
- Como é que ele vai operar neste estado?
Seguiu-se um longo silêncio. E depois, de repente, a dor desvaneceu-se, como se lhe tivessem retirado um véu e as recordações inundaram-lhe a mente.
O paciente da Jane. Da altura do St. Francis. O homem de pera e... o coração com seis câmaras.
Manny abriu os olhos e dirigiu-os àquele rosto cruel.
- Eu conheço-o.
O tipo aparecera-lhe no gabinete e levara os registos sobre o seu coração.
- Tira-o tu do carro - foi a única reposta do Peras. - Não confio em mim para lhe mexer.
Que raio de comité de boas-vindas.
Enquanto o cérebro de Manny se esforçava por apreender tudo, pelo menos os pés e as pernas pareciam estar a funcionar devidamente. Depois de Jane o ter ajudado a
levantar-se seguiu-a, e ao brutamontes da barba, para o interior de instalações tão anónimas e limpas como as de qualquer hospital. Os corredores estavam desimpedidos,
a iluminação provinha de luzes fluorescentes no teto, tudo cheirava a desinfetante.
Viam-se também câmaras de vigilância em forma de bolha a espaços regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.
Enquanto andavam, Manny sabia perfeitamente que não devia fazer perguntas. Bem, isso e o facto de estar tão mal da cabeça que tinha a certeza de o ambulatório ser
o limite das suas capacidades naquele momento.
Portas. Passaram por muitas portas. Todas elas fechadas e, sem dúvida, trancadas.
Pois, isso de certeza que punha o «local desconhecido» no campo da «Segurança Nacional» não era?
Jane acabou por se deter a um par de portas giratórias duplas. Estava nervosa, e isso fazia-o sentir-se como se tivesse uma arma apontada à cabeça. Na sala de operações,
em inúmeras emergências traumatológicas, ela sempre mantivera a calma. Fora a sua imagem de marca.
Aquilo era pessoal, pensou Manny. De alguma forma, o que o esperava do outro lado da porta era algo muito próximo de Jane.
- Temos aqui boas instalações - indicou Jane -, mas não dispomos de tudo. Não temos RMi, apenas TAC. Mas a sala de operações vai estar à altura e não só posso servir
de assistente, como também tenho uma excelente enfermeira.
Manny respirou fundo e esforçou-se por se acalmar. Graças aos seus anos de formação e de experiência ou àquilo que era enquanto homem, libertou-se de todas as sensações
supérfluas, da dor que lhe permanecia na cabeça e da singularidade daquela descida ao mundo do 007, e avançou com o trabalho.
Primeiro ponto na lista? Livrar-se da audiência.
Olhou sobre o ombro na direção do Peras.
- Meu amigo, vai ter de se afastar. Quero-o no corredor.
A resposta que obteve à informação foi... simplesmente preciosa. O sacana exibiu um par de caninos de um comprimento chocante e rosnou como um cão, o que combinava.
- Certo - interveio Jane, interpondo-se entre os dois. - Está bem. O Vishous vai esperar lá fora.
Vishous? Teria ouvido bem?
Claro que, nesse caso, a mamã daquele menino teria acertado em cheio, isso partindo do princípio de que o espetáculo dental a que Manny estava a assistir não era
apenas resultado da situação, mas sim a personalidade do cabrão.
Mas pronto. Tinha coisas a fazer, e talvez o tipo pudesse ir roer um osso, ou assim.
Manny entrou na sala de observações...
Ó... Deus do céu.
Ó... minha nossa senhora.
A paciente na marquesa estava imóvel e... devia ser a coisa mais bela que ele já vira. O cabelo era preto azeviche e estava entrançado numa corda grossa pendurada
ao lado da cabeça. A pele era de um castanho dourado, como se fosse de ascendência italiana e tivesse estado recentemente ao sol. Os olhos... Os olhos dela pareciam
diamantes, no sentido de serem a um tempo incolores e brilhantes, apenas com um círculo escuro à volta da íris.
- Manny?
A voz de Jane estava mesmo atrás dele e, no entanto, para Manny era como se ela se encontrasse a quilómetros. Na verdade, o mundo parecia todo muito longe dali,
não existindo nada, além dos olhos da paciente, que o fitavam a partir da marquesa.
Finalmente aconteceu, pensou ele. Durante toda a vida interrogara-se por que nunca se apaixonara e agora tinha a resposta a essa questão. Estivera à espera daquele
momento, daquela mulher, daquela altura.
Esta fêmea é minha, pensou.
- És o curandeiro? - perguntou ela num tom de voz baixo que lhe parou o coração, as palavras com um sotaque adorável, e também um pouco surpreendidas.
- Sim. - Despiu o blusão e atirou-o para um canto, sem se preocupar onde iria aterrar. - Vim tratar de ti.
Quando se aproximou dela, os olhos deslumbrantes ficaram marejados de lágrimas.
- As minhas pernas... Sinto como se elas estivessem a mover-se, mas não o fazem.
Dor fantasma. Nada de surpreendente, caso ela estivesse paralisada.
Manny parou junto dela e passou os olhos pelo corpo, tapado com um lençol. Era alta, tendo pelo menos um metro e oitenta. E tinha uma constituição elegantemente
poderosa.
Era um soldado, pensou, mirando a força daqueles braços. Era uma lutadora.
Cristo, a perda de mobilidade em alguém como ela deixava-o devastado. Mas é claro que até mesmo quando se era um preguiçoso, a vida numa cadeira de rodas seria uma
merda das grandes.
Segurou-lhe na mão e assim que estabeleceu contacto, todo o seu corpo começou a ressoar, como se ela fosse a tomada da sua ficha interna.
- Vou tratar de ti - garantiu-lhe, fitando-a nos olhos. - Quero que confies em mim.
A mulher engoliu em seco e uma lágrima de cristal escorreu-lhe até à fronte. Instintivamente, Manny estendeu a mão livre e apanhou-a...
O rosnido que se fez ouvir junto à porta quebrou o encanto que o prendera e transformou-o numa espécie de presa. Quando olhou para o Peras, sentiu vontade de rosnar
de volta ao filho da puta. Algo que, é claro, não fazia qualquer sentido.
Ainda agarrado à mão da paciente, ordenou com brusquidão a Jane:
- Tira-me aquele miserável da sala de operações. E quero ver os exames. Já.
Ia salvar aquela mulher, nem que isso o matasse.
E tendo em conta o ódio puro que brilhou nos olhos do Peras, que porra, era bem capaz de ser esse o seu fim...
Capítulo 6
Qhuinn estava sozinho em Caldwell.
Pela primeira vez na maldita da vida.
Algo que, pensando bem, seria quase uma impossibilidade estatística. Passara tantas noites a lutar, a beber e a fazer sexo nos clubes da baixa e arredores que, de
certeza, uma ou duas das suas saídas teriam sido passeios solitários. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, era a primeira vez que estava sem os seus dois companheiros.
Claro que agora as coisas eram diferentes. Os tempos mudaram. As pessoas também.
John Matthew estava agora alegremente acasalado, pelo que quando tinha um turno de folga, como naquela noite, ficava em casa com a shellan dele, Xhex, e davam que
fazer à cama. E sim, claro, Qhuinn era o ahstrux nohtrum do tipo, mas Xhex era uma assassina symphath mais do que capaz de cuidar do seu macho, além de que o complexo
da Irmandade da Adaga Negra era uma fortaleza onde nem sequer o corpo de intervenção seria capaz de entrar. Por isso, ele e John tinham chegado a um acordo - sem
fazer grande alarido.
E quanto a Blay...
Qhuinn não ia pensar no melhor amigo. Nem pensar. De todo.
Perscrutou o interior do clube com o filtro de sexo ligado e começou a analisar as mulheres, os homens e os casais. Estava ali com um único motivo em mente, e o
mesmo era válido para todos os outros góticos.
Não procuravam uma relação. Nem sequer procuravam companheirismo. Era tudo uma questão de entrar e sair, e quando terminasse, passava-se ao Obrigado, minha senhora
- ou senhor, dependendo da disposição - já fui. Pois iria precisar de outro qualquer. Ou outros.
Garantidamente, aquela não seria uma noite de um caso único. Apetecia-lhe arrancar a pele, tal era a necessidade de descomprimir. Meu, sempre gostara de foder, mas
nos últimos dias, a líbido dele andava passada...
Será que Blay ainda continuava a ser o seu melhor amigo?
Qhuinn fez uma pausa e procurou brevemente uma janela de vidro onde pudesse espetar a cabeça. Que grande porra, já não tinha cinco anos. Os machos adultos não tinham
melhores amigos. Não precisavam.
Especialmente se o dito macho andasse a comer alguém. O dia inteiro. Todos os dias.
Qhuinn dirigiu-se ao bar.
- Herradura. Dupla. E que seja Selección Suprema.
Os olhos da mulher iluminaram-se por trás do lápis pesado e dos cílios postiços.
- Vai abrir conta?
- Vou. - E, pela maneira como ela percorreu a barriga lisa e a anca com a mão, bem podia ter pedido uma dose dela também.
Quando apresentou o AmEx preto, ela agitou de tal maneira os peitos para aceitar o cartão e inclinou-se tanto que até parecia que estava a tentar apanhar uma colher
do chão com os mamilos.
- Volto já com a sua bebida.
Que grande surpresa.
- Boa.
Afastando-se a gingar as ancas, estava claramente a perder tempo. Não era de todo o que ele procurava naquela noite - nem de longe. Para começar, era do género errado.
Não ia procurar nada de cabelo escuro. Verdade fosse dita, nem acreditava no que queria.
Ser daltónico tinha as suas limitações, mas quando só se vestia preto e se trabalhava de noite, regra geral isso não era problema. Além do mais, os olhos desemparceirados
eram tão sensíveis aos tons de cinza que conseguia distinguir «cores» - tinha tudo que ver com a gradação. Por exemplo, sabia quem eram as louras no clube. Sabia
a diferença entre morenas e mulheres de cabelo preto. Certo, talvez fosse enganado se uma das idiotas tivesse o cabelo pintado, mas mesmo assim, normalmente era
capaz de perceber que havia qualquer coisa errada, pois o tom da pele nunca batia certo.
- Aqui está - disse a mulher.
Qhuinn estendeu a mão, pegou no copo de shot, engoliu a tequila e devolveu o copo vazio ao balcão.
- Vamos repetir um par de vezes.
- É para já. - A rapariga voltou a exibir a copa DD, sem dúvida à espera que ele tomasse a iniciativa. - És o meu melhor cliente. É óbvio que aguentas bem.
Uh-huh. Pois. Como se a capacidade de engolir cem mililitros de bebida de uma vez só fosse uma grande coisa. Cristo, pensar que alguém com esse tipo de sistema de
valores podia votar deixava-o com vontade de ir outra vez à procura de ar livre.
Os humanos eram patéticos.
No entanto, quando se virou para olhar a multidão, pensou que talvez fosse boa ideia acalmar-se um bocado. Ele próprio estava patético nessa noite. Especialmente
quando avistou dois homens a um canto, separados apenas pela roupa de cabedal que vestiam. Como era óbvio, um deles era louro. Tal como o primo. Por isso, como também
era natural, a probabilidade de Blay e Saxton estarem juntos percorreu-lhe o campo de polo, marcando-lhe a relva proverbial com marcas de cascos e esterco.
Só que não era uma probabilidade. Ao final de cada noite, quando a mansão da Irmandade se separava depois da última refeição e cada um ia à sua vida, Blay e Saxton
dirigiam-se sempre discretamente à escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, a caminho dos seus quartos.
Nunca davam as mãos. Nunca se beijavam à frente de ninguém. E também não havia olhares quentes furtivos. Claro que Blay era um cavalheiro. E Saxton, a Rameira de
Classe, sabia dar o seu espetáculo.
O primo era uma puta de primeira...
Não, não é, frisou uma vozinha. Só o odeias porque ele está a comer o teu menino.
- Ele não é o meu menino.
- O que disseste?
Qhuinn lançou um olhar gelado ao intrometido - e depois refreou a dureza. Bingo, pensou.
Ao lado dele estava um macho humano, com cerca de um metro e oitenta, um belo cabelo, um bom rosto e grandes lábios. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha
algumas correntes na anca e duas argolas numa das orelhas. Mas o que mais o atraiu foi a cor do cabelo.
- Estava a falar sozinho - murmurou Qhuinn.
- Ah. Também o faço muitas vezes. - O sorriso foi breve e depois o tipo voltou a agarrar-se à...
- O que estás a beber? - perguntou Qhuinn.
Um copo meio vazio foi erguido.
- Vodca tónica. Detesto aquela porcaria frutada.
- Eu também. Eu cá sou mais tequila. Pura.
- Patrón?
- Nunca. Gosto de HD.
- Ah. - O homem virou-se e fitou a multidão. - Gostas do que é bom.
- Pois. - Qhuinn tinha vontade de perguntar se o senhor V&T estava a apreciar os homens ou as mulheres, mas guardou essa para depois. Meu, aquele cabelo era espetacular.
Grosso. Encaracolado nas pontas. - Procuras alguém em especial? - perguntou Qhuinn, em voz baixa.
- Talvez. E tu?
- Definitivamente.
O tipo riu-se.
- Há por aqui muitas mulheres atraentes. Podes escolher à vontade.
Grande. Merda. Ora que sorte: um hetero. Claro que talvez pudessem partilhar alguma coisa e avançar a partir daí.
O homem aproximou-se e estendeu a mão.
- Sou o... - Quando os dois se olharam de frente, o indivíduo deixou a frase por terminar, mas isso pouco importava. Qhuinn estava-se borrifando para o nome. - Tens
os olhos de cores diferentes? - perguntou o homem baixinho.
- Pois é.
- Isso é mesmo... fixe.
Pois. A menos que se fosse um vampiro nascido na glymera. Nesse caso passava a ser um defeito físico que significava que se tinha um problema genético e, logo, era-se
um embaraço para a ascendência e ficava-se praticamente vedado ao acasalamento.
- Obrigado - disse Qhuinn. - De que cor são os teus?
- Não consegues distinguir?
Qhuinn deu um toque na lágrima tatuada por baixo do olho.
- Daltónico.
- Ah. Os meus são azuis.
- E és ruivo, não és?
- Como é que sabes?
- O tom da pele. Além disso, és pálido e tens sardas.
- Espantoso. - O tipo olhou em volta. - Aqui está escuro... nunca imaginei que o conseguisses ver.
- Parece que consigo. - E se te mostrasse outras habilidades? acrescentou com os seus botões.
O novo amigo de Qhuinn esboçou um sorriso e voltou a olhar para a multidão.
- Porque é que me estás a olhar assim? - indagou, passado um minuto.
Porque te quero foder.
- Lembras-me alguém.
- Quem?
- Alguém que eu perdi.
- Ah, merda, desculpa.
- Não faz mal. A culpa foi minha.
Uma breve pausa.
- Quer dizer que és gay.
- Não.
O tipo riu-se.
- Desculpa. Pensei que... Então era um bom amigo.
Sem comentários.
- Vou repetir a dose. E se te abastecesses também?
- Obrigado, meu.
Qhuinn virou-se e fez sinal à empregada. Enquanto esperava que ela saltitasse até junto dele, planeou a abordagem. Um pouco mais de álcool. Depois juntar umas fêmeas.
O passo três seria ir para uma das casas de banho e foder as raparigas.
Depois... mais trocas de olhares. De preferência quando um deles, ou ambos, estivessem dentro de uma mulher. Porque por mais que aquele ruivo de cabelo espetacular
parecesse estar interessado em miúdas, o filho da puta sentira a ligação quando os dois tinham cruzado o olhar - e hetero era um termo relativo.
Mais ou menos como virgem.
E assim já eram dois, não é? Afinal de contas, Qhuinn nunca na vida estivera com um ruivo.
Mas aquela noite seria uma exceção.
Capítulo 7
Deitada na laje metálica por baixo do estranho lustre, Payne nem queria acreditar que o seu curandeiro era um humano.
- Compreendes o que estou a dizer? - A voz dele era grave e a pronúncia era-lhe estranha, mas nada que ainda não tivesse ouvido. A fêmea do seu gémeo tinha o mesmo
tom e inflexão. - Vou entrar e...
Enquanto falava com ela baixou-se para ficar no seu campo de visão, e ela gostou que o fizesse. Tinha os olhos de um tom castanho, mas o da casca de carvalho, do
cabedal antigo ou da pelagem de um veado. Tinham uma bela tonalidade avermelhada, como mogno que tivesse sido polido - e igualmente luminoso, arriscar-se-ia a dizer.
Desde a sua chegada que se verificava uma grande atividade, e uma coisa tornara-se clara: era bem versado na arte de dar ordens e era bastante confiante no seu ofício.
Havia também outra coisa... Não se importava que o irmão dela o tivesse odiado instantaneamente.
Se o odor de acasalamento de Vishous ficasse mais forte, tornar-se-ia visível.
- Compreendes?
- Ela não tem problema nenhum na merda dos ouvidos.
Payne olhou até onde conseguiu na direção da porta. Vishous regressara e exibia as presas, como se estivesse prestes a atacar. Felizmente tinha ao lado dele um macho
firme, qual trela com pernas fortes. Se o gémeo pretendesse atacar, aquele macho de cabelo escuro estaria preparado para deter fisicamente Vishous e arrastá-lo da
sala.
Isso era bom.
Payne voltou a concentrar-se no curandeiro.
- Compreendo.
O humano semicerrou os olhos.
- Então repete o que eu disse.
- Por que motivo?
- É o teu corpo. Quero certificar-me de que sabes o que lhe vou fazer e receio uma barreira linguística.
- Que porra, ela sabe o que estás a di...
O curandeiro olhou sobre o ombro.
- Mas ainda aqui estás?
O macho de cabelo escuro ao lado do gémeo dela envolveu o peito de Vishous com o braço e resmungou qualquer coisa num sibilo. Depois dirigiu-se ao curandeiro, falando
com uma pronúncia ligeiramente diferente.
- Tens de te acalmar, meu. Se não, deixo-o fazer picadinho de ti por usares esse tom. Capisce?
Via-se obrigada a apreciar a forma como o curandeiro enfrentou a agressão sem hesitar.
- Se querem que opere, é como eu quiser, à minha maneira. Portanto, ou ele vai para o corredor, ou encontram outro carniceiro. Como vai ser? - Nesse momento teve
lugar muita discussão, com Jane a deixar a vitrina onde se encontrava, que exibia imagens. Começou por falar baixo até que, por fim, a voz dela ficou tão alta como
as restantes.
Payne tossicou.
- Vishous. Vishous. Vishous! - Sem obter resposta, franziu os lábios e assobiou com tal estridência que poderia ter partido vidros. Quais velas a serem apagadas,
todos se silenciaram, embora a energia negativa permanecesse no ar, como o fumo a sair de um pavio. - Ele vai tratar-me agora - pronunciou, debilmente, com a tensão
presente na sala a assumir a forma de uma febre que lhe assolou o corpo, deixando-a ainda mais letárgica. - Ele vai... tratar-me. É essa a minha vontade. - Dirigiu
o olhar ao curandeiro. - Irás tentar abrir as minhas vértebras fundidas, como lhes chamas, e esperas que a espinal-medula não esteja cortada, mas apenas magoada.
Declaras ainda que não podes prever o resultado, mas que quando «lá estiveres» poderás avaliar os danos mais claramente. Sim?
O curandeiro lançou-lhe um olhar poderoso. Profundo. Grave. Com uma intensidade que a confundia... mas que não a ameaçava. Pelas Parcas, de todo - na verdade, algo
nos olhos dele fazia-a... libertar-se no seu íntimo.
- Disse-o corretamente? - indagou.
O curandeiro pigarreou.
- Sim. Disseste.
- Então opera... tal como lhe chamas.
Ouviu o homem de cabelo escuro dizer qualquer coisa ao seu gémeo junto à porta e depois Vishous levantou o braço, apontando o dedo enluvado ao humano.
- Se ela não sobreviver, tu também não sobreviverás.
Praguejando, Payne fechou os olhos e voltou a desejar que aquilo que tanto desejara não tivesse sido conseguido. Seria melhor partir para o Vápido do que provocar
a morte a um humano inocente...
- Combinado.
As pálpebras de Payne abriram-se. O curandeiro erguia-se à frente da dimensão e da força do seu gémeo, aceitando o fardo que lhe era depositado sobre os ombros.
- Mas tu sais - disse o humano. - Tens de sair daqui e ficar lá fora. Não permito que as tuas merdas me distraiam.
O corpo imenso do seu gémeo estremeceu nos ombros e no peito, mas depois ele assentiu uma única vez.
- Combinado.
E ficou sozinha com o curandeiro, salvo por Jane e a outra enfermeira.
- Um último teste. - O curandeiro chegou-se para o lado e pegou num canudo fino que estava em cima de uma das bancadas. - Vou passar com esta caneta no teu pé. Quero
que me digas se sentes alguma coisa.
Quando Payne assentiu, ele saiu-lhe do campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se por se aperceber de algum tipo de sensação. Fosse o
que fosse.
Certamente, se houvesse uma reação, por mais ténue, seria um bom sinal...
- Sinto qualquer coisa - disse Payne, com uma energia renovada. - No meu lado esquerdo.
Seguiu-se uma pausa.
- Então e agora?
Implorou às pernas que tivessem uma receção semelhante e teve de respirar fundo antes de ser capaz de responder.
- Não. Nada.
O som dos lençóis macios a serem dispostos foi a única confirmação de que voltara a estar tapada. Mas pelo menos sentira alguma coisa.
Mas em vez de se dirigir a ela, o curandeiro e a fêmea do seu gémeo conversaram em voz baixa, sem que ela os percebesse.
- Por minha fé - exclamou Payne -, talvez se dispusessem a incluir-me na discussão. - O par aproximou-se e era curioso que nenhum dos dois parecia satisfeito. -
Foi bom que tivesse sentido alguma coisa, não?
O curandeiro aproximou-se da sua cabeça e sentiu o calor forte da mão dele a segurar na sua. Ao fitá-la, voltou a sentir-se cativada. Ele tinha as pestanas muito
compridas. E no maxilar forte e nas faces via-se uma sombra de barba. O cabelo farto e escuro era brilhante.
E gostava mesmo do cheiro dele.
Mas não lhe respondera, pois não?
- Não foi, curandeiro?
- Naquela altura não te estava a tocar no pé esquerdo.
Payne sentiu-se inesperadamente perturbada e pestanejou. Ainda assim, depois de tanto tempo imóvel, ela deveria estar preparada para uma informação daquelas, não
era verdade?
- Vais então começar? - quis saber.
- Ainda não. - O curandeiro olhou para Jane e depois outra vez para ela. - Vamos ter de te deslocar para a operação.
- Este corredor não fica longe o suficiente, meu caro. - Quando assimilou a voz firme de Butch, V ficou com vontade de lhe arrancar a cabeça. E o desejo acentuou-se
quando o sacana prosseguiu. - E se fôssemos até ao Fosso?
A bem da verdade, tratava-se de uma sugestão lógica. Ainda assim...
- Estás a começar a irritar-me, chui.
- Isso é uma novidade? Já agora, estou-me borrifando.
A porta da sala de observações abriu-se e Jane saiu. Quando o fitou, os olhos de um verde floresta não estavam satisfeitos.
- O que foi agora? - rosnou V, sem saber se conseguiria aguentar mais más notícias.
- Ele quer deslocá-la.
Depois de um instante a pestanejar como uma vaca no pasto, V abanou a cabeça, convencido de que confundira as línguas a serem usadas.
- Desculpa?
- Para Saint Francis.
- Nem pensar...
- Vishous...
- É um hospital humano!
- V...
- Será que perdeste a cabeça...
Nesse momento, o malfadado cirurgião humano apareceu e para seu crédito, ou por uma questão de insanidade, dirigiu-se de imediato a V.
- Não posso operá-la aqui. Queres que tente aqui e que seja eu a paralisá-la de vez? Usa a porra da cabeça... preciso de RMi, de microscópios, de equipamento e pessoal
que não têm aqui. Estamos a ficar sem tempo e ela não pode ser transportada para muito longe... além do mais, se pertencem ao governo dos EUA, podem fazer-lhe desaparecer
os registos e garantir que isto não chega ao nariz da imprensa, pelo que com a minha ajuda, a exposição vai ser mínima.
Governo dos EUA? Mas o que... Pois, está bem.
- Ela não vai para um hospital humano. Ponto final.
O tipo franziu o sobrolho ao ouvir a parte do «humano», mas depois pareceu ignorá-lo.
- Nesse caso, não a opero...
V atirou-se ao homem.
Tudo aconteceu numa fração de segundo. Num minuto estava de pé, firme nas suas botas; no outro estava a voar - pelo menos até embater no bom doutor e o lançar contra
a parede de cimento do corredor.
- Vai lá para dentro e começa a cortar - rosnou V.
O humano mal conseguia respirar, mas a hipoxia não o impediu de se mostrar à altura. Fixou os olhos de V incapaz de falar, articulou: Não opero.
- V larga-o. E deixa-o levá-la para onde tem de ir.
Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, a vontade de soltar a pirotecnia tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de outro mirone? Ainda por cima, porra,
aquele que mandava.
V apertou ainda mais o colarinho do cirurgião.
- Não a vais levar para lado nenhum...
A mão no ombro de V era pesada e a voz de Wrath era afiada como uma adaga.
- Não és tu quem mandas aqui. O responsável por ela sou eu.
Palavras erradas. A tantos níveis.
- Ela é do meu sangue - resmungou V.
- E fui eu que a deixei naquela cama. Ah, também sou o cabrão do teu rei, por isso vais fazer o que te digo, Vishous.
No momento em que estava prestes a dizer qualquer coisa de que mais tarde se arrependeria, a sanidade de Jane alcançou-o.
- V, neste momento, o problema és tu. Não é o estado da tua gémea, nem a decisão do Manny. Tens de recuar e de pensar, não de reagir. Vou estar sempre com ela, e
o Butch vai comigo, não vais?
- Claro - garantiu o chui. - E também vou buscar o Rhage. Ela não fica sozinha um instante que seja.
Silêncio. Durante o qual o lado racional de V se esforçou por assumir o controlo... e o humano recusava-se a ceder. Apesar de estar a uma facada do caixão, o sacana
continuava a fitá-lo.
Cristo, quase merecia respeito por isso.
A mão de Jane no bíceps de V não era de todo como a de Wrath. O toque dela era leve, calmante, cuidadoso.
- Passei anos naquele hospital. Conheço as salas, as pessoas, o equipamento. Não há um metro quadrado daquelas instalações que eu não conheça como a palma da minha
mão. O Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá depressa... e que está protegida. Como chefe de cirurgia é ele que manda, e eu vou
estar sempre com ela...
Jane continuou a falar, mas ele não ouviu mais nada, com uma visão repentina a abater-se sobre ele como um sinal recebido de um transmissor externo. Viu claramente
a irmã montada a cavalo, a galopar à beira de uma floresta. Não tinha sela nem brida, e o cabelo estava solto e a adejar atrás dela ao luar.
Ria-se. Com um prazer total e absoluto.
Era livre.
Durante a vida, ele sempre vira imagens do futuro - por isso sabia que não era o caso. As suas visões eram exclusivamente de morte - as dos irmãos e de Wrath, e
das suas shellans e seus filhos. Saber como aqueles que o rodeavam iriam morrer fazia parte dos seus segredos e da sua loucura. Conhecia apenas a forma das mortes,
nunca a altura, e por isso não os podia salvar.
Aquilo que estava a ver não era o futuro. Era o que queria para a gémea que encontrara demasiado tarde e que se arriscava a perder demasiado cedo.
V, neste momento, o problema és tu.
Sem se arriscar a falar com nenhum deles, largou o médico como se fosse uma moeda e recuou. Enquanto o humano recuperava o fôlego, V só olhou para Jane.
- Não a posso perder - disse, numa voz fraca, mesmo com testemunhas presentes.
- Eu sei. Vou estar sempre com ela. Confia em mim.
V fechou brevemente os olhos. Uma das coisas que ele e a sua shellan tinham em comum era o facto de ambos serem muito, muito bons naquilo que faziam. Dedicados ao
seu trabalho, existiam em universos paralelos de criação e de concentração: o combate para ele, a cura para ela.
Portanto, era o equivalente a ele jurar que mataria alguém por ela.
- Certo - gemeu. - Está bem. Mas dá-me um minuto com ela.
Abriu as portas duplas e aproximou-se da cama da gémea, consciente de que poderia ser a última vez que falava com ela. Os vampiros, tal como os humanos, podiam morrer
durante uma operação. Morriam mesmo.
Parecia ainda pior do que antes, ali deitada imóvel, com os olhos não só fechados mas cerrados com força, como se ela estivesse em sofrimento. Grande porra, a shellan
dele tinha razão. Era ele que estava a empatar, e não a merda do cirurgião.
- Payne.
As pálpebras abriram-se lentamente, como se pesassem tanto como vigas.
- Meu irmão.
- Vais para um hospital humano, está bem? - Quando ela assentiu, V detestou que a pele dela estivesse da cor do lençol branco. - É aí que ele te vai operar.
Quando ela voltou a assentir, entreabriu os lábios e o fôlego saiu entrecortado, como se respirasse com dificuldade.
- É pelo melhor.
Cristo... e agora? Dizia que a amava? Imaginava que sim, à sua maneira disparatada.
- Escuta... cuida-te - resmungou.
Cretino. Estúpido como uma menina. Mas era tudo o que conseguiria dizer.
- Tu... também - gemeu ela.
Como com vontade própria, a sua mão boa deslizou lentamente até à dela. A gémea não se mexeu, nem reagiu quando ele a apertou um pouco mais e, de repente, ficou
em pânico ao pensar que perdera a sua oportunidade, que ela já partira.
- Payne.
As pálpebras estremeceram e abriram-se.
- Sim?
A porta abriu-se e Jane espreitou.
- Temos de ir.
- Sim. Está bem. - V apertou uma última vez a mão da irmã, depois saiu apressado da sala.
Quando chegou ao corredor, Rhage já lá estava, bem como Phury e Z. O que era bom. Phury era especialmente dotado no que dizia respeito a hipnotizar humanos - e já
o fizera em St. Francis.
V dirigiu-se a Wrath.
- Vais alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação vai precisar de se alimentar e o teu sangue é o mais forte que temos.
Quando fez a exigência teria sido interessante pensar que Beth, a rainha, podia não gostar de partilhar o parceiro dessa maneira. Claro que, sacana egoísta que era,
isso pouco lhe importava.
Mas Wrath limitou-se a assentir.
- Foi a minha shellan a primeira a sugeri-lo.
Os olhos de V fecharam-se. Raios, isso é que era uma fêmea de valor. A todos os níveis.
Antes de sair olhou uma derradeira vez para a sua shellan. Jane estava firme como uma casa erguida em terreno sólido, o rosto e os olhos fortes e decididos.
- Não tenho palavras - admitiu ele, num tom rouco.
- E eu sei exatamente o que me estás a dizer.
V estava a um metro dela, preso ao chão, desejando ser um tipo diferente de macho. A desejar... que praticamente tudo fosse diferente.
- Vai - murmurou ela. - Eu trato disto.
V olhou uma última vez para Butch e quando o chui assentiu uma vez, a decisão foi tomada. Vishous aquiesceu para o seu rapaz e afastou-se, saindo do centro de treino
e entrando no túnel subterrâneo, a caminho do Fosso.
Onde se apercebeu de imediato que a distância física não lhe servia de nada. Continuava a sentir-se no meio de tudo... e não confiava em si... acabaria por voltar
«para ajudar».
Sair. Tinha de sair dali e afastar-se de tudo e todos.
Saindo pela pesada porta de entrada, marchou até ao pátio... e acabou parado sem ir a lado nenhum, tal como os carros alinhados lado a lado à frente da fonte.
Ali estacado como um poste, um barulho estranho de crepitar chamou-lhe a atenção. Ao início não o conseguiu localizar, mas depois olhou para baixo. A mão enluvada
tremia e batia-lhe na parte de cima da coxa.
Por baixo do cabedal forrado a chumbo, o clarão era suficientemente brilhante para o obrigar a semicerrar os olhos.
Que raios. Estava tão perto de perder o controlo que mais valia já estar a voar.
Praguejando, desmaterializou-se e dirigiu-se ao local para onde ia sempre quando ficava assim. Não queria esse destino, nem o impulso que o lançara na noite... mas
à semelhança de Payne, o destino não estava nas suas mãos.

 

CONTINUA

1761, PAÍS ANTIGO
Xcor viu o pai ser morto apenas cinco anos depois da sua transição.
Tudo aconteceu à sua frente e, contudo, mesmo com tal proximidade, não teve como perceber o que teve lugar. A noite começou como qualquer outra, com a escuridão a abater-se sobre a paisagem de floresta e grutas, com as nuvens altaneiras a garantirem-lhe, e aos que cavalgavam consigo, uma proteção contra o luar. O grupo de soldados era composto por seis elementos: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E havia também o pai.
O Derramador de Sangue.
Anteriormente um elemento da Irmandade da Adaga Negra.
O que os levara a sair naquele serão fora o mesmo que os impelia a cada pôr-do-sol: procuravam minguantes, as armas desprovidas de alma do Ómega, que pretendia exterminar a raça dos vampiros. E encontravam-nos com frequência.
Claro que os sete não eram a Irmandade.
Ao contrário desse grupo de guerreiros secretos e louvados, o bando de bastardos, liderado pelo Derramador de Sangue, não passava de um acumular de soldados. Não tinham cerimónias. Não eram venerados pela populaça civil. Não eram alvo de histórias nem de louvores. A sua ascendência talvez fosse aristocrática, mas todos haviam sido rejeitados pelas famílias, já que tinham nascido com defeitos, ou fora de acasalamentos respeitáveis.
Nunca passariam de carne dispensável na guerra pela sobrevivência.
Claro que, mesmo sendo tudo verdade, aquele grupo representava a elite dos soldados, sendo os mais ferozes, os mais fortes, aqueles que mais vezes tinham dado provas do seu valor ao mestre mais duro de toda a raça: o pai de Xcor. Selecionados individualmente e escolhidos com sagacidade, tais machos eram mortíferos contra o inimigo e ignoravam os códigos da sociedade vampírica. Também ignoravam os códigos no que dizia respeito à matança: pouco lhes importava se a presa era um matador, um humano, um animal ou uma criatura lupina. Haveria sangue.
Tinham feito um único juramento: o seu mestre era o seu senhor e mais ninguém. Para onde ele ia, eles seguiam, e nada mais havia a dizer. Muito mais simples do que a idiotice da Irmandade - mesmo que Xcor fosse um potencial candidato pelo sangue que nele fluía, não lhe interessava ser um Irmão. Pouco lhe importava a glória, já que tal não acarretava a doce libertação que era a matança. Era melhor deixar tais tradições inúteis e rituais vãos para quem se recusava a empunhar outra coisa que não uma adaga negra.
Ele usaria a arma que estivesse disponível.
O pai também era assim.
O estrondo dos cascos abrandou e reduziu-se a silêncio quando os guerreiros saíram da floresta e chegaram a um enclave rodeado por carvalhos e arbustos. O fumo das lareiras caseiras chegava-lhes trazido pela brisa, mas havia algo mais que confirmava que tinham, por fim, encontrado a pequena povoação que buscavam. Bem lá em cima, sobre um penhasco íngreme, empoleirava-se um castelo fortificado, qual águia cujas garras eram os alicerces cravados na rocha.
Humanos. A guerrear-se entre si.
Tão enfadonho.
Mesmo assim, não havia como deixar de respeitar a edificação. Se Xcor alguma vez se reformasse, talvez massacrasse a dinastia ali residente e tomasse para si o baluarte.
Seria muito mais simples pilhar do que construir.
- Para a aldeia - ordenou o pai. - Avancemos para os divertimentos.
Dizia-se que havia ali minguantes, tendo os monstros pálidos se imiscuído entre os aldeões que haviam delineado talhões e plantado casas de pedra à sombra do castelo.
Era típico da estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se numa povoação, dominar os machos um a um, matar ou vender as mulheres e as crianças, desaparecer com armas e cavalos, e passar ao povoado seguinte em maior número.
Nesse aspeto, Xcor assemelhava-se ao inimigo: quando terminava um combate levava sempre consigo o que podia, antes de partir a caminho da batalha seguinte. Todas as noites, o Derramador de Sangue e seus soldados avançavam por aquilo a que os humanos chamavam de Inglaterra, e quando chegavam ao extremo do território dos Escoceses davam meia volta e regressavam para sul, cada vez mais para sul, até que o calcanhar de Itália os obrigava a recuar. Depois voltavam a percorrer todos esses muitos quilómetros. E outra vez. E mais outra.
- Deixamos ali as nossas provisões - declarou Xcor, apontando para o tronco grosso de uma árvore que tombara sobre um ribeiro.
Nada se ouviu, além do som do cabedal a ranger e da fungadela ocasional por parte dos garanhões, enquanto se procedeu à transferência dos suprimentos modestos. Quando tudo ficou armazenado por baixo do carvalho abatido voltaram a montar e juntaram-se com os cavalos de raça - os únicos bens que possuíam, para além das armas. Xcor não via qualquer utilidade nos objetos belos ou confortáveis - mero peso que servia apenas para atrasar. Agora, um cavalo forte e uma adaga bem equilibrada? Isso, sim, era inestimável.
Os sete não fizeram qualquer tentativa de abafar o estrondear dos cascos das montadas. Contudo, não houve gritos de guerra. Tal seria um desperdício de energia, já que o inimigo não precisava de grande incentivo para os vir receber.
Um humano ou dois espreitaram à porta, à laia de boas-vindas, voltando rapidamente a trancar-se nas suas casas. Xcor ignorou-os. Em vez disso perscrutou as atarracadas habitações de pedra, em busca de formas bípedes pálidas como assombrações e que tresandavam a cadáveres besuntados com melaço.
O pai aproximou-se dele e ofereceu-lhe um sorriso maléfico.
- Talvez mais logo desfrutemos dos frutos destes pomares.
- Talvez - murmurou Xcor, com o garanhão a abanar a cabeça. A bem da verdade, não estava muito interessado em levar fêmeas para a cama ou em obrigar machos a submeterem-se, mas o seu progenitor não admitia recusas, nem sequer no que dizia respeito aos caprichos do prazer.
Usando sinais gestuais, Xcor orientou três dos elementos do bando para a esquerda, onde se encontrava uma pequena estrutura com o telhado inclinado encimado por uma cruz. Ele e os outros seguiriam para a direita. O pai faria o que lhe aprouvesse. Como sempre.
Obrigar os garanhões a manter-se a passo era uma tarefa hercúlea mesmo para os braços mais poderosos, mas ele estava habituado a tal desafio e permaneceu hirto na sela. Sombrios, os olhos atravessaram as sombras lançadas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de matadores que apareceu de trás do ferreiro estava bem armado.
- Cinco - rosnou Zypher. - Mas que bela noite.
- Três - corrigiu Xcor. - Dois ainda são humanos... Embora matar esse par também seja um prazer.
- Com qual ficarás, meu senhor? - perguntou o camarada com uma deferência conquistada e não recebida como parte de um qualquer direito de nascença.
- Os humanos - indicou Xcor, chegando-se à frente para se preparar para o momento em que desse liberdade ao garanhão. - Se houver mais minguantes, isso vai atraí-los.
Incitou a grande montada e cingiu-se mais à sela, exibindo um sorriso quando os minguantes, de cotas de malhas e armas empunhadas, se mantiveram firmes. Os dois humanos ao lado deles, contudo, não ficariam tão desafiantes. Embora o par apresentasse os mesmos aprestos de combate, dariam meia volta e fugiriam à primeira vista das presas, assustados como bestas agrícolas com um tiro de canhão.
Foi por isso que cortou subitamente para a direita após três únicas galopadas. Atrás da cabana do ferreiro puxou as rédeas e saltou do garanhão, uma besta selvagem que se revelava obediente quando o cavaleiro desmontava, pelo que esperaria...
Uma fêmea humana irrompeu vinda da porta das traseiras, com a camisa de dormir a criar um raio brilhante nas trevas enquanto procurava equilibrar-se na lama. Assim que o viu gelou, aterrorizada.
Era uma reação lógica: Xcor tinha o dobro do tamanho dela, se não fosse três vezes maior e, ao contrário da mulher, não estava vestido para dormir mas sim trajado para a guerra. Quando a mão dela subiu até ao pescoço, ele cheirou o ar e captou-lhe o aroma. Mmm, talvez o pai tivesse razão em querer desfrutar do pomar...
Ao pensar nisso soltou um rosnido que levou os pés da mulher a darem início a uma fuga desesperada. Ver a evasão libertou o predador em Xcor. Com a sede de sangue a revolver-lhe as entranhas, recordou-se de que havia semanas que se alimentara de um membro da sua espécie, e embora aquela rapariga fosse humana, seria suficiente para aquela noite.
Infelizmente, naquele momento não haveria tempo para tal distração - embora não houvesse dúvida de que mais tarde o pai a capturaria. Se Xcor precisasse de sangue para se nutrir, iria obtê-lo com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Virou as costas à fugitiva, firmou os pés e desembainhou a sua arma de eleição: embora as adagas fossem eficazes, ele preferia a gadanha, uma arma de cabo comprido e modificada para a bainha que tinha presa às costas. Era mestre na utilização daquele peso e sorriu enquanto trespassava o vento com a lâmina curva e temível, à espera de fazer as vezes de rede com o par de peixes que de certeza iriam nadar...
Ah, sim, como era agradável ter razão.
Na sequência imediata de um clarão forte e de um estampido na estrada principal, os dois humanos apareceram aos gritos atrás do ferreiro, como se fossem perseguidos por salteadores.
Mas tinham-se enganado, não era verdade? O salteador aguardava ali.
Xcor não gritou, não praguejou, nem sequer rosnou. Iniciou uma corrida com a gadanha, a arma equilibrada entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas cobriam a distância. Bastou vê-lo para que os humanos tentassem travar, com os braços abertos à procura de equilíbrio, quais asas de patos que pousam na água.
O tempo abrandou quando chegou ao duo, com a arma preferida a descrever um grande círculo à altura do pescoço dos humanos.
Foram decapitados com um único golpe limpo, os rostos surpreendidos a deixarem-se ver e a desapareceram à medida que a parte decepada do corpo rodopiava, deixando o sangue a jorrar para salpicar o peito de Xcor. Na ausência da coroa craniana, as partes inferiores dos corpos tombaram com uma bizarra graciosidade fluida, ficando inanimados numa confusão de membros.
Agora sim, gritaria.
Dando meia volta, Xcor firmou as botas de cabedal na lama, inspirou bem fundo e libertou o fôlego num brado enquanto girava a gadanha à sua frente, com o aço tingido de vermelho esfomeado por mais cor. Embora as presas tivessem sido meros humanos, o furor da matança era melhor do que um orgasmo, e sentia a consciência de ter ceifado vidas e deixado cadáveres atrás de si a percorrê-lo como hidromel.
Assobiou entre dentes para chamar o garanhão, que de imediato lhe obedeceu. Com um salto voltava à sela, a gadanha erguida na mão direita enquanto manobrava as rédeas com a esquerda. Lançou a montada a galope, percorreu um estreito carreiro de terra e surgiu no meio da batalha.
Os companheiros bastardos estavam no auge da luta, com as espadas a retinir e os gritos a preencherem a noite à medida que os adversários se enfrentavam. E, tal como Xcor previra, outra meia dúzia de minguantes apareceu montada em garanhões de raça, quais leões que pretendem defender o território.
Xcor abateu-se sobre os inimigos que surgiam, prendendo as rédeas na sela e brandindo a gadanha enquanto o garanhão corria de dentes arreganhados na direção dos outros cavalos. Saltou sangue negro e partes de corpos à medida que retalhava os oponentes, com o vampiro e o cavalo unos no seu ataque.
Ao trespassar outro matador com o seu aço, cortando-o ao meio ao nível do peito, tinha noção de que nascera para aquilo, que este era o melhor e mais nobre uso que lhe poderiam dar no seu tempo na terra. Era um assassino e não um defensor.
Não lutava pela sua raça, mas sim por ele próprio.
Tudo acabou demasiado rápido, com a neblina noturna a envolver os minguantes tombados que se contorciam em poças de sangue negro. Eram poucos os ferimentos entre os elementos do seu bando. Throe tinha um lanho no ombro, feito pelo embate de algum tipo de lâmina na carne. E Zypher coxeava, com uma mancha vermelha que lhe descia a perna e chegava à bota. Nenhum deles foi abrandado ou parecia de todo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e devolveu a gadanha à bainha. Ao sacar da adaga de aço para começar a trespassar os matadores, lamentou ter de devolver o inimigo ao seu criador. Queria mais para combater e não menos...
Um grito lancinante fê-lo virar a cabeça. A humana de camisa de noite corria pela estrada de terra batida da aldeia, o corpo pálido a toda a brida, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor cavalgava o garanhão, com o corpo imenso do Derramador de Sangue a inclinar-se para o lado na sela quando chegou junto à fêmea. A bem da verdade não era de todo uma corrida, e quando a flanqueou agarrou-a com o braço e atirou-a sobre o regaço.
Não se deteve, nem sequer abrandou depois da captura, mas houve movimento: o garanhão a galope e a humana a debater-se, o pai de Xcor conseguiu, mesmo assim, morder o pescoço magro com as presas, prendendo-se ao pescoço da mulher como se a pretendesse imobilizar com os caninos.
E ela teria morrido. De certeza que morreria.
Acaso o Derramador de Sangue não morresse primeiro.
Do nevoeiro em volutas surgiu uma figura espectral, quase como se ela se tivesse formado a partir dos filamentos de humidade que pairavam no ar. E assim que Xcor viu a imagem semicerrou os olhos e confiou no seu faro apurado.
Parecia ser uma fêmea. Da sua espécie. Com vestes brancas.
E o cheiro recordou-o de algo que não era capaz de identificar.
Ela estava diretamente no caminho do pai, mas parecia não estar de todo preocupada com o cavalo ou com o guerreiro sádico que em breve estaria em cima dela. O progenitor de Xcor, contudo, ficou arrebatado com ela. Assim que a viu largou a mulher humana, como se esta não passasse de um osso de cordeiro já limpo de carne.
Aquilo estava errado, pensou Xcor. Por sua fé, era um macho de ação e poderoso, de todo alguém que se acobardasse perante um membro do sexo mais fraco... mas tudo no seu corpo o alertava para o facto de aquela entidade etérea ser perigosa. Mortífera.
- Ei! Pai! - chamou. - Vira-te!
Xcor assobiou para chamar o garanhão, que obedeceu de imediato. Saltando para a sela, bateu com os calcanhares nos flancos da montada e lançou-se numa corrida para intercetar o caminho do pai, levado por um pânico bizarro.
Não foi a tempo. O pai chegou à fêmea, que se acocorara lentamente.
Pelas Parcas, ela ia saltar para...
Num movimento coordenado, a fêmea elevou-se a agarrou a perna do pai de Xcor, servindo-se dela como forma de saltar para o cavalo. Depois, agarrando-se ao peito sólido do Derramador de Sangue, saltou para o outro lado e levou o macho consigo até ao chão, com o ímpeto poderoso a pôr em causa tanto o seu género como a sua natureza etérea.
Não era um fantasma, mas sim de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor se preparava para lançar o garanhão contra os dois, a fêmea soltou um grito que não era, de todo, feminino: mais próximo do seu próprio grito de guerra, o brado abafou o ribombar dos cascos e os sons do seu bando de bastardos que se preparava para responder àquele ataque inesperado.
No entanto, não havia necessidade imediata de interceder por ele.
O pai, apesar do choque de ter sido arrancado da sela, rolou sobre as costas e desembainhou a adaga, com uma expressão animalesca no rosto. Xcor praguejou e deteve o salvamento, pois era certo que o progenitor assumira o controlo. O Derramador de Sangue não era o tipo de homem que se ajudasse - já espancara Xcor por isso, uma lição aprendida da maneira mais dura, mas que seria sempre lembrada.
Mesmo assim, Xcor desmontou e ficou preparado, para o caso de haver mais daquele género de Valquírias na floresta.
E foi essa proximidade que lhe permitiu ouvi-la a dizer claramente um nome.
- Vishous.
A fúria do pai acompanhou-o na breve confusão que se seguiu. Antes que pudesse retomar a autodefesa, ela começou a brilhar com o que seria garantidamente uma luz ímpia.
- Pai! - bradou Xcor enquanto corria em frente.
Mas foi demasiado tarde. O contacto estabeleceu-se.
Em torno do rosto barbado do progenitor irromperam chamas que lhe envolveram a forma corpórea como se lambessem feno seco. A fêmea saltou para trás com a mesma graciosidade com que o tinha derrubado e observou-o a tentar abafar freneticamente o fogo, embora em vão. Gritou na noite enquanto ardia vivo, com as roupas de cabedal a não lhe protegerem a pele e os músculos.
Não havia como se aproximar das chamas e Xcor parou, erguendo o braço à frente e curvando-se para se afastar do calor exponencialmente mais quente do que deveria.
Entretanto, a fêmea erguia-se sobre o corpo que se contorcia e esperneava... com o brilho alaranjado tremeluzente a iluminar-lhe o rosto belo e cruel.
A cabra estava a sorrir.
Foi então que ergueu o rosto na direção dele. Quando Xcor avistou devidamente as feições, começou por se recusar a acreditar no que lhe era mostrado. Contudo, o brilho das chamas não mentia.
Fitava uma versão feminina do Derramador de Sangue. O mesmo cabelo preto, tez pálida e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Mais ainda, a mesma luz vingativa nos olhos quase violeta, sendo o arrebatamento e a satisfação de provocar a morte uma combinação que Xcor conhecia bem.
A fêmea desapareceu instantes depois, dissolvendo-se no nevoeiro de uma forma diferente da maneira como a sua espécie se desmaterializava, indo-se como uma nuvem de fumo que vai desaparecendo palmo a palmo.
Assim que pôde, Xcor correu para junto do pai, mas não havia nada a salvar... praticamente nada a enterrar. Caindo de joelhos à frente dos ossos fumegantes e do fedor, sentiu um momento de fraqueza deplorável: as lágrimas afloraram-lhe os olhos. O Derramador de Sangue fora um animal bruto mas, enquanto único descendente masculino reconhecido, Xcor e ele tinham sido chegados... Com efeito, pertenciam-se um ao outro.
- Por tudo quanto é sagrado - exclamou Zypher, num tom rouco. - O que foi aquilo?
Xcor pestanejou com força antes de lançar um olhar furioso sobre o ombro.
- Ela matou-o.
- Sim. E de que maneira.
À medida que o bando de bastardos se chegava a ele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Levantando-se rigidamente, fez menção de chamar o cavalo, mas tinha a boca demasiado seca para assobiar. O seu pai... desde há muito o seu nemésis, mas também a sua âncora, estava morto. Morto. E tudo acontecera tão depressa, demasiado depressa.
Morto por uma fêmea.
O pai desaparecera.
Assim que o conseguiu, olhou para cada um dos machos à sua frente, os dois a cavalo, os dois a pé, o que estava à sua direita. Com uma consciência pesada, percebeu que o destino que os esperava seria ditado por aquilo que fizesse naquele momento, ali onde se encontrava.
Não se preparara para aquilo, mas não se esquivaria ao que tinha de fazer:
- Ouçam bem, pois só o direi uma vez. Ninguém vai comentar o que aqui se passou. O meu pai morreu em combate com o inimigo. Queimei-o para lhe prestar homenagem e para o manter comigo. Jurem-me que assim será.
Os bastardos com quem há tanto tempo vivia e lutava juraram, e quando o som das vozes graves se perdeu na noite, Xcor baixou-se e passou com os dedos pelas cinzas.
Levando as mãos ao rosto, deixou a fuliginosa desde as faces até às veias grossas que lhe subiam ambos os lados do pescoço - e depois agarrou no crânio duro que era tudo o que lhe restava do pai. Erguendo os restos fumegantes e calcinados, tomou como seus os soldados que tinha à frente.
- Agora sou o vosso único senhor. Unam-se a mim neste momento ou sejam meus inimigos. O que dizem?
Não houve hesitação. Os machos caíram sobre um joelho, desembainharam as adagas e soltaram o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra aos pés de Xcor.
Xcor fitou as cabeças baixas e sentiu um manto a pousar-lhe sobre os ombros.
O Derramador de Sangue estava morto. Sem vida tornava-se uma lenda que começava naquela noite.
E tal como era correto, o filho ocupava agora o lugar do progenitor, comandando aqueles soldados que não serviriam Wrath, o rei que não governava, nem a Irmandade, que não se dignava a descer àquele nível... mas unicamente Xcor.
- Seguimos na direção de onde veio a fêmea - declarou. - Vamos encontrá-la, nem que demore séculos, e ela vai pagar pelo que fez esta noite. - Xcor assobiou então pelo garanhão. - Vai pagar com a pele por esta morte.
Saltando para o cavalo, pegou nas rédeas e levou a grande montada para a noite, com o seu bando de bastardos a segui-lo em formação, preparados para morrer por ele.
Ao estrondearem para longe da aldeia, enfiou o crânio do pai por dentro da camisa de combate de cabedal, por cima do coração. A vingança seria dele. Nem que morresse por isso.

 

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Capítulo 1
PRESENTE
HIPÓDROMO AQUEDUCT, QUEENS, NOVA IORQUE
-Quero fazer-te um broche.
O doutor Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que falara com ele. Não era de todo a primeira vez que ele ouvia essa combinação de palavras,
e a boca que as tinha proferido ostentava certamente silicone quanto bastasse para garantir um bom resultado. Mas não deixou de ser uma surpresa.
Candace Hanson sorriu-lhe e endireitou o chapéu Jackie O. com a mão de unhas arranjadas. Ao que parecia, ela decidira que a combinação de dama e rameira era atraente
- e talvez para alguns homens fosse.
Que raios, numa outra altura da vida, seria provável que ele aceitasse a proposta, segundo a teoria do e-porque-não? Agora? Era mais um nem-por-isso.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo de Manny, ela chegou-se à frente, mostrando-lhe um par de seios que não só desafiavam a gravidade, como a viravam do
avesso, insultavam-lhe a mãe e mijavam-lhe nos sapatos.
- Sei onde podemos ir.
Apostava que sim.
- A corrida está quase a começar.
Candace fez beicinho. Ou talvez fosse mesmo assim que os lábios pós-injeção tinham ficado. Cristo, há uma década, provavelmente teria ficado renovada; agora, os
anos concediam-lhe uma pátina de desespero - a par do normal processo de envelhecimento que ela combatia com a tenacidade de um pugilista.
- Então depois.
Manny não lhe deu resposta e desviou-se, sem saber ao certo como ela conseguira entrar na zona dos proprietários. Devia ter sido durante a pressa de voltar para
ali, depois de os animais terem sido selados na baia - e não havia dúvida de que ela estaria habituada a entrar em sítios onde, para todos os efeitos, não seria
autorizada a permanecer. Candace era uma daquelas melgas sociais de Manhattan que estavam a um chulo de distância de se tornarem prostitutas e, em muitos aspetos,
ela era como qualquer outra vespa - se não ligássemos ao incómodo, acabava por ir pousar noutro sítio qualquer.
Ou, melhor dizendo, em qualquer outra pessoa.
Levantando o braço para a impedir de se aproximar mais, Manny inclinou-se sobre o parapeito do seu camarote de proprietário e esperou que a sua menina fosse levada
para a pista. Encontrava-se no exterior, o que não era problema: ela preferia não estar no meio da confusão e andar mais um pouco nunca a incomodara.
O Aqueduct de Queens, Nova Iorque, não se encontrava ao nível de prestígio de Belmont ou Pimlico, nem do pai venerável de todos os hipódromos, Churchill Downs. Claro
que também não era de se deitar fora. As instalações tinham praticamente três quilómetros de terra, e também uma pista de relva e outra mais curta. A capacidade
total de espetadores andaria à volta dos noventa mil. A comida não era grande coisa, mas ninguém lá ia para comer, e tinham lugar boas corridas, como a daquele dia:
a Wood Memorial Stakes tinha um acumulado de prémios de $750 000 e, como se realizava em abril, era um bom teste para os contendores da Triple Crown...
Ah, lá estava ela. Lá estava a sua menina.
Quando os olhos de Manny se prenderam a GloryGlo-ryHallelujah, o barulho da multidão, a luz forte do dia e a linha ondulante dos outros cavalos desapareceram. Só
via a sua magnífica poldra preta, com a pelagem a refletir a luz do sol e a cintilar, as pernas extremamente elegantes a fletirem-se, os cascos delicados a curvarem-se
ao sair da terra da pista e depois a voltarem a assentar. Quase a dezassete mãos-travessas de altura, o jóquei parecia um mosquito enfezado às costas do animal,
e tal diferença de tamanho era bem representativo da divisão de poder. Ela deixara-o bem claro logo a partir do início do treino: até podia tolerar os incómodos
humanos, mas eles só lá estavam à boleia. Quem mandava era ela.
O temperamento algo controlador da égua já lhe custara dois treinadores. O terceiro que tinham agora? O tipo parecia um bocado frustrado, mas isso era apenas a sensação
de controlo a ser escoiceada: os tempos de Glory eram espantosos - só não tinham nada que ver com ele. E Manny não se preocupava de todo com o ego inchado de homens
que ganhavam a vida a mandar em cavalos. A menina dele era uma lutadora e sabia o que fazia, pelo que não tinha problemas em deixá-la à vontade e divertir-se a vê-la
esmagar a competição.
Quando começou a segui-la com os olhos lembrou-se do papalvo a quem a comprara havia pouco mais de um ano. Tendo em conta a ascendência da égua, os vinte mil tinham
sido uma pechincha mas, ao mesmo tempo, eram uma fortuna quando se pensava no temperamento e no facto de não ser claro se obtivera permissão para competir. Fora
uma poldra fogosa à beira de ser retirada das corridas - ou pior, transformada em alimento para cão.
Mas ele estivera certo. Era uma égua espetacular, conquanto lhe dessem rédea livre e lhe permitissem dominar o espetáculo.
Quando o alinhamento se aproximou do portão, alguns dos cavalos começaram a bater as patas, mas a menina dele estava firme como uma rocha, como se soubesse como
era inútil desperdiçar energia com aquelas tretas pré-corrida. Gostava também das probabilidades, apesar de estarem na linha da frente, pois o jóquei que ela tinha
às costas era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse aspeto, era mais responsável pelo êxito do que os treinadores. A filosofia que seguia com
a égua era garantir que ela via o melhor percurso e depois deixá-la escolher e seguir em frente.
Manny levantou-se e agarrou o peitoril de ferro pintado que tinha à sua frente, juntando-se à multidão que se erguera dos lugares e levara aos olhos um sem fim de
binóculos. Ficou satisfeito quando sentiu o coração aos pulos, pois salvo se estivesse no ginásio, nos últimos tempos era quase como se estivesse morto. Ao longo
do último ano, a vida acarretara uma dormência terrível, e talvez em parte fosse por isso que aquela poldra era tão importante.
Talvez ele não tivesse mais nada além da égua.
Não que pretendesse ir por aí.
No portão tudo era acelerado: não se desperdiça tempo quando se enfiam nas minúsculas caixas metálicas quinze cavalos excitados com pernas como varas e glândulas
suprarrenais a cuspir como morteiros. No espaço de um minuto, a pista foi fechada e os auxiliares corriam para as vedações.
Batimento cardíaco.
Sino.
Pum!
Os portões abriram-se, a multidão bradou e os cavalos saltaram em frente como se tivessem sido disparados de canhões. As condições estavam perfeitas. Seco. Fresco.
Era uma corrida rápida.
Não que a menina dele se importasse. Se fosse preciso, corria em areias-movediças.
Os puros-sangues galopavam e o som coletivo dos cascos e o ritmo da voz locutor elevavam a energia nas bancadas a um nível extático. Manny, no entanto, permaneceu
calmo, mantendo as mãos firmes no peitoril à sua frente e os olhos na pista, à medida que os animais faziam a primeira curva numa confusão de lombos e caudas.
O ecrã grande mostrava-lhe tudo o que precisava de ver. A sua poldra era a penúltima, com todos os animais a correrem desenfreados enquanto ela parecia trotar -
que raios, nem tinha o pescoço estendido. Claro que o jóquei estava a desempenhar bem a sua tarefa, afastando-a da vedação, dando-lhe a opção de cavalgar pela zona
externa da confusão, ou de a atravessar quando se sentisse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela faria. Ia cortar por entre os outros cavalos como se fosse um buldózer.
Era assim que ela funcionava.
E, tal como esperado, quando surgiu a reta, ela começou a dar ares da sua graça. Baixou a cabeça, estendeu o pescoço e a passada começou a alargar-se.
- Assim é que é - murmurou Manny. - Vai-te a eles, menina.
Quando Glory entrou na pista atulhada transformou-se num raio a ultrapassar os outros corredores, com um rebentar de velocidade tão poderoso que se ficava com a
noção de que fora propositado. Não bastava vencê-los a todos, tinha de ser feito nas últimas centenas de metros, arrasando os desgraçados no último momento.
Manny soltou um riso rouco. Ela era exatamente o seu tipo de mulher.
- Cristo, Manello, olha só para ela.
Manny assentiu sem olhar para o indivíduo que falara com ele, pois na frente do grupo desenrolava-se algo inusitado: o potro à cabeça perdeu o ímpeto, ficando para
trás à medida que as pernas perdiam a força. Em resposta, o jóquei incitou-o, vergastando-lhe o lombo - reação que deu tanto resultado como alguém a praguejar com
um automóvel cujo depósito estivesse vazio. O potro em segundo lugar, um grande animal castanho com mau feitio e uma passada tão grande como um campo de futebol,
aproveitou de imediato o abrandamento, com o jóquei a permitir que o cavalo tivesse toda a liberdade.
O par avançou taco a taco durante breves instantes, até que o cavalo castanho assumisse o controlo da corrida. Claro que isso não iria durar muito tempo. A menina
de Manny escolheu o momento ideal para passar por entre um grupo de três animais e colar-se à traseira do líder como um autocolante.
Pois é, Glory estava como peixe na água, de orelhas coladas à cabeça e dentes arreganhados.
Ia dar cabo do desgraçado. E era impossível não extrapolar para o primeiro sábado de maio e o dérbi do Kentucky...
Tudo aconteceu muito depressa.
Chegou tudo ao fim... num abrir e fechar de olhos.
O potro foi contra Glory numa pancada lateral propositada, com o impacto a atirá-la contra o rail. A menina dele era grande e forte, mas não estava à altura de um
embate como aquele, pelo menos quando seguia a mais de sessenta quilómetros por hora.
Durante uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela seria capaz de recuperar. Apesar da forma como se desviara e atrapalhara, esperava que ela se equilibrasse
e desse àquele sacana uma lição de boas maneiras.
O problema foi ter caído, mesmo à frente dos três cavalos que ultrapassara.
A carnificina foi imediata, com os cavalos a desviarem-se bruscamente para evitar o obstáculo que tinham pelo caminho, e os jóqueis a agarrarem-se com força às rédeas
curtas na esperança de se manterem em cima das montadas.
Todos conseguiram. Exceto Glory.
Enquanto a multidão arquejava, Manny saltou do camarote e depois passou por cima de pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Por cima do rail, para a terra.
Correu até ela, com os anos de atletismo a levarem-no a uma velocidade vertiginosa em direção ao espetáculo devastador.
Estava a tentar levantar-se. Louvado fosse o seu enorme coração destemido, estava a debater-se para se levantar da terra, com os olhos fitos no grupo de corredores,
como se ela se estivesse borrifando para o facto de estar ferida; só queria apanhar os que a tinham deixado ficar para trás.
Tragicamente, a pata dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, essa direita anterior contorceu-se abaixo do joelho, e Manny não precisou dos seus anos
enquanto cirurgião ortopédico para perceber que ela estava em sarilhos.
Grandes sarilhos.
Quando se aproximou da égua, o jóquei estava lavado em lágrimas.
- Doutor Manello, eu tentei... ai, meu Deus...
Manny travou na lama e procurou-lhe as rédeas enquanto os veterinários se aproximavam e se erguia um biombo à volta do drama.
Quando os três homens de trajes oficiais se chegaram à poldra, os olhos dela ficaram desvairados de dor e confusão. Manny fez o que pôde para a acalmar, permitindo-lhe
que agitasse a cabeça quanto quisesse enquanto lhe afagava o pescoço. E a égua acalmou-se quando lhe deram um tranquilizante.
Pelo menos, o coxear desesperado parou.
O veterinário olhou para a perna e abanou a cabeça, algo que no mundo das corridas de cavalos significava: ela tem de ser abatida.
Manny aproximou-se do rosto do indivíduo.
- Nem pense nisso. Estabilize a fratura e leve-a já para o Tricounty. Percebeu?
- Ela nunca mais vai voltar a correr... isto parece uma fratura mul...
- Tire a porra do meu cavalo desta pista e leve-o para o Tricounty...
- Ela não vale...
Manny agarrou com força a frente do casaco do veterinário e puxou o senhor Facilidades até estarem de nariz praticamente colado.
- Faça o que eu disse. Já. - Seguiu-se um momento de incompreensão total, como se o monte de esterco não soubesse o que era ser agarrado à bruta. E, para que não
houvesse lugar a mal-entendidos, Manny rosnou: - Não a vou perder... mas não tenho problema nenhum em dar cabo de si. Aqui mesmo. Neste momento.
O veterinário recuou, como se soubesse que se arriscava a ser socado.
- Está bem... está bem.
Manny não ia perder o cavalo. Passara os últimos doze meses a chorar a única mulher de quem gostara, a pôr em causa a sua sanidade e a beber uísque, embora sempre
tivesse detestado a bebida.
Se agora perdesse a Glory... não lhe sobrava grande coisa na vida, pois não?
Capítulo 2
CALDWELL, NOVA IORQUE
CENTRO DE TREINO, COMPLEXO DA IRMANDADE
Porra... de Bic... monte de merda...
Vishous encontrava-se no corredor da clínica da Irmandade, com um cigarro feito à mão nos lábios e um polegar que estava a fazer um exercício desgraçado. No entanto,
por mais vezes que esfregasse a pequena roda do isqueiro, não conseguia desencantar uma chama.
Chic. Chic. Chic...
Atirou a porcaria para o caixote do lixo com uma repulsa tremenda e procurou a luva forrada a chumbo que lhe cobria a mão. Depois de arrancar o cabedal, fitou a
palma brilhante, fletindo os dedos e dobrando-a pelo pulso.
A coisa era parte lança-chamas e parte bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, de transformar pedra em vidro e de fazer churrasco de qualquer avião, comboio
ou automóvel. Era também o motivo pelo qual podia fazer amor com a sua shellan, e um dos dois legados que a deidade que era a sua mãe lhe dera.
Ah, e a treta da segunda visão era tão divertida como aquela coisa da mão-da-morte.
Aproximou a arma mortífera do rosto e deixou o cigarro enrolado à mão na vizinhança, mas não demasiado perto, caso contrário imolaria o sistema de transmissão de
nicotina e teria de perder tempo a enrolar outro. Isso era algo para o qual não tinha paciência num dia bom, e muito menos numa altura daquelas...
Ah, que maravilha de inalação.
Encostando-se à parede, firmou as botas no linóleo e fumou. O prego para o caixão não lhe ajudava a melhorar o estado de espírito, mas sempre ficava com alguma coisa
que fazer que era melhor do que a opção que lhe percorrera a mente durante as últimas duas horas. Voltou a calçar a luva, sempre com vontade de pegar na sua «dádiva»
e ir queimar alguma coisa, fosse o que fosse...
Estaria mesmo a sua irmã gémea no outro lado da parede? Deitada numa cama de hospital... paralisada?
Cristo... ter trezentos anos e descobrir que se tem uma irmã.
Bem jogado, mãe. Bem jogado como o caraças.
E pensar que havia resolvido todos os problemas que tinha com os pais... Claro que só um deles estava morto. Se a Virgem Escrivã seguisse o exemplo do Derramador
de Sangue e batesse a bota, talvez ele conseguisse equilibrar-se.
No entanto, da maneira que as coisas estavam agora, com aquele exclusivo de jornal sensacionalista, a par da caça aos gambozinos que a sua Jane levava a cabo sozinha
no mundo dos humanos, tudo isso estava a deixá-lo...
Pois, nem sequer tinha palavras.
Tirou o telemóvel. Confirmou-o. Voltou a guardá-lo no bolso das calças de cabedal.
Raios partam, era tão típico. Jane concentrava-se em qualquer coisa e pronto. Nada mais interessava.
Não que ele fosse diferente, mas em alturas como aquelas, uma atualização quanto ao que se passava seria bem-vinda.
Maldito Sol, que o aprisionava dentro de quatro paredes. Se pelo menos estivesse com a sua shellan, «o grande» Manuel Manello não teria hipótese de se armar em mete-nojo
e recusar-se a ajudar. V limitar-se-ia a apagar o desgraçado, enfiar o corpo no Escalade e regressar para ali com as tais mãos famosas para que operasse Payne.
Para ele, o livre arbítrio era um privilégio e não um direito.
Quando chegou ao fim do cigarro apagou-o na sola da bota e atirou a beata para o balde do lixo. Queria muito uma bebida - mas nada de refrigerantes ou de água. Meia
caixa de Grey Goose talvez ajudasse, mas com um pouco de sorte em breve estaria na sala de operações, pelo que tinha de ficar sóbrio.
Ao entrar na sala de observações, ficou com os ombros rígidos, cerrou os molares e, por uma fração de segundo, pensou não ser capaz de aguentar mais. Se havia coisa
que garantidamente o deixava furibundo era ter a mãe a fazer mais uma gracinha, e seria difícil bater aquela suprema das mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um sistema de «tilt» incluído para parar a diversão quando a máquina de flippers se começava a passar.
- Vishous?
Ao ouvir a voz gentil e baixa, V fechou brevemente os olhos.
- Sim, Payne - concluiu, mudando para a língua antiga: - Sou eu.
Dirigiu-se ao centro da sala e voltou a ocupar o seu lugar no banco ao lado da maca. Deitada por baixo de uma série de cobertores, Payne estava imobilizada, com
a cabeça fixa por blocos laterais e um colarinho desde o queixo à clavícula. Um tubo ligava-lhe o braço a um saco pendurado num poste de aço inoxidável e havia tubagens
inseridas no cateter que Ehlena lhe introduzira.
Mesmo sendo a sala forrada a azulejos, clara, limpa e brilhante, e os equipamentos e produtos clínicos tão ameaçadores como canecas e pires numa cozinha, ele sentia-se
como se estivessem numa caverna húmida, cercados por ursos.
Seria muito melhor se pudesse matar o cabrão que deixara a sua irmã naquele estado. O problema era... que isso significava que teria de eliminar Wrath, e tal morte
faria furor. Esse sacana enorme não só era o rei como também era um irmão... e além disso, o que a levara àquele sítio, naquela situação, tinha sido consensual.
As sessões de combate entre os dois duravam há dois meses e mantinham ambos em forma - era óbvio que Wrath não fazia ideia da pessoa com quem lutava, pois o macho
era cego. O facto de ser uma fêmea? Ora. Tudo acontecera no Outro Lado, e aí não havia machos. Mas a falta de visão do rei fizera com que não se apercebesse daquilo
que V e todos os outros fitavam assim que entravam naquela sala: a comprida trança de Payne era da cor exata do cabelo de V, a pele era do mesmo tom da dele, e tinha
uma constituição física idêntica, alta, magra e forte. Mas os olhos... porra, os olhos.
V esfregou o rosto. O pai deles, o Derramador de Sangue, tinha tido inúmeras bastardas antes de ter sido morto durante uma escaramuça com minguantes, no País Antigo.
Claro que V nem sequer pensava em qualquer dessas relações aleatórias com fêmeas.
Payne era diferente. Tinham a mesma mãe, e não era uma qualquer mahmen. Era a Virgem Escrivã. A derradeira mãe da raça.
Uma cabra, a bem da verdade.
O olhar de Payne desviou-se para ele e V sentiu um aperto na garganta. As íris que se cruzaram com as suas eram de um branco gelo, tal como as dele, e a orla azul-escura
à volta delas era algo que via todas as noites ao espelho. E a inteligência... a esperteza que corria naquelas profundezas árticas era exatamente igual à que tinha
por baixo da sua cúpula óssea.
- Não sinto nada - disse Payne.
- Eu sei. - V abanou a cabeça e repetiu: - Eu sei.
A boca dela contorceu-se, como se em outras circunstâncias pudesse ter sorrido.
- Podes falar na língua que desejares - informou ela num inglês carregado. - Sou fluente em... muitas. - Ele também. O que o deixava incapaz de formular uma resposta
em dezasseis línguas diferentes. Que bom para ele. - Soubeste alguma coisa... da tua shellan? - perguntou ela, num tom entrecortado.
- Não. Queres mais alguma coisa para as dores? - Parecia mais fraca do que quando V saíra.
- Não, obrigada. Elas fazem-me sentir... estranha.
Seguiu-se um longo silêncio.
Que se prolongou.
E ainda mais.
Cristo, talvez devesse segurar-lhe a mão - afinal de contas, ela ainda sentia acima da cintura. Pois, mas o que poderia ele oferecer-lhe no que dizia respeito a
mãos? A esquerda estava a tremer e a direita era mortífera.
- Vishous, o tempo não está...
A frase da gémea perdeu-se e V concluiu-a na sua mente, do nosso lado.
Meu, quem lhe dera que ela estivesse errada. Claro que no que dizia respeito a lesões na espinal-medula, tal como acontecia no caso de apoplexias e ataques cardíacos,
as oportunidades iam-se perdendo a cada minuto que o paciente passava sem tratamento.
Era bom que o tal humano fosse tão brilhante como Jane afirmava.
- Vishous?
- Sim?
- Desejavas que eu não tivesse vindo?
V franziu o cenho.
- O que estás para aí a dizer? É claro que te quero comigo.
V começou a bater o pé enquanto se interrogava quanto tempo teria de ficar ali antes de poder sair para fumar mais um cigarro. Não era capaz de respirar ali sentado,
impotente enquanto a irmã sofria, o que lhe atulhou o cérebro de questões. Tinha dez mil interrogações às voltas na cabeça, mas não podia perguntar. A dor parecia
deixar Payne à beira do coma a qualquer momento, pelo que não era de todo altura para dar início a uma amena cavaqueira.
Porra, os vampiros podiam curar-se com a velocidade do pensamento, mas não eram, de todo, imortais.
Podia perfeitamente ficar sem a irmã, antes mesmo de a começar a conhecer.
Tendo isso em mente, confirmou os sinais vitais no monitor. A raça tinha uma pressão arterial muito baixa, mas a dela estava perto de ser inexistente. O ritmo cardíaco
era lento e irregular, qual secção rítmica composta por meninos brancos. E o sensor de oxigénio teve de ser silenciado, pois o alarme estivera a disparar continuamente.
Quando ela fechou os olhos, V receou que fosse pela última vez. E o que tinha feito por ela? Nada, além de lhe gritar quando ela lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se, sentindo-se um palerma.
- Tens de te aguentar, Payne. Vou conseguir aquilo de que precisas, mas tens de te aguentar.
As pálpebras da gémea abriram-se e Payne olhou-o a partir da sua cabeça imobilizada.
- Vim trazer demasiado para a tua casa.
- Não te preocupes comigo.
- Nunca fiz outra coisa.
V voltou a franzir o sobrolho. Tornava-se óbvio de que aquela história de irmão/irmã só era novidade para ele, e não pôde deixar de se interrogar como raios ela
ficara a saber da sua existência.
E o que sabia.
Porra, mais uma oportunidade para desejar não ser nada de especial.
- Estás muito seguro quanto a esse curandeiro que procuras - balbuciou Payne.
Ah, nem por isso. A única certeza que tinha era que se o desgraçado a matasse, naquela noite ia haver um funeral duplo - isso, partindo do princípio de que restaria
alguma coisa do humano para enterrar ou para queimar.
- Vishous?
- A minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne viraram-se para cima e aí permaneceram. Estaria a olhar para o teto?, interrogou-se. Para a lâmpada de observação por cima dela? Para alguma coisa
que ele não era capaz de ver?
- Pergunta-me quanto tempo passei à sombra da nossa mãe - acabou por dizer.
- De certeza que tens força para isso? - V teve vontade de sorrir quando a única resposta que obteve foi um olhar furioso. - Quanto tempo?
- Em que ano se está aqui na Terra? - Arregalou os olhos quando V lhe respondeu. - Deveras? Bem, foram centenas de anos. A nossa mahmen manteve-me presa durante...
centenas de anos de vida.
Vishous sentiu a ponta das presas a formigarem de raiva. Aquela mãe deles... já devia saber que a paz que encontrara com a fêmea não iria durar muito.
- Agora estás livre.
- Estarei? - Olhou na direção das pernas. - Não posso viver em mais uma prisão.
- Não vai acontecer.
O olhar gelado endureceu.
- Não posso viver assim. Compreendes o que te estou a dizer?
V sentiu o interior do corpo a gelar.
- Escuta, vamos trazer aqui o tal médico e...
- Vishous - atalhou Payne, num tom rouco. - Por minha fé, eu própria o faria, se pudesse, mas não posso, e não tenho mais ninguém a quem recorrer. Compreendes-me?
Teve vontade de gritar quando cruzou o olhar com o dela. Sentiu um nó no estômago e o suor a rebentar-lhe na testa. Era um assassino por natureza e por formação,
mas tal competência não era algo que pretendesse usar em alguém do seu sangue. Bom, à exceção da mãe, claro. Talvez o pai, mas esse tinha morrido sozinho.
Pronto, correção: não era algo que alguma vez usasse contra a sua irmã.
- Vishous. Tu...
- Sim. - Olhou para a malfadada mão. - Eu compreendi.
Bem por baixo da sua pele, no seu âmago, a corda interior começou a vibrar. Era o tipo de coisa com que passara grande parte da vida familiarizado - e era também
um choque profundo. Não tinha essa sensação desde que Jane e Butch lhe tinham aparecido, e senti-la a regressar era... mais uma dose de Grande Porra.
No passado, isso fizera-o descarrilar à grande, entrando no mundo do sexo masoquista e das ações arriscadas e extremas. Num abrir e fechar de olhos.
A voz de Payne soava esganiçada.
- E o que me dizes?
Raios o partam, tinha acabado de a conhecer.
- Sim. - Fletiu mais uma vez a mão mortífera. - Eu trato de ti. Se chegarmos a esse ponto.
Quando Payne olhou para cima na prisão que era o seu corpo imóvel, só conseguiu ver o perfil sombrio do gémeo e desprezou-se pela posição em que o colocara. Desde
que chegara àquele lado que tentava descortinar outro rumo, outra opção... qualquer coisa.
Mas aquilo de que precisava era algo que nunca poderia solicitar a um estranho.
Claro que ele não deixava de ser um estranho.
- Obrigada - agradeceu. - Meu irmão.
Vishous limitou-se a assentir uma única vez e continuou a olhar em frente. Pessoalmente era muito mais do que a soma das feições e do tamanho impressionante do corpo.
Antes de ter sido aprisionada pela mahmen deles, Payne desde há muito o observava nas taças sagradas de visão das Escolhidas, e sabia o que ele lhe era desde que
pela primeira vez aparecera na água rasa - bastara-lhe olhá-lo para se ver a si própria.
Que vida ele tivera, começando pelo acampamento de guerra e pela brutalidade do pai deles... e agora isto.
E, por baixo da aparência fria, ele fervia de fúria. Payne sentia-o nos ossos, havendo uma qualquer ligação entre os dois que lhe dizia mais do que os olhos lhe
transmitiam: à superfície era firme como uma parede, com todos os elementos que o constituíam dispostos numa ordem precisa e cimentados no lugar correto. No entanto,
por baixo da pele ele fervia... e o indício externo que transparecia encontrava-se na mão direita enluvada. Por baixo do punho brilhava uma luz forte... que se ia
tornando cada vez mais forte. Especialmente depois de lhe ter feito o seu pedido.
Apercebeu-se de que aquele poderia ser o último momento juntos e voltou a mover o olhar.
- Estás acasalado com a fêmea curandeira? - murmurou ela.
- Sim.
No silêncio que se seguiu, ela desejou poder manter a troca, mas era óbvio que ele só respondia por mera cortesia. Mesmo assim, acreditava no que ele lhe dissera,
que estava satisfeito por ali ter chegado. Não lhe parecia alguém capaz de mentir - não por se preocupar com a moralidade ou com a educação, mas antes por considerar
tal esforço um desperdício de tempo e de propensão.
Payne devolveu o olhar ao anel de fogo brilhante que ardia por cima de si. Gostaria que ele lhe desse a mão, ou que lhe tocasse de alguma forma, mas já lhe pedira
demasiado.
Ali deitada naquela plataforma ambulante, o corpo parecia-lhe anómalo, a um tempo pesado e sem peso, e agarrava-se à esperança que eram os espasmos que lhe percorriam
as pernas e faziam formigar os pés, levando-os a contorcerem-se. Se isso acontecia, talvez nem tudo estivesse perdido, dizia para consigo.
No entanto, enquanto procurava o abrigo proporcionado por essa ideia, uma parte ínfima e discreta da sua mente dizia-lhe que o telhado cognitivo que tentava construir
não suportaria a tormenta que pairava sobre o que lhe restava da vida. Embora não as pudesse ver, quando movia as mãos sentia as cobertas frias e macias, e o gelo
quase húmido da mesa em cima da qual se encontrava. No entanto, quando ordenava aos pés que fizessem o mesmo... era como se estivesse nas águas serenas e tépidas
das piscinas do Outro Lado, encasulada num abraço invisível, sem nada sentir contra si.
Onde estaria o curandeiro?
O tempo... estava a passar.
Quando a espera passou de intolerável a pura e simplesmente agonizante, deixou de conseguir perceber se a sensação de garganta embargada se devia ao seu estado ou
ao silêncio daquela sala. Por sua fé, tanto ela como o gémeo tinham mergulhado na imobilidade, embora por dois motivos díspares. Ela não tinha como ir para lado
nenhum. Ele estava à beira de uma explosão.
- Fala-me sobre o curandeiro que aí vem - pediu num murmúrio, desesperada por algum estímulo, algo... qualquer coisa.
A brisa fresca que lhe afagou o rosto e o aroma de especiarias que lhe violou as narinas confirmaram-lhe que se tratava de um macho. Tinha de ser.
- É o melhor - resmungou Vishous. - A Jane sempre falou dele como se fosse uma espécie de deus.
O tom não era de todo elogioso, mas era verdade que os vampiros machos não apreciavam que outros rondassem as suas fêmeas.
Quem seria, no seio da raça? interrogou-se. O único curandeiro que Payne vira nas taças fora Havers, e por certo não haveria a necessidade de o procurar.
Talvez existisse mais algum que ela não observara. Afinal de contas, ela não dedicara muito tempo a inteirar-se do que se passara no mundo e, segundo o gémeo, tinham
decorrido muitos, muitos, muitos anos entre o seu confinamento e a sua liberdade, por assim dizer...
A exaustão atalhou-lhe os pensamentos numa onda súbita que lhe chegou ao âmago e a pressionou ainda mais contra a mesa metálica.
No entanto, quando fechou os olhos só conseguiu suportar a escuridão por um instante, até que o pânico lhe fez abrir as pálpebras. Quando a mãe a detivera em animação
suspensa tivera perfeita consciência do vazio ilimitado que a circundava e da penosamente lenta passagem dos momentos e dos minutos. A paralisia atual era demasiado
semelhante ao que sofrera durante séculos.
Era esse o motivo do terrível pedido que fizera a Vishous. Não podia chegar àquele lado apenas para replicar aquilo de que pretendera fugir com tamanho desespero.
As lágrimas toldaram-lhe a visão, fazendo estremecer a brilhante fonte de luz.
Como desejava que o irmão lhe desse a mão.
- Por favor, não chores - disse Vishous. - Não... chores.
A bem da verdade, o facto de ele ter notado surpreendera-a.
- Por minha fé, estás correto. Chorar nada resolve.
Decidida, obrigou-se a ser forte, mas era uma batalha tremenda. Embora o seu conhecimento das artes da medicina fosse limitado, a lógica mostrava-lhe aquilo que
enfrentava. Tendo uma ascendência extraordinariamente forte, o corpo dera início à reparação assim que fora lesionada durante o combate com o Rei Cego. Contudo,
o grande problema era que o processo regenerativo, que em situações normais lhe salvaria a vida, estava a tornar a sua condição ainda mais delicada - e provavelmente
permanente.
As colunas fraturadas que se remendavam sozinhas não poderiam alcançar um resultado correto, algo tornado óbvio pela paralisia das pernas.
- Porque estás sempre a observar a tua mão? - perguntou, sempre a olhar para a luz.
Seguiu-se um momento de silêncio, a juntar-se a todos os outros.
- Porque é que achas que o estou a fazer?
Payne suspirou.
- Porque te conheço, meu irmão. Sei tudo acerca de ti.
Não tendo mais palavras do irmão, o silêncio tornou-se tão agradável como as inquirições do País Antigo.
Ah, o que desencadeara ela?
E onde estariam quando tudo chegasse ao fim?
Capítulo 3
Por vezes, a única maneira de saber onde se tinha chegado era regressar ao ponto onde já se estivera.
Quando a doutora Jane Whitcomb entrou no complexo do Hospital St. Francis foi sugada para a sua vida anterior. De certa foram, a viagem era curta - ainda há um ano
era chefe do departamento de traumatologia do hospital, vivia num condomínio cheio de coisas familiares e passava vinte e quatro horas por dia a correr entre as
urgências e as SO.
Já não o fazia
Uma prova de que se tinham verificado grandes mudanças foi a forma como entrou no edifício das cirurgias. Não precisava de se preocupar com as portas giratórias.
Nem com as que davam acesso ao átrio.
Atravessou as paredes de vidro e passou pelos seguranças sem que eles a vissem.
Os fantasmas eram bons nisso.
Desde que se transformara podia entrar onde quisesse sem que ninguém desse por ela. Claro que também se podia tornar palpável como qualquer outra pessoa, solidificando
a seu bel-prazer. Numa das formas era etérea; na outra era humana como sempre, capaz de comer, de amar e de viver.
Era uma grande vantagem no seu trabalho enquanto cirurgiã privada da Irmandade.
Como agora, por exemplo. De que outra forma seria capaz de se infiltrar mais uma vez no mundo humano sem que houvesse confusão?
Apressando-se sobre o soalho polido do átrio, atravessou a parede de mármore onde se viam os nomes de benfeitores e abriu caminho por entre a multidão. Reconheceu
muitos rostos, desde pessoal administrativo a médicos e enfermeiras com quem trabalhara durante anos. Até os pacientes nervosos e as suas famílias eram anónimos,
mas ao mesmo tempo seus íntimos - a um certo nível, as máscaras de dor e de preocupação eram sempre as mesmas, independentemente das feições que as envergavam.
Dirigiu-se às escadas traseiras em busca do seu antigo chefe. Cristo, até tinha vontade de rir. Durante todos os anos em que tinham trabalhado juntos, ela procurara
Manny Manello sempre em emergências, mas aquilo que a trazia superava qualquer choque em cadeira, acidente de aviação ou colapso de edifício.
Atravessando uma saída metálica de emergência, subiu as escadas traseiras, sem que os pés tocassem nos degraus, mas flutuando acima deles, enquanto ascendia como
uma brisa, elevando-se sem esforço.
Aquilo tinha de resultar. Tinha de convencer Manny a acompanhá-la e a tratar aquela lesão na espinal-medula. Ponto final. Não havia quaisquer outras opções, contingências,
nada de desvios no caminho a seguir. Era o grande passe de final de jogo... e esperava que o avançado junto à grande área recebesse a porra da bola.
Graças a Deus funcionava bem sob pressão. E conhecia o homem que procurava como a palma da mão.
Manny aceitaria o desafio. Mesmo que nada daquilo lhe fizesse sentido a muitos níveis, e mesmo que ficasse estarrecido por ela ainda estar «viva», não teria como
ignorar um paciente necessitado. Não era assim que ele funcionava.
No nono andar atravessou outra saída de emergência e entrou na zona administrativa do departamento de cirurgia. O local fazia lembrar uma firma de advogados, escuro,
sombrio e com um ar abastado. Fazia sentido. A cirurgia era uma enorme fonte de rendimentos para qualquer hospital universitário, e gastava-se muito para recrutar,
manter e alojar as flores de estufa brilhantes e arrogantes que retalhavam pessoas para ganhar a vida.
De todos os manejadores de bisturis em St. Francis, Manny Manello estava no topo da hierarquia, sendo o chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela fora,
mas de todo o departamento. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento de recruta e o presidente dos Estados Unidos, tudo reunido num sacana de
um metro e oitenta. Tinha um mau-feitio terrível, um intelecto magnífico e um pavio de um milímetro.
Num dia bom
E era espantoso.
O pão-nosso de cada dia do tipo tinham sido sempre os atletas profissionais mais destacados, pelo que operara muitos joelhos, ancas e ombros que em outras mãos teriam
representado o fim da carreira de jogadores de futebol, de basebol e de hóquei. No entanto, a par disso tinha também muita experiência com a coluna, e embora um
neurocirurgião de reserva fosse bom, tendo em conta o que os exames de Payne mostravam, aquilo tratava-se de um problema ortopédico. Se a espinal-medula estivesse
cortada, não havia nenhum neurocirurgião que a pudesse salvar. A ciência médica ainda não tinha chegado a esse ponto.
Ao contornar a esquina da secretária da rececionista, viu-se obrigada a parar. À esquerda ficava o seu antigo gabinete, o lugar onde passara horas sem fim a tratar
de papelada e reunida com Manny e com o resto da equipa. A placa na porta dizia agora, DR. THOMAS GOLDBERG, CHEFE, CIRURGIA TRAUMÁTICA.
Goldberg era uma excelente escolha.
Por algum motivo, ainda se sentia magoada por ver a nova placa.
Mas, e depois? Estaria à espera que Manny lhe conservasse a secretária e o gabinete como uma espécie de monumento?
A vida continuava. A dela. A dele. A do hospital.
Fez-se despertar e percorreu o corredor acarpetado, enquanto remexia na bata branca, na caneta que tinha no bolso e no telemóvel que ainda não tivera motivo para
usar. Não havia tempo para explicar o seu regresso dos mortos, nem para persuadir Manny ou ajudá-lo a digerir a história inacreditável que estava prestes a contar-lhe.
Também não tinha qualquer outra hipótese que não fosse levá-lo consigo.
Parou à frente da porta dele, respirou fundo e avançou...
Não estava à secretária. Nem na mesa de conferências.
Uma espreitadela rápida à casa de banho privativa... também lá não estava, nem havia humidade nas portas de vidro ou toalhas húmidas junto ao lavatório.
Regressando ao gabinete propriamente dito voltou a respirar fundo... e o aroma ténue do aftershave que permanecera no ar fê-la engolir em seco.
Cristo, as saudades que tinha dele.
Abanando a cabeça, contornou a secretária e deu uma vista de olhos à confusão. Ficheiros de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios do comité
de Avaliação e Qualidade dos Cuidados a Pacientes. Como eram apenas cinco horas da tarde de sábado, ela esperara encontrá-lo ali: as aulas não decorriam ao fim de
semana pelo que, a menos que estivesse de banco e a tratar de um trauma, deveria estar atrás daquela confusão, a tratar da papelada.
Manny era o típico workaholic sem pausas.
Ao sair do gabinete procurou na secretária da assistente administrativa. Não encontrou pistas, já que o seu plano de trabalho deveria estar no computador.
A próxima paragem seriam as SO. O Hospital de St. Francis tinha vários níveis diferentes de salas de operação, todas dispostas por subespecialidade, e Jane dirigiu-se
ao setor onde ele costumava trabalhar. Ao espreitar pelas janelas de vidro das portas duplas viu que estavam a trabalhar num manguito rotador e numa fratura exposta.
Embora os cirurgiões tivessem máscaras e toucas, sabia que nenhum deles era Manny. Os ombros dele eram largos o suficiente para retesarem até a maior das batas e,
além disso, a música em ambos os casos não era a correta. Mozart? Nem pensar. Pop? Nem morto.
Manny ouvia acid rock e heavy metal, a tal ponto que, se não fosse contra o protocolo, há anos que as enfermeiras usariam tampões de ouvidos.
Raios partam... mas onde é que ele estava? Não havia conferências naquela altura do ano, e ele não tinha vida fora do hospital. As outras opções seriam estar no
Commodore - ou adormecido no sofá do apartamento com a exaustão ou no ginásio do prédio.
Ao sair, ligou o telemóvel e marcou o número do serviço de atendimento do hospital.
- Sim, boa tarde - disse, quando lhe atenderam a chamada. - Gostaria de enviar uma mensagem ao doutor Manuel Manello. O meu nome? - Merda. - Ah... Hannah. Hannah
Whit. E este é o meu número.
Ao desligar, não fazia ideia do que dizer se ele respondesse à mensagem, mas era excelente em agir sob pressão - e rezava para que esse dom a ajudasse naquela ocasião.
Não fosse o sol ainda não se ter posto e um dos Irmãos poderia ter vindo exercer os seus dons mentais sobre Manny, para facilitar a sua ida ao complexo.
Mas não Vishous. Outro. Fosse quem fosse.
Os instintos diziam-lhe que deveria manter os dois afastados o mais possível. Já tinham uma emergência médica entre mãos. A última coisa de que precisava era do
seu antigo chefe todo engessado porque o marido se sentira territorial e decidira partir também algumas colunas. Imediatamente antes da morte dela, Manny demonstrara
mais do que um interesse profissional em Jane. Por isso, a menos que ele tivesse casado com uma daquelas Barbies com quem insistia em sair, o mais provável seria
que ainda estivesse solteiro... e seguindo a regra da ausência-amolece-o-coração, os sentimentos dele poderiam ter-se mantido.
Por outro lado, era igualmente provável que a mandasse passear por lhe ter mentido quando à história do «morta e enterrada».
Ainda bem que ele não se lembraria de nada daquilo.
Claro que ela, por seu lado, receava nunca mais vir a esquecer as vinte e quatro horas seguintes.
O Hospital Equino Tricounty era topo de gama em todos os aspetos. Situado a cerca de quinze minutos do Aqueduct, tinha tudo, desde salas de operação a suítes de
recuperação completas, piscinas de hidroterapia e imagiologia avançada. E tinha como profissionais pessoas que viam os cavalos como sendo mais do que meras fontes
de lucro com cascos.
Na SO, Manny observou as radiografias da perna anterior da sua «menina» e quis ser o cirurgião responsável pela operação. Via claramente as fissuras no rádio, mas
não era isso que o preocupava. Tinham-se separado algumas lascas, estando esses fragmentos afiados a orbitar a extremidade bolbosa do comprido osso, quais satélites
em torno de um planeta.
O facto de se tratar de outra espécie não implicava que não fosse capaz de realizar a operação. Conquanto o anestesista a mantivesse inconsciente e em segurança,
ele trataria do resto. Osso era osso.
Mas não se ia armar em idiota.
- O que lhe parece? - perguntou.
- Segundo a minha opinião profissional - replicou o veterinário, a situação é muito complicada. Trata-se de uma fratura múltipla com deslocamento. A recuperação
vai ser muito longa e não há sequer a garantia de uma potencial cura.
E esse era o grande problema: era suposto que os cavalos ficassem de pé, com o peso distribuído equitativamente por quatro pontos. Quando se partia uma perna, o
pior não era a lesão; era o facto de terem de redistribuir o peso e dependerem desproporcionalmente do lado bom para que se mantivesse de pé. E era assim que surgiam
os problemas.
Com base naquilo que via, a maior parte dos proprietários teriam optado pela eutanásia. A «menina» dele nascera para correr, e aquela lesão catastrófica faria com
que isso fosse impossível, mesmo a nível recreativo - caso ela sobrevivesse. Enquanto médico, estava familiarizado com a crueldade dos trabalhos de «salvamento»
clínico que acabavam por deixar o paciente num estado pior do que a morte - ou que não faziam nada, além de prolongarem o inevitável.
- Doutor Manello? Ouviu o que eu disse?
- Sim. Ouvi. - Mas, ao contrário do idiota na pista, pelo menos aquele homem parecia tão devastado como Manny se sentia.
Virou-se e dirigiu-se ao lugar onde a tinham deitado, levando-lhe a mão à cabeça. O pelo preto brilhava sob as luzes fortes e, no meio de todos aqueles azulejos
claros e de todo o aço inoxidável, ela parecia uma sombra descartada e esquecida no meio da sala.
Demorou-se bastante a olhar para a caixa torácica a expandir-se e a contrair-se com a respiração. Vê-la deitada ali, com as belas pernas pousadas como aras e a cauda
pendurada sobre os mosaicos fê-lo perceber, mais uma vez, que animais como aquele deviam estar de pé. Aquilo não era de todo natural. Além de ser injusto.
Naquele caso, mantê-la viva só para não ter de enfrentar a sua morte não era a resposta correta.
Respirando fundo, Manny abriu a boca...
A vibração no interior do bolso do casaco não o deixou continuar. Praguejando, tirou o BlackBerry e confirmou-o, na eventualidade de ser do hospital. Hannah Whit?
Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse, e não estava de serviço.
Provavelmente teria sido um erro da telefonista.
- Quero que opere - ouviu-se a dizer enquanto guardava o aparelho.
O breve silêncio que se seguiu deu-lhe tempo suficiente para se aperceber de que não querer perdê-la parecia cobardia. Mas não podia deixar-se levar por essas tretas
psicológicas, caso contrário perderia o juízo.
- Não lhe posso garantir nada. - O veterinário voltou a observar as radiografias. - Não sei como isto vai correr, mas garanto-lhe... vou dar o meu melhor.
Cristo, agora sabia como aquelas famílias se sentiam quando falava com elas.
- Obrigado. Posso assistir?
- É claro. Vou buscar-lhe uma bata, e já sabe os procedimentos com a lavagem, doutor.
A operação teve início vinte minutos depois e Manny assistiu junto à cabeça da égua, afagando-lhe a crina com a mão enluvada, mesmo estando o animal inconsciente.
Manny não pôde deixar de aprovar a metodologia e a competência do veterinário durante o trabalho - basicamente as únicas coisas que tinham corrido bem desde que
Glory caíra. A operação terminou em menos de uma hora, com as lascas de osso retiradas, ou encaixadas no lugar. Depois enfaixaram a pata e levaram-na da SO para
uma piscina, para que não partisse outra perna ao sair da anestesia.
Manny ficou até a égua acordar e depois seguiu o veterinário para o corredor.
- Os sinais vitais estão bons e a operação correu bem - declarou o veterinário, mas é claro que a situação pode sofrer alterações repentinas. E ainda vai demorar
algum tempo para sabermos com o que contar.
Porra. Era exatamente o tipo de discurso que fazia aos familiares diretos e a outros parentes quando chegava a altura dos seus pacientes irem para casa repousar
e esperar para ver como corria o pós-operatório.
- Nós mantemo-nos em contacto - garantiu o veterinário. - Com atualizações do estado.
Manny descalçou as luvas e tirou um cartão-de-visita.
- Para o caso de não terem os dados na ficha dela.
- Nós temos. - Mesmo assim, o homem aceitou o cartão. - Se houver alguma alteração, será o primeiro a saber, e eu informo-o pessoalmente a cada doze horas, quando
fizer as rondas.
Manny aquiesceu e estendeu a mão.
- Obrigado por cuidar dela.
- Não tem de quê.
Depois de apertarem as mãos, Manny acenou com a cabeça na direção das portas duplas.
- Importa-se que me vá despedir?
- Por favor.
De volta à sala, dedicou um momento à poldra. Cristo... aquilo custava.
- Aguenta-te aí, estás a ouvir, menina. - Teve de murmurar, pois parecia não ser capaz de respirar devidamente.
Quando se endireitou, a equipa de operação olhava-o com uma tristeza que ele tinha consciência de que o iria acompanhar.
- Vamos cuidar muito bem dela - garantiu o veterinário, com gravidade.
Manny acreditava que assim fosse, e foi esse o único motivo que o levou a conseguir sair para o corredor.
As instalações de Tricounty eram vastas e precisou de algum tempo até mudar de roupa e encontrar o caminho até onde estacionara o carro, junto à entrada principal.
Lá à frente, o Sol já se tinha posto, e uma claridade alaranjada que se desvanecia rapidamente deixava Manhattan com o aspeto de estar em combustão lenta. O ar estava
fresco mas fragrante com os primeiros esforços da primavera para dar vida à paisagem invernal estéril, e Manny respirou fundo tantas vezes que se sentiu tonto.
Deus, o tempo estava a passar muito depressa, mas agora, com o arrastar dos minutos, tornava-se óbvio que o ritmo frenético lhe esgotara a fonte de energia. Ou isso
ou fora de encontro a um muro e desfizera-se.
Ao pegar na chave do carro sentia-se velho como o mundo. A cabeça latejava-lhe e a anca artrítica doía-lhe. A corrida até à pista para chegar a Glory fora excessiva
para os malfadados ossos.
Não fora de todo assim que imaginara o fim daquele dia. Partira do princípio de que iria pagar bebidas aos proprietários vencidos... e talvez com a embriaguez da
vitória tivesse aceitado a generosa oferta oral da dona Hanson.
Entrou no Porsche e ligou o motor. Caldwell ficava a cerca de quarenta e cinco minutos a norte de Queens, e o carro podia praticamente fazer sozinho a viagem até
ao Commodore. O que era bom, pois ele sentia-se como um zombie.
Nada de rádio. Nada de música no iPod. E nada de telefonar a ninguém.
Quando entrou na autoestrada limitou-se a olhar para a estrada à sua frente e resistir ao impulso de dar meia volta e... pois, e fazer o quê? Dormir ao lado do cavalo?
Se conseguisse chegar a casa inteiro, a ajuda já vinha a caminho. Tinha uma garrafa por abrir de Lagavulin à sua espera, e podia ou não perder tempo a usar um copo.
No que dizia respeito ao hospital, ele estava de folga até às seis da manhã de segunda-feira, e tencionava embebedar-se e assim ficar.
Segurou no volante forrado a pele com uma mão e levou a outra ao interior da camisa de seda, onde encontrou a imagem de Cristo. Apertou a cruz de ouro e rezou.
Meu Deus... por favor faz com que ela fique bem.
Não seria capaz de aguentar a perda de mais uma das suas meninas. Não ainda. Jane Whitcomb morrera já há um ano, mas isso era apenas o que o calendário lhe dizia.
Em tempo de mágoa, a desgraça só acontecera há cerca de minuto e meio.
Não queria voltar a passar por isso.
Capítulo 4
A baixa de Caldwell tinha muitos edifícios altos e envidraçados, mas poucos eram como o Commodore. Com uns bons trinta pisos de altura, era dos mais altos da floresta
de betão, e os cerca de sessenta apartamentos que albergava eram de um luxo à Trump, todos de mármore, cromados e atulhados de marcas.
No vigésimo sexto andar, Jane percorreu o apartamento de Manny, em busca de sinais de vida e encontrou... zero. Literalmente. A casa dele tinha tanto de pista de
obstáculos como de salão de dança, sendo a mobília composta por três peças na sala e uma cama enorme no quarto principal.
E pronto.
Bem, e alguns bancos de pele na bancada da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que tinha pendurada era um televisor de plasma do tamanho de um outdoor. E o
soalho de madeira não tinha tapetes, apenas sacos desportivos e... mais sacos desportivos e... calçado desportivo.
O que não queria dizer que ele fosse desleixado. Não tinha coisas suficientes para poder ser considerado desleixado.
Com um pânico crescente, Jane dirigiu-se ao quarto e viu meia dúzia de batas de hospital em monte no chão, quais poças que ficam depois de uma trovoada e... mais
nada.
Mas a porta do roupeiro estava aberta, pelo que espreitou o seu interior...
- Raios partam.
O conjunto de malas de viagem alinhadas no chão era composto por uma grande, outra média e finalmente uma pequena - e a média não estava lá. Também faltava um fato,
a julgar pelo cabide vazio pendurado entre os outros conjuntos de casaco e calças.
Estava de viagem. Talvez durante o fim de semana.
Sem grande esperança, ligou para o sistema do hospital e voltou a enviar-lhe uma mensagem...
Ouviu o sinal de chamada em espera e quando olhou para o número voltou a praguejar.
Respirando fundo, atendeu
- Então, V.
- Nada?
- Nem no hospital, nem aqui no apartamento dele. - O rosnido discreto que ouviu acentuou-lhe a sensação de não estar a conseguir nada. - E também confirmei o ginásio
ao subir.
- Entrei no sistema do Saint Francis e consegui a agenda dele.
- Onde está ele?
- Só dizia que o Goldberg estava de banco, correto? Olha, o sol está a pôr-se. Posso sair daqui a... tipo...
- Não, não... fica com a Payne. A Ehlena é excelente, mas acho que devias ficar aí.
Seguiu-se uma pausa longa, como se ele percebesse que estava a ser afastado.
- Para onde vais a seguir?
Jane apertou o telefone e interrogou-se a quem deveria rezar. A Deus? À mãe dele?
- Não sei. Mas já lhe enviei mensagens. Duas.
- Quando o encontrares liga-me e eu vou buscá-los.
- Eu consigo fazer-nos chegar a casa...
- Não o vou magoar, Jane. Não estou incentivado para o desfazer.
Pois, mas a julgar pelo tom frio de voz, ela tinha de pôr em causa se as garantias de um vampiro seriam de fiar... Acreditava que Manny viveria para tratar da gémea
de Vishous. E depois disso? Tinha as suas dúvidas - especialmente se as coisas corressem mal na SO.
- Vou esperar mais um bocado. Talvez ele apareça. Ou ligue. Se não, eu penso em alguma coisa.
No longo silêncio que se seguiu, Jane praticamente sentiu um vento frio a chegar-lhe pelo telemóvel. O parceiro dela fazia muitas coisas bem: lutar, fazer amor,
lidar com qualquer coisa relacionada com computadores. Ser obrigado a permanecer imóvel? Não era um dos seus talentos inatos. Verdade fosse dita, era garantido que
o deixava fora de si.
Mesmo assim, o facto de V não confiar nela fazia-a sentir-se distante.
- Fica com a tua irmã, Vishous - disse-lhe, num tom de voz calmo. - Eu vou dando notícias. - Silêncio. - Vishous. Desliga e vai ter com ela.
V não disse mais nada, limitando-se a desligar a chamada.
Jane praguejou ao desligar também.
Uma fração de segundos depois estava a marcar outra vez um número e assim que ouviu uma voz grave a atender, teve de limpar uma lágrima que, pesasse embora a sua
transparência, era muito real.
- Butch - disse, num tom rouco. - Preciso da tua ajuda.
* * *
Quando o pouco que restava do pôr-do-sol desapareceu e a noite picou o ponto para assumir o turno seguinte, o carro de Manny deveria estar a caminho de casa. Devia
ter seguido quase sozinho até Caldwell.
Em vez disso, acabou no extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões relvadas ultrapassavam os hectares de alcatrão numa relação de dez para
um.
Fazia sentido. Os cemitérios precisavam de boas áreas de terra macia, pois não era muito viável tentar enfiar um caixão no betão.
Bem, talvez até fosse - chamava-se mausoléu.
O cemitério de Pine Grove estava aberto até às dez da noite, com os imensos portões de ferro escancarados e os inúmeros candeeiros de ferro forjado a lançar a sua
luz amarelada sobre o labirinto de veredas. Ao entrar seguiu para a direita, com os faróis de xénon do Porsche a varrer e a iluminar grandes extensões de lápides
e relvados.
Estava a ser atraído por um ponto que, em última análise, não significava nada. Não havia um corpo enterrado por baixo da lápide de granito para onde se dirigia
- não houvera corpo para enterrar. Também não houvera cinzas que se pudessem guardar num recipiente - pelo menos que se tivesse a certeza não pertencer ao Audi que
se incendiara.
Cerca de oitocentos metros de curvas depois, Manny tirou o pé do acelerador e deixou que o carro parasse sozinho. Imaginava que fosse o único no cemitério, e por
ele tudo bem. Não havia motivo para ter público.
Ao sair do carro, o ar frio não ajudou a clarear-lhe a mente, mas serviu para dar trabalho aos pulmões enquanto respirava fundo e se dirigia à relva primaveril.
Teve o cuidado de não pisar em nenhuma das sepulturas enquanto andava - era verdade que os mortos não saberiam que ele se encontrava no seu espaço aéreo, mas parecia-lhe
uma atitude respeitosa.
A campa de Jane ficava um pouco mais à frente e Manny abrandou o passo à medida que se aproximava do que restava dela, por assim dizer. À distância, o som do apito
de um comboio rasgou a calmaria - e o som cavo e lamentoso pareceu-lhe tanto um cliché que se imaginou num filme que nunca teria paciência de ver em casa, e muito
menos pagaria para assistir no cinema.
- Porra, Jane.
Baixando-se, passou com os dedos pelo cimo da lápide irregular. Escolhera a pedra negra porque ela não teria querido nada em tons de pastel ou deslavado. E a inscrição
também era simples e direta, apenas o nome, as datas e uma frase ao fundo: descansa em paz.
Pois. Nisso, merecia um 20 pela originalidade.
Lembrava-se exatamente onde estava quando soubera que ela tinha morrido. No hospital - é claro. Fora no fim de um dia e uma noite muito compridos, que tinham começado
com o joelho de um jogador de hóquei e acabado com uma espetacular reconstrução de ombro, cortesia de um drogado que decidira experimentar voar.
Saíra da SO e encontrara Goldberg à espera junto aos lavatórios. Bastou olhar para o colega para que Manny interrompesse o processo de retirar a máscara cirúrgica.
Com o tecido pendurado no rosto como um bibe no queixo, exigiu saber o que raio se passava - sempre a imaginar que seria um choque em cadeia de quarenta veículos
na autoestrada, ou um acidente de aviação, ou um incêndio num hotel... uma tragédia de escala comunitária.
Mas olhara sobre o ombro do médico e vira cinco enfermeiras e três outros médicos. Todos no mesmo estado de Goldberg... e ninguém com pressa para reunir mais elementos
ou preparar as salas de operação.
Certo. Acontecera qualquer coisa na comunidade. A comunidade deles.
- Quem - quis saber.
Goldberg olhara para as tropas de apoio e foi então que Manny adivinhou. E contudo, mesmo com as entranhas em estado líquido, agarrara-se a uma qualquer esperança
irracional de que o nome a surgir da boca do cirurgião fosse outro que não...
- A Jane. Acidente de viação.
Manny nem sequer hesitara.
- Qual a hora de chegada?
- Não há.
A essa informação, Manny não respondera. Limitara-se a retirar a máscara do rosto, a amarfalhá-la e a atirá-la para o balde do lixo mais próximo.
Ao passar por Goldberg, o médico voltara a abrir a boca.
- Não digas nada - vociferara Manny. - Não. Digas. Nada.
O resto da equipa atrapalhara-se para sair do caminho, apartando-se como um tecido rasgado em dois.
Regressando ao presente, não se lembrava do que fizera, nem para onde fora depois disso - por mais que se esforçasse, essa parte não passava de um buraco negro.
A dada altura, contudo, regressara ao apartamento, pois dois dias depois acordara aí, ainda com a bata ensanguentada com que estivera a operar.
Uma das coisas mais chocantes em toda a situação era o facto de Jane ter salvado muitas pessoas envolvidas em acidentes de viação. A ideia de que ela se fora dessa
forma dava a entender que se tratava da vingança da Morte por todas as almas que Jane resgatara das mãos ossudas da ceifadora.
O som de outro apito de comboio fê-lo ter vontade de gritar.
Isso e a merda do pager a soar.
Hannah Whit. Outra vez?
Mas quem é que...
Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Se bem se lembrava, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?
Mas o problema era que tinha morrido jovem.
Não fora?
* * *
Zangada. Às voltas.
Cristo, devia ter trazido os sapatos de marcha, pensou Jane enquanto voltava a dar uma nova volta à casa de Manny. Outra vez.
Se soubesse para onde ir, já teria saído do apartamento, mas nem o seu cérebro, por mais arguto que fosse, parecia conseguir formular outra opção...
Ter o telefone a tocar não era propriamente bom sinal. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois ainda não tinha novidades.
Pegou no telemóvel.
- Ai... meu Deus.
Aquele número. Os dez algarismos que registara na marcação rápida de todos os telefones que possuíra antes daquele. Manny.
Quando atendeu tinha a mente vazia e os olhos marejados de lágrimas. O seu querido amigo e colega...
- Estou? - disse ele. - Dona Whit? - Em fundo, Jane ouviu um apito débil. - Estou? Hannah? - Aquele tom de voz... era igual ao de há um ano: grave, autoritário.
- Está aí alguém?
O apito ténue voltou a fazer-se ouvir.
Cristo... pensou Jane. Sabia onde ele estava.
Jane desligou e partiu do apartamento, passando pelos subúrbios. Viajando numa espécie de borrão à velocidade da luz, as moléculas atravessaram a noite num avanço
rodopiante que percorreu quilómetros como se fossem centímetros.
O Grove Cemetery era aquele tipo de sítio para o qual se precisava de um mapa, mas quando não se passava de éter no ar era possível vasculhar cinquenta hectares
num instante e meio.
Ao surgir das trevas junto à sua campa, Jane inspirou um fôlego entrecortado e quase soluçou. Lá estava ele, em carne e osso. O seu chefe. O seu colega. Aquele que
ela deixara para trás. E estava junto a uma lápide preta com o nome dela gravado.
Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa não indo ao seu funeral. O mais próximo fora ler sobre a notícia no Caldwell Courier Journal - e a imagem de
todos os cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes tinha-a deixado devastada.
O que via agora era muito pior.
E Manny parecia estar exatamente como ela se sentia: com o interior em ruínas.
Cristo, aquele aftershave dele ainda cheirava tão bem... e mesmo tendo perdido peso, continuava atraente como o pecado, com o seu cabelo escuro e rosto duro. O fato
de lista fina era de um corte perfeito - mas tinha sujidade à volta da bainha das calças engomadas. E os sapatos estavam igualmente sujos, o que a fez interrogar-se
onde poderia ele ter estado. De certeza que não se sujara ali junto à campa. Passado um ano, a terra endurecera e estava coberta de erva...
Ah, espera. É provável que o seu túmulo estivesse assim desde o primeiro momento. Afinal de contas, ela não deixara nada que pudesse ser enterrado.
Quando os dedos dele se apoiaram na pedra, Jane percebeu que fora ele a escolher a lápide. Mais ninguém teria o bom senso de encontrar exatamente aquilo que ela
teria desejado. Nada de extravagante ou palavroso. Breve, gentil, direto.
Jane pigarreou.
- Manny.
Ele levantou a cabeça repentinamente, mas não olhou - era como se estivesse convencido de que a ouvira simplesmente na sua cabeça.
Jane materializou-se completamente e falou mais alto.
- Manny.
Em qualquer outra circunstância, a reação seria hilariante. Manny deu meia volta, gritou, depois tropeçou na lápide e caiu de rabo no chão.
- Mas o que é que... Jesus... o que estás aqui a fazer? - arquejou Manny. A expressão no rosto dele começou por ser de horror, mas rapidamente se transformou numa
descrença absoluta.
- Desculpa.
Foi uma saída absolutamente inútil, mas não se lembrou de mais nada para dizer.
E era bem feita por não ter pensado. Quando encontrou aqueles olhos castanhos, de repente ficou sem mais nada para dizer.
Manny levantou-se de um ápice e o seu olhar sombrio percorreu-a da cabeça aos pés. E outra vez. E depois subiu... e fixou-se no rosto dela.
Depois surgiu a fúria. E uma dor de cabeça, obviamente, a julgar pela maneira como esfregava as frontes e franzia o cenho.
- Isto por acaso é uma piada?
- Não. - Como desejava que fosse. - Lamento.
A expressão furibunda dele era profundamente familiar, o que não deixava de ser irónico, sentir tal nostalgia por um olhar furioso.
- Lamentas.
- Manny, eu...
- Eu enterrei-te. E tu lamentas? Mas que merda é esta?
- Manny, eu não tenho tempo para explicar. Preciso de ti.
Manny fitou-a durante algum tempo.
- Apareces um ano depois de teres morrido e precisas de mim?
A realidade da imensidão de tempo que passara assentou sobre ela. Pesando-lhe em cima de tudo o resto.
- Manny... Eu não sei o que te diga.
- A sério? Que não seja, olha, já agora, estou viva. - Fitou-a. Limitou-se a fitá-la. - Por acaso fazes ideia do que foi perder-te? - disse então, com um tom de
voz rouco. - Passou rapidamente a mão pelos olhos. - Fazes?
A dor que Jane sentia no peito dificultava-lhe a respiração.
- Sim. Porque eu perdi-te... perdi a minha vida contigo e no hospital. - Manny começou a andar, às voltas à frente da lápide. E embora Jane o quisesse, sabia que
não devia aproximar-se.
- Manny... se houvesse maneira de ter voltado a ti, eu tinha-o feito.
- E fizeste-o. Uma vez. Pensei que fosse um sonho, mas não foi. Pois não?
- Não.
- Como é que entraste no meu apartamento?
- Entrei, só isso.
Manny parou e olhou-a, com a lápide entre os dois.
- Porque é que o fizeste? Para quê forjares a tua morte?
Bem, por acaso não o tinha feito.
- Não tenho tempo para explicar agora.
- Então, o que é que estás aqui a fazer? E que tal explicares isso?
Jane tossicou.
- Tenho alguém com um problema para o qual não tenho competência e quero que vejas a situação. Não te posso dizer para onde te tenho de levar, nem te posso avançar
grandes pormenores, e sei que isto não é justo... mas preciso de ti. - Sentia vontade de arrancar os cabelos. De cair de joelhos em pranto. De o abraçar. Mas limitou-se
a continuar, pois tinha de o fazer. - Há mais de uma hora que ando à tua procura, por isso o tempo está a esgotar-se. Sei que estás furioso e confuso, e não te censuro.
Mas zanga-te comigo depois... agora vem comigo. Por favor.
Só podia esperar. Manny não era o tipo de pessoa que alguém pudesse convencer. Ele teria de decidir fazê-lo... ou não.
E se infelizmente fosse este o caso, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse o antigo chefe e sentisse a falta dele, o homem dela era Vishous, e nem pensar
em deixar que acontecesse alguma coisa à irmã dele.
De uma maneira ou de outra, Manny ia fazer uma operação naquela noite.
Capítulo 5
Butch O’Neal não era o tipo de homem que deixasse uma dama em apuros.
Era o velho guarda dentro dele... o polícia dentro dele... o católico devoto e praticamente dentro dele. Dito isto, no caso da conversa que acabara de ter ao telefone
com a adorável e talentosa doutora Jane Whitcomb, o cavalheirismo não teve nada que ver com a sua prestabilidade. De todo.
Ao sair do Fosso e praticamente correr através do túnel subterrâneo que dava acesso ao centro de treino da Irmandade, os interesses de ambos estavam em perfeita
sintonia, mesmo que a eles não se aplicasse a história do «ser cavalheiro». Ambos receavam que V voltasse a perder o controlo.
Os indícios estavam todos visíveis. Bastava olhar para ele e podia ver-se que a tampa da panela de pressão estava prestes a ceder com todo o calor em polvorosa por
baixo dela. O que aconteceria a essa pressão? Teria de sair por algum lado e no passado os resultados tinham sido muito pouco agradáveis.
Depois de entrar na porta oculta que desembocava no escritório, Butch virou à direita e apressou-se pelo longo corredor até às instalações clínicas. O discreto aroma
a tabaco turco que pairava no ar disse-lhe ao certo onde encontrar o seu alvo, mas não era como se houvesse alguma dúvida quanto a isso.
Junto à porta fechada da sala de observações, esticou os punhos da camisa Gucci e ajeitou o cinto.
Os dedos bateram devagar. O coração batia com força.
Vishous não respondeu com um «entra». Em vez disso, o irmão saiu e fechou a porta atrás dele.
Porra, estava com mau aspeto. E tinha as mãos a tremer ao de leve enquanto enrolava um dos seus pregos para o caixão. Quando ele humedeceu a mortalha para a fechar,
Butch levou a mão ao bolso e puxou do isqueiro, acendendo a chama e oferecendo-a.
Quando o melhor amigo se inclinou sobre o brilho alaranjado percebeu cada sinal naquele rosto cruel e impassível.
Jane tinha toda a razão. O desgraçado estava em ebulição e guardava tudo dentro de si.
Vishous inalou profundamente e depois voltou a encostar-se à parede cinzenta, os olhos fitos em frente, as botas firmes no chão.
- Não me vais perguntar como estou? - acabou por resmungar.
Butch assumiu uma posição idêntica ao lado do amigo.
- Não preciso.
- Agora lês mentes?
- Pois é.
V inclinou-se para o lado e bateu a cinza para dentro do caixote do lixo.
- Então diz-me lá em que estou a pensar.
- Tens a certeza que queres que eu diga palavrões assim tão perto da tua irmã? - Ao receber uma gargalhada breve como resposta, Butch mirou o perfil de V. Tendo
em conta a nuvem de autocontrolo que cercava o irmão como um inverno nuclear, as tatuagens que tinha à volta dos olhos assumiam uma expressão particularmente sinistra.
- Não queres que o tente adivinhar em voz alta, V - disse, calmamente.
- Experimenta.
Isso queria dizer que V precisava de falar, mas, tal como era seu hábito, estava demasiado encerrado em si mesmo para dizer alguma coisa. O macho sempre se recusara
a abrir-se, mas pelo menos estava melhor do que antigamente. Em tempos idos nem sequer teria aberto aquela fresta.
- Pediu-te para tratares dela se isto não resultar, não foi? - aventou Butch, dando voz aos piores receios. - E não estou a referir-me a cuidados paliativos. A resposta
de V foi uma exalação que durou, mais coisa menos coisa, um quarto de hora além do infinito. - O que vais fazer? - indagou Butch, mesmo sabendo a resposta.
- Não vou hesitar. - O nem que isso me mate estava implícito.
Merda de vida. Por vezes, as situações em que ela deixava as pessoas eram demasiado cruéis.
Butch fechou os olhos e deixou que a cabeça se recostasse contra a parede. Para os vampiros, a família era tudo. O nosso companheiro, os irmãos que combatiam ao
nosso lado, o nosso sangue... esse era o mundo de cada um.
E segundo essa teoria, o sofrimento de V era o sofrimento de Butch. E de Jane. E do resto da Irmandade.
- Esperemos que não seja preciso chegar a esse ponto. - Butch olhou para a porta fechada. - A doutora Jane vai encontrar o tipo. Ela é um buldogue...
- Sabes o que é que me ocorreu há uns dez minutos?
- O quê?
- Mesmo que não fosse de dia, ela teria ido sozinha à procura do gajo.
Quando o odor de acasalamento do macho lhe chegou às narinas, Butch pensou, A sério? Jane e o cirurgião tinham sido muito chegados durante anos, pelo que se fosse
preciso convencê-lo, Jane iria sair-se melhor sozinha - isso, partindo do princípio de que ela seria capaz de passar da questão do de-regresso-dos-mortos. Além disso,
V era um vampiro. Olá?! Como se fosse preciso juntar mais uma complicação.
E por falar nisso, bem vistas as coisas, seria excelente se o cirurgião tivesse metro e meio, fosse míope e cheio de pelos nas costas. Se o lado de macho acasalado
de V estava a ser ativado, era melhor que o homem fosse horrendo.
- Não leves a mal - murmurou Butch -, mas será que a podes censurar?
- É a minha gémea. - O macho passou os dedos pelo cabelo preto. - Raios partam, Butch... a minha irmã.
Butch sabia bem o que era perder uma irmã, por isso, compreendia perfeitamente o macho. E, bolas, nem pensar em sair de junto do irmão. Ele e Jane eram os únicos
capazes de acalmar Vishous quando ele ficava naquele estado. E Jane ia estar bastante ocupada com o cirurgião e com a sua paciente...
O som do telemóvel de V fê-los saltar, mas o Irmão recuperou rapidamente, levando-o ao ouvido antes de tocar uma segunda vez.
- Sim? Encontraste? Graças... porra... sim. Sim. Estou à vossa espera aqui na garagem. Está bem. - Seguiu-se uma breve pausa e V olhou para o lado, como se desejasse
estar sozinho.
Ansioso por desaparecer dali, Butch olhou para os sapatos Dior Homme. O irmão nunca fora de demonstrar sentimentos em público ou de falar sobre assuntos pessoais
com Jane. Mas sendo de espécie pura, Butch não podia desmaterializar-se, nem tinha para onde ir.
Depois de murmurar uma despedida rápida, V deu uma passada profunda no cigarro.
- Podes parar de fingir que não estás aí - resmungou ao exalar.
- Que alívio. Sou péssimo nisso.
- Não tens culpa de ocupar espaço.
- Quer dizer que ela o encontrou? - Quando Vishous assentiu, Butch ficou muito sério. - Promete-me uma coisa.
- O quê?
- Não vais matar o cirurgião. - Butch sabia muito bem como era estar no mundo exterior e cair naquela toca de coelhos vampírica. No caso dele, as coisas tinham funcionado,
mas em relação a Manello? - O tipo não tem culpa, nem é problema dele.
V atirou a beata para o balde do lixo e relanceou Butch, com os olhos de diamante frios como uma noite no Ártico.
- Veremos como as coisas correm, chui.
Com isso, deu meia volta e regressou para junto da irmã.
Bem, pelo menos o filho da puta estava a ser sincero, pensou Butch, praguejando.
Manny Manello não gostava que outras pessoas conduzissem o seu Porsche. Com efeito, salvo o mecânico, nunca ninguém o fizera.
Contudo, naquela noite, Jane Whitcomb estava ao volante porque: primeiro, ela era competente e conseguia meter mudanças sem arranhar a caixa; segundo, ela argumentara
que só o poderia levar ao destino se fosse ela a conduzir; e terceiro, ele ainda não recuperara, depois de ter visto alguém que enterrara a cumprimentá-lo alegremente.
Tantas perguntas. Muita irritação, também. Ah, sim, e esperava chegar a um sítio todo bonito, e tal, mas ia esperar sentado. O que revelava uma certa ironia. Quantas
noites passara em branco, aninhado na cama com uma garrafa de Lagavulin, a rezar para que a sua antiga chefe do serviço de traumas voltasse para ele?
Manny olhou para o perfil dela. Iluminada pelo brilho do tabliê, continuava elegante. Continuava forte.
Continuava a ser o seu tipo de mulher.
Mas é claro que isso já não iria acontecer. Aparte todas as mentiras acerca da morte dela, Jane tinha agora uma aliança cinzento-escura na mão esquerda.
- Casaste-te - comentou Manny.
Jane não o olhou, limitando-se a prosseguir com a condução.
- Pois foi.
A dor de cabeça que lhe surgira assim que Jane aparecera detrás da campa passou imediatamente de desagradável a horrenda, e recordações enevoadas espreitaram à superfície
da sua mente consciente, provocando-o, fazendo-o querer esforçar-se por obter uma revelação total.
Todavia, viu-se obrigado a abortar essa missão de salvamento, antes que a tensão lhe provocasse um aneurisma. Por mais enlouquecedor que fosse andar perdido na sua
própria mente, Manny tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes caso continuasse a debater-se.
Olhando pelo vidro do carro, viu agigantarem-se ao luar pinheiros e carvalhos, com a floresta que rodeava os limites de Caldwell a tornar-se cada vez mais densa
à medida que seguiam para norte, afastando-se do centro urbano e das pontes gémeas da baixa.
- Tu morreste ali - constatou ele, num tom lúgubre. - Ou pelo menos fingiste ter morrido.
Tinham encontrado o Audi dela entre as árvores, num troço de estrada ali perto, depois de o carro se ter despistado num gancho. Mas não havia corpo por causa do
incêndio.
Jane pigarreou.
- Sinto-me como se só tivesse «desculpa» para dizer, o que é uma treta.
- De minha parte também não parece uma alegria.
Silêncio. Muito silêncio. Mas Manny não era homem para continuar a fazer perguntas, quando a única resposta era Desculpa. Além disso, ele não se encontrava num estado
de ignorância total. Sabia que ela tinha um paciente que queria que ele observasse, e sabia... Bem, basicamente era isso, certo?
Jane acabou por virar à direita para... uma estrada de terra batida?
- Já agora - resmungou Manny -, este carro foi feito para alcatrão e não para todo o terreno.
- É a única entrada.
Para onde, interrogou-se ele.
- Vais ficar a dever-me um grande favor.
- És o único que a pode salvar.
Manny relanceou-a.
- Não disseste que era uma «ela».
- Isso interessa?
- Tendo em conta aquilo que não entendo no meio desta situação, tudo importa.
Meros dez metros mais à frente passaram por inúmeras poças tão fundas como lagos. À medida que o Porsche as atravessava, Manny reclamou:
- E que se dane essa paciente. Vou querer compensação pelo que estás a fazer-me à carroçaria.
Jane soltou uma breve risada e, sem saber bem porquê, isso fez com que Manny sentisse uma pontada no peito - mas agarrar-se às tretas emocionais não ia trazer nada
de bom. Não que os dois alguma vez tivessem estado juntos - certo, da parte dele houvera atração. Uma grande atração. E, tipo, um beijo. Mas nada mais além disso.
E agora, ela era a Sr.ª de Outro.
Cerca de cinco minutos depois chegaram a um portão que parecia ter sido erigido durante as Guerras Púnicas. A coisa estava sustida em ângulos dignos da Alice no
País das Maravilhas, com a rede metálica apodrecida pela ferrugem e partida em certos pontos, não passando a vedação que ela cruzava de um metro e oitenta de arame
farpado para gado que já vira melhores dias.
No entanto, os portões abriram-se suavemente. Ao entrarem, Manny viu a primeira câmara de vídeo.
Enquanto avançavam a passo de caracol, um estranho nevoeiro apareceu vindo do nada, com a paisagem a tornar-se difusa até não conseguir ver mais do que um palmo
à frente do capô. Cristo, até parecia que estavam num episódio do Scooby-Doo.
O portão seguinte estava ligeiramente em melhores condições, o outro ainda melhor, bem como o que se seguiu.
O último portão por que passaram era novinho em folha e só lembrava Alcatraz. O sacana tinha mais de sete metros de altura e exibia sinais de Alta Voltagem um pouco
por todo o lado. E quanto ao muro onde estava preso? Aquela merda não era, de todo, para gado, mais parecendo destinado a velociraptors, e quase que apostava que
a fachada de betão ocultava um bom palmo ou dois de pedra horizontal sólida.
Manny virou a cabeça na direção de Jane quando o atravessaram e deram início a uma descida para um túnel que bem podia ter uma placa a anunciar «Holland» ou «Lincoln,»
tal era a aparência robusta e a iluminação da coisa. Quanto mais desciam, mais se intensificava a grande questão que o atormentava desde que a tinha visto. Para
quê simular a morte? Para quê provocar tal caos na vida dela e na vida das outras pessoas com quem ela trabalhara no St. Francis? Ela nunca fora cruel, nunca se
revelara falsa, nem tinha problemas financeiros, ou quaisquer outros dos quais fugir.
Percebia agora, sem que ela dissesse uma palavra que fosse.
Governo dos EUA.
Aquele tipo de instalação, com tais medidas de segurança... oculto nos arredores de uma cidade de tamanho considerável, mas nada tão grande como Nova Iorque, LA,
ou Chicago? Tinha de pertencer ao governo. Quem mais teria dinheiro para uma coisa daquelas?
E quem seria a mulher que ele iria tratar?
O túnel desembocou numa garagem típica, com pilones e lugares desenhados a amarelo e, no entanto, por maior que parecesse ser, só havia um par de carrinhas anónimas
com vidros escurecidos e um pequeno autocarro que também exibia vidros escuros.
Antes de ela estacionar o Porsche, uma porta de aço escancarou-se e...
Bastou uma olhadela para o tipo enorme que apareceu para que a cabeça de Manny explodisse, com a dor que se instalou atrás dos olhos de tal forma intensa que ele
ficou inerte no banco, os braços a tombarem-lhe para os lados, o rosto a contorcer-se com a agonia.
Jane disse-lhe qualquer coisa. Abriu-se uma porta. Depois a dele entreabriu-se.
O ar que lhe chegou ao rosto tinha um cheiro a qualquer coisa seca, que vagamente o lembrava de terra... mas havia mais qualquer coisa. Perfume. Um aroma com um
toque de madeira, que era a um tempo dispendioso e agradável, mas também algo do qual tinha uma vontade curiosa de fugir rapidamente.
Manny obrigou-se a abrir as pálpebras. Tinha a visão completamente desfocada, mas era espantoso o que conseguíamos fazer quando era preciso e, quando o rosto à frente
dele se focou, deu consigo a olhar para o cabrão de pera que tinha...
Com uma onda de dor, os olhos reviraram-se e Manny quase vomitou.
- Tens de libertar as recordações - ouviu Jane a dizer.
Nesse momento seguiu-se um pouco de conversa, com a voz da antiga colega a misturar-se com o tom grave do indivíduo com as tatuagens nas frontes.
- Está a matá-lo...
- O risco é muito grande...
- Como é que ele vai operar neste estado?
Seguiu-se um longo silêncio. E depois, de repente, a dor desvaneceu-se, como se lhe tivessem retirado um véu e as recordações inundaram-lhe a mente.
O paciente da Jane. Da altura do St. Francis. O homem de pera e... o coração com seis câmaras.
Manny abriu os olhos e dirigiu-os àquele rosto cruel.
- Eu conheço-o.
O tipo aparecera-lhe no gabinete e levara os registos sobre o seu coração.
- Tira-o tu do carro - foi a única reposta do Peras. - Não confio em mim para lhe mexer.
Que raio de comité de boas-vindas.
Enquanto o cérebro de Manny se esforçava por apreender tudo, pelo menos os pés e as pernas pareciam estar a funcionar devidamente. Depois de Jane o ter ajudado a
levantar-se seguiu-a, e ao brutamontes da barba, para o interior de instalações tão anónimas e limpas como as de qualquer hospital. Os corredores estavam desimpedidos,
a iluminação provinha de luzes fluorescentes no teto, tudo cheirava a desinfetante.
Viam-se também câmaras de vigilância em forma de bolha a espaços regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.
Enquanto andavam, Manny sabia perfeitamente que não devia fazer perguntas. Bem, isso e o facto de estar tão mal da cabeça que tinha a certeza de o ambulatório ser
o limite das suas capacidades naquele momento.
Portas. Passaram por muitas portas. Todas elas fechadas e, sem dúvida, trancadas.
Pois, isso de certeza que punha o «local desconhecido» no campo da «Segurança Nacional» não era?
Jane acabou por se deter a um par de portas giratórias duplas. Estava nervosa, e isso fazia-o sentir-se como se tivesse uma arma apontada à cabeça. Na sala de operações,
em inúmeras emergências traumatológicas, ela sempre mantivera a calma. Fora a sua imagem de marca.
Aquilo era pessoal, pensou Manny. De alguma forma, o que o esperava do outro lado da porta era algo muito próximo de Jane.
- Temos aqui boas instalações - indicou Jane -, mas não dispomos de tudo. Não temos RMi, apenas TAC. Mas a sala de operações vai estar à altura e não só posso servir
de assistente, como também tenho uma excelente enfermeira.
Manny respirou fundo e esforçou-se por se acalmar. Graças aos seus anos de formação e de experiência ou àquilo que era enquanto homem, libertou-se de todas as sensações
supérfluas, da dor que lhe permanecia na cabeça e da singularidade daquela descida ao mundo do 007, e avançou com o trabalho.
Primeiro ponto na lista? Livrar-se da audiência.
Olhou sobre o ombro na direção do Peras.
- Meu amigo, vai ter de se afastar. Quero-o no corredor.
A resposta que obteve à informação foi... simplesmente preciosa. O sacana exibiu um par de caninos de um comprimento chocante e rosnou como um cão, o que combinava.
- Certo - interveio Jane, interpondo-se entre os dois. - Está bem. O Vishous vai esperar lá fora.
Vishous? Teria ouvido bem?
Claro que, nesse caso, a mamã daquele menino teria acertado em cheio, isso partindo do princípio de que o espetáculo dental a que Manny estava a assistir não era
apenas resultado da situação, mas sim a personalidade do cabrão.
Mas pronto. Tinha coisas a fazer, e talvez o tipo pudesse ir roer um osso, ou assim.
Manny entrou na sala de observações...
Ó... Deus do céu.
Ó... minha nossa senhora.
A paciente na marquesa estava imóvel e... devia ser a coisa mais bela que ele já vira. O cabelo era preto azeviche e estava entrançado numa corda grossa pendurada
ao lado da cabeça. A pele era de um castanho dourado, como se fosse de ascendência italiana e tivesse estado recentemente ao sol. Os olhos... Os olhos dela pareciam
diamantes, no sentido de serem a um tempo incolores e brilhantes, apenas com um círculo escuro à volta da íris.
- Manny?
A voz de Jane estava mesmo atrás dele e, no entanto, para Manny era como se ela se encontrasse a quilómetros. Na verdade, o mundo parecia todo muito longe dali,
não existindo nada, além dos olhos da paciente, que o fitavam a partir da marquesa.
Finalmente aconteceu, pensou ele. Durante toda a vida interrogara-se por que nunca se apaixonara e agora tinha a resposta a essa questão. Estivera à espera daquele
momento, daquela mulher, daquela altura.
Esta fêmea é minha, pensou.
- És o curandeiro? - perguntou ela num tom de voz baixo que lhe parou o coração, as palavras com um sotaque adorável, e também um pouco surpreendidas.
- Sim. - Despiu o blusão e atirou-o para um canto, sem se preocupar onde iria aterrar. - Vim tratar de ti.
Quando se aproximou dela, os olhos deslumbrantes ficaram marejados de lágrimas.
- As minhas pernas... Sinto como se elas estivessem a mover-se, mas não o fazem.
Dor fantasma. Nada de surpreendente, caso ela estivesse paralisada.
Manny parou junto dela e passou os olhos pelo corpo, tapado com um lençol. Era alta, tendo pelo menos um metro e oitenta. E tinha uma constituição elegantemente
poderosa.
Era um soldado, pensou, mirando a força daqueles braços. Era uma lutadora.
Cristo, a perda de mobilidade em alguém como ela deixava-o devastado. Mas é claro que até mesmo quando se era um preguiçoso, a vida numa cadeira de rodas seria uma
merda das grandes.
Segurou-lhe na mão e assim que estabeleceu contacto, todo o seu corpo começou a ressoar, como se ela fosse a tomada da sua ficha interna.
- Vou tratar de ti - garantiu-lhe, fitando-a nos olhos. - Quero que confies em mim.
A mulher engoliu em seco e uma lágrima de cristal escorreu-lhe até à fronte. Instintivamente, Manny estendeu a mão livre e apanhou-a...
O rosnido que se fez ouvir junto à porta quebrou o encanto que o prendera e transformou-o numa espécie de presa. Quando olhou para o Peras, sentiu vontade de rosnar
de volta ao filho da puta. Algo que, é claro, não fazia qualquer sentido.
Ainda agarrado à mão da paciente, ordenou com brusquidão a Jane:
- Tira-me aquele miserável da sala de operações. E quero ver os exames. Já.
Ia salvar aquela mulher, nem que isso o matasse.
E tendo em conta o ódio puro que brilhou nos olhos do Peras, que porra, era bem capaz de ser esse o seu fim...
Capítulo 6
Qhuinn estava sozinho em Caldwell.
Pela primeira vez na maldita da vida.
Algo que, pensando bem, seria quase uma impossibilidade estatística. Passara tantas noites a lutar, a beber e a fazer sexo nos clubes da baixa e arredores que, de
certeza, uma ou duas das suas saídas teriam sido passeios solitários. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, era a primeira vez que estava sem os seus dois companheiros.
Claro que agora as coisas eram diferentes. Os tempos mudaram. As pessoas também.
John Matthew estava agora alegremente acasalado, pelo que quando tinha um turno de folga, como naquela noite, ficava em casa com a shellan dele, Xhex, e davam que
fazer à cama. E sim, claro, Qhuinn era o ahstrux nohtrum do tipo, mas Xhex era uma assassina symphath mais do que capaz de cuidar do seu macho, além de que o complexo
da Irmandade da Adaga Negra era uma fortaleza onde nem sequer o corpo de intervenção seria capaz de entrar. Por isso, ele e John tinham chegado a um acordo - sem
fazer grande alarido.
E quanto a Blay...
Qhuinn não ia pensar no melhor amigo. Nem pensar. De todo.
Perscrutou o interior do clube com o filtro de sexo ligado e começou a analisar as mulheres, os homens e os casais. Estava ali com um único motivo em mente, e o
mesmo era válido para todos os outros góticos.
Não procuravam uma relação. Nem sequer procuravam companheirismo. Era tudo uma questão de entrar e sair, e quando terminasse, passava-se ao Obrigado, minha senhora
- ou senhor, dependendo da disposição - já fui. Pois iria precisar de outro qualquer. Ou outros.
Garantidamente, aquela não seria uma noite de um caso único. Apetecia-lhe arrancar a pele, tal era a necessidade de descomprimir. Meu, sempre gostara de foder, mas
nos últimos dias, a líbido dele andava passada...
Será que Blay ainda continuava a ser o seu melhor amigo?
Qhuinn fez uma pausa e procurou brevemente uma janela de vidro onde pudesse espetar a cabeça. Que grande porra, já não tinha cinco anos. Os machos adultos não tinham
melhores amigos. Não precisavam.
Especialmente se o dito macho andasse a comer alguém. O dia inteiro. Todos os dias.
Qhuinn dirigiu-se ao bar.
- Herradura. Dupla. E que seja Selección Suprema.
Os olhos da mulher iluminaram-se por trás do lápis pesado e dos cílios postiços.
- Vai abrir conta?
- Vou. - E, pela maneira como ela percorreu a barriga lisa e a anca com a mão, bem podia ter pedido uma dose dela também.
Quando apresentou o AmEx preto, ela agitou de tal maneira os peitos para aceitar o cartão e inclinou-se tanto que até parecia que estava a tentar apanhar uma colher
do chão com os mamilos.
- Volto já com a sua bebida.
Que grande surpresa.
- Boa.
Afastando-se a gingar as ancas, estava claramente a perder tempo. Não era de todo o que ele procurava naquela noite - nem de longe. Para começar, era do género errado.
Não ia procurar nada de cabelo escuro. Verdade fosse dita, nem acreditava no que queria.
Ser daltónico tinha as suas limitações, mas quando só se vestia preto e se trabalhava de noite, regra geral isso não era problema. Além do mais, os olhos desemparceirados
eram tão sensíveis aos tons de cinza que conseguia distinguir «cores» - tinha tudo que ver com a gradação. Por exemplo, sabia quem eram as louras no clube. Sabia
a diferença entre morenas e mulheres de cabelo preto. Certo, talvez fosse enganado se uma das idiotas tivesse o cabelo pintado, mas mesmo assim, normalmente era
capaz de perceber que havia qualquer coisa errada, pois o tom da pele nunca batia certo.
- Aqui está - disse a mulher.
Qhuinn estendeu a mão, pegou no copo de shot, engoliu a tequila e devolveu o copo vazio ao balcão.
- Vamos repetir um par de vezes.
- É para já. - A rapariga voltou a exibir a copa DD, sem dúvida à espera que ele tomasse a iniciativa. - És o meu melhor cliente. É óbvio que aguentas bem.
Uh-huh. Pois. Como se a capacidade de engolir cem mililitros de bebida de uma vez só fosse uma grande coisa. Cristo, pensar que alguém com esse tipo de sistema de
valores podia votar deixava-o com vontade de ir outra vez à procura de ar livre.
Os humanos eram patéticos.
No entanto, quando se virou para olhar a multidão, pensou que talvez fosse boa ideia acalmar-se um bocado. Ele próprio estava patético nessa noite. Especialmente
quando avistou dois homens a um canto, separados apenas pela roupa de cabedal que vestiam. Como era óbvio, um deles era louro. Tal como o primo. Por isso, como também
era natural, a probabilidade de Blay e Saxton estarem juntos percorreu-lhe o campo de polo, marcando-lhe a relva proverbial com marcas de cascos e esterco.
Só que não era uma probabilidade. Ao final de cada noite, quando a mansão da Irmandade se separava depois da última refeição e cada um ia à sua vida, Blay e Saxton
dirigiam-se sempre discretamente à escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, a caminho dos seus quartos.
Nunca davam as mãos. Nunca se beijavam à frente de ninguém. E também não havia olhares quentes furtivos. Claro que Blay era um cavalheiro. E Saxton, a Rameira de
Classe, sabia dar o seu espetáculo.
O primo era uma puta de primeira...
Não, não é, frisou uma vozinha. Só o odeias porque ele está a comer o teu menino.
- Ele não é o meu menino.
- O que disseste?
Qhuinn lançou um olhar gelado ao intrometido - e depois refreou a dureza. Bingo, pensou.
Ao lado dele estava um macho humano, com cerca de um metro e oitenta, um belo cabelo, um bom rosto e grandes lábios. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha
algumas correntes na anca e duas argolas numa das orelhas. Mas o que mais o atraiu foi a cor do cabelo.
- Estava a falar sozinho - murmurou Qhuinn.
- Ah. Também o faço muitas vezes. - O sorriso foi breve e depois o tipo voltou a agarrar-se à...
- O que estás a beber? - perguntou Qhuinn.
Um copo meio vazio foi erguido.
- Vodca tónica. Detesto aquela porcaria frutada.
- Eu também. Eu cá sou mais tequila. Pura.
- Patrón?
- Nunca. Gosto de HD.
- Ah. - O homem virou-se e fitou a multidão. - Gostas do que é bom.
- Pois. - Qhuinn tinha vontade de perguntar se o senhor V&T estava a apreciar os homens ou as mulheres, mas guardou essa para depois. Meu, aquele cabelo era espetacular.
Grosso. Encaracolado nas pontas. - Procuras alguém em especial? - perguntou Qhuinn, em voz baixa.
- Talvez. E tu?
- Definitivamente.
O tipo riu-se.
- Há por aqui muitas mulheres atraentes. Podes escolher à vontade.
Grande. Merda. Ora que sorte: um hetero. Claro que talvez pudessem partilhar alguma coisa e avançar a partir daí.
O homem aproximou-se e estendeu a mão.
- Sou o... - Quando os dois se olharam de frente, o indivíduo deixou a frase por terminar, mas isso pouco importava. Qhuinn estava-se borrifando para o nome. - Tens
os olhos de cores diferentes? - perguntou o homem baixinho.
- Pois é.
- Isso é mesmo... fixe.
Pois. A menos que se fosse um vampiro nascido na glymera. Nesse caso passava a ser um defeito físico que significava que se tinha um problema genético e, logo, era-se
um embaraço para a ascendência e ficava-se praticamente vedado ao acasalamento.
- Obrigado - disse Qhuinn. - De que cor são os teus?
- Não consegues distinguir?
Qhuinn deu um toque na lágrima tatuada por baixo do olho.
- Daltónico.
- Ah. Os meus são azuis.
- E és ruivo, não és?
- Como é que sabes?
- O tom da pele. Além disso, és pálido e tens sardas.
- Espantoso. - O tipo olhou em volta. - Aqui está escuro... nunca imaginei que o conseguisses ver.
- Parece que consigo. - E se te mostrasse outras habilidades? acrescentou com os seus botões.
O novo amigo de Qhuinn esboçou um sorriso e voltou a olhar para a multidão.
- Porque é que me estás a olhar assim? - indagou, passado um minuto.
Porque te quero foder.
- Lembras-me alguém.
- Quem?
- Alguém que eu perdi.
- Ah, merda, desculpa.
- Não faz mal. A culpa foi minha.
Uma breve pausa.
- Quer dizer que és gay.
- Não.
O tipo riu-se.
- Desculpa. Pensei que... Então era um bom amigo.
Sem comentários.
- Vou repetir a dose. E se te abastecesses também?
- Obrigado, meu.
Qhuinn virou-se e fez sinal à empregada. Enquanto esperava que ela saltitasse até junto dele, planeou a abordagem. Um pouco mais de álcool. Depois juntar umas fêmeas.
O passo três seria ir para uma das casas de banho e foder as raparigas.
Depois... mais trocas de olhares. De preferência quando um deles, ou ambos, estivessem dentro de uma mulher. Porque por mais que aquele ruivo de cabelo espetacular
parecesse estar interessado em miúdas, o filho da puta sentira a ligação quando os dois tinham cruzado o olhar - e hetero era um termo relativo.
Mais ou menos como virgem.
E assim já eram dois, não é? Afinal de contas, Qhuinn nunca na vida estivera com um ruivo.
Mas aquela noite seria uma exceção.
Capítulo 7
Deitada na laje metálica por baixo do estranho lustre, Payne nem queria acreditar que o seu curandeiro era um humano.
- Compreendes o que estou a dizer? - A voz dele era grave e a pronúncia era-lhe estranha, mas nada que ainda não tivesse ouvido. A fêmea do seu gémeo tinha o mesmo
tom e inflexão. - Vou entrar e...
Enquanto falava com ela baixou-se para ficar no seu campo de visão, e ela gostou que o fizesse. Tinha os olhos de um tom castanho, mas o da casca de carvalho, do
cabedal antigo ou da pelagem de um veado. Tinham uma bela tonalidade avermelhada, como mogno que tivesse sido polido - e igualmente luminoso, arriscar-se-ia a dizer.
Desde a sua chegada que se verificava uma grande atividade, e uma coisa tornara-se clara: era bem versado na arte de dar ordens e era bastante confiante no seu ofício.
Havia também outra coisa... Não se importava que o irmão dela o tivesse odiado instantaneamente.
Se o odor de acasalamento de Vishous ficasse mais forte, tornar-se-ia visível.
- Compreendes?
- Ela não tem problema nenhum na merda dos ouvidos.
Payne olhou até onde conseguiu na direção da porta. Vishous regressara e exibia as presas, como se estivesse prestes a atacar. Felizmente tinha ao lado dele um macho
firme, qual trela com pernas fortes. Se o gémeo pretendesse atacar, aquele macho de cabelo escuro estaria preparado para deter fisicamente Vishous e arrastá-lo da
sala.
Isso era bom.
Payne voltou a concentrar-se no curandeiro.
- Compreendo.
O humano semicerrou os olhos.
- Então repete o que eu disse.
- Por que motivo?
- É o teu corpo. Quero certificar-me de que sabes o que lhe vou fazer e receio uma barreira linguística.
- Que porra, ela sabe o que estás a di...
O curandeiro olhou sobre o ombro.
- Mas ainda aqui estás?
O macho de cabelo escuro ao lado do gémeo dela envolveu o peito de Vishous com o braço e resmungou qualquer coisa num sibilo. Depois dirigiu-se ao curandeiro, falando
com uma pronúncia ligeiramente diferente.
- Tens de te acalmar, meu. Se não, deixo-o fazer picadinho de ti por usares esse tom. Capisce?
Via-se obrigada a apreciar a forma como o curandeiro enfrentou a agressão sem hesitar.
- Se querem que opere, é como eu quiser, à minha maneira. Portanto, ou ele vai para o corredor, ou encontram outro carniceiro. Como vai ser? - Nesse momento teve
lugar muita discussão, com Jane a deixar a vitrina onde se encontrava, que exibia imagens. Começou por falar baixo até que, por fim, a voz dela ficou tão alta como
as restantes.
Payne tossicou.
- Vishous. Vishous. Vishous! - Sem obter resposta, franziu os lábios e assobiou com tal estridência que poderia ter partido vidros. Quais velas a serem apagadas,
todos se silenciaram, embora a energia negativa permanecesse no ar, como o fumo a sair de um pavio. - Ele vai tratar-me agora - pronunciou, debilmente, com a tensão
presente na sala a assumir a forma de uma febre que lhe assolou o corpo, deixando-a ainda mais letárgica. - Ele vai... tratar-me. É essa a minha vontade. - Dirigiu
o olhar ao curandeiro. - Irás tentar abrir as minhas vértebras fundidas, como lhes chamas, e esperas que a espinal-medula não esteja cortada, mas apenas magoada.
Declaras ainda que não podes prever o resultado, mas que quando «lá estiveres» poderás avaliar os danos mais claramente. Sim?
O curandeiro lançou-lhe um olhar poderoso. Profundo. Grave. Com uma intensidade que a confundia... mas que não a ameaçava. Pelas Parcas, de todo - na verdade, algo
nos olhos dele fazia-a... libertar-se no seu íntimo.
- Disse-o corretamente? - indagou.
O curandeiro pigarreou.
- Sim. Disseste.
- Então opera... tal como lhe chamas.
Ouviu o homem de cabelo escuro dizer qualquer coisa ao seu gémeo junto à porta e depois Vishous levantou o braço, apontando o dedo enluvado ao humano.
- Se ela não sobreviver, tu também não sobreviverás.
Praguejando, Payne fechou os olhos e voltou a desejar que aquilo que tanto desejara não tivesse sido conseguido. Seria melhor partir para o Vápido do que provocar
a morte a um humano inocente...
- Combinado.
As pálpebras de Payne abriram-se. O curandeiro erguia-se à frente da dimensão e da força do seu gémeo, aceitando o fardo que lhe era depositado sobre os ombros.
- Mas tu sais - disse o humano. - Tens de sair daqui e ficar lá fora. Não permito que as tuas merdas me distraiam.
O corpo imenso do seu gémeo estremeceu nos ombros e no peito, mas depois ele assentiu uma única vez.
- Combinado.
E ficou sozinha com o curandeiro, salvo por Jane e a outra enfermeira.
- Um último teste. - O curandeiro chegou-se para o lado e pegou num canudo fino que estava em cima de uma das bancadas. - Vou passar com esta caneta no teu pé. Quero
que me digas se sentes alguma coisa.
Quando Payne assentiu, ele saiu-lhe do campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se por se aperceber de algum tipo de sensação. Fosse o
que fosse.
Certamente, se houvesse uma reação, por mais ténue, seria um bom sinal...
- Sinto qualquer coisa - disse Payne, com uma energia renovada. - No meu lado esquerdo.
Seguiu-se uma pausa.
- Então e agora?
Implorou às pernas que tivessem uma receção semelhante e teve de respirar fundo antes de ser capaz de responder.
- Não. Nada.
O som dos lençóis macios a serem dispostos foi a única confirmação de que voltara a estar tapada. Mas pelo menos sentira alguma coisa.
Mas em vez de se dirigir a ela, o curandeiro e a fêmea do seu gémeo conversaram em voz baixa, sem que ela os percebesse.
- Por minha fé - exclamou Payne -, talvez se dispusessem a incluir-me na discussão. - O par aproximou-se e era curioso que nenhum dos dois parecia satisfeito. -
Foi bom que tivesse sentido alguma coisa, não?
O curandeiro aproximou-se da sua cabeça e sentiu o calor forte da mão dele a segurar na sua. Ao fitá-la, voltou a sentir-se cativada. Ele tinha as pestanas muito
compridas. E no maxilar forte e nas faces via-se uma sombra de barba. O cabelo farto e escuro era brilhante.
E gostava mesmo do cheiro dele.
Mas não lhe respondera, pois não?
- Não foi, curandeiro?
- Naquela altura não te estava a tocar no pé esquerdo.
Payne sentiu-se inesperadamente perturbada e pestanejou. Ainda assim, depois de tanto tempo imóvel, ela deveria estar preparada para uma informação daquelas, não
era verdade?
- Vais então começar? - quis saber.
- Ainda não. - O curandeiro olhou para Jane e depois outra vez para ela. - Vamos ter de te deslocar para a operação.
- Este corredor não fica longe o suficiente, meu caro. - Quando assimilou a voz firme de Butch, V ficou com vontade de lhe arrancar a cabeça. E o desejo acentuou-se
quando o sacana prosseguiu. - E se fôssemos até ao Fosso?
A bem da verdade, tratava-se de uma sugestão lógica. Ainda assim...
- Estás a começar a irritar-me, chui.
- Isso é uma novidade? Já agora, estou-me borrifando.
A porta da sala de observações abriu-se e Jane saiu. Quando o fitou, os olhos de um verde floresta não estavam satisfeitos.
- O que foi agora? - rosnou V, sem saber se conseguiria aguentar mais más notícias.
- Ele quer deslocá-la.
Depois de um instante a pestanejar como uma vaca no pasto, V abanou a cabeça, convencido de que confundira as línguas a serem usadas.
- Desculpa?
- Para Saint Francis.
- Nem pensar...
- Vishous...
- É um hospital humano!
- V...
- Será que perdeste a cabeça...
Nesse momento, o malfadado cirurgião humano apareceu e para seu crédito, ou por uma questão de insanidade, dirigiu-se de imediato a V.
- Não posso operá-la aqui. Queres que tente aqui e que seja eu a paralisá-la de vez? Usa a porra da cabeça... preciso de RMi, de microscópios, de equipamento e pessoal
que não têm aqui. Estamos a ficar sem tempo e ela não pode ser transportada para muito longe... além do mais, se pertencem ao governo dos EUA, podem fazer-lhe desaparecer
os registos e garantir que isto não chega ao nariz da imprensa, pelo que com a minha ajuda, a exposição vai ser mínima.
Governo dos EUA? Mas o que... Pois, está bem.
- Ela não vai para um hospital humano. Ponto final.
O tipo franziu o sobrolho ao ouvir a parte do «humano», mas depois pareceu ignorá-lo.
- Nesse caso, não a opero...
V atirou-se ao homem.
Tudo aconteceu numa fração de segundo. Num minuto estava de pé, firme nas suas botas; no outro estava a voar - pelo menos até embater no bom doutor e o lançar contra
a parede de cimento do corredor.
- Vai lá para dentro e começa a cortar - rosnou V.
O humano mal conseguia respirar, mas a hipoxia não o impediu de se mostrar à altura. Fixou os olhos de V incapaz de falar, articulou: Não opero.
- V larga-o. E deixa-o levá-la para onde tem de ir.
Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, a vontade de soltar a pirotecnia tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de outro mirone? Ainda por cima, porra,
aquele que mandava.
V apertou ainda mais o colarinho do cirurgião.
- Não a vais levar para lado nenhum...
A mão no ombro de V era pesada e a voz de Wrath era afiada como uma adaga.
- Não és tu quem mandas aqui. O responsável por ela sou eu.
Palavras erradas. A tantos níveis.
- Ela é do meu sangue - resmungou V.
- E fui eu que a deixei naquela cama. Ah, também sou o cabrão do teu rei, por isso vais fazer o que te digo, Vishous.
No momento em que estava prestes a dizer qualquer coisa de que mais tarde se arrependeria, a sanidade de Jane alcançou-o.
- V, neste momento, o problema és tu. Não é o estado da tua gémea, nem a decisão do Manny. Tens de recuar e de pensar, não de reagir. Vou estar sempre com ela, e
o Butch vai comigo, não vais?
- Claro - garantiu o chui. - E também vou buscar o Rhage. Ela não fica sozinha um instante que seja.
Silêncio. Durante o qual o lado racional de V se esforçou por assumir o controlo... e o humano recusava-se a ceder. Apesar de estar a uma facada do caixão, o sacana
continuava a fitá-lo.
Cristo, quase merecia respeito por isso.
A mão de Jane no bíceps de V não era de todo como a de Wrath. O toque dela era leve, calmante, cuidadoso.
- Passei anos naquele hospital. Conheço as salas, as pessoas, o equipamento. Não há um metro quadrado daquelas instalações que eu não conheça como a palma da minha
mão. O Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá depressa... e que está protegida. Como chefe de cirurgia é ele que manda, e eu vou
estar sempre com ela...
Jane continuou a falar, mas ele não ouviu mais nada, com uma visão repentina a abater-se sobre ele como um sinal recebido de um transmissor externo. Viu claramente
a irmã montada a cavalo, a galopar à beira de uma floresta. Não tinha sela nem brida, e o cabelo estava solto e a adejar atrás dela ao luar.
Ria-se. Com um prazer total e absoluto.
Era livre.
Durante a vida, ele sempre vira imagens do futuro - por isso sabia que não era o caso. As suas visões eram exclusivamente de morte - as dos irmãos e de Wrath, e
das suas shellans e seus filhos. Saber como aqueles que o rodeavam iriam morrer fazia parte dos seus segredos e da sua loucura. Conhecia apenas a forma das mortes,
nunca a altura, e por isso não os podia salvar.
Aquilo que estava a ver não era o futuro. Era o que queria para a gémea que encontrara demasiado tarde e que se arriscava a perder demasiado cedo.
V, neste momento, o problema és tu.
Sem se arriscar a falar com nenhum deles, largou o médico como se fosse uma moeda e recuou. Enquanto o humano recuperava o fôlego, V só olhou para Jane.
- Não a posso perder - disse, numa voz fraca, mesmo com testemunhas presentes.
- Eu sei. Vou estar sempre com ela. Confia em mim.
V fechou brevemente os olhos. Uma das coisas que ele e a sua shellan tinham em comum era o facto de ambos serem muito, muito bons naquilo que faziam. Dedicados ao
seu trabalho, existiam em universos paralelos de criação e de concentração: o combate para ele, a cura para ela.
Portanto, era o equivalente a ele jurar que mataria alguém por ela.
- Certo - gemeu. - Está bem. Mas dá-me um minuto com ela.
Abriu as portas duplas e aproximou-se da cama da gémea, consciente de que poderia ser a última vez que falava com ela. Os vampiros, tal como os humanos, podiam morrer
durante uma operação. Morriam mesmo.
Parecia ainda pior do que antes, ali deitada imóvel, com os olhos não só fechados mas cerrados com força, como se ela estivesse em sofrimento. Grande porra, a shellan
dele tinha razão. Era ele que estava a empatar, e não a merda do cirurgião.
- Payne.
As pálpebras abriram-se lentamente, como se pesassem tanto como vigas.
- Meu irmão.
- Vais para um hospital humano, está bem? - Quando ela assentiu, V detestou que a pele dela estivesse da cor do lençol branco. - É aí que ele te vai operar.
Quando ela voltou a assentir, entreabriu os lábios e o fôlego saiu entrecortado, como se respirasse com dificuldade.
- É pelo melhor.
Cristo... e agora? Dizia que a amava? Imaginava que sim, à sua maneira disparatada.
- Escuta... cuida-te - resmungou.
Cretino. Estúpido como uma menina. Mas era tudo o que conseguiria dizer.
- Tu... também - gemeu ela.
Como com vontade própria, a sua mão boa deslizou lentamente até à dela. A gémea não se mexeu, nem reagiu quando ele a apertou um pouco mais e, de repente, ficou
em pânico ao pensar que perdera a sua oportunidade, que ela já partira.
- Payne.
As pálpebras estremeceram e abriram-se.
- Sim?
A porta abriu-se e Jane espreitou.
- Temos de ir.
- Sim. Está bem. - V apertou uma última vez a mão da irmã, depois saiu apressado da sala.
Quando chegou ao corredor, Rhage já lá estava, bem como Phury e Z. O que era bom. Phury era especialmente dotado no que dizia respeito a hipnotizar humanos - e já
o fizera em St. Francis.
V dirigiu-se a Wrath.
- Vais alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação vai precisar de se alimentar e o teu sangue é o mais forte que temos.
Quando fez a exigência teria sido interessante pensar que Beth, a rainha, podia não gostar de partilhar o parceiro dessa maneira. Claro que, sacana egoísta que era,
isso pouco lhe importava.
Mas Wrath limitou-se a assentir.
- Foi a minha shellan a primeira a sugeri-lo.
Os olhos de V fecharam-se. Raios, isso é que era uma fêmea de valor. A todos os níveis.
Antes de sair olhou uma derradeira vez para a sua shellan. Jane estava firme como uma casa erguida em terreno sólido, o rosto e os olhos fortes e decididos.
- Não tenho palavras - admitiu ele, num tom rouco.
- E eu sei exatamente o que me estás a dizer.
V estava a um metro dela, preso ao chão, desejando ser um tipo diferente de macho. A desejar... que praticamente tudo fosse diferente.
- Vai - murmurou ela. - Eu trato disto.
V olhou uma última vez para Butch e quando o chui assentiu uma vez, a decisão foi tomada. Vishous aquiesceu para o seu rapaz e afastou-se, saindo do centro de treino
e entrando no túnel subterrâneo, a caminho do Fosso.
Onde se apercebeu de imediato que a distância física não lhe servia de nada. Continuava a sentir-se no meio de tudo... e não confiava em si... acabaria por voltar
«para ajudar».
Sair. Tinha de sair dali e afastar-se de tudo e todos.
Saindo pela pesada porta de entrada, marchou até ao pátio... e acabou parado sem ir a lado nenhum, tal como os carros alinhados lado a lado à frente da fonte.
Ali estacado como um poste, um barulho estranho de crepitar chamou-lhe a atenção. Ao início não o conseguiu localizar, mas depois olhou para baixo. A mão enluvada
tremia e batia-lhe na parte de cima da coxa.
Por baixo do cabedal forrado a chumbo, o clarão era suficientemente brilhante para o obrigar a semicerrar os olhos.
Que raios. Estava tão perto de perder o controlo que mais valia já estar a voar.
Praguejando, desmaterializou-se e dirigiu-se ao local para onde ia sempre quando ficava assim. Não queria esse destino, nem o impulso que o lançara na noite... mas
à semelhança de Payne, o destino não estava nas suas mãos.

 

 

CONTINUA