Estou aprisionada há 264 dias.
Não tenho nada senão um caderno e uma caneta quebrada e os números na cabeça para me fazer companhia. Uma janela. Quatro paredes. Espaço de 1,48 m2. Vinte e seis letras de um alfabeto do qual não fiz uso em 264 dias de isolamento.
Seis mil, trezentas e trinta e seis horas desde que toquei outro ser humano.
— Você vai ganhar um companheiro de cela — disseram para mim.
— A gente espera que você apodreça neste lugar. Por bom comportamento — disseram para mim.
— Outro psicótico igual a você. Acabou o isolamento — disseram para mim.
Eles são os asseclas do Restabelecimento. A iniciativa que supostamente deveria ajudar nossa sociedade agonizante. As mesmas pessoas que me arrancaram da casa de meus pais e me trancafiaram em um porão por causa de algo que me fugia ao controle. Ninguém se importa com o fato de que eu não sabia do que era capaz. De que eu não sabia o que estava fazendo.
Não faço ideia de onde estou.
Só sei que fui transportada por alguém dentro de um furgão branco que levou 6h37min para me trazer até aqui. Sei que fui algemada em meu assento. Sei que fui amarrada em minha cadeira. Sei que meus pais jamais se preocuparam em se despedir. Sei que não chorei enquanto era levada.
Sei que o céu desaba todos os dias.
O Sol cai dentro do oceano e respinga marrons e vermelhos e amarelos e laranja no mundo exterior a minha janela. Um milhão de folhas de uma centena de diferentes ramos mergulham no vento, flutuando com a falsa promessa de voo. A rajada de vento atinge suas asas secas apenas para forçá-las para baixo, esquecidas, deixadas ao pisoteio dos soldados ao chão.
Não há tantas árvores como antes, é o que dizem os cientistas. Eles dizem que nosso mundo costumava ser verde. Nossas nuvens costumavam ser brancas. Nosso Sol era sempre o tipo certo de luz. Mas tenho frágeis memórias desse mundo. Não me lembro muito de como era antes. A única existência que conheço agora é a que me foi dada. Um eco do que costumava ser.
Pressiono a palma da mão contra a pequena vidraça e sinto o frio cingi-la em um abraço familiar. Estamos ambas sozinhas, ambas existindo como a ausência de qualquer outra coisa.
Apanho minha caneta quase inútil e de pouquíssima tinta, e cujo uso aprendi a racionar um dia após o outro, e olho fixamente para ela. Mudo de ideia. Abandono o esforço necessário para escrever. Ter um companheiro de cela poderia ser bom. Conversar com um ser humano de verdade poderia facilitar as coisas. Pratico usando a voz, moldando os lábios à forma das palavras familiares que me são estranhas à boca. Pratico todos os dias.
Fico surpresa por lembrar como se fala.
Enrolo meu caderninho e o enfio na parede. Sento-me nas molas cobertas de pano sobre as quais sou forçada a dormir. Espero. Balanço-me de um lado para o outro e espero.
Espero muito tempo e caio no sono.
Meus olhos se abrem a dois olhos dois lábios duas orelhas duas sobrancelhas.
Contenho meu grito na urgência de dominar o horror paralisante que me toma os membros.
— Você é um ga-ga-garoto...
— E você é uma garota. — Ele ergue uma sobrancelha. Ele se inclina, desviando-se de meu rosto. Ele força um riso, mas ele não está sorrindo. E eu quero chorar, meus olhos se desesperam, aterrados, lançando-se em direção à porta que perdi as contas de tantas vezes que tentei abrir. Eles me trancaram com um garoto. Um garoto.
Deus!
Eles estão tentando me matar.
Eles fizeram isso de propósito.
Para me torturar, para me atormentar, para eu nunca mais dormir durante a noite. Seus braços são tatuados até os cotovelos. Na sobrancelha falta-lhe uma argola, que eles devem ter confiscado. Olhos azul-escuros, cabelos castanho-escuros, linha da mandíbula definida, físico forte e magro. Deslumbrante. Perigoso. Aterrorizante. Horrível.
Ele ri e eu caio da cama e corro para o canto.
Ele avalia o pequeno travesseiro sobre a cama vaga que eles empurraram para o espaço vazio esta manhã, o reduzido colchão e o cobertor surrado nem mesmo grandes o bastante para dar conta da metade superior de seu corpo. Ele olha para minha cama. Olha para sua cama.
Junta as duas com uma mão. Usa o pé para empurrar as duas armações de metal para o seu lado do quarto. Estende-se sobre os dois colchões, tomando meu travesseiro para amortecer seu pescoço. Comecei a tremer.
Mordo o lábio e tento ocultar-me no canto escuro.
Ele roubou minha cama, meu cobertor, meu travesseiro.
Não tenho nada senão o chão.
Não terei nada senão o chão.
Jamais irei me opor porque estou petrificada demais paralisada demais paranoica demais.
— Então você é... o quê? Louca? É por isso que está aqui?
Não sou louca.
Ele se apoia o suficiente para ver meu rosto. Ele ri novamente.
— Não vou machucá-la.
Quero acreditar nele. Não acredito nele.
— Qual seu nome? — pergunta ele.
Não é da sua conta. Qual seu nome?
Escuto sua respiração irritada. Escuto-o virar-se na cama cuja metade costumava ser minha. Permaneço a noite toda acordada. Meus joelhos enroscados no queixo, meus braços apertados em volta de meu pequeno corpo. Meu longo cabelo castanho é a única cortina entre nós.
Não vou dormir.
Não posso dormir.
Não posso ouvir aqueles gritos novamente.
2
Tem cheiro de chuva da manhã.
O quarto está impregnado do cheiro de pedra molhada, solo revolvido; o ar está úmido e terroso. Respiro fundo e ando na ponta dos pés até a janela apenas para pressionar o nariz contra a superfície fria. Sinto minha respiração embaçar o vidro. Fecho os olhos ao som de um suave tamborilar permeando o vento. As gotas de chuva são minha única lembrança de que as nuvens têm pulsação. De que eu também tenho uma.
Sempre me pergunto sobre as gotas de chuva.
Gostaria de saber como estão sempre caindo, tropeçando nos próprios pés, quebrando as pernas e esquecendo-se de seus paraquedas, conforme tombam direto do céu rumo a um fim incerto. É como uma pessoa que está esvaziando os bolsos sobre a terra e parece não se importar com o destino do conteúdo que cai, que parece não se importar com o fato de que as gotas de chuva estouram quando atingem o solo, de que elas se estilhaçam quando chegam ao chão, de que as pessoas amaldiçoam os dias em que as gotas ousam tocar sua porta.
Sou uma gota de chuva.
Meus pais esvaziaram seus bolsos de mim e deixaram-me evaporar sobre uma laje de concreto.
A janela me diz que não estamos longe das montanhas e que, definitivamente, estamos perto da água, mas, hoje, tudo está perto da água. Só não sei de que lado estamos. Para que direção estamos voltados. Aperto os olhos à primeira luz da manhã. Alguém pegou o Sol e o fixou novamente no céu, mas todos os dias ele paira um pouco mais baixo que no dia anterior. É como um pai negligente que conhece apenas metade de quem você é. Nunca enxerga como sua ausência muda as pessoas. Quão diferentes somos no escuro.
Um sussurro repentino indica que meu companheiro de cela está acordado.
Giro sobre meus pés como se tivesse sido pega roubando comida outra vez. Isso só aconteceu uma vez, e meus pais não acreditaram em mim quando disse que ela não era para mim. Eu disse que estava apenas tentando salvar os gatos vadios que viviam pela vizinhança, mas eles não acreditaram que eu fosse humana o bastante para me importar com um gato. Não eu. Não algo alguém como eu. Além disso, eles nunca acreditavam em nada do que eu dizia. É exatamente por isso que estou aqui.
O companheiro de cela está me estudando.
Ele adormeceu completamente vestido. Ele está usando uma camiseta azul-marinho e calças cargo cáqui enfiadas em botas pretas de cano alto.
Estou usando fibras de algodão morto nos membros e um rubor de rosas na face.
Seus olhos esquadrinham a silhueta de minha estrutura e esse vagaroso movimento faz meu coração disparar. Apanho as pétalas de rosa conforme me caem do rosto, flutuam em volta da moldura de meu corpo e me revestem em algo cuja sensação remete à ausência de coragem.
Pare de olhar para mim, é o que quero dizer.
Pare de me tocar com seus olhos, mantenha suas mãos afastadas e por favor e por favor e por favor...
— Qual seu nome? — A inclinação de sua cabeça racha ao meio a gravidade.
Estou suspensa no momento. Pisco os olhos e contenho a respiração.
Ele se move e meus olhos se estilhaçam em milhares de pedaços que ricocheteiam ao redor do quarto, capturando um milhão de fotos instantâneas; um milhão de momentos no tempo. Bonitas imagens desbotadas pela idade, pensamentos congelados pairando precariamente no espaço morto, um redemoinho de memórias que me cortam a alma. Ele me faz lembrar de alguém que eu conhecia.
Uma respiração profunda e o choque me devolve à realidade.
Sem mais sonhar acordada.
— Por que você está aqui? — pergunto às rachaduras da parede de concreto. Catorze rachaduras em quatro paredes em mil tons de cinza. O chão, o teto: tudo a mesma laje de pedra. As armações das camas construídas de modo patético: a partir de velhos canos de água. O quadradinho de uma janela: grossa demais para quebrar. Esgotou-se minha esperança. Meus olhos estão dispersos e doloridos. Meu dedo está traçando um caminho preguiçoso pelo piso frio.
Estou sentada no chão que cheira a gelo, metal e sujeira. O companheiro de cela senta-se diante de mim, pernas dobradas por debaixo dele, botas brilhantes demais para este lugar.
— Você tem medo de mim. — Sua voz não tem forma.
Meus dedos cerram-se em punho.
— Receio que esteja errado.
Poderia estar mentindo, mas isso não é da conta dele.
Ele bufa, e o som ecoa pelo ar que jaz entre nós. Não levanto a cabeça. Não dou com os olhos que ele está lançando em minha direção. Provo do oxigênio seco e gasto e suspiro. O aperto na garganta vem de algo familiar para mim, algo que aprendi a engolir em seco.
Duas súbitas batidas à porta trazem minhas emoções de volta ao lugar.
Ele se coloca de pé em um instante.
— Ninguém está lá — digo a ele. — É só nosso café da manhã. — Duzentos e sessenta e quatro cafés da manhã e ainda não sei do que ele é feito. Tem cheiro de muita coisa química; uma massa amorfa sempre entregue em extremos. Às vezes doce demais, às vezes salgada demais, sempre repugnante. Na maior parte das vezes estou tão morta de fome que nem noto a diferença.
Escuto-o hesitar por apenas um instante antes de avançar rumo à porta. Ele abre uma pequena fresta e através dela espreita um mundo que não existe mais.
— Merda! — Ele praticamente arremessa a bandeja pela abertura, parando apenas para bater a palma da mão contra a camisa. — Merda, merda. — Ele fecha os dedos e tensiona a mandíbula. Ele queimou a mão. Eu o teria alertado se ele tivesse me escutado.
— Você deve esperar pelo menos três minutos antes de tocar a bandeja — digo à parede. Não olho para as leves cicatrizes que adornam minhas pequenas mãos, para as marcas de queimadura que ninguém poderia ter me instruído a evitar. — Acho que eles fazem isso de propósito — acrescento, calmamente.
— Ah, então hoje você está conversando comigo? — Ele está com raiva. Seus olhos relampejam antes de ele desviar o olhar e eu perceber que ele está mais constrangido do que qualquer outra coisa. Ele é um cara durão. Durão demais para cometer erros estúpidos na frente de uma garota. Durão demais para demonstrar dor.
Aperto os lábios e fito o lado de fora do pequeno quadrado de vidro que eles chamam janela. Não sobraram muitos animais, mas já ouvi histórias de pássaros que voam. Talvez um dia eu consiga ver um. Atualmente, as histórias têm um enredo tão desordenado que há muito pouco em que se acreditar, mas não foi só de uma pessoa que escutei dizer que, de fato, viram um pássaro voando nos últimos anos. Portanto, observo da janela.
Haverá um pássaro hoje. Ele será branco com listras de ouro igual a uma coroa sobre sua cabeça. Ele voará. Haverá um pássaro hoje. Ele será branco com listras de ouro igual a uma coroa sobre sua cabeça. Ele voará. Haverá um...
Sua mão.
Em mim.
Duas pontas de dois dedos roçam por menos de um segundo meu ombro coberto de pano, e cada músculo, cada tendão de meu corpo está carregado de tensão e amarrado em nós que me comprimem a espinha. Permaneço bastante quieta. Não me movo. Não respiro. Talvez, se não me mover, este sentimento dure para sempre.
Às vezes penso que a solidão dentro de mim explodirá pela pele e, às vezes, não tenho certeza se chorar ou gritar ou rir de histeria resolverá alguma coisa. Às vezes estou tão desesperada por tocar, por ser tocada, por sentir, que tenho quase certeza de que vou cair de um penhasco em um universo alternativo no qual ninguém, nunca, será capaz de me encontrar.
Não parece impossível.
Tenho gritado por anos e ninguém jamais me escutou.
— Você não está com fome? — Sua voz é mais baixa agora, um pouco preocupada.
Há 264 dias estou morrendo de fome.
— Não. — A palavra é pouco mais que uma respiração entrecortada, pois me escapa dos lábios e me viro e eu não deveria, mas faço e ele está me encarando. Está me estudando. Seus lábios estão somente um pouco apartados, seus braços, inertes ao lado do corpo, seus cílios, pestanejam em trégua.
Sinto alguma coisa socar meu estômago.
Seus olhos. Alguma coisa em seus olhos.
Não é ele não é ele não é ele não é ele não é ele.
Fecho-me ao mundo. Tranco-me. Giro a chave com firmeza.
A escuridão me sepulta em seus vincos.
— Ei...
Meus olhos se abrem. Duas janelas estilhaçadas enchendo de vidro minha boca.
— O que é? — Sua voz é uma tentativa fracassada de monotonia, uma tentativa ansiosa de indiferença.
Nada.
Concentro-me no quadrado transparente encravado entre mim e minha liberdade. Quero estraçalhar este mundo de concreto e esquecimento. Quero ser maior, melhor, mais forte.
Quero estar furiosa-furiosa-furiosa.
Quero ser o pássaro que voa para longe.
— O que você está escrevendo? — O companheiro de cela fala novamente.
Estas palavras são vômito.
Esta caneta trêmula é meu esôfago.
Esta folha de papel é minha tigela de porcelana.
— Por que você não me responde? — Ele está perto demais perto demais perto demais.
Ninguém jamais está perto o bastante.
Engulo a respiração e espero que ele dê o fora, como todos os outros de minha vida. Meus olhos estão focados na janela e na promessa do que poderia ser. Na promessa de algo mais grandioso, algo mais importante, alguma razão para a demência que se edifica em meus ossos, alguma explicação para minha incapacidade de fazer qualquer coisa sem arruinar tudo. Haverá um pássaro. Ele será branco com listras de ouro igual a uma coroa sobre sua cabeça. Ele voará. Haverá um pássaro. Ele será...
— Ei...
— Você não pode me tocar — murmuro. Estou mentindo; é o que não digo a ele. Ele pode me tocar, é o que nunca lhe direi. Por favor, toque-me; é o que quero lhe dizer.
Mas coisas acontecem quando as pessoas me tocam. Coisas estranhas. Coisas ruins.
Coisas mortas.
Não consigo me lembrar do calor de qualquer tipo de abraço. Meus braços doem em virtude do inescapável gelo do isolamento. Minha própria mãe não poderia me segurar nos braços. Meu pai não poderia aquecer minhas mãos congeladas. Vivo em um mundo de nada.
Olá.
Mundo.
Você irá me esquecer.
Toque-toque.
O companheiro de cela se levanta em um pulo.
É hora do banho.
3
A porta se abre a um abismo.
Não há cor, não há luz, não há promessa de qualquer coisa senão horror do outro lado. Sem palavras. Sem direção. Apenas uma porta aberta que significa a mesma coisa todo o tempo.
O companheiro de cela tem perguntas.
— Mas que diabos? — Ele olha para mim e depois para a ilusão da fuga. — Estão nos deixando sair?
Eles nunca nos deixarão sair.
— É hora do banho.
— Banho? — Sua voz perde a inflexão, mas ainda é entremeada de curiosidade.
— Não temos muito tempo — digo a ele. — Temos de nos apressar.
— Espere, o quê? — Ele alcança meu braço, mas eu me afasto. — Mas não tem luz... nem podemos enxergar para onde vamos...
— Depressa. — Concentro os olhos no chão. — Pegue na barra da minha camisa.
— Do que você está falando?...
Um alarme soa a distância. Um zunido ressoa mais próximo na segunda vez. Logo toda a cela está vibrando com o aviso e a porta está se fechando. Agarro sua camisa e, perto de mim, arrasto-o para a escuridão.
— Não. Diga. Nada.
— Ma...
— Nada — digo em um zumbido surdo. Puxo sua camisa e ordeno-lhe que me siga como se eu sentisse o caminho pelos labirintos da instituição psiquiátrica. É um lar, um centro para jovens problemáticos, para crianças abandonadas de famílias desmanteladas, um lar seguro para os perturbados psicologicamente. É uma prisão. Eles nos alimentam com nada e nossos olhos nunca veem um ao outro, exceto às raras brechas de luz que se infiltram pelas fendas de vidro que eles fingem serem janelas. Noites são rasgadas por gritos e soluços tortuosos, lamentos e choros atormentados, os ruídos de carne e osso rompendo-se, se à força ou por opção não dá para saber. Passei os três primeiros meses na companhia de meu próprio fedor. Ninguém nunca me disse onde ficavam os banheiros e chuveiros. Ninguém nunca me disse como funcionava o sistema. Ninguém fala com você a menos que seja para comunicar más notícias. Ninguém toca em você de modo nenhum. Garotos e garotas nunca se encontram.
Nunca até hoje.
Não pode ser coincidência.
Meus olhos começam a se ajustar ao manto artificial da noite. Meus dedos sentem o caminho através dos corredores acidentados, e o companheiro de cela não diz uma palavra. Estou quase orgulhosa dele. Ele é quase trinta centímetros maior do que eu; seu corpo, forte e sólido, com força e musculatura de alguém perto da minha idade. O mundo ainda não o arrasou. Tamanha a imunidade na ignorância.
— O que...
Dou-lhe um puxão mais forte na camisa para impedi-lo de falar. Os corredores ainda estavam escuros. Sinto a estranha necessidade de protegê-lo, esta pessoa que poderia me quebrar com dois dedos. Ele não percebe o quanto esta ignorância o torna vulnerável. Ele não percebe que poderiam matá-lo por motivo nenhum.
Decidi não ter medo dele. Decidi que suas ações eram mais imaturas que ameaçadoras. Ele me parece tão familiar tão familiar tão familiar. Uma vez conheci um garoto com os mesmos olhos azuis e minhas lembranças não me permitem que o odeie.
Talvez eu gostasse de um amigo.
Mais um metro e meio até a parede que vai do áspero ao liso e então viramos à direita. Um pouco mais de meio metro de espaço vazio antes de chegarmos a uma porta de madeira com uma maçaneta quebrada e um punhado de lascas. Três batimentos cardíacos até termos certeza de que estamos sozinhos. Um passo adiante para empurrar a porta. Um suave rangido, e a fenda se alarga para revelar nada senão o que imagino que pareça este espaço.
— Por aqui — sussurro.
Puxo-o rumo à fila de chuveiros e vasculho o chão em busca de quaisquer pedaços de sabonete pousados no ralo. Encontro dois pedaços, um duas vezes maior que o outro.
— Abra sua mão — digo na escuridão. — É gosmento. Mas não o deixe cair. Não tem mais sabonete e tivemos sorte hoje.
Ele diz nada por alguns segundos e começo a me preocupar.
— Ainda está aí? — Me pergunto se esta era a armadilha. Se este era o plano. Se talvez ele tivesse sido enviado para me matar neste pequeno espaço sob o manto da escuridão. Realmente nunca soube o que eles iam fazer comigo no hospício, nunca soube se eles achavam que me prender seria bom o suficiente, mas eu sempre achei que eles poderiam me matar. Sempre me pareceu uma opção viável.
Não posso dizer que não mereceria isso.
No entanto estou aqui por alguma coisa que nunca tive a intenção de fazer e ninguém parece se importar com o fato de ter sido um acidente.
Meus pais nunca tentaram me ajudar.
Não escuto os chuveiros funcionando e meu coração gela. Este singular recinto raramente está cheio, mas geralmente há outras pessoas, nem que sejam apenas uma ou duas. Percebi que os residentes do hospício ou são loucos legítimos e não conseguem encontrar o caminho para os chuveiros, ou simplesmente não se importam com isso.
Engulo em seco.
— Qual seu nome? — Sua voz rasga o ar e meu fluxo de consciência em um só movimento. Posso sentir sua respiração muito mais perto do que ele estava antes. Meu coração está acelerando e não sei por que, mas não consigo controlar isso. — Por que você não me diz o seu nome?
— Sua mão está aberta? — pergunto, minha boca seca, minha voz rouca.
Ele avança devagar e eu estou quase com medo de respirar. Seus dedos roçam o tecido duro da única roupa que terei para sempre e eu consigo soltar o ar dos pulmões. Desde que ele não toque minha pele. Desde que ele não toque minha pele. Desde que ele não toque minha pele. Este parece ser o segredo.
Minha fina camiseta foi lavada tantas vezes na água desagradável deste edifício que parece um saco de pano contra minha pele. Solto o pedaço maior de sabonete em sua mão e ando para trás pé ante pé.
— Vou ligar o chuveiro para você — explico cuidadosamente, ansiosa por não elevar minha voz, temendo que outros me ouvissem.
— O que faço com minhas roupas? — Seu corpo ainda está muito próximo ao meu.
Pisco mil vezes na escuridão.
— Você tem que tirá-las.
Seu riso soa com um ar divertido.
— Não, eu sei. Quis dizer o que faço com elas enquanto tomo banho?
— Faça com que não se molhem.
Ele respira fundo.
— Quanto tempo nós temos?
— Dois minutos.
— Jesus, por que não disse an...
Ligo seu chuveiro ao mesmo tempo que ligo o meu, e suas reclamações se afogam debaixo da ducha entrecortada das torneiras que mal funcionam.
Os movimentos são mecânicos. Fiz isso tantas vezes que já memorizei os métodos mais eficientes para esfregar, enxaguar e racionar sabonete para meu corpo, bem como para meu cabelo. Não há toalhas, então o truque é tentar não ensopar nenhuma parte do corpo. Se o fizer, nunca se secará adequadamente e passará a próxima semana quase morrendo de pneumonia. Sei muito bem.
Em exatos 90 segundos eu torci os cabelos e estou me enfiando de volta na minha roupa esfarrapada. Das coisas que tenho, meus tênis são os únicos que ainda estão razoavelmente em boas condições. Não fazemos caminhada por aqui.
O companheiro de cela segue o exemplo quase imediatamente. Estou satisfeita por ele aprender rápido.
— Pegue a barra da minha camisa — instruo-o. — Temos de correr.
Seus dedos roçam a parte estreita das minhas costas por um vagaroso momento e eu tenho de morder o lábio para conter a intensidade. Quase paro no lugar. Ninguém jamais coloca as mãos em qualquer parte do meu corpo.
Tenho de correr, então seus dedos me abandonam. Ele tropeça ao me alcançar.
Quando finalmente estamos presos entre as familiares quatro paredes de claustrofobia, meu companheiro de cela não para de me encarar.
Enrolo-me no canto. Ele ainda tem minha cama, meu cobertor, meu travesseiro. Perdoo-o por sua ignorância, mas talvez seja cedo demais para sermos amigos. Talvez eu tenha me precipitado em ajudá-lo. Talvez ele realmente só esteja aqui para me fazer infeliz. No entanto, se eu não me manter aquecida, vou ficar doente. Meu cabelo está muito molhado e o cobertor com que costumava enrolá-lo ainda está no lado dele do quarto. Talvez ainda esteja com medo dele.
Inspiro muito intensamente, muito depressa levanto os olhos à luz opaca do dia. O companheiro de cela envolveu dois cobertores sobre meus ombros.
Um meu.
Um seu.
— Desculpa por ser tão imbecil — murmura ele para a parede. Ele não me toca e eu estou desapontada feliz por ele não tocar. Queria que ele tivesse. Ele não deveria. Ninguém jamais deve me tocar.
— Sou Adam — fala ele lentamente. Ele se afasta de mim até clarear o quarto. Ele usa uma mão para empurrar a armação de minha cama de volta para o meu lado.
Adam.
Um bonito nome. O companheiro de cela tem um bonito nome.
É um nome de que sempre gostei, mas nunca consegui lembrar por quê.
Não perco tempo ao subir sobre as molas mal disfarçadas de meu colchão e estou tão exausta que quase não sinto as espirais de metal que ameaçam perfurar minha pele. Não durmo há mais de 24 horas. Adam é um bonito nome é a única coisa em que consigo pensar antes de a exaustão invalidar meu corpo.
4
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
O horror rompe-me as pálpebras.
Meu corpo está ensopado de um suor frio, meu cérebro, nadando em ondas de dor não esquecidas. Meus olhos fixam-se em círculos negros que se dissolvem na escuridão. Não faço ideia do quanto dormi. Não faço ideia se assustei meu companheiro de cela com os meus sonhos. Às vezes grito bem alto.
Adam está me fitando.
Estou respirando com dificuldade e consigo me levantar. Puxo os cobertores para mais perto de meu corpo apenas para me dar conta de que roubara seu único meio de se aquecer. Nunca me ocorreu que ele poderia estar congelando tanto quanto eu. Estou tremendo, mas seu corpo está inabalável na noite, sua silhueta, uma forma rija contra o pano de fundo negro. Não faço ideia do que dizer. Não há nada a dizer.
— Os gritos nunca param neste lugar, não é?
Os gritos são apenas o começo.
— Não — digo quase em silêncio. Um fraco rubor surge-me no rosto e eu estou feliz que esteja escuro demais para que ele repare. Ele deve ter escutado meus gritos.
Às vezes gostaria que nunca tivesse de dormir. Às vezes penso que, se eu ficar muito, muito quieta, se eu não me mover de modo nenhum, as coisas podem mudar. Penso que, se me congelar, eu posso congelar a dor. Às vezes não me movo por horas. Não movo um dedo.
Se o tempo permanece imóvel, nada pode dar errado.
— Você está bem? — A voz de Adam está preocupada. Examino seus punhos cerrados mantidos de lado, a ruga enterrada em sua testa, a tensão em sua mandíbula. Esta pessoa que roubou minha cama e meu cobertor é a mesma que ficou privada deles esta noite. Tão arrogante e descuidado poucas horas atrás; tão cuidadoso e quieto neste momento. Assusta-me que este lugar pudesse tê-lo destruído tão rapidamente. Me pergunto o que ele escutou enquanto eu estava dormindo.
Gostaria de poder salvá-lo do horror.
Algo se quebra; um grito atormentado soa a distância. Estes quartos são entranhados em concreto, paredes mais grossas que pisos e tetos combinados de modo a impedir que os ruídos escapem para muito longe. Se posso ouvir a agonia, é porque ela deve ser impossível de dominar. Todas as noites há sons que deixo de escutar. Todas as noites pergunto-me se sou a próxima.
— Você não é louca.
Levanto bruscamente os olhos. A cabeça dele está inclinada, seus olhos concentrados e nítidos apesar da mortalha que nos envolve. Ele respira fundo.
— Pensei que todo mundo aqui fosse louco — continua ele. — Pensei que eles tinham me prendido com um psicopata.
Dou uma forte tragada de oxigênio.
— Engraçado. Eu também.
1
2
3 segundos se passam.
Ele irrompe um sorriso tão largo, tão divertido, tão sincero e reanimador que é como uma trovoada pelo meu corpo. Algo alfineta meus olhos e quebra meus joelhos. Não vejo um sorriso há 265 dias.
Adam está de pé.
Ofereço-lhe seu cobertor.
Ele o pega apenas para enrolá-lo com mais firmeza em volta de meu corpo e algo repentinamente se contrai em meu peito. Meus pulmões estão esmagados e acabei de decidir não me mexer fosse lá durante quanto tempo ele falasse.
— O que houve?
Meus pais pararam de tocar em mim quando passei a engatinhar. Fiz meus colegas de classe chorar só por lhes segurar as mãos. Os professores me faziam trabalhar sozinha para que eu não machucasse as outras crianças. Nunca tive um amigo. Nunca conheci o aconchego do abraço de uma mãe. Nunca senti a ternura do beijo de um pai. Eu não sou louca.
— Nada.
Mais cinco segundos.
— Posso me sentar a seu lado?
Isso seria maravilhoso.
— Não. — Estou novamente encarando a parede.
Ele aperta e desaperta o maxilar. Ele passa a mão pelos cabelos e eu percebo pela primeira vez que ele não está vestindo uma camisa. Está tão escuro no quarto que apenas posso entrever as curvas e os contornos de sua silhueta; apenas uma pequena janela permite à Lua iluminar este espaço, mas eu observo enquanto os músculos de seus braços se comprimem a cada movimento e eu, repentinamente, estou pegando fogo. Chamas lambem minha pele e há uma explosão de calor arranhando-me todo o estômago. Cada centímetro de seu corpo está nu com vigor, cada superfície de algum modo iluminada na escuridão. Em dezessete anos jamais vi algo como ele. Em dezessete anos jamais conversei com um garoto da minha idade. Porque eu sou um monstro.
Fecho os olhos até fazê-los costurar de tão bem fechados.
Escuto o rangido de sua cama, o gemido das molas enquanto ele se senta. Descosturo os olhos e examino o chão.
— Você deve estar congelando.
— Não. — Um forte suspiro. — Na verdade, estou pegando fogo.
Fico de pé tão rapidamente que os cobertores caem no chão.
— Você está doente? — Meus olhos examinam seu rosto à procura de sinais de febre, mas não ouso me aproximar.
— Você se sente zonzo? Doem-lhe as articulações? — Tento me lembrar de meus próprios sintomas. Meu próprio corpo prendeu-me à cama por uma semana. Não conseguia fazer mais que rastejar até a porta e cair de cara na minha comida. Não sei como sobrevivi.
— Qual é o seu nome?
Ele já fez a mesma pergunta três vezes.
— Você pode estar doente — é tudo o que consigo dizer.
— Não estou doente. Só estou quente. Não costumo dormir vestido.
Sinto um frio na barriga. Uma humilhação inexplicável queima minha carne. Não sei para onde olhar.
Uma respiração profunda.
— Fui um estúpido ontem. Tratei você como lixo e eu sinto muito. Não devia ter feito aquilo.
Ouso deparar com seu olhar.
Seus olhos são o tom perfeito de cobalto, azuis como uma contusão a desabrochar, nítidos e decididos. Sua mandíbula é definida e suas feições são esculpidas em uma expressão cuidadosa. Ele pensou nisso a noite toda.
— Está tudo bem.
— Então por que você não me diz o seu nome? — Ele se inclina para a frente e eu congelo.
Eu me derreto.
Eu evaporo.
— Juliette — sussurro. — Meu nome é Juliette.
Seus lábios amolecem em um sorriso que me quebra a espinha em pedaços. Ele repete meu nome como se a palavra o divertisse. Como se o entretivesse. Como se o deleitasse.
Em dezessete anos, ninguém jamais disse meu nome desse jeito.
5
Não sei quando isso começou.
Não sei por que isso começou.
Não sei nada de nada a não ser dos gritos.
Minha mãe gritando quando ela percebeu que não poderia mais me tocar. Meu pai gritando quando ele percebeu o que eu fizera com minha mãe. Meus pais gritando quando me trancaram em meu quarto e me disseram que eu deveria ser grata. Por sua comida. Pelo tratamento humano dedicado a esta coisa que não era possível que fosse filha deles. Pelo parâmetro que eles usaram para determinar a distância que eu devia ficar.
Arruinei a vida deles — é o que me diziam.
Roubei sua felicidade. Destruí para sempre a esperança de minha mãe de ter filhos novamente.
Eu não conseguia enxergar o que tinha feito? — é o que eles me perguntavam. Eu não conseguia enxergar que tinha estragado tudo?
Tentei tanto consertar o que eu tinha estragado. Tentei todo santo dia ser o que eles queriam. Tentei o tempo todo ser melhor, mas de fato nunca soube como.
Somente agora sei que os cientistas estão errados.
O mundo é achatado.
Sei por que fui atirada da margem do planeta e há dezessete anos ando tentando me segurar. Há dezessete anos tenho tentado escalar de volta, mas é quase impossível superar a gravidade quando ninguém está disposto a lhe dar a mão.
Quando ninguém quer correr o risco de tocar em você.
Hoje está nevando.
O concreto está gelado e mais rígido que o normal, mas eu prefiro estas temperaturas congelantes à umidade sufocante dos dias de verão. O verão é como um fogão lento capaz de fazer ferver todas as coisas do mundo um grau de cada vez. Ele é a promessa de um milhão de adjetivos felizes apenas para fazer emanar fedor e esgoto para seu nariz durante o jantar. Odeio o calor e o suor pegajoso nas costas. Odeio o fastio indiferente de um Sol preocupado demais consigo mesmo para se dar conta das infinitas horas que passamos em sua presença. O Sol é uma coisa arrogante, sempre vendo o mundo pelas costas quando se cansa de nós.
A Lua é uma companheira correta.
Ela nunca se vai. Está sempre lá, observando, constante, reconhecendo-nos em nossos momentos de luz e escuridão, em constante transformação, assim como nós. Todos os dias uma versão diferente dela mesma. Às vezes fraca e lívida, noutras forte e cheia de luz. A Lua compreende o significado de ser humano.
Inconstante. Solitária. Esburacada de imperfeições. Estendo a mão para pegar um floco de neve e minha mão se fecha no ar gelado. Vazia.
Quero que esta mão ligada a meu punho atravesse direto a janela.
Apenas para sentir algo.
Apenas para sentir-me humana.
— Que horas são?
Meus olhos tremulam por um momento. Sua voz me puxa de volta para um mundo que continuo tentando esquecer.
— Eu não sei — digo-lhe. Não faço ideia de que horas são. Não faço ideia de qual é o dia da semana, em que mês estamos, ou mesmo se existe uma estação específica em que devíamos estar.
Não temos mais estações propriamente ditas.
Os animais estão morrendo, os pássaros não voam, as colheitas são difíceis de obter, as flores quase não existem. O tempo não é confiável. Às vezes os dias de inverno atingem 33 graus. Às vezes neva por razão nenhuma. Não conseguimos mais produzir alimento suficiente, não conseguimos mais manter vegetação suficiente para os animais, e não conseguimos alimentar as pessoas com aquilo de que elas precisam. Nossa população estava morrendo a uma taxa alarmante antes de O Restabelecimento tomar o comando com a promessa de que tinham uma solução. Os animais estavam tão desesperados por comida que estavam dispostos a comer qualquer coisa, e as pessoas estavam tão desesperadas por comida que estavam dispostas a comer animais envenenados. Estávamos nos matando na tentativa de permanecermos vivos. O tempo, as plantas e a sobrevivência humana são indissociáveis. Os elementos naturais estavam em guerra uns com os outros porque abusávamos de tudo. Abusávamos de nossa atmosfera. Abusávamos de nossos animais. Abusávamos de nosso semelhante.
O Restabelecimento prometeu que consertaria as coisas. No entanto, mesmo que a saúde humana tenha encontrado um pouquinho de alívio sob o novo regime, no fim das contas morreram mais pessoas de uma arma carregada que de um estômago vazio. E está ficando pior.
— Juliette?
Levanto bruscamente a cabeça.
Seus olhos estão desconfiados, preocupados, analisando-me.
Desvio o olhar.
Ele limpa a garganta.
— Então, hum, apenas nos dão de comer uma vez ao dia?
Sua pergunta faz que nossos olhos se voltem para a pequena fenda na porta.
Trago os joelhos até o peito e equilibro meus ossos sobre o colchão. Se me mantiver muito, muito parada, quase consigo ignorar o metal cavando-me a pele.
— Não há sistema quanto à comida — digo-lhe. Meu dedo traça uma nova forma debaixo do material áspero de que é feito o cobertor. — Costuma-se ter algo pela manhã, mas quanto ao resto não há garantias. Às vezes... damos sorte. Meus olhos se erguem à vidraça perfurada na parede. Tons rosa e vermelho insinuam-se dentro do quarto e eu sei que é o início de um novo começo. O início de um mesmo fim. Outro dia.
Talvez eu morra hoje.
Talvez um pássaro voe hoje.
— Então isso, é? Eles abrem a porta uma vez ao dia para as pessoas fazerem suas necessidades e talvez, se tivermos sorte, eles nos alimentam? É isso?
O pássaro será branco com listras de ouro igual a uma coroa sobre sua cabeça. Ele voará.
— É isso.
— Não tem... terapia de grupo? — Ele quase ri.
— Até você chegar, fazia 264 dias que eu não falava uma única palavra.
Seu silêncio diz muito. Quase que eu podia estender a mão e tocar a culpa crescente sobre seus ombros.
— Há quanto tempo você está aqui? — pergunta ele finalmente.
— Sempre. Não sei. — Um som mecânico range/geme/chia a distância. Minha vida é como quatro paredes de oportunidades perdidas entornadas em moldes de concreto.
— E quanto à sua família? — Há uma grave aflição em sua voz, quase como se já soubesse a resposta a essa pergunta.
Eis aqui o que sei sobre meus pais: não faço ideia de onde estão.
— Por que você está aqui? — Falo com meus dedos para evitar seu olhar. Examinei minhas mãos tão perfeitamente que sei exatamente onde cada corte e cada escoriação devastaram minha pele. Mãos pequenas. Dedos delgados. Cerro-os em punho e liberto-os para fazer perder a tensão. Ele ainda não respondeu.
Levanto os olhos.
— Eu não sou louco — é tudo o que ele diz.
— É o que todos nós dizemos. — Ergo a cabeça apenas para movimentá-la alguns milímetros. Mordo o lábio. Meus olhos não podem evitar lançar-se furtivamente para fora da janela.
— Por que você tanto olha para fora?
Não me importo com suas perguntas, não mesmo. Só é estranho ter alguém com quem conversar. É estranho ter de exercer energia para mover meus lábios à formação de palavras necessárias para explicar minhas ações. Ninguém se preocupou por muito tempo. Ninguém me observou o bastante para se perguntar por que encaro o lado de fora da janela. Ninguém jamais me tratou como igual. Mas ele não sabe que sou um monstro meu segredo. Me pergunto por quanto tempo isso vai durar antes de ele fugir para salvar a própria vida.
Esqueci de responder e ele ainda está me estudando.
Escondo uma mecha de cabelo atrás da orelha apenas para mudar as ideias.
— Por que você olha tanto?
Seus olhos são dois microscópios analisando as células de minha existência. Aplicados, curiosos.
— Imaginava que a única razão para que me trancassem com uma garota era porque você estava doida. Pensei que estavam tentando me torturar me botando no mesmo espaço de uma psicopata. Pensei que você fosse minha punição.
— É por isso que roubou minha cama. — Para exercer poder. Para demarcar território. Para adiantar-se à batalha.
Ele deixa os olhos cairem. Aperta e desaperta as mãos antes de esfregar a nuca.
— Por que você me ajudou? Como sabia que eu não ia machucá-la?
Conto meus dedos para ter certeza de que eles ainda estão lá.
— Nada disso.
— Você não me ajudou ou você não sabia se eu a machucaria?
— Adam. — Meus lábios curvam-se para dar forma a seu nome. Estou surpresa por descobrir o quanto amo a maneira fácil e familiar com que o som se desenrola de minha língua.
Ele está sentado quase tão imóvel quanto eu. Seus olhos concentram um novo tipo de emoção que não consigo adivinhar.
— Sim?
— Como é? — pergunto, cada palavra menos audível que a anterior. — Lá fora? No mundo real. É pior?
Uma dor desfigura as feições bem definidas de seu rosto. Ele leva algumas batidas de coração para responder. Ele olha para fora da janela.
— Honestamente? Não tenho certeza se é melhor estar aqui dentro ou lá fora.
Acompanho seus olhos até a vidraça que nos separa da realidade e espero seus lábios cindirem; espero para escutá-lo falar. E então tento prestar atenção enquanto suas palavras se movem no nevoeiro de minha cabeça, nublando meus sentidos, obscurecendo meus olhos, turvando minha concentração.
— Você sabia que era um movimento internacional? — Adam me pergunta.
— Não, não sabia — digo-lhe. Não lhe conto que fui arrastada de minha casa há três anos. Não lhe conto que fui arrastada exatamente sete anos depois que O Restabelecimento começou a pregar e quatro meses depois que tomaram o controle de tudo. Não lhe conto o quão pouco sei de nosso mundo novo.
Adam diz que O Restabelecimento tinha sua participação em cada país, pronto para o momento de alçar seus líderes a uma posição de controle. Ele diz que a terra habitável que sobrou no mundo foi dividida em 3.333 setores, cujo controle é executado por uma pessoa de poder diferente em cada área.
— Sabia que eles nos enganaram? — Adam me pergunta.
— Sabia que O Restabelecimento disse que alguém tinha de assumir o controle, que alguém tinha de salvar a sociedade, que alguém tinha de restaurar a paz? Sabia que disseram que matar todas as vozes de oposição era o único modo de encontrar a paz?
— Sabia disso? — É o que Adam me pergunta.
E aqui é onde eu aceno. Aqui é onde eu digo sim.
Aqui é a parte de que me lembro. A raiva. A desordem. A fúria.
Meus olhos se fecham em um esforço subconsciente a fim de bloquear as memórias ruins, mas o esforço sai pela culatra. Protestos. Comícios. Gritos por sobrevivência. Vejo mulheres e crianças morrendo de fome, casas destruídas e enterradas em cascalhos, o campo, uma paisagem incendiada, seu único fruto, a carne apodrecida das vítimas. Vejo morte morte morte e vermelho e vinho de Borgonha e marrom e o tom mais profundo do batom favorito de mãe todo borrado na terra.
Tanto de tudo que estivesse morto.
O Restabelecimento esforça-se para manter seu domínio sobre o povo, Adam diz. Ele diz que O Restabelecimento se esforça na guerra contra os rebeldes que não se sujeitam a este novo regime. O Restabelecimento esforça-se para firmar-se como uma nova forma de governo em todas as sociedades internacionais.
E então me pergunto o que teria acontecido com as pessoas que costumava ver no meu dia a dia. O que foram de suas casas, seus pais, seus filhos. Pergunto quantos deles foram sepultados no solo.
Quantos deles foram assassinados.
— Estão destruindo tudo — diz Adam, e sua voz subitamente soa solene no silêncio. — Todos os livros, todos os artefatos, todos os vestígios de história humana. Estão dizendo que é o único jeito de consertar as coisas. Dizem que precisamos começar do zero. Dizem que não podemos cometer os mesmos erros das gerações passadas.
Duas
pancadas
na porta e nós dois estamos de pé, trazidos bruscamente de volta a este mundo desolador.
Adam eleva uma sobrancelha para mim.
— Café da manhã?
— Espere três minutos — recordo-o. Estamos indo tão bem em mascarar a fome, até que as pancadas na porta vêm e tolhem-nos a dignidade.
Eles nos deixam famintos de propósito.
— Sim. — Seus lábios esboçam um suave sorriso. — Não quero me queimar. — O ar se desloca conforme ele se aproxima.
Sou uma estátua.
— Ainda não compreendo — diz ele, bastante sereno. — Por que você está aqui?
— Por que você faz tantas perguntas?
Ele deixa pouco espaço entre nós e eu estou a alguns centímetros da combustão instantânea.
— Seus olhos são tão profundos. — Ele inclina a cabeça. — Tão calmos. Gostaria de saber em que você está pensando.
— Você não deve. — Minha voz vacila. — Você nem me conhece.
Ele ri e o gesto concede vida à luz em seus olhos.
— Não conheço você.
— Não.
Ele balança a cabeça. Senta-se na cama.
— Certo. Claro que não.
— O quê?
— Você está certa. — Ele toma fôlego. — Talvez eu seja louco.
Dou dois passos para trás.
— Talvez você seja.
Ele está sorrindo novamente e eu gostaria de tirar uma foto. Gostaria de fitar-lhe a curva dos lábios pelo resto de minha vida.
— Eu não sou, você sabe.
— Mas você não me conta por que está aqui — desafio.
— E nem você.
Caio de joelhos e puxo a bandeja através da fenda. Algo não identificável está soltando vapor em dois copos de lata. Adam ajoelha-se no chão, diante de mim.
— Café da manhã — digo, enquanto lhe empurro sua porção.
6
Uma palavra, dois lábios, três quatro cinco dedos formam um punho.
Um canto, dois pais, três quatro cinco razões para esconder-se.
Uma criança, dois olhos, três quatro dezessete anos de medo.
Um cabo de vassoura quebrado, um par de rostos ferozes, sussurros coléricos, fechaduras na minha porta.
Olhe para mim — é o que queria dizer a você. Fale comigo de vez em quando. Encontre-me a cura para estas lágrimas, gostaria muito de soltar o ar dos pulmões pela primeira vez na vida.
Passaram-se duas semanas.
Duas semanas de mesma rotina, duas semanas de nada a não ser rotina. Duas semanas com o companheiro de cela que chegou muito perto de me tocar que não toca em mim. Adam está se adaptando ao sistema. Ele nunca reclama, ele nunca fornece muita informação, ele continua a fazer perguntas demais.
Ele é bom comigo.
Sento-me à janela e observo a chuva e as folhas e a neve colidir. Elas se revezam dançando ao vento, executando coreografias para as massas desavisadas. Os soldados pisoteiam pisoteiam pisoteiam em meio à chuva, esmagando as folhas e a neve sob seus pés. Suas mãos estão cobertas de luvas envoltas em armas que poderiam atirar uma bala por qualquer milhão de possibilidades. Eles não se incomodam de ser incomodados pela beleza que cai do céu. Eles não compreendem a liberdade de sentir o Universo sobre sua pele. Eles não se importam.
Queria poder rechear a boca de gotas de chuva e encher os bolsos de neve. Queria poder traçar as veias de uma folha caída e sentir o vento beliscar o nariz.
Em vez disso, ignoro o desespero unindo os dedos e aguardo pelo pássaro apenas visto em meus sonhos. Os pássaros costumavam voar, é o que as histórias dizem. Antes de a camada de ozônio ter se deteriorado, antes de os poluentes terem transformado as criaturas em algo horrível incomum. Eles dizem que o tempo não foi sempre tão imprevisível. Eles dizem que havia pássaros que costumavam planar no céu como aviões.
Parece estranho que um animal tão pequeno pudesse alcançar qualquer coisa tão complexa quanto a engenharia humana, mas a possibilidade é atraente demais para ser ignorada. Sonhei com o mesmo pássaro voando no mesmo céu por exatos dez anos. Branco com listras de ouro igual a uma coroa sobre sua cabeça.
É o único sonho que tenho que me dá paz.
— O que você está escrevendo?
Levanto os olhos semicerrados à sua forte envergadura, o sorriso fácil em seu rosto. Não sei como ele consegue sorrir apesar de tudo. Pergunto-me se ele pode manter essa forma, esse especial contorno da boca que muda vidas. Pergunto-me como ele se sentirá daqui um mês, e estremeço ao pensar.
Não quero que ele acabe como eu.
Vazia.
— Ei... — Ele apanha o cobertor de minha cama e agacha-se perto de mim, e sem perder tempo envolve o pano fino em meus ombros mais finos ainda.
— Você está bem?
Tento sorrir. Decido evitar sua pergunta.
— Obrigada pelo cobertor.
Ele se senta a meu lado e apoia-se na parede. Seus ombros estão tão perto muito perto nunca perto o bastante. O calor de seu corpo faz mais por mim do que o cobertor jamais fará. Algo em minhas articulações dói de desejo ardente, uma necessidade desesperada que nunca fui capaz de satisfazer. Meus olhos estão implorando por algo a que não me posso permitir.
Toque-me.
Ele olha para o caderninho dobrado em minha mão, para a caneta quebrada que aperto em meu punho. Fecho o caderno e enrolo-o bastante. Enfio-o dentro de uma rachadura na parede. Estudo a caneta na palma de minha mão. Sei que ele está me encarando.
— Você está escrevendo um livro?
— Não. — Não, não estou escrevendo um livro.
— Talvez devesse.
Viro-me para encontrar com seus olhos e imediatamente me arrependo. Há alguns centímetros entre nós e não posso me mexer porque meu corpo só faz congelar. Cada músculo cada movimento comprime-se, cada vértebra de minha coluna é um bloco de gelo. Estou segurando a respiração e meus olhos estão arregalados, perdidos, surpreendidos pela intensidade de seu olhar. Não consigo desviar o olhar. Não sei como escapar.
Ah.
Deus.
Seus olhos.
Estive mentindo para mim mesma, determinada a negar o impossível.
“Eu o conheço eu o conheço eu o conheço eu o conheço”
O garoto que não se lembra de mim que eu costumava conhecer.
— Eles vão destruir a língua inglesa — diz ele, sua voz cuidadosa, tranquila.
Luto para recobrar o fôlego.
— Eles querem recriar tudo — continua ele. — Eles querem redesenhar tudo. Eles querem destruir qualquer coisa que possa ter sido a razão de nossos problemas. Eles pensam que precisamos de uma língua nova e universal. — Ele baixa a voz. Baixa os olhos. — Eles querem destruir tudo. Cada língua da história.
— Não. — Minha respiração fica presa. Borrões obscurecem minha visão.
— Eu sei.
— Não. — Isso eu não sabia.
Ele levanta os olhos.
— É bom que você esteja pondo as coisas no papel. Um dia o que você está fazendo será ilegal.
Comecei a tremer. De repente meu corpo está lutando contra um redemoinho de emoções, meu cérebro atormentado pelo mundo que estou perdendo e magoado por este garoto que não se lembra de mim. A caneta cai no chão e eu estou segurando o cobertor tão firme que temo que ele rasgue. O frio racha minha pele, o horror coagula minhas veias. Nunca pensei que ficasse tão ruim. Nunca pensei que O Restabelecimento levasse as coisas tão longe. Eles estão incinerando a cultura, a beleza da diversidade. Nós, novos cidadãos de nosso mundo seremos reduzidos a nada senão números, facilmente substituíveis, facilmente removíveis, facilmente destruídos por desobediência.
Perdemos nossa humanidade.
Enrolo o cobertor em meus ombros até ser embalada nos tremores que não param de aterrorizar meu corpo. Estou horrorizada com minha falta de autocontrole. Não consigo ficar quieta.
De repente sua mão está em minhas costas.
Seu toque está chamuscando minha pele pelas camadas do tecido e eu aspiro tão rápido que meus pulmões sofrem um colapso. Estou em meio a correntes de confusão que se chocam, tão desesperada por estar perto tão desesperada tão desesperada tão desesperada por estar longe. Não sei como me afastar dele. Não quero me afastar dele.
Não quero que ele tenha medo de mim.
— Ei. — Sua voz é suave tão suave tão suave. Seus braços são mais fortes que todos os ossos de meu corpo. Ele puxa minha figura enfaixada para perto de seu peito e eu estilhaço. Dois três quatro mil estilhaços de sentimento perfuram-me o coração, derretem-se em gotas de mel quente que suavizam as cicatrizes de minha alma. O cobertor é a única barreira entre nós, e ele me puxa para mais perto, mais firme, mais forte, até que escuto as batidas a sussurrar-lhe profundas dentro do peito, e o aço de seus braços ao redor de meu corpo desfaz todos os nós de tensão em meus membros. Seu calor derrete os pingentes de gelo que me sustentam de dentro para fora e eu descongelo, descongelo, descongelo, meus olhos tremulando rápido até que caem fechados, até que lágrimas silenciosas estejam jorrando-me rosto abaixo e eu tenha decidido que a única coisa que quero é congelar seu corpo segurando o meu.
— Está tudo bem — sussurra ele. — Você ficará bem.
A verdade é uma amante maldosa e ciumenta que nunca dorme — é o que não digo para ele. Nunca ficarei bem.
Isso faz cada filamento rompido de meu ser afastar-se dele. Faço isso porque tenho de fazer. Porque isso é para o seu próprio bem. Alguém está fincando garfos nas minhas costas enquanto me afasto. O cobertor agarra-se ao meu pé e eu quase caio antes de Adam estender a mão para mim novamente.
— Juliette...
— Você não pode t-tocar em mim. — Minha respiração é rasa e tenho dificuldade de tomar fôlego, meus dedos tremem tão rapidamente que os cerro em um punho.
— Você não pode tocar em mim. Você não pode. — Meus olhos estão voltados para a porta.
Ele está de pé.
— Por que não?
— Simplesmente não pode — sussurro para as paredes.
— Não entendo, por que você não fala comigo? Você se senta no canto todos os dias e escreve em seu caderno e olha para tudo exceto para o meu rosto. Você tem tanto a dizer a um pedaço de papel enquanto estou bem aqui e você nem fala comigo. Juliette, por favor... — Ele estende a mão em direção ao meu braço e eu viro o rosto para o lado. — Por que nem ao menos olha para mim? Não vou machucar você...
Você não se lembra de mim. Você não lembra que frequentamos a mesma escola por sete anos.
Você não se lembra de mim.
— Você não me conhece. — Minha voz é serena, monótona; meus membros adormecem, amputados. — Dividimos o mesmo espaço por duas semanas e você pensa que me conhece, mas não sabe qualquer coisa sobre mim. Talvez eu seja maluca.
— Você não é — diz ele por entre dentes trincados. — Você sabe que não é.
— Então talvez seja você — digo cuidadosamente, devagar. — Porque um de nós é.
— Isso não é verdade...
— Diga por que você está aqui, Adam. O que você está fazendo em um manicômio se você não pertence a este lugar?
— Tenho feito a mesma pergunta para você desde que cheguei aqui.
— Talvez você faça perguntas demais.
Escuto o exalar difícil de sua respiração. Ele ri um riso amargo.
— Somos praticamente as duas únicas pessoas que estão vivas neste lugar e você também quer me excluir?
Fecho os olhos e concentro-me na respiração.
— Você pode conversar comigo. Só não toque em mim.
Sete segundos de silêncio juntam-se à conversa.
— Talvez eu queira tocar em você.
Há 15 mil sentimentos de incredulidade esburacados em meu coração. Sou tentada pela imprudência, desejando desejando desejando, em eterno desespero por aquilo que nunca posso ter. Dou-lhe as costas, mas não consigo evitar que as mentiras se me entornem dos lábios.
— Talvez eu não queira que você toque.
Ele faz um som áspero.
— Sou assim tão repugnante?
Viro-me, de maneira que, pega de surpresa por suas palavras, esqueço-me de mim. Ele está me encarando, seu rosto severo, seu maxilar marcado, seus dedos movendo-se ao lado do corpo. Seus olhos são baldes de água de chuva: profundos, doces, claros.
Feridos.
— Você não sabe do que está falando. — Não consigo respirar.
— Você não pode só responder uma simples pergunta, pode? — Ele balança a cabeça e vira para a parede.
Meu rosto está moldado em uma forma neutra, meus braços e pernas, cheios de gesso. Não sinto nada. Não sou nada. Estou vazia de tudo que não vou modificar. Estou encarando uma pequena rachadura perto do meu sapato. Vou encará-la para sempre.
Os cobertores caem no chão. O mundo perde o foco, meus ouvidos enviam todos os sons para outra dimensão. Meus olhos se fecham, meus pensamentos se deixam levar pela corrente, minhas memórias aplicam-me pontapés no coração.
Eu o conheço.
Tentei a todo custo parar de pensar nele.
Tentei a todo custo esquecer seu rosto.
Tentei a todo custo tirar da cabeça aqueles olhos azuis azuis azuis, mas eu o conheço eu o conheço eu o conheço já faz três anos desde a última vez que o vi.
Nunca poderia esquecer Adam.
Mas ele já se esqueceu de mim.
7
Lembro-me das televisões e das lareiras e das pias de porcelana. Lembro-me dos ingressos do cinema e dos parques de estacionamento e das vans. Lembro-me dos salões de cabeleireiro e das persianas de janela e dos dentes-de-leão e do cheiro das garagens recém-pavimentadas. Lembro-me dos comerciais de creme dental e das mulheres de sapato alto e dos velhos em trajes de negócio. Lembro-me dos carteiros e das bibliotecas e das boybands e dos balões e das árvores de Natal.
Lembro-me de ter dez anos de idade quando não podíamos mais ignorar a carência de alimentos e as coisas ficaram tão caras que ninguém mais tinha recursos para viver.
Adam não está falando comigo.
Talvez seja o melhor. Talvez não houvesse esperança de que ele e eu pudéssemos ser amigos. Talvez seja melhor que ele pense que eu não gosto dele a pensar que gosto demais. Ele está escondendo um monte de coisas que parecem lhe causar dor, mas seus segredos me assustam. Ele não me diz por que está aqui. Embora eu também não lhe diga muita coisa.
E contudo e contudo e contudo.
Na noite passada, a lembrança de seus braços em volta de mim foi o bastante para espantar os gritos. O calor de um abraço amigo, a força das mãos firmes unindo todos os meus estilhaços, o alívio e libertação de tantos anos de solidão. Este presente que ele me deu eu não posso retribuir.
Tocar Juliette é quase impossível.
Nunca esquecerei o horror nos olhos de minha mãe, a tortura no rosto de meu pai, o medo entalhado em suas expressões. A filha deles é um monstro. Possuída pelo demônio. Amaldiçoada pela escuridão. Profana. Uma abominação. Drogas, testes, soluções médicas fracassadas. Interrogatórios psicológicos fracassados.
“Ela é uma arma ambulante na sociedade”, foi o que os professores disseram. “Nunca vimos algo assim”, foi o que os médicos disseram. “Ela deve ser retirada de casa”, foi o que os policiais disseram.
Sem problema nenhum, foi o que meus pais disseram. Eu tinha 14 anos quando meus pais finalmente se livraram de mim. Quando eles recuaram e me observaram sendo arrastada por conta de um assassinato que eu não sabia que poderia cometer.
Talvez o mundo esteja mais seguro se eu estiver presa em uma cela. Talvez Adam esteja mais seguro se ele me detestar. Ele está sentado no canto com os punhos no rosto.
Jamais quis machucá-lo.
Jamais quis machucar a única pessoa que jamais quis me machucar.
Arrombam a porta e cinco pessoas tomam o quarto, rifles apontados para nosso peito.
Adam está de pé e eu fico feito pedra. Esqueço-me de inspirar. Há muito tempo que não vejo tantas pessoas assim que fico estupefata. Eu devia estar gritando.
“Mãos para cima, pés afastados, boca fechada. Não se mexam e não atiraremos em vocês.” Ainda estou congelada no lugar. Deveria me mover, deveria levantar os braços, deveria separar meus pés, deveria lembrar-me de respirar. Alguém está cortando-me o pescoço.
Um deles, gritando ordens, bate com a coronha de sua arma nas minhas costas e meus joelhos estalam ao bater no chão. Finalmente provo o oxigênio e uma zona de sangue. Acho que Adam está gritando, mas há uma aguda agonia rasgando-me o corpo, diferente de qualquer coisa que experimentara antes. Estou completamente imobilizada.
— Que parte você não entendeu do manter sua boca fechada? — Entorto os olhos para os lados para ver o cano da arma a poucos centímetros do rosto de Adam.
— Levante-se. — Uma bota com biqueira de aço me dá um pontapé nas costelas, rápido, duro, profundo. Não estou engolindo nada, exceto os suspiros estrangulados que sufocam meu corpo.
— Eu disse levante-se. — Mais dura, mais rápida, mais forte, outra bota em minhas vísceras. Sequer consigo gritar.
Levante-se, Juliette. Levante-se. Se não se levantar, eles vão atirar em Adam.
Levanto-me de joelhos e caio novamente sobre a parede atrás de mim, cambaleando para a frente para pegar equilíbrio. Levantar as mãos é mais torturante do que eu poderia suportar. Meus órgãos estão mortos, meus ossos estão quebrados, minha pele é uma peneira, perfurada por pregos e agulhas de dor. Eles finalmente vieram me matar.
É por isso que botaram Adam na minha cela.
Porque estou partindo. Adam está aqui porque estou partindo, porque eles se esqueceram de me matar em tempo, porque meus momentos estão acabados, porque meus 17anos foram demais para este mundo. Eles vão me matar.
Sempre me perguntei como isso aconteceria. Pergunto-me se isso fará meus pais felizes.
Alguém está rindo.
— E então não é uma merdinha?
Sequer sei se eles estão falando comigo. Mal consigo me concentrar em manter os braços na posição vertical.
— Ela nem está chorando — acrescenta alguém. — As garotas costumam implorar por misericórdia a esta altura.
As paredes estão começando a sangrar no teto. Pergunto-me por quanto tempo consigo segurar a respiração. Não consigo distinguir palavras não consigo compreender sons que estou ouvindo o sangue está correndo pela minha cabeça e meus lábios são dois blocos de concreto que não consigo abrir. Há uma arma nas minhas costas e estou avançando aos tropeços. O terreno está em declive. Meus pés arrastam-se a uma direção que não consigo decifrar.
Espero que eles me matem logo.
8
Levo dois dias para abrir os olhos.
Há uma lata com água e uma lata com comida colocadas lado a lado e eu inalo o conteúdo frio das latas com mãos trêmulas, uma dor surda rangendo-me pelos ossos, uma secura desesperada. Nada parece estar quebrado, mas uma olhada sob minha camisa prova que a dor foi real. As contusões são flores descoloridas de azul e amarelo, torturantes ao toque e difíceis de cicatrizar.
Adam não está em parte nenhuma.
Estou sozinha em um bloco de solidão, quatro paredes sem mais que três metros em todas as direções, o único ar entra em silêncio através de uma pequena fenda na porta. Minha imaginação começava a me aterrorizar quando a porta de metal pesado se abriu com violência. Um guarda com dois rifles pendurados transversalmente no peito olha para mim de cima a baixo.
— Levante-se.
Desta vez não hesito.
Espero pelo menos que Adam esteja a salvo. Espero que ele não tenha o mesmo fim que eu.
— Siga-me. — A voz do guarda é grossa e profunda, seus olhos cinzentos, ilegíveis. Ele aparenta ter cerca de 25 anos, cabelo louro cortado rente à cabeça, mangas arregaçadas até os ombros, tatuagens militares serpenteando-lhe os antebraços como as de Adam.
Oh.
Deus.
Não.
Adam entra pela porta ao lado do homem louro e gesticula com sua arma na direção de um corredor estreito.
— Mexa-se.
Adam está apontando uma arma para o meu peito.
Adam está apontando uma arma para o meu peito.
Adam está apontando uma arma para o meu peito.
Seus olhos são estranhos a mim, vidrados e distantes, longe, muito longe.
Não sou nada além de novocaína. Estou entorpecida, um mundo de nada, todo o sentimento e emoção se foram para sempre.
Sou um sussurro que nunca foi.
Adam é um soldado. Adam quer que eu morra.
Encaro-o abertamente agora, todas as sensações amputadas; minha dor, um grito distante desconectado de meu corpo. Meus pés avançam por conta própria; meus lábios permanecem fechados, pois nunca haverá palavras para este momento.
A morte seria uma libertação bem-vinda destas alegrias terrenas que conheci.
Não sei por quanto tempo estive andando até outro golpe nas costas me abater. Pisco os olhos diante da claridade que há tanto não via. Meus olhos começam a lacrimejar e mantenho-os semicerrados ante as lâmpadas fluorescentes que iluminam o amplo espaço. Mal consigo enxergar alguma coisa.
— Juliette Ferrars. — Uma voz detona meu nome. Há uma bota pesada pressionada nas minhas costas e não consigo levantar a cabeça para distinguir quem está falando comigo.
— Weston, diminua as luzes e liberte-a. Quero ver seu rosto. — O comando é frio e forte como o aço, perigosamente calmo, poderoso sem que se esforce.
A claridade é reduzida a um nível que sou capaz de tolerar. Nas minhas costas está gravado o carimbo de uma bota. Levanto a cabeça e olho em volta.
Imediatamente me impressiono com sua juventude. Ele não podia ser muito mais velho que eu.
É óbvio que ele está no comando de alguma coisa, embora eu não faça ideia do quê. Sua pele é perfeita, imaculada, a linha de sua mandíbula forte e definida. Seus olhos são o tom de esmeralda mais lívido que já vi.
Ele é lindo.
Seu sorriso torto é diabolicamente calculado.
Ele está sentado sobre o que ele imagina ser um trono, mas que não passa de uma cadeira na frente de uma sala vazia. Seu traje está perfeitamente passado, seus cabelos louros, habilmente penteados, seus soldados, os perfeitos guarda-costas.
Eu o odeio.
— Você é tão teimosa. — Seus olhos verdes estão quase translúcidos. — Você nunca quer cooperar. Você sequer foi legal com seu companheiro de cela.
Recuo sem querer. O fogo da traição sobe-me o pescoço.
Olhos Verdes mostra-se inesperadamente sorridente, e eu estou mortificada.
— E então não é interessante? — Ele estala os dedos. — Kent, poderia dar um passo à frente, por favor?
Meu coração para de bater quando Adam atinge meu campo de visão. Kent. Seu nome é Adam Kent.
Estou em chamas da cabeça aos pés. Adam passa por um instante ao lado de Olhos Verdes, mas apenas lhe dedica um breve aceno de cabeça como saudação. Talvez o líder não seja tão importante quanto ele pensa ser.
— Senhor — diz ele.
Tantos pensamentos me emaranham o cérebro que não consigo desatar a insanidade que só se complica. Eu deveria saber. Escutara rumores de soldados que viviam secretamente entre o povo, relatando às autoridades quaisquer coisas que lhes parecessem suspeitas. Todos os dias pessoas desapareciam. Ninguém jamais voltava.
Entretanto, ainda não conseguia entender por que Adam fora enviado para me espionar.
— Parece que você causou uma forte impressão nela.
Aperto mais os olhos para ver melhor o homem na cadeira e percebo que seu casaco foi adornado com minúsculas manchas coloridas. Recordações militares. Seu sobrenome está gravado na lapela: Warner.
Adam não diz nada. Ele não olha em minha direção. Seu corpo está ereto, 1,80 cm de músculos fortes enxutos, seu perfil forte e firme. Os mesmos braços que seguraram meu corpo são agora estojos para armas letais.
— Você não tem nada a dizer sobre isso? — Warner olha para Adam apenas para inclinar a cabeça em minha direção, seus olhos dançando na luz, claramente entretidos.
Adam tensiona o maxilar.
— Senhor.
— É claro. — Warner fica subitamente entediado. — Por que deveria esperar que você tivesse algo a dizer?
— Você vai me matar? — As palavras escapam-me dos lábios antes que eu tivesse a chance de refletir sobre elas e a arma de alguém me golpeia mais uma vez na coluna. Tombo de novo no chão com um gemido débil, chiando no piso imundo.
— Isso não era necessário, Roland. — A voz de Warner está saturada de falsa decepção. — Suponho que eu estivesse me fazendo a mesma pergunta em sua posição. — Uma pausa. — Juliette?
Consigo levantar a cabeça.
— Tenho uma proposta para você.
9
Não tenho certeza se o ouço bem.
— Você tem algo que eu quero. — Warner ainda está me encarando.
— Não entendo — digo.
Ele respira fundo e levanta-se para andar, passo a passo, a extensão da sala. Adam ainda não foi dispensado.
— Você é para mim uma espécie de projeto de animal de estimação. — Warner sorri para si mesmo. — Estudei seus relatórios durante muito tempo.
Não suporto seu pavonear pomposo e convencido. Quero quebrar o sorriso da sua cara.
Warner para de andar.
— Quero você na minha equipe.
— O quê? — Um débil suspiro de surpresa.
— Estamos no meio de uma guerra — diz ele um pouco impaciente. — Talvez você possa botar as coisas no lugar.
— Eu não...
— Eu sei seu segredo, Juliette. Sei por que você está aqui. Sua vida inteira está documentada em registros hospitalares, queixas às autoridades, processos complicados, demandas públicas para botá-la na prisão. — Sua pausa me dá tempo suficiente para asfixiar-me com o horror preso na minha garganta. — Estive considerando isso por muito tempo, mas quis ter certeza de que você não fosse realmente psicopata. O isolamento não era exatamente um bom indicador, apesar de você ter-se virado muito bem. — Ele expressa um sorriso que diz que eu deveria ser grata por seu elogio. — Enviei Adam para ficar com você como uma precaução final. Queria ter certeza de que você não era volúvel, de que você era capaz de estabelecer interações e comunicações humanas básicas. Devo dizer que estou bastante satisfeito com os resultados.
Alguém está arrancando minha pele.
— Adam, pelo que parece, desempenhou seu papel de maneira excelente. Ele é um bom soldado. Um dos melhores, na verdade. — Warner poupa-lhe um olhar antes de sorrir para mim. — Mas não se preocupe, ele não sabe do que você é capaz. Pelo menos não até agora.
Rasgo-me no pânico, engulo a agonia, imploro a mim mesma para que não olhe em sua direção, mas falho eu falho eu falho. Adam encontra meus olhos na mesma fração de segundo em que encontro com os seus, mas ele desvia tão rapidamente que não tenho certeza se isso foi minha imaginação.
Sou um monstro.
— Não sou tão cruel quanto você pensa — continua Warner, uma cadência musical em sua voz. — Se você está tão afeiçoada à companhia dele, posso fazer disso — ele gesticula entre mim e Adam — uma designação permanente.
— Não — perco o fôlego.
Warner enverga os lábios em um sorriso negligente.
— Ah, sim. Mas seja cuidadosa, lindinha. Se você fizer algo... ruim... ele terá de atirar em você.
Há cortadores de arame talhando-me buracos no coração. Adam não reage a nada do que Warner diz.
Ele está fazendo um trabalho.
Eu sou um número, uma missão, um objeto facilmente substituível. Não sou sequer uma lembrança em sua mente.
Não sou nada.
Não esperava que sua traição me enterrasse tão profundamente.
— Se aceitar minha oferta — Warner interrompe meus pensamentos —, você viverá como eu vivo. Você será uma de nós, e não um deles. Sua vida mudará para sempre.
— E se eu não aceitar? — pergunto, recolhendo minha voz antes de ela rachar no medo.
Warner parece sinceramente desapontado. Suas mãos estão entrelaçadas em desalento.
— Na verdade você não tem escolha. Se ficar ao meu lado, você será recompensada. — Ele aperta os lábios. — Mas se você escolher desobedecer? Bem... acho que você se mostra particularmente adorável com todas as partes do corpo intactas, não é?
Minha respiração é tão pesada que meu corpo está tremendo.
— Você me quer para que torture pessoas para você?
Seu rosto abre um sorriso brilhante.
— Seria maravilhoso.
O mundo está sangrando.
Não tenho tempo de formular uma resposta antes de ele se voltar a Adam.
— Mostre-lhe o que ela está perdendo, está bem?
Adam responde com um batimento de atraso.
— Senhor?
— Isso é uma ordem, soldado. — Os olhos de Warner estão voltados para mim, seus lábios contorcendo-se em contido divertimento. — Gostaria de dar uma “quebrada” nela. Ela é um pouco irritante demais e isso já é um perigo para si mesma.
— Você não pode me tocar — cuspo com os dentes cerrados.
— Errada — diz ele em ritmo monótono. Ele joga para Adam um par de luvas pretas. — Você vai precisar dessas — diz ele em um sussurro conspiratório.
— Você é um monstro. — Minha voz é demasiado precisa; meu corpo cheio de repentina fúria. — Por que você simplesmente não me mata?
— Isso, minha querida, seria um desperdício. — Ele avança e eu percebo que suas mãos estão cuidadosamente revestidas de luvas de couro branco. Ele inclina meu queixo para cima com um dedo. — Além disso, seria uma pena perder um rosto tão bonito.
Tento desvencilhar meu rosto dele, mas a mesma bota com biqueira de aço dá um pontapé na minha coluna e Warner pega meu rosto em suas garras. Contenho um grito.
— Não lute, amor. Você apenas tornará as coisas mais difíceis para si mesma.
— Espero que você apodreça no inferno.
Warner flexiona sua mandíbula. Ele levanta a mão para impedir que alguém atire em mim, chute-me no baço, rache meu crânio, não faço ideia.
— Você luta para o time errado. — Ele se levanta ereto. — Mas podemos mudar isso. Adam — chama ele — não tire os olhos dela. Ela agora é sua responsabilidade.
— Sim, senhor.
10
Adam veste as luvas, mas não toca em mim.
— Alivie com ela, Roland. Assumo daqui.
A bota desaparece. Faço um esforço para levantar-me e olho fixamente para o nada. Não penso no horror que me aguarda. Alguém chuta a parte posterior de meus joelhos e eu quase tropeço no chão.
— Anda — uma voz rosna de trás. Levanto os olhos e percebo que Adam já está indo embora. Eu o devia estar seguindo.
Uma vez que estamos de volta à familiar cegueira dos corredores do hospício, ele, enfim, para de andar.
— Juliette. Uma palavra suave e minhas articulações são feitas de ar.
Não lhe respondo.
— Pegue minha mão — diz ele.
— Nunca — enfrento-o, entre tomadas entrecortadas de oxigênio. — Jamais.
Um suspiro carregado. Sinto-o deslocar-se na escuridão e logo seu corpo está muito perto, irresistivelmente perto do meu. Sua mão está na parte inferior das minhas costas e ele está me guiando pelos corredores em direção a um destino desconhecido. Cada centímetro de minha pele está enrubescendo. Tenho de me segurar ereta para evitar que caia para trás em seus braços.
A distância que estamos andando é muito maior do que eu esperava. Quando Adam finalmente fala, suspeito que estejamos perto do fim.
— Vamos para o lado de fora — diz ele no meu ouvido. Tenho de cerrar os punhos para controlar os frêmitos no coração. A sensação de sua voz me distrai tanto que quase não compreendo o significado do que ele está dizendo.
— Só achei que você devesse saber.
Uma audível tomada de ar é minha única resposta. Há quase um ano não piso do lado de fora. Estou dolorosamente excitada, mas há tanto tempo não sinto a luz natural sobre a pele que não sei se sou capaz de suportá-la. Não tenho escolha.
O ar é o primeiro a me alcançar.
Nossa atmosfera tem pouco do que se orgulhar, no entanto, depois de tantos meses em um recanto de concreto, mesmo o oxigênio desperdiçado da nossa Terra agonizante tem gosto de céu. Não posso inalar rápido o bastante. Encho meus pulmões com a sensação; avanço para o meio da leve brisa e agarro um punhado de vento conforme ele tece seu caminho por entre meus dedos.
Felicidade diferente de tudo que já conheci.
O ar é fresco. Um refrescante banho de nada tangível que faz arder meus olhos e rebenta em minha pele. O Sol está alto hoje, cegando ao refletir nas pequenas manchas de neve que mantêm a terra congelada. Meus olhos se comprimem ao peso da luz e eu não consigo ver senão através de duas fendas, mas os raios quentes banham minha pele como um casaco ajustado à minha forma física, como o abraço de algo maior que um ser humano. Poderia permanecer parada neste momento para sempre. Por um infinito segundo, sinto-me livre.
O toque de Adam me devolve à realidade. Quase pulo de medo e ele pega minha cintura. Tenho de implorar aos meus ossos para que parem de tremer.
— Você está bem? — Seus olhos causam-me surpresa. São os mesmos de que me recordo, azuis e insondáveis como a parte mais profunda do oceano. Suas mãos estão delicadas tão delicadas em volta de mim.
— Não quero que você toque em mim — minto.
— Você não tem escolha. — Ele não olha para mim.
— Sempre tenho uma escolha.
Ele passa uma mão pelo cabelo e engole o nada em sua garganta.
— Siga-me.
Estamos em um espaço em branco, um campo vazio cheio de folhas mortas e árvores agonizantes tomando pequenos tragos da neve derretida no solo. A paisagem foi destruída pela guerra e pelo esquecimento e, ainda assim, é a coisa mais bonita que vejo em muito tempo. Os soldados interrompem a marcha para observar Adam abrir a porta de um carro para mim.
Não é um carro. É um tanque.
Olho para a carcaça de metal maciço e tento escalar a lateral enquanto Adam está atrás de mim. Ele me eleva pela cintura e eu começo a ofegar enquanto ele me acomoda no assento.
Em pouco tempo estamos dirigindo em silêncio e não faço ideia de para onde estamos indo.
Estou fitando tudo através da janela.
Estou comendo e bebendo e absorvendo cada detalhe infinitesimal das ruínas, do horizonte, das casas abandonadas e entre os pedaços quebrados de metal e vidro espalhados pelo cenário. O mundo mostra-se nu, despido de vegetação e calor. Não há placas de rua, não há sinais de pare; não há necessidade delas. Não há transporte público. Todos sabem que os automóveis são agora fabricados por uma única empresa e vendidos a um preço absurdo.
Pouquíssimas pessoas possuem meios de fuga.
Meus pais A população foi distribuída pelo que sobrou do país. Edifícios industriais formam a espinha dorsal da paisagem: altas e retangulares caixas de metal entulhadas de maquinário. Maquinário destinado a fortalecer o exército, fortalecer O Restabelecimento, destruir grandes massas de civilização humana.
Carbono/Alcatrão/Aço
Cinza/Preto/Prata
Cores esfumaçadas sujam o horizonte, gotejando na lama que costumava ser neve. Lixo está amontoado por todos os lugares em pilhas irregulares, pedaços de grama amarelada espreitam, sob a devastação, o lado de fora.
Casas tradicionais de nosso velho mundo foram abandonadas, janelas estilhaçadas, telhados estão desmoronando, tintas vermelha, verde e azul, esfregadas até atingirem tons atenuados que melhor se harmonizam com nosso futuro. Agora vejo os complexos negligentemente construídos sobre a terra devastada e começo a me lembrar. Lembro-me de que estes deviam ser temporários. Lembro-me de que, alguns meses antes, eu estava encarcerada quando eles começaram a construí-los. Estes pequenos e frios quartéis seriam suficientes só até que todos os detalhes de seu novo plano fossem determinados, é o que O Restabelecimento dissera. Só até que todos fossem subjugados. Só até que as pessoas parassem de protestar e entendessem que esta mudança era para o bem delas, para o bem de suas crianças, para o bem de seu futuro.
Lembro-me de que havia regras.
Sem mais imaginações perigosas, sem mais remédios controlados. Uma nova geração composta apenas por indivíduos saudáveis iria nos sustentar. Os doentes devem ser trancafiados. Os velhos devem ser descartados. Os problemáticos devem ser abandonados em manicômios. Apenas os fortes devem sobreviver.
Sim.
Claro.
Sem mais línguas estúpidas e histórias estúpidas e quadros estúpidos colocados sobre a lareira. Sem mais Natal, sem mais Hanukkah, sem mais Ramadã e Diwali. Não falar sobre religião, crença, convicções pessoais. As convicções pessoais foram o que quase nos matou, era o que eles diziam.
Convicções, prioridades, preferências, preconceitos e ideologia dividiram-nos. Iludiram-nos. Destruíram-nos.
Necessidades egoístas, vontades e desejos precisavam ser apagados. Ambição, excessos e gula tinham de ser expurgados do comportamento humano. A solução estava no autocontrole, no minimalismo, nas condições parcas de vida. Uma linguagem simples e um dicionário novo em folha repleto de palavras que todo mundo entenderia.
Essas coisas poderiam nos salvar, salvar nossas crianças, salvar a raça humana, era o que eles diziam.
Restabelecer a igualdade, restabelecer a humanidade. Restabelecer a esperança, a cura e a felicidade.
SALVE-NOS!
JUNTE-SE A NÓS!
RESTABELEÇA A SOCIEDADE!
Os cartazes ainda estão afixados nas paredes.
O vento açoita os restos desgastados deles, mas suas marcas estão decididamente fixadas, agitando-se diante do aço e das estruturas de concreto aos quais se prendem. Alguns ainda estão colados em postes que brotam diretamente do chão, alto-falantes agora afixados bem no topo. Alto-falantes que alertam as pessoas, sem dúvida, dos perigos iminentes que as cercam.
Mas o mundo está assustadoramente calmo.
Pedestres passam, caminhando vagarosamente no tempo frio e gélido para trabalhar nas fábricas e encontrar comida para suas famílias. A esperança neste mundo sangra do cano de uma arma.
Ninguém mais se importa realmente com o conceito.
As pessoas costumavam querer esperança. Elas queriam pensar que as coisas poderiam melhorar. Elas queriam acreditar que poderiam voltar a preocupar-se com fofocas e feriados e ir às festas nas noites de sábado. Então O Restabelecimento prometeu um futuro perfeito demais para ser possível e a sociedade estava desesperada demais para não acreditar. Elas nunca perceberam que estavam vendendo suas almas a um grupo que planejava tirar vantagem de sua ignorância. Seu medo.
A maioria dos civis está petrificada demais para protestar, mas há outros que estão mais fortes. Há outros que estão aguardando o momento certo. Há outros que já começaram a revidar.
Espero que não seja tarde demais para revidar.
Estudo cada ramo que se agita ao vento, cada soldado imponente, cada janela que consigo contar. Meus olhos são dois batedores de carteira profissionais, roubando tudo para armazenar na minha mente.
Perco a noção dos minutos que atropelamos.
Paramos em frente a uma estrutura pelo menos dez vezes maior que o manicômio e aparentemente central para a civilização. Do lado de fora, parece um edifício sem graça, discreto em todos os sentidos, exceto em seu tamanho, placas de aço cinza abrangendo quatro paredes planas, janelas rachadas e fechadas com força nos 15 andares. É lúgubre e não tem qualquer marcação, símbolo, evidência de sua verdadeira identidade.
Centro de comando político camuflado entre as massas.
O interior do tanque é uma intrincada bagunça de botões e alavancas que fico confusa em operar, e Adam está abrindo minha porta antes que eu tenha a chance de identificar as peças. Suas mãos estão envoltas em minha cintura e meus pés agora estão firmemente no chão, mas meu coração está batendo tão rápido que estou certa de que ele pode escutá-lo. Ele não me soltou.
Levanto o olhar.
Seus olhos estão apertados, sua testa franzida, seus lábios seus lábios seus lábios são dois pedaços de frustração forjados em um só.
Dou um passo para trás e dez mil minúsculas partículas se estilhaçam entre nós. Ele baixa os olhos. Ele se afasta. Ele aspira e cinco dedos em uma mão formam um punho instável.
— Por aqui.
Ele acena com a cabeça na direção do edifício.
Sigo-o para dentro.
11
Estou tão preparada para o horror inimaginável que a realidade é quase pior.
Dinheiro sujo está pingando das paredes, um ano de fornecimento de alimentos desperdiçado em pisos de mármore, centenas de milhares de dólares em assistência médica derramadas em mobiliários extravagantes e tapetes persas. Sinto o calor artificial emanando por saídas de ar e penso em crianças gritando por água limpa. Aperto o olhar através de lustres de cristal e escuto mães implorando por compaixão. Vejo um mundo superficial existindo em meio a uma realidade aterradora e não consigo me mover.
Não consigo respirar.
Tantas pessoas devem ter morrido para sustentar este luxo. Tantas pessoas tiveram de perder suas casas e seus filhos e seus últimos cinco dólares no banco por causa de promessas promessas promessas, tantas promessas para salvá-los de si mesmos. Eles nos prometeram. O Restabelecimento nos prometeu esperança de um futuro melhor. Eles disseram que consertariam as coisas, eles disseram que nos ajudariam a voltar ao mundo que conhecíamos, o mundo com encontros no cinema e casamentos primaveris e banhos de bebê. Eles disseram que nos devolveriam nossa casa, nossa saúde, nosso futuro sustentável.
Mas eles roubaram tudo.
Eles tomaram tudo. Minha vida. Meu futuro. Minha lucidez. Minha liberdade.
Eles encheram nosso mundo de armas apontadas para nossa testa e sorriram enquanto atiravam nos projetos de nosso futuro. Eles mataram os fortes o bastante para se opor e aprisionaram os malucos que não conseguiram fazer jus a suas expectativas utópicas. Pessoas como eu.
Aqui está a prova de sua corrupção.
Minha pele está suando frio, meus dedos tremem de repulsa, minhas pernas são incapazes de suportar o esbanjamento o esbanjamento o esbanjamento o esbanjamento egoísta nestas quatro paredes. Vejo vermelho por toda parte. O sangue dos corpos respingados na janela, espalhados pelos tapetes, pingando dos candelabros.
— Juliette...
Interrompo-me.
Estou de joelhos, meu corpo rachando da dor que engoli em seco por tantas vezes, agitando-se com soluços que não consigo mais segurar, minha dignidade dissolvendo-se em lágrimas, a agonia desta última semana rasgando minha pele em tiras.
Não consigo sequer respirar.
Não consigo capturar o oxigênio à minha volta e estou com vontade de vomitar na minha camisa e escuto vozes e vejo rostos que não reconheço, fios de palavras evaporados pela confusão, pensamentos tantas vezes embaralhados que não sei sequer se ainda estou consciente.
Não sei se, oficialmente, enlouqueci.
Estou no ar. Sou um saco de penas em seus braços e ele está abrindo caminho entre os soldados que se aglomeram em volta para uma espiadela na comoção e, por um momento, não quero me importar com o fato de que eu não deveria querer tanto isso. Quero esquecer que deveria odiá-lo, que ele me traiu, que ele está trabalhando para as mesmas pessoas que estão tentando destruir o pouquíssimo que resta de humanidade e meu rosto está enterrado no suave tecido de sua camisa e minha bochecha está pressionada contra seu peito e ele cheira a força e coragem e o mundo afogando-se em chuva. Não quero que ele solte meu corpo nunca nunca nunca nunca. Desejo tocar sua pele, desejo que não haja barreiras entre nós.
A realidade esbofeteia-me na cara.
A mortificação bagunça meu cérebro, humilhação desesperada turva meu julgamento; o vermelho pinta meu rosto, sangra pela minha pele. Agarro-me com força à sua camisa.
— Você pode me matar — digo a ele. — Você tem armas... — estou livrando-me de seus braços e ele enrijece em volta de minha cintura. Seu rosto não demonstra emoção nenhuma fora uma súbita pressão no maxilar, uma inequívoca tensão nos braços.
— Você pode simplesmente me matar — eu imploro.
— Juliette. — Sua voz é sólida, com uma ponta de desespero. — Por favor.
Estou novamente paralisada. Novamente impotente. Derretendo por dentro, a vida escoando-me do corpo.
Estamos de pé em frente a uma porta.
Adam pega um cartão magnético e o desliza em um painel de vidro preto instalado ao lado da maçaneta, e a porta de aço inoxidável abre-se facilmente. Damos um passo para dentro.
Estamos sozinhos em uma nova sala.
— Por favor, não se solte de mim me destrua — digo a ele.
Há uma cama grande no meio do ambiente, um tapete exuberante adornando o chão, um armário nivelado à parede, luminárias reluzindo do teto. A beleza é tão corrompida que não posso suportar sua visão. Adam me acalma sobre o colchão macio e dá um passo para trás.
— Você ficará aqui por enquanto, penso eu — é tudo o que ele diz.
Fecho os olhos em aperto. Não quero pensar sobre a tortura inevitável que espera por mim.
— Por favor — digo-lhe. — Quero ficar sozinha.
Um profundo suspiro.
— Isso não é exatamente uma opção.
— O que você quer dizer? — viro-me.
— Tenho de observá-la, Juliette. — Ele diz meu nome como em sussurro. Meu coração meu coração meu coração. — Warner quer que você compreenda o que ele está oferecendo a você, mas você ainda é... uma ameaça. Ele fez de você uma atribuição minha. Não posso sair.
Não sei se fico entusiasmada ou amedrontada. Fico amedrontada.
— Você tem que morar comigo?
— Moro no alojamento na extremidade oposta deste edifício. Com os outros soldados. Mas, sim. — Ele limpa a garganta. Ele não está olhando para mim. — Vou me mudar.
Há uma dor na boca do estômago que está me roendo os nervos. Quero odiá-lo e sentenciá-lo e gritar para sempre, mas estou falhando porque tudo o que vejo é um garoto de oito anos que não se lembra de que costumava ser a pessoa mais bondosa que já conheci.
Não quero acreditar que isso esteja acontecendo.
Fecho os olhos e coloco a cabeça nos joelhos.
— Você tem que se vestir — diz ele depois de um momento.
Ergo a cabeça. Olho para ele como quem não entende o que ele está dizendo.
— Eu estou vestida.
Ele limpa a garganta novamente, mas tenta ficar calado sobre o assunto.
— Tem um banheiro por ali — aponta ele. Vejo um uma porta conectada a uma sala e estou repentinamente curiosa. Já ouvi histórias sobre pessoas com banheiros em seus quartos. Suponho que eles não estejam exatamente no quarto, mas próximos o bastante. Escorrego da cama e sigo seu dedo. Assim que abro a porta, ele recomeça a falar.
— Você pode tomar banho e se trocar ali. O banheiro... é o único lugar onde não há câmeras — adiciona ele, sua voz diminuindo.
“Há câmeras no meu quarto.”
É claro.
— Você pode encontrar roupas ali. — Ele acena com a cabeça para o armário. Ele se mostra subitamente desconfortável.
— E você não pode sair? — pergunto.
Ele esfrega a testa e senta-se na cama. Suspira.
— Você tem que se aprontar. Warner vai esperá-la para jantar.
— Jantar? — Meus olhos são do tamanho da Lua.
Ele parece amargo.
— Sim.
— Ele não vai me machucar? — Tenho vergonha do alívio em minha voz, da tensão inesperada que liberei, do medo que não sabia que estava abrigando.
— Ele vai me dar um jantar? — Estou morrendo de fome meu estômago é um buraco atormentado de fome estou tão faminta tão faminta tão faminta. Não consigo nem imaginar que gosto deve ter comida de verdade.
O rosto de Adam está novamente impenetrável.
— Deve se apressar. Posso mostrar para você como tudo funciona.
Não tenho tempo para protestar antes que ele esteja no banheiro e eu o tenha acompanhado. A porta ainda está aberta e ele está em pé no meio do pequeno espaço, de costas para mim, e eu não consigo entender por quê.
— Já sei como usar o banheiro — digo a ele. Costumava viver em uma casa normal. Costumava ter uma família.
Ele dá meia-volta muito, muito vagarosamente e eu começo a entrar em pânico. Ele finalmente levanta a cabeça, mas seus olhos estão se lançando em todas as direções. Quando ele lança para mim seus olhos se encolhem, sua testa está franzida. Sua mão direita enrola-se em um punho e sua mão esquerda ergue um dedo até seus lábios. Ele está me dizendo para ficar quieta.
Todos os órgãos de meu corpo caem no chão.
Sabia que algo estava vindo, mas não sabia que seria Adam. Não achei que ele seria o único a ferir-me, torturar-me, fazer-me desejar pela morte mais do que jamais desejei. Nem mesmo percebi que estava chorando até ouvir a lamúria e sentir as lágrimas silenciosas escorrerem-me pelo rosto e tenho vergonha tanta vergonha tanta vergonha de minha fraqueza, mas uma parte de mim não se importa. Estou tentada a implorar, a pedir por misericórdia, a roubar sua arma e atirar primeiro em mim. Dignidade é a única coisa que me resta.
Ele parece registrar minha súbita histeria, porque seus olhos se arregalam.
— Não, Deus, Juliette... eu não vou... — Ele jura baixinho para que ninguém mais escute. Ele bate o punho contra a testa e vira-se, suspirando pesado, andando passo a passo o comprimento do pequeno espaço. Ele jura novamente.
Ele sai pela porta e não olha para trás.
12
Cinco minutos completos debaixo da água muito quente, duas barras de sabonete com cheiro de lavanda, um tubo de xampu destinado exclusivamente para meus cabelos e o toque de macias toalhas felpudas que ouso envolver em meu corpo e eu começo a entender.
Eles querem que eu esqueça.
Eles pensam que podem apagar minhas memórias, minhas lealdades, minhas prioridades com algumas refeições quentes e um quarto com vista para fora. Eles acham que sou muito fácil de ser comprada.
Warner parece não entender que eu cresci sem nada e que não tenho ódio por isso. Não queria ter roupas ou sapatos perfeitos ou qualquer coisa cara. Não queria ser envolta em seda. Tudo que sempre quis era estender a mão e tocar outro ser humano não apenas com minhas mãos, mas com meu coração. Via o mundo e sua falta de compaixão, seu julgamento duro e implacável e seus olhos frios e ressentidos. Via tudo isso a meu redor.
Tinha tanto tempo para escutar.
Olhar.
Estudar pessoas e lugares e possibilidades. Tudo o que tinha de fazer era abrir os olhos. Tudo o que tinha de fazer era abrir um livro para ver as histórias sangrando de página em página. Para ver as memórias gravadas sobre o papel.
Passei minha vida dobrada entre as páginas dos livros.
Na ausência de relacionamentos humanos, criei laços com as personagens de papel. Vivi amor e perda por meio das histórias enredadas na história; experimentei a adolescência por associação. Meu mundo é uma teia entrelaçada de palavras, amarrando membro a membro, osso a tendão, pensamentos e imagens todos juntos. Sou um ser composto de letras, uma personagem criada por frases, um produto da imaginação fabricado por meio da ficção.
Eles querem apagar todas as pontuações de minha vida nesta terra e eu não acho que posso deixar isso acontecer.
Coloco de volta as minhas roupas velhas e, na ponta dos pés, retorno para o quarto, apenas para encontrá-lo abandonado. Adam se foi ainda que tivesse dito que ficaria. Eu não o entendo eu não entendo suas ações eu não entendo minha decepção. Queria não ter amado o frescor de minha pele, a sensação de estar perfeitamente limpa depois de tanto tempo; não entendo por que ainda não me olhei no espelho, por que tenho medo do que vou ver, por que não tenho certeza se vou reconhecer o rosto que pode olhar-me de volta.
Abro o armário.
Ele está explodindo de vestidos e sapatos e camisas e calças e roupas de todos os tipos, de cores tão vivas que ferem meus olhos, de tecidos de que só ouvira falar, do tipo que quase tenho medo de tocar. Os tamanhos são perfeitos muito perfeitos.
“Eles estão à minha espera”.
O céu está chovendo tijolos direto sobre minha cabeça.
Fui desprezada abandonada banida e arrastada de minha casa. Fui empurrada espetada testada e jogada em uma cela. Fui estudada. Fui deixada passando fome. Fui encorajada à amizade somente para ser traída e aprisionada neste pesadelo pelo qual esperam que eu seja agradecida. Meus pais. Meus professores. Adam. Warner. O Restabelecimento. Sou dispensável para todos eles.
Eles pensam que sou uma boneca que eles podem vestir e retorcer em posição prostrada.
Mas eles estão errados.
— Warner está esperando você.
Viro-me e caio de costas contra o armário, fechando-o com uma batida durante a crise de pânico que me aperta o coração. Estabilizo-me e recolho o medo quando vejo Adam em pé à porta. Sua boca se mexe por um momento, mas ele nada diz. Finalmente, ele avança e avança mais até que esteja próximo o bastante para me tocar.
Ele chega a passar por mim para abrir de novo a porta que esconde as coisas de que estou envergonhada por saber que existem.
— Estes são todos para você — diz ele sem olhar para mim, seus dedos tocando a bainha de um vestido roxo, cor de uma ameixa boa o suficiente para se comer.
— Já tenho roupas. — Minhas mãos alisam as rugas em meu traje sujo e esfarrapado.
Ele finalmente decide olhar para mim, mas quando ele o faz suas sobrancelhas saltam, seus olhos piscam e congelam, seus lábios apartam-se em surpresa. Pergunto-me se do banho me saiu um novo rosto e enrubesço, esperando que ele não esteja enojado pelo que pode ver. Não sei por que me importo.
Ele baixa o olhar. Respira fundo.
— Vou esperar lá fora.
Encaro o vestido roxo com as pontas dos dedos de Adam.
Examino o interior do armário por apenas um momento antes de abandoná-lo. Passo os dedos ansiosos pelo cabelo molhado e me revisto de aço.
Sou Juliette.
Sou uma garota.
Não sou propriedade de ninguém.
E não me importo com o que Warner quer que eu pareça.
Saio do quarto e Adam me encara por um breve segundo. Ele esfrega a nuca e nada diz. Ele sacode a cabeça. Ele começa a andar. Ele não toca em mim e eu não deveria reparar nisso, mas eu reparo. Não faço ideia do que esperar não faço ideia do que será de minha vida neste novo lugar e estou sendo cravada no estômago por todo enfeite delicado, todo acessório luxuoso, toda pintura, moldagem, iluminação e colorido supérfluos deste edifício. Espero que tudo pegue fogo.
Sigo Adam por um longo corredor atapetado até um elevador feito inteiramente de vidro. Ele passa o mesmo cartão magnético que usou para abrir minha porta e entramos. Nem sequer percebi que tomáramos um elevador para subir tantos andares. Percebo que eu devo ter feito uma cena horrível quando cheguei e estou quase feliz.
Espero desapontar Warner de todos os modos possíveis.
A sala de jantar é grande o bastante para alimentar milhares de órfãos. Em vez disso, há sete mesas de banquete arranjadas pela sala, seda azul escorregando do topo da mesa, vasos de cristal prestes a rebentar de orquídeas e lírios stargazer, tigelas de vidro cheias de gardênias. É encantador. Pergunto-me onde conseguiram as flores.
Warner está posicionado à mesa logo do centro, sentado à cabeceira. Assim que me avista Adam, ele se levanta. A sala inteira fica em volta.
Percebo quase imediatamente que há um assento vazio em ambos os lados dele e não pretendo parar de me mover, mas paro. Faço um inventário rápido dos presentes e não consigo contar nenhuma outra mulher.
Adam toca de leve minhas costas com três pontas de dedo e estou extremamente assustada. Apresso-me adiante e Warner sorri para mim. Ele tira a cadeira à sua esquerda e faz um gesto para que me sente. Sento-me.
Tento não olhar para Adam quando ele se senta na minha frente.
— Você sabe... há roupas em seu armário, minha querida. — Warner senta-se a meu lado; a sala senta-se novamente e retoma um fluxo constante de tagarelice. Ele está voltado quase inteiramente em minha direção, mas, de algum modo, a única presença de que tomo consciência está imediatamente à minha frente. Concentro-me no prato vazio a poucos centímetros dos meus dedos. Desço as mãos ao meu colo. — E você não tem mais de vestir aqueles tênis imundos — continua Warner, furtando-me outro olhar antes de entornar algo em meu corpo. Parece água.
Estou com tanta sede que poderia beber uma cachoeira.
Odeio seu sorriso.
O ódio se assemelha exatamente ao que sinto por todos os outros, até que cada qual sorria. Até que cada qual se volte e minta com seus lábios e dentes entalhados no semblante de algo dócil demais para socar.
— Juliette?
Aspiro com bastante rapidez. Uma tosse reprimida está inflando minha garganta.
Seus olhos verdes vítreos cintilam na minha direção.
— Não está faminta? — As palavras mergulham no açúcar. Sua mão trajando luva toca meu pulso e, na afobação, quase o desloco para distanciar-me dele.
Poderia comer todas as pessoas nesta sala.
— Não, obrigada.
Ele lambe o lábio inferior em sorriso.
— Não confunda estupidez com bravura, amor. Sei que você não come nada há dias.
Algo em minha paciência estoura.
— Realmente preferia morrer a comer sua comida e escutá-lo me chamando de “amor” — digo a ele. Travo meu maxilar.
Adam derruba seu garfo.
Warner dispensa-lhe um olhar ligeiro e, quando ele olha novamente para mim, seus olhos endureceram. Ele retém meu olhar por alguns infinitamente longos segundos antes de puxar uma arma do bolso de seu casaco. Ele dispara.
A sala inteira grita e para.
Meu coração está batendo asas contra minha garganta.
Viro a cabeça muito, muito lentamente para seguir a direção tomada pela arma de Warner somente para ver que ele deu um tiro que atravessou direto o osso de um tipo de carne. A bandeja de comida está fumegando levemente pela sala, a comida amontoada a menos de trinta centímetros dos convidados. Ele atirou sem nem mesmo olhar. Podia ter matado alguém.
Emprego toda a minha energia para manter-me muito, muito tranquila.
Warner larga a arma sobre meu prato. Dá-se ao silêncio espaço para dar a volta ao mundo e retornar.
— Seja sábia na escolha das palavras, Juliette. Uma palavra minha e sua vida aqui não será tão fácil.
Pisco.
Adam empurra um prato de comida na minha frente; a força de seu olhar é como uma pá incandescente prensada contra minha pele. Levanto os olhos e ele inclina a cabeça o mais ínfimo milímetro. Seus olhos estão dizendo “por favor”.
Pego meu garfo.
Warner não perde nada. Ele limpa a garganta um tanto ruidosamente. Ele ri um riso sem humor enquanto corta a carne no prato.
— Tenho de convencer Adam a fazer todo o trabalho por mim?
— Perdão?
— Parece que ele é o único que você escuta. — Seu tom é alegre, mas sua mandíbula está, sem sombra de dúvida, travada. Ele se volta para Adam.
— Estou surpreso por você não ter dito a ela para mudar de roupa, como lhe pedi.
Adam endireita-se na cadeira.
— Eu disse, senhor.
— Gosto das minhas roupas — digo-lhe. Gostaria de dar-lhe um soco no olho — é o que não lhe digo.
O sorriso de Warner volta suavemente ao lugar.
— Ninguém perguntou do que você gosta, amor. Agora coma. Preciso que você mostre seu melhor quando estiver ao meu lado.
13
Warner insiste em me acompanhar até meu quarto.
Depois do jantar, Adam desapareceu com alguns dos outros soldados. Ele desapareceu sem uma palavra ou olhar na minha direção e eu não faço a mínima ideia do que prever. Ao menos não tenho nada a perder senão minha vida.
— Não quero que você me odeie — diz Warner enquanto seguimos pelo caminho rumo ao elevador. — Sou apenas seu inimigo porque você quis que eu fosse.
— Sempre seremos inimigos. — Minha voz parte-se em lascas de gelo. As palavras se derretem na minha língua. — Jamais serei o que você quer que eu seja.
Warner suspira ao apertar o botão do elevador. — De fato penso que você mudará de ideia. — Ele olha para mim com um sorrisinho. Uma pena que expressões tão impressionantes pudessem ser desperdiçadas em um ser humano tão miserável. — Você e eu, Juliette... juntos? Ninguém conseguiria nos deter.
Não olho para ele, embora sinta seu olhar tocando cada centímetro de meu corpo.
— Não, obrigada.
Estamos no elevador. O mundo está ruidosamente passando por nós e as paredes de vidro tornam-nos um espetáculo para cada pessoa em cada um dos andares. Não há segredos neste edifício.
Ele toca meu cotovelo e eu me afasto. — Você devia reconsiderar — diz ele suavemente.
— Como você descobriu isso? — O elevador se abre, mas eu não me movo. Finalmente, viro-me para encará-lo, pois não consigo conter minha curiosidade. Examino suas mãos, tão cuidadosamente revestidas em couro, suas mangas grossas e onduladas e longas. Mesmo seu colarinho é alto e suntuoso. Ele está vestido impecavelmente da cabeça aos pés e coberto em todo lugar com exceção do rosto. Mesmo se quisesse tocá-lo, não estou certa de que seria capaz. Ele está protegendo a si mesmo.
De mim.
— Talvez uma conversa amanhã de noite? — Ele esfrega uma sobrancelha e oferece-me o braço. Finjo não reparar nisso enquanto saímos do elevador e andamos pelo corredor. — Talvez você pudesse vestir alguma coisa bonita.
— Qual é o seu primeiro nome? — pergunto-lhe.
Estamos de pé em frente da minha porta.
Ele faz uma pausa. Surpreso. Ergue seu queixo quase de modo imperceptível. Concentra seus olhos em meu rosto até que começo a arrepender-me da pergunta.
— Você quer saber meu nome.
Não faço de propósito, mas meus olhos se estreitam um pouquinho.
— Warner é seu sobrenome, não é?
Ele quase sorri.
— Você quer saber meu nome.
— Não achei que fosse um segredo.
Ele se aproxima. Seus lábios se contorcem. Seus olhos se abaixam, seus lábios se movem em tensa respiração. Ele desliza um dedo enluvado pela maçã de meu rosto.
— Direi o meu se você me disser o seu — sussurra, bem próximo a meu pescoço.
Dou um passo para trás. Engulo em seco.
— Você já sabe meu nome.
Ele não está me olhando nos olhos.
— Você está certa. Devo reformular isso. O que quis dizer é que lhe direi meu nome se você me mostrar o seu.
— O quê? — Estou respirando muito rápido muito de repente.
Ele começa a tirar as luvas e eu começo a entrar em pânico.
— Mostre para mim o que você consegue fazer.
Meu rosto está tensionado demais e meus dentes começaram a doer.
— Não vou tocar em você.
— Está tudo bem. — Ele puxa a outra luva da mão. — Não preciso exatamente de sua ajuda.
— Não...
— Não se preocupe. — Ele força um riso. — Tenho certeza de que isso não irá machucá-la de modo algum.
— Não — estremeço. — Não, não vou... não posso...
— Muito bem — diz ele, rispidamente. — Está tudo bem. Você não quer me machucar. Sinto-me tão lisonjeado. — Ele quase revira os olhos. Olha para baixo no salão. Localiza um soldado. Acena para ele.
— Jenkins?
Jenkins é rápido para seu tamanho e em um segundo ele está do meu lado.
— Senhor. — Ele curva um pouco a cabeça, ainda que seja claramente mais velho que Warner. — Ele não pode ter mais que 27 anos; atarracado, vigoroso, abarrotado de massa. Ele me olha de lado. Seus olhos castanhos são mais quentes do que esperava que fossem.
— Preciso que acompanhe a senhorita Ferrars de volta para o térreo. Mas esteja prevenido: ela não é nada cooperativa e tentará fugir de seu controle. — Ele sorri bem lentamente. — Não importa o que ela diga ou faça, soldado, você não pode soltá-la. Fui claro?
Os olhos de Jenkins se arregalam; ele pisca, suas narinas se dilatam, seus dedos se flexionam contra o corpo. Respira acelerado. Acena a cabeça.
Jenkins não é idiota.
Começo a correr.
Estou escapando pelo corredor e passo correndo por uma série de estupefatos soldados que estão assustados demais para me deter. Não sei o que estou fazendo. Por que penso que posso correr? Para onde penso que poderia ir? Se me esforço para alcançar o elevador, é só porque acho que isso me dará tempo. Não sei mais o que fazer.
Os comandos de Warner estão repercutindo nas paredes e explodindo em meus tímpanos. Ele não precisa me perseguir. Ele está mandando outros fazerem o trabalho por ele.
Os soldados estão fazendo fila diante de mim.
Ao meu lado.
Atrás de mim.
Não consigo respirar.
Estou girando em círculos de minha própria estupidez, em pânico, aflita, petrificada pelo pensamento do que vou fazer a Jenkins contra minha vontade. Do que ele fará a mim contra sua vontade. Do que acontecerá a nós dois apesar de nossas melhores intenções.
— Peguem-na — diz Warner brandamente. O silêncio toma conta de cada canto deste edifício. Sua voz é o único som na sala.
Jenkins avança.
Meus olhos estão marejados e fecho-os. Abro-os para espiar. Avisto de olhos entreabertos a multidão e localizo um rosto familiar. Adam está me encarando, amedrontado.
A vergonha cobriu cada centímetro de meu corpo.
Jenkins oferece-me sua mão.
Meus ossos começam a envergar, estalando em sincronia com as batidas de meu coração. Desmorono no chão, embrulhando-me como um crepe fino. Meus braços estão dolorosamente desnudos nesta camiseta maltrapilha.
— Não... — Ergo uma mão hesitante, implorando com meus olhos, olhando fixamente para o rosto deste inocente homem. — Por favor, não... — Minha voz se dissolve. — Você não quer tocar em mim...
— Nunca disse que queria. — A voz de Jenkins é profunda e resoluta, cheia de remorso. Jenkins, que não tem luvas, não tem proteção, não tem preparo, não tem defesa possível.
— Era uma ordem clara, soldado — grita Barks, uma arma apontada para suas costas.
Jenkins agarra meus braços
Não não não
Meu peito arfa.
Meu sangue agita-se nas veias, correndo pelo meu corpo como um rio caudaloso, ondas de calor enrolam-se em meus ossos. Posso escutar sua angústia, posso sentir a força emanando de seu corpo, posso escutar seu coração batendo em meu ouvido e minha cabeça girando com a descarga de adrenalina que fortalece meu ser.
Sinto-me viva.
Queria que isso me machucasse. Queria que isso me mutilasse. Queria que isso me anulasse. Queria odiar a potente força que me envolve o esqueleto.
Mas não. Minha pele está pulsando com a vida de alguém e eu não odeio isso.
Odeio a mim mesma por desfrutar disso.
Desfruto da sensação que é estar sendo preenchida com mais vida e esperança e poder humano do que eu sabia ser capaz. Sua dor me concede um prazer que jamais pedi.
E ele não está me soltando.
Mas ele não está me soltando porque ele não consegue. Porque eu tenho de ser a única a quebrar a conexão. Porque a agonia o incapacita. Porque ele caiu na minha armadilha.
Porque eu sou uma planta carnívora.
E sou letal.
Caio de costas e chuto seu peito, querendo-o longe de mim, querendo livrar-me de seu peso sobre mim. Seu corpo mole desmorona contra o meu. Repentinamente estou aos berros e esforçando-me para enxergar além do lençol de lágrimas que obscurece minha visão; estou soluçando, histérica, aterrada pelo olhar frio no rosto deste homem, seus lábios paralisados arquejando.
Liberto-me e cambaleio para trás. O oceano de soldados divide-se atrás de mim. Em todos os rostos estão entalhados o assombro e o mais puro e autêntico medo. Jenkins está estirado no chão e ninguém ousa se aproximar.
— Alguém o ajude! — grito. — Alguém o ajude! Ele precisa de um médico... ele precisa ser levado... ele precisa... ele... ah, Deus... o que eu fiz...
— Juliette...
— Não me toque... não ouse me tocar...
As luvas de Warner estão de volta ao lugar e ele está tentando me recompor, ele está tentando realinhar meus cabelos, ele está tentando enxugar minhas lágrimas e eu quero assassiná-lo.
— Ajudem-no! — caindo de joelhos, meus olhos colados na figura deitada ao chão. Os outros soldados finalmente se aproximam com lentidão, cautelosos como se ele pudesse ser contagioso.
— Por favor... vocês têm de ajudá-lo! Por favor...
— Kent, Curtis, Soledad... Cuidem disso — berra Warner a estes homens antes de erguer-me em seus braços.
Ainda estou esperneando quando tudo fica preto.
14
O teto entra e sai de foco.
Minha cabeça está pesada, minha visão está embaçada, meu coração está estremecido. Há um marcante sabor de pânico alojado em algum lugar debaixo de minha língua e estou lutando para lembrar-me de onde ele veio. Tento sentar-me e não consigo lembrar-me por que estava deitada.
As mãos de alguém estão em meus ombros.
— Como você está se sentindo? — Warner está me perscrutando.
De repente minhas memórias estão queimando em meus olhos e o rosto de Jenkins está boiando em minha consciência e eu estou balançando meus punhos e gritando para que Warner fique longe de mim e esforçando-me para esquivar-me de seu domínio, mas ele apenas sorri. Ri um pouco. Acaricia-me as mãos ao lado de meu torso.
— Bem, pelo menos você está acordada — suspira ele. — Por um momento você me preocupou.
Tento controlar meus membros trêmulos.
— Tire suas mãos de mim.
Ele gesticula seus dedos revestidos diante de meu rosto.
— Estou todo coberto. Não se preocupe.
— Eu odeio você.
— Quanta paixão. — Ele ri novamente. Ele parece tão calmo, tão genuinamente satisfeito. Ele olha para mim com olhos mais brandos do que jamais esperei que fossem.
Desvio o olhar.
Ele se levanta. Toma pouco fôlego.
— Aqui — diz ele, estendendo o braço até uma bandeja sobre uma mesa. — Trouxe comida para você.
Aproveitei o momento para endireitar-me e olhar em volta. Estou deitada em uma cama guarnecida com ouro damasco e vermelho Burgundy, a mais escura tonalidade de sangue. O chão é coberto com grosso e rico carpete na cor de um sol poente de verão. Está quente no quarto. Ele é do mesmo tamanho daquele que ocupo, seu mobiliário segue padrão básico: cama, armário, mesas laterais, lustre cintilando do teto. A única diferença é que há uma porta a mais neste quarto e há uma vela grossa queimando calmamente sobre uma mesinha de canto. Há tanto não via o fogo que já perdi a conta. Tenho de conter um impulso de estender a mão e tocar a chama.
Apoio-me nos travesseiros e tento fingir que não estou confortável.
— Onde estou?
Warner vira-se segurando um prato que contém pão e queijo. Sua outra mão segura um copo d’água. Ele olha em volta do quarto como se o visse pela primeira vez.
— Este é o meu quarto.
Se minha cabeça não estivesse se esfacelando em pedaços, eu estaria tentada a correr.
— Leve-me para o meu quarto. Não quero ficar aqui.
— E, ainda assim, eis você aqui. — Ele senta-se ao pé da cama, a poucos centímetros de distância. Empurra o prato na minha frente. — Você está com sede?
Não sei se é porque não consigo pensar direito ou se é porque estou verdadeiramente confusa, mas estou me esforçando para reconciliar as personalidades polarizadas de Warner. Eis ele aqui, oferecendo-me um copo d’água depois de forçar-me a torturar outra pessoa. Ergo as mãos e estudo meus dedos como se nunca os tivesse visto antes.
— Não entendo.
Ele inclina a cabeça, inspecionando-me como se eu pudesse ter me ferido seriamente.
— Só perguntei se estava com sede. Isso não devia ser difícil de entender. — Uma pausa. — Tome isto.
Pego o copo. Encaro-o. Encaro Warner. Encaro as paredes.
Devo estar louca.
Warner suspira.
— Não tenho certeza, mas acho que você desmaiou. E acho que você devia comer alguma coisa, embora eu não esteja totalmente certo sobre isso também. — Ele faz uma pausa. — Você provavelmente fez esforço demais para o seu primeiro dia aqui. Falha minha.
— Por que você está sendo legal comigo?
A surpresa em seu rosto surpreende-me ainda mais.
— Porque me preocupo com você — diz ele simplesmente.
— Você se preocupa comigo? — O entorpecimento no corpo está começando a dissipar-se. Minha pressão sanguínea está subindo e a raiva está se colocando em primeiro plano na minha consciência. — Eu quase matei Jenkins por sua causa!
— Você não matou...
— Seus soldados me bateram! Você me mantém aqui como uma prisioneira! Você me ameaça! Você ameaça me matar! Você não me dá nenhuma liberdade e ainda diz que se preocupa comigo? — Quase lhe jogo o copo d’água na cara. — Você é um monstro!
Warner vira o rosto para o lado, de tal modo que fito seu perfil. Ele junta as mãos. Muda de ideia. Toca os lábios.
— Só estou tentando ajudá-la.
— Mentiroso!
Ele parece considerar isso. Assente com a cabeça, apenas uma vez.
— Sim. Na maior parte do tempo, sim.
— Não quero ficar aqui. Não quero ser seu experimento. Deixe-me ir.
— Não. — Ele se levanta. — Receio que eu não possa fazer isso.
— Por que não?
— Porque não posso. Eu apenas... — Ele puxa os dedos. Limpa a garganta. Seus olhos tocam o teto por um breve momento. — Porque eu preciso de você.
— Você precisa de mim para matar pessoas!
Ele não responde imediatamente. Ele caminha até a vela. Retira uma luva. Brinca com a chama usando seus dedos nus.
— Você sabe, sou bastante capaz de matar pessoas por conta própria, Juliette. Na verdade, sou muito bom nisso.
— Isso é repulsivo.
Ele encolhe os ombros.
— De que outra forma você acha que alguém na minha idade seria capaz de controlar tantos soldados? Por que mais meu pai permitiria que eu assumisse o comando de um setor inteiro?
— Seu pai? — Endireito-me, subitamente curiosa, mesmo contra a vontade.
Ele ignora minha pergunta.
— A mecânica do medo é simples o bastante. As pessoas são intimidadas por mim, então elas ouvem quando eu falo. — Ele gesticula com uma mão. — Ameaças vazias valem muito pouco hoje em dia.
Aperto os olhos.
— Então você mata as pessoas em busca de poder.
— Como você.
— Como ousa...
Ele ri, em voz alta.
— Você é livre para mentir para si mesma, se isso faz você se sentir melhor.
— Não estou mentindo...
— Por que demorou tanto para você quebrar a conexão com Jenkins?
Minha boca congela, imóvel.
— Por que você não se defendeu na mesma hora? Por que permitiu que ele a tocasse por todo o tempo que a tocou?
Minhas mãos começaram a tremer e eu as contive, duramente.
— Você não sabe nada sobre mim.
— E mesmo assim você afirma me conhecer tão bem.
Tensiono o rosto, sem confiança em mim mesma para falar.
— Pelo menos sou honesto — acrescenta ele.
— Você acabou de concordar que é um mentiroso!
Ele ergue as sobrancelhas.
— Pelo menos sou honesto sobre ser um mentiroso.
Bato o copo d’água sobre a mesa lateral e pendo a cabeça em minhas mãos. Tento manter a calma. Respiro com firmeza.
— Bem — digo com voz áspera —, por que você precisa de mim então? Se você já é um excelente assassino?
Um sorriso cintila e desvanece em seu rosto.
— Um dia vou apresentá-la à resposta a essa pergunta.
Tento protestar, mas ele me interrompe com uma mão. Pega um pedaço de pão do prato. Segura-o sob meu nariz.
— Você quase não comeu nada no jantar. Isso não pode ser saudável.
Não me movo.
Ele pousa o pão no prato e pousa o prato ao lado da água. Volta-se para mim. Estuda meus olhos com tanta intensidade que fico momentaneamente desarmada. Há tantas coisas que quero dizer e gritar, mas de algum modo esqueço todas as palavras que aguardam, impacientes, na minha boca. Não consigo desviar o olhar.
— Coma algo. — Seus olhos me abandonam. — Então vá dormir. Voltarei pela manhã.
— Por que não posso dormir no meu quarto?
Ele se levanta. Espana o pó de suas calças sem nenhuma razão prática.
— Porque quero que você fique aqui.
— Mas por quê?
Ele solta uma risada.
— Tantas perguntas.
— Ora, se você me desse uma resposta franca...
— Boa noite, Juliette.
— Você vai me soltar? — pergunto, dessa vez calmamente, dessa vez timidamente.
— Não. — Ele dá seis passos até o canto onde está a vela. — E também não vou prometer facilitar as coisas para você. — Não há arrependimento, nem remorso, nem compaixão em sua voz. Ele poderia estar falando sobre o clima.
— Você poderia estar mentindo.
— Sim, poderia. — Ele faz que sim com a cabeça, como para si mesmo. Apaga a vela.
E desaparece.
Tento lutar contra isso.
Tento ficar acordada.
Tento colocar a cabeça no lugar, mas não consigo.
De tão exausta sofro um colapso.