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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SUA ESPERA / Abbi Glines
A SUA ESPERA / Abbi Glines

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

– Venha aqui, garota! – A voz do meu padrasto trovejou pela casa.

Imediatamente meu estômago se revirou. Aquela angústia nauseante que surgia quando eu estava perto dele, sabendo o que faria comigo, era constante em minha vida.
Levantei-me lentamente da cama e pus de lado, com todo o cuidado, o livro que estava lendo – ou tentando ler. Minha mãe ainda não tinha voltado do trabalho. Já era para ter chegado. Eu não deveria ter voltado da biblioteca tão cedo. Um homem e sua filhinha tinham vindo até mim quando eu olhava os livros infantis ilustrados. Ele começou a falar comigo e perguntou meu nome. Queria saber se eu estava pegando um livro para minha irmã mais nova.
O constrangimento que me veio com aquela pergunta me lembrou de minha estupidez, como sempre.

– Garota! – rugiu meu padrasto.

Agora ele estava com raiva. Meus olhos arderam com as lágrimas não derramadas. Se ele ao menos só me batesse, como costumava fazer... Quando eu era mais nova e trazia meu boletim com notas baixas. Se ele só me xingasse e me dissesse quanto eu era imprestável... Mas não. Até um tempo atrás, tudo o que eu queria era que ele parasse de me bater. Odiava aquele cinto, e os vergões que ele deixava nas minhas pernas e no meu traseiro doíam muito na hora de sentar.
Então um dia ele parou. E imediatamente eu desejei que ele voltasse a me bater. A ferroada do cinto era melhor do que isso. Qualquer coisa era melhor do que isso. Até mesmo a morte.
Abri a porta do meu quarto e respirei fundo, lembrando a mim mesma que eu podia sobreviver a qualquer coisa que ele fizesse. Eu estava economizando o dinheiro das faxinas que fazia e logo iria embora dali. Minha mãe ficaria feliz quando eu fosse embora. Ela me odiava. Fazia anos que me odiava.
Eu era um fardo para ela.

 

 


 

 


Puxei a camiseta para baixo e coloquei dentro do short. Então puxei o short para baixo, para que cobrisse minhas pernas o máximo possível. Na verdade, era inútil. Eu tinha pernas compridas, difíceis de cobrir. No brechó, nunca havia shorts compridos o suficiente.

Faltava pouco para minha mãe chegar em casa. Ele não faria nada correndo o risco de ser flagrado por ela. Mas eu me perguntava, caso isso acontecesse, se ela não me acusaria e diria que a culpa era minha. Ela já tinha me culpado pela maneira como meu corpo havia mudado quatro anos atrás. Meus seios tinham crescido demais, e ela dizia que eu precisava parar de comer porque minha bunda estava gorda. Tentei parar de comer, mas isso não ajudou em nada.

Minha barriga havia ficado lisa, o que só fizera meus peitos parecerem ainda maiores. Ela detestava isso. Então voltei a comer, mas a barriga gordinha nunca mais apareceu. Certa noite, quando passei pela sala vestindo uma calça de moletom cortada e uma camiseta, indo tomar leite antes de dormir, ela me esbofeteou e disse que eu parecia uma puta. Mais de uma vez ela disse que eu era uma puta burra que não tinha nada além da aparência para chegar a algum lugar na vida.

Entrei na sala, atendendo o chamado de Marco, meu padrasto, que estava sentado em sua poltrona reclinável com os olhos grudados na televisão e uma cerveja na mão. Ele tinha voltado mais cedo do trabalho.

Seu olhar pousou em mim e lentamente percorreu meu corpo, me fazendo tremer de repulsa. O que eu não daria para ser inteligente e sem peitos. Se minhas pernas fossem curtas e gordas, minha vida seria perfeita. Não era meu rosto que atraía Marco. Era muito comum. Eu odiava era o meu corpo. Odiava-o com todas as forças.

A náusea foi tomando conta de mim e meu coração disparou enquanto eu lutava para conter as lágrimas. Ele adorava quando eu chorava. Isso o deixava ainda pior. Eu não ia chorar. Não na frente dele.

– Venha sentar no meu colo – ordenou ele.

Eu não podia fazer isso. Tinha conseguido evitá-lo por semanas, ficando longe de casa o máximo de tempo possível. O horror de ter as mãos dele dentro da minha blusa ou do meu short era demais. Preferiria que ele me matasse. Qualquer coisa, menos as mãos dele em mim.

Como não me mexi, o rosto dele se contorceu num escárnio maligno.

– Traga essa bunda aqui, sua putinha estúpida, e sente no meu colo!

Fechei os olhos, porque as lágrimas estavam brotando. Precisava contê-las. Se ele apenas me batesse outra vez, eu aguentaria. Só não suportava era ser tocada por ele. Odiava os sons que ele fazia e as coisas que dizia. Era um pesadelo sem fim.

Cada segundo que eu me mantivesse longe era um segundo a menos que faltava para minha mãe chegar. Quando ela estava em casa, ele me xingava, mas jamais me tocava. Minha mãe podia desejar que eu não existisse, mas era minha única salvação daquele tormento.

– Anda, pode chorar... eu gosto – disse ele, zombando.

A cadeira dele rangeu, e então escutei o ruído do descanso dos pés. Abri os olhos e o vi se levantando. Mau sinal. Se eu corresse, não conseguiria passar por ele. A única opção era o quintal, mas o pit bull dele estava lá fora. O cachorro havia me mordido três anos antes, e eu tinha que ter tomado pontos, mas ele não me deixara ir ao médico. Ele me disse para cobrir a ferida; não ia sacrificar o cachorro por minha causa.

Fiquei com uma cicatriz horrível no quadril deixada pelos dentes do cachorro.

E nunca mais fui ao quintal.

Mas, vendo o sujeito vindo em minha direção, eu me perguntei se virar comida do cachorro não seria melhor do que aquilo. Era um meio de alcançar um fim: a morte. O que não parecia tão ruim.

Um segundo antes que ele me alcançasse, decidi que qualquer coisa que aquele cachorro fizesse comigo era melhor que aquilo. Então corri.

Ele soltou uma gargalhada atrás de mim, mas não deixei que esse gesto me retardasse. Ele não acreditou que eu fosse sair pela porta dos fundos. Pois se enganou redondamente. Eu enfrentaria os cães do inferno para escapar dele.

Só que a porta estava trancada. Eu precisava da chave para abri-la. Não. Não.

As mãos dele agarraram minha cintura e me puxaram para trás, de encontro à sua rigidez, que pressionava meu corpo. O gosto azedo do vômito queimou minha garganta quando tentei me afastar dele.

– Não! – berrei.

As mãos dele agarraram meus peitos e apertaram com força, me machucando.

– Sua puta estúpida. É só para isso que você serve. Não conseguiu terminar o ensino médio porque é burra demais. Mas esse corpo foi feito para satisfazer os homens. Aceite isso, sua vagabunda.

As lágrimas corriam pelo meu rosto. Não consegui segurá-las. Ele sabia o que dizer para me ferir.

– Não! – gritei outra vez, mas agora havia dor em minha voz, que falhou.

– Lute comigo, Reese. Eu gosto quando você luta comigo – sibilou ele em meu ouvido.

Como minha mãe podia continuar casada com esse homem? Será que meu pai era pior do que isso? Ela nunca se casara com ele. Nunca me falava dele. Eu nem sequer sabia seu nome. Mas ninguém podia ser pior do que esse sujeito horroroso.

Eu não podia suportar aquilo de novo. Estava cansada de sentir medo. Ou ele ia me bater até me matar ou ia me mandar embora. Por muito tempo eu temera ambas as opções. Uma vez minha mãe me disse que a única coisa que os homens pensariam ao me ver era sexo. Que eu seria usada por eles a vida inteira. Estava sempre me dizendo para ir embora.

Nesse dia eu estava pronta. Tinha apenas 855 dólares guardados, mas podia pegar um ônibus para o outro lado do país e conseguir um emprego. Se eu saísse dessa casa viva, era o que ia fazer.

A mão de Marco deslizou para dentro do meu short pela frente e eu o empurrei, gritando. Não queria a mão dele ali.

– Me solta! – gritei, alto o suficiente para os vizinhos escutarem.

Ele tirou a mão e me girou pelo braço com tanta rispidez que o fez estalar. Então me empurrou com toda a força contra a porta. Desferiu um soco no meu rosto, produzindo um estrondo. Minha visão se turvou e senti os joelhos amolecerem.

– Cala a boca, vagabunda, e aceite.

Suas mãos levantaram violentamente minha camiseta, e então ele puxou o sutiã para baixo. Solucei, porque não conseguia conter o horror. Aquilo ia acontecer, e eu não era capaz de detê-lo.

– Largue o meu marido, sua puta, e saia da minha casa! Não quero ver a sua cara nunca mais! – A voz da minha mãe conteve Marco, e ele tirou a mão dos meus seios.

Puxei a camiseta de volta para baixo. Meu rosto ardia por causa do soco, e senti o gosto de sangue nos lábios quando o corte embaixo da língua começou a inchar.

– Fora daqui, sua vadia burra e imprestável! – gritou minha mãe.

Aquele momento mudou tudo.


Mase

Dois anos depois

Que inferno! Que barulho era aquele? Abri os olhos à medida que o sono se esvaía lentamente do meu cérebro e eu tentava entender o que havia me acordado.

Um aspirador de pó? E... alguém cantando? O que era aquilo?

Esfreguei os olhos e resmunguei, frustrado, enquanto o barulho ficava mais alto. Agora eu tinha certeza de que era um aspirador de pó. E parecia uma versão muito ruim de “Gunpowder & Lead”, de Miranda Lambert.

A tela do celular me informou que eram só oito da manhã. Eu havia dormido duas horas. Depois de trinta horas sem dormir, estava sendo acordado por alguém cantando muito mal e por um maldito aspirador de pó?

Quando a pessoa cantou os primeiros dois versos do refrão, eu me encolhi. Ela estava cantando mais alto. E era muito desafinada. Ela estava assassinando uma bela canção. Será que a mulher não sabia que não se entra na casa das pessoas às oito da manhã cantando a plenos pulmões?

Eu nunca ia conseguir voltar a dormir com aquela barulhada.

Nannette deve ter contratado alguém para limpar a porcaria da casa. Mas também, conhecendo Nannette, ela devia estar furiosa com minha presença e por não haver nada que pudesse fazer a respeito. Ela provavelmente pagou a mulher para se esgoelar bem na porta do meu quarto. Nannette não era a dona da casa, que era propriedade do nosso pai, Kiro. Ele disse que, enquanto Nannette estivesse em Paris, eu poderia ficar na casa e passar um tempo com nossa outra irmã, Harlow, que vivia em Rosemary Beach com o marido, Grant, e o bebê deles.

Essa devia ser a vingança daquela megera por eu estar dormindo na casa dela.

Agora a mulher repetia sem parar o refrão, o mais alto que conseguia. Por Deus, aquilo era um pesadelo. Ela tinha que calar a boca. Eu precisava dormir um pouco antes de visitar Harlow e a família. Minha irmã estava toda feliz por eu ter vindo do Texas até aqui. Mas essa louca estava conseguindo acabar com o meu sono.

Joguei as cobertas para o lado, me levantei e segui para a porta antes de me dar conta de que estava nu. Minha cabeça latejava por eu ter dormido tão pouco e fui ficando mais irritado enquanto procurava ao redor do quarto o maldito jeans que tirara ao chegar. Minha visão estava embaçada, e as cortinas escuras, fechadas. Que se dane! Estendi a mão para o lençol, enrolei-o na cintura e fui até a porta.

Abri a porta no instante em que ela começava a cantar o primeiro verso de outra música. Droga. Outra música, não! Desta vez, ela estava assassinando “Cruise”, de Florida Georgia Line.

Pisquei e esfreguei os olhos por causa da luz, com a visão ainda embaçada. Droga, será que a mulher ainda não tinha me visto ali parado?

Depois de alguns segundos, finalmente consegui entreabrir os olhos e ver uma bundinha redonda balançando enquanto a mulher se abaixava. Meus olhos lentamente se arregalaram quando focaram as pernas mais longas que eu já vira. E, minha nossa, a bunda! Será que aquilo sob a nádega esquerda era uma pinta?

Ela se levantou, e a cinturinha diminuta tornou aquela bunda ainda mais bonita. Ela continuou balançando o traseiro enquanto desafinava. Quando ela tentou uma nota muito aguda, cheguei a me encolher. Caramba, a garota não sabia mesmo cantar.

Então ela se virou, e eu quase não tive tempo de apreciar a vista frontal antes de ela gritar e deixar o aspirador de pó cair enquanto tirava os fones de ouvido. Olhos azul-bebê, grandes e redondos, me fitaram com horror enquanto ela abria e fechava a boca algumas vezes, como se tentasse falar.

Aproveitei o momento de silêncio para notar os lábios grossos rosados e o formato perfeito do seu rosto. O cabelo estava preso num coque muito escuro. Imaginei que comprimento teria.

– Eu sinto muito – ela conseguiu gaguejar, e meus olhos voltaram aos dela.

Ela realmente era incrível. Havia uma qualidade exótica naquela mulher. Era como se Deus tivesse reunido todas as suas melhores peças para compor aquela pessoa.

– Eu não – respondi. Não mais. Quem diabo precisa dormir? Ah, sim. Eu preciso.

– Eu não sabia, hã... Pensei que a casa ainda estivesse vazia. Quer dizer, não sabia que tinha alguém aqui. Não havia carro do lado de fora, e eu toquei a campainha, mas ninguém atendeu, então digitei o código e entrei.

Ela não era do Sul. Talvez do Meio-Oeste. Eu só sabia que não era dali. Ela não tinha o toque anasalado do sotaque local. Havia uma maciez em sua voz.

– Cheguei de avião. Um táxi me trouxe até aqui e foi embora – respondi.

Ela assentiu e olhou para os próprios pés.

– Vou fazer silêncio. Posso terminar essa parte mais tarde. Vou descer e começar pelo térreo hoje.

Fiz que sim com a cabeça.

– Obrigado.

As bochechas dela ficaram vermelhas quando seu olhar pousou no meu peito nu. Então ela se virou e bateu em retirada, deixando o aspirador de pó para trás. Fiquei olhando, saboreando a maneira como sua bunda balançava. Caramba, tomara que ela limpe a casa várias vezes por semana. Da próxima vez, eu não estaria exausto. Da próxima vez, descobriria o nome dela.

Quando ela saiu do meu campo de visão, voltei para o quarto e fechei a porta. Um sorriso surgiu em meus lábios ao me lembrar da expressão no rosto dela assim que percebeu que eu estava vestindo apenas um lençol. Como a Nan tinha uma faxineira com uma aparência daquelas? A garota era maravilhosa.

Deitei de costas e fechei os olhos. A imagem daquela pinta bem embaixo daquelas curvas carnudas me veio à cabeça. Eu queria lamber aquela marquinha. Era a pinta mais bonitinha e safada que eu já tinha visto.


Reese

– Aimeudeus, aimeudeus, aimeudeus – murmurei, afundando no sofá mais próximo e cobrindo o rosto com as mãos.

Eu não tinha percebido que havia alguém na casa. Eu acordei o cara. Ele pareceu aborrecido. Ah, Deus, não dava para saber. Fiquei nervosa com a possibilidade de ele me demitir. Essa era a minha melhor faxina, a que pagava melhor, mas eu nunca tinha encontrado o proprietário. Eu trabalhava para uma agência de limpeza, e eles me mandavam à casa dos clientes. Era a maior casa que eu tinha, e essa faxina semanal pagava meu aluguel, as contas de serviços e a alimentação. As outras eram menores, então, se eu perdesse essa, precisaria de todos os outros trabalhos somados para pagar as contas. Não sobraria nada para a minha poupança. Nenhuma reserva.

Ver aquele peito nu mexeu comigo, e eu fechei os olhos bem apertados, tirando-o da minha cabeça. Eu não confiava em homens. Bem, exceto no meu vizinho Jimmy. Fora ele quem me apresentara ao pessoal da agência de limpeza. Jimmy gostava de homens, não de mulheres, então eu me sentia segura com ele.

Em geral, ver o peito de um homem não me deixava assim tão interessada. Mas aquele peito... bom, era bonito de verdade. Os braços dele eram grossos e os músculos, definidos. O que eu estava pensando? Sim, o corpo dele era bonito, mas homens como ele, que viviam em casas como essa, não queriam alguém como eu para nada além de sexo casual.

Aquele cara era rico e lindo e provavelmente tinha uma mulher na cama com ele, que também era rica e linda. Na verdade, eu estava certa de que tinha. No maior quarto do andar de cima havia um closet enorme, lotado com as roupas mais bonitas que eu já tinha visto. Uma mulher devia morar ali e esse cara devia ser o namorado dela. Eu só não sabia por que ele estava dormindo em outro quarto. Mas isso não era da minha conta. Portanto, independentemente de quanto aqueles braços e peito fossem bonitos, ou de quanto o rosto dele fosse perfeito, mesmo com uma barba de vários dias, não era seguro eu ficar pensando nele.

Eu precisava garantir que não perderia esse trabalho. O lugar estava normalmente bem limpo, porque ninguém tinha aparecido nesses meses em que eu vinha trabalhando na casa, mas eu o limpava todas as semanas como se estivesse imunda. Não se podia encontrar poeira em lugar nenhum, e eu até organizava a despensa e os produtos de limpeza, arrumando os armários e jogando fora comidas que tivessem perdido a validade.

Levantando-me, sacudi a vergonha por ter acordado o cliente cantando a sei lá que volume e passando o aspirador de pó na frente da porta do quarto dele. Quando ele visse a limpeza do lugar, talvez perdoasse meu erro.


Três horas mais tarde, o andar térreo estava imaculado. Eu havia até limpado o refrigerador e o freezer inteiros outra vez, dando ao cliente tempo suficiente para dormir. Fui para o segundo andar e limpei cada quarto de cabo a rabo até que não encontrasse mais nada para limpar, antes de finalmente chegar ao pé da escada e olhar para o terceiro andar. Era uma da tarde, e o cara ainda estava na cama. Eu tinha três quartos e três banheiros inteiros para encarar, mais uma sala de TV e outra de jogos, com um bar completo. A sala de jogos era longe o bastante do quarto dele e, se eu fosse silenciosa, provavelmente poderia limpá-la sem acordar o sujeito.

Subi a escada na ponta dos pés e passei devagarzinho em frente ao quarto. Quando cheguei a salvo à sala de jogos, soltei um suspiro de alívio. Fechei a porta atrás de mim e me virei para aquele salão grande e intocado. O bar era abastecido com todo tipo de bebida alcoólica imaginável e com tantos copos diferentes que eu não podia sequer começar a deduzir o que era servido em quê. Atravessei o salão e coloquei a cesta de produtos de limpeza no chão. Decidi que gastaria mais tempo limpando as janelas. Puxei uma cadeira e a cobri com um pano antes de pisar nela. O pé-direito tinha quase quatro metros de altura, o que tornava certas partes das janelas difíceis de alcançar. Às vezes eu usava uma escada, mas trazê-la até ali faria muito barulho.

Subi na cadeira com um pano para começar a limpar a janela de cima para baixo, mas meu celular tocou. Droga! Eu sempre colocava o volume no máximo quando fazia faxina, para ouvir se o deixasse em algum lugar da casa. Desci correndo, mas meu pé escorregou. Me encolhi um pouco antes de a cadeira virar e meus braços se esticaram para agarrar a coisa mais próxima. Era um enorme espelho decorado.

O som do vidro quebrado ressoou pouco antes do meu traseiro bater no chão com um baque que ecoou.

E o meu maldito celular ainda tocava a todo o volume.

Virei-me e tentei desesperadamente alcançá-lo, mas não consegui. O barulho continuou enquanto eu me arrastava até ele, com as pernas retorcidas.

Então a porta se abriu, e eu fiquei paralisada.

Ali estava eu, sentada no chão, com vidro estilhaçado ao meu redor, junto a uma cadeira de pernas para o ar. A única coisa positiva foi que meu celular finalmente parou de tocar.

– Que diabo aconteceu aqui? Você está bem? – perguntou ele, caminhando em minha direção, vestindo só uma cueca boxer.

Pelo menos não estava totalmente nu.

Desviei os olhos dele e de seu corpo seminu e inspirei profundamente. Eu tinha quebrado o espelho dele e o acordado outra vez.

– Eu sinto muito. Vou pagar pelo espelho. Sei que ele deve custar muito dinheiro, mas você não precisa me pagar pela faxina até que o valor dele esteja completo. Posso até vir mais de uma vez por semana, de graça.

Ele franziu a testa, e meu estômago se contraiu. Ele não estava contente.

– Você está sangrando? Caramba, me dê sua mão.

Ele se ajoelhou e pegou minha mão esquerda. Com certeza havia um pedaço de vidro nela e o sangue escoava lentamente em torno do estilhaço.

– Você vai precisar tomar pontos. Vou me vestir e levar você ao hospital – disse ele, levantando-se e indo em direção à porta.

Fitei os estilhaços ao redor e voltei a olhar para a porta. Ele ia me levar para tomar pontos. Por causa disso? Se minha agência de limpeza descobrisse, eu seria demitida. Eu não podia deixar que o cara fizesse um estardalhaço. Eu só precisava de água oxigenada e de algo para cobrir aquilo. Depois poderia limpar a bagunça que havia feito.

Levantei e logo me encolhi com a dor nas costas. Com certeza ia ficar com um hematoma. Tentei tirar algumas lascas de vidro ainda presas na roupa, mas elas abriram minúsculos cortes nos meus dedos. O sangue que escorria pelas minhas pernas só fazia as coisas parecerem ainda piores.

Afastei-me do estrago que eu mesma havia provocado. Quando tive certeza de que não estava carregando cacos de vidro comigo, peguei um pano de limpeza em minha cesta, fui para o banheiro mais próximo, à direita da sala de jogos, molhei o tecido e passei em minhas pernas.

– O que você está fazendo?

Pelo tom de voz, ele parecia bravo. Levantei a cabeça e recuei quando ele apareceu à porta do banheiro. Meu pé estava sobre a tampa do vaso sanitário, e imediatamente o pus de volta no chão.

– Desculpe eu estar descalça. Eu ia limpar a tampa do vaso depois de terminar isso.

A testa dele ficou mais franzida. Droga. Eu não estava melhorando as coisas.

– Eu não quero saber dessa porcaria de vaso. Por que você não esperou que eu a ajudasse a se levantar? Você podia ter pisado em mais cacos.

O quê? Desta vez fui eu que franzi a testa. Eu não estava entendendo.

– Eu tomei cuidado – repliquei, ainda incerta sobre o que o havia irritado.

– Venha aqui. Vou tirar esse caco de vidro, limpar a ferida e cobri-la antes de sairmos. Você não pode continuar com isso aí. Pode infeccionar.

– Está bem – respondi, com medo de dizer não.

Ele estava claramente decidido a me ajudar.

Ele se virou e se dirigiu para a porta, então o segui. Só olhei para baixo uma vez, para a bunda dele, porque estava curiosa para ver como ela ficava naquele jeans que ele estava usando. Era tão impressionante quanto de frente. Aquele jeans ficava muito bem nele.

Subi o olhar pelas costas dele e percebi que ele tinha um rabo de cavalo. O cabelo não era tão longo, mas parecia ir ao menos até os ombros. Antes eu não havia me permitido olhar para ele o suficiente para notar isso. Seus olhos e seu maxilar bem marcado haviam prendido toda a minha atenção.

Chegamos à porta do quarto dele, e ele recuou um passo, acenando para que eu entrasse.

– Eu não faço ideia de onde Nan guarda o kit de primeiros socorros, mas tenho alguma coisa na minha bolsa. Estou tratando uma lesão, resultado da queda de um cavalo que estou domando, então vim preparado.

Nan? Quem era Nan?

– Você não mora aqui? – perguntei.

Ele puxou um estojinho azul da bolsa de lona camuflada e voltou a olhar para mim. Um sorrisinho levantou os cantos da sua boca e seus olhos dançaram, parecendo se divertir.

– De jeito nenhum. – Ele deu uma risadinha. – Você já conheceu a Nannette? Ninguém moraria com ela por vontade própria. Mas o dono desta casa é o nosso pai, então posso ficar aqui sempre que quiser. Decidi vir agora enquanto ela está fora.

– Ah, nunca tinha visto ninguém aqui antes de você – respondi.

– Isso explica muita coisa – murmurou ele, então riu, como se soubesse de uma piada e eu não. Ele estendeu a mão. – Aqui, me dê a sua mão. Vou fazer com cuidado, mas mesmo assim vai arder.

Eu não deixava homens me tocarem. Mas alguma coisa na maneira preocupada com que ele estudava a palma da minha mão me fez confiar nele. Ele era um cara legal, ou parecia ser. Não estava me olhando de um jeito que me deixasse nervosa.

Coloquei minha mão virada para cima sobre a dele, e ele me olhou com se pedisse desculpas, como se fosse culpa dele. Observei enquanto ele retirava lentamente o pedaço de vidro e depois passava um chumaço de algodão embebido em água oxigenada no machucado. Sim, ardeu, mas eu já tinha sentido coisa muito pior.

Ele inclinou a cabeça e começou a soprar delicadamente a ferida enquanto a limpava. O frescor do sopro dele sobre a minha pele diminuiu a ardência e eu fiquei fascinada com o biquinho que seus lábios formavam. Ele era real? Será que eu tinha batido a cabeça quando caí? Não seria só um sonho estranho?

Ele manteve o algodão pressionado contra a ferida usando o polegar enquanto pegava outro chumaço de algodão e esparadrapo.

– Queria ter uma pomada para passar, mas raramente uso, então não trouxe. Mas tenho analgésico e você pode tomar um comprimido para diminuir a dor até a gente chegar ao hospital.

Limitei-me a assentir com a cabeça. Não sabia mais o que fazer. Ninguém jamais se preocupara com meus machucados. E eu tive vários.

– Aliás, meu nome é Mase – disse ele, olhando para mim enquanto enfaixava minha mão.

– Gostei desse nome. Nunca tinha ouvido antes.

Ele riu.

– Obrigado. Você tem um nome?

Ah. Ele estava perguntando qual era o meu nome. Ninguém para quem eu havia trabalhado antes perguntara meu nome. Exceto uma cliente. Mas ela era diferente dos clientes nos outros lugares onde eu trabalhava.

– Sim, tenho. É Reese.


Mase

Ela cheirava a pãozinho de canela. Aquele cheiro doce de creme e canela que faz a gente salivar. Foi difícil não respirar fundo com aquele cheiro. Mas fui capaz de evitar agir feito um psicopata e agarrá-la para enterrar o rosto naquele pescoço. Nunca havia conhecido uma mulher que cheirasse a pãozinho de canela, mas, caramba, aquilo era excitante.

Enfaixei a mão dela e então a conduzi escada abaixo. Ela parecia confusa em relação a alguma coisa, mas não falou muito. Perguntei se ela tinha uma bolsa, ela assentiu e foi pegá-la na mesa ao lado da porta. Não era o que a maioria das mulheres chamaria de bolsa, mas uma mochila azul desbotada. Jogando-a por cima do ombro, ela olhou de volta para a casa com ar preocupado.

– Não terminei de limpar – disse ela, olhando para mim.

– Você não pode faxinar uma casa com um ferimento aberto – argumentei, apontando para a mão dela, incapaz de conter um sorriso.

A testa dela se franziu.

– Não foi tão grave. Eu posso trabalhar assim – disse ela, erguendo a mão enfaixada.

Sacudi a cabeça e abri a porta.

– Não, não pode.

Quando saímos, vi que minha caminhonete tinha chegado. Eu estava aguardando que a entregassem. Ótimo, podíamos ir no meu carro em vez de pegar o dela.

– Onde está o seu carro? – perguntei.

– Não tenho carro.

– Alguém trouxe você? – perguntei, já imaginando que sua resposta seria que o namorado a levara até ali. Droga.

– Tenho um vizinho que trabalha no Kerrington Country Club. Venho com ele e depois caminho até aqui.

Um vizinho.

– Ele não traz você até aqui?

Ela sacudiu a cabeça e me olhou como se eu fosse maluco.

– Não, fica a menos de dois quilômetros. Eu gosto de andar.

– Quem é o seu vizinho? – perguntei.

– O nome dele é Jimmy.

Eu ia ter uma conversinha com Jimmy. Não era seguro alguém com a aparência dela sair pela região sozinha. Rosemary Beach era um lugar seguro, mas havia pessoas que passavam por ali indo de uma cidade para outra.

– Esse Jimmy leva você para casa?

Ela me olhou hesitante. Como se não estivesse segura de que deveria responder.

– Às vezes... Sim, na maioria das vezes.

Por que ela não tinha carro? Devia ter 21 ou 22 anos. Não era uma criança. Tinha um emprego e um apartamento, imaginei.

– E como vai para casa quando Jimmy não leva você? – perguntei, segurando a porta da caminhonete para ela.

Estendi a mão para que ela a pegasse com a que estava boa e a ajudei a subir na cabine.

– A pé – respondeu ela, sem olhar para mim.

Minha nossa.

Olhando para seus chinelos baratos, notei que ela tinha dedinhos com a ponta cor-de-rosa. Até o pé dela tinha que ser sexy? Caramba.

Ela puxou os pés para debaixo do banco e percebi que ela me flagrou olhando para eles. Fechei a porta da caminhonete e fui devagar até outro lado. Essa garota precisava de ajuda, mas eu não podia salvá-la. Eu ficaria aqui por uma semana, talvez duas, antes de voltar para o Texas. Ficar preocupado com os problemas dela não era inteligente.

Meu celular começou a tocar no bolso antes de eu girar a chave no carro e eu sabia que era Harlow. Ela estava me esperando por volta das duas. Olhei o relógio e vi que eram quase duas.

– Oi – atendi, ligando o carro e seguindo em direção à via principal.

– Conseguiu dormir um pouco? – perguntou ela.

Eu podia escutar Lila Kate, sua bebê, reclamando ao fundo.

– Ah, sim – respondi.

Não podia dizer a ela que havia dormido pouco, afinal a razão disso estava sentada ao meu lado.

– Ainda vem aqui às duas? Grant disse que nos daria uma hora e que chegaria às três.

Olhei para a mão machucada de Reese. Aquilo ia demorar um tempo. A sala de espera de uma emergência nunca era algo rápido.

– Aconteceu um acidente esta manhã. A garota que limpa a casa da Nan caiu e cortou a mão. Vou levá-la para dar uns pontos. Pode demorar um pouco até eu chegar.

– Ah, não! – disse Harlow, com a voz preocupada. Era uma das muitas razões por que eu preferia Harlow a Nan. – Ela está bem?

Ela nem estremeceu quando limpei o ferimento com água oxigenada. Caramba, até eu estremeci quando me cortei daquele jeito.

– Parece que sim. Foi só um corte feio. Ela não tem carro, e vou precisar levá-la em casa depois. Talvez só chegue aí no início da noite. Mas você terá o velho Mase pelo resto da semana. Vai enjoar de mim até domingo – garanti.

Harlow riu.

– Duvido, mas tudo bem. Leve o tempo que quiser. Cuide dela e a deixe direitinho em casa. Vou tirar um cochilo com Lila Kate. Ela acordou muitas vezes esta noite. Os dentinhos dela estão nascendo.

– Descanse um pouco então, querida. Vejo você à noite – respondi antes de desligar.

– Você não precisa ficar comigo. Posso pegar um táxi até em casa – disse Reese.

Eu não ia deixá-la levar pontos sozinha e pegar um táxi para casa. Será que eu parecia o tipo de canalha que faria isso?

– Vou ficar com você – eu disse com firmeza.

– Sério, é muito simpático da sua parte me trazer aqui. Mas já tive cortes piores do que este. Eu nem preciso de pontos. Posso simplesmente terminar a faxina e voltar para casa.

O quê? Ela estava falando sério?

– Você vai suturar a mão, e eu vou levar você para casa.

Eu estava frustrado e começando a ficar irritado. Não com ela. Por Deus, quem poderia ficar irritado com uma garota assim, tão bonita? Mas eu estava irritado por ela cogitar que não havia necessidade de tomar pontos.

Desta vez ela não discutiu. Olhei para ela, que estava sentada ereta, o corpo inclinado em direção à porta, como tentasse se afastar de mim. Será que eu a havia assustado?

– Olha, Reese, você estava limpando a casa da minha irmã e se machucou. É responsabilidade nossa garantir que você receba o tratamento necessário. Eu não vou deixar você terminar de limpar a casa hoje, nem amanhã. Pode voltar quando sua mão estiver melhor e não doer. Vou ficar aqui a semana inteira e posso limpar a minha bagunça, ao contrário da minha irmã. Não preciso de uma faxineira.

Ela não olhou para mim, mas assentiu.

Pelo visto, aquela seria a única resposta que eu receberia. Tudo bem. Ela podia fazer beicinho, mas, sinceramente, tudo o que fiz foi exigir que ela me deixasse cuidar da sua mão. Qual era o problema dela?


Reese

O dia não podia ficar mais humilhante. Mase ligou o rádio e não disse mais nenhuma palavra pelo resto do caminho até o hospital. Eu sabia que ele estava ou bravo ou frustrado. Eu estava atrapalhando seu encontro com alguma mulher, mas tentara fazê-lo ir. Só que ele simplesmente não me ouvia.

Quando chegamos à emergência, ele me trouxe um refrigerante enquanto esperávamos, apesar de eu ter dito que não precisava. Até a hora em que fui levada para a sutura, trocamos no máximo cinco palavras. Eu queria dizer de novo para ele ir embora, que eu pegaria um táxi, mas temia que ele ficasse furioso comigo. Eu não conhecia esse homem. Não tinha ideia do que ele seria capaz.

Quando me deram uma injeção, Mase segurou minha outra mão e me disse para apertar se precisasse. O que aquilo queria dizer? Ele estava tentando diminuir a dor? Era só uma injeção. Depois de terminarem a sutura, só cinco pontos, ele continuou segurando minha mão.

Depois ele me contou piadas. Eram meio ruins, mas eu ri. Acho que ninguém tinha tentado me fazer rir antes. Percebi que era a primeira vez que eu escutava uma piada que não era sobre mim. Na escola, ouvi muitas piadas, mas eu era o motivo de todas.

Agora, ele estava estacionando em frente ao meu apartamento. Não havia falado comigo durante todo o trajeto. Mais de uma vez, pareceu que ia dizer algo, mas havia desistido. Acabou ligando o rádio outra vez, e soube que isso significava que ele não falaria mais comigo.

Eu não podia estar magoada com o seu silêncio. Ele deixou de lado seu encontro para me levar ao hospital para tomar pontos. Durante todo o tempo, ele havia sido muito legal – mais do que isso, na verdade, ele fora gentil. Mas agora seus pensamentos se concentravam na garota que esperava por ele.

Eu havia sido chamada de “gata”, “docinho” e “gostosa” no passado, o que ainda me fazia estremecer. Também tinha sido chamada de outros nomes menos desejáveis, mas nunca de “querida”, como ele a chamara. E me perguntei como seria essa sensação. Ter alguém que falasse comigo daquela maneira de forma sincera. Estar certa de que ele não iria me machucar.

Quando ele estacionou a caminhonete, eu sabia que devia agradecer de novo e deixar que ele seguisse seu caminho.

– Mais uma vez obrigada por me trazer, e pelo refrigerante e por... por, hã, segurar minha mão. Eu me sinto muito grata mesmo. Lamento ter arruinado o seu dia. Volto para limpar no domingo. Não tenho nenhuma casa agendada para esse dia. Então você vai embora... certo?

Mase suspirou e olhou para mim.

– Sim, volto para casa no domingo. Pelo menos, esse é o plano. Mas não se preocupe com a casa até sua mão melhorar. Nan só vai voltar daqui a um mês. Ela está em Paris.

Paris. Nossa. Não conseguia imaginar uma viagem a um lugar como Paris. Perguntei-me como seria essa Nan. Se era irmã dele, devia ser linda também.

– Ok, obrigada – falei de novo, sem conseguir parar de agradecer. Peguei minha mochila e abri a porta da caminhonete.

– Espere. Vou ajudá-la a descer – disse Mase, detendo-me.

Ele fizera isso todas as vezes que entrei ou desci do carro. Como se pensasse que eu não poderia simplesmente saltar sozinha sem me machucar. Também, depois do que havia presenciado mais cedo, provavelmente achava que eu era uma estabanada.

Ele estava na minha frente, estendendo a mão outra vez para que eu segurasse. Deixei que me ajudasse porque estava certa de que era a última vez que veria aquele homem. Ele não sabia, mas havia me dado esperanças. E me mostrado que nem todos os homens são maus.

Evitei agradecer de novo e, em vez disso, apenas assenti com a cabeça e segui para o apartamento 1C.

– Reese – chamou, interrompendo meus passos.

Eu me virei e olhei para ele. O sol estava se pondo às suas costas, e eu tive certeza de que nada jamais havia sido tão perfeito em toda a história.

– Você não estragou meu dia. – Foi tudo o que ele disse antes de abrir a porta da caminhonete e subir outra vez.

Eu queria ficar para vê-lo partir. Mas não fiquei.


Na manhã seguinte, minha mão estava latejando. Mas tomei o antibiótico e o analgésico que o médico receitara e me preparei para o trabalho. Eu tinha outra casa para limpar naquele dia em Rosemary Beach. Jimmy havia conseguido aquela faxina para mim porque era amigo dos donos. Eu não ia decepcioná-lo alegando que estava doente.

Jimmy estava de pé diante da minha porta com dois copos de cappuccino para viagem, sorrindo. Ele não era apenas legal, era lindo. E sabia disso. Era estranho que eu não o visse como um cara normal. Ele era mais como uma amiga, a primeira que eu tinha. Disse isso para ele uma vez, e ele caiu na gargalhada.

Ele também tinha uma máquina de cappuccino em casa. Eu estava começando a amar aquela máquina.

– Bom dia, maravilhosa. Aqui está o néctar para despertá-la – disse ele, me entregando o copo. Comecei a estender a mão machucada e me detive. Usei a mão boa, mas os olhos de Jimmy já estavam fixos na outra, enfaixada. – Garota, o que aconteceu?

Soltei um suspiro, detestando lembrar a confusão que havia criado no dia anterior.

– Caí limpando uma janela, quebrei um espelho na queda e cortei a mão. – Não queria dar detalhes. Ergui a mão machucada. – Cinco pontos. O irmão da dona da casa me deu uma carona até o hospital.

Jimmy se encolheu.

– Ai. Tem certeza de que vai poder fazer faxina hoje? Isso deve estar doendo.

– Eu estou bem. Vou ser um pouco mais lenta, mas pode apostar que não vou voltar a subir em cadeiras para limpar janelas – brinquei.

Ele não sorriu, apenas balançou a cabeça.

– Você é uma figura, Reese Ellis. Vamos lá, vamos levar esse seu belo traseiro até os Carters. Também tenho um outro contato para você. Blaire Finlay é uma amiga minha, e ela quer contratar uma nova faxineira. A dela está se aposentando e ela quer alguém jovem. Ela tem um filhinho. Estava ficando difícil para a faxineira deles dar conta das bagunças do pequeno. O bebê é uma gracinha. – Peguei o número que ele me deu. – Ligue para ela. É uma querida. Você vai adorá-la.

Outro trabalho que eu conseguia sem usar a agência. Isso era ótimo. Com clientes que eu mesma encontro, fico com o valor integral.

– Obrigada, Jimmy – disse, guardando o número no bolso. – Vou ligar para ela assim que minha mão melhorar. Não quero aparecer com a mão enfaixada.

Jimmy sorriu, e seu rosto de anjo se iluminou ainda mais.

– Para todos os efeitos, ela é na verdade cunhada de Harlow Carter.

Isso não fazia sentido. O que ele queria dizer com “para todos os efeitos”? Imaginei que aquilo não importava. Além disso, eu gostava muito da Sra. Carter. Ela frequentemente estava em casa quando eu fazia a faxina, pois tinha um bebê, portanto eu havia conversado com ela várias vezes. Ela sempre tentava me fazer parar para almoçar com ela. Eu tinha certeza de que ia gostar de trabalhar para a cunhada dela também.

– Preciso trabalhar em um evento beneficente no clube hoje à noite. Não estarei livre antes da uma da madrugada. Queria que você pegasse um táxi para casa. Ainda mais com essa mão machucada. Depois da faxina nos Carters, você vai estar cansada. E provavelmente com dores.

Tínhamos essa discussão todas as vezes que ele precisava trabalhar até tarde. Ele sempre queria que eu pegasse um táxi para casa, mas morávamos a treze quilômetros do clube, logo depois de Rosemary Beach e a umas poucas ruas da costa. Eu havia ido a pé para a escola, para a biblioteca e para o mercado minha vida inteira. Estava acostumada a caminhar para chegar aos lugares. Se queria ir a algum lugar, eu tinha que andar.

Provavelmente eu agora podia comprar um carro, mas não conseguiria passar no teste escrito. Pedi que minha mãe me ajudasse certa vez, mas fora um grande erro. Ela fez questão que eu entendesse que pessoas preguiçosas e burras não deviam dirigir. Era perigoso para as outras pessoas. Eu tinha tentado ler duas vezes o manual para o teste escrito, mas era inútil. As palavras nunca faziam sentido para mim.

E por esse motivo eu sabia que minha mãe, meu padrasto e todas as crianças da escola tinham razão: eu era burra. Só podia ser. Meu cérebro não funcionava como o de todo mundo. Eu tinha 22 anos e ainda ia à biblioteca pegar livros ilustrados para tentar lê-los.

– Aposto que Harlow daria uma carona para você depois do trabalho, se pedisse. Eu vou pedir a ela. Ninguém é mais doce do que Harlow Carter.

Eu não ia pedir a ela que me levasse em casa.

– Está tudo bem. Vou pensar sobre chamar um táxi. Prometo – eu disse, sabendo que pensaria, mas não chamaria.


Mase

Eu acabei não indo à casa de Harlow na noite anterior. Voltei para casa e limpei os cacos do espelho, então liguei para ela e lhe expliquei que estava exausto. Ainda tinha sono para botar em dia. As poucas horas que dormi naquela manhã não foram suficientes.

Ao acordar no silêncio dessa manhã, eu havia experimentado um estranho sentimento de perda. O que foi estranho, considerando que Reese cantava pessimamente. Eu não planejava ver a garota outra vez. Mesmo que eu não fosse embora no domingo, não estaria ali quando ela viesse. Sentia uma necessidade de resolver todos os problemas dela. O que era uma idiotice. Ela estava se virando bem sem mim. Mas algo naqueles olhos enormes... Caramba, a quem eu estava enganando? Não havia uma única parte do corpo dela que não estivesse gritando por atenção. E eu queria dar a ela toda aquela atenção.

Uma mulher como aquela tinha que ter um homem. Não fazia sentido que não tivesse.

Estacionei na frente da casa de Harlow e tirei Reese dos meus pensamentos, tentando deixar o dia anterior para trás. Sim, eu achava que merecia um maldito troféu por não ter beijado aqueles lábios carnudos, mas isso agora estava no passado.

A porta da frente se abriu, e Harlow veio correndo, sorrindo feito uma garotinha. Em minha cabeça, ela sempre seria minha irmãzinha. Ainda conseguia ver suas tranças e o espaço entre os dentes da frente quando ela sorria para mim. Ela também tinha sardas no nariz naquela época. Ela havia precisado de mim por muito tempo e eu tinha cuidado dela. Mas agora era Grant Carter quem fazia isso.

– Você chegou! – gritou ela se jogando nos meus braços.

Ri do entusiasmo dela e a abracei enquanto ela beijava minha bochecha.

– Desculpe não ter conseguido vir ontem. Foi um longo dia – disse, me sentindo culpado.

– Tudo bem. Planejei nosso dia inteiro. Lila Kate está dormindo, e a faxineira que Grant insiste que a gente precisa está limpando lá em cima. Aliás, nem quero começar esse assunto. Ele não gostava que eu limpasse a casa enquanto Lila Kate dormia; acha que eu devia dormir também e descansar mais. Ele não quer que eu limpe a casa.

Ela revirou os olhos, como se ele fosse ridículo. Mas eu concordava com ele. Harlow tinha um problema cardíaco que quase a tirara de nós. A lembrança de que por pouco não a perdemos durante o parto ainda estava fresca. Lila Kate já tinha vários dias quando Harlow abriu os olhos.

– Ele tem razão – respondi simplesmente, e Harlow riu de mim.

– Vamos entrar. O brunch está pronto. Tenho assistido ao canal de programas culinários enquanto dou mamadeira a Lila Kate no meio da noite, então comecei a cozinhar. Está virando um vício.

Segui casa adentro com Harlow, que tagarelava alegremente. Ao escutar aquela alegria em sua voz e ver a felicidade brilhando em seus olhos gostei ainda mais de Grant Carter. No início, eu não estava convencido, mas o cara havia me ganhado. Ele fazia minha irmã feliz. Ele a adorava do jeito que ela precisava ser adorada.

– Voltei, Reese. Não precisa ficar de olho na Lila Kate. Estou com a babá eletrônica agora. Obrigada! – Harlow gritou no pé da escada.

No momento em que o nome “Reese” penetrava meu cérebro, olhei para cima e vi aqueles olhos azul-bebê me fitando, arregalados e surpresos. Caramba. Aquela história de que eu nunca mais a veria tinha acabado.

– Reese, este é Mase, meu irmão. Mase, esta é Reese. A melhor faxineira do mundo. Tenho que agradecer a Jimmy por me indicá-la.

Eu a vi cobrir o curativo com a mão boa enquanto forçava um sorriso tenso, nervoso. Ela estava trabalhando com a mão naquelas condições. Que droga. Ela não ouviu nada do que eu disse? Era teimosa demais. Os pontos deviam estar ardendo muito.

– Ela também é superdedicada, pois está limpando sua casa com cinco pontos recém-suturados na palma da mão. Sua tolerância à dor é realmente impressionante, Reese – falei.

– O quê? – arquejou Harlow. – Ah! Reese também trabalha para Nan? – Harlow voltou o olhar para Reese. – Você está fazendo faxina depois de ter cortado a mão ontem? Por que não me disse? Eu não teria esperado que você viesse hoje. Precisa descansar a mão. Os pontos podem abrir outra vez – censurou-a Harlow.

Observei Reese endireitar os ombros e esconder a mão enfaixada às costas, como se isso resolvesse o problema.

– Eu estou bem. Juro. Acordei de manhã, e a mão não estava doendo nada. Bom, talvez um pouquinho, mas tomei o remédio e me senti melhor. Estou quase acabando com o andar de cima. Não demora mais do que umas três horas.

Harlow sacudiu a cabeça.

– De jeito nenhum. Você vem comer com a gente e depois Mase vai levá-la para casa. Não quero que volte aqui até a semana que vem, no mínimo. Não pode trabalhar com a mão assim.

Pude ver a frustração no rosto de Reese, mas ela não ia discutir com Harlow.

– Está bem. Só me deixe colocar as toalhas dobradas no seu banheiro e então eu desço.

Caramba, mulher.

– As toalhas estão ótimas onde estão. Harlow pode guardar as toalhas sozinha. Desça.

Aquilo soou como uma ordem. Mas ela estava testando minha paciência.

Ela acenou com a cabeça positivamente de forma tensa e desceu as escadas devagar. Hoje não estava de short, mas usava uma legging que terminava logo abaixo dos joelhos e era justa em seu corpo feito uma luva. Desejei que a maldita camiseta não fosse tão grande, assim eu poderia ver sua bunda naquela roupa.

– Desculpe se ele parece tão mandão. Ele sempre foi mandão. É essa coisa de macho-alfa que ele tem – disse Harlow quando Reese parou à nossa frente. – Venha, vamos comer. Tem alguns pratos que eu preparei pela primeira vez. Mal posso esperar para saber o que vocês vão achar.

Observei Harlow dirigir-se para a cozinha e esperei até ela estar longe o suficiente para olhar de novo para Reese.

– Deixe-me ver sua mão – pedi suavemente, tentando fazê-la relaxar.

Era óbvio que eu a deixava nervosa quando ficava frustrado.

Ela começou a argumentar. Pude ver a contrariedade em seus olhos, mas acabou cedendo e estendendo a mão para mim. Desenfaixei cuidadosamente e observei a pele rosada e enrugada. Não estava infeccionada, mas estava maltratada pelo trabalho. Ela precisava de gelo e pomada.

– Vou pegar gelo para você. Venha – falei, segurando seu pulso e puxando-a para que fosse na frente.

– Preferia que você não pegasse. Harlow vai se sentir mal por eu ter limpado a casa dela hoje.

Ela estava preocupada com Harlow. Por que isso não me surpreendia?

– Está tudo bem. Harlow vai preferir que você se cuide.

Ela entrou na cozinha e foi para a mesa, onde Harlow gesticulou para que se sentasse.

Minha visita descontraída a Harlow tinha acabado de se transformar em algo totalmente diferente. Fui até o freezer e arranjei um saco de gelo. Harlow sentou-se à mesa diante de Reese, mas eu podia sentir os olhos dela em mim. Minha irmã estava vendo mais do que existia na verdade.


Reese

Foi muito constrangedor.

Harlow era a “querida” com quem ele estava conversando na noite anterior. Isso eu entendi. Ela falou algo sobre ele não ter conseguido ir vê-la ontem à noite, o que me fez sentir culpada. E agora ali estava eu outra vez, atrapalhando a visita dele. Mase obviamente adorava a irmã, e ela o adorava. Eu não tinha irmãos e nenhuma ideia de como devia ser esse sentimento.

– Kiro ligou para você? – perguntou Mase, olhando para a irmã antes de pegar o sanduíche no prato e morder.

Ela sorriu, tensa, e assentiu.

– Sim. Não está sendo fácil para ele ficar longe.

– Estou surpreso que ele tenha conseguido por tanto tempo. Você vai visitar sua mãe?

Harlow franziu a testa e olhou para o prato. Algo definitivamente não estava bem. Ela tinha problemas com a mãe, assim como eu? E ele tinha dito “sua” mãe. Será que eles tinham mães diferentes?

– Ele tem medo de que eu possa perturbá-la se ele não estiver presente. Acha que é melhor eu esperar até ele voltar.

Mase deixou escapar um grunhido irritado. Ele não parecia satisfeito com a resposta dela. Então olhou para mim.

– Você está bem? O gelo está ajudando?

Assenti com a cabeça.

– Não vamos falar do papai agora. É grosseiro conversar sobre assuntos de família com uma convidada aqui – disse Harlow, com um sorriso que não combinava com seu olhar. Alguma coisa que Mase dissera a incomodou.

– O pai de vocês tem um nome bacana – afirmei, esperando aliviar parte da tensão que subitamente surgira no ar. – O único Kiro de que ouvi falar é Kiro Manning. Nunca soube de outra pessoa com esse nome.

Harlow e Mase se olharam e então um sorriso verdadeiro se abriu no rosto dela.

– Eu também nunca ouvi falar de outra pessoa com o nome Kiro. Exceto, claro, Kiro Manning.

Eu tinha começado a concordar educadamente, quando a ficha caiu. Não... espera aí. Não...

– Acho que não falei meu nome todo quando me apresentei – disse Mase, com um sorriso.

Ah, espera aí. Vasculhei o meu cérebro. Houve algo no noticiário, mais ou menos na época em que saí de casa, a respeito da mulher e da filha de Kiro Manning. Na época eu nem sempre tinha acesso à TV.

– Você não se liga muito em TV, não é? – disse Mase, com um sorrisinho provocador, e tomou um gole de refrigerante.

Eu não ia explicar a ele por que eu não via muita TV. Só balancei a cabeça.

– Não, não muito, nunca.

Harlow suspirou, e então riu suavemente.

– Alguém que não sabia quem eu sou, e agora você estragou tudo, Mase.

Percebi que ela estava brincado. Apenas sorri e tentei encaixar em minha cabeça o fato de que estava sentada à mesa com os filhos de Kiro Manning. Em que mundo aquilo estava acontecendo? Meu constrangimento se potencializou, e eu só queria sair dali. Eu não estava apenas interrompendo uma reunião de família, mas uma reunião de família de um astro do rock. Ah, Deus, isso era muito constrangedor.

Olhei para os dois sentados ali, tão legais, com seus sorrisos fáceis. Pareciam uma família normal e feliz. Não pareciam ser o que se espera dos filhos de uma lenda do rock.

– Eu preciso ir. Eu... Minha mão está começando a incomodar, e deixei o remédio em casa. Muito obrigada pelo brunch, prometo recuperar esse tempo na semana que vem. Vocês dois aproveitem a comida, e não precisam me acompanhar até a porta – falei, antes que pudessem me deter. Então me levantei e dirigi mais um sorriso a eles antes de deixar a cozinha, tão calma e rapidamente quanto possível.

Mal tinha posto o pé para fora quando senti uma mão forte segurar meu braço.

– Não tão rápido. Se você quer ir, eu a levo. Você não vai a pé.

Mase não estava segurando meu braço forte o suficiente para me deixar em pânico, mas a pegada firme fez meus batimentos cardíacos acelerarem. Eu não gostava de ser agarrada. Consegui controlar minha reação.

– Eu... hã, está bem. Ok. Obrigada. – Era cansativo discutir com esse homem. Ele ganharia. Era melhor eu ceder.

Ele pareceu satisfeito com o fato de eu não discutir. Pousou a mão nas minhas costas para me guiar até sua caminhonete. Fui à frente dele, rápido o bastante para evitar o contato com sua mão. Eu não gostava de ser tocada. E, daquele jeito, menos ainda. Embora lembrasse a mim mesma do quanto não gostava de ser tocada, aquela sensação quente e formigante em minhas costas, onde a mão dele pousara, não desaparecia. Não era uma sensação desagradável, apenas nova. Muito nova. Nunca tinha acontecido, até agora.

Mase abriu a porta da caminhonete antes que eu pudesse alcançar a maçaneta e pegou minha mão para me ajudar a subir. Outra vez eu estava no carro dele, mas agora eu sabia mais sobre ele. Era um irmão bom e querido. Adorava a irmã. E era filho de Kiro Manning.

Minha nossa, que loucura.

Quando ele já estava atrás do volante, olhei para ele. Seu corpo alto e musculoso estava coberto com uma camisa de flanela e um jeans desbotado e detonado. Suas coxas preenchiam bem o jeans, e dava para ver os músculos se flexionarem.

– Quando chegar em casa, ponha no machucado um pouco daquela pomada que compramos ontem. Isso vai amaciar a pele em volta e diminuir a dor.

– Farei isso – assegurei.

Ele assentiu e pegou os óculos de sol que tinha guardado no quebra-sol e os colocou. Como alguém podia parecer sexy colocando óculos escuros? Até aquele momento, eu não achava que isso fosse possível.

– Você precisa ligar para o Jimmy e avisar que já tem carona?

Fiz que não com a cabeça.

– Não, eu ia voltar para casa andando. Ele precisa trabalhar esta noite.

Mase fez uma careta.

– Existem táxis por aqui, sabia?

Olhei para a atadura e mantive a cabeça baixa. Não queria contar a ele a história da minha vida para explicar por que era desnecessário pegar um táxi. Eu gostava de caminhar. Era o que eu sempre fizera.

Mase suspirou quando não respondi.

– Você vai trabalhar amanhã? – perguntou.

Eu não tinha faxina no dia seguinte. Era quando eu aproveitava para ir à biblioteca trocar meus livros. E caminhar na praia, limpar meu apartamento e ir ao mercado. Era o tempo que eu tinha para mim mesma.

– Não. Eu não trabalho amanhã.

– Ótimo.


Mase

Dois dias depois de levar Reese até a casa dela, eu ainda estava pensando nela. Preocupado com sua mão e com o fato de ela ir para todos os lugares andando. Estava tentando furiosamente tirar aquilo da cabeça. Ela não era responsabilidade minha.

Harlow me entregou Lila Kate depois de tirá-la da cadeirinha no carro. Segurei aquele pequeno milagre com muito cuidado, porque ela ainda era muito pequena. A maneira como Grant pairava sobre a filha, como se ela fosse se quebrar, me fazia pensar que isso era bem possível. Eu tomava todo cuidado.

– Leve ela, por favor? Eu vou pegar a bolsa de fraldas – disse Harlow, pegando a bolsa repleta de apetrechos de Lila Kate.

A bolsa era maior do que a bebê.

– Só estamos indo almoçar com os Finlays. Ela precisa mesmo de tudo isso para as duas horas em que estaremos fora? – perguntei, duvidando que Lila Kate precisasse de uma bolsa tão grande.

Harlow apenas sorriu e passou a alça sobre o ombro, antes de trancar o caríssimo SUV que nosso pai dera de presente quando Lila Kate nasceu.

– Vamos.

Segui Harlow até a entrada.

– Por que a gente não chamou o manobrista? – perguntei, pensando que teria sido mais fácil.

– Porque demora muito até eu botar Lila Kate e todas as coisas dela no carro. Eu detesto ficar retendo a fila.

Olhei para o manobrista e não havia ninguém esperando. Mas não falei nada.

– Boa tarde, Sra. Carter e Sr. Manning – disse o sujeito à porta ao abri-la para entrarmos.

Eu não era sócio do Kerrington Club, mas Harlow, Rush, meu pai, o pai de Rush e, claro, Nan eram. Acho que as pessoas supunham que eu fosse também.

– Sra. Carter, o Sr. Finlay e a esposa já estão sentados no salão dos fundos. Vocês terão privacidade – disse a recepcionista, antes mesmo que chegássemos a ela.

Então a seguimos pelo salão de jantar até outro salão com três paredes de vidro e vista para o golfo e as quadras de tênis.

Blaire se levantou imediatamente e veio até mim. Mas ela não estava vindo por minha causa. Eu sabia disso.

– Dê ela para mim – Blaire quase guinchou, esticando os braços para Lila Kate.

– Oi, Mase! – disse Nate Finlay, levantando-se da cadeira e acenando para mim.

A cada vez que eu o encontrava, o menino estava mais parecido com o pai.

– Oi, rapazinho! – fui até ele para cumprimentá-lo com o punho cerrado.

– A’aasa! – disse Nate.

Então ele fez um barulho com a boca, como se algo estivesse de fato explodindo, e abriu a mão.

– Isso é coisa do tio Grant – disse Blaire, rindo.

Eu fiz um barulho semelhante e me sentei em frente a Nate e Rush.

Rush sorria como se Nate fosse a coisa mais divertida do mundo.

– Agora sente direitinho. De pé, não. Lembra? – corrigiu ele. Nate se deixou cair, e Rush desarrumou seu cabelo, olhando para mim em seguida. – Está curtindo a visita? – perguntou Rush.

– Sim. É ótimo ver Harlow tão bem. E feliz.

Rush concordou com a cabeça.

– Grant também. Ultimamente ele só faz sorrir.

– Que bom que eu não moro aqui. Vocês estão com a cara ótima, mas estão caindo feito peças de dominó. Você, Woods, Grant e agora Tripp. – Reclinei-me e sorri. – Deve ser alguma coisa na água, então não posso ficar por muito tempo. Ainda não estou pronto.

Rush riu e olhou para Blaire, que estava arrulhando para Lila Kate. Blaire era uma beleza. Não havia a menor dúvida. Quando Rush decidiu sossegar, escolheu uma beldade. Mas, mesmo assim, não era algo que eu desejasse. Pelo menos não ainda. Eu só tinha 25 anos. A vida em família não podia ser só um mar de rosas, como esse bando fazia parecer.

– Você só não a encontrou ainda – disse Rush, olhando para Blaire. – Quando encontrar, não terá nenhuma importância o que você pensa agora. Ela será tudo o que você deseja no mundo.

Eu tinha certeza de que era assim que ele se sentia, mas eu trabalhava com cavalos em um rancho o dia inteiro. Não havia muito tempo para mulheres ou interações com o sexo oposto. Estava muito ocupado ganhando a vida e construindo meu próprio negócio. Claro que eu tinha necessidades. Mas havia uma amiga que cuidava dessas necessidades, sem compromisso. Funcionava bem para nós. Durante a maior parte da minha vida, Cordelia viveu no rancho mais próximo. E nos entendíamos muito bem.

– Ah, Rush, ela é perfeita. Acho que quero uma menina. Não sei por quanto tempo vou conseguir esperar – disse Blaire, beijando o nariz de Lila Kate.

– Gata, quando você estiver pronta para outra, fazer isso acontecer será meu primeiro objetivo de vida – disse ele, piscando para a mulher.

As bochechas de Blaire ficaram rosadas, e ela tentou olhá-lo de cara feia, mas não conseguiu.

– Bem, vejam só a mesa que me deram hoje. Imaginei que deviam ser vips, porque a missão veio para mim – disse uma voz masculina.

Ao me virar, eu o vi sorrindo para Blaire. Ele se inclinou sobre Lila Kate.

– Oi, doçura! Você está sem o seu papai corujão hoje. Talvez eu até tenha a chance de pegar você um pouquinho – disse ele.

– Oi, Jimmy – chamou Nate, acenando, e depois estendeu o pequeno punho cerrado.

Jimmy conhecia a brincadeira e também fez a explosão com ele.

– Quer uma Coca, mano? – perguntou a Nate, que concordou. – O que posso trazer para o restante de vocês? – perguntou Jimmy.

Ele voltou até Blaire, anotou o pedido dela e percorreu a mesa, fazendo o mesmo com os outros.

Quando ele se virou para levar os pedidos, Harlow chamou:

– Jimmy, você é amigo da Reese, certo?

Voltei a atenção para minha irmã, a fim de ver o que ela ia dizer. Ela havia me questionado sobre Reese casualmente, e eu sabia que ela estava em busca do motivo de eu ajudá-la. Mas eu tinha posto fim àquilo. Ou achei que sim.

Jimmy abriu um sorriso.

– Ela é minha vizinha e nova parceira para ver Game of Thrones.

– Não foi ela que você me recomendou para limpar minha casa? – perguntou Blaire.

– Isso. Ela mesma – replicou ele.

Harlow olhou para Blaire.

– Ela é maravilhosa. Você vai gostar muito dela. – Então minha irmã olhou de volta para Jimmy. – Eu estava querendo saber sobre a mão dela. Está tudo bem?

O sorriso de Jimmy desapareceu.

– Ela está bem. Mas foi trabalhar hoje. Eu poderia ter dado uns tapas naquele traseiro sexy. Ela é teimosa. Acho que não tem família. Caramba, acho que ela não tem nem amigos. Ela me disse há algumas semanas que eu era sua primeira amiga. Mas na hora a gente estava tomando uma garrafa de Chardonnay, então podia ser influência do vinho. Mas, independentemente disso, ela é uma boa moça. Um doce. Não consigo entender por que está solteira. Deus sabe que todo cara interessante do nosso prédio tentou alguma coisa com ela. Até os casados. – Ele balançou a cabeça, desgostoso.

– Que triste – disse Blaire, desanimada. – Ser sozinha não é fácil. Que bom que ela tem você.

Jimmy piscou para Blaire antes de se virar e sair.

Senti um aperto no peito. Tentei me livrar dele e me concentrar na conversa ao redor. Mas a ideia de Reese ser sozinha, sem família, me incomodava. Ninguém, exceto Jimmy, se preocupava com ela. Como isso era possível? A mulher podia parar o trânsito sem querer. Meu Deus, tinha homens casados dando em cima dela.

Eu poderia pensar que ela talvez gostasse de garotas, mas vi o jeito como ela olhou para o meu peito nu. Não sou bobo. Ela não queria olhar, mas tinha olhado mesmo assim.

Quando Jimmy veio recolher os pratos, vi a mente de Harlow funcionando. Ela também estava preocupada com Reese.

– Você sabe como Reese vai voltar para casa hoje depois do trabalho? Você vai levá-la? – Harlow questionou Jimmy.

Ele franziu a testa e colocou outro prato na pilha em seu braço.

– Não, ela tinha uma casa menor hoje. Provavelmente já terminou e está a caminho de casa.

Harlow virou-se para mim.

– Você pode ir procurá-la e levá-la em casa? Lila Kate e eu podemos ficar aqui e comer a sobremesa.

Eu já estava me levantando antes que ela terminasse a pergunta.

– Reese não lida bem com os homens. Eles a deixam nervosa. É muito gentil da sua parte mandar Mase, mas ela simplesmente não vai entrar no carro com ele – disse Jimmy, olhando para mim com cautela.

– Está tudo bem. Ela já conhece Mase. Ele a levou para tomar os pontos na mão e também outro dia, saindo da minha casa – assegurou-lhe Harlow.

Observei a expressão de Jimmy quando ele voltou o olhar para mim. Seus olhos se arregalaram, e ele sorriu.

– Bem, ao menos ela tem bom gosto. Já estava na hora – murmurou ele.

– Ignore o Jimmy. Ele é um romântico. Inventa coisas do nada. Vá lá e dê uma carona para ela. Por favor – implorou Harlow.

Ela estava preocupada que eu não fosse por causa do comentário de Jimmy.

Olhei para ele.

– Queria conversar com você sobre essas caminhadas dela. Isso precisa parar. Leve ela até as casas em que trabalha. Não a faça caminhar desde o clube.

Os olhos de Jimmy se arregalaram, mas eu não esperei pela resposta. Sabia que os outros tinham me escutado e sabia o que eles estavam pensando. Mas eu não me importava. Seria preciso mais do que isso para me impedir de ir ver Reese outra vez. Ela precisava de mim. Caramba, ela precisava de alguém. E que se dane: eu queria estar lá para ajudá-la.

Era culpa da minha mãe. Ela havia me criado para ser assim. Essa era a única desculpa que eu tinha.


Reese

Não vi o utilitário luxuoso ao meu lado até escutar uma voz grave e familiar chamar meu nome. Parei e olhei quando Mase estacionava atrás de mim. Não esperava vê-lo de novo.

O modo como meu coração disparou e começou a bater violentamente no peito me surpreendeu. O que havia nesse homem que me fazia sentir coisas que eu achava que eram impossíveis para mim?

– Entre – disse Mase, passando pela frente do carro para abrir a porta do carona.

A verdade é que eu não queria discutir com ele. Ele estava aqui e eu teria a chance de estar perto dele por alguns minutos. Eu ia aproveitar.

Deixei meus olhos passarem por seu traseiro delineado pelo jeans e observei a maneira como a camiseta azul-marinho que ele usava agarrava-se ao seu corpo, incapaz de esconder todos aqueles músculos definidos. O cabelo dele estava preso, mas os cachos nas pontas faziam os fios parecerem desarrumados e convidativos ao toque.

Quando ele começou a se virar para mim, voltei à realidade e me apressei até ele.

– Obrigada – respondi, subindo no carro.

Ele não me ajudou desta vez, mas esse carro não era tão alto quanto a caminhonete. Era o carro de Harlow. Sabia que parecia familiar, mas o assento do bebê no banco de trás era definitivamente o de Lila Kate. Eu já o tinha visto.

Mase fechou minha porta, e eu contemplei sua beleza masculina quando ele passou pela frente do veículo, prendendo um fio de cabelo solto atrás da orelha. A barba estava novamente por fazer, e concluí que eu gostava mais quando ele não se barbeava.

– Você trabalhou hoje – disse ele, olhando para minha mão. – Está melhor?

Estava. Muito melhor. Eu não havia tido muitos problemas com ela hoje. Usei luvas de borracha e pude fazer a faxina sem que o corte me fizesse ir mais devagar.

– Sim – respondi. – Você estava indo a algum lugar?

Ele sacudiu a cabeça negativamente e ligou o veículo, voltando para a rua.

– Não. Acabei de almoçar no clube. Jimmy comentou que você trabalhou hoje e que estava voltando para casa a pé – explicou ele.

Então Mase viera para me procurar? Se ele estivesse indo para a casa dos Carters, teria dobrado algumas quadras antes. Senti o estômago se agitar.

Antes que eu pudesse pensar em algo para dizer, um telefone começou a tocar. Mase se esticou e puxou um smartphone do bolso.

– Oi, tudo bem? – disse ele ao atender, parecendo preocupado. – Claro. Estarei de volta até lá. Acho que posso encaixar. Eles disseram por quanto tempo precisam ser tratados?

Tentei não olhar para o rosto dele enquanto ele se concentrava na estrada e na conversa ao telefone.

– Sim, pode me passar – prosseguiu ele, e então se esticou e abriu o porta-luvas. – Veja se tem uma caneta aí, Reese.

Fiz rapidamente o que ele pediu, encontrei uma caneta preta e a entreguei a ele. Mase me devolveu a caneta e pegou um pedaço de papel no console entre os bancos.

– Aqui, escreva para mim – disse ele.

Ah, não. Isso não.

Ele veria o que escrevi. Eu tinha dificuldade para escrever coisas ditadas. Eu precisava me concentrar. Minhas letras ficavam tortas e eu frequentemente entrava em pânico quando pressionada para escrever em pouco tempo. Eu tinha de ficar sozinha e me concentrar.

– Três, três, três – começou ele, e eu rapidamente escrevi os números. Aquilo eu conseguia. Não era difícil. – Berkley Road – acrescentou ele, e meu coração começou a bater tão forte que eu não conseguia ouvir mais nada. – Fort Worth – prosseguiu, antes que eu conseguisse escrever o B, ou o que eu pensava que era um B. Minhas mãos tremiam tanto que eu não sabia se conseguiria continuar.

Respirei fundo e tentei com todas as forças me controlar. Berkley. Já tinha o B. Então vinha o E. Comecei a escrever o E e ele pareceu um 3, como os que eu tinha escrito antes. Parei e olhei de novo os números 3. Por que eles se pareciam?

O olhar dele estava fixo em mim. Um suor frio tomou todo o meu corpo e eu me forcei a continuar. A próxima letra era um R. Pisquei rapidamente, enquanto as letras que eu tinha escrito se retorciam, e minha cabeça começava a latejar.

– Me mande por mensagem – eu o ouvi dizer.

Sabia que não estava falando comigo.

Fechei os olhos com força, desejando apenas pular daquele veículo em movimento. Aquilo não estava acontecendo. Eu morava aqui havia quase um ano, sem que ninguém soubesse que eu era burra. Aquele estigma tinha ficado para trás. Usara o corretor ortográfico do computador de Jimmy para preencher meu formulário de inscrição para a agência de limpeza.

A força com que eu segurava a caneta tinha deixado as juntas dos meus dedos brancas, e eu olhava para elas com lágrimas de frustração se acumulando em meus olhos. Agora Mase Manning sabia que eu era burra. De todas as pessoas que poderiam ter descoberto isso, por que tinha que ser justamente ele? O universo me odiava.

Mase estendeu a mão e tirou a caneta de mim. Deixei que ele a pegasse. Ele então a jogou no porta-luvas e o fechou. Eu não conseguia olhar para ele. Ele não disse nada, e eu me recusava a encará-lo. Veria pena ou, pior, desprezo.

O carro parou, eu respirei fundo e levei a mão à maçaneta da porta. Eu ia simplesmente sair correndo. As chances de ver aquele homem outra vez eram pequenas ou nulas. Ele não disse nada quando desci do carro. Isso doeu, apesar de eu me sentir agradecida. Ele não ia abrir a porta para mim nem me dizer adeus. Estava me deixando fugir, como a idiota que eu era.

Sem olhar para trás, me pus a procurar a chave do apartamento na mochila.

Minha mão tremia tanto que eu não conseguia colocar a chave na fechadura. As lágrimas borravam minha visão e eu deixei escapar um soluço de frustração antes de tentar abrir a porta outra vez.

De repente, a mão dele cobriu a minha e eu o vi tirar a chave de mim. Não resisti. Fiquei ali de pé, horrorizada e confusa, enquanto ele destrancava e abria a porta. Por que ele tinha saído do carro?

Não me mexi. Estava paralisada. Então a mão dele tocou as minhas costas, e ele gentilmente me conduziu para dentro. Incapaz de pensar por mim mesma, entrei. Ele manteve a mão na parte inferior das minhas costas até estarmos dentro do apartamento e a porta se fechar suavemente. Ele entrara atrás de mim. E ia me fazer perguntas. Perguntas cujas respostas ele já sabia. Eu havia provado no carro que meu cérebro não funcionava direito. E ele vira. Agora eu só precisava que ele fosse embora.

– O que aconteceu? – A voz dele era gentil e afável.

Não havia nada de desagradável na pergunta dele. Eu quase me senti segura. Quase.


Mase

Meus pensamentos estavam confusos enquanto eu tentava freneticamente entender o que havia acontecido no carro. Eu nunca tinha visto alguém agir assim antes. Foi difícil dirigir vendo Reese lutar para escrever um simples endereço. Eu não havia percebido que ela estava tendo problemas até ela soltar um leve grunhido de pânico, como se não conseguisse respirar.

Eu havia olhado para o rosto dela e a vira empalidecer. Baixando os olhos para o papel, vira três letras E, em vez de três 3. Seu B invertido fora suficiente para eu perceber que algo estava errado. Ela devia ter uma explicação. Uma que fizesse sentido.

– Eu sou burra... Eu... Meu cérebro não funciona direito. Frequentei a escola por doze anos e mesmo assim não me formei. Não consigo passar num teste. Eu não... eu não sei nem ler. Não muito.

Merda.

Ela levantou a mão para secar as lágrimas, e seus lábios cheios estavam crispados. Ela era linda mesmo chorando.

– Você não é burra – retruquei, irritado.

Detestei ouvi-la falar assim de si mesma. Havia algo errado com ela, mas ela não era burra.

Ela soltou uma risada triste e continuou a secar as lágrimas.

– Você deve ser a primeira pessoa que sabe disso e não me acha burra.

Meu corpo ficou tenso e um redemoinho de fúria se formou em meu peito.

– Alguém disse que você era burra? – perguntei, incapaz de impedir que a emoção transparecesse em minha voz. Eu estava furioso.

Ela se empertigou e então olhou para mim com cautela.

– Sim – disse baixinho.

– Quem?

Ela me observou por um instante. Pelo menos minha reação havia interrompido suas lágrimas.

Aqueles olhos enormes sugavam a gente, mas, úmidos e vermelhos de chorar, eram ainda mais mortais. A gente tinha vontade de fazer o que fosse necessário para fazê-los brilhar num sorriso.

– Meus pais, professores, outras crianças... todo mundo – respondeu ela. – Mas eu sou. Você só não sabe...

Sua voz falhou e ela pareceu completamente desesperada e abatida. Seu tom de voz me disse que aquilo não era fácil para ela. Eu me perguntei se alguém com que ela se relacionava sabia disso.

– Então eles são uns idiotas. Estive com você tempo suficiente para saber que você é inteligente. Você se sustenta sozinha e tem um emprego. Uma pessoa burra não seria capaz disso tudo.

Ela franziu a testa outra vez e cruzou os braços sobre o peito, como se estivesse se protegendo.

Que tipo de pais fariam isso com a filha? Ela deve ter sido uma criança linda. Do tipo que as pessoas querem ficar observando só para vê-la sorrir. Puxa, eu gostava até quando ela fazia beicinho.

– Por favor, não conte para ninguém – sussurrou ela, olhando para mim.

Ela achava mesmo que eu faria uma coisa dessas? Corri a mão pelo cabelo, frustrado, esquecendo que estava preso num rabo de cavalo.

Eu precisava ajudá-la. Não sabia ao certo como conseguiria isso, considerando que eu tinha que voltar para o Texas em dois dias. A ligação que eu atendera era de meu padrasto. Eu receberia mais cavalos para tratar. E precisava do dinheiro. Eu precisava voltar para casa, não podia ficar para resolver isso aqui.

– Eu jamais faria isso. Mas quero ajudar você – assegurei a Reese, esperando que ela me dissesse não e me mandasse embora.

Em vez disso, seus lábios se crisparam outra vez, como se ela fosse chorar. Droga, o que eu tinha feito dessa vez?

– Você é tão... legal. Por que você é tão legal? Eu limpo a casa das suas irmãs. Você não me conhece. Não de verdade. Mas você abre portas para mim e não age como se eu fosse uma idiota, e você... quer me ajudar? – A última frase saiu em meio a um soluço sufocado. – Ninguém pode me ajudar. Não se pode consertar o que não existe. E meu cérebro simplesmente não existe.

Inferno.

– Não repita isso – adverti. Não queria mais ouvi-la se depreciando. Eu tinha visto inteligência em seus olhos. – Não há nada de errado com seu cérebro.

Alguma coisa que não entendi passou pelos olhos de Reese, e então um leve sorriso surgiu nos lábios dela enquanto ela fungava.

– Você é realmente um cara legal, Mase Manning. Em geral não gosto de homens. Eles... me deixam nervosa. Mas você, você é diferente.

Minhas próprias emoções eram muito cruas para isso. Não podia me permitir questionar por que ela não confiava ou não gostava de homens. A expressão assombrada nos olhos dela quando admitiu aquilo me enviou um sinal de alerta que eu não poderia ignorar. Ela tinha mais segredos – eu apostaria minha vida nisso.

O fato era que garotas bonitas como Reese conheciam bem os homens. Elas os controlavam desde a puberdade. Os homens não as assustavam. Elas os dominavam. A menos que... Não. Eu não ia deixar meus pensamentos seguirem esse caminho agora. Mas, por Deus, eu gostaria de estar errado.

– Eu preciso ir embora daqui a dois dias. Vou voltar para o Texas. Tenho negócios a resolver lá. Mas vou ajudar você. Quando eu estiver longe, você pode me ligar, e eu estarei lá para ouvi-la. Sou um bom amigo, de verdade. Mas preciso que você me prometa que vai fazer o que eu arranjar para ajudá-la. Vai confiar em mim e deixar que eu a coloque em boas mãos. Não vou deixar ninguém machucá-la. Se precisar, é só me ligar.

Eu não sabia o que ia fazer em dois dias, mas eu tinha alguns contatos. Eu era filho de Kiro Manning, e às vezes isso significava alguma coisa. Nunca usava esse parentesco a meu favor, mas usaria para ajudar Reese. Kiro podia exigir o melhor, e Reese teria o melhor.

Reese inclinou a cabeça e eu fiquei imaginando de novo que comprimento o cabelo dela teria. Que aparência teria solto sobre os ombros. Será que encaracolava naturalmente ou era liso?

– Por quê? – perguntou ela.

– Por que o quê?

– Por que você quer me ajudar?

– Porque você merece ser ajudada – respondi sem hesitar.


Reese

Fiquei olhando pasma para a porta por um longo tempo depois de Mase ter saído.

Não entendia por que ele achava que eu merecia ser ajudada, mas ele pensava assim. Um sentimento desconhecido de afeto se espalhou por mim. Tive medo de me mexer. Não queria que aquela sensação desaparecesse. Gostei demais daquilo. Então me mantive totalmente imóvel, desfrutando-a.

Eu ainda estava segurando o telefone. Ele havia pegado o aparelho da minha mão e adicionado seu número aos meus contatos. Eu até tirara uma foto das botas que Mase estava usando, para que ela aparecesse na tela quando ele ligasse. Eu não precisaria me preocupar em tentar ler o seu nome. Saberia quem estava ligando.

Sorrindo, pensei na selfie que Jimmy tirara quando adicionou seu número ao telefone. Ele fizera questão de tirar uma foto de si mesmo. Muito diferente da foto das botas de Mase. Não creio que Mase já tivesse tirado uma selfie.

Eu gostava de Mase Manning. Gostava muito. Ainda mais do que de Jimmy. De um modo diferente. E eu sabia que aquilo não era bom. Mase era legal comigo, mas não gostava de mim do jeito que eu gostava dele. Eu sabia pelo jeito que ele me tratava. Talvez por isso eu tenha me sentido tão segura com ele, porque gostava dele daquela maneira. Sabia que nunca teria que me preocupar com a possibilidade de ele sentir a mesma coisa que eu. Além do mais, ele nem sequer morava ali.

Meu coração se apertou.

Sacudindo a cabeça para clarear os pensamentos, larguei o telefone no sofá e fui até a cozinha. Ficar nervosa por causa disso era besteira. Mase ia tentar me ajudar, e, embora temesse não poder ser ajudada, eu precisava ter esperanças. E se alguém pudesse me ajudar? Queria acreditar nisso. Isso mudaria tudo. Eu poderia fazer muito mais. Poderia fazer o exame de conclusão do ensino médio e talvez até ir para a universidade.

Com uma nova determinação, peguei o último livro ilustrado que eu tinha trazido da biblioteca e fui folheá-lo no sofá. Terminaria o livro inteirinho hoje. Era capaz de fazer isso. Mase acreditava em mim. Eu só precisava acreditar mais em mim.


Três horas depois, eu tinha quase terminado o livro. Minha cabeça doía e eu estava com os olhos vermelhos e irritados com o esforço. A batida na porta foi seguida por um:

– Urrú, gata, sou eu. Tenho sorvete de pistache e duas colheres.

Sorrindo, enfiei o livro embaixo do sofá e fui abrir a porta para Jimmy.

Ele sorria um pouco mais entusiasmado que o normal quando abri a porta. Segurando duas colheres, ele entrou rebolando de um jeito que só Jimmy poderia fazer e ainda assim ficar bem.

Fechei a porta e me virei para ele.

– Eu confesso – disse ele. – Isto é um suborno. Quero saber tudo sobre suas interações com Mase Colt Manning. Cada detalhe, pequenino e delicioso. Me dê esse prazer, por favor. Aquele homem protagoniza várias das minhas fantasias.

Deixei escapar uma risada. Jimmy piscou para mim e se afundou no sofá.

– Conte tudo, mulher – instou ele.

Fui me sentar ao lado dele.

– Receio que você esteja esperando informações picantes que eu não tenho. Mase foi legal comigo. Nada para alimentar suas fantasias, acho.

Jimmy ergueu uma sobrancelha.

– Sério? Nem um beijinho?

– Ahn, não – gaguejei, surpresa por ele me perguntar aquilo.

Ele mergulhou a colher no sorvete.

– Não faz sentido. Ele é hétero. Eu saberia se não fosse. E qualquer solteiro hétero estaria a fim de você feito gato atrás de rato. – Ele fez uma pausa e suspirou. – Caramba. É isso. Ele não é solteiro. Não tinha pensado nisso. Puxa, que droga. Eu estava tão esperançoso que você tivesse um pouco de aventura com um belo corte de carne de primeira.

Eu me encolhi e ri ao mesmo tempo, mas, no fundo, não tive vontade de rir. Estava me sentindo um pouco enjoada. Ou murcha. A ideia de Mase ter uma namorada não caiu bem. Não que eu achasse que tivesse alguma chance, ou que sequer quisesse uma chance. Mas ele fazia com que eu me sentisse segura e normal.

– Pensei que você não namorava por ser exigente e ninguém preenchesse seus requisitos. Como Mase preenche os requisitos de qualquer uma, achei que você tivesse feito um gol de placa. Que pena que não foi assim. As opções por aí são escassas. Os gostosos desaparecem da lista rapidinho. – Jimmy deu uma colherada grande no sorvete, como se ele fosse o grande deprimido com aquela situação.

Eu tinha perdido o apetite.

– Eu tinha tanta certeza. Ele pulou da cadeira antes mesmo que Harlow terminasse de dizer que ele fosse atrás de você para lhe dar carona. O rapaz nem se despediu de todos os amigos. Mas fez questão de me dizer que queria que eu levasse você até os seus clientes. Pareceu não gostar de você ir a pé. E então saiu correndo. – Jimmy fez um gesto com a colher. – Eu teria apostado minha bola esquerda que ele estava louco por você. E eu gosto muito das minhas duas bolas.

Depois dessa, decidi comer um pouco do sorvete.

– Tome. Coma esta delícia cremosa e vamos falar de um possível encontro de casais. Meu gato tem um primo que é ótimo. Ele mora a cerca de uma hora daqui, mas está muito, muito perto de ser um corte de primeira. – Comecei a abrir a boca para interromper, mas ele levantou a mão e estalou a língua para mim. – Não tão rápido. Deixe-me terminar de vender meu peixe. Ele é um cara legal. Eu o conheço e, além do mais, eu estaria lá com você. Não deixaria acontecer nada com que você não estivesse totalmente de acordo. Ele é refinado. Acho que você ia gostar dele. Ele está fazendo residência médica e mal tem tempo para a vida fora do hospital. Quando sai, encontrar mulheres ainda é complicado para ele. O cara gosta de manter o trabalho separado da vida pessoal. Então, ele precisa de um encontro.

Um médico? De jeito nenhum eu sairia com um sujeito inteligente assim. Eu não sabia sequer ler um cardápio. Minhas mãos iriam suar e minha visão se turvaria de pânico. Não, eu não podia ir. Mas Jimmy parecia tão esperançoso... Eu odiava isso. Odiava não ser capaz de dizer sim. Não ser capaz de encontrar pessoas novas e acreditar que, se elas descobrissem, não me julgariam nem zombariam de mim.

– Você precisa sair, e eu estaria lá, do seu lado. Não vou obrigá-la a me contar nada que não queira, mas sei que algo no seu passado deu merda das grandes. Posso ver no modo como você vive. Estou perto o bastante e observo você o suficiente. Todo maldito hétero deste prédio tentou chamar a sua atenção. Você foge como se os morcegos do inferno estivessem nos seus calcanhares. Saiba que de mim você não consegue esconder. Eu vejo. E acho que o que quer que esteja no seu passado ferrando com o seu presente precisa ser posto de lado. Sou seu amigo, Reese. Vamos encarar isso juntos.

Aquilo era demais. Duas pessoas num mesmo dia tentando me ajudar. E ambos homens. Uma espécie em que pensei que jamais confiaria.

– Está bem – respondi, me dando conta de que de alguma maneira precisava resolver aquilo. Mase havia me dado coragem hoje. Ele talvez não soubesse que suas palavras tinham sido um bálsamo para minha alma machucada, mas foram. – Só que eu preciso saber onde vamos comer antes de ir. – Não ia explicar por quê. Não podia fazer isso agora. Ainda não.

Jimmy abriu um sorriso e concordou.

– Posso cuidar disso. Aliás, você pode até escolher o lugar. Qualquer coisa para que vá.

Eu poderia procurar o site do restaurante e imprimir uma cópia do menu. Então escolheria o que eu ia comer. Na privacidade do meu apartamento e sozinha, eu conseguiria me concentrar. Talvez.


Mase

Telefonei para Kiro e consegui um horário no dia seguinte com um psicólogo especializado em dificuldades de aprendizagem, a apenas uma hora e meia de Rosemary Beach. Do outro lado de sua mesa grande e desorganizada, o homem se levantou para apertar minha mão, depois de empurrar os óculos para cima no nariz. Ele não parecia muito entusiasmado com nosso encontro. Uma ruga de irritação fixou-se entre suas sobrancelhas brancas, dando-lhe uma aparência de mau.

– O senhor deve conhecer pessoas importantes, Sr. Manning. Como pode imaginar, sou um homem ocupado, e meus cursos estão chegando ao final do semestre.

Como eu havia deduzido, ele não estava feliz com esse encontro. Conhecendo Kiro, sabia que ele devia ter telefonado para o reitor da universidade onde o Dr. Henry Hornbrecker dava aulas, que por sua vez o obrigou a me receber hoje.

– Lamento ter vindo em um momento ruim para o senhor. Deixo a cidade amanhã e há um assunto que preciso encaminhar antes de voltar para o Texas.

O tempo do homem era obviamente curto, portanto eu não ia desperdiçá-lo. Peguei o pedaço de papel que Reese deixara amarrotado no piso do Mercedes de Harlow quando saiu correndo em pânico. Cada vez que eu olhava para aquilo, me lembrava do esforço dela e alguma coisa dentro de mim doía.

Entreguei o papel a ele.

– Pedi à pessoa que escreveu isso que anotasse 333 Berkley Road. Sendo essa pessoa um adulto com 22 anos que se empenhou para escrever o que está aí, o que o senhor acredita que isso indica? Por que ela escreveria assim? E por que seria tão difícil a ponto de deixá-la em pânico?

O doutor olhou o papel, franzindo novamente a testa.

– Vinte e dois, você disse? – perguntou ele.

– Sim, senhor – repliquei.

– O senhor quer essa informação para si mesmo ou para ela? Com certeza uma pessoa de 22 anos que tem tais dificuldades já recebeu o diagnóstico na escola ou na infância e sabe que problema tem.

Ele sabia qual era o problema. Meu coração disparou.

– Não, ela não sabe. Ela não conseguiu terminar o ensino médio. Não consegue passar em testes. As pessoas dizem que ela é... burra. Mas ela não é. De jeito nenhum.

O médico praguejou e afundou na cadeira, olhando o papel que eu lhe dera.

– Pensei que atualmente nosso sistema de ensino público estivesse mais apto a identificar e lidar com dificuldades de aprendizagem. Especialmente uma tão comum como a dislexia. Me diga, ela sabe ler?

Dislexia. Caramba.

Havia um aluno com dislexia na escola. Ele tinha aulas especiais e um tutor que o ajudava todos os dias. Acabou se formando com distinção e louvor. Ninguém ajudara Reese, e isso teria sido muito fácil. Um nó se formou em minha garganta e apertei o punho contra as coxas. Ira, alívio e frustração percorreram o meu corpo, todos de uma vez.

– Não, ela não sabe ler. Ela tenta, mas é uma luta. Eu preciso conseguir ajuda para ela. Alguém que possa ajudá-la a ler e escrever. Ela trava batalhas diariamente contra coisas que são simples demais para qualquer pessoa e pensa que isso acontece porque seu cérebro é deficiente. Pagarei o que for preciso. – Droga, eu queria urrar de raiva. Isso era uma grande injustiça. E uma negligência.

– Eu conheço um professor em Panama City. Ele é mais jovem, mas essa é uma condição que interessa muito a ele. O pai dele sofria do mesmo problema e só aprendeu a ler e escrever aos 50 anos. Astor Munroe teve vários pacientes adultos que foram bem-sucedidos no tratamento. Ele inclusive trabalha voluntariamente em uma escola para dislexia em um bairro carente, várias tardes por semana. Vou ligar para ele e pedir que contate você assim que possível.

Um homem. Reese não funcionava bem perto de homens.

– Há alguma mulher que possa fazer isso? Homens a deixam nervosa.

Henry franziu a testa.

– Eu não saberia de memória indicar uma mulher nesta região capaz de ajudar alguém que sofre tão severamente ou que tenha sido tão negligenciada quanto sua amiga. Mas, garanto a você, o Dr. Munroe é um bom homem. Ele vai deixá-la à vontade.

Talvez ela deixasse Jimmy acompanhá-la. Ela confiava nele. Droga, eu precisava ficar. Mas não podia. Minha vida e meu trabalho estavam no Texas. Eu havia conseguido isso. Agora Reese teria que dar o próximo passo. Eu não podia forçá-la.

– Tudo bem – respondi. – Muito obrigado, senhor. Agradeço muito ter arranjado tempo para me receber.

Ele assentiu com a cabeça, não parecendo mais tão irritado como quando cheguei.

– Ela vai precisar fazer uns testes para confirmar meu diagnóstico, mas, com base no que você me contou e isto aqui – ele ergueu o papel que eu dera a ele –, é dislexia. – Ele pegou um bloco e uma caneta e os estendeu para mim. – Escreva os contatos dela e os seus. Pedirei ao Dr. Munroe que entre em contato com vocês hoje mais tarde ou amanhã, dependendo da agenda dele.

Reese ia ter uma chance. Eu daria uma a ela.


Esperei para ligar para Reese até falar com Astor Munroe. Por duas vezes, quase mandei uma mensagem de texto para ela, mas me dei conta de que ela não seria capaz de ler o texto nem de me responder, então desisti. Em vez disso, passei o resto do dia com Harlow, Grant e Lila Kate na praia e depois voltei para a casa de Nan para pegar minhas coisas. Precisava sair assim que fosse chamado pelo professor.

Antes das dez da manhã seguinte, Astor Munroe me ligou e disse que estava muito interessado em ajudar Reese. Ele até pareceu entusiasmado e curioso com a situação dela. Ele cobrava caro, mas explicou que a encaixaria em uma agenda bastante apertada. Ele me perguntou coisas que eu não sabia responder. Reese havia me contado muito pouco sobre seu passado. Dei a ele os contatos dela e disse que falaria com ela no mesmo dia. Eu esperava que Reese o procurasse por conta própria depois, mas ele me garantiu que, se ela não o procurasse em dois dias, ligaria para ela.

Reese estava em casa quando liguei para saber se podia ir até lá conversar. Ali estava eu, de volta à porta do apartamento, esperando que ela agarrasse essa chance e a aproveitasse. Eu não podia fazer muito mais do que isso. Mesmo que quisesse ficar e segurar a mão dela, isso não seria possível. Eu tinha cavalos e uma fazenda esperando por mim.

Reese abriu a porta na primeira batida e sorriu timidamente antes de dar um passo para trás e me deixar entrar. Estava com o cabelo solto. Camadas longas, escuras e sedosas pendiam até a metade de suas costas em ondas suaves. Era cacheado. Caramba, era mais bonito do que eu imaginava. Precisei pigarrear para acalmar meu desejo súbito.

– Gosto do seu cabelo solto – deixei escapar.

As bochechas de Reese ficaram rosadas, e um sorriso satisfeito surgiu em seus lábios. Alguém tinha que ter dito isso para ela antes.

– Obrigada – disse ela, baixinho.

Entrei e desviei os olhos de suas longas pernas, completamente expostas naquele short. Mesmo as meias de listras coloridas que iam até a metade das panturrilhas não desvalorizavam aquelas pernas.

– Quer beber alguma coisa? – A voz dela oscilou, como se estivesse nervosa.

– Ah, sim, obrigado – respondi, sabendo que não teria tempo para beber nada. Precisava dar os detalhes para ela e seguir para o aeroporto.

Ela se dirigiu para o cantinho da sala que era sua cozinha.

– Tenho suco de laranja e acabei de fazer limonada. Desculpe, mas não tenho muitas opções – disse, olhando para mim.

– Limonada está ótimo.

Ela sorriu, como se tivesse gostado de saber que eu queria experimentar sua limonada. Observei-a pegar um copo das prateleiras abertas que havia no lugar de um armário. Estava tudo muito bem arrumado. Até as prateleiras da despensa eram organizadas. Eu precisava que ela fosse à minha casa organizar meus armários. Era um pesadelo terrível encontrar qualquer coisa.

O gelo tilintou no copo e voltei os olhos para ela, que me serviu limonada e então colocou o jarro de volta num refrigerador estreito. Não podia haver muito espaço ali dentro.

– Quando estava na escola, alguém alguma vez mencionou que você poderia ser disléxica? – perguntei quando ela me trouxe a bebida.

Ela se deteve. Então continuou, vindo em minha direção.

– Não, mas já ouvi falar disso. Só não sei exatamente o que é.

Peguei o copo e me sentei na cadeira em frente ao sofá.

– O especialista que visitei ontem acredita que é isso que você tem. Dislexia não significa que você seja menos inteligente do que as outras pessoas. Entrei em contato com um professor que estuda dificuldades de aprendizagem. Ele é especialista em dislexia. Depois de saber sobre seus problemas, ele quer trabalhar com você, sem nenhum custo. O pai dele também não teve o diagnóstico quando jovem e só aprendeu a ler e escrever aos 50 anos. Isso agora é uma paixão para ele. Ele quer ajudar as pessoas. E quer ajudar você.

Reese afundou no sofá, olhando para mim enquanto muitas emoções cruzavam seu rosto. Mas a que predominava era o medo. Eu não queria que ela tivesse medo. Queria dar esperança a ela.

– Diga o que está pensando – encorajei.

Ela apertava as mãos no colo.

– E se descobrirmos que não é isso... e você teve todo esse trabalho. Pode ser que eu seja apenas bu...

– Não me faça ouvir você dizer isso de si mesma outra vez. Isso me deixa furioso, Reese. Estou falando sério. Você não podia estar mais distante disso. Eu juro. E se o problema não for esse, o Dr. Munroe descobrirá qual é. É uma dificuldade de aprendizagem. Pode ser contornada.

Ela fechou bem os olhos e respirou fundo. Eu podia ver que queria acreditar nisso. Eu só precisava persuadi-la a aproveitar a oportunidade.

– Ele pode descobrir qual é o meu problema se não for dislexia? – perguntou ela, olhando para mim com aqueles grandes olhos azul-bebê que faziam coisas se mexerem em meu peito.

– Sim. Pode.

Ela soltou uma risadinha e então cobriu a boca quando não conseguiu conter um soluço. Não sabia se devia confortá-la ou esperar, mas então ela se levantou e se lançou sobre mim. Seus braços enlaçaram meu pescoço quando ela se chocou contra mim. Aquele cheiro doce de canela inundou meus sentidos.

– Obrigada! Eu nem sei... Agradecer não é suficiente. Não consigo encontrar as palavras certas. Mas, enfim... obrigada – disse ela, deixando escapar outro soluço, ainda me agarrando com força.

Passei gentilmente os braços ao redor dela e fiz um esforço tremendo para não pensar no quanto era bom sentir seus peitos pressionando o meu corpo. Ela estava emotiva e agradecida. Eu não iria me aproveitar disso.

– Por nada. Fico feliz que você queira fazer isso. Acho que você está destinada a grandes coisas, Reese. Só precisava de alguém para lhe dar um apoio.

Ela se inclinou para trás a fim de poder me encarar e me dirigir um sorriso lacrimoso, então enterrou o rosto no meu peito.

– Não consigo acreditar em você. Não sei por que quis me ajudar ou o que eu fiz para merecer isso. Acordei você cantando, e sei que canto mal e que provavelmente estava gritando. Quebrei seu espelho e fiz uma bagunça que nem sequer limpei ainda, e sujei você de sangue. Não sei por que tudo isso o levou a fazer algo assim por mim. Mas obrigada.

Ela mal parou para tomar fôlego ao desabafar suas emoções contra o meu peito.

Sorrindo, estendi a mão e toquei no cabelo dela. Vinha lutando contra o desejo de tocá-lo desde que entrara no apartamento e vira que estava solto. Como imaginei, era sedoso.

– Você quebrou o espelho da minha irmã, mas eu não me importo muito com Nan. Além disso, ela pode comprar um novo. Você nunca me sujou de sangue, apenas o chão, e eu já limpei aquela bagunça. Já faz tempo. Quanto a cantar, sim, você canta muito mal. Mas há algo em você, Reese, que me faz querer tirar esse olhar perdido do seu rosto.

Ela ficou totalmente imóvel em meus braços, então afrouxou o abraço e levou a cabeça para trás para me olhar, antes de tirar as mãos do meu pescoço e se afastar um pouco. Um sorrisinho apareceu em seus lábios.

– Eu canto muito mal mesmo? – Então ela riu. – Meu Deus, eu fiquei com tanta vergonha quando me virei e vi você ali de pé. – Ela sacudiu a cabeça. – Cozinho melhor do que canto. Juro. Posso fazer um jantar para você hoje à noite? Quero fazer algo por você.

Eu nunca havia ficado contrariado ao receber novos cavalos para tratar. Gostava de dinheiro e precisava de cavalos para manter minha fazenda funcionando. Mas nesse exato momento eu odiava todos eles.

– Preciso ir – respondi.

A luz dos seus olhos esmaeceu, mas apenas por um instante.

– É verdade. Você tem que voltar para o Texas. Me esqueci.

Assenti com a cabeça.

– Tenho que ir para o aeroporto agora.

Levantei-me e ela recuou, deixando mais espaço entre a gente. Eu não queria que ela se afastasse, levando consigo aquele cheiro de canela e açúcar.

– O Dr. Munroe tem o seu telefone, mas aqui estão os contatos dele. Ligue para ele. Ele está esperando seu telefonema. Ele só vai ligar se você não ligar.

Ela pegou o papel da minha mão e concordou com a cabeça.

– Pode deixar. Ligo ainda hoje – replicou ela.

– Legal.

Eu precisava ir embora, mas continuava ali, olhando para ela.

– Obrigada outra vez. De verdade. Talvez diga isso mais um milhão de vezes. – Os olhos dela estavam brilhando com novas lágrimas.

– Não precisa fazer isso. Mas eu gostaria que você me ligasse depois de encontrá-lo. Vou querer saber como foi. Me mantenha informado.

Ela olhou para mim.

– Sim. Vou fazer isso.

Depois de um último olhar para ela, caminhei em direção à porta. Precisava sair antes que estendesse a mão e agarrasse aquele cabelo brilhoso de novo para cheirar aquele perfume de canela e me enrolar nos cachos sedosos.

– Se cuide – disse ela.

Abri a porta, olhei para trás e pisquei para ela.

– Sempre.


Reese

Meu “encontro de casais” teve que ser adiado. Tínhamos combinado para a noite de quinta-feira, mas esse era o único horário em que eu poderia encontrar o Dr. Munroe. Pensei em ligar para Mase e contar que havia telefonado para o professor e marcado minha primeira sessão, mas ele tinha pedido que eu telefonasse depois da sessão. Não quis incomodá-lo.

Em vez disso, fiquei observando a foto de suas botas em meu telefone.

Eu tinha uma queda por Mase Manning. Não era a primeira vez que isso acontecia. Tive algumas no ensino médio, mas logo descobri que aqueles garotos só me paqueravam quando não havia ninguém por perto. Quando me encontravam nos corredores, eles me ignoravam. Eu era invisível para eles, a não ser que me encontrassem a sós. Aquelas paqueras terminaram rápido, e eu parei de prestar atenção nos garotos bonitos. Em meu último ano na escola, a capitã da equipe de animadoras de torcida flagrou o namorado dela dando em cima de mim do lado de fora do colégio e ficou furiosa. Ele nunca mais falou comigo, o que foi um alívio, mas pouco depois todos os alunos estavam comentando que eu era lésbica.

Não achei nada de mais. Eu não tinha interesse em garotas. Principalmente nas víboras desprezíveis da escola, mas com certeza também não tinha interesse nos meninos. Então, deixei que falassem e os ignorei. Por fim, eles foram atrás de outra pessoa que reagisse a suas crueldades.

Nem preciso dizer que fazia tempo desde que eu tivera uma queda verdadeira por um cara. Meu padrasto cuidara para que eu mantivesse os homens à distância de pelo menos um campo de futebol. Eu estremecia só de pensar no homem que tinha tirado minha inocência e me marcado para sempre.

Deixando de lado todos os pensamentos referentes a Mase, fui tomar uma ducha. Lembranças de como eu esfregava o corpo sob a água mais quente que eu pudesse suportar sempre que meu padrastro me tocava me vieram à cabeça, mas pelo menos eu não vomitava mais ao pensar nele. Eu estava conseguindo me distanciar do meu passado terrível. Estava melhorando.

Na noite de quarta-feira, o telefone tocou assim que tirei do forno a lasanha que eu fizera. Tinha preparado uma travessa inteira, esperando que Jimmy aparecesse para comer. Mas ele me ligara por volta das três da tarde para avisar que ia sair à noite já que eu tinha dado bolo e desmarcado nosso encontro. Ele estava no meu pé para marcar outra noite, mas eu não conseguia me interessar por isso. Nesse momento, eu estava totalmente focada em aprender a ler.

Então ficava inventando desculpas para não ir.

Larguei a luva de cozinha e fui atender o telefone. Meu coração disparou quando vi as botas na tela. Era Mase.

– Alô – atendi ao terceiro toque.

– Ei. Você não me ligou.

A voz grave dele soou ao telefone, e meus dedos dos pés se retorceram no tapete.

– Ah, bem, é que só terei minha primeira consulta amanhã – expliquei, grata por ele não poder ver meu sorriso bobo naquele momento.

– Ótimo. Você já marcou então. Gostou dele?

Fui até a poltrona onde ele havia se sentado antes de ir embora e me sentei de pernas cruzadas.

– Sim. Ele foi muito simpático. Pareceu ansioso para me encontrar. Perguntou muitas coisas e, depois de ouvir minhas respostas, disse ter certeza de que eu tenho dislexia.

Havia sentido vontade de sair dançando pela sala quando o médico disse isso.

– Estarei livre amanhã à noite. Ligue para mim quando terminar. Quero saber de tudo.

O fato de ele se importar tanto fez com que minha atração por ele crescesse ainda mais. Ter uma queda por alguém como Mase era ridículo. Ele provavelmente tinha um mundo de mulheres loucas por ele. Mase estava me ajudando e ficaria desconfortável se soubesse como eu estava me sentindo.

– Está bem. Vou ligar – garanti.

– Ótimo. Preciso ir. Vou jantar com meus pais. Falo com você amanhã à noite.

– Tudo bem, tchau – respondi.

Deixando o telefone cair no colo, tive vontade de bater palmas e gritar. Mas, em vez disso, me levantei e fui saborear minha lasanha.


Astor Munroe não era como eu havia imaginado. Quando pensava em um professor, imaginava alguém de cabelos grisalhos e possivelmente de óculos. Talvez até com uma barriguinha sob a camisa abotoada e engomada.

O que eu não esperava era um homem de cerca de 35 anos alto e magro, vestindo jeans, tênis Nike e uma camisa polo de mangas curtas. Ele não era exatamente bonito, mas eu o estava comparando a Mase, e isso não era justo. Eu não gostaria de ser comparada a Harlow. Eles eram celebridades ricas e bonitas. Portanto, eu não deveria fazer isso com o Dr. Munroe.

Seus olhos castanho-claros eram gentis e ele não me deixou nem um pouco nervosa. No momento que entrei em seu escritório, ele se levantou e, com um sorriso franco, me convidou a sentar. Depois de cada pergunta e solicitação, ele me garantia que era tudo para me ajudar a aprender. Era óbvio que ele estava entusiasmado com o desafio que eu representava para ele. Contou a história de seu pai e eu fiquei impressionada com a capacidade do Dr. Munroe de, aos 21 anos, ensinar o pai a conquistar algo pelo que lutara durante a vida toda.

Mas, quando me levantei para sair, ele fez um comentário que eu não entendi. Fiquei pensando naquilo no táxi de volta para casa enquanto a motorista tagarelava sobre seus netos e como seu frango com macarrão era delicioso.

Quando eu agradecera a ele por me encaixar tão prontamente em sua agenda, ele tinha dito que era ao Sr. Manning que eu deveria agradecer.

A pergunta era: o que isso significava? Será que Mase tinha feito algo para ele agir tão rapidamente? E, se fez, o que havia sido?


Mase

Da próxima vez que alguém batesse à minha porta, eu olharia pela janela antes de abrir. Estava esperando Reese ligar quando cometi o erro de atender a batida. Cordelia, minha amizade colorida, entrou desfilando em um jeans apertado e um top frente única. Suas botas ressoavam no piso de madeira, e ela sorriu para mim a caminho do meu quarto.

– Você não ligou, e eu estou precisando de uma boa transa – gritou ela por cima do ombro, antes de tirar o top e atirá-lo em mim com uma risada.

Meu pau nem sequer se mexeu. Merda.

Eu tinha esperanças de que essa... coisa que eu sentia por Reese não fosse mais que amizade. Mas, droga, agora eu só via os defeitos de Cordelia. Para começar, ela tinha um piercing no umbigo. Eu costumava achar aquilo sexy, mas agora parecia que ela estava se esforçando demais. E seu quadril não tinha graça. Quando ela gingava aqueles quadris inexistentes, não havia curvas deliciosas na sua bunda. Não tinha quase nada ali.

Não ia rolar. Eu era amigo de Cordelia fazia anos. Dois anos atrás, tínhamos bebido e acabamos dormindo juntos, então, em vez de ficarmos constrangidos, concordamos que estava tudo bem. Um satisfaria a vontade do outro quando fosse necessário. Só uma vez demos um tempo, durante uns quatro meses, quando ela se interessou de verdade por um cara – que, como acabou descobrindo, era casado. Ela terminou o relacionamento e voltamos ao nosso arranjo.

Eu não costumava namorar. Não tinha tempo suficiente para as mulheres. Elas exigiam muito e, depois de alguns relacionamentos fracassados, eu chegara à conclusão de que sexo com Cordelia era a solução para mim. Mas as coisas pareciam fora dos trilhos agora. Algo havia mudado.

E o negócio era comigo.

Merda. Eu não tinha tempo para aquilo.

– Você devia ter ligado – falei, jogando o top de volta para ela.

Ela não pegou a peça, que caiu no chão a seus pés. O ar de confusão em seu rosto não anunciava nada de bom.

– Eu nunca ligo. Eu simplesmente apareço. E você também – lembrou-me.

– Eu estou esperando uma ligação. É importante. Não posso hoje à noite.

Ela segurou os seios com as mãos, pinçando os bicos rosados.

– Você está me dizendo que um telefonema é melhor do que isso?

Eu conhecia as mulheres bem o suficiente para não dizer a verdade a ela. Então dei de ombros.

– Esta noite não vai rolar. Não sei quando vai rolar. Estarei enrolado a semana toda.

Caso esse sentimento por Reese, que estava ferrando com a minha cabeça, tivesse um fim, eu não ia querer terminar com Cordelia. Além disso, ela era minha amiga.

Ela se abaixou, pegou o top e o vestiu novamente.

– Se você quer dar uma de bundão, tudo bem. Eu não vou voltar. Então, se quiser alguma coisa, vai ter que ir buscar – disse ela, com raiva.

Ih, rapaz. Não era para isso que eu transava com ela. Cordelia não era de fazer drama. Ela era fácil de lidar. Mas agora ela estava fazendo. E eu odiava dramas.

– Desculpe, Cord. Desculpe mesmo. Mas estou cheio de coisas nesse momento. Não é uma hora boa para mim, só isso. Minha cabeça está longe.

Ela me fuzilou com o olhar e saiu, batendo a porta.

Com alguma sorte, ela dormiria e amanhã teria superado. Eu gostava de Cordelia. Só nunca tinha sido mais do que amizade. O lance do sexo era só melhor do que me masturbar. Eu precisava me desculpar com ela, mas nesse momento estava feliz por ela ter ido embora sem fazer nenhuma cena.

Meu telefone tocou. De repente, Cordelia perdeu toda e qualquer importância.

– Oi – respondi, levando o telefone ao ouvido, ansioso por ouvir Reese me contar sobre sua consulta.

– Espero que não seja muito tarde. Houve um acidente e o trânsito ficou engarrafado.

Sua voz suave me aqueceu através do telefone.

– Não, não é muito tarde. Quem levou você?

– Peguei um táxi. Há uma senhora conhecida do Jimmy que mora perto de Panama City. Ela trabalha nessa área há quase vinte anos. Não temos muitos táxis por aqui.

Ela pegara um táxi com uma motorista. Isso me deixou mais tranquilo. Ser levada por um homem estranho a deixaria desconfortável. Eu não havia pensado nisso. Sempre esquecia que ela não tinha carro. Espere...

– Reese, você sabe dirigir?

Sem saber ler, jamais passaria no teste escrito para obter a habilitação.

– Não – respondeu ela.

Outra coisa que tinha dificultado sua vida.

– Da próxima vez que eu for aí, vou levar você a uma estrada secundária e lhe dar umas aulas. Vamos estudar para o teste escrito também.

Ela ficou em silêncio por um momento. Fiquei imaginando se tinha medo de se sentar atrás de um volante. Então finalmente escutei um movimento do outro lado da linha.

– Ok. Eu vou gostar.

Eu também.

– Conte sobre a sua consulta.

– O Dr. Munroe foi simpático. Ele está bastante animado com o meu caso. Fiz alguns testes e definitivamente sou disléxica. É isso. É só isso que há de errado comigo. Ele disse que os professores ou meus pais deveriam ter percebido quando eu era criança, mas de algum modo isso foi ignorado ou diagnosticado errado...

Sua voz foi sumindo. Eu não queria que ela pensasse naquilo. Alguém dissera que ela era burra, e eu sabia que seus pais tiveram parte nisso.

– Quando você começa as sessões com ele?

– Nas tardes de segunda-feira ele precisa vir a Grayton Beach, que não é muito longe daqui. A mãe dele mora ali e ele janta com ela. Ele disse que poderíamos nos encontrar na biblioteca da cidade. E nas quintas à tarde eu devo ir ao consultório dele para as aulas. Ele acha que vou ler rápido, assim que ele me ajudar a aprender a me concentrar nas palavras. Ninguém trabalhou comigo da forma como eu preciso.

Ela estava entusiasmada. À medida que prosseguia, foi falando mais alto e mais rápido. Era engraçadinho. Eu podia imaginar aqueles olhos azuis cintilando de felicidade.

– Quando você voltar, talvez eu possa ler para você – disse ela, e então ouvi sua risadinha nervosa, como se não quisesse ter dito isso.

– Por que esperar até eu visitar? Você pode ler para mim ao telefone quando ligar para me contar sobre as aulas.

Ela ficou em silêncio outra vez, e eu deixei que ela pensasse nessa ideia por um momento. Não queria deixá-la ansiosa. Mas queria que ela se sentisse à vontade comigo. Mesmo ao telefone.

– Você quer que eu ligue depois das aulas? – perguntou ela.

– Claro que quero. Se você não se importar. Eu gostaria de saber como as coisas estão evoluindo.

– Sim, tudo bem. Eu... eu vou fazer isso. E, quando tiver coragem suficiente, vou ler para você.


Reese

Por duas semanas, fui às aulas e liguei para Mase logo depois. Na quarta aula, percebi que meu entusiasmo era maior por escutar a voz de Mase do que pelas aulas em si. E isso era muita coisa, porque eu adorava as aulas. Adorava a força que ia ganhando à medida que aprendia a me concentrar nas palavras e em decifrar o que significavam.

Eu jamais seria uma leitora dinâmica ou voraz. O Dr. Munroe me disse para não deixar isso me aborrecer. A leitura nunca seria meu ponto forte, mas eu seria capaz de ler. Eu não seria mais impedida de dirigir, ir à universidade nem preencher cadastros de emprego.

No começo da terceira semana, eu estava preparada para encontrar o Dr. Munroe na biblioteca outra vez. Ele me mandaria para casa com um livro para praticar. Os últimos dois livros que ele me dera eram muito simples, com uma ou duas palavras por página, livros ilustrados. Eu os tinha lido em cinco minutos cada, antes da aula seguinte. Essa noite ele me daria algo mais complicado. Eu estava me preparando para isso. Eu seria capaz.

Depois, ligaria para Mase e contaria sobre minha aula.


Lila Kate acordou de sua soneca e chorou, e eu desci da escada, de onde estava aspirando o pó, para chamar Harlow, que, por sua vez, já vinha correndo com um sorriso no rosto. Ela carregava a babá eletrônica sempre que não estava com Lila Kate. Eu havia me esquecido disso.

– Ela me deixou terminar os cookies que estava fazendo para Grant – disse Harlow ao passar por mim na escada. – Quando esfriarem, faça uma pausa e venha lanchar comigo para provar alguns.

Harlow sempre me fazia convites assim. Ela não me ignorava, como os outros clientes, e não me olhava de cima quando falava comigo. Agia como se eu fosse igual a ela. Ficava agradecida por minha ajuda, embora me pagasse por isso.

– Eu adoraria, e obrigada pelo convite, mas tenho um encontro hoje à noite. Preciso terminar aqui e voltar para casa para tomar um banho antes de ir.

Queria ter podido aceitar o convite dela. Eu não havia tomado o café da manhã e estava faminta.

Harlow sorriu para mim.

– Bem, posso dar um jeito nisso. Você toma um leite com cookies comigo e eu levo você até em casa. Vai chegar bem antes indo de carro. E não me diga não. Você já recusou na semana passada, e meu irmão ligou para se certificar de que eu tinha lhe dado carona. Expliquei que você não tinha aceitado, e ele reclamou. Portanto, de agora em diante, eu levo você. Sem discussão.

Ela se virou e correu para Lila Kate, que agora chorava mais alto, pois estava escutando a voz da mãe.

Precisei de um momento para me controlar. Pressionei as mãos contra as bochechas quentes e desejei não ter corado. Mase tinha ligado para saber se ela estava me levando até em casa. Ele andava pensando em mim, afora as minhas ligações. O sorriso louco que não saía do meu rosto toda vez que eu pensava em Mase estava ali outra vez.

Quando voltei a aspirar os degraus, Harlow reapareceu no topo da escada, segurando uma Lila Kate de olhos arregalados e sorridente. Ela estava contente agora que tinha o colo da mamãe. A garotinha era capaz de iluminar uma sala inteira.

– Lila Kate também está esperando você para comer os cookies. Então não a decepcione. Ninguém está autorizado a dizer não para ela. Pergunte ao pai dela – disse Harlow, descendo os degraus. – Vamos lá aproveitar nosso intervalo.

Eu não ia discutir. Seria grosseiro, e, bem, se Mase queria tanto que ela me desse carona, a ponto de ligar para incomodá-la, eu não ia dizer não. Além disso, eu estava mesmo faminta.

A cozinha dos Carters lembrava a cozinha de uma série de TV. Era quente e viva, e nenhuma economia havia sido feita. Harlow colocou Lila Kate no balanço, que ficava de frente para janelas com vista para o quintal dos fundos.

– Você balança e olha os passarinhos enquanto apronto sua mamadeira – disse ela à filha, como se ela já entendesse conversas. Então se virou para mim. – Posso fazer café, se preferir. Só posso tomar descafeinado, e mesmo assim só um pouco, mas tenho em casa. Grant toma.

Leite estava ótimo para mim.

– Eu gosto de leite – respondi. – Posso ajudar?

– Apenas sente e descanse. Você está trabalhando há horas. Deveria fazer uma pausa para o almoço.

Eu não deveria fazer pausas maiores do que quinze minutos a cada duas horas, segundo a agência. E descobri que a maioria das pessoas para as quais eu fazia faxina não gostava de me ver fazer pausas. Se estivessem em casa, esperavam que eu trabalhasse até acabar. E assim eu fazia.

A casa dos Carters era diferente de muitas maneiras. Essa era uma delas. Também era minha favorita, porque eu podia observar uma família feliz e normal. Não era algo que eu tivesse visto antes. A maneira como Harlow adorava a filha me fazia sorrir, mas também me fazia sentir uma pontada no peito pelo que eu não tive. Por aquilo que minha mãe escolheu me negar. Amor.

Grant Carter era impressionante quando estava com a filha no colo. Ou mesmo quando olhava para ela do outro lado da sala. Seu rosto ficava cheio de amor e devoção. Não restava a menor dúvida na cabeça de ninguém de que ele defenderia a filha a qualquer custo. Mais de uma vez me peguei imaginando se meu pai verdadeiro teria sido assim. Será que ele ao menos sabia de minha existência?

Afastei aquele pensamento e me concentrei nos Carters. Não ia pensar em minha família ou no passado. Isso só me deixaria deprimida. Eu me esforçava para não perder tempo cismando com essas coisas.

Essa casa era um lar. Um lugar feliz e seguro. Mesmo sendo uma das menores que eu limpava, era a que eu mais aguardava toda semana.

Harlow colocou um copo de leite e um prato com dois cookies imensos com gotas de chocolate na minha frente.

– Aí está – disse ela, colocando outro conjunto de copo e prato no lugar em frente ao meu. – Vou tentar disfarçar um pouco antes que Lila Kate se dê conta de que é hora de comer. A mamadeira dela vai estar pronta em alguns minutos. Ainda precisa esquentar.

Ela se sentou.

– O cheiro está delicioso – comentei, esperando que fosse uma boa desculpa para devorá-los.

Estava com mais fome do que pensei, e aquele cheiro ia fazer com que fosse difícil dar mordidas pequenas e delicadas.

– É para estar mesmo. É uma receita de minha avó. Ela fazia os melhores cookies – respondeu Harlow. – Grant adora.

Como imaginei, comi o primeiro em três mordidas. Harlow me observava com um sorriso. Ela também mastigava, feliz, o que me deixava mais à vontade. Aqueles cookies estavam definitivamente irresistíveis.

– Você falou com meu irmão desde que ele voltou para o Texas? – perguntou Harlow, me surpreendendo.

Assenti com a cabeça, pensando se deveria dar mais informações a ela. Será que Mase gostaria que ela soubesse que nós conversávamos? Ela podia pensar que era outra coisa e ter uma ideia errada. Eu me sentia à vontade com Harlow, mas contar para ela que eu tinha dislexia era diferente. De que modo eu explicaria como havia chegado ali sem ser capaz de ler e escrever omitindo outros detalhes do meu passado?

– Ele parece... preocupado com você. Mase é do tipo protetor, mas eu não me lembro dele se preocupar assim com alguém que não fosse da família. Até você.

Um sorriso surgiu nos cantos dos seus lábios. Ah, não, ela estava tendo a impressão errada. Se eu não lhe explicasse, ela diria algo a Mase, e eu não queria isso. Ele vinha me ajudando tanto, e eu devia isso a ele. Além do mais, não era algo de que eu devesse ter vergonha. Astor tinha me dito isso várias vezes. Até me fez repetir com ele: “Eu não sou inferior a ninguém. Não tenho nada do que me envergonhar. Sou uma pessoa inteligente e capaz.”

Lembrando-me disso, coloquei o segundo biscoito de volta no pratinho de porcelana. Encarei o olhar curioso de Harlow.

– Eu ligo para Mase depois de minhas aulas com o Dr. Munroe... – Hesitei por um instante. – Eu... eu tenho dislexia, e até que Mase descobrisse o Dr. Munroe, eu não sabia por que não conseguia ler e escrever. As palavras são difíceis para mim. Seu irmão tomou a iniciativa e descobriu um especialista que me apontou o caminho para resolver isso. Ele só está me ajudando porque é um bom homem.

O olhar de Harlow continuou fixo em mim por alguns segundos, e eu tive que baixar os olhos para o biscoito que me esperava no pratinho. Não queria que ela visse em meu rosto o que eu não podia esconder.


Mase

– É uma mulher – disse Major ao abrir minha geladeira e pegar uma cerveja. – Conheço os sinais. Você pode tentar me enganar com uma desculpa esfarrapada qualquer, mas eu já passei por isso, meu velho.

Major estava se tornando um pé no saco. Ele era sobrinho do meu padrasto e tínhamos crescido juntos como se fôssemos primos. Apesar de não sermos parentes de sangue, isso não fazia diferença. Eu havia precisado da ajuda dele com os cavalos, mas agora ele já podia ir embora. Reese ia me ligar dali a pouco. E Major era a última pessoa que eu queria ter por perto quando ela ligasse.

– Acabamos por hoje. Pegue a cerveja e vá para casa. Vou tomar uma ducha e me deitar. Estou exausto.

Passei pela cozinha e segui em direção ao meu quarto.

– Olhe aí. Estou dizendo. Aí tem coisa – alfinetou ele. – Coisa de mulher. Já vi. Conheço bem.

Detestava que ele estivesse tão perto da verdade. Reese estava nos meus pensamentos a maior parte do dia, todos os dias. Eu aguardava a ligação dela com muito mais ansiedade do que deveria. Mas, caramba, a voz dela me fazia sorrir. Ouvi-la tão entusiasmada com seus progressos também me contagiava.

– Vá embora – respondi, batendo a porta do quarto atrás de mim.

Eu já estava tirando as botas quando meu primo decidiu bater na porta.

– Quem é? Não pode ser Cordelia. Há anos você teria feito mais que transar com ela se estivesse mesmo a fim. Ela está mais do que disponível. Ei, espere... Rosemary Beach. Você conheceu alguém por lá, não foi? Moça rica? Tem dinheiro? Tem irmã? Não, pensando bem, não quero essa irmã. Ainda quero uma chance com a sua irmã solteira e gostosa.

Por Deus, será que ele conseguiria ser mais chato?

– Vá embora, Major. Não vou cair nessa. Não tem mulher nenhuma. Me deixe tomar banho em paz. Peste dos infernos.

A risada dele atravessou a porta.

– Quem não deve não teme. – Ele bateu na porta mais uma vez. – Tudo bem. Pode fingir então que não. Mas logo você vai admitir. Ou eu vou descobrir.

Não respondi. Esperei até que os passos dele se aproximassem da porta da frente. Quando a porta se abriu e fechou, soltei um suspiro de alívio. Olhando o relógio, vi que teria 45 minutos antes de Reese ligar. Podia tomar banho e comer alguma coisa.

Se Major soubesse de Reese, comentaria com minha mãe. E então ela não me deixaria em paz. Eu amava minha mãe, mas ela faria perguntas. E eu ainda não estava pronto para responder a elas. Nem sabia ainda onde esse negócio com Reese ia dar. Negar que eu estava atraído por ela não tinha sentido. Já havia admitido isso para mim mesmo.

Cacete, eu não tirava aquela pinta que Reese tinha embaixo da bunda desde a primeira vez que a vi. Mas agora era mais que só tesão. Eu gostava de Reese. Gostava da mulher que ela era. De início, tive receio de que fosse pena e que meus sentimentos estivessem misturados com compaixão e vontade de ajudá-la.

Agora eu não pensava mais assim. Reese não queria pena. Não precisava disso. Ela era forte. Muito mais do que eu achara a princípio. Eu admirava sua capacidade de se defender dos golpes da vida e continuar lutando. Com um corpo daqueles, podia ter usado seus atributos para seguir outro caminho. Um em que sua aparência pagasse as contas. Mas não fez isso. Ao contrário, trabalhava duro fazendo faxina e tinha orgulho de seu trabalho.

Havia muito mais em Reese do que eu presumira de início. Muito mais do que eu poderia ter esperado. E ela estava mexendo comigo, me conquistando aos poucos, e nem sequer percebia isso. Mas eu precisava encarar o fato de que talvez ela não quisesse nada. Era muito provável que ela só se interessasse em mim como amigo.

E talvez fosse melhor assim. Para começar, havia uma distância de vários estados entre nós. Por si só, isso já era um problema. Decerto ela não se mudaria de lá apenas para namorar comigo, e levar minha fazenda para Rosemary Beach era impossível. Eu tinha um trabalho e um futuro no Texas.

Entrando no chuveiro, decidi que não pensaria nisso naquele momento. Não fazia sentido. Isso precisava ser tratado aos poucos. Minhas fantasias em relação a ela continuariam a ser apenas fantasias.


Trinta minutos depois, meu telefone tocou. Eu estava de pé na varanda, terminando uma cerveja, ainda pensando nela.

– Oi – falei, atendendo ao primeiro toque.

– Oi. Liguei mais cedo hoje. Espero que não seja um problema.

Ela parecia animada. Sorri.

– Tudo bem. Não estava fazendo nada. Só esperando sua ligação.

– Ah – foi a única resposta dela.

– Como foi esta noite? – perguntei.

Astor Munroe também me mandava relatórios completos uma vez por semana, por e-mail. Ele concordara em não dizer a Reese que eu estava pagando pelas aulas. Achei que ela perderia a motivação se soubesse. Queria que sua cabeça estivesse completamente livre de qualquer coisa que a distraísse de aprender.

– Ótima. Li para ele um capítulo do livro que ele me deu na semana passada. Não era um livro ilustrado. Foi meu primeiro livro de texto. Não li rápido nem nada assim, mas li sem entrar em pânico e sem errar nenhuma palavra. Também fiz um ditado. O primeiro em que “passei” – acrescentou, parecendo extasiada.

A ideia de ela nunca ter sido capaz de passar num teste de ortografia partiu meu coração. Odiava pensar naquela garotinha que sofria e era ignorada.

– Isso é maravilhoso. Estou orgulhoso de você, mas sabia que seria capaz. Nunca duvidei de você – assegurei. – Ainda estou esperando você ter coragem suficiente para ler para mim.

Aquilo sempre a fazia ficar em silêncio. Ela ainda estava com medo disso, mas, caramba, eu queria que ela confiasse em mim. Queria que ela se sentisse confortável com aquilo. Saber que ela havia lido para Astor me fez ficar com ciúmes do sujeito. O que era ridículo, mas era um fato.

Comecei a dizer que ela não precisava fazer isso se não estivesse pronta, mas Reese falou primeiro.

– Está bem. Hã, vou pegar o livro que li esta noite – disse ela baixinho.

Talvez fosse egoísmo fazê-la ler quando era óbvio que ficava tão nervosa, mas eu queria muito.

– Vai ser uma honra – admiti.

Uma risada leve veio do telefone.

– Fico dizendo a mim mesma que você já me ouviu cantar, e que minha leitura não é tão ruim quanto aquilo, e que portanto posso fazer isso.

Só essa mulher era capaz de me fazer sorrir feito bobo num maldito telefone.

– É verdade – concordei, provocando.

Ela riu outra vez.

– Não é uma leitura profunda nem nada assim. Diga quando você tiver ouvido o suficiente. Não vou ficar chateada. Isso pode matar você de tédio.

Deixaria que lesse o livro inteiro, se ela quisesse.

– Pode deixar. Leia para mim.

Pelos trinta minutos seguintes, fiquei sentado na cadeira de balanço na varanda da frente com as pernas apoiadas no parapeito, escutando a voz doce de Reese ler para mim ao telefone. Ela só tropeçou umas poucas vezes, e eu a ajudei rapidamente para que não ficasse nervosa e parasse por minha causa.

Foram os melhores trinta minutos que tive em toda a semana.


Reese

Depois da minha primeira leitura para Mase, nossas duas ligações por semana se tornaram diárias. Quando eu não ia às aulas, ele me ligava. Queria que eu lesse para ele antes de ir dormir. Eu me perguntava quanto ele realmente queria me ouvir ler. Tinha a impressão de que estava tentando me fazer praticar. Era sua maneira de garantir que eu me sentisse confortável lendo na presença de outras pessoas.

Escutar a voz dele à noite antes de ir para a cama era reconfortante. E me impressionava com a facilidade com que eu dormia depois de conversar com ele. Mase sempre terminava os telefonemas com “boa noite e bons sonhos”. Como se meu corpo estivesse ao seu comando, era exatamente o que acontecia. Todas as noites eram boas e meus sonhos eram sempre com ele. Logo, eram sonhos doces.

Controlar minha afeição crescente por aquele homem era algo que eu precisava fazer, e rápido. Mase era um amigo. O melhor que uma garota poderia ter. Não queria estragar isso por nada. E, se eu o deixasse desconfortável, tudo acabaria. Era deprimente demais imaginar isso.

– Terra para Reese. Estou fazendo uma pergunta. Aonde você foi?

Jimmy estava sentado no sofá à minha frente. Eu não esperava que ele aparecesse, mas ele trouxera sorvete outra vez, e eu não podia mandá-lo embora. Meu telefone ia tocar em breve, e eu queria que Jimmy não estivesse ali quando isso acontecesse. Não queria dizer a Mase que eu não podia falar.

– Desculpe. Eu estava pensando em outras coisas. Não se importe. Estou cansada.

Jimmy ergueu uma sobrancelha, como se não acreditasse em mim.

– Sério? Cansada demais para um sorvete de chocolate com marshmallow?

Não. Eu não estava cansada demais para um sorvete de chocolate com marshmallow. Estava era animada demais para ouvir a voz de Mase e não queria trocá-la por um sorvete de chocolate com marshmallow.

– Claro que não.

Peguei a colher que ele tinha colocado para mim no pote e tirei uma grande porção.

– Devagar, menina. Cuidado para não congelar os miolos. É perigoso – advertiu Jimmy.

Sorrindo, concordei silenciosamente e dei um tempo antes da colherada seguinte.

– No próximo fim de semana. Não vou esperar mais. Você vai sair com o médico. Vai ser um encontro a quatro. Você escolhe o dia. Sexta ou sábado. Porque vai rolar. Cansei de esperar.

Droga. Ele não ia esquecer esse assunto. Falava nisso ao menos uma vez por semana. Eu vinha evitando responder.

Mas talvez fosse uma coisa boa. Estava muito focada em Mase, e isso não podia ser bom. Se eu saísse com alguém, talvez me distraísse. Parecia improvável, mas pelo menos se Mase achava que eu estava interessada nele, isso o faria mudar de ideia. Ele não precisaria se preocupar com o que eu sentia por ele. E isso significava que ele não pararia de me ligar.

– Sexta-feira seria melhor.

Jimmy me olhou e deu um soco no ar.

– Isso! Vitória! Ponto!

Antes que eu pudesse responder, meu telefone tocou, eu olhei para baixo e vi as botas de caubói na tela. Peguei antes que Jimmy visse.

– É uma ligação importante. Sobre um curso que estou pensando em fazer. Será que podemos continuar amanhã?

Ele pareceu curioso, mas eu sabia que o olhar de súplica que lancei seria suficiente para ele sair. O telefone parou de tocar, mas imediatamente tocou de novo, e eu atendi antes que parasse.

– Oi, só um minuto – disse a Mase, então levantei para abrir a porta para Jimmy, que agora me observava com curiosidade ainda maior.

– Não acredito em você, mas vou deixar passar – murmurou Jimmy, sacudindo o indicador para mim.

Fechei a porta e suspirei aliviada.

– Desculpe. Jimmy estava aqui. Ele já foi – expliquei.

– Interrompi alguma coisa?

– Só um sorvete de chocolate com marshmallow e um amigo enxerido.

Ele riu.

– Você podia ter me dito que estava tomando sorvete com ele. Eu ligaria mais tarde.

Ah, não, não podia. Não quando meu dia inteiro girava em torno de suas ligações.

– Tudo bem. A gente já tinha terminado – menti.

O som de pneus cantando invadiu o apartamento, e, antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, ouvi um barulho que pareceu um tiro. Fiquei paralisada. Na certa era outra coisa. Talvez o cano de descarga do carro tivesse explodido. Era uma área segura, por isso eu havia escolhido esse apartamento.

Uma série de tiros ressoou, e eu caí de joelhos atrás da cadeira na frente do sofá. Gritos ecoaram na rua, e pela primeira vez me arrependi de morar no primeiro andar. Sentia-me completamente devassada e vulnerável, incapaz de encontrar um lugar seguro.

– Reese, você está bem? – gritou Mase ao telefone.

Percebi que ele já havia perguntado várias vezes, mas eu estava muito chocada para registrar sua voz.

Minha mão cobria a boca e eu me perguntei se havia gritado. Estava com os olhos grudados na janela, e a gritaria do lado de fora continuava. Alguém precisava chamar a polícia. Eu. Eu precisava fazer isso. Ah, meu Deus.

– Preciso chamar a polícia. Há tiros na rua e gritaria. Preciso ligar e pedir ajuda – falei, sem querer desligar.

Fiquei apavorada, e saber que Mase estava ao telefone me dava algum conforto. Mesmo que ele não pudesse fazer nada.

– Fique no chão. Deite atrás do sofá. Não se mova, nem atenda a porta. Ligue para a polícia agora. Depois me ligue de volta – ordenou Mase e encerrou a ligação.

Minhas mãos tremiam e mais um tiro soou. Vozes berravam coisas ininteligíveis junto com os gritos. Engatinhei até a parte de trás do sofá e me deitei, e então tentei ligar para a emergência enquanto era dominada pelo pânico. Os números em meu telefone começaram a dançar e se tornaram borrões. Lágrimas de frustração encheram meus olhos.

Enquanto eu tentava, sem sucesso, encontrar os números certos, meu corpo se sacudia com os soluços, mas então as sirenes da polícia se somaram ao barulho na rua e luzes azuis começaram a piscar na janela. Larguei o telefone no tapete e cobri o rosto com as mãos.

Respirando fundo para me acalmar, escutei mais sirenes se aproximando, seguidas por uma ambulância. Mas não me mexi. Nem sequer uma vez.

Fiquei ali deitada enquanto o barulho parava, mas ainda havia gritos e pessoas chorando. Eu estava com medo de me mover, mesmo sabendo que a polícia agora estava ali fora.

Uma batida soou na minha porta e eu congelei.

– Polícia – anunciou uma voz alta.

Polícia. Na minha porta. Ah, meu Deus. Eu precisava me levantar. Minhas pernas tremiam horrivelmente e meu coração ainda estava disparado.

A batida se repetiu.

– Polícia! – gritaram novamente.

Agarrei a maçaneta da porta e olhei pelo olho mágico. Havia mesmo um policial na minha porta. Sua expressão séria e determinada apenas me aterrorizou ainda mais, se isso fosse possível.

Abrindo a porta, fitei o homem.

Ele mostrou sua identificação.

– Policial Milton, senhora. Preciso fazer algumas perguntas.

Eu? Por que eu? Concordei com a cabeça e me forcei a respirar.

– Você viu alguma coisa? – perguntou ele, ali parado enquanto luzes piscavam e sirenes gemiam atrás dele.

Alguém estava coberto com um saco plástico. A bile subiu até minha garganta e me segurei com força à maçaneta para não cair quando meus joelhos fraquejaram.

– Ah, meu Deus – consegui murmurar.

– Você conhece Melanie e Jacob Sanders? Eles moram a três portas daqui.

Sacudi a cabeça, negando. Não conhecia meus vizinhos. Exceto Jimmy. Eu me mantinha afastada de todo o restante. Mas eu sabia que a três portas de mim morava um casal. Eu tinha encontrado o marido, infelizmente. Ele me dava calafrios. Um dia, quando eu caminhava até o carro de Jimmy, ele assoviou e disse que minha bunda era deliciosa.

– Não conheço eles. Só conheço Jimmy... Jimmy Morrison. Ele mora no apartamento 2D. Ele estava aqui antes... Ah, meu Deus! Jimmy acabou de sair daqui. Ele teve que ir até a escada para voltar ao seu apartamento. Aconteceu assim que ele saiu.

A expressão do policial abrandou-se.

– Jimmy Morrison está bem. Foi ele quem pediu socorro. Ele viu a maior parte do que aconteceu e agora está prestando depoimento. Conhecia a vítima.

Meu telefone estava tocando. Era Mase ligando.

– Se lembrar alguma coisa, por favor nos telefone. Jimmy terá confirmado que tinha acabado de sair do seu apartamento. Se não confirmar, voltaremos a conversar com você. Preciso do seu nome, para o registro.

– Reese Ellis – respondi, enquanto meu telefone parava de tocar para recomeçar em seguida.

– Obrigado, Srta. Ellis.

Concordei com a cabeça e fechei a porta quando o policial dirigiu-se à porta seguinte. Tranquei-a à chave antes de atender o telefone.

– A polícia estava aqui – contei a Mase. – Fizeram algumas perguntas.

– Você está bem. – Ele soltou um suspiro de alívio.

– Sim. Jimmy viu tudo. Ele está com a polícia agora, prestando depoimento. Não sei bem o que aconteceu. A polícia não me disse nem quem era a vítima, mas um casal que mora algumas portas daqui está envolvido de algum modo. Eu só ouvi tiros e gritos. Nada além disso. Mas Jimmy estava lá fora. Ele poderia ter levado um tiro.

– Mas não levou. Não pense nisso – disse Mase, com voz firme.

Concordei com a cabeça, embora ele não pudesse ver. Ele tinha razão. Eu não precisava ficar ruminando sobre algo que não tinha acontecido.

– Você trancou a porta? – perguntou ele.

– Sim, até passei a corrente.

– Quando Jimmy tiver terminado com os policiais, ele vai até aí contar a você o que aconteceu. Agora sente-se e relaxe. Ficarei conversando com você enquanto isso. Você vai ficar bem. Sei que está nervosa e assustada.

Ouvir a voz dele já me acalmava. Sentei-me no sofá e fiquei olhando as luzes que continuavam a piscar do lado de fora.

– Leia para mim, Reese. Vai te ajudar a não pensar nisso tudo.

Não tinha certeza se conseguiria. Minha visão se turvara completamente com o nervosismo de minutos antes. Concentrar-se não funciona quando se está em pânico.

– Não sei se consigo – admiti.

– Vamos tentar – falou ele gentilmente.

Como eu queria agradar a ele, tentei.


Mase

Escutar a voz suave dela era a única coisa que poderia me acalmar. Eu estava de pé na varanda da frente, calçado com minhas botas e com as chaves na mão. Como ela não havia ligado de volta e não estava atendendo o telefone, eu me preparara para ir atrás dela.

Se ela não houvesse atendido aquele último toque, eu teria pedido a Grant ou Rush que fossem ver como ela estava, e depois pediria a meu pai que contratasse um jato privado imediatamente e me levasse até Rosemary Beach. Inferno, meus joelhos quase se dobraram de alívio quando ela finalmente atendeu o telefone. Queria que Jimmy fosse lá e contasse a ela o que tinha acontecido. Assim ela não ficaria sozinha.

Mas, até lá, eu não ia deixá-la desligar. Merda, eu não a deixaria desligar nem quando Jimmy chegasse lá. Estava quase ligando para Rush ou Grant e pedir que ficassem com ela até que eu pudesse chegar.

Esta noite ela estava com mais dificuldade para ler do que nas últimas semanas. Odiava pensar que ela estava lá, sozinha e assustada. Também odiava que morasse naquele apartamento sozinha. Não era seguro. Esta noite provava isso.

– Jimmy está batendo na porta – avisou ela.

– Quero ouvir o que ele tem a dizer – pedi.

Não queria que ela desligasse o telefone.

– Está bem. Vou deixar o telefone ligado.

Esperei enquanto ela abria a porta. Jimmy perguntou se ela estava bem e, pelo som, parecia que ele a estava abraçando. Ela deixou escapar um breve soluço e perguntou se ele estava bem. Ele garantiu que estava tudo bem.

– O que aconteceu? – perguntou Reese.

– Não sei a história toda. Quando fui para a escada, ouvi pneus cantando e então escutei Jacob xingando Melanie de vadia. Melanie começou a xingá-lo também, e então ele simplesmente tirou um revólver da cintura e atirou nela. Ela saiu correndo e gritando, e eu estava tentando freneticamente ligar para a emergência quando começou a segunda série de disparos. Eu vi... – Jimmy fez uma pausa. – Preciso me sentar. Merda, vou precisar tomar um troço forte hoje.

– Você não precisa ficar sozinho – disse Reese a ele.

– Meu namorado está a caminho. Ele vai ficar comigo esta noite – contou Jimmy.

– Que bom.

Isso não me ajudava. Eu também não gostava da ideia de Reese ficar sozinha esta noite. Também detestava que ela estivesse no primeiro andar. Era perigoso lá embaixo.

– Eu a vi cair. Ela simplesmente desabou no chão. Havia uma poça de sangue em volta dela, e ela não se mexia. Não foi a coisa mais inteligente a fazer, mas eu fui correndo até ela. E então o cretino atirou em mim. Ele errou e fugiu, mas não sei se algum dia vou conseguir esquecer a imagem de um revólver apontado para mim.

Merda.

– Ah, não, Jimmy!

– O cara no apartamento deles, com quem Melanie estava tendo um caso, saiu correndo de cueca, feito um cagão. Mas os policiais o pegaram. Ele não foi longe. Ele estava se borrando de medo. Eles também pegaram Jacob. Ele demorou demais por aqui e acabou metendo o carro numa vala depois de fazer uma curva em alta velocidade. A polícia o pegou saindo do carro. Parecia um circo. Pessoas abrindo as portas, gritando e berrando. Ninguém tentava ajudar, só entrava em pânico. Ele simplesmente... a matou. Matou com tiros. Maldito psicopata. Eles estavam casados fazia três anos.

– Isso é horrível.

A voz de Reese saiu sem energia. Ela estava perturbada. E ele ia deixá-la sozinha, enquanto se aconchegava com o namorado?

– Preciso tomar uma ducha e umas tequilas. Qualquer coisa para tirar isso da cabeça. Fique em casa e deixe tudo trancado. Você vai ficar segura. Os policiais vão ficar por aqui a maior parte da noite. Vai ficar tudo bem. Mas, se precisar, é só me ligar.

Ouvi Reese se levantar e acompanhá-lo até a porta.

– Que bom que está bem – disse ela, com a voz engasgada.

– Ah, garota. Eu estou bem – garantiu. – Só estou meio transtornado depois de ver aquilo. Eu não era íntimo de Melanie. Nem a conhecia direito, mas, droga, isso não importa. Ver uma pessoa morrer é trágico. Trágico demais.

Eles se despediram, e pude escutar Reese fechando de novo a porta e recolocando a tranca.

– Oi. Você escutou tudo? – perguntou ela.

Havia uma tensão em sua voz. Como se estivesse tentando não chorar.

– Sim. Uma confusão, né? Mas não foi um ato aleatório de violência. Então ninguém vai voltar para atirar outra vez. Você está segura – garanti.

Ela não respondeu imediatamente. Perguntei-me se ela estaria com medo de dormir agora. Depois de tudo aquilo, precisava de alguém que estivesse lá e a abraçasse.

– Vá se aprontar para dormir. Deixe o telefone perto. Eu espero. Então me leve para a cama com você. Estarei lá, ao lado da sua orelha. Podemos conversar até você cair no sono. Tudo bem?

– Tudo bem... você não se importa de fazer isso?

Eu não ia conseguir dormir hoje. Estava preocupado com ela. Mas Reese não precisava saber disso.

– Eu quero fazer isso. Agora vá se aprontar para dormir. Eu espero.

– Obrigada – murmurou ela.

Enquanto ela se preparava para dormir, coloquei o telefone no viva-voz e o guardei no bolso, e então entrei em casa. Pus a latinha de cerveja no lixo reciclável e lavei umas poucas coisas na pia.

Quando terminei, fui para o quarto. Escovei os dentes e tirei a roupa que tinha vestido apressadamente na hora que me apavorei com o que estava acontecendo com Reese, me preparando para ir lá. Então me enfiei na cama. Em poucos minutos, a voz dela retornou à linha.

– Voltei – disse ela, e ouvi a roupa de cama farfalhando.

Botei uma mão embaixo da cabeça e me deitei de costas, olhando para o ventilador de teto do quarto. Imagens de Reese no quarto começaram a mexer comigo. Eu deveria me sentir muito culpado por isso, mas não conseguia evitar.

– Quer ler um pouco mais para mim? – perguntei, tentando pensar em qualquer coisa que tirasse da cabeça o que ela devia estar vestindo.

– Não... na verdade não. Meu cérebro está muito cansado para ler.

Ela estava se mexendo outra vez. Consegui escutar o som abafado dos lençóis.

– O que você usa para dormir? – perguntei antes que conseguisse me conter.

Eu precisava saber. Aquilo estava me enlouquecendo.

Ela soltou uma risadinha.

– Nada especial. Uma calça de moletom cortada e uma camiseta. Macias e velhas, adoro dormir com elas.

Eu queria muito ver aquela camiseta velha e macia nela. A imagem na minha cabeça estava fazendo miséria com meu pau. Ele havia despertado. Mas fora eu que havia perguntado o que ela estava vestindo, então a culpa era minha.

– De que cor é a camiseta? – perguntei, me encolhendo ao falar.

Droga, o que eu estava fazendo?

– Rosa... pelo menos foi um dia. Agora está desbotada – contou, hesitante.

– Parece confortável.

– Aham – foi sua única resposta.

Ia mudar o assunto para meu próprio bem, mas acabei não tendo chance.

– Você dorme só de cueca? – perguntou, tão baixinho que eu quase não ouvi.

Pensei que ela soubesse como eu dormia depois de eu aparecer na sala enrolado em um lençol na primeira vez que nos vimos.

– Não – respondi, surpreso que ela me perguntasse.

– Ah. Como você chegou ao salão de jogos de cueca boxer quando cortei a mão, supus que você dormisse assim.

Meus lábios se abriram em um sorriso. Eu pegara a cueca na mala e a vestira enquanto corria na direção do barulho naquela manhã.

– Eu a vesti antes de ir ver o que tinha acontecido com você – expliquei.

Um breve arquejo foi sua única resposta.

– Dormir nu não é tão ruim assim. Você devia tentar uma hora dessas – provoquei, tentando aliviar o clima, já que ela parecia ter perdido a fala.

Então ela deu uma risadinha. Missão cumprida.

– Não sei se conseguiria – disse ela, num tom divertido.

 


                                           CONTINUA