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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SETE CONTOS GÓTICOS / Karen Blixen
SETE CONTOS GÓTICOS / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Entre as mais conhecidas obras de Karen Blixen, a celebrada autora de África Minha, Sete Contos Góticos é hoje considerada um clássico moderno, com uma atmosfera verdadeiramente excepcional, que junta a subtileza psicológica de um Henry James à diversidade temática de um Boccacio do norte da Europa.

Conforme escreveu Eudora Welty no The New York Times, os contos de Karen Blixen «possuem um vigor que corresponde ao segredo da delicadeza, de que as suas his­tórias representam a mais genuína essência». Dada a sua extensão, a obra é publicada em dois volumes sucessivos.

 

 

 

 

               O DILÚVIO DE NORDERNEY

Foi moda, no primeiro quartel do século passado, ir-se de veraneio às praias, mesmo naqueles países do Norte da Europa cujos povos sempre viram no mar a figura do demónio, o inimigo antiquíssimo, cruel e voraz da humanidade. O espírito romântico da época, ao comprazer-se em ruínas, fantasmas e lunáticos, concebia as tempestades nocturnas sobre um descampado, ou o intenso conflito das paixões, como um prazer mais requintado para o connaisseur do que a tranquilidade dos salões e a harmonia dos sistemas filosóficos, e lograra reconciliar os espíritos mais cul-tos com as solidões eternas das paisagens costeiras e de alto mar. Homens e senhoras da sociedade abandonavam a sombra dos seus parques e iam passear em praias ermas ou contemplar as indomáveis ondas. Os destroços de um naufrágio que a maré-baixa descobria, esqueletos hirtos e negros, salgados, tornavam-se o apetecido local dos piqueniques, onde artistas louros erguiam os cavaletes.

 

A costa ocidental do Holstein viu assim nascer e prosperar os banhos de Norderney por um período de vinte anos. Percorrendo estradas arenosas entre dunas, vinham carruagens elegantes e os coches depositar, às portas de cottages ou de pequenos hotéis muito limpos, as malas, os baús e as senhoras de pequeninos pés, em chenilles e véus que esvoaçavam à aragem fresca. O príncipe de Noer e o duque de Augustenbourg, acom panhado este pela linda esposa e pela irmã, uma selecta senhora, honravam a estância com a sua presença. A nobreza rural do Schleswig-Holstein, agitada com as últimas conturbações políticas, e os representantes das velhas dinastias comerciais de Hamburgo e Lübeck, homens que valiam o seu peso em ouro, peregrinavam juntos até ao coração da Natureza. Os camponeses e os pescadores de Norderney, esses, aprenderam a ver no monstro cinzento, pérfido e terrível que se estendia a oeste um amável maìtre de plaisir.

 

Em Norderney se construiu um Passeio Público, um clube e um pavilhão, o rendez-vous, nas longas noites estivais, de muitas e belas cores e de sons. As mães de meninas casadoiras, sobreviventes de fanadas saisons em cortes e burgos, vigiavam agora os namoros que floresciam, promissores, em praias soalheiras. Os jovens dandies manobravam as montadas nos largos areais perante uns olhos claros. Senhores de idade embrenhavam-se em discussões de genealogia e política no clube, um copo de excelente rum ao alcance da mão; e as suas mulherzinhas dirigiam-se, o xaile de caxemira no braço, a um vale perdido nas dunas, ainda crestadas do longo dia de sol, para se unirem à Natureza, aos tufos de ervas e aos amores-perfeitos batidos pelo vento, e empinarem o nariz olhando a lua cheia, tão pálida no céu de Verão. Até o beijo do ar tinha ali um vigor zombeteiro, que estimulava e rejuvenescia o coração. Heinrich Heine, que também visitou a estância, declarava que o persistente cheiro a peixe entranhado nas filhas dos pescadores de Norderney era o suficiente para lhes proteger a virtude. Mas outras narinas, outros corações havia que o cheiro podre dessa maresia embriagava como o cheiro da pólvora sobre um campo de batalha. Surgiu até em Norderney um pequeno casino, onde se procurava seduzir outros perigosos poderes da existência. Davam-se por vezes grandes bailes, e nas noites calmosas de Verão uma orquestra tocava no mirante.

 

- Nem faz ideia - dizia a princesa de Augustenbourg a Herr Gottingen - de como este lugar nos faz sentir lavados. A brisa do mar penetra-me o chapéu e a roupa, penetra-me a própria carne e os ossos até me tocar o coração, e a alma fica lavada, seca do sol, salgada.

 

- Do mais puro sal ático, já reparei - cumprimentou Herr Gottingen e, olhando a princesa, acrescentou mentalmente: «É bem verdade. Parece de facto um bacalhau em salmoura.»

 

Nos finais desse Verão de 1835 sucedeu uma terrível catástrofe nos banhos de Norderney. Após três dias de tempestade vinda do su-doeste, o vento virou subitamente a norte, coisa que só acontece uma vez em cada cem anos. A tremenda massa de água trazida pela tempestade mudou de curso e a pressão abateu-se a contravento sobre o land ocidental. O mar rompeu os diques em dois lugares e precipitou-se pelas brechas. Vacas e ovelhas afogaram-se às centenas. Casas e celeiros ruíram, como castelos de cartas sob a força das águas que avançavam, e muitas vidas humanas se perderam em lugares tão afastados como Wilsum e Wredon.

 

Tudo começou numa tarde de extraordinária e agradabilíssima calma, embora o ar abafasse, opaco, numa luminosidade estranha e sulfurosa. Não se divisava um li-mite entre céu e mar. O po-ente fora uma confusão de luz, e o próprio Sol se apresentara na cor vermelha e baça do escudete do Passeio. As ondas pareciam feitas de uma singular substância, como se medusas se espraiassem na areia. Fora uma tarde altamente inspiradora: muita coisa aconteceu em Norderney. Nessa noite, os que puderam conciliar o sono, alheios ao bater do próprio coração, acordaram no terror de um rugido que velozmente chegava. Como poderia aquele mar cantar nessa voz nova?

 

De manhã o mundo encontrava-se mudado, mas desconhecia-se que mudança se operara. Com o ruído ninguém conseguia falar, pensar sequer. O que o mar fazia então ninguém o saberia dizer. As roupas seriam arrancadas do corpo de quem ousasse avistar a praia, e a espuma salgada turbilhonava a espantosa altura. Vagas enormes e altaneiras se lhe seguiam, cada uma mais poderosa do que a outra. O vento era frio e cortante.

 

Rumores tinham chegado aos banhos que um barco dera à costa quatro milhas a nor-te, mas ninguém se aventurou a sair para o ver. O velho general Von Brackel, que assistira à ocupação da Prússia Oriental pelos exércitos de Napoleão em 1806, e o velho professor Schmiegelow, médico dos príncipes de Coburgo, que estivera em Nápoles no tempo da cólera, foram juntos até uma pequena elevação de onde observaram a cena, ambos em silêncio. Só na quinta-feira chegaria o dilúvio. Mas o temporal passara.

 

Por esta altura, aliás, muitos haviam abandonado Norderney. A temporada estava no fim e os visitantes mais ilustres haviam partido antes do temporal. Agora, a maioria dos que ficaram apressava-se a partir também. As jovens comprimiam o rosto contra as janelas dos coches, na ânsia de entrever um último aspecto da paisagem em fúria. Parecia-lhes que deixavam para trás o lugar, a hora mais real de suas vidas. Mas quando o imponente coche do barão Goldstein, de Hamburgo, foi atirado para o dique pela violência do vento, todos compreenderam que era chegada a hora de agir com rapidez. E todos partiram sem demora.

 

Foi durante essas horas, a última do temporal e a primeira da noite seguinte, que o mar rompeu os diques. Feitos para resistir a uma grande pressão vinda do lado do mar, os diques não aguentaram quando minados de leste. Cederam numa extensão de meia milha, e o mar entrou por essa abertura.

 

Os camponeses foram acordados pelos queixumes dos animais. Ao levantarem-se da cama, às escuras, os pés mergulharam em mais de um palmo de água fria e lamacenta. Água salgada. A mesma que, para ocidente, e com uma profundidade de 100 braças, banhava as brancas faldas das colinas de Dover. O Mar do Norte viera visitá-los. E subia rapidamente. No espaço de uma hora tudo o que era móvel nas casas baixas flutuava, chocando contra as paredes. À luz da aurora os camponeses olhavam, dos telhados, a terra que em volta se transformara. Árvores e arbustos pareciam crescer num terreno movente e pardo, e uma espuma grossa e amarela cobria as searas que amadureciam, essas cuja colheita eles haviam discutido nos dias que antecederam o temporal.

 

Cheias assim já as houvera. Alguns velhos repetiam ainda aos jovens as peripécias de um dia em que foram arrancados ao leito e lançados para as jangadas pelas mães, muito pálidas, e viram, das casas que ruíam, debater-se o gado e submergir nas águas negras; um dia em que famílias inteiras ficaram ao desamparo, ou se arruinaram e perderam. O mar fazia destas coisas, de tempos a tempos. Esta cheia, porém, ficou impressa na memória dos habitantes da costa. Chegado em pleno Verão, o dilúvio fora uma ironia amarga e sinistra. Nos anais da região, onde tomou lugar e nome próprios, é chamado a Cheia do Cardeal.

 

Isto porque, no seu infortúnio, as gentes aterrorizadas tiveram o apoio de uma figura já então quase mítica, e sentiram a presença de um anjo da guarda a seu lado. Volvidos muitos anos parecia, no espírito dos camponeses, que a presença desse homem, em dias de tanto desespero, iluminara de uma grande e branca luz as trevas das águas.

 

O cardeal Hamilcar von Sehestedt tinha nesse Verão ocupado uma casinha de pescadores a alguma distância dos banhos, na intenção de coligir os seus papéis de muitos anos numa obra sobre o Espírito Santo. Tal como Joaquim de Fiore, que nasceu em 1202, o cardeal era de opinião que, sendo o Antigo Testamento o livro do Pai, e o Novo Testamento o do Filho, o Testamento da Terceira Pessoa da Trindade não tinha sido escrito ainda. Escrevê-lo fora a tarefa a que devotara toda a sua vida. Crescera no land ocidental e conservara, por uma vida de viagens e trabalhos espirituais, o amor pelas paisagens costeiras e pelo mar. Nas horas de Lazer costumava, seguindo o exemplo de São Pedro, sair para o mar largo com os pescadores, observando-os na sua faina. Tinha o cardeal consigo no cottage apenas um tipo de criado ou secretário, um homem de nome Kasparson. Este homem, que fora actor e aventureiro, e tivera o seu quê de brilhante nesses campos, falava muitas línguas e dedicara-se a toda a sorte de estudos. Era afeiçoado ao cardeal, mas seria um curioso Sancho Pança deste nobre cavaleiro da Igreja.

 

O nome de Hamilcar von Sehestedt era nesse tempo famoso por toda a Europa. Fora feito cardeal três anos antes, contando apenas 70 anos de idade. Era uma estranha flor no sólido tronco dos Sehestedt. Uma velha e nobre estirpe da região consagrara-se durante muitos séculos somente à guerra e às suas propriedades, para enfim o produzir. Digno de nota era neles tão-só o apego, testado por muitas provas, à velha fé católica da província. Não possuíam a mobilidade de espírito que os levasse a modificar o que uma vez lograssem aprender. O cardeal tinha nove irmãos, e em nenhum se revelaram os indícios de uma vida espiritual. Fora como se um tesouro in-telectual, longamente junto pela tribo e perfeitamente intacto, se tivesse revelado unicamente neste seu filho. Talvez uma mulher, vinda do exterior, tenha deixado uma gota de pensamento neste sangue antes de se tornar uma Sehestedt, ou uma ideia de um livro tenha impressionado um rapazinho antes que alguém lhe pudesse ensinar que livros e ideias de nada servem; e tudo isto se acumulara.

 

Os dons extraordinários do jovem Hamilcar foram notados, não pela família, mas pelo seu preceptor, que havia sido mestre de Sua Alteza o príncipe herdeiro da Dinamarca. Foi ele quem conseguiu levar o rapaz até Paris e Roma. Aí, esta nova luz do génio flamejou subitamente num claro brilho, impossível de ignorar-se. Corria a lenda que o Papa, depois de receber o novo padre, vira em sonhos que o jovem tinha sido escolhido pela Providência para trazer os grandes países protestantes de novo ao seio da Santa Sé. A Igreja, porém, submeteu o jovem a severas provas, suspeitosa de muitas das suas ideias e faculdades, dos seus dons de visionário, e do traço mais surpreendente do seu carácter: uma imensa piedade que se estendia não só aos pecadores e aos infelizes, como parecia incluir até, o que de mais alto e sagrado havia no mundo. A severidade da Igreja não o magoou: era de seu natural obediente. Ao grande poder imaginativo aliava um profundo amor à ordem e à lei. Talvez estes dois aspectos da sua natureza fossem afinal a expressão de uma e mesma coisa: a ele tudo parecia possível, e igualmente capaz de integrar-se na bela e harmoniosa ordem das coisas.

 

O próprio Papa teria dito dele mais tarde: «Se, após a destruição deste mun-do conhecido, tivéssemos de encarregar um só homem da construção de um mundo novo, o único a quem confiaríamos tal tarefa seria o nosso jo-vem Hamilcar.» Dito isto, porém, o Papa benzeu-se rapidamente duas ou três vezes.

 

O jovem cardeal, depois de trabalhado pela Igreja, fez-se um homem do mundo, na velha acepção da palavra, se bem que em maiores e novas proporções. Movia-se com a mesma serenidade entre reis como entre párias. Fora en-viado aos mosteiros missionários do México, e a sua influência era grande entre as tribos índias e mestiças. Uma coisa nele impressionava o mundo, onde quer que fosse: acreditava-se que po-dia fazer milagres. Por altura da sua estada em Norderney, os homens rudes e grosseiros deram em pensar dele estranhas coisas. Depois do dilúvio muitos houve que disseram tê-lo visto andar por sobre as ondas.

 

Talvez se tivesse sentido em desvantagem para o fazer, pois quase morrera nas primeiras horas da cheia. Os pescadores do lugar que, ao verem aproximar-se a inundação, correram a pedir o seu auxílio, foram encontrar o cottage quase em ruínas. O desabamento matara Kasparson, o criado. O próprio cardeal encontrava-se muito ferido e, durante todo o trabalho de salvamento, usara uma alta ligadura manchada de sangue em volta da cabeça.

 

Apesar disto o velho trabalhou todo o dia com uma coragem indómita, em companhia dos sinistrados. O di-nheiro que trazia consigo deu-o a eles. Foi a primeira contribuição para os fun-dos que iriam ser depois an-gariados em favor das vítimas por toda a Europa. Muito maior porém foi o efeito da sua presença entre eles. Demonstrou grandes conhecimentos de pilotagem. As gentes não acreditavam que o barco que o transportava se afundasse. Sob o seu comando remavam sem hesitar entre os edifícios em ruínas, e as mulheres saltavam dos telhados das casas para os barcos com os filhos ao colo. De tempos a tempos falava-lhes o cardeal numa voz clara e forte, citando o Livro de Job. Uma ou duas vezes quando o barco, atingido por pesadas madeiras à deriva, estivera quase a voltar-se, ele levantou-se, estendeu a mão e, como se lhe transmitisse o mágico poder do equilíbrio, o barco estabilizara-se. Perto de uma casa, numa quinta, um cão preso no telhado do canil que o mar varria, puxava pela corrente e uivava, parecendo louco de medo. Quando um dos homens tentou pegar-lhe, o cão mordeu-o. O velho cardeal, virando um pouco o barco, falou ao cão e libertou-o da corrente. O cão saltou para o barco. Ganindo, encolheu-se contra as pernas do velho e nunca mais se separou dele.

 

Muitas famílias de camponeses foram salvas antes que alguém se lembrasse da estância de veraneio. Esquecimento singular, pois essa vida de luxo e de alegria desempenhava um importante papel na imaginação popular. Mas na hora do perigo os velhos laços de sangue e de vida foram mais fortes que o novo fascínio. Nos banhos haveria botes para as viagens de recreio, mas poucos que os soubessem manobrar. Só pelo meio-dia saíram os barcos de maior calado, avançando pela braça de água que cobria o Passeio.

 

O lugar onde os barcos descarregavam, no seu regresso a terra firme, era um moinho de vento que, por si-tuar-se num suave declive e num bastião semicircular de grandes pedras, lhes permitia porem-se de capa. Do outro lado atingia-se, com alguma dificuldade porém, a estrada. A pouca distância dali aguardavam os cavalos e as carroças. O moinho era um marco visível na paisagem, com as suas altas velas erguidas, austeras e hirtas, grande cruz negra delapidada contra a fulva cor do céu. Muitos se foram juntando ali, à espera dos barcos. Quando estes chegaram da sua primeira viagem aos banhos não foram recebidos com lágrimas de boas-vindas e reunião, pois esses que os barcos traziam, luxuosamente vestidos mesmo se em pânico, e com pesados escrínios no colo, eram estranhos. O último barco deu a notícia de estarem ainda em Norderney quatro ou cinco pessoas para quem não houvera lugar no barco.

 

Os remadores cansados entreolhavam-se. Conheciam a maré e o alto mar, e pensaram: «Nós é que não vamos». O cardeal Hamilcar estava, com um grupo de mu-lheres e crianças, de costas para os homens mas, como se pudesse ler-lhes nos rostos e nos corações que endureciam, ficou silencioso. Voltou-se e olhou o grupo de recém-chegados. Até ele parecia hesitar. Sob as li-gaduras brancas os olhos pousaram neles com uma expressão singular, misteriosa. O cardeal não comera em todo o dia; agora pedia que lhe dessem de beber, e trouxeram-lhe um jarro da forte bebida da região. Voltando-se mais uma vez para a água, proferiu em voz baixa estas palavras: Eh bien. Allons, allons. As palavras eram estranhas para os camponeses, pois eram termos usados pelos cocheiros da aristocracia, treinados no estrangeiro, ao falar com os seus tiros de quatro cavalos. Ao dirigir-se para o barco, e enquanto a gente dos banhos dispersava à sua frente, algumas das senhoras subitamente começaram a aplaudir com frenesim. Não o fizeram por mal. Conhecendo o heroísmo apenas do palco, ofereciam-lhe o aplauso do palco. Mas o velho que elas assim aplaudiam parou, por momentos, escutando. Curvou ligeiramente a cabeça, com uma finíssima ironia, à maneira de um herói do palco. Os seus membros estavam tão rígidos que teve de ser apoiado e içado para o barco.

 

Só no fim da tarde de quinta-feira o barco empreendia de novo a sua viagem de regresso. Uma treva de morte havia-se instalado por toda a paisagem. Até onde o olhar alcançava, o que fora uma extensão ondulante de terra era agora uma imensa planície cinzenta, assustadoramente viva. Nada parecia firme. Para os corações apertados dos homens que remavam por sobre searas e prados, esta mobilidade do que antes fora o seu alicerce e apoio era insuportável, e eles desviavam os olhos dela. As nuvens baixas debruçavam-se para as águas. O pequeno barco, movendo-se pesadamente, parecia avançar sobre uma rota estreita, horizontal, apertado entre o peso maciço em baixo e o que parecia ser um peso maciço sobre ele. As quatro pessoas que haviam sido salvas das ruínas de Norderney sentavam-se, pálidas como cadáveres, à popa.

 

A primeira dessas pessoas era Miss Nat-og-Dag, uma velha solteirona muito rica, a última geração de uma antiga família que tem como brasão um escudo partido de branco e preto e cujo nome significa «Noite e Dia». Rondava os sessenta, e o seu espírito estava con-fuso havia alguns anos, pois ela, senhora de severíssima virtude, acreditava ter sido uma das grandes pecadoras do seu tempo. Tinha consigo uma rapariga de 16 anos, a condessa Calypso von Platen Hallermund, sobrinha do poeta e erudito do mesmo no-me. Estas duas senhoras, embora se comportassem perante o perigo com grande autodomínio, davam contudo uma impressão de arrebatamento como só a decadente aristocracia em extinção pode, numa sociedade e num tempo de paz, dar-se ao luxo de manter. Ao grupo dos salvadores parecia que tinham levado para o barco dois tigres fêmeas, uma jovem, a outra velha, a cria completamente selvagem, a velha mais perigosa ainda por parecer domesticada. Nenhuma delas sentia o menor medo. Enquanto somos jovens a ideia da morte e do fracasso é-nos intolerável; não suportamos sequer a possibilidade de cairmos no ri-dículo. Mas temos ao contrário uma fé indómita na nossa boa estrela, e na impossibilidade de que alguma coisa se aventure a contrariar-nos. Quando envelhecemos, principiamos lentamente a acreditar que tudo há-de por fim voltar-se contra nós, e que o fracasso faz parte da ordem das coisas; mas nessa altura já não nos importamos muito com o que venha a acontecer-nos. Assim se obtém o equilíbrio. Miss Malin Nat-og-Dag, se bem que perfeitamente indiferente ao que pudesse acontecer-lhe, aliava, por força da sua perturbação mental, as vantagens que lhe conferia a sua idade ao privilégio da juventude, esse optimismo simples e arrogante que inabalavelmente crê que nada pode correr mal. Talvez ela nem acreditasse que podia morrer. A rapariga de 16 anos, abraçada a ela, as negras tranças soltas e fustigadas pelo vento, olhava para tudo o que a rodeava num êxtase: os rostos dos companheiros, os movimentos do barco, a cor terrível, de um castanho baço, da água a seus pés, e imaginava-se uma grande divindade marinha.

 

A terceira pessoa entre os que foram salvos era um jovem dinamarquês, Jonathan Maersk, que fora mandado a Norderney pelo médico a restabelecer-se de um severo ataque de melancolia. A quarta pessoa era a criada de Miss Malin, que jazia no fundo do barco, tão aterrorizada que não ousava erguer o rosto dos joelhos da sua senhora.

 

Estas quatro pessoas, tão tardiamente roubadas às fauces da morte, não tinham ainda escapado ao seu braço. Quando a embarcação, na sua viagem para terra, passou a pouca distância das casas esparsas de uma quinta, das quais só os telhados e a parte superior das paredes surgiam acima da linha da água, os que nela seguiam avistaram seres humanos que lhes faziam sinais de um sótão. Os camponeses que remavam surpreenderam-se, pois tinham a certeza de que uma grande barcaça havia sido enviada a esse mesmo lugar pela manhã. Guiados pelo poderoso olhar da jovem Calypso, que avistara crianças entre os refugiados, mudaram de rumo e com dificuldade acercaram-se da casa. Ao aproximarem-se, um pequeno celeiro de que apenas o telhado era visível, cedeu subitamente, desmoronou-se e desapareceu sem ruído perante os seus olhos. Ao ver isto, Jonathan Maersk ergueu-se no barco. Por momentos procurou seguir os escombros dispersos com o olhar. Depois voltou a sentar-se, muito pálido. O barco roçava na parede da casa e por fim encontrou o croque numa viga mais saliente, o que lhes permitiu comunicarem com as pessoas refugiadas no palheiro. Ali encontraram duas mulheres, uma velha e a outra jovem, um rapaz de 16 anos e duas crianças pequenas, e ali souberam que a barcaça os visitara três horas antes. Mas com ela apenas lucraram o salvar a vaca e o bezerro e uma pequena porção dos seus escassos bens, tendo eles ficado heroicamente para trás, rodeados pelas águas que subiam. Fora oferecido à velha um lugar na barcaça com o gado, mas ela recusara-se a abandonar a filha e os netos.

 

O barco não podia aguentar o peso de mais cinco pessoas, e havia que decidir rapidamente quem de entre os passageiros trocaria de lu-gar com a família da quinta. Os que ficassem no palheiro teriam de ali permanecer até que o barco pudesse voltar. Como já escurecia, e não havia hipóteses de trazer ali um barco antes do amanhecer, ficar significaria uma espera de seis ou sete horas. A questão era saber se a casa aguentaria por todo esse tempo.

 

O cardeal, erguendo-se, a capa negra adejando, disse que ficaria no palheiro. Ao ouvirem estas palavras os homens do barco mergulharam no mais negro desespero. Tinham medo de regressar sem ele. Os remadores largaram os remos e agarraram-no, implorando que ficasse. Mas ele, não lhes dando ou-vidos, explicou que estaria sempre nas mãos de Deus, ali ou em qualquer lugar, mesmo se o dedo de Deus era, um outro, e que talvez fosse por isto que ele tinha sido enviado nesta última viagem. Os homens viram que nada o poderia demover, e resignaram-se à sua sorte. Miss Malin, então, prontamente se revelou determinada a acompanhá-lo, e a rapariga não deixaria a sua velha amiga. O jovem Jonathan Maersk pareceu acordar de um sonho e disse-lhes que iria com eles. No último momento a criada de Miss Malin exclamou que não deixaria a sua senhora, e os homens já a levantavam do fundo do barco quando a ama lhe assestou um desses olhares que revelam se a pessoa em questão é bom parceiro numa mesa de jogo.

 

- Minha querida - disse ela - não és precisa aqui. Além disso, estás provavelmente de esperanças, e portanto tens de pensar no futuro, minha filha. Boa noite, Mariechen.

 

Não foi fácil para as mulheres passarem do barco para o palheiro. Miss Malin, porém, era magra e forte, e os homens içaram-na e colocaram-na sobre a soleira, tal como se colocassem um espantalho num campo. A rapariga, pequena e leve, seguiu-a com a agilidade de uma gata. O cão preto, ao ver que o cardeal abandonava o barco, lançou fortes ganidos e subitamente saltou da amurada para o palheiro, e a rapariga puxou-o para dentro. Era mais do que tempo de a família de camponeses entrar no barco, mas não o quiseram fazer sem antes beijar, em altos choros, as mãos dos seus salvadores e os cumularem de bênçãos. A velha insistiu em entregar-lhes uma pequena lanterna de cavalariça e um par de velas de sebo, um jarro de água e um barrilete de gin, bem como o pão escuro e grumoso como o fazem os camponeses do land.

 

Os homens do barco empunharam os remos e em breve uma faixa de água castanha separava da casa o barco.

 

Da porta do palheiro os desamparados observaram o barco que se afastava muito lentamente, pois ia de sobremaneira carregado, na ondulante planura. Os ramos dos altos choupos junto à casa flutuavam à superfície das águas e eram violentamente arrastados com elas. O céu negro, que todo o dia pesara sobre o mundo como chumbo, coloriu-se subitamente no longínquo ocaso, como se o peso ali se aliviasse um pouco, de um vermelho flamejante que se reflectiu no mar. Todos os rostos dos que iam no barco se fixavam no palheiro, e quando quase o perdiam de vista levantaram os braços num gesto de adeus. A figura do cardeal, na porta, er-gueu solenemente os braços numa bênção. Miss Malin acenou com o seu lencinho. Em breve o barco desaparecia, unindo-se ao céu e ao mar.

 

Como se fossem marionetas puxadas pelo mesmo fio, os quatro voltaram-se uns para os outros.

 

«Será ele capaz de dançar bem comigo?», pergunta a si própria a jovem quando, no baile, o Chapeau lhe é apresentado. Talvez acrescente: «Será para mim o Namorado, o Épouseur, o Prometido que me espera?»

 

«Serão estas pessoas capazes de morrer bem comigo?», perguntaram-se os náufragos do palheiro, perscrutando os rostos uns dos ou-tros. Miss Malin, sempre disposta a ver o lado bom de tudo, achou-se satisfeita com os seus companheiros.

 

Foi o cardeal quem expressou estes pensamentos. O velho, de pé e em profundo silêncio, parecia necessitar de uns instantes para habituar-se à estabilidade de uma casa depois de um dia passado em barcos sobre o agitado mar, e habituar-se também a uma atmosfera de relativa paz depois de longas horas de incessante perigo - pois não era provável que alguma coisa acontecesse, de momento - e habituar-se também, depois do seu trabalho junto dos camponeses e pescadores aflitos, à companhia dos seus iguais, lentamente os seus modos transformaram-no de comandante em conviva. Sorriu aos companheiros.

 

- Meus irmãos - disse - congratulo-me por estar entre gente corajosa. É com prazer que aguardo as horas que Deus permitir que aqui passe convosco. A sua bravura, Madame - disse ele a Miss Malin - não me surpreende, pois conheço a história da sua família. Foi um Nat-og-Dag que em Warberg, quando a montada do rei tombou ferida, saltou do seu cavalo e o entregou ao rei dizendo: «Ao Rei o meu cavalo, ao inimigo a minha vida, a Deus a minha alma.» Foi um Svinhoved 1 se não me engano - o seu trisavô - quem, na batalha de Koege, preferiu, a expor toda a frota dinamarquesa ao perigo de um incêndio pela proximidade do seu navio que ardia, continuar o combate enquanto lhe restou um sopro de vida, até que o fogo atingiu o paiol da pólvora e a explosão o matou com toda a marinhagem. Aqui - disse ele, abarcando com os olhos o palheiro - posso bem dizê-lo: Bem-aventurados os puros de sangue, porque verão'''

 

Fez uma pausa, reflectindo no seu tema.

 

- A morte - concluiu. - Em verdade vos digo que verão a face da morte. Para este nosso momento aqui foi que os nossos avós foram educados, através dos séculos, no manejo das armas e na lealdade ao seu rei; e as nossas avós na virtude.

 

Não poderia ter dito

 

1 O nome significa «cabeça de porco». (N' da A')

 

nada que melhor fortalecesse e inspirasse os corações das mulheres, que ambas eram acérrimas defensoras do orgulho da raça. Mas o jovem Jonathan Maersk, o único burguês entre eles, fez um gesto como se protestasse. Todavia nada disse.

 

Fecharam a porta do palheiro, mas, como estivesse solta e ressoasse continuamente no batente, o cardeal pediu às mulheres o favor de arranjarem alguma coisa com que a prendessem. A rapariga levou a mão ao cabelo, procurando a fita que o tinha atado, mas havia-se perdido no vento. Miss Malin então levantou graciosamente a saia e tirou uma larga jarreteira com rosas em botão bordadas.

 

- O zénite da carreira de uma liga, Eminência - disse ela - é geralmente o desprender-se mais do que o prender. Por esse motivo a irmã gémea desta fita, que a vossa venerável mão agora santifica, jaz na cripta do Mausoléu Real de Estugarda.

 

- As suas palavras, Madame - disse o cardeal - são ditas frivolamente. Peço-lhe que não fale nem pense assim. Nada santifica, nada, de facto, é santificado excepto pela intervenção do Senhor, pois só Ele é divino. As suas pa-lavras são as de alguém que pronunciasse metade das notas da escala - digamos o dó, o ré e o mi - como sendo sagradas, e o fá, o sol, o lá e o si como profanas somente, quando, Madame, nenhuma das notas é em si mesma sagrada e só a música, que delas pode ser feita, é divina. Se a sua liga, Ma-dame, for santificada por esta mão velha e débil, tam-bém esta mão o será por essa fita de seda fina. O leão espera o antílope no riacho, e o antílope é santificado pelo leão como o leão pelo antílope, pois só a intervenção do Senhor é divina. Não são o bispo, ou o cavalo, ou a poderosa torre sa-grados em si mesmos, e só o xadrez é um nobre jogo, e nele o cavalo é santificado pelo bispo, como o bispo pela rainha. Nem seria vantajoso que o bispo ambicionasse as virtudes superiores da rainha, ou a torre as do bispo. Assim nós somos santificados quando a mão do Senhor nos move até onde Ele quer que estejamos. Aqui, neste lugar, talvez Ele esteja prestes a jogar um belo jogo connosco, e nesse jogo eu serei santificado por si, como a senhora por qualquer um dos que aqui estão.

 

Quando a porta do palheiro se fechou, o compartimento ficou escuro, e só a pequena lanterna sobre o chão irradiava uma suave luz. O palheiro parecia um lar aos corações dos desamparados. Era como se ali tivessem vivido longo tempo. Os lavradores haviam ceifado há pouco o feno, e em metade do palheiro se guardavam os molhos. Cheirava muito bem o feno, e oferecia um assento limpo e macio. O cardeal, que se achava muito fatigado, depressa se afundou nele, a capa longa espalhada em sua volta no chão. Miss Malin sentara-se em frente dele, do lado oposto da lanterna. A rapariga sentou-se junto dela, as pernas cruzadas, como um pequeno ídolo oriental. O rapaz, quando por fim se foi sentar com eles, instalou-se numa escada que havia pelo chão, e que o elevava um pouco acima dos outros. O cão não se afastava do cardeal. Sentado sobre as patas traseiras, as pontas das orelhas empinadas, de tempos a tempos o animal parecia, num movimento profundo, engolir o medo e a solidão. Nestas posições ficaram eles durante a maior parte da noite. Aliás, o cardeal e Miss Malin mantiveram-se assim, como veremos, até romper a primeira luz da aurora. As sombras de todos, projectadas num círculo de que o centro era a lanterna, subiam até às vigas do tecto. Durante a noite muitas vezes pareceu que estas largas sombras estavam realmente vivas, e que eram elas que falavam e animavam o grupo, por trás das pessoas exaustas.

 

- Madame - disse o cardeal a Miss Malin - ouvi falar do seu salão, onde a senhora a todos faz sentir tranquilos e simultaneamente ansiosos por mostrarem o seu melhor. Como desejamos sentir-nos assim nesta noite, peço-lhe que seja aqui a nossa anfitriã, e que para este palheiro transfira os seus talentos.

 

Miss Malin imediatamente aquiesceu à sugestão e chamou a si essa incumbência. Durante a noite desempenhou o seu papel, prodigalizando aos convidados os luxos raros da solidão, da treva e do perigo, guardando em trunfo a própria Morte, como um leão da temporada, ou um puro tenor italiano, fora do alcance das damas rivais, esperando à porta pelo momento de aparecer e provocar a grande sensação da noite. Alguns conseguem refastelar-se até num trono; Miss Malin, ao contrário, sentava-se no feno como num desses escabelos que fazem parte dos privilégios das duquesas. Conseguiu que Jonathan partisse o pão e o distribuísse, e para os companheiros, que não haviam comido em todo o dia, as côdeas duras e negras tinham a fragrância das searas. Pela noite fora, ela e o cardeal, ambos velhos e enfraquecidos, beberam quase todo o gin do barrilete. Os dois jovens não lhe tocaram.

 

Desde o começo, a incumbência de fazer os companheiros sentirem-se confortáveis se revelou mais árdua do que esperava, pois, apenas tinha falado, o cardeal caiu num desmaio profundo. As mulheres, que não ousavam aliviar as ligaduras da cabeça, molharam-nas com a água do jarro. Ao recobrar os sentidos, o cardeal olhou-as demoradamente, como alucinado, e levou as mãos à cabeça, mas ao recuperar a consciência pediu desculpas brandamente pelo trabalho que lhes dera, acrescentando que tivera um dia fatigante. Parecia, porém, transformado depois que se restabelecera, como se estivesse agora mais fraco do que antes, e, como se entregasse alguma parte da sua liderança e responsabilidade nas mãos de Miss Malin, manteve-se perto dela sempre.

 

Convirá talvez, chegados a este ponto, contar um pouco da história de Malin Nat-og-Dag.

 

Foi dito que estava um pouco louca. Todavia, a quem a conheceu bem, parecia por vezes duvidoso que ela não estivesse louca por sua própria escolha, ou por um capricho seu, pois ela era uma mulher caprichosa. Nem ela estivera sempre louca. Fora, até, uma mulher de forte inteligência, que estudara filosofia e escarnecera das paixões humanas. Se a Miss Malin fosse dado escolher agora voltar à razão, e estivesse capaz de compreender o significado de tal oferta, talvez ela a declinasse por, na realidade, se tirar mais prazer da vida quando se é um pouco louco.

 

Miss Malin era agora uma mulher rica, mas nem sempre o fora. Órfã, crescera em casa de uns parentes ricos. O seu orgulhoso e antigo nome, esse, sempre o tivera, bem como o seu orgulhosíssimo e grande nariz.

 

Fora educada por uma piedosa preceptora da seita dos Hernutos, que muito prezavam a virtude na mu-lher. Nesses tempos o corpo feminino tinha um único centro de gravidade, e a vida era para a mulher mais simples, por esta razão, do que iria ser depois. A mulher podia envenenar a parentela, ou fazer uma tremenda batota às cartas, sem deixar de ser uma honnête femme, conquanto não tolerasse a heresia na esfera do que lhe era específico. As damas do seu tempo podiam fixar elas próprias o preço dos seus corações, das suas opiniões, ou das suas almas, se optassem por um pacto com o diabo; mas o corpo da mulher era o seu capital de renda, e o abaixamento, por ela, do sacrossanto preço oficial era considerado como um acto de competição desleal pela guilda das honnêtes femmes, e como um pecado mortal. Com efeito, quanto mais alto a mulher cotasse o seu preço, individualmente, maior era o seu estatuto de santidade, e seria de todo preferível que dela se dissesse que fizera muitos homens infelizes do que dela se soubesse que os havia feito, a muitos, felizes.

 

Miss Malin, tanto por inclinação como por educação, estraçoava um tanto a observância da doutrina. A sua táctica, além de defensiva era, e audaciosíssima, ofensiva. Caprichosa por natureza, não via razões para a temperança, e subiu o seu preço a um nível extravagantemente alto. Com efeito, e no que diz respeito à alta cotação do próprio corpo, veio a tornar-se vítima de uma certa megalomania. Sigrid, a Altiva, a antiga rainha da Noruega, convocou todos os seus pretendentes entre os pequenos reis do país, e depois lançou fogo à casa, queimando-os a todos, declarando que era assim que ensinava os reizinhos da Noruega que se atreviam a cortejá-la. Malin poderia ter feito o mesmo com uma consciência igualmente tranquila. Sensível às palavras da Bíblia que a preceptora lhe lera - «Aquele que olhar para a mulher com luxúria comete com ela adultério em seu coração» - fez de si a émula feminina do consciencioso jovem do Evangelho. O desejo de um homem por ela tomava-o, como provavelmente fez a rainha Sigrid, por impertinência fatal, um crime tão grave como uma tentativa de violação. Revelou sempre pouco esprit de corps feminino, e parecia não reflectir sequer em quão injusto seria esse princípio para as jovens honestas em geral, se fosse levado a cabo, pois todo o campo de acção das jovens se media entre as duas ideias, e, fundindo-as, pôr-se-ia um tão rápido fim à actividade delas como à de um tocador de concertina por fechar o instrumento e prender uma à outra as duas extremidades. Miss Malin fez uma figura quase patética como todos os que, neste mundo, tomam as palavras das Escrituras au pied de la lettre. Mas de nada lhe importava a figura que fazia.

 

Na sua juventude, porém, esta virgem fanática não fez fraca figura, pois era talentosa e brilhante em extremo. Ainda que não fosse bonita, possuía o supremo dom de o parecer, e em sociedade desempenhava o papel de uma beldade requisitada enquanto mulheres mais belas ficavam sós. As homenagens recebia-as como natural tributo devido a uma Nat-og-Dag, e não era insensível aos galanteios que enalteciam o seu ânimo e coragem, ou os seus raros talentos de instrumentista e dançarina. Escolhia até as amizades, sobretudo entre os homens, e considerava as mulheres um pouco estúpidas. Mas, ao mesmo tempo, estava sempre alerta, como um touro esperando a capa, ou o cruzado a insígnia do crescente, contra um indício de luxúria nos olhares. Para aniquilar o seu possuidor sem dó nem piedade.

 

E contudo Miss Malin não escapou ao destino do ser humano. Também ela se apaixonou. Aos 27 anos, já uma solteirona, decidiu-se por fim a casar. Esta posição fazia-a sentir-se uma fêmea muito alta, rodeada pelos latidos de cãezinhos de colo. Ainda estava disposta a queimar os reizinhos que pudessem atrever-se a cortejá-la, mas a escolha foi ela quem a fez. Assim fizera já a rainha Sigrid, que arrebatou o herói cristão Olav Trygveson, e na saga se conta o trágico resultado do encontro destes dois orgulhosos corações.

 

Malin, ela, escolheu o príncipe Ernest Theodore de Anhalt. Este jovem era o ídolo do seu tempo. Do mais alto nascimento e extremamente rico, visto sua mãe ter sido uma grã-duquesa da Rússia, ele era também formoso como um anjo. Um bel-esprit, e um leão da Judeia como soldado. Tinha, até, um nobre coração, e nada havia de frívolo no seu carácter, chegando ao ponto de afligir-se vendo a seus pés belas mulheres morrerem pelo seu amor. E, além do mais, era um observador: via as coisas. Um dia viu Miss Malin e durante algum tempo nada mais viu.

 

Este jovem tinha conseguido tudo da vida - e das mulheres em particular - sem o mínimo esforço. A beleza, o talento, o encanto, a virtude, tudo era seu, bastava-lhe levantar um dedo. Em Miss Malin nada era surpreendente à parte o seu preço. Que esta rapariga magra, de grande nariz, sem um centavo de seu e dois anos mais velha do que ele exigisse não só o seu nome principesco e uma parte activa no seu brilhante futuro, como ainda a sua adoração submissa, uma fidelidade eterna, e a sujeição na vida e na morte, e que por nada menos se deixasse possuir - isto impressionou o jovem príncipe.

 

Algumas pessoas têm um amor inquebrantável por enigmas. Podem ter ocasião de escutar o comum bom senso, ou a sabedoria que explica a vida; mas não, hão-de dar tratos à cabeça com enigmas, justamente porque não compreendem o que eles significam. Que a solução seja em si mesma de uma imbecilidade a toda a prova, tal não obsta aos tomados desta particular paixão. O príncipe Ernest tinha esta mentalidade, e, desde criança, costumava ficar dias a fio mergulhado em enigmas e quebra-cabeças - passatempo que, no seu caso, era tido como prova de um grande poder intelectual. Quando, portanto, encontrou este osso duro de roer, todas as beldades de mais fácil solução se desvaneceram dos seus olhos.

 

Tão nervoso estava o príncipe Ernest perante este primeiro risco de se ver recusado - e sabe Deus se ele o temia ou se ele o desejava - que só se declarou a Malin Nat-og-Dag na véspera da sua partida para a guerra. Quinze dias mais tarde morria nos campos de Iena, segurando um pequeno medalhão de ouro com um anel de cabelo louro. Muitas louras bonitas se consolaram pensando nesse medalhão. Nenhuma sabia que, entre as esplêndidas tranças que tanto o subjugaram, só este anel do cabelo de uma solteirona havia sido para ele como a pena da asa de uma valquíria, levantando-o do chão.

 

Se Malin fosse católica, teria ido para um convento depois da batalha de Iena, para salvar, se não a alma, pelo menos o respeito que a si própria devia, pois, diga-se o que se disser, nenhuma donzela faz mais esplêndido casamento do que aquela que se torna a esposa do Senhor. Mas, sendo uma boa protestante, com uma parcialidade pelos ensinamentos dos Hernutos, tomou a sua cruz e carregou-a valorosamente. Que ninguém no mundo conhecesse a sua tragédia coadunava-se bem com a opinião que mantinha dos outros, e esta era que os outros nada sabem do importante. Abandonou então quaisquer propósitos de casamento.

 

Aos 50 anos herdou inesperadamente uma grande fortuna. Houve quem a compreendesse tão mal que jul-gasse ter-lhe a herança su-bido à cabeça e provocado essa confusão, agora patenteada, entre os factos e a realidade. Mas não. Ela não se sentiria minimamente perturbada ainda que entrasse na posse dos tesouros do Grão-Turco. O que a transformou foi aquilo que transforma qualquer mulher de 50 anos: a transferência do serviço activo da vida - com uma pensão ou a honra dos vencidos, conforme o caso - para o estado meramente passivo de espectador. Um peso lhe caiu dos ombros; e ela voou até um ramo mais alto e disparatou um pouco mais. A fortuna ajudou-a apenas porque lhe forneceu o sopro de ar nas asas que lhe permitiu voar um pouco mais e disparatar em mais sonoras vozes, ainda que tivesse também eliminado por completo a crítica dos que a rodeavam. No seu riso de libertação havia por certo um timbre de loucura.

 

Esta loucura tomou, como já foi dito, a curiosa forma de uma convicção inabalável num passado de colossal devassidão. Acreditava ter sido a grande cortesã do seu tempo, se não mesmo a grande prostituta do Apocalipse. Tomou a fortuna, a casa, as jóias como os honorários do pecado, acumulados numa longa carreira de luxúria, e por isso era extremamente generosa, considerando ela que o dinheiro frivolamente adquirido deve ser frivolamente gasto. Não abria a boca que não se referisse aos seus tempos de libertinagem. Até o príncipe Ernest Theodore, o casto amante a quem ela recusou o beijo de adeus, figurava na sua colecção de figuras de cera como uma vítima das suas artes e crueldades de sereia.

 

Sabe-se que um espectáculo não é desfrutado do mesmo modo por aqueles que, enfim, podem correr o risco de se tornarem parte dele, e por aqueles outros que, por qualquer circunstância, estão inteiramente excluídos dessa possibilidade. O Imperador de Roma, depois de uma exibição particularmente emocionante, pode ver a rede e o tridente num pesadelo. Mas as virgens Vestais repousam nos seus leitos de mármore e, com um saber de connaisseur, rememoram todos os passos da luta, imaginando-se no lugar do gladiador seu favorito. Do mesmo modo é pouco provável que até a mais piedosa das velhas assista ao julgamento e ao suplício de uma bruxa com o mesmo espírito imperturbado da assistência masculina em volta da fogueira.

 

Nenhuma jovem poderia, mesmo na cela de um convento, abandonar-se aos excessos imaginários de Miss Malin sem recear e estremecer. Mas a velha, que já construiu a sua segurança, pode precipitar-se em qualquer abismo de corrupção com a graciosidade de um mergulhão-de-crista. Leal por natureza, Miss Malin Manteve-se fiel à opinião da sua juventude no que dizia respeito às palavras do Evangelho sobre o adultério. Acreditando cegamente na letra da Bíblia, reconhecia que uma multidão de homens cometera de facto adultério com ela. Mas, resolutamente, virou as palavras do avesso, como faz a mulher ao vestido se as cores desbotadas a desgostam. Ela era a imagem catóptrica da grande pecadora arrependida, cujos pecados haviam ficado brancos como a lã do cordeiro, pois a ela dava-lhe infindo prazer tingir a bonita lã branca da sua vida de variegadas e tremendas cores. Ciúmes, enganos, seduções, violações, infanticídios e crueldades senis, e toda a perversão do humano mundo das paixões, até as suas maladies galantes, das quais exibia um conhecimento surpreendente, eram para ela os confeitos que escolhia, um a um, da bombonnière da loucura e trincava com verdadeira gourmandise. Em todas as suas fantasias era ela a heroína, e percorria as esferas dos sete pecados mortais com o êxtase do rapazinho que galopa por todos os grandes hipódromos do mundo sentado no seu cavalo de pau. Nenhum perigo a atemorizava, nem qualquer angústia da consciência lhe perturbava a tranquilidade. Se de alguém falava com desprezo, era da Maria Madalena do Evangelho, que unicamente suportou o fardo dos seus doces pecados, retirando-se para o deserto da Líbia em companhia de uma caveira. Ela, porém, carregava o peso dos seus com a destreza de um atleta, e com a sua estava disposta a jogar uma partida de bilboquet.

 

Até o seu rosto se transformou com essa grande revolução espiritual e, na idade em que as outras mu-lheres recorrem ao rouge e à beladona, a sua indulgência para com as fraquezas humanas produziu nela uma cor mais viva e deu aos olhos um brilho mais doce. Estava mais perto agora de ser considerada uma bonita mulher do que jamais estivera na juventude. Se fora sempre a imagem de uma bru-xa, na segunda meninice tinha mais a aparência da fada má das histórias infantis que da Medusa, esse anjo vingador de espada flamejante que lutou de igual para igual com o príncipe Ernest. Conservava a sua esbelteza e graciosidade de sílfide, e quanto à sua destreza como dançarina, poderia ser ainda o centro de todos os olhares num grande baile. O seu pezinho de cabra estava agora tão elegantemente dourado como o casco da cabrinha de Esmeralda.

 

Era nesta aura de gentil loucura e segunda juventude que ela agora se sentava, náufraga, no palheiro dos camponeses, conversando animadamente com o cardeal Hamilcar.

 

- Quando, em rapaz, estive algum tempo em Coblentz, na corte emigrada do duque de Chartres - dizia o cardeal, após uma breve pausa, pensativamente - conheci o grande pintor Abildgaard, e costumava passar as manhãs no seu atelier. Quando as damas da corte vinham pedir-lhe que lhes pintasse o retrato, pois ele era muito procurado por essas belas mulheres que querem ver a sua beleza imortalizada, quantas vezes não o ouvi dizer-lhes: «Lavai os vossos rostos, Mesdames. Tirai-lhes o pó, o rouge, o kohl. Porque, se pintais vós mesmas o vosso rosto, não poderei eu pintar-vos.» Muitas vezes, ao longo da vida, tenho pensado nessas palavras. Quer-me parecer que o Senhor está continuamente dizendo aos fracos e presunçosos mortais: «Lavai os vossos rostos. Pois, se vos pintardes vós próprios com as cores da humildade e da renúncia, da caridade e da castidade, espessas sobre a face, eu nada poderei fazer.» Esta noite, com efeito - continuou o velho, sorrindo, enquanto um profundo movimento do mar parecia fazer estremecer a casa -, o Senhor está-nos lavando os rostos com as Suas próprias mãos, e usando uma tremenda quantidade de água para o fazer. Mas procuraremos conforto no pensamento de que não há honra mais alta para nós, ou felicidade, que ter os nossos retratos pintados pela mão do Senhor. Isto foi o que sempre ambicionámos e a que demos o nome de imortalidade.

 

Vendo que o rosto daquele que assim falava estava coberto de ligaduras manchadas de sangue, Miss Malin esteve prestes a fazer um comentário, mas refreou-se, pois não sabia que duradoura desfiguração de uma nobre face elas poderiam ocultar. O cardeal leu esses pensamentos e expressou-os com um sorriso.

 

- Sim, Madame - disse ele - o meu rosto quis o Senhor lavar com o mais ardente líquido. Mas não nos avisaram do poder purificador do sangue? Sei agora, Madame, que esse poder é maior ainda do que o supúnhamos. E talvez o meu rosto dele carecesse. Quem senão o Senhor sabe quanto rouge e quanto pó eu coloquei sobre ele ao longo de setenta anos? Em verdade, Madame, nestas ligaduras sinto estar mais perto de posar para o meu retrato feito por Ele, do que jamais antes estive.

 

Miss Malin corou ligeiramente ao ver-se descoberta numa falta de tacto, e vivamente fez recuar a conversa como quem atrasa um relógio.

 

- Dou graças - disse ela - por nunca na vida ter posto rouge ou pó nas fa-ces, e Monsieur Abildgaard poderia ter-me pintado em qualquer momento. Mas, quanto a esse divino retrato de mim que há-de figurar, suponho, nas galerias do Céu quando eu já estiver morta e enterrada, consinta-me que diga, Eminência, que nesse ponto as minhas ideias diferem um pouco das vossas.

 

- As opiniões dos críticos de arte - disse o cardeal - estão sujeitas a controvérsia; foi o que aprendi no atelier. Vi um dia o mestre bater no rosto de um grande pintor francês com um pincel de pêlo de texugo cheio de cádmio, só porque discordavam quanto às leis da perspectiva. Dê-me a saber, Madame, as suas opiniões, para que eu possa aprender com elas.

 

- Pois bem - disse Miss Malin - onde foi Vossa Eminência buscar a ideia que o Senhor deseja de nós a verdade? É uma estranha ideia, toda original, a vossa. Pois Ele já a conhece, e talvez até a ache um tanto ou quanto insípida. A verdade é para os alfaiates, Eminência, e para os sapateiros. Eu, pelo contrário, sempre fui de opinião que o Senhor tem um penchant por máscaras. Não sois vós outros, príncipes espirituais, que nos dizeis haver bênçãos ocultas nas provações que padecemos? E é bem assim. Eu também o pensei quando, à meia-noite, caíam as máscaras. Mas, por outro lado, ninguém poderá negar que foram criadas pelas mãos de um perito inimitável. O próprio Cristo, se Vossa Eminência mo permite, parece-me ter-se mascarado bem livremente no tempo em que se fez carne e habitou entre nós. Sinceramente, fosse eu a dar o ban-quete de Caná, talvez me tivesse ofendido um pouco essa Sua pobreza, talvez, Eminência, talvez, tivesse eu convidado esse brilhante jovem, o filho do carpinteiro, para Lhe oferecer do meu melhor Berncastler Doctor, e Ele mudasse, no momento que melhor Lhe conviesse, a água pura num vinho de muito melhor colheita! E ainda assim essa senhora de Caná não sabia, evidentemente, de quanto Ele era realmente capaz, por ser Deus Todo-Poderoso.

 

- Com efeito, Eminência - continuou ela - de todos os monarcas de quem ouvi falar, aquele que melhor se aproximou, quanto a mim, do verdadeiro espírito de Deus, foi o califa Ha-run de Bagdade, que, como Vossa Eminência sabe, gostava de mascarar-se. Ah!, ah! Tivesse eu vivido nesse tempo, que havia de fazê-lo pagar o costume com língua de palmo, nem que tivesse de dormir com quinhentos mendigos antes de topar com o Príncipe dos Crentes sob as vestes de um mendigo. E quando eu mesma mais me aproximei na vida de desempenhar o papel de uma deusa, a última coisa que eu queria dos meus adoradores era a verdade. «Façam poesia - dizia-lhes eu - usem a imaginação, mascarem-me a verdade. A vossa verdade depressa se descobre (com perdão de Vossa Eminência) e que se há-de fazer então?»

 

- E já agora - continuou a velha senhora - o que pensa Vossa Eminência da modéstia feminina? É, por certo, uma qualidade divina; e o que é ela senão, por princípio, falsidade? Visto estarem aqui presentes um jovem e uma donzela, não nos poupemos nós, eu e Vossa Eminência, que temos observado a vida dos melhores ângulos, Vossa Eminência do confessionário e eu da alcova, a esforços para desprezar a verdade; falemos somente de pernas. Dir-vos-ei então que podem dividir-se as mulheres de acordo com a beleza das suas pernas. As que as têm bonitas, e que sabem ser a verdade escondida mais bela que mil ilusões, são as mulheres verdadeiramente valorosas, que olham nos olhos, e têm a genuína coragem de uma consciência tranquila. Mas, se começassem a usar calças, que seria da sua bravura? Os jovens dos nossos dias, que usam calças tão justas que são precisos dois criados para as vestirem, um por cada perna''.

 

- E mesmo assim, a coisa é difícil - disse o cardeal, pensativo.

 

- Passearem-se como verdadeiros missionários da verdade - prosseguiu Miss Malin - pode ser mais hu-mano, mas por certo nada terá de divino. Podem ter por eles a rudeza dos factos, mas as pernas das mulheres, ocultas sob as saias, são as ideias. E quem se firma em ideias possui o verdadeiro heroísmo. Porque é a consciência de um poder oculto que transmite a coragem. Mas peço perdão a Vossa Eminência por haver falado tanto.

 

- Não me peça perdão, Madame - disse, gentil, o cardeal - muito me aproveitaram as suas palavras. Mas não me convenceram de que não estamos de acordo. Este nosso mundo é como aquele jogo infantil, o pão-com-queijo: verdade, engano, verdade, engano! Quando o califa se vestia como o mais pobre dos seus súbditos, nem todo o seu esplendor oculto poderia ressalvar o péssimo gosto dessa mascarada, se ele no fundo não sentisse um amor fraternal pelos pobres. Do mesmo modo, quando Nosso Senhor se revestiu, durante uns trinta anos, da máscara de Filho do Homem não teria realmente sentido o fazê-lo se Ele não possuísse, afinal, um coração humano, e até, Madame, uma certa simpatia por aqueles que apreciam o bom vinho. A mulher de fino espírito, Madame, escolhe para seu trajo de Carnaval aquele que engenhosamente revele algo da sua alma ou do seu coração e que as convenções do quotidiano escondem; e quando coloca uma horrível máscara veneziana, de longo nariz, ela diz-nos que por trás dela se esconde não somente um nariz clássico, mas muito mais, e que pode ser adorada por algo superior à sua beleza. E assim fala o Árbitro da mascarada: «Pela tua máscara te conhecerei.»

 

- Mas concordemos, Madame - prosseguiu - que o Dia do Juízo não há-de ser, como os nossos insípidos pregadores querem que acreditemos, o momento em que o véu cai das nossas pobres tentativas de engano, sobre as quais o Senhor realmente já tudo conhece, mas que, ao contrário, há-de ser a hora em que o próprio Deus Todo-Poderoso deixa cair a Sua máscara. E que momento esse! Ah, não será de mais termos esperado um milhão de anos por ele. O Céu, Madame, há-de ressoar de riso. Riso puro e inocente como o da criança, riso claro como o da noiva, riso triunfante como o do guerreiro leal que depõe os estandartes inimigos aos pés do seu soberano, ou do que é finalmente libertado das masmorras e das correntes, ilibado das calúnias dos seus detractores!

 

E no entanto, Madame, não nos proporcionou o Senhor a nós, aqui, um Dia do Juízo em miniatura? Em breve será meia-noite. Seja essa a hora em que hão-de cair as máscaras. Se não for a sua, ou a minha máscara, que seja a do Destino e da Vida. Talvez tenhamos em breve de enfrentar a Morte, sem qualquer máscara. Entretanto, nada temos a fazer senão lembrar como é realmente a vida. Vamos, Madame, e meus jovens irmãos! Já que não podemos conciliar o sono, e ainda estamos aqui, sentados com conforto, dizei-me quem sois, e contai-me as vossas histórias sem reservas.

 

- O Senhor levantou-se no barco - disse o velho cardeal, dirigindo-se a Jonathan Maersk - com o risco de o fazer soçobrar, perante o espectáculo do celeiro ruindo. Assim, creio eu, algum altaneiro edifício da sua vida ruiu e se desmoronou perante os seus olhos. Diga-nos qual foi. Notei ainda, há pouco tempo - prosseguiu - quando falei da pureza do nosso sangue, que o senhor recuava perante as minhas palavras como antes perante o celeiro. Será talvez partidário das ideias revolucionárias da sua geração? Não imagine, então, que sou estranho a tais teorias. Estou pelo contrário em mais íntimo contacto com elas do que poderá supor. Mas deveremos deixar que uma diferença po-lítica separe os nossos corações numa hora como esta? Vamos, falar-lhe-ei com as suas próprias palavras: e agora espera a liberdade, a igualdade, a fraternidade, estas três; mas a maior delas é a fraternidade.

 

- Ou, meu caro filho - disse ele ainda - pode sofrer o triste fardo da ilegitimidade. Mas quem, mais do que o bastardo, precisa de erguer a voz para perguntar quem é? Tenha, pois, fé em nós. Conte-nos agora, antes que rompa a manhã, a história da sua vida.

 

O jovem, em cujo rosto se estivera sempre estampando a solidão, que é o emblema da verdadeira melancolia, a estas palavras ergueu os olhos para o cardeal. A grande dignidade de maneiras do velho impressionara os outros desde que chegaram à sua presença. Agora o rapaz estava fascinado pela estranha lucidez do seu olhar. Por alguns momentos os dois se fitaram intensamente. A cor subiu às faces pálidas do rapaz. Um profundo sus-piro se lhe arrancou do pei-to.

 

- Sim - disse ele, como que inspirado - contar-vos-ei a minha história. Talvez eu a compreenda melhor se finalmente a disser por palavras.

 

- Lave o seu rosto, meu jovem amigo - disse Miss Malin - e o seu retrato em nossos corações lhe dará a imortalidade.

 

- Chamarei à minha narrativa - disse o jovem - a história de Tímon de Assenas.

 

 

«Se tivésseis vivido em Copenague - principiou o jovem - teríeis ouvido falar de mim, pois fui ali, em tempos, muito falado. Até me deram um nome. Chamavam-me Tímon de Assenas, e tinham razão num ponto: eu nasci em Assenas, que é, como sabeis, uma pequena ci-dade portuária na ilha de Fiónia. Ali nasci, filho de uma família muito respeitável, o arrais Clement Maersk e sua mulher, Magdalena, que tinham uma bonita casa com jardim na cidade.

 

Não sei se acharão cu-rioso que, em todo o tempo que vivi em Assenas, eu nunca tivesse pensado que alguma coisa me pudesse prejudicar. Nunca pensei, de resto, que alguma coisa se ocupasse de mim. Parecia-me que era minha missão, pelo contrário, cuidar do mundo. Em muitos Verões acompanhei meu pai, e fomos até Portugal e à Grécia. Quando estávamos no mar tínhamos de cuidar da carga e do navio, e isso a ambos parecia ser a coisa mais importante no mundo.

 

Minha mãe era uma mulher muito bonita. Embora me tivesse movido, durante algum tempo, na mais alta sociedade, nunca vi mulher que a igualasse, quer em beleza quer em maneiras. Ela não acompanhava as mulheres dos outros arrais, e nunca frequentava a casa de alguém. Seu pai tinha sido assistente do grande botânico sueco Lineu, e a ela as flores, e o que lhes acontecia, e as abelhas, seu trabalho e suas colmeias, pareciam-lhe mais importantes do que quer que se relacionasse com os seres humanos. Enquanto estive com ela acreditei que as plantas, as flores e os insectos do mundo eram os seus seres mais importantes, que os humanos apenas existiam para os proteger.

 

No jardim de Assenas minha mãe e eu vivíamos no que julgo chamar-se um idílio. Os nossos dias eram feitos apenas de inocência e de prazer.»

 

Miss Malin, que estivera ouvindo atentamente, sempre apaixonada por qualquer sorte de narrativa, interrompeu neste passo o narrador com um pequeno suspiro.

 

- Ah! - disse ela - não me fale em idílios. Mais moi je n'aime pas les plaisirs innocents.

 

«Tinha um amigo em Assenas, ou pensava que o tinha - continuou Jonathan - um rapaz de talento, de nome Rasmus Petersen, uns dois anos mais velho do que eu, e mais alto uma cabeça. Destinava-se a ser clérigo, mas criou um certo problema e não foi bem sucedido, mas nos seus tempos de estudante em Copenague foi preceptor em muitas casas nobres. Ele sempre se interessou muito por mim; eu, embora o admirasse, nunca me senti à von-tade em sua companhia. Era cortante como uma lâmina; quem se aproximasse dele feria sempre os dedos, embora não se apercebesse disso na altura. Quando eu tinha 16 anos, ele disse a meu pai que eu devia ir com ele para Copenague, para estudar com os sábios que ele lá conhecia, pois me achava um rapaz muito brilhante.»

 

- E era realmente muito brilhante? - perguntou Miss Malin com surpresa.

 

- Infelizmente não, Madame - respondeu Jonathan.

 

«Quando cheguei a Copenague - prosseguiu ele - senti-me muito só, pois a cidade não me oferecia nada para fazer. Parecia-me que ali só existia gente. E esses também não se interessaram por mim. Se lhes falava uns instantes, logo se afastavam. Mas pouco depois o meu interesse foi despertado pelas dispendiosas estufas e viveiros dos palácios reais e da alta nobreza. Entre estas, as mais famosas eram as do barão Joachim von Gersdorff, que era camareiro-real da Dinamarca e ele próprio um grande botânico, tendo viajado por toda a Europa, Índia, África e América, e reunido plantas raras de todas as partes do mundo.

 

Tereis ouvido falar deste homem, ou conhecei-lo? Descendia de uma família russa, e a sua riqueza era tal como nunca houvera outra na Dinamarca. Era poeta e músico, diplomata e sedutor de mulheres, mesmo nesse tempo, em que já era velho. No entanto não era tudo isto que nele me cativava a imaginação. Era o seguinte: Ele era um leão da moda. Ou melhor, a própria moda era, em Copenague pelo menos, tão-somente um lacaio do barão Gersdorff. O que ele fizesse tornava-se imediatamente o imperativo de todos. Ah, não quero descrever esse homem. Sabeis, julgo eu, o que significa ser um leão da moda. Eu aprendi-o. Ele era assim.

 

Eu não tinha ido às suas estufas, onde Rasmus me conseguira admissão, mais do que um par de vezes quando, numa tarde, lá encontrei o barão Gersdorff em pessoa. Rasmus apresentou-me, e ele acolheu-me com muita cordialidade, oferecendo-se depois para me mostrar toda a instalação, o que fez com muita paciência e benevolência. Desde esse dia, passei a encontrá-lo quase sempre lá. Contratou-me depois para escrever o catálogo da sua estufa de cactos. Passámos juntos muitos dias, Nessa estufa envidraçada. Eu gostava muito dele, porque ele tinha corrido mundo, e podia contar-me das flores e dos insectos de todos os luga-res. Por vezes notava que a minha presença lhe despertava uma estranha comoção. Uma tarde, Quando lhe estava lendo um tratado sobre a boca do receptáculo do Epiphyllum, vi que tinha fechado os olhos. Tomou a minha mão, que conservou nas suas, e, terminada a leitura, levantou os olhos para mim e disse:

 

- Que hei-de dar-lhe, Jonathan, como alvíssaras?

 

- Ri-me e respondi que não me parecia que tivesse encontrado já alguma coisa de especial.

 

- Oh, meu Deus! - disse ele - alvíssaras pelo Verão de 1814!

 

Poucos dias depois, ele começou a falar-me da minha voz. Disse-me que eu tinha uma voz particularmente bonita, e pediu-me que o deixasse contratar Monsieur Dupy para me dar lições de canto.»

 

- E tinha realmente uma voz bonita? - perguntou Miss Malin com alguma incredulidade, pois a voz do narrador era baixa e rouca.

 

- Sim, Madame - respondeu ele - nesse tempo eu tinha uma voz muito agradável. Aprendera a cantar com minha mãe.

 

- Ah! - disse Miss Malin - não há nada no mundo mais gracioso do que uma bonita voz de rapaz. Quando estive em Roma, havia um rapaz chamado Mario, no coro da Jesú, que tinha uma voz de anjo. O próprio Papa me recomendou que fosse ouvi-lo, e eu bem sabia porquê, pois Sua Santidade esperava converter-me ao catolicismo e pensava que a voz desse menino de ouro podia aniquilar a minha resistência. Do meu banco eu vi o próprio Papa desfazer-se em lágrimas quando como um cisne que se eleva, o tal Mario lançou a voz no imortal recitativo de Carissimi: Vade retro Satana! Ah, esse bom Papa Pio VIII! Dois dias mais tarde morria, perversamente envenenado com três pílulas de cantaridina. Não me seduz o papismo, mas confesso que ele era uma bela figura de Papa, e morreu como um homem. E então, teve as suas lições e tornou-se um virtuoso, Monsieur Jonathan?

 

- Sim, Madame - disse Jonathan com um sorriso - tive as minhas lições. E como sempre gostei muito de música, trabalhei muito e fiz consideráveis progressos. No princípio do terceiro inverno o barão, que até essa altura nunca parecera disposto a separar-se de mim, levou-me a todos os palacetes dos seus amigos, e fez-me cantar para eles. Quando chegara a Copenague costumava parar junto aos palacetes, nas noites de Inverno, para ver as flores e os candelabros dos átrios, e as jovens que desciam das carruagens. Agora, era eu quem ali entrava, e as senhoras, velhas ou jovens, eram tão bondosas para mim como se eu fosse um filho seu, ou um irmão mais novo. Cantei na corte, perante o rei Frederico e a rainha Maria, e a rainha sorriu-me com muita bondade. Sentia-me muito feliz. Pensava: Como são tolos aqueles que dizem que os grandes das cidades só amam a riqueza e as honrarias mundanas. Todas estas senhoras, estes grandes homens, amam a música tanto quanto eu - ou mais - e esquecem tudo por amor dela; que maravilha é o amor do belo.

 

- Apaixonou-se? - perguntou Miss Malin.

 

- De certo modo estava apaixonado por toda a gente - respondeu Jonathan. - Por essas que tinham lágrimas nos olhos quando eu can-tava; por essas que me acompanhavam na harpa, ou se juntavam a mim nos duetos; por essas que tiravam flores dos seus cabelos e mas ofereciam. Mas talvez estivesse apaixonado pela condessa Atalanta Danneskjold, a mais nova das irmãs Danneskjold, a quem chamavam os nove cisnes de Sams. A mãe fez-nos posar juntos numa charada como Orfeu e Eurídice. Todo esse Inverno o vivi como num sonho. Pois não é verdade que por vezes sonhamos que podemos cantar qualquer nota que se queira, e subir e descer por toda a escala como os anjos pela escada de Jacob? Ainda hoje tenho esse sonho, às vezes.

 

«Mas na Primavera sucedeu o que tomei por uma grande infelicidade, não sa-bendo o que a palavra significava. Caí doente e, Quando já melhorava, o médico da corte, que me tratava, disse-me que eu tinha perdido a voz e que eram nulas as esperanças de a recuperar. Ainda na cama, afligi-me muito com isto, não só com a ideia de perder a voz, mas com a ideia de que iria agora decepcionar e perder os meus amigos, e que a minha vida se iria tornar muito triste. Cheguei até a derramar lágrimas por isto, e foi chorando que Rasmus Petersen me veio achar. Abri-lhe o meu coração, esperando que ele me confortasse no meu infortúnio. Ele teve de levantar-se da cadeira e fingir que olhava pela janela para esconder o seu riso. Achei isso uma crueldade da sua parte, e nada mais lhe disse.

 

- Então, Jonathan - disse ele - eu tenho motivos para rir, pois ganhei a minha aposta. Apostei que eras tão simplório como de facto parecias, o que ninguém quis acreditar. Toda a gente te achava muito sagaz. Não te fará a mínima parcela de diferença teres perdido essa voz que tinhas.

 

Não compreendi. Creio que fiquei pálido, embora as suas palavras me animassem.

 

- Então, ainda não percebeste - disse ele - que o barão Gersdorff é teu pai? Eu já o tinha adivinhado, mesmo antes de te levar à estufa, quando vi um retrato do barão em criança, no qual ele tem essa cabeça de anjo. Quando ele próprio o descobriu, a sua satisfação foi tal como eu nunca vira. Disse-me: «Nunca tive um filho na vida. Parece-me muito curioso que tenha arranjado um. Todavia, acredito que esse rapaz seja de facto o filho do meu corpo, e tenciono recompensá-lo por isso. Mas, se vir que a minha alma se perpetua nele, juro por Deus que o reconhecerei como filho legítimo e lhe deixarei tudo o que tenho. Se não for possível fazer dele um barão Gersdorff, pelo menos será Cavaleiro de Malta, com o nome de Ressurrection». É por isso - disse Rasmus - que as pessoas distintas de Copenague te têm mimado, Jonathan. Têm-te observado constantemente, para verem se a alma do barão Gersdorff se revelava em ti, pois nesse caso tu serias o homem mais rico, o melhor partido, Jonathan, de toda a Europa do Norte.

 

Contou-me então a conversa que tivera com o barão Gersdorff a meu respeito. «Sabe, meu bom Rasmus, que sou poeta - dissera-lhe o Barão. - Enfim, dir-lhe-ei que espécie de poeta eu sou. Nunca na minha vida escrevi um verso sem que me imaginasse no lugar de algum poeta conhecido. Escrevi poemas à maneira de Horácio e de Lamartine. Do mesmo modo, não sou capaz de escrever uma carta de amor a uma mulher sem representar no meu espírito Lovelace, o Corsário ou Eugénio One-guine. As mulheres têm sido incensadas, adoradas e seduzidas por todos os heróis de Chateaubriand e Lord Byron. Nada eu fiz inconscientemente sem saber muito bem o que fazia. Mas este rapaz, este Jonathan, filo realmente sem pensar. Ele é que há-de ser, não uma personagem de Firdousi, ou até de Oehlenschlaeger, mas uma verdadeira e genuína obra de Joachim Gersdorff. O que é uma coisa curiosa, muito curiosa mesmo, de observar pelo próprio Joachim Gersdorff. É um fenómeno de extrema importância para Joachim Gersdorff. Se ele vier apenas a mostrar-me que é na realidade um Joachim Gersdorff, nenhuma recompensa será excessiva. Riquezas, casas, jóias, mulheres, vinhos, e as honras do país serão suas.»

 

Tudo isto eu ouvi, deitado na minha cama.

 

Não sei se Vossa Eminência achará estranho, ou Vossa Excelência, Miss Nat-og-Dag, mas a mais forte emoção que estas palavras provocaram em mim foi uma intensa vergonha. Um tão forte sentimento nunca, em toda a minha vida, eu tinha experimentado.

 

Se o barão me tivesse seduzido, como acredito que seduziu outros rapazes bonitos, eu teria de corar perante os rostos das pessoas honestas. Mas poderia ter achado refúgio dessa vergonha no meu próprio coração, pois de certo modo eu amava esse homem. Da vergonha que então senti não me parecia haver refúgio no mundo. Sobre o mais profundo da minha alma eu sentia, e pela primeira vez na vida, os olhares do mundo inteiro.

 

Deus criou o mundo, Eminência, e o olhou, e viu que era bom. Sim. Mas, e se o mundo também O tivesse olhado, para ver se Ele era bom? Foi isto, pensava eu, o que Lúcifer realmente fez a Deus: olhou para Ele, e fê-Lo sentir que Ele próprio estava a ser julgado por um crítico: e Ele era bom? Eu''' eu era inocente como Deus. Agora fora tornado num verdadeiro Joachim Gersdorff. Corria-me nas veias todo o sangue desse homem, um leão da moda, a espécie de homem que atrai os olhares de todo o mundo. Deus não o suportou, e, como vos lembrais, precipitou Lúcifer no abismo. Agiu bem; Ele não devia suportar esse olhar. Eu também não o suportava, mas tive de sustentá-lo.

 

Para saber se Rasmus tinha razão, tive um acto, creio, de bravura, se não mesmo de heroísmo, o que para mim foi prova de que afinal o arrais e sua mulher me educaram bem. Compareci a uma grande festa em casa da condessa Danneskjold, e cantei de novo para os con-vidados. Cantei as minhas velhas canções, e ouvi a minha própria voz, ou o que dela restava. Vós, que me escutais agora, por certo adivinhareis a pobreza desse canto. Eu tinha cantado para eles, antes, tão bem quanto sabia, e julgara ter-lhes dado o melhor que havia em mim. Ao ouvirem-me agora, nem um só dos presentes traiu no rosto a menor decepção ou pena. Todos foram amáveis, todos me cumprimentaram como sempre o haviam feito. Senti então que nunca lhes havia dado coisa alguma, que nunca tinha agido sobre eles. Era o mundo à minha volta que me observava, que queria agir sobre mim. Todos os olhos estavam postos em mim, porque eu era um genuíno Joachim Gersdorff, um jovem leão da moda. Saí daquela casa à meia-noite, e foi essa hora, Eminência, que a derrocada do celeiro me lembrou.

 

Nessa mesma noite escrevi uma carta ao barão, despedindo-me dele. Era tanta a minha repugnância por ele e pelo seu mundo que, ao reler a carta, achei a palavra «moda» repetida nove ve-zes. Dei a carta a Rasmus para que a entregasse. À despedida lembrei-me de que nada dissera da fortuna que o barão tencionava deixar-me. Encarreguei então o meu amigo de lhe comunicar a minha recusa do legado.

 

Eu não suportava as ruas. Deixei os meus bonitos aposentos perto do palácio Gersdorff, e fui de barco até ao porto da pequena ilha fortificada de Trekroner e instalei-me em casa do quarteleiro, onde nada mais podia ver senão o mar. Rasmus acompanhou-me, levando a minha mala. Durante todo o caminho procurou reter-me. Tínhamos de passar pelo portão do palácio Gersdorff, e foi tanta a aversão que esse lugar su-bitamente me inspirou, que lhe cuspi, como meu pai - pobre de mim, como o arrais Clement Maersk de Assenas - me ensinara a cuspir quando eu era rapaz.

 

Durante alguns dias vivi em Trekroner, tentando ali reencontrar o mundo que um dia fora o meu - e não eu próprio, pois nada queria senão eu próprio. Pensei no jardim de Assenas, mas as portas desse jardim haviam-se fechado para sempre. Uma vez provado o fruto da árvore da sabedoria, uma vez que nos vimos a nós mesmos, os jardins fecham-se para nós. Tornamo-nos pessoas da moda, como Adão e Eva se tornaram, quando começaram a ocupar-se da sua aparência.

 

Mas só alguns dias mais tarde Rasmus veio ver-me à ilha. Tinha tomado um pequeno escaler, ele, que tanto pavor tinha do mar.

 

- Ah, meu amigo - disse ele, esfregando as mãos - nasceste com uma boa estrela. Entreguei a tua carta ao barão e ele, quando a leu, ficou desvanecido e agitado em extremo. Levantou-se, andou de um lado para o outro, e exclamou: «Meu Deus, esta misantropia, esta melancolia! Como as conheço. É o meu vivo retrato! Na primeira semana em que fui amante da imperatriz Catarina senti tudo o que ele sente agora. Queria entrar para um mosteiro. É o jovem Joachim Gersdorff sem tirar nem pôr, mas todo em tons de negro, uma água-forte do original colorido. Mas, meu Deus, que vigor o desse rapaz, que negro rico e profundo! Não o julgava capaz dele, com a sua voz tão aguda. Esta é a noite de Inverno da Rússia, os lobos descem à estepe.» Depois de ler a tua carta pela segunda vez, disse-me: «Ele não quer ser um leão da moda? Mas todos nós o somos, na família; já o foi meu pai na corte da jovem imperatriz. Porque não há-de o meu filho sê-lo também? Claro que há-de ser o nosso herdeiro, o espelho da moda e o modelo de todos.»

 

- Digo-te, Jonathan - prosseguiu Rasmus - que a tua melancolia é a última moda. Os rapazes elegantes de Copenague vestem-se de negro e falam com amargura do mundo, e as senhoras fa-lam do túmulo.

 

E foi nesta altura que começaram a chamar-me o Tímon de Assenas.

 

- Disseste-lhe - perguntei a Rasmus - que, sob pretexto algum, quero o seu dinheiro?

 

E Rasmus respondeu:

 

- Disse-lho, sim; e ele ficou tão satisfeito que eu pensei que ia ter um ataque e fazer-te seu herdeiro naquele mesmo instante. «Muito bem - disse ele - muito bem, meu filho Tímon. Que eu te veja desprezá-lo. Dissipa-o bem. Mostra ao mundo o teu desdém por ele, à boa maneira dos Gersdorff. Que as heteras o guardem; não há melhor pu-blicidade que essa para um melancólico leão da moda. Hão-de seguir-te a toda a parte, e farão um belo contraste com o teu negro profundo. Como eu amo esse rapaz, disse ele. Tenho, acrescentou, uma colecção de esmeraldas ímpar em toda a Europa. Mandar-lhas-ei, para começar.» E de facto elas aqui estão - disse Rasmus entregando-me, com todo o cuidado, um cofre de jóias.

 

- Mas quando o barão soube - disse Rasmus - que tinhas cuspido na porta de sua casa, ficou muito sério. «Foi o que eu fiz - disse ele - na porta de casa de meu pai, na porta do palácio Gersdorff de Sampetersburgo.» E imediatamente mandou chamar o seu advogado e redigiu um documento em que te reconhece como seu filho, e em que te deixa toda a sua fortuna. Fez também uma petição para que te seja concedido o título de Cavaleiro de Malta e o nome de Ressurrection.

 

Por esta altura eu estava já tão deprimido que pensava na morte com verdadeiro desejo e nostálgia. Voltei com Rasmus à cidade, a pagar as minhas dívidas, para que o meu alfaiate e o meu chapeleiro não falassem de mim após a minha morte, e atravessei a ponte de Langebro, olhando a água e os barcos parados, alguns dos quais vinham de Assenas. Esperei até que o local ficasse deserto. Era uma das noites azuis do Abril de Copenague. Veio-me à lembrança uma das barcarolas de Salvatore que eu costumava cantar. Deu-me ela muita tranquilidade, tanta quanto a ideia de que em breve eu iria desaparecer. Como ali me encontrava, uma carruagem passando moderou o andamento e, pouco depois, uma senhora vestida de rendas negras caminhou em minha direcção, olhou em volta, e falou-me em voz baixa, sufocada.

 

- O senhor é Jonathan Maersk? - perguntou-me e, como eu lhe respondesse afirmativamente, aproximou-se mais de mim. - Oh, Jonathan Maersk, eu conheço-o. Segui-o. Sei o que vai fazer. Deixe-me morrer consigo. Há muito que procuro a morte, mas não tenho coragem de morrer sozinha. Deixe-me morrer em sua companhia. Sou tão pecadora como Judas - disse ela - como ele eu traí, traí. Venha, morramos juntos.

 

No anoitecer primaveril ela tomou a minha mão nas suas. Tive de a empurrar, e parti a correr.

 

Pensei: Existem provavelmente sempre em Copenague quatro ou cinco mulheres à beira do suicídio; talvez mais. Se me tornei o leão da moda para elas, como hei-de escapar-lhes para morrer em paz? Terei de morrer en-tão em elegante companhia, e lançar na moda a ponte de Langebro? Terei de afundar-me no mar com uma comitiva de mulheres que não distinguem um tom menor de um tom maior, e o meu último suspiro terá de ser'''?»

 

- Le dernier cri - disse Miss Malin com o risinho de uma verdadeira bruxa.

 

«Voltei a Trekroner - disse Jonathan após uma breve pausa - e sentei-me no meu quarto. Não era capaz de comer ou de beber.

 

Nesse momento recebi a visita inesperada do arrais Clement Maersk de Assenas. Tinha estado em Trankebar e, no regresso, viera procurar-me.

 

- Que é isto - disse ele - que eu ouvi dizer, Jonathan? Vais ser feito Cavaleiro de Malta? Conheço bem Malta. Quando se entra, com o Castelo de San Angelo à mão direita, tem de se ter cuidado com uma rocha antes de acostar.

 

- Meu pai - disse eu, Lembrando ainda as nossas viagens juntos - o barão Gersdorff é meu pai? Conhece esse homem?

 

- Não falemos de assuntos de mulheres - disse ele. - És um navio para todo o mar, Jonathan, seja quem for que te construiu.

 

Contei-lhe então tudo o que me acontecera.

 

- Meu pequeno Jonathan - disse ele - caíste nas mãos das mulheres.

 

Respondi-lhe que na verdade não conhecia muitas mu-lheres.

 

- Isso não importa - disse ele - eu vi os homens de Copenague. Essa gente que quer que o mundo gire à sua volta são todos mulhe-res, mascaradas com um novo modelo de narizes de cera. Digo-te que, no que toca aos navios, se não fosse pelas mulheres sentadas nos portos, à espera de sedas, de chá, de cochonilha e de pimenta, tudo coisas que precisam para que o mundo gire à sua volta, os navios velejariam calmamente, contentes do mar, sem nunca pensarem na terra. A tua mãe - prosseguiu ele pouco depois - foi a única mulher que eu conheci que não queria que o mundo lhe girasse em volta.

 

Eu disse-lhe: - Mas até ela, pai, não resistiu, e agora que Deus tenha pie-dade de mim.

 

Contei-lhe que o barão Gersdorff quisera deixar-me a sua fortuna. Meu pai fizera-se surdo com a idade. Só instantes depois ele disse:

 

- Falaste em dinheiro? Queres dinheiro, Jonathan? Teria a sua graça, pois eu sei de um lugar onde há muito dinheiro. Há três anos - contou ele - apanhei calmaria ao largo de uma pequena ilha perto de Haiti. Desembarquei para ver a ilha, e para buscar umas plantas raras que queria levar a tua mãe, e ao desenterrá-las deparei com o tesouro do Capitão L'Olonnais, que era um dos Filibustiers. Desenterrei-o, e como me fazia bem o exercício, voltei a enterrá-lo todo, em melhor ordem do que o fizera o Capitão. Conheço o local exacto. Se quiseres, um dia trago-to, e se não conseguires impedir o barão de te deixar a fortuna, podes fazer-lhe presente dele. É mais do que ele tem.

 

 

- Meu pai - exclamei - não sabe o que diz! Não viveu nesta cidade como eu. Que gesto seria! Faria de mim um leão da moda para sempre: eu seria de facto o Tímon de Assenas. Traga-me um papagaio do Haiti, meu pai, mas nunca dinheiro.

 

- Creio que és infeliz, Jonathan - disse ele.

 

- Sou infeliz, meu pai - respondi-lhe. - Amei esta cidade e os seus habitantes. Entorpeci-os de prazer. Mas eles têm dentro de si um veneno que eu não posso suportar. Se pensar neles agora, vomitarei a própria alma. Conhece alguma cura para mim?

 

- Pois conheço - disse ele. - Conheço uma cura para todos os males: a água salgada.

 

- A água salgada? - perguntei.

 

- Sim - respondeu-me -, de uma forma ou de outra. Ou o suor, ou as lágrimas, ou o mar salgado.

 

Disse-lhe: - Já experimentei o suor e as lágrimas. O mar salgado tencionava experimentá-lo se uma mulher vestida de rendas negras não mo tivesse impedido.

 

- Falas sem nexo, Jonathan - disse ele.

 

- Podes vir comigo - disse ele, instantes depois. - Vou rumo a Sampetersburgo.

 

- Não - disse eu - a Sampetersburgo não vou.

 

- Bom - disse ele - eu tenho de ir. Vê se te pões bom enquanto eu lá estiver, porque me pareces muito doente. Quando voltar, levo-te para o mar largo.

 

- Não posso ficar em Copenague - disse eu.

 

- Muito bem - disse ele - vai para onde os mé-dicos te recomendarem, que eu vou buscar-te a Hamburgo.

 

E foi assim, Eminência, e Miss Nat-og-Dag, disse o jovem, que fui mandado pa-ra aqui pelo arrais Maersk, seja ele ou não o meu pai, para buscar remédio na água salgada.»

 

- Ah, ah, ah - riu Miss Malin quando o rapaz terminou a narrativa, na qual ela muito se absorvera. Esfregou as mãos pequenas, tão satisfeita como uma cri-ança com um brinquedo novo. - Que história, Monsieur Tímon. Que lugar é este! Que criaturas nós somos! Eu, por mim, tomei agora consciência da minha identidade: sou Mademoiselle Diógenes, e esta lanter ninha, que a gorda camponesa velha nos deixou, esta é a minha famosa lanterna, à luz da qual busquei um homem, e graças à qual o encontrei. É o senhor esse homem, Tímon! Se procurasse por toda a Europa de lanterna e lampião, não encontraria um homem mais a meu gosto.

 

- E para que me quer, Madame? - perguntou Jonathan.

 

- Oh, não é para mim - disse Miss Malin. - Esta noite não estou com disposição para amores. Na verdade, parece que tomei ao jan-tar uma infusão dessa árvore agnus-castus, de que se pode ver um espécime no Guinenne. Quero-o para Calypso.

 

- Vê esta menina? - perguntou-lhe, olhando com orgulho e ternura para a bela rapariga a seu lado. - Não é minha filha, mas apesar disso, pelo Espírito Santo!, é obra minha tanto como o meu velho amigo, o barão Gersdorff, fez de si obra sua. Tenho-a carregado no meu coração e no meu pensamento, e muito tenho sus-pirado sob o seu peso. Agora completam-se os dias de eu a dar à luz e aqui temos o estábulo e a manjedoura. Mas quando a der ao mundo precisarei de uma ama; mais, precisarei de uma preceptora, um preceptor, um maestro para ela, e o senhor será tudo isso.

 

- Pobre de mim, para ensinar-lhe o quê? - perguntou Jonathan.

 

- Para ensinar-lhe a ser vista - respondeu Miss Malin. - O Senhor queixa-se de que olham para si. Mas o que seria se fosse atingido pela tragédia oposta? O que seria se ninguém pudesse ou quisesse vê-lo, embora o senhor estivesse firmemente convencido da sua própria existência? Há mais martírios que o seu, Misantropo de Assenas. Terá lido talvez a história do novo fato do Imperador, escrita por esse brilhante, esse jovem autor em ascensão, Hans Andersen. Mas aqui temos a história ao inverso: o Imperador passeia em todo o seu esplendor, ceptro e globo na mão, e ninguém em toda a cidade se atreve a olhar para ele, pois acreditam que, se o fizerem, serão considerados indignos dos seus cargos, ou insuportavelmente idiotas. É este o meu imperadorzinho; o desfile organizou-o um homem mau, de quem lhe falarei; e o se-nhor, Monsieur Tímon, será a inocente criança que há-de exclamar: «Mas o Imperador existe!»

 

- A divisa da família Nat-og-Dag - continuou Miss Malin - é a seguinte: «De fel como de mel.» Por devoção filial aos meus antepassados provei de muitos dos pratos agridoces da vida: a sopa de cabidela do senhor Swedenborg, a salada do amor platónico, até o sauerkrat do divino Marquês. Desenvolvi o paladar de uma verdadeira Nat-og-Dag; acabei por gostar desse travo. Mas a amargura da vida, essa, é um mau alimento, particularmente para um coração jovem. Nos prados do land ocidental cria-se uma espécie de carneiro que, alimentado de ervas salgadas, produz uma carne de excelente sabor, conhecida no mundo culinário por pré-salé. Esta menina foi alimentada nessas planícies salgadas, e de lágrimas e ervas amargas. O seu coraçãozinho nada mais teve para comer. Ela é, de facto, espiritualmente, um agneau pré-salé, a minha cordeirinha marinhã.

 

A rapariga, que todo o tempo se sentara acocorada junto da sua velha amiga, ergueu o busto quando Miss Malin começou a contar a sua história. Sentou-se muito direita, então, e os seus olhos cor de âmbar sob as delicadas e longas sobrancelhas, que eram como as marcas nas asas de uma borboleta, ou um par de asas alongando-se, fixavam-se no ar, altivos de mais para fitarem os ouvintes. A despeito da gentileza da fronte, era um animal perigoso, pronto a saltar. Mas sobre o quê? Sobre a vida em geral.

 

- Já ouvistes falar - perguntou Miss Malin - do conde August Platen-Hallermund? - Ao som deste nome a rapariga estremeceu, ficando pálida. Uma treva ameaçadora desceu sobre os seus olhos claros. - Pronto, pronto - disse Miss Malin - não voltaremos a pronunciar o seu nome. Como ele não é um homem, mas um anjo, chamar-lhe-emos conde Seraphina. Tomaremos assento esta noite num lit de justice em que julgaremos o conde. A verdade sobre ele tem de ser dita, nem que seja apenas aqui. Quando em menina aprendia francês - e a velha senhora dirigiu-se ao cardeal, por sobre as cabeças dos dois jovens, com súbita familiaridade - a primeira frase do meu livro de leitura rezava assim: Le lit est une bonne chose; si l'on n'y dort pas, l'on s'y repose. Como tanta outra coisa que aprendemos em meninos, a vida provou que isto era uma rematada falácia. Mas poder-se-á aplicar ainda ao leito da justiça.

 

- Com efeito, li a poesia e a filosofia do conde August - disse o cardeal.

 

- Eu não - disse Miss Malin. - Quando, no Dia do Juízo Final, for chamada a prestar contas das mui-tas horas que passei em maus lugares, poderei dizer ainda em minha defesa: «Mas não li os poemas do conde Au-gust von Platen.» Sabe Vossa Eminência quantos poemas ele escreveu?

 

- Ah, não saberei dizer - replicou o cardeal.

 

Miss Malin disse: - Cinq ou six mille? C'est beaucoup. Combien en at-il de bons? Quinze ou seize. C'est beaucoup, dit Martin.

 

- Vossa Eminência leu - continuou ela - a história do infeliz mancebo que foi transformado num Carlin por uma bruxa, e que não po-dia voltar à primitiva forma a menos que uma virgem pura, que não tivesse conhecido homem, lesse, numa noite de São Silvestre, os poemas de Gustav Pfizer sem adormecer? Pois bem, a amiga, compassiva, ao ouvir isto respondeu-lhe: «Então, infelizmente, não posso ajudá-lo. Em primeiro lugar, não sou virgem. Em segundo lu-gar, nunca poderia, se lesse os poemas de Gustav Pfizer, impedir-me de adormecer.» Se o conde August for algum dia transformado em carlin, e exactamente pelas mesmas razões, eu não poderei ajudá-lo.

 

- Este homem, então, este conde Seraphina - disse, retomando o fio à história depois do breve adejo do seu espírito - é o tio desta menina, e ela se criou em sua casa depois da morte dos pais. E assim, meus bons amigos, aliviarei as trevas desta noite, imprimindo nelas a treva mais negra da história de Calypso.

 

«O conde Seraphina - disse Miss Malin - meditava muito sobre os assuntos celestiais. E, como deveis calcular, se haveis lido os seus poemas, estava convencido que a nenhuma mulher foi alguma vez permitido que entrasse no Paraíso. Sentia aversão e desconfiança por tudo o que fosse feminino; ficava em pele de galinha.

 

A sua ideia de Paraíso era, então, uma longa fila de lindos rapazes, em transparentes e alvas túnicas, caminhando dois a dois, cantando os seus poemas e a sua música, em tão doces trinados como foram os do senhor Jonathan, ou discutindo a sua filosofia, ou absorvidos nos seus livros sobre aritmética. A propriedade que tinha em Angelshorn, no Meclemburgo, quis torná-la num paraíso assim, num Olimpo de cera á la Von Platen, e no exacto centro dele tinha uma coisa muito embaraçosa para os dois: esta menina, que ele duvidava que pudesse passar por anjo.

 

Enquanto ela foi pequenina, agradava-lhe a sua companhia, pois ele aprecia a beleza e a graça. Mandava que lhe vestissem fatos de rapaz, todos de veludo e rendas, e consentiu que o seu cabelo crescesse num tal labirinto de anéis jacintinos como os que o jovem Ganimedes exibia na corte de Júpiter. Estava todo ocupado pelo pensamento de se mostrar ao mundo como um prestidigitador, um alto praticante da magia branca, capaz de transformar essa gota de sangue do próprio demónio - uma rapariga - no doce objecto que mais se aproxima dos anjos - um rapaz. Ou talvez sonhasse criar um ser de espécie diferente, um objecto de arte, que não fosse rapaz nem rapariga mas um puro Von Platen. Ocasiões houve, talvez, em que o seu sangue delicado de artista se exaltou nas veias contemplando este pensamento. Ensinou à menina o grego e o latim. Tentou transmitir-lhe a ideia da beleza das altas matemáticas. Mas quando lhe dissertava sobre a infinita beleza do círculo, eis que ela pergunta: «Se era assim tão belo, que cor tinha - não seria azul? Ah, não, disse ele, não tinha cor nenhuma». Desde esse momento começou a duvidar que ela se transformasse em rapaz.

 

Continuou a observá-la, preso de terríveis dúvidas, cada vez mais virtuosamente indignado com os sinais do seu próprio erro. E quando viu que já não restava lugar a dúvidas, que o seu fracasso era uma certeza, com um calafrio desviou os olhos dela, e aniquilou-a. A sua beleza de menina foi a sua sentença de morte. Isto aconteceu há dois ou três anos. Desde então ela não tem existido. O senhor Tímon é livre de a invejar.

 

O conde Seraphina tinha grande predilecção pela Idade Média. O seu enorme castelo de Angelshorn datava desses tempos, e ele não se poupara a esforços para fazer com que o seu interior, como já o exterior, voltasse ao tempo das Cru-zadas. O castelo não fora feito, como não o era o pró-prio conde, para se espalhar muito sobre a terra, mas as altas torres aspiravam ao céu, envoltas no fino fumo de uma revoada de gralhas, e as profundas masmorras pareciam enterrar-se em direcção ao fosso. A luz do dia en-trava, entre paredes de dez palmos de espessura, por ve-lhos vitrais, como canela e sangue de boi, ao comprimento das salas, onde, em tapeçarias desbotadas, unicórnios eram mortos e os Magos com seus séquitos levavam a Belém o ouro e a mirra. Aqui, o conde escutava, ou tocava a viola de gamba e a viola d'amore e praticava tiro com arco. Nunca lia um livro impresso, e por isso mandava copiar à mão os au-tores modernos, em letras de escarlate e azul ultramarino.

 

Gostava de imaginar-se o abade de um mosteiro altamente selectivo, onde só os jovens e belos monges de brilhantes talentos e doces maneiras eram admitidos. Ele e o seu círculo de jo-vens amigos sentavam-se a jantar em velhos bancos de carvalho esculpido, e usavam hábitos capuchos de seda púrpura. A sua casa era uma abadia sobre o solo do Norte, um monte Athos onde nem galinha ou vaca se consente, nem sequer abelhas bravas, que são governadas por uma rainha. Sim, o conde era mais zeloso que os monges do Athos, pois quando ele e o seu serralho de lindos jovens bebiam por vezes o vinho por uma caveira, para terem presente a ideia da morte e da eternidade, ele cuidava para que a caveira não fosse de mulher. Ah, o nome desse homem traz a desonra aos meus lábios! Seria melhor que um homem matasse uma mulher para obter uma caveira por onde bebesse o seu vinho, que excitar-se ao bebê-lo, por assim dizer, pelo seu próprio crânio.

 

Neste castelo perverso a aniquilada menina vagueava. Era a coisa mais bela que nele havia, e teria adornado a corte da rainha Vénus, que muito provavelmente faria dela a guardiã das suas pombas, pomba que ela própria era. Mas aqui, sabia que não tinha existência, pois ninguém a olhava. Onde, Eminência, onde nasce a música - sobre o instrumento ou no ouvido que o escuta? A beleza de uma mulher é criada nos olhos de um homem. Falou, Tímon, de Lúcifer, que ofendeu a Deus por olhá-Lo para ver como Ele era. Isso mostra que o senhor adora uma divindade masculina. Uma deusa perguntaria em primeiro lugar ao seu adorador: «Que lhe pareço eu?»

 

Perguntar-me-ão talvez: - Nem um dos acetinados favoritos do castelão olhou, por sua iniciativa, e percebeu como ela era linda? - Não. Esta é a história do fato novo do Imperador, e é contada para vos provar o poder da vaidade humana. Esses bonitos rapazes tinham muito medo que os achassem insuportavelmente idiotas e indignos dos seus cargos. Andavam ocupados a discutir Aristóteles, e a dissertar sobre a doutrina e os mistérios dos escolásticos antigos e medievais.

 

O próprio Imperador, como vos lembrareis, acreditava que estava magnificamente vestido. Assim a donzela acreditava que não era digna de ser olhada. Todavia, em seu coração não podia acreditá-lo, e esta eterna luta entre o instinto e a razão devorava-a, tanto quanto devorou Hércules, ou outro herói tradicional da tragédia. Parava por vezes a olhar as imponentes armaduras nos corredores de Angelshorn. Estas, sim, pareciam homens verdadeiros. Sentia que elas haveriam de ser seus partidários, se não estivessem todas vazias. Começou a recear qualquer presença, e errava, selvagem, na solidão do brilhante círculo do conde. Mas tornou-se também feroz, e bem podia, numa noite escura, ter posto fogo ao castelo.

 

Por fim, tal como o se-nhor, Tímon, que não suportava a existência e queria lançar-se à água da ponte de Langebro, ela também já não suportava a inexistência em Angelshorn. Mas a sua missão foi mais fácil; o senhor só queria desaparecer. Ela, não; ela tinha de criar-se a si própria. Crescera por tanto tempo entre as perversas heresias desses falsários da verdade, e fora tão completamente torturada e ameaçada com a fogueira, que se encontrava agora pronta a renegar qualquer deus. Abu Mirrah tinha um anel que o tornava invisível, mas quando quis casar-se com a princesa Ebadu, e não conseguia tirá-lo do dedo, decepou o dedo com o anel. Do mesmo modo Calypso se resolveu a cortar os longos cabelos, e a decepar os jovens seios, para se assemelhar aos que a rodeavam. Este acto diabólico resolveu-se ela a cometê-lo numa noite de Verão.»

 

Neste ponto da narrativa de Miss Malin, a rapariga, que até ali tinha fitado um ponto distante à sua frente, volveu os olhos terríveis para a narradora e dispôs-se a escutá-la com um novo interesse, como se ela própria ouvisse a narrativa pela primeira vez. Miss Malin tinha um opulento poder imaginativo. Mas ainda assim a história, correcta ou não, era para a sua heroína um símbolo, uma imagem alegórica do muito por que tinha passado em realidade, e isto o reconheciam os olhos claros e profundos que fitavam a velha senhora.

 

«À meia-noite, Eminência - prosseguiu Miss Malin - a donzela ergueu-se para o seu rendez-vous sinistro. Tomou um candelabro em uma das mãos e um afiado machadinho na outra, e ia semelhante a Judite quando foi matar Holofernes. Mas que treva, meus amigos, que treva no castelo de Angelshorn, comparada com a escuridão da tenda de Dotain. Os anjos devem ter desviado os olhos e chorado.

 

Atravessou toda a casa até chegar a um aposento onde sabia haver um longo espelho na parede. Era uma sala que ninguém usava; ninguém viria ali. A menina perdida fez descer as roupas até à cintura e fixou os olhos no espelho, não se consentindo um pensamento, para que ele não a fizesse temerosa do seu intento.

 

A essa mesma hora jovens recém-casados, em leitos nupciais, descobriam, trémulos, acariciavam e beijavam os corpos das jovens esposas. À luz de quinhentas velas de cera grandes damas mudavam os destinos das nações com um movimento dos ombros decotados. Até nas casas de má nota de Nápoles as velhas madamas tisnadas, arrastando as raparigas para junto da vela na mesa de cabeceira e baixando-lhes os corpetes, regateavam com os clientes por um preço mais alto. Calypso, ao baixar os olhos à alvura do seu colo reflectida no espelho baço, pois nunca se tinha visto nua num espelho, experimentava o gume do machado no dedo mínimo.

 

Nesse momento ela viu no espelho uma grande figura por trás dela. Parecia mover-se, e ela voltou-se. Não estava ali ninguém, mas da parede pendia um enorme quadro antigo, que escurecera com o tempo, onde as partes mais claras, porém, iluminadas pela vela, sobressaíam. Representava uma cena de ninfas, de faunos e de sátiros, com os centauros brincando em bosques e nas planícies floridas. Fora trazido muitos anos antes da Itália por um dos antigos senhores do castelo, mas, considerado indecente, antes ainda do tempo do presente conde fora retirado das salas. Não era o quadro de um mestre, mas tinha muitas figuras. Em primeiro plano, três jovens ninfas nuas, prateadas como rosas brancas, empunhavam ramos de árvore.

 

Calypso percorreu toda a extensão do quadro, erguendo a vela e estudando-o gravemente. Que se tratava de um quadro escandaloso não tinha ela conhecimento para o jul-gar; nem duvidou que fosse a representação fiel de seres reais. Olhava com grande interesse os sátiros e os centauros. Na sua existência solitária desenvolvera uma ternura apaixonada pelos animais. Para o espírito do conde August a existência de tais criaturas era um enigma e uma tragédia, e não havia animais em Angelshorn. Mas à menina pareciam mais amoráveis que os seres humanos, e ficou encantada por descobrir que havia quem possuísse tantas das suas características. Mas o que a surpreendeu e subjugou foi o facto de estes seres fortes e belos estarem obviamente concentrando a atenção em perseguir, adorar e abraçar raparigas da sua idade, em figura e rosto semelhantes a ela, e de tudo aquilo ser em honra dos seus encantos e inspirado por eles.

 

Esteve olhando o quadro por longo tempo. Voltou por fim ao espelho e ali ficou, contemplando-se nele. Possuía o sentido artístico de seu tio, e sabia por instinto quais as coisas que entre si se harmonizavam. Agora sentia-se invadir por uma sensação de grande harmonia, até ali não experimentada.

 

Sabia agora que tinha amigos neste mundo. Por direito de beleza podia figurar sob essa luz dourada e branda, o céu azul e as nu-vens cinzentas, e nas intensas sombras, castanhas, dessas planuras e desses olivais. O seu coração encheu-se de gratidão e orgulho, pois todos ali a olhavam e reconheciam como sua igual. O próprio deus Dionísio, que estava presente, a fitava, risonho, nos olhos.

 

A menina olhou em volta e viu, em vitrinas, o que antes nunca vira em Angelshorn: roupas de mulher, leques, jóias, e sapatinhos pequenos. Tudo isto pertencera à sua bisavó. Pois, e estranho é dizê-lo, o conde tivera uma avó. Tivera mãe, até, e tempos houve em que, bon gré mal gré, tinha entrado em íntimo contacto com o corpo de uma jovem loura. Ele sentia uma ternura pela avó, que o tinha sovado em pequeno, e no centro dessa abadia deixara intacto o seu boudoir. Um leve aroma de essência de rosas ainda ali vivia.

 

A menina passou a noite nesse quarto. Vestiu e despiu todos os vestidos de gala, pôs e tirou os colares de pérolas e os diamantes. Olhou no espelho o quadro, procurando o aplauso dos centauros - com que vestes ficava ela melhor? Dúvidas não as tinha. Deixou por fim esse quarto para se di-rigir aos aposentos do castelão. Antes de fechar a porta beijou as ninfas, tão alto quanto puderam chegar os seus lábios, como se elas fossem suas amigas queridas.

 

Subiu as escadas com toda a suavidade, e aproximou-se do grande leito do tio. Ali estava ele, entre as cortinas de seda amarela, os olhos fechados, o nariz empinado, branco numa fina camisa branca de dormir. A menina envergava ainda um vestido amarelo de brocado e, de pé junto à cama, parecia Psique junto ao leito de Amor. Psique temera ver um monstro e achara um deus. Mas Calypso julgara o tio um ministro da verdade, um árbitro do gosto, um Apolo, e que achou ela? Um pobre boneco de pano, a caricatura de uma caveira. Corou intensamente. Sentira medo desta criatura - ela, que era a irmã das ninfas e tinha centauros por companheiros de folguedos? Ela era cem vezes mais forte do que ele!

 

Se ele tivesse acordado e a tivesse visto junto à sua cabeceira, ainda com o machadinho na mão, talvez tivesse morrido de medo, ou talvez a visão lhe fizesse uma outra espécie de bem. Mas ele continuou a dormir - e só Deus sabe que sonhos eram os seus - e ela não lhe cortou a cabeça. Ofereceu-lhe em vez disso um pequeno epigrama rápido, do seu livro de francês, que em tempos fora feito a um rei que também se imaginara muito amado:

 

Ci-gìt Louis, ce pauvre roi,

L'on dit qu'il fut bon - mais à quoi?

 

E não lhe guardou o menor

rancor; porque ela não era

uma escrava liberta, mas um

conquistador com imponente

séquito, que se podia permi

tir esquecer.

 

Saiu do quarto tão depressa como havia chegado, e apagou a vela, pois na noite de Verão conseguia achar o caminho sem luz. À sua volta o serralho estava silencioso; só quando passou uma porta ouviu dois rapazes discutir o amor divino. Tanto se lhe dava que estivessem vivos ou mortos.

 

Ao levantar o pesado ferrolho medieval da porta principal, levantou um peso do próprio coração.

 

Quando saiu, chovia. Até a noite parecia querer tocá-la.

 

Caminhou pelos pântanos, grave como Ceres levando o trovão tomado a Júpiter, e que, mesmo quando franze o sobrolho, cheira a morangos e a mel. Por todo o horizonte os relâmpagos da deusa faiscavam em sua honra. Deixou que o vestido arrastasse pelas urzes. E porque não? Se um jovem salteador a encontrasse, ela teria feito dele talvez o seu marido, imediatamente, até que a morte os separasse; ou talvez lhe tivesse cortado a cabeça, e só Deus sabe qual dos dois destinos seria o mais invejável.

 

Ela não tinha uma cançoneta alegre nos lábios. Fora educada gravemente, como boa protestante, e a vida não lhe ensinara frivolidades. Em seu coração repetia o hino desse bom Paul Gerhardt, alterando-o tão-somente no pronome pessoal:

 

Contra mim quem pode erguer-se?

O relâmpago está em minha mão.

Quem ousa trazer desolação

Ao que eu decidi abençoar?

 

De manhã cedo chegou à casa onde eu me havia instalado. Estava toda encharcada, como as árvores do jardim. Ela conhecia-me, pois sou sua madrinha, e pressentira que eu sabia, e poderia contar-lhe, das ninfas e dos centauros. Encontrou-me quando eu subia para a carruagem, a caminho dos banhos de Norderney. Assim foi que o destino nos uniu para, afinal, como o senhor, senhor Tímon, buscarmos remédio na água salgada.»

 

- E para brilharem sobre ela - disse o cardeal com a mesma suavidade com que estivera escutando a narrativa da velha senhora - uma Stella Maris na treva deste palheiro.

 

- Na realidade, Madame - disse Jonathan - não sei se achará estranho, mas nunca na vida pensei, até Vossa Excelência mo dizer agora, que as mulheres bonitas podiam sofrer. Julgava-as flores preciosas, que devemos cuidar com desvelo.

 

- E o que sente agora, que já lho disse? - perguntou-lhe Miss Malin.

 

- Madame - disse o jovem, depois de reflectir - sinto que é edificante pensar que, no que toca às mulheres, estamos sempre sem a razão.

 

- É um jovem honesto, o senhor - disse Miss Malin. - O seu lado sangra de onde uma vez lhe foi retirada a costela.

 

- Se eu estivesse no castelo de Angelshorn - prosseguiu ele, muito agitado - não me importaria de morrer ao serviço desta dama.

 

- Pois bem, Jonathan e Calypso - disse Miss Malin -, seria um pecado e pura blasfémia se os dois morressem solteiros. Ambos foram trazidos aqui, de Angelshorn e Assenas, para os braços um do outro. O senhor pertence-lhe a ela, ela pertence-lhe a si, e o cardeal e eu, que aqui fazemos as vezes dos vossos pais, vos daremos a nossa bênção.

 

Os dois jovens olhavam-se.

 

- Se alguém disser - prosseguiu Miss Malin - que não sois iguais em nascimento, responderei que pertenceis à ordem de cavalaria do palheiro de Norderney, fora da qual nenhum membro dela pode casar-se.

 

A rapariga, em grande excitação, soergueu-se e ficou de joelhos.

 

- Não viste, Calypso - dirigiu-se-lhe Miss Malin com bondade - como ele te seguiu até aqui, e como, no momento em que viu que ficavas comigo, nada no mun-do o faria permanecer no barco? As muitas águas não poderiam extinguir o amor, nem os dilúvios podem afogá-lo.

 

- É verdade? - perguntou a rapariga volvendo os olhos para o rapaz de modo tão intenso e desvairado como se a própria vida ou a morte dependessem da sua resposta.

 

- Sim, é verdade - disse Jonathan. Não era de modo algum verdade. Nessa altura nem dera pela existência da rapariga. Mas o poder imaginativo da velha senhora era suficiente para arrebatar qualquer um. O rosto da rapariga, ao ouvir aquelas palavras, empalideceu, tornando-se de súbito de uma cor rara de pérola. Os seus olhos ficaram maiores e mais escuros. Fulgiam para ele como estrelas, com um brilho mais líquido, mais intenso do que as lágrimas, e ao ver esse rosto transformado Jonathan caiu de joelhos sobre o feno.

 

- Oh, Jonathan - disse Miss Malin - quer agradecer ao barão, de joelhos, por se ter preocupado consigo?

 

- Quero, Madame - disse o jovem.

 

- E tu, Calypso - perguntou ela à rapariga - queres que ele olhe para ti por todo o sempre?

 

- Quero - disse a rapariga.

 

Miss Malin lançou-lhes um olhar triunfante.

 

- Então, Eminência - disse ela ao cardeal - consente em casar estes dois jovens, que tanto precisam casar-se?

 

Os olhos do cardeal perscrutaram gravemente os dois jovens, que se coloriram de cor tão rubra como se estivessem em frente de um vivo lume.

 

- Consinto - disse ele. - Levantai-me.

 

O futuro noivo ajudou-o a erguer-se.

 

- Tereis - disse Miss Malin - um cardeal a celebrar o vosso casamento, e uma Nat-og-Dag por dama de honor, o que mais ninguém terá no futuro. No vosso casamento terá de haver mais intensidade do que nas uniões mornas que geralmente os outros celebram, pois o senhor deverá vê-la, ouvi-la, conhecê-la com essa energia que pretendia usar para se lançar ao mar da ponte de Langebro. Um beijo vos compensará pelos gémeos que não nasceram, e à alvorada celebrareis as vossas bodas de ouro.

 

- Eminência - disse ela, dirigindo-se ao cardeal - sendo as circunstâncias tão incomuns, pois não haverá necessidade de procriar, visto o barco não poder aguentar mais dos que nós somos, e não correndo eles o risco de incesto, creio eu; e, quanto à companhia uns dos outros, não podemos fugir-lhe ainda que o quiséssemos, penso que Vossa Eminência terá de estabelecer um novo ritual do matrimónio.

 

- Tenho consciência do facto - disse o cardeal.

 

Para desembaraçar o centro do círculo, Miss Malin levantou a lanterninha na sua mão ossuda, e Calypso retirou o pão e o barrilete. O cão, vendo a mudança de posições no grupo, levantou-se e vagueou entre eles, intranquilo. Instalou-se por fim junto da jovem noiva.

 

- Ajoelhai, meus filhos - disse o velho sacerdote.

 

O cardeal ergueu-se, a figura enorme e pesada pairando sobre eles no largo aposento mal iluminado. Nesse instante, como se levantasse o vento, ouviram o queixume das águas que os rodeavam.

 

- Não poderei - disse o cardeal, muito lentamente - evocar aqui, nesta noite, a magnificência da catedral, ou a presença de uma congregação, que sancionem a vossa promessa. Não tenho tempo para vos ensinar ou preparar. Tereis, portanto, de aceitar as minhas palavras baseadas unicamente na minha autoridade. Vós dois, soube-o hoje - prosseguiu ele depois de uma pausa - vistes abalada a vossa fé na coesão e na justiça da vida. Tende fé em mim, agora, eu vos ajudarei. Tendes um anel?

 

Os jovens não tinham um anel, e ficaram muito desapontados por isso, mas Miss Malin tirou do dedo um magnífico diamante, que entregou ao velho cardeal.

 

- Jonathan - disse ele - coloca este anel no dedo desta jovem.

 

O rapaz assim fez, e o cardeal colocou as mãos sobre a cabeça dos noivos ajoelhados.

 

- Jonathan - repetiu o cardeal - acreditas agora que estás casado?

 

- Sim - disse Jonathan.

 

- E tu, Calypso? - perguntou o cardeal à rapariga.

 

- Sim - murmurou ela.

 

- E que a partir deste momento vos amareis e honrareis um ao outro até ao fim de vossas vidas, e mesmo na morte e na eternidade?

 

- Sim - responderam.

 

- Então - disse o cardeal - sois marido e mu-lher.

 

Miss Malin, perto de-les, erguia a lanterna como uma sibila.

 

As horas de descanso no palheiro não tinham dado forças ao cardeal, que provavelmente nunca mais haveria de recuperar-se. Eram menos firmes os seus movimentos do que antes, ao sair do barco. O seu corpo parecia vacilar, estranhamente, ao ritmo do marulhar das águas.

 

- Quanto ao estado do matrimónio - disse ele - e ao amor, suponho que nenhum de vós sabe alguma coisa a esse respeito? - Os dois jovens abanaram a cabeça. - Não poderei - disse uma vez mais o cardeal - ter aqui por testemunhas das minhas palavras as Escrituras ou os Doutores da Igreja. Não poderei, sequer, pois estou muito cansado, recordar os textos e os exemplos com que vos esclareça e ins-trua. De novo tereis de aceitar as minhas palavras baseados na minha autoridade de homem muito velho, que cumpriu uma vida longa e estranha estudando os assuntos divinos. Estes assuntos, digo-vos eu, são divinos. Jonathan, crês e afirmas que o sejam?

 

- Sim - disse Jonathan.

 

- E tu, Calypso? - perguntou à noiva.

 

- Sim - disse ela.

 

- Então é tudo - concluiu o cardeal.

 

Como ele não parecia disposto a acrescentar mais coisa alguma, o jovem casal, após um instante, ergueu-se, mas estavam ambos tão profundamente comovidos que não puderam separar-se. Ali, de pé, olharam um para o outro pela primeira vez desde que haviam sido chamados a casar-se, e este só olhar dissipou a timidez de ambos. Voltaram aos seus lugares sobre o feno.

 

- Quanto a nós, Madame - disse o cardeal dirigindo-se, por sobre a cabeça dos jovens, a Miss Malin, mas aparentemente esquecendo que já não se encontrava no púlpito, pois falou com a mesma solenidade com que celebrara a cerimónia do casamento -, que ambos somos apenas espectadores nesta ocasião, e conhecemos mais do amor e do casamento, reflictamos na lição que eles, antes de tudo e sobretudo, nos ensinaram sobre a tremenda coragem do Criador deste mundo. Todo o ser humano tem, creio eu, cedido à ideia de criar ele próprio um mundo. O Papa quis ter a bondade de encorajar em mim esses pensamentos, quando eu era jovem. Reflecti então que eu próprio poderia, se me fosse dada omnipotência e carta branca, ter feito um belo mundo. Talvez me tivesse lembrado de criar as árvores e os rios, os di-ferentes tons da música, a amizade e a inocência; mas, sob minha palavra de honra, não me atreveria a dispor estes assuntos de casamento e amor tal como eles existem, e o meu mundo perderia muito com isso. Que formidável lição para todos os artistas! Não tenhais medo do absurdo, nem receeis o fantástico. Perante um dilema, escolhi a solução mais inédita, a mais perigosa. Sede corajosos! Ah, Madame, o muito que nós temos de aprender!

 

E dito isto, mergulhou em profundos pensamentos.

 

Ao sentarem-se, as posições que primeiro tomaram não se alteraram muito, excepto que os recém-casados agora se sentavam mais jun-tos e davam as mãos. Por vezes voltavam o rosto um para o outro. A lanterna ficou sobre o chão em frente deles. Miss Malin e o cardeal, depois do esforço de os casarem, ficaram silenciosos por uma meia hora, e beberam umas gotas do barrilete de gin.

 

Miss Malin sentava-se muito direita, mas agora parecia um corpo morto há vinte e quatro horas. Estava profundamente comovida e feliz, como se tivesse realmente casado uma filha. Grandes arrepios a percorriam da cabeça aos pés. Quando por fim retomou a conversa a sua voz era débil, mas sorria. Tinha provavelmente estado a reflectir sobre o casamento e o Jardim do Éden.

 

- Vossa Eminência acredita - perguntou ela - no pecado original?

 

O cardeal reflectiu na questão durante algum tempo, depois inclinou-se para a frente, os cotovelos sobre os joelhos, e afastou um pouco a ligadura da fronte.

 

- Essa é uma questão - disse ele numa voz quase diferente, mais grossa que antes, muito mais vigorosa também, como se no mesmo gesto ele tivesse afastado dez anos de vida - sobre a qual tenho pensado muito. É agradável ter a oportunidade de falar dela esta noite.

 

- Estou convencido - declarou - que houve um pecado, mas não sou de opinião que tenha tido como consequência a queda do homem. Creio que foi a divindade que sofreu a queda. Estamos agora servindo uma inferior dinastia do Céu.

 

Miss Malin estava preparada para um engenhoso ar-gumento, mas a estas palavras ficou chocada, e por um momento manteve as pequeninas mãos sobre os ouvidos.

 

- Que palavras terríveis para os ouvidos de uma legitimista - exclamou.

 

- Que serão elas, então - perguntou solenemente o cardeal - para os lábios de um legitimista? Durante setenta anos as calei. Mas a senhora perguntou-mo e, Madame, se a verdade tem de dizer-se, eis um bom lugar e uma boa hora para o fazer. Em algum tempo aconteceu, no Céu, uma tremenda mudança, semelhante à Revolução Francesa na Terra, que trouxe as suas sequelas. O mundo de hoje, como a França de hoje, está nas mãos de Louis Philippe.

 

- Há tradições ainda - prosseguiu - do Grand Monarque e do Grand Siècle. Mas ninguém, sensível à grandeza, poderá acreditar que o Deus que criou as estrelas, o mar e o deserto, o poeta Homero e a girafa, é o mesmo Deus que hoje está criando, e sustendo, o rei da Bélgica, a Escola Poética da Suábia, e as ideias morais do nosso tempo. Servimos Louis Philippe, um Deus Humano, tal como o rei de França é um rei burguês.

 

Miss Malin fitava-o, pálida, os lábios entreabertos.

 

- Minha senhora - disse o cardeal - nós que somos por nascimento e herança os grandes do reino, e os dignitários do rei, e temos o código do Grand Monarque correndo nas nossas veias, temos o dever de servir o rei legítimo, indepen dentemente do que possamos pensar dele. Temos de perpetuar a sua glória. Porque o povo não pode duvidar da grandeza do rei ou suspeitar das suas fraquezas, e a res-ponsabilidade de manter a fé desse povo é nossa, Madame. O barbeiro da corte não foi capaz de manter o segredo; teve de murmurar, no cana vial, que o rei tinha orelhas de burro. Mas nós, seremos nós barbeiros? Não, Madame, não somos barbeiros.

 

- Não demos o nosso melhor? - perguntou Miss Malin com orgulho.

 

- Sim - disse o cardeal - demos o nosso melhor. Se olhar em sua volta, Madame, verá por toda a parte os feitos dos fiéis que trabalharam, anónimos, para a honra do seu rei. Poderia citar-lhe exemplos da história, nos quais tenho reflectido. Citar-lhe-ei alguns apenas. Deus criou a concha, que é um bonito objecto, mas não mais do que aquilo que até Louis Phi lippe poderia descobrir ao brincar com um compasso. Da concha criámos nós toda a arte rococó, que é um gracejo encantador, no verdadeiro espírito do Grand Monarque. E se ler a história dos grandes, achará que os camareiros e as aias tra balharam para servir o nosso amo de boa memória. O papa Alexandre e seus filhos, de acordo com as últimas in vestigações históricas, eram uma família amável, dada à jardinagem e à decoração de interiores, e cheia de afecto filial, et voilá tout - obviamente uma obra de Louis Philippe. Mas desse material indiferente nós talhámos as nossas figuras dos Bórgias. Achará casos muito semelhantes se estudar os factos sobre os nomes mais famosos da História. Ou até, se não tiver objecções, Madame - prosseguiu o velho cardeal - a morte: o que é a morte, hoje em dia, nas mãos de Louis Philippe? Uma negação, uma decomposição, e nem sequer de bom gosto. Mas veja o que fizemos dela fiéis ao nosso Deus: o Mausoléu Imperial do Escorial, Madame, e a Marcha Fúnebre de Herr Ludwig von Beethoven. Como poderíamos tê-los feito, pobres seres humanos que nós somos e, além do mais, condenados a sofrer essa indigência, se não tivéssemos no nosso coração o amor imorredoiro pelo nosso Senhor que nos deixara, o grande aventureiro, a quem a nossa família prestou pela primeira vez um juramento de fidelidade?

 

- Mas com tudo isto - prosseguiu ele muito gravemente - o fim está próximo. Ouço cantar os galos. O rei Louis Philippe não durará muito. Na sua causa o sangue do próprio Rolando seria derramado em vão. Ele tem todas as qualidades de um bom burguês, e nenhum dos vícios de um Grand Seigneur. Nenhum título reclama que o de primeiro cidadão do seu reino, e nenhum privilégio excepto o que decorre da sua lealdade ao código da moral burguesa. Quanto a isso, os dias da realeza estão contados. Farei uma profecia, Madame: o bom rei de França não durará outros treze anos. E o bom Deus, que Louis Philippe e a sua burguesia adoram hoje, tem todas as virtudes de um ser humano íntegro; não reclama quaisquer privilégios divinos excepto os que decorrem das suas virtudes. Nós, es peramos uma atitude moral do nosso Deus, tal como não colocamos o nosso rei acima do código penal. O Deus humanizado terá de partilhar o destino do rei burguês. Eu próprio fui ensinado por seres humanos na fé em um Deus humanizado. Isso tocou, para mim, as raias do intolerável. Que revelação, Madame, que bênção para o meu coração, quando, nas noites mexicanas, senti as grandes tradições erguerem-se de um Deus que não se ralava nem um pouco com os nossos mandamentos! E assim, Madame, estamos nós morrendo por uma causa perdida.

 

- Para obtermos a nossa recompensa no Paraíso - disse Miss Malin.

 

- Ah, não, Madame - disse o velho - não iremos para o Paraíso, nem a senhora nem eu. Veja que o Rei Louis hoje condecora quem ele eleva ao pariato, quem ele coloca nos mais altos cargos. São todos idóneos burgueses, todos; nem um só nome da velha aristocracia aparece na lista. Nem a senhora nem eu conseguimos agradar ao Senhor hoje em dia; até O irritamos um pouco, e Ele bem o demonstra na Sua atitude para connosco. A velha nobreza, cujas maneiras e nomes nos fazem recordar as tradições do Grande Monarca, deve ser um tanto desagradável para o rei Louis Philippe.

 

- Então não podemos ter esperança no Céu, nem Vossa Eminência nem eu? - perguntou Miss Malin orgulhosamente.

 

- Não sei se lhe agradaria lá entrar - disse o velho cardeal - se lhe fosse permitido dar uma vista de olhos ao Céu. Deve ser o rendez-vous da burguesia. Em minha opinião, Madame, nunca houve um grande artista que não tivesse o seu quê de charlatão; nem um grande rei, nem um deus. A charlatanice é uma qualidade indispensável na corte, no teatro, e no Paraíso. Trovões e relâmpagos, a lua nova, um rouxinol, uma rapariga - tudo isso são charlatanices, ou uma gabarolice divina. Tal como a gallérie de glaces de Versalhes. Mas o rei Louis Philippe não tem uma gota de charlatão nas veias; ele é completa e genuinamente idóneo. O Paraíso, hoje em dia, é muito provavelmente isso mesmo. A senhora e eu não fomos feitos para a mediania. Faremos melhor figura no Inferno. Fomos educados para ele.

 

É uma satisfação, Madame, faremos algo que aprendemos a fazer bem. Deve ser uma satisfação para si, tenho a certeza, dançar um minuete. Vejamos um exemplo. Digamos que eu fui educado desde criança a fazer uma determinada coisa. Tomemos por exemplo retórico que eu fui ensinado a dançar na corda. Ensinaram-me, sovaram-me para que eu aprendesse. Se caio e me magoo, tenho, ainda assim, de subir de novo para a cor-da. Minha mãe chorou, mas ainda assim encorajou-me a fazê-lo. Teve de passar sem comer para pagar ao funâmbulo que me ensina. E eu tor-nei-me um bom funâmbulo, digamos o melhor funâmbulo do mundo. É uma boa coisa, então, ser funâmbulo. E serei amplamente recompensado se, numa ocasião especialíssima, na presença de um grande monarca estrangeiro, o meu rei disser ao seu real convidado: «Tendes de ver isto, Majestade e meu Irmão; é o meu melhor espectáculo, o meu servo Hamilcar, o fu nâmbulo!» Mas que seria, Madame, se ele dissesse: «Não faz muito sentido, dançar na corda. É um espectáculo tosco; vou mandar que parem.» Que espécie de actuação, por parte do rei, seria essa para comigo?

 

- Já esteve em Espanha, Madame? - perguntou ele à velha senhora.

 

- Oh, sim - disse Miss Malin - um lindo país, Eminência. Fizeram-me serenatas sob as minhas janelas, e o próprio Mon sieur Goya pintou o meu retrato.

 

- Assistiu a uma tourada? - perguntou o cardeal.

 

- Assisti - disse Miss Malin. - É uma coisa muito pitoresca, embora não seja do meu gosto.

 

- É uma coisa pitoresca - disse o cardeal. - E o que julga, Madame, que o touro pensa da tourada? O Touro plebeu pode até pensar: «Deus tenha piedade de mim, que terrível situação esta. Que desgraça, que má sorte a minha. Mas tenho de a suportar.» E ficaria profundamente agradecido, comovido, porventura, até às lá-grimas de humildade, se o rei, a meio da tourada, des-se ordem para que parassem, tanto se compadecia dele. Mas o touro de raça pura logo se harmoniza com ela e diz: «Ah, isto é que é uma tourada!» A ele ferverá o sangue, e lutará, e morrerá, porque de outra maneira aquilo não seria uma tourada. Será também lembrado durante muitos anos, como o touro negro que deu tão boa faena, e que matou o espada. Mas se, a meio, quando o sangue desse touro já correu, ao rei lembrasse de parar a tourada, que pensaria então o touro de raça pura? Voltar-se-ia talvez contra o público, contra o próprio inteligente. E rugiria: «Deviam ter pensado nisso antes!» O rei terá o seu espectáculo, Madame. Ele me fez e criou para isso, e eu estou pronto a lutar e a morrer em presença do Grande Monarca, quando ele vier com toda a sua pompa para me ver. Mas diabos me levem - disse ele após um instante, com grande energia - se eu quero actuar na presença de Louis Philippe.

 

- Ah, mas espere - disse Miss Malin. - Pensei noutra coisa. Talvez Vossa Eminência se engane quanto ao sentido de humor do rei Louis Philippe. Ele pode ter um gosto bastante diverso do meu e do vosso, e pode gostar do mundo virado de pernas para o ar, como a Imperatriz da Rússia que, para se divertir, obrigava os seus velhos conselheiros, a quem as lágrimas corriam, a dançar um ballet na sua presença, e os seus bailarinos a sentarem-se à mesa do Conselho. Talvez isso, Eminência, seja para o rei um gracejo. Contar-vos-ei uma pequena história para melhor me fazer compreender, e virá a propósito, pois estivemos falando de funâmbulos.

 

«Quando estive em Viena, há vinte anos - principiou ela - um bonito rapaz de grandes olhos azuis causava ali grande rebuliço ao dançar na corda com uma ven-da nos olhos. Ele dançava com uma graça e uma habilidade maravilhosas, e estava genuinamente vendado, sendo o pano atado por um membro do público. A sua actuação era a grande sensação da temporada, e foi chamado a dançar perante o Imperador e a Imperatriz, os arquiduques e as arquiduquesas, e toda a corte. O grande of talmologista, o professor Heimholz, estava presente. Fora mandado chamar pelo Imperador, já que toda a gente discutia então o problema da clarividência. Mas no fim do espectáculo o professor levantou-se e exclamou em voz sonora: - Majestade - disse ele em grande agitação - e Altezas Imperiais, isto é tudo uma fraude e um embuste!

 

Não pode ser uma fraude - disse o oftalmologista da corte - eu próprio atei a venda à volta dos olhos do rapaz com o maior dos cuidados.

 

É tudo uma fraude e um embuste - insistiu, indignado, o grande professor. - Esse rapaz é cego de nascença!»

 

Miss Malin fez uma pequena pausa.

 

- E se o seu Louis Philippe - disse ela - vier a dizer, vendo-nos fazer essa bela figura do Inferno: Isto é tudo uma fraude, essas pessoas já estavam no inferno desde o dia em que nasceram.

 

E deu um risinho.

 

- Madame - disse o cardeal após um silêncio - é grande o seu poder imaginativo e esplêndida a sua coragem.

 

- Oh, sou uma Nat-og-Dag - disse, com modéstia, Miss Malin.

 

- Mas não será também - disse o cardeal - um pouco'''

 

- Louca? - perguntou a velha senhora. - Bem me parecia que Vossa Eminência tinha dado por isso.

 

- Não - replicou ele - não era isso que eu queria dizer. Mas talvez um pouco severa para com o Rei de França. Estarei talvez em posição de o compreender melhor do que a senhora. Ele é um burguês, mas não é canaille.

 

- Também eu lhe contarei uma história - prosseguiu o velho - visto que ainda não contribuí para o entretenimento da noite. Contá-la-ei apenas para ilustrar que existem, se mo permite, Madame, coisas piores do que a perdição, e chamar-lhe-ei - o velho reflectiu por um momento - chamar-lhe-ei «O Vinho do Tetrarca».

 

«Naquele tempo, quando, na primeira quarta-feira após a Páscoa - principiou o cardeal -, o Apóstolo Simão, chamado Pedro, ia andando pelas ruas de Jerusalém, tão completamente absorto na ideia da ressurreição que nem sabia se caminhava ou se era transportado pelo ar, notou ele, ao passar pelo Templo, que um homem esperava junto a uma coluna. Os olhos dos dois encontraram-se, e o estrangeiro deu uns passos e interpelou-o.

 

- Não estavas tu também - perguntou - com Jesus de Nazaré?

 

- Sim, sim, sim - apressou-se Pedro a responder.

 

- Nesse caso, gostaria muito de dar-te duas palavras - disse o homem. - Não sei o que fazer. Que-res entrar na estalagem aqui próxima e beber comigo?

 

Pedro, porque não podia desprender-se dos seus pensamentos o suficiente para achar uma desculpa, aquiesceu, e em breve os dois homens se sentavam na estalagem.

 

O estrangeiro parecia ser ali bem conhecido. Imediatamente conseguiu uma mesa só para si ao fundo da taberna e longe dos que, de tempos a tempos, entravam na estalagem ou saíam, e também pediu do melhor vinho para si e para o Apóstolo. Pedro olhava agora para o homem e achava-o uma figura impressionante. Era um jovem trigueiro, de forte constituição e altivo porte. Estava mal vestido, e tinha nos ombros uma capa de pele de cabra muito remendada, mas por baixo dela usava um lenço de fina seda carmesim e tinha uma corrente de ouro em volta do pescoço, e nos dedos muitos anéis de ouro, um dos quais com uma grande esmeralda. Pareceu então a Pedro que já tinha visto esse homem antes, no meio de um medo e turbulência terríveis; mas não se lembrava onde.

 

- Se és de facto um dos que seguiam o Nazareno - disse ele - quero fazer-te duas perguntas. Dir-te-ei as minhas razões para o fa-zer à medida que formos conversando.

 

- Terei prazer em te ajudar - disse Pedro, ainda abstracto.

 

- Muito bem - disse o homem - eis a primeira: É verdade o que dizem desse Rabi que servias, que ele ressuscitou dos mortos?

 

- Sim, é verdade - Respondeu Pedro, sentindo porém o seu próprio coração dilatar-se a tal proclamação.

 

- Pois eu ouvi boatos sobre isso - disse o homem - mas não o sabia com certeza. E é verdade que ele próprio te disse, antes de ser crucificado, que iria ressuscitar?

 

- Sim - disse o Apóstolo - Ele disse-nos. Nós sabíamos que isso iria acontecer.

 

- Pensas então - perguntou o estrangeiro - que cada palavra do que ele disse vai por certo verificar-se?

 

- Nada no mundo é mais certo do que isso - respondeu Pedro. O homem calou-se por momentos.

 

- Dir-te-ei por que te pergunto isto - disse ele subitamente. - É porque um amigo meu foi crucificado com ele na sexta-feira no Monte da Caveira. Viste-o lá, penso eu. A ele esse teu Rabi prometeu que estaria consigo no Paraíso nesse mesmo dia. Acreditas que ele foi mesmo para o Paraíso na sexta-feira? - Sim, tenho a certeza de que foi, e que está lá agora - disse Pedro. De novo o homem se calou.

 

- Enfim, isso é bom - disse ele. - Ele era meu amigo.

 

Nessa altura um rapazito da estalagem trouxe o vinho que o homem pedira. O homem deitou um pouco de vinho nos copos, olhou-o, e pousou-o de novo.

 

- E esta - disse ele - é a outra questão de que queria falar-te. Provei muitos vinhos nestes últimos dias, e todos me souberam mal. Não sei o que aconteceu ao vinho de Jerusalém, que já não tem aroma nem corpo. Acho que deve ter sido do tremor de terra que tivemos na tarde de sexta-feira; azedou o vinho todo.

 

- Não me parece que este vinho seja mau - disse Pedro para animar o homem, pois ele parecia triste como a morte.

 

- Não é? - disse o homem, com esperança, e bebeu um trago. - Sim, este também é mau - disse ele, e pousou o copo. - Se lhe chamas bom é talvez porque não percebes muito de vinhos. Eu percebo, e um bom vinho é o meu grande prazer. Agora não sei o que fazer.

 

- Agora sobre esse meu amigo, Fares - disse, retomando o fio da conversa - dir-te-ei como ele foi feito prisioneiro e condenado à morte. Ele era um salteador na estrada de Jericó a Jerusalém. Nessa estrada passou um carregamento de vinho que o Imperador de Roma mandava de presente ao Tetrarca Herodes, e entre outros vinha um odre de vinho tinto de Capri, que não tinha preço. Uma noite, aqui neste mesmo lugar onde nós estamos, conversávamos, eu e Fares, e eu disse-lhe: Daria o coração para beber o vinho tinto do Tetrarca. Ele disse-me: «Porque te amo, e para te mostrar que não valho menos do que tu, matarei o intendente da caravana e enterrarei o odre de vinho tinto sob um tal cedro assim-assim da montanha, e ambos beberemos juntos o vinho do Tetrarca.« Ele de facto assim fez, mas, ao voltar a Jerusalém para se encontrar comigo, foi reconhecido por um dos carregadores que escapara, lançado na prisão e condenado à cruz.

 

- Vieram dizer-mo, e eu caminhei nessa noite por toda a cidade de Jerusalém, pensando num meio de o ajudar a escapar-se. De manhã, ao passar pelos degraus do Templo, vi neles um velho mendigo, que eu ali vira muitas vezes, e que tinha uma perna má, toda ligada, e que também era louco. Na sua loucura ele gritava e dizia profecias, lamentando o seu destino e amaldiçoando os governadores da cidade, clamando muitas injúrias contra o Tetrarca e a sua mulher. Como ele era louco, todos costumavam rir-se de-le. Mas nessa manhã sucedeu que um centurião passava com os seus homens, e quando ou-viu o que ele dizia da mu-lher do Tetrarca, zangou-se. Disse ao mendigo que, se voltasse ao mesmo, ele o faria dormir na prisão de Jerusalém, e lhe mandaria dar 25 bastonadas à noite e outras tantas pela manhã, para o ensinar a falar com reverência das pessoas ilustres.

 

- Eu ouvia e pensava: eis a minha oportunidade. Assim, nesse dia rapei a barba e o cabelo, tingi a face com óleo de nozes, e vesti-me de farrapos, e também enfaixei a perna direita, escondendo nas ligaduras uma lima forte e afiada e uma longa corda. À noite, quando me dirigi ao Templo, vi que o velho tivera tanto medo que não viera, de modo que eu tomei o seu lugar. Quando a ronda passou gritei bem alto, na voz do men-digo Louco, as piores maldições que me ocorreram contra o próprio César em Roma e, tal como eu previra, a ronda agarrou-me e levou-me para a prisão, e ninguém me reconheceu assim vestido de farrapos. Deram-me ali 25 bastonadas, e tomei boa nota do homem que me batia, para o reconhecer no futuro; mas, com uma moeda de prata, su-bornei o carcereiro para que me fechasse nessa noite na prisão onde se encontrava Fares, e que era no alto do edifício, o qual, como sa-bes, está construído numa rocha.

 

Fares caiu a beijar-me os pés, deu-me a beber a água que tinha, mas depois começámos a limar a barra de ferro da janela. Como era alta, ele teve de subir aos meus ombros, ou eu aos dele, para o fazermos e por fim atámos a corda à barra partida. Fares desceu primeiro, até chegar ao fim da corda, que não era suficientemente comprida, e deixou-se cair. Saí eu então, mas estava fraco e demorava muito a descer, e sucedeu que nessa mesma hora um grupo de soldados entrava com um pri sioneiro. Traziam archotes, e um deles avistou-me pendurado na corda rente à parede. Fares podia ter fu-gido, se corresse, mas não quis fazê-lo antes de ver o que acontecia, e assim foi que mais uma vez nos prenderam e viram então quem eu era.

 

- Foi assim que sucedeu - disse o estrangeiro. - Mas agora tu dizes-me que Fares está no Paraíso.

 

- Tudo isso - disse Pedro, que estivera ouvindo, porém sem escutar - tenho para mim que é prova de grande coragem da tua parte, e fizeste bem em arriscar a vida pelo teu amigo. - E Pedro suspirou profundamente.

 

- Ah, quem viveu, como eu vivi, tanto tempo na flo-resta, não tem medo das corujas - disse o estrangeiro. - Alguém já te fa lou de mim como um homem que foge do perigo?

 

- Não - disse Pedro. - Mas tu dizes - continuou ele instantes depois - que também foste feito prisioneiro. Ora, estando tu aqui, é porque conseguiste escapar?

 

- Sim, escapei - disse o homem, e lançou a Pedro um estranho e profundo olhar. - Quis então vingar a morte de Fares. Mas, visto que ele está no Paraíso, não vejo por que hei-de preocupar-me. E agora não sei o que fazer. Deverei desenterrar o odre do vinho do Tetrarca e bebê-lo?

 

- Achá-lo-ás triste, sem o teu amigo - disse Pedro, e os olhos encheram-se das lágrimas que ainda lhe restavam depois daquela Semana. Pensou que deveria talvez censurar o homem pelo roubo do vinho do Tetrarca, mas muitas recordações lhe sufocavam o peito.

 

- Não, não é nisso que estou a pensar - disse o estrangeiro - mas nisto: se esse vinho também se estragou, e não me der prazer nenhum, que farei eu então?

 

Pedro ficou por instantes perdido em pensamentos.

 

- Amigo - disse ele - há outras coisas na vida que te darão prazer, além do vinho do Tetrarca.

 

- Sim, eu sei - disse o estrangeiro - mas se a mesma coisa se passar com elas? Tenho duas belas esposas esperando por mim em casa, e antes de tudo isto acontecer, comprei uma virgem de 12 anos. Ainda não a vi depois disso. Mas o tremor de terra pode tê-las afectado também, deixando-as sem aroma e sem corpo, e então o que farei?

 

Agora, Pedro começava a desejar que este homem parasse de se lamentar e o deixasse sozinho.

 

- Porque vieste - perguntou - a mim com este as-sunto?

 

- Lembras bem - disse o estrangeiro. - Dir-to-ei. Fui informado que o teu Rabi, nas vésperas do dia em que morreu, deu uma ceia aos que o seguiam, e que nessa ceia foi servido um vinho especial, que era muito raro e tinha um corpo altamente precioso. Tens ainda desse vinho, e consentes em mo vender? O teu preço será o meu.

 

Pedro quedou-se a fitar o estrangeiro.

 

- Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! - exclamou, tão extraordinariamente abalado que entornou o seu copo, e o vinho correu para o chão. - Não sabes o que dizes. Esse vinho que bebemos na noite de Quinta-Feira, nem o Imperador de Roma pode pagar uma só gota dele.

 

O coração doía-lhe tanto que ele se balançava para a frente e para trás no banco. Ainda assim, no meio da sua dor, as palavras do Senhor, que ele seria pescador de homens, lhe vieram à mente, e reflectiu que talvez fosse seu dever ajudar este homem, que parecia tomado de profunda aflição. Voltou-se de novo para ele, mas ao olhá-lo lembrou-se que, de todos os homens que havia no mun-do, esse jovem era o único que ele não poderia ajudar. Para se fortalecer evocou uma das palavras do Senhor.

 

- Meu filho - disse com gravidade e mansidão - toma a tua cruz e segue-O.

 

O estrangeiro, na mesma altura em que o Apóstolo falava, esteve quase a dizer alguma coisa. Agora calava-se, e olhava sombriamente para Pedro.

 

- A minha cruz! - exclamou. - Onde está a minha cruz? Quem tomará a minha cruz?

 

- Só tu próprio a poderás tomar - disse Pedro - mas Ele te ajudará a levá-la. Tem paciência e força. Dir-te-ei muito mais sobre isto.

 

- Que tens tu para me dizer? - perguntou o estrangeiro. - Parece-me a mim que tu nada sabes. Ajudar? Quem é que precisa de ajuda para levar essas cru-zes que os carpinteiros de Jerusalém fazem hoje em dia? Eu não, decerto! Aquele cireneu de pernas tortas não teria nunca a oportunidade de exibir a sua força às minhas custas. Falas de força e paciência - prosseguiu ele instantes depois, ainda muito agitado - mas eu nunca vi homem tão forte como eu. Olha - e ele entreabriu a veste para mostrar a Pedro os ombros e o peito marcados por muitas, terríveis e profundas cicatrizes brancas. - A minha cruz! A cruz de Fares estava à direita, e a cruz desse tal Acaz, que nunca valeu grande coisa, estava à esquerda. Eu teria levado a minha cruz melhor que qualquer dos dois. Não achas que eu havia de durar mais do que seis horas? Não foi grande coisa, vamos lá. Onde quer que estive, fui sem-pre um chefe, e os meus homens tinham os olhos postos em mim, não creias, lá porque não sei o que fazer ago-ra, que não estou habituado a dizer aos outros para fa-zerem o que a mim me apetecer.

 

Perante o tom desdenhoso destas palavras, Pedro esteve quase a perder a paciência, mas prometera a si próprio, desde que cortara a orelha a Malco, controlar o seu génio, de modo que nada disse.

 

Ao fim de certo tempo o homem olhou para ele, como se impressionado pelo seu silêncio.

 

- E tu - disse ele - que és um dos que seguiam esse Profeta, que pensas que irá ser de ti agora?

 

A face de Pedro, que a dor desfigurava, iluminou-se de suavidade. Todo o seu rosto irradiava esperança.

 

- Espero e creio - disse ele - que a minha fé, sofrendo embora a prova do fogo, seja merecedora da glória e da honra. Espero que me seja dado sofrer e morrer pelo meu Senhor. Tenho, até, nestas últimas noites - prosseguiu, falando em voz baixa - pensado que talvez no fim do meu caminho me espere uma cruz. - Tendo dito isto, não ousou olhar o outro homem nos olhos, mas acrescentou rapidamente: - Embora tu penses que estou a vangloriar-me, e que a minha condição é demasiado humilde para tal.

 

- Não - disse o estrangeiro. - Acho muito provável que tudo o que disseste venha de facto a acontecer-te.

 

Esta confiança do homem nas suas esperanças pareceu a Pedro um gesto de amizade inteiramente inesperado e generoso por parte do estrangeiro. O seu peito encheu-se de gratidão. Ruborizou-se como uma jovem noiva. Pela primeira vez sentiu um real interesse pelo seu companheiro, e pareceu-lhe que devia fazer algo por ele, em paga das lindas coisas que ele lhe dissera.

 

- Perdoa-me - disse brandamente - por não ter podido aliviar o que pesa em tua alma. Mas de facto pouco domínio tenho de mim, tanto foi o que me aconteceu nos últimos dias.

 

- Oh! - disse o estrangeiro - eu também não esperava mais.

 

- No curso da nossa conversa - disse Pedro - repetiste que não sabes o que fazer. Diz-me em que questão tens essas dúvidas. Até sobre esse vinho que dizes tentarei aconselhar-te.

 

O estrangeiro olhou-o.

 

- Não tenho estado a falar de uma questão em particular - disse ele. - Não sei o que fazer em geral. Não sei onde se encontrará o vinho que possa de novo dar prazer ao meu cora ção. Mas suponho - prosseguiu ele ao fim de certo tempo - que farei melhor em desenterrar esse vinho do Tetrarca, e em dormir com essa rapariga de que te falei. Posso tentar, pelo menos.

 

E com estas palavras se levantou da mesa, embrulhando-se na capa.

 

- Não vás ainda - disse Pedro. - Parece-me haver muitas coisas de que de-veríamos falar os dois.

 

- Tenho de ir, de qualquer modo - disse o homem. - Há um transporte de azeite do Hébron, que não posso perder.

 

- Negoceias em azeite, então? - perguntou Pedro.

 

- De certo modo - disse o homem.

 

- Mas diz-me, então, antes de partires - tornou Pedro - qual é o teu nome. Pois poderemos voltar a conversar um dia, se souber onde te encontras.

 

O estrangeiro ia já no limiar da porta. Voltou-se e olhou para Pedro com hauteur e um leve desprezo. A sua figura era magnífica.

 

- Não sabes o meu nome? - perguntou. - O meu nome foi gritado por todas as ruas da cidade. Não houve um só desses burgueses servis de Jerusalém que não gritasse com todas as suas forças. «Barrabás«, gritavam eles, «Barrabás! Barrabás! Solta-nos Bar rabás!« O meu nome é Barrabás. Fui um grande chefe e, como tu próprio disseste, um homem de coragem. O meu nome será lembrado.

 

E com estas palavras desapareceu.»

 

Como o cardeal terminasse a narrativa, Jonathan levantou-se e substituiu a vela de sebo, que se consumira quase e bruxuleava fu-riosamente em convulsões extremas.

 

Mal o fez, a rapariga a seu lado ficou pálida de morte. De olhos fechados, toda a sua figura parecia sucumbir. Miss Malin perguntou-lhe brandamente se sentia sono, mas ela negou com grande energia; teve ra-zões para o fazer. Vivera nessa noite como antes nunca tinha vivido. Enfrentara a morte e atirara-se nobremente para as fauces do perigo por amor dos seus se melhantes. Fora o centro de um brilhante círculo, e até se havia casado. Não queria perder um só instante dessas horas fecundas. Mas nos dez minutos que se seguiram, adormeceu repetidamente, mau-grado os seus esforços para se manter acordada, a jovem cabecinha pendendo para trás e para a frente.

 

Por fim consentiu em deitar-se e repousar por uns instantes, e o marido fez para ela uma cama no feno, e tirou a capa para a cobrir. Ainda segurando a mão dele, ela afundou-se no feno e parecia, no chão escuro, a figura linda e marmórea de um anjo da Morte. O cão, que havia ficado junto dela nessa última hora, imediatamente a seguiu, e, enroscando-se, comprimiu-se contra ela, pousando a cabeça nos seus joelhos.

 

O jovem esposo ficou por certo tempo a vê-la dormir, mas em breve já não podia conservar-se acordado e deitou-se, a pequena distância dela mas próximo ainda para poder segurar a sua mão. A princípio não dormiu, olhando-a por vezes, outras observando as figuras erectas de Miss Malin e do cardeal. Quando finalmente adormeceu, teve um súbito movimento, atirando-se para a frente, de modo que a sua cabeça quase tocou na cabeça da rapariga e o cabelo de ambos, na almofada que era o feno, misturou-se. Momentos depois mergulhava no mesmo sono da esposa.

 

Os dois velhos ficaram em silêncio frente à luz da vela nova, que a princípio fracamente alumiava. Miss Malin, que parecia capaz agora de resistir a uma eternidade de vigília, olhava o par adormecido com a benevolência de um criador feliz. O cardeal observou-a por momentos e depois evitou o seu olhar. Passado algum tempo começou a retirar as ligaduras que lhe envolviam a cabeça, e ao fazê-lo fitava o rosto da velha senhora com estranha fixidez.

 

- Acho melhor tirar isto - disse ele - agora que a manhã se aproxima.

 

- Mas não lhe dói? - perguntou, ansiosa, Miss Malin.

 

- Não - disse ele sem interromper a operação. Momentos depois acrescentou: - Nem sequer é o meu sangue. A senhora, Miss Ma lin Nat-og-Dag, que tão bem conhece o verdadeiro sangue azul, já devia ter reconhecido o sangue nobre do cardeal Hamilcar.

 

Miss Malin não se moveu, mas o rosto alterou-se um pouco.

 

- O sangue do cardeal Hamilcar? - perguntou numa voz ligeiramente menos firme.

 

- Sim - disse ele - o sangue desse nobre velho, sobre a minha cabeça. E sujando as minhas mãos. Porque eu bati-lhe na cabeça com uma viga que caíra, antes de chegar o barco a salvar-nos esta manhã.

 

Durante uns bons dois ou três minutos um silêncio profundo envolveu o palheiro. Só o cão se movia, ga-nindo fracamente no sono, ao afundar o focinho nos vestidos da rapariga. O homem das ligaduras e a velha se-nhora não se desfitavam. Ele acabava lentamente de tirar as compridas tiras de linho manchadas de sangue, e pousou-as no chão. Liberto delas, o seu rosto era largo, vermelho, balofo, e o cabelo era escuro.

 

- Deus tenha em descanso a alma desse nobre velho - disse por fim Miss Malin. - E quem é o senhor?

 

O rosto do homem alterou-se um pouco a estas palavras.

 

- É a senhora quem mo pergunta? - disse ele. - É em mim que está a pensar, ou nele?

 

- Oh, nós ambos não precisamos de pensar nele - disse ela. - Quem é o senhor?

 

- O meu nome - disse - é Kasparson. Fui o criado do cardeal.

 

- Tem de me dizer mais do que isso - replicou Miss Malin com firmeza. - Eu quero saber com quem passei a noite.

 

- Dir-lhe-ei muito mais, se isso a diverte - disse Kasparson - pois estive em muitos continentes, e eu próprio gosto de falar do passado.

 

«Sou um actor, como Vossa Excelência é uma Nat-og-Dag; isto é, isso que nós somos permanece, seja o que for que façamos, e a isso voltamos quando tudo o resto fracassa.

 

Mas em criança dançava ballet, e aos 13 anos de idade fui acolhido - porque era extraordinariamente gracioso, e particularmente porque tinha em alto grau o que na técnica do ballet é chamado ballon, o que quer dizer capacidade de elevação, de nos erguermos do chão e para além das leis da gravidade - pelos nobres de meia-idade de Berlim. O meu padrasto, o famoso tenor Herr Eunicke, foi quem me apresentou a eles, e acreditava que eu viria a ser uma verdadeira mina de ouro. Durante cinco anos soube o que é ser uma bonita mulher, alimentada a finas iguarias, vestida de sedas e turbantes dourados, e cujos caprichos são leis para todos. Mas Herr Eunicke, como todos os tenores, esquecia-se de contar com as leis do tempo. A idade apossou-se de nós furtivamente, sem que o sonhássemos sequer, e a minha carreira de cortesão foi breve.

 

Depois disso fui para Espanha, onde me fiz barbeiro. Fui barbeiro em Sevilha durante sete anos, e gostei, porque sempre tive uma predilecção por sabão e águas de colónia, sempre gostei de toda a sorte de coisas limpas e asseadas. Por esta razão muitas vezes me surpreendeu que o cardeal não se importasse de sujar as mãos com as suas tintas pretas e vermelhas. Tornei-me, de facto, Madame, num óptimo barbeiro.

 

Mas também fui tipógrafo de jornais revolucionários em Paris, vendedor de cães em Londres, mercador de escravos em Argel, e amante de uma principezza viúva em Pisa. Através dela cheguei a viajar com o professor Rosellini, e o grande ori entalista francês Champollion, na expedição que empreenderam ao Egipto. Eu estive no Egipto, Madame. Eu pisei a grande sombra triangular da grande pirâmide, e do cimo dela quarenta séculos me contemplaram.»

 

Miss Malin, ensombrada pelas viagens do criado, ra-pidamente se refugiou no amplo mundo da sua imaginação.

 

- Ah - disse ela - no Egipto, na grande sombra triangular da grande pirâmide, enquanto o burro pastava, São José disse a Maria: «Oh, minha doce e jovem esposa, não poderias por um momento fechar os olhos e fingir que eu sou o Espírito Santo?»

 

Kasparson prosseguiu o seu relato.

 

«Até vivi em Copenague - disse ele - mas para o fim comecei a passar mal. Fui cavalariço no albergue nocturno de um velho gordo chamado Bolle Bandeat - o que significa, com sua li cença, o amaldiçoado, ou o maldito - onde por um dinheiro se podia dormir no chão e por meio-dinheiro em pé, com uma corda passada por debaixo dos braços. Quando por fim tive de fugir ao braço da lei da cidade, mudei o meu nome para Kasparson, em memória desse orgulhoso e infeliz rapaz de Nuremberga que se apunhalou até à morte para que Lord Stanhope acreditasse que ele era o filho bastardo da grã-duquesa Stephanie de Baden.

 

Mas se é da minha família que quer ouvir falar, tenho a honra de informá-la que sou bastardo, do mais puro sangue bastardo que existe. Minha mãe era uma verdadeira mulher do povo, filha de um honesto artesão, essa linda actriz Johanna Handel-Schultz que deu vida no palco a todos os ideais clássicos. Tinha um temperamento melancólico, porém. Dos meus 16 irmãos, cinco suicidaram-se. Mas se lhe disser quem foi o meu pai, irá sem dúvida interessar-lhe. Quando Johanna foi para Paris, com 16 anos de idade, para estudar arte, encontrou favor aos olhos de um grande senhor. Eu sou o filho do duque de Orléans - que pouco depois se ligou ao povo de uma outra maneira - que insistia em ser chamado citoyen, votou pela morte do Rei de França, e mudou o seu nome para Égalité. O bastardo de Égalité! Pode alguém ser mais bastardo, Madame, do que eu?»

 

- Não - disse a velha senhora, os lábios de cera rígidos, incapaz de oferecer uma palavra de conforto ao homem pálido que tinha à sua frente.

 

- Esse pobre rei Louis Philippe - disse Kasparson - de quem tenho pena, e de quem lamento ter falado com tanta severidade esta noite, é meu irmão mais no-vo.

 

Miss Malin, mesmo em face dos maiores infortúnios, nunca ficava calada por muito tempo. Disse, depois de um silêncio:

 

- Diga-me então, porque podemos não ter muito tempo, em primeiro lugar, porque matou o cardeal? E em segundo lugar, porque se deu ao trabalho de me enganar, depois de para aqui vir comigo, e de fazer de mim tola nesta noite que pode ser a última da minha vida? Aqui não corre perigo. Pensou que eu não tinha coragem suficiente, ou simpatia pelos negros lugares do coração, para o compreender?

 

- Ah - replicou Kasparson - porque não lho disse? Esse momento em que matei o cardeal foi o dos esponsais da minha alma com o destino, com a eternidade, com a alma de Deus. Não impomos nós ainda silêncio no limiar da câmara nupcial? Ou então, quer o Imperador publicidade, não pode Pitágoras preferir o decoro?

 

«E fui eu quem matou o meu amo? - prosseguiu ele. - Minha senhora, poucas esperanças havia que nos salvássemos ambos, e ele sacrificaria a sua vida por mim. Deveria eu continuar a viver como o criado por quem o senhor deu a sua vida, ou deveria simplesmente afogar-me e perder-me como um triste aventureiro?

 

Disse-lho já: sou actor. Não deve um actor desempenhar um papel? Se o director do teatro sempre afasta de nós os bons papéis, não poderemos insistir em praticar o papel das vedetas? A prova da nossa empresa está sujeita ao sucesso como ao fiasco. Representei bem o meu papel. O cardeal ter-me-ia aplaudido, pois ele era um fino conhecedor da arte. Sir Walter Scott, Madame, leu com muito prazer o romance de Wilibald Alexis, Walladmor, que ele publicou com o seu nome, e a que chamava o mais delicioso mistério do século. O cardeal haveria de reconhecer-se em mim.»

 

E citando a grande tragédia Axel e Walborg, disse lentamente:

 

Meu amado Senhor,

Santo Olavo em pessoa

Assume o meu corpo, veste-se de mim.

Eu sou o fantasma, a visão do seu espírito;

Uma forma breve da alma imortal'''

 

«A única coisa - continuou ele depois de uma pausa - que ele me poderia ter criticado é esta: talvez ele achasse que eu excedi a minha personagem. Fiquei neste palheiro para salvar a vida desses rústicos patetas, que preferiram salvar o gado a salvarem-se a si mesmos. Duvido que o cardeal o tivesse feito, pois ele era um homem de excelente juízo. Pode ser que sim. Mas é precisa alguma charlatanice em qualquer arte, e o pró prio cardeal não estava isento dela.

 

- Mas, em qualquer caso - concluiu, erguendo a voz e o corpo - no Dia do Juízo, Deus não me dirá: Kasparson, que mau actor tu és! Como foi que não pudeste, nem mesmo com a morte na alma, representar para mim o Gaulês Moribundo?»

 

De novo Miss Malin ficou por longo tempo mergulhada no silêncio profundo e escuro do enorme palheiro.

 

- E porque quis assim tanto - disse ela por fim - este papel?

 

- Contar-lho-ei - disse Kasparson lentamente. - Não será o homem conhecido pelo seu rosto, mas pela sua máscara. Já o disse no princípio da noite.

 

«Sou um bastardo. Caiu sobre mim a maldição dos bastardos, que Vossa Exce-lência desconhece. O sangue de Égalité é um sangue ar-rogante, cheio de vaidade - difícil, difícil para quem o tem correndo nas veias. Clama por esplendor, Madame; não admite sucedâneos; e faz sofrer terrivelmente ao mais pequeno desprezo.

 

Mas estes camponeses e pescadores são a gente da minha mãe. Não crê que eu tenha chorado já lágrimas de sangue sobre a dureza das suas vidas e a palidez dos seus filhos? À ideia das côdeas duras e dos canivetes, finíssimos do uso, dos fatos remendados, dos rostos pacientes, o meu coração sofre. Nunca amei nada no mundo excepto a eles. Se eles tivessem feito de mim o seu chefe, tê-los-ia servido toda a minha vida. Se eles tivessem caído de Joelhos a adorar-me, teria morrido por eles. Mas não o fizeram. Reservaram tudo isso para o cardeal. Só esta noite tornaram a si. Viram a face de Deus no meu rosto. E, depois desta noite, dir-lhe-ão que havia uma luzinha branca pairando naquele barco onde eu saí com eles. Sim, Madame, assim mesmo.

 

- Sabe - disse ele - sabe por que razão eu confio em Deus e me apego a Ele? Porque não posso passar sem Ele? Porque Ele é o único ser por quem não posso, não devo, não preciso de sentir piedade. Se olho todas as outras criaturas desta vida torturo-me, sou devorado pela piedade, e sinto-me curvado e esmagado sob o peso das suas dores. Tinha pena do cardeal, muita pena desse velho que teve de ser grande e bom, e que escreveu um livro sobre o Espírito Santo qual pequena aranha suspensa no grande espaço. Mas na relação entre mim e Deus, se algum de nós deve sentir pena, é Ele. Ele terá pena de mim.

 

O mesmo deveria ter acontecido, Madame, com os nossos reis. Mas, e assim Deus me ajude, eu tenho pena do meu irmão, o Rei de França. O coração dói-se-me um pouco por esse homenzinho.

 

Só Deus guardarei, sem ter piedade d'Ele. Deixai-me, pelo menos, guardar Deus, ó ternos seres humanos!»

 

- Mas nesse caso - disse Miss Malin subitamente - não pode por certo ter muita importância para si o ser salvo ou não. Per doe-me que lhe diga isto, Kasparson, mas não fará muita diferença ao seu destino que esta casa se aguente até o barco voltar a bus-car-nos, ou não.

 

Ao ouvir estas palavras Kasparson riu-se, manso e jovial. Era claro agora que ele estava sob a influência do barrilete de gin da cam-ponesa, mas sob este aspecto Miss Malin não lhe ficava muito atrás.

 

- Tem razão, Miss Nat-og-Dag - disse ele - a sua perspicácia acertou na mouche. Lá se foi a minha bela coragem. Mas tenha um pouco mais de paciência, e eu lhe explicarei o caso.

 

«Poucas pessoas, disse-o há pouco, podem afirmar que nunca se convenceram de que podiam refazer o mundo. Vou até mais longe, Madame: poucas pessoas se podem gabar de não acreditarem que este mundo que vêem à sua volta não é em realidade o fruto da sua própria imaginação. Agrada-nos então este mundo, temos orgulho dele? Sim, por vezes. Em algumas noites de Primavera, se na companhia das crianças e de mulheres belas e inte ligentes, tenho já sentido orgulho, tem-me agradado a minha criação. Em outras ocasiões, quando estou com pessoas vulgares, tenho sentido a má consciência de ter criado uma coisa tão ordinária, tão insípida, tão desluzida. Posso ter procurado suprimi-las, semelhante ao monge que, na sua cela, procura afastar as visões degradantes que perturbam a sua paz de espírito e o seu orgulho em ser um servo do Senhor. Agora, Madame, estou satisfeito por ter criado esta noite, aqui. Sinto um verdadeiro orgulho em tê-la criado a si, asse guro-lhe. Mas que fazer desta única figura dentro do quadro, esse tal Kasparson? É um sucesso, ele? Valerá a pena conservá-lo? Não estará ele a borrar toda a pintura? O monge pode chegar a flagelar-se para expulsar a imagem que o ofende. Os meus cinco irmãos que, de entre os 16 filhos de minha mãe, se suicidaram, talvez tenham sentido isto porque, como já referi, minha mãe sentia de um modo profundo e instintivo os clássicos e a harmonia do cosmos. Talvez eles tenham dito: - Esta obra é brilhante em si mesma; o meu único fracasso é esta figura nela, que eu terei de fazer desaparecer, custe o que custar.»

 

- Bom - disse Miss Malin depois de uma pausa - e gostou de representar o papel do cardeal, quando finalmente chegou a oportunidade? Foi-lhe agradável?

 

- Pelo Santo Nome de Deus, foi - disse Kasparson - foi uma noite boa e um dia bom. Porque vivi o suficiente, até agora, para aprender, quando o demónio se ri de mim, a rir-me dele também. E se isto - rirmo-nos do demónio quando ele se ri de nós - for na realidade o verdadeiro, o supremo gozo no mundo? E se tudo o mais, a que as pessoas chamam gozo, for tão-só um pressentimento, uma prefiguração dele? É uma arte que vale a pena aprender, então.

 

- E eu também, eu também! - disse Miss Malin numa voz que, embora sussur-rada, era rica e estridente, e que parecia erguer-se em voo, qual alegre cotovia. E como se quisesse acompanhar em pessoa essa asa, ela ergueu-se a toda a altura, com a leveza e a dignidade de uma senhora que, tendo apreciado suficientemente uma agradável conversa, se despede. - Eu já me ri dele também. É uma arte que vale a pena aprender.

 

O actor tinha-se erguido com ela, seu cavalier servant, e estava agora de pé. Ela fitava-o com um olhar radioso.

 

- Kasparson, que grande actor o senhor é! - disse ela. - Bastardo de Égalité, dê-me um beijo!

 

- Ah, não, Madame - disse Kasparson. - Estou doente; há veneno na minha boca.

 

Miss Malin riu.

 

- Quero lá saber disso, esta noite - disse ela. E parecia, de facto, que nenhum veneno seria capaz de tocá-la. Tinha sobre os ombros essa caveira com que os boticários assinalam os seus frascos de venenos, o menos sedutor dos objectos que um homem pode querer beijar. Mas, olhando nos olhos o homem à sua frente, ela disse, devagar e cheia de graça: - Fils de St' Louis, montez au ciel!

 

O actor tomou-a nos braços, apertou-a mesmo num forte amplexo, e beijou-a. E assim a altiva solteirona não foi para o túmulo sem saber o que é um beijo.

 

Com um movimento de graça e majestade ela ergueu a fímbria da saia e colocou-a na mão dele. A seda, que arrastara pelo chão, estava encharcada e gotejava. Ele compreendeu que foi por isso que ela se levantara do seu assento.

 

Os olhos de ambos no mesmo movimento perscrutaram o chão do palheiro. Um de-senho negro, como o de uma cobra longa e grossa, jazia no soalho e, um pouco mais abaixo, onde o chão se inclinava ligeiramente, alargava-se numa poça negra que quase tocava os pés da rapariga adormecida. A água havia subido até ao nível do palheiro. Na verdade, ao moverem-se, sentiram que as pesadas tábuas balançavam suavemente, flutuando sobre as águas.

 

Subitamente o cão levantou-se de um salto. Atirou a cabeça para trás e, de orelhas baixas e nariz empinado, soltou um ganido frouxo.

 

- Calado, Passup - disse Miss Malin, que aprendera o nome do animal com os pescadores.

 

Tomou uma das mãos do actor nas suas.

 

- Espere um pouco - murmurou, para não acordar os que dormiam. - Quero dizer-lhe. Eu já fui também rapariga. Passeei pelos bosques e olhei os pássaros e pensei: É horrível que as pessoas fechem os pássaros em gaiolas. Pensei: Se eu pudesse viver e servir o mundo para que, depois de mim, nunca mais houvesse um pássaro dentro de uma gaiola, que todos fossem livres'''

 

Interrompeu-se e olhou a parede. Por entre as tábuas uma faixa de azul profundo e novo era visível, contra a qual a pequena lanterna parecia pôr uma mancha vermelha. Amanhecia.

 

A velha senhora lentamente desenlaçou os dedos da mão do homem, e levou um aos lábios.

 

- Á ce moment de sa narration - disse ela - Scheherazade vit paraìtre le matin et, discrète, se tut.

 

 

             A HISTÓRIA DE UM GALANTE

Meu pai tinha um amigo, o velho barão Von Brackel, que nos seus tempos foi grande viajante e conheceu muitos homens e cidades. Em nada mais se assemelhava a Odisseus, e dele não poderia de facto dizer-se que fosse engenhoso, pois demonstrou fraquíssima habilidade em gerir os seus negócios. Provavelmente por sentir-se um fracasso sob esse aspecto, cuidadosamente evitava discutir assuntos da vida prática com a nova e mais eficiente geração, os apaixonados por uma carreira e pelo sucesso. Mas de teo-logia, de ópera, de moral, e de outros improfícuos temas falava, e era ouvido, com prazer.

 

Fora na juventude singularmente belo, de uma sorte de beleza ideal, e embora o seu rosto não conservasse agora um só traço dessa be-leza, a história dela podia reconhecer-se na dignidade optimista, na segurança de si, que são o produto de uma carreira de formosura e que, inexplicavelmente, se podem encontrar no porte dessas ruínas trémulas que costumavam olhar os espelhos do século passado com delícia. Assim se poderia apontar, numa danse macabre, os esqueletos dos que foram realmente as flores do seu tempo.

 

Uma noite em que conversávamos, veio à baila um ve-lho tema a que fez jus a li-teratura do passado: só se pode colher um benefício verdadeiro, obter uma satisfação moral duradoura, renunciando a uma inclinação por amor a um princípio. E foi no decurso dessa conversa que ele me contou esta história:

 

Numa noite de chuva do Inverno de 1874, numa avenida de Paris, uma jovem embriagada acercou-se de mim e falou-me. Eu, nessa altu-ra, era, como compreende, muito novo. Estava comple tamente desnorteado, muito infeliz, e sentei-me, sem um chapéu, à chuva, num banco de avenida porque tinha rompido com uma senhora que eu, como nós dizíamos então, idolatrava, e que passara aquela última hora tentando envenenar-me.

 

O caso, conquanto nada tenha a ver com o que ia contar-lhe, foi também uma história curiosa. Durante muitos anos não pensei nele, até que uma noite, da última vez que estive em Paris, vi essa senhora num camarote da Ópera, muito velha agora, acompanhada de duas encantadoras meninas vestidas de cor-de-rosa e que eram, segundo me disseram, suas bisnetas. Ela havia perdido a beleza mas nunca, em todo o tempo que a conheci, eu a vira tão contente. Depois tive pena de não ter ido cumprimentá-la ao seu camarote, pois se o nosso velho romance pouca felicidade nos trouxe aos dois, creio bem que ela havia de ficar tão satisfeita por lhe recordarem a formosa jovem que ela fora, e que tantos homens fizera infelizes, como eu fiquei ao lembrar, vagamente que fosse, o rapaz que em tempos tão infeliz fora por causa dela.

 

A sua grande beleza, a menos que um raro artista tenha podido preservá-la na cor ou no barro, só existirá hoje, talvez, na memória de alguns velhos como eu. Nesse tempo era algo de maravilhoso. Ela era loura, a mais loura mulher, creio, que alguma vez eu vi, mas não era uma destas vossas beldades brancas e rosas. Ela era toda pálida, descolorida, como um velho desenho a pastel ou uma imagem de mulher num espelho baço. Naquele corpo frágil e distante albergava-se uma energia ímpar, e uma distinção que as mulheres de hoje não têm, ou já não querem ter. Vira-a e apaixonara-me por ela no Outono, no château de um amigo que nos acolhera, como aos outros desse imenso grupo de jovens descuidados que estarão hoje, se é que ainda vivem, fanados, corcundas e surdos. Estávamos ali para caçar, e creio que lembrarei até ao fim dos meus dias a sua imagem sobre um grande cavalo baio que ela tinha, e essa brisa de Outono com prenúncios de geada, quando voltávamos ao cair da tarde, quentes nas roupas frias, cansados, atravessando lado a lado uma velha ponte de pedra. O meu amor era a um tempo humilde e audacioso, como o de um pajem pela sua senhora, porque ela era tão admirada, a sua beleza tinha um tal quê de desdém, que chegaria a dar sonhos tristes a um rapaz de 20 anos, pobre e estrangeiro no seu círculo. Por isso cada hora que passávamos juntos, cavalgando, dançando, ou com pondo tableaux vivants, era exuberante de dor e de êxtase, aquilo que você saberá por si: toda uma orquestra a vibrar no coração. Quando ela me fazia feliz, como se costuma dizer, eu pensava que o era de facto. Lembro-me de estar fumando um charuto no terraço, uma manhã, sobranceiro à larga paisagem de colinas baixas e azuis de arvoredo, e fornecer a Deus uma sorte de receita para a felicidade a que alguma vez me julgasse com direito na vida. Acontecesse o que acontecesse então, tinha vivido a parte que me cabia, e declarava-me satisfeito.

 

O amor, nos muito jovens, não tem coração. Bebemos nessa idade porque temos sede, ou porque nos queremos embriagar; só anos mais tarde nos ocupamos da individualidade do nosso vinho. Um jovem apaixonado vive essencialmente arrebatado pelas forças que possui dentro de si. Há quem volte a esse tipo de amor numa segunda adolescência. Um velho russo, conheci eu em Paris, imensamente rico, que mantinha as dançarinas mais jovens, as mais bonitas, e que, perguntando-lhe alguém se tinha, ou precisava ter, algumas ilusões a respeito do que elas sentiriam por ele, reflectiu na pergunta e respondeu: "Acho que, se o meu cozinheiro me apresenta uma soberba omele ta, não me preocupo muito em saber se ele gosta de mim ou não.» Um jovem não responderia com estas palavras, mas diria talvez que não se importava que o homem que lhe vendia o vinho fosse ou não da sua religião, imaginando estar assim aproximando-se da verdade das coisas. Na meia-idade, porém, chegados a uma humildade mais profunda, começamos a considerar importante que a pessoa que nos vende ou que produz o nosso vinho seja da nossa religião. Neste meu caso, que lhe estou contando, a minha vaidade juvenil, se a tinha em excesso, iria ser em breve castigada. Pois nos meses desse Inverno, enquanto estivemos ambos a viver em Paris, onde a sua casa era o ponto de encontro de muitos bel-esprits e ela a diletante admirada nas artes e na música, comecei a pensar que ela se servia de mim, ou do seu amor por mim, se assim se pode dizer, para fazer ciúmes ao marido. Isto mesmo aconteceu, suponho, a muitos jovens em todos os tempos, sem que a soma das suas experiências sirva de alguma coisa ao jovem que, hoje em dia, se ache na mes-ma posição. Comecei a interrogar-me sobre a relação que existiria entre esses dois, e a força estranha que haveria nela, ou nele, que me fazia assim o joguete de um e do outro, e acho que principiei a ter medo. Ela tinha ciúmes de mim, aliás, e ralhava-me com uma sorte de indignação moral, como se eu fora um cavalariço descuidoso dos seus deveres. Eu pensava que não podia viver sem ela, e que ela também não quereria viver sem mim, mas exactamente o que ela queria de mim eu não sabia. O seu contacto doía-me como dói tocar o ferro num dia de Inverno: não se sabe se a dor é provocada pelo calor se pelo frio.

 

Antes ainda de a conhecer tinha lido que, na sua família, cujo nome percorre séculos da história de França, costumava haver lobisomens, e por vezes achava que me teria dado maior fe licidade vê-la fincar-se em quatro patas e rosnar para mim, porque então saberia o que pensar. E mesmo até ao fim vivemos horas, os dois, de singular encanto, pelas quais sempre lhe serei grato. No primeiro ano que passei em Paris, antes de conhecer alguém ali, dediquei-me a estudar a história dos velhos hôtels da cidade, e este meu passatempo agradou-lhe tanto a ela, que costumávamos mergulhar nos velhos bairros de Paris e no seu passado, longamente falando da época de Abelar do ou de Molière, e enquanto assim brincávamos ela era cheia de seriedade e de gen-tileza como uma rapariguinha. Mas de outras vezes eu pensava que não aguentaria mais, e tentava afastar-me dela, e a mínima suspeita disso bastava-lhe, imagino eu, para a fazer ficar acordada pela noite fora, magi cando novas maneiras de me castigar. A nossa ligação era o velho jogo do gato e do rato - provavelmente o modelo original de todos os jogos que há no mundo. Mas, como o gato põe nesse jogo mais paixão, e o rato apenas o raso interesse pela sobre vivência, este último por força se cansará primeiro. Para o fim, pensei que ela desejava que fôssemos descobertos, tão negligente se mostrava nesta nossa liaison; e nesses dias um romance tinha de ser conduzido com prudência.

 

Lembro-me que, durante este período, fui ao seu hôtel, na noite de um baile a que ela ia, e para o qual eu não fora convidado, disfarçado de cabeleireiro. Nos anos 70 as senhoras usavam grandes chignons, e o trabalho de um coiffeur demorava o seu tempo. E toda essa noite a lembrança do marido me perseguiu como, pensei eu, a sombra gigantesca, sobre um pano de fundo branco, de um polichinelo absurdamente pequeno. Comecei a sentir-me tão cansado - não dela, exactamente, mas na realidade exausto em mim mesmo - que tentava convencer-me a fazer-lhe uma cena de explicações, mesmo correndo o risco de a perder assim, quando subitamente, na noite que lhe estava con tando, ela própria me fez a cena e me pediu as explicações num tal furacão como eu nunca voltei a conhecer igual; e exactamente com as mesmas armas que eu tinha preparado para mim próprio: a acusação de que eu estimava mais o marido do que a estimava a ela. E quando ela me disse isto, naquele seu boudoir azul pálido que eu conhecia tão bem - a caixinha forrada e estofada a seda, muito perfumada, onde as senhoras desse tempo gostavam de ficar, lembro-me ainda, com alguns quadros de flores nas paredes e almofadas maciíssimas espalhadas por todo o lado, e uma pro-fusão de lilases no canto atrás de mim, a luz suavizada por um grande abat-jour vermelho - eu não fui capaz de responder-lhe, pois sabia que ela tinha razão.

 

Se eu lhe dissesse o nome dele havia de o reconhecer, pois ainda hoje se fala desse homem, que morreu há tantos anos. Ou encontrá-lo-ia em qualquer livro de memórias daqueles tempos, porque ele era o ídolo da nossa geração. Mais tarde foi vítima de um grande infortúnio, mas nesse tempo - creio que tinha então 33 anos - o seu passo era tranquilo e banhado por todo o esplendor do seu estranho poder. Ouvi uma vez, por essa altura, dois velhos conversarem sobre a mãe dele, que tinha sido uma das beldades da Restauração, e um deles dizia que ela se carregava de todas as suas famosas jóias com a leveza e a graça com que uma outra jovem se enfeitaria de grinaldas de flores campestres. «Sim - disse o outro depois de reflectir por um momento - e espalhou-as à sua volta, por fim, como flores, á la Ofélia.» Por conseguinte, acho que essa rara leveza que ele tinha, bem como a sua fraqueza, seriam um traço de família. Mesmo os seus mais extravagantes caprichos, e esse maneirismo a que então chamávamos fin de siècle, e que nos enchia de orgulho, tinham o seu quê de grand siècle: uma nobreza pura que era apanágio da velha França.

 

Desde então tenho olhado para esses grandiosos edifícios do século XVII, que parecem tão inadequados à vida diária dos seres humanos, e pensando que devem ter sido construídos para ele - e para sua mãe, talvez - ali viverem. Ele tinha fé na vida, independentemente do sucesso que todos lhe invejávamos, como se soubesse que podia, querendo, conjurar forças maio-res, desconhecidas para nós. Muito pensei sobre o humano fado quando, anos mais tarde, soube que este jovem, perto já do fim do seu trágico destino, respondera, aos amigos que lhe imploravam em nome de Deus, com as palavras do Ajáx de Sófo cles: «Importunas-me, mu-lher. Não sabes tu que eu já nada devo aos deuses?»

 

Vejo que não devia ter começado a falar dele, mesmo à distância de tantos anos; mas o ideal da nossa juventude será sempre um marco entre os acontecimentos e as emoções mortas há muito. Ele em si próprio nada tem a ver com esta história.

 

Disse-lhe já que eu próprio sentia como verdade que os meus sentimentos por essa linda mulher, que eu idolatrava, pouco peso teriam realmente, se comparados ao que eu sentia por aquele homem. Se ele a acompanhara quando eu a conheci, ou se o tivera conhecido a ele primeiro, penso que nem sequer sonharia em apaixonar-me por essa mulher.

 

Mas o amor da mulher por ele, e os seus ciúmes, eram, de facto, de uma estranha natureza. Que ela estava apaixonada pelo marido soube-o desde o momento em que principiou a falar dele. Provavelmente já eu o sabia há muito. E ela era ciumen ta. Sofria, chorava - era, como lhe disse, capaz de matar, se outro expediente não tivesse - e essa luta, que naturalmente seria a única realidade da sua vida, era sempre, não um combate pela sua posse, mas uma competição. Invejava o marido como a mulher inveja uma outra elegante, uma rival, ou se como ela própria fosse também um homem com ciúmes dos seus triunfos. Creio que, dentro de si, ela estava sempre só com ele num mundo que desprezava. Quando cavalgava desenfreadamente, quando se rodeava de admiradores, ela sempre o observava, como um corredor de quadriga tem sempre os olhos postos no adversário que corre a seu lado. Quanto a nós outros, só existíamos na medida em que estávamos destinados a pertencer-lhe a ela ou ao marido, e a sua atitude para com um amante media-se pela atitude da amazona que toma o obstáculo: apenas para acumular mais conquistas do que o homem por quem estava apaixonada.

 

Não posso evidentemente saber como tudo começou entre eles. Posteriormente esforcei-me por acreditar que se ficara a dever a um desejo de vingança por parte dela, em consequência de alguma coisa que ele lhe fizera no passado. Mas eu sentia que esta paixão estéril era o que lhe estava consumindo toda a cor.

 

Agora já percebeu que tudo isto se passou nos pri-meiros tempos dessa era a que chamávamos a da «emancipação feminina». Muitas coisas singulares aconteceram então. Não creio que, ao tempo, o movimento tenha atingido todas as camadas sociais, mas estas jovens da mais alta inteligência, e as mais ousadas e engenhosas de entre elas, saíram do chiaroscuro de milhares de anos, os olhos cegos de luz, loucas do desejo de experimentarem as novas asas. Acredito que algumas delas colo caram a armadura e a auréola de Joana d'Arc, que, ela própria, foi uma virgem emancipada, e se tornaram anjos violentos. Mas a maioria das mulheres, quando se sentem livres de experi mentar com a vida, enfiam-se imediatamente num Sabat de bruxas. Eu até as respeito por isso, e penso que não seria capaz de amar realmente uma mulher que não tivesse tido, uma vez ou outra, o diabo no corpo.

 

Sempre pensei que é uma injustiça para a mulher não ter estado nunca sozinha no mundo. Adão pôde, por um tempo, muito ou pouco, caminhar sobre uma terra jovem e serena, entre os animais, na posse inteira da sua alma, e a maioria dos homens nasce ainda com a memória desse tempo. Mas a pobre Eva, essa, já o encontrou a ele, reclamando-a para si, no momento em que abriu os olhos para o mundo. E isto nunca a mulher perdoou ao Criador: ela sente-se com direito a reaver para si própria esse tempo no Paraíso. Só que, para sua pouca sorte, ao perseguir-se um tempo já passado, sempre o apanhamos de raspão e pelo avesso. Assim estas jovens bruxas alcançavam tudo o que queriam como uma imagem catóptrica.

 

As velhas desses tempos, as defensoras do lar e da Igreja, diziam que a emancipação estava a dar volta à cabeça das raparigas. Provavelmente outras mulheres havia, além da minha amante, que usavam cavalgar os ares, e tinham o rosto implantado na nuca à maneira do caçador maravilhoso da história. E no ar andava também a teoria, logo abraçada por elas, que o ciúme do amante era uma coisa ignóbil, e que nenhuma mulher deveria deixar-se possuir por outro macho que não o diabo. A caminho da união com ele, orgulhavam-se de levar ao homem, segundo se diz no Fausto, sempre mil passos de avanço. Mas o ciúme da competição era, como entre Adão e Lilith, uma nobre contenda. E então via-se não só as velhas bruxas do Macbeth, de quem se podia esperá-lo, mas até as jovens mulheres de faces macias como flores, enlouquecidas, furiosas de inveja do bigode dos amantes. Tudo isto elas aprenderam lendo - à maneira das bruxas ortodoxas - o livro do Génesis de trás para a frente. Por si mesmas, talvez tivessem aproveitado bastante. Foram os pregadores masculinos, servis, medíocres - que faziam, como todos os bruxos homens, tristíssima figura nos Sabats - que lhe destruíram o estilo e o rasgo ao trazê-lo à terra e à alçada das leis da razão terrena. Creio, porém, que as coisas estão mudadas e que, nos dias de hoje, era da emancipação masculina, se achará o jovem amante seguindo o rasto que a sombra da feiticeira deixou marcado e, com uma inventiva infinitamente menor, misturando à lareira a mortal poção que lhe dará, cheio de inveja dos seus seios.

 

O papel que me coube na história da minha jovem bruxa emancipada não foi nada lisonjeiro. Não obstante, creio que ela gostava desesperadamente de mim, provavelmente com esse tipo de paixão que a menina sente pela sua boneca favorita. E, sob esse prisma, eu fui realmente a figura central do nosso drama. Se ela fora Otelo, seria eu, e não o seu marido, quem deveria aceitar o papel de Desdémona, e posso perfeitamente imaginá-la a suspirar, «Ah, que dor, fazê-lo, Iago», por este caso infeliz, querendo até dar-me um beijo e outro ainda, antes de acabar com tudo. Só que ela não queria matar-me por justiça ou por vingança. Ela queria destruir-me para que não tivesse de perder-me e ver alguém que lhe pertencia e que lhe era muito querido passar para o seu rival, à maneira de um resoluto general que prefere fazer explodir a fortaleza que não pode defender a vê-la cair nas mãos do inimigo.

 

Foi quase no fim da nos-sa entrevista que ela tentou envenenar-me. Creio bem que o seu plano era outro, que tencionava dizer-me o que pensava de mim quando eu já tivesse ingerido o veneno, mas que foi incapaz de controlar-se por tanto tempo. Como há-de compreender, ha-via qualquer coisa de artificial em tomar um café na-quela altura do nosso diálogo. A maneira como ela in-sistiu para que o tomássemos, e o seu súbito silêncio de morte quando ergui a chá-vena para a levar aos lábios, traíram-na. Ainda me lembro, embora apenas lhe tenha tocado, do gosto insípido e letal do ópio e, se tivesse esvaziado a chávena, não sentiria o estômago revolver-se mais ou a medula dos ossos desfazer-se tanto como à convicção abrupta e fatal de que ela queria ver-me morto. Deixei cair a chávena, desfalecido como um homem prestes a afogar-se, e ali fiquei a olhar para ela, e ela teve um movimento incontrolado, como se quisesse ainda atirar-se a mim. Ficámos então imóveis por um minuto, ambos sabendo que tudo estava perdido. E, instantes depois, ela vacilava, soluçando, as mãos tapando a boca, subitamente transformada numa mulher muito velha. Por minha parte, eu não conseguia articular um som, e creio que fugi daquela casa mal tive forças para mexer-me. O ar, a chu-va, e a própria rua vieram ao meu encontro como velhos amigos esquecidos, leais ainda nessa hora de aflição.

 

E fui então sentar-me num banco da Avenue Montaigne, com todo o edifício do meu orgulho e felicidade jazendo a meus pés em ruínas, num enjoo mortal de horror e humilhação, quando essa rapariga, de quem eu lhe falava, se dirigiu para mim.

 

Creio que fiquei ali sentado durante algum tempo, e ela ficou a observar-me até reunir coragem para se aproximar. Provavelmente sentia uma qualquer afinidade entre nós, julgando que também eu estava embriagado, já que ninguém no seu juízo se vai sentar à chuva sem um chapéu, e talvez também porque a minha idade era tão próxima da sua. Não ouvi o que ela disse, nem da primeira nem da segunda vez. Não estava com disposição para conversas com raparigas da vida. Creio que foi por puro instinto de conservação que finalmente a olhei e a ouvi. Tinha de fugir aos meus próprios pensamentos, e qualquer ser humano seria bem-vindo se me ajudasse a fazê-lo. Mas ao mesmo tempo havia uma graciosidade, uma expressividade extraordinárias na rapariga, que talvez me tenham despertado a atenção. Ela estava parada à chuva, as faces cobertas de rouge, os olhos radiosos como estrelas, muito direita embora mal se firmasse nas pernas. Como eu continuasse a fitá-la, ela riu-se, num riso baixo e claro. Era muito jovem. Segurava o vestido com uma das mãos - nesses tempos as mulheres usavam vestidos de cauda na rua. Na cabeça tinha um chapéu preto com plumas de avestruz, que a chuva fazia pender tristemente, e que lhe sombreava a testa e os olhos. A curva suave e fir-me do seu queixo e o pescoço redondo e jovem brilhavam à luz do gás. É assim que ainda a vejo, embora dela guarde uma outra imagem também.

 

O que nela me impressionou foi o parecer toda fremente de um estranho alvoroço, como embriagada pela si-tuação. O seu modo de abordar-me não foi o convencional. Parecia alguém embarcado numa grande aventura, ou alguém que calasse um se-gredo. Creio que, ao olhá-la, comecei a sorrir, com um sorriso feito de amargura e turbulência que só os jo-vens conhecem, e que isso lhe deu coragem. Aproximou-se mais. Remexi o bolso à procura de algum dinheiro para lhe dar, mas não trazia dinheiro comigo. Levantei-me e principiei a andar, e ela seguiu-me, caminhando a meu lado. Lembro-me de sentir um certo conforto em tê-la perto de mim, porque eu não queria estar sozinho. Foi assim que aconteceu eu deixá-la acompanhar-me.

 

Perguntei-lhe o nome. Disse que se chamava Nathalie.

 

Nesta época eu tinha um emprego na Legação, e habitava um apartamento na Pla-ce François I, de modo que não tivemos de andar muito. Estava preparado para voltar tarde a casa, e nesses tempos, em que voltava a de-soras, costumava ter um lume aceso e uma ceia fria à minha espera. Quando entrámos o aposento estava quente e iluminado, e a mesa estava posta para mim em frente à lareira. Havia uma garrafa de champanhe no gelo. Eu costumava ter sempre uma garrafa de champanhe para quando voltava das minhas heures du berger.

 

A rapariga olhava em volta com uma expressão contente. Aqui, à luz do candeeiro, pude ver realmente como ela era. Os caracóis sedosos eram castanhos, e os olhos azuis. O rosto era redondo, de larga fronte. Era maravilhosamente bonita e graciosa. Creio que ela me maravilhava como alguém se maravilha ao encontrar um ramo de rosas frescas na sarjeta, nada mais. Se estivesse no meu estado normal, suponho que teria procurado extrair-lhe uma explicação do mistério que ela era, mas penso que tal nem me ocorreu.

 

A verdade é que ambos devíamos estar numa disposição de espírito bem singu-lar, e que talvez nunca se tenha repetido nela ou em mim. Eu sabia tão pouco do que a comovia, como ela sa-beria do meu estado de ânimo, mas, extremamente agitados e tensos ambos, encontrávamo-nos numa especial harmonia. Eu, em parte atordoado e em parte anormalmente sensível e desperto, tomei-a em todo o meu egoísmo, sem dedicar um pensamento ao lugar de onde ela viera, e onde voltaria a de-saparecer, como se ela fos-se uma dádiva, e a sua presença um acaso bom e amistoso do destino, nesse momento em que eu não podia ficar só. Parecia-me que ela tinha surgido, como um pequeno espírito travesso, da grande cidade que se estendia lá fora - Paris, que a todo o momento pode prestar-nos fa-vores inesperados - e que a tinha mandado a ela no momento exacto. Do que ela pensava de mim ou do que sentia por mim, nada poderei dizer. Nesse momento eu não pensava nisso, mas agora, olhando para trás, creio que também eu devo ter simbolizado alguma coisa para ela, fraca existência tendo como indivíduo.

 

Senti que era como uma grande felicidade, um calor que me avivasse, que ela fosse tão jovem e bonita. Fez-me rir de novo, depois daquelas horas sombrias e sinistras. Tirei-lhe o chapéu, ergui-lhe o rosto e beijei-a. Então me dei conta de como ela estava encharcada. Deve ter andado durante horas à chuva, pelas ruas, porque as suas roupas eram como as penas de uma galinha molhada. Fui até à mesa e abri a garrafa, enchi um copo e estendi-lho. Ela bebeu de pé em frente ao lu-me, os caracóis molhados e soltos tombando sobre a testa. Com as faces vermelhas e os olhos brilhantes, ela parecia uma criança que tivesse acordado, ou uma boneca. Bebeu metade do vinho, muito lentamente, os olhos postos em mim, e, como se esse meio copo de champanhe a tivesse levado a um ponto em que já não podia manter-se calada, ela principiou a cantar numa voz baixa, sua-ve, mal movendo os lábios, os primeiros versos de uma canção - uma valsa - que então se cantava em todos os teatros de variedades. Interrompeu-se, esvaziou o copo e entregou-mo. Á votre santé, disse ela.

 

A sua voz era tão alegre, tão pura, como o canto de um pássaro no ramo, e de todas as coisas a música era a que nesse momento me ia direita ao coração. O seu canto aumentou a impressão que eu já sentia de que alguma coisa de especial e de sobrenatural me tinha sido enviada. Voltei a encher-lhe o copo, rodeei-lhe o pescoço roliço e branco e afastei-lhe as madeixas molhadas da face. «Como diabo é que se foi encharcar assim, Nathalie? - disse eu, como se fosse sua avó. - É preciso tirar essas roupas molhadas e aquecer-se.» Ao falar a minha voz mudou. Voltei a rir. Ela fixou as estrelas dos seus olhos em mim. O seu rosto estremeceu por um momento. Depois principiou a desabotoar a capa, e deixou-a cair no chão. Sob a capa de renda preta, imprópria para a estação e coçada nas orlas até um tom castanho de ferrugem, ela trazia um vestido de seda preta, apertado no busto, na cintura e nas ancas, e depois pregueado e drapeado, com os folhos e os tufos que as senhoras usavam nesse tempo, nos primeiros dias da tournure. As dobras da saia brilhavam à luz da lareira. Comecei a despi-la, como teria despido uma boneca, muito lentamente, muito sem jeito, e ela permaneceu de pé, direita, deixando-me actuar. A frescura do seu rosto tinha uma expressão grave e infantil. Uma ou duas vezes se ruborizou sob as minhas mãos, mas quando lhe desapertei o justo corpete e lhe toquei os ombros frios e o seio, o rosto suavizou-se num largo sorriso e ela ergueu a mão para tocar nos meus dedos.

 

O velho barão Von Brackel fez uma longa pausa.

 

«Acho que lhe devo explicar - disse ele - para que possa entender bem esta história, que despir uma mu-lher era então muito diferente do que será hoje. Que roupas usam as senhoras hoje em dia? Para já, as menos possíveis - algumas linhas perpendiculares, logo decepadas antes que tenham tempo de se desenvolverem com algum sentido. Não obedecem a um plano. Existem em função do corpo, não têm uma carreira própria, ou, se alguma missão elas têm, é a de revelar.

 

Mas nesses tempos o corpo de uma mulher era um segredo que as roupas tudo faziam para preservar. Nós íamos passear para as ruas nos dias de mau tempo, só para entrever um tornozelo, visão que deve ser tão banal para um jovem de hoje como os pés desses copos para vinho que vocês usam. As roupas, nesse tempo, tinham uma existência, ideias próprias. Com uma serenidade que não era fácil penetrar, elas chamavam a si a transformação do corpo que envolviam, na criação de uma si-lhueta tão diferente da forma real da mulher, até fazer dela esse mistério que era um privilégio divino desvendar. As longas fitas do espartilho, as barbas-de-baleia, as saias e os saiotes, as tournures e os drapea-dos, toda essa massa de te-cido em que as mulheres do meu tempo se sepultavam, a que se enlaçavam, tão apertadas quanto podiam suportar - tudo isso visava uma só coisa: dissimular.

 

De uma tremenda espuma de caudas, pregueados, rendas e folhos, que ondeavam e ondulavam secundum artem a cada movimento, emergia a cintura como o cálice de uma flor, sustentando o busto, alto e redondo como uma ro-sa, mas prisioneiro das bar bas-de-baleia até aos ombros. Imagine agora quão diferente deve ter parecido a vida, quão diferente a de-vem ter sentido as criaturas que viviam dentro desses espartilhos apertados, nos quais apenas podiam respi-rar, e dentro desses abismos de roupa que elas arrastavam consigo onde quer que fossem ou se sentassem, e que nem sequer sonhavam que podia ser de outro modo, comparada com a existência das jovens de hoje, cujas roupas mal lhes tocam e nem espaço ocupam. A mulher era então uma obra de arte, o produto de séculos de civilização, e falava-se da sua figura como se falava do seu salão, com a mesma admiração que se vo-ta à obra de um talentoso e infatigável artista.

 

E sob tudo isto era a própria Eva que se movia e respirava, para verdadeiramente se nos revelar quando despisse a sua máscara, a cintura delicadamente marcada ainda do espartilho como de uma cinta de pétalas de rosa.

 

E vocês, jovens que riem das ideias e das tournures dos anos 70, e que me dizem que, apesar de toda a nossa artificialidade, pouco mistério nos deve ter restado, permitam-me que vos diga que não compreendem talvez o significado do mundo. Nada é mistério se não simbolizar alguma coisa. Até o pão da Igreja terá de ser cozido, e o vinho santo engarrafado, suponho. As mulheres desse tempo eram mais do que um conjunto de indivíduos. Elas simbolizavam, ou re presentavam, a Mulher. Quer-me parecer que até a palavra, nesse sentido, caiu em desuso. Enquanto nós fa-lávamos da mulher - e com cinismo, como nos agradava supor - vocês falam das mu-lheres, e toda a diferença está aí.

 

Lembra-se dos doutores da Idade Média, que discutiam o que tinha sido criado primeiro, se a ideia de cão ou um cão individual? Para vocês, que aprendem estatística antes de aprenderem a ler, não devem subsistir quaisquer dúvidas. E é de justiça dizer-se que o mundo, na realidade, parece ter sido feito em jeito de experiência. Mas, para nós, até as ideias do velho Darwin eram novas e estranhas. As nossas ideias provinham de empresas tais como sinfonias e cerimoniais da corte, e fôramos educados na marcada distinção entre um nascimento legítimo e outro ilegítimo. Tínhamos fé numa fina lidade. A ideia de Mulher - ou das ewig weibliche, a que nem vocês serão capazes de negar um certo mistério - tinha para nós sido criada no Princípio, e as nossas mulheres fizeram sua a missão de representá-la condignamente, como suponho que sempre foi missão do cão individual representar condignamente a ideia de cão para o Criador.

 

Poder-se-ia seguir, então, o desenvolvimento desta ideia numa rapariguinha, à medida que ia crescendo e, gradualmente, sem dúvida de acordo com antiquíssimas leis, se ia iniciando nos ritos do culto em que por fim era ordenada. Lentamente o centro de gravidade do seu ser se mudava do individual para o simbólico, e achar-se-ia então nela esse particular orgulho mesclado de modéstia que caracteriza o representante dos grandes poderes - o mesmo que se pode encontrar num artista de verdadeiro génio. Com efeito, a altivez da menina bonita, ou a majestade da velha senhora, não eram fruto da vaidade pessoal, ou de qualquer outro sentimento pessoal, como o não era o orgulho de Miguel Ângelo ou do Embaixador espanhol em França. Por acolhido que fosse, nas margens do Estige, pela grande indignação das suas vítimas individuais, de cabelos revoltos e peitos nus, Don Giovanni nunca seria condenado por um tribunal das mulheres do meu tempo, e a razão seria que ele teve grande fé na ideia de Mulher. Mas elas teriam concordado com os lentes de Oxford e condenado Shelley por ateu; e conseguiram dominar o próprio Cristo unicamente por representá-Lo como eterna criança, dependente, nos braços da Virgem.

 

A mole de gente que se aglomera fora das portas do templo do mistério não é muito interessante. O verdadeiro interesse está no sacerdote junto ao tabernáculo. A multidão que espera no adro que se cumpra o milagre do sangue fervente de São Pantaleão - isso já eu vi muitas vezes e em muitos lugares. Mas muito raramente tenho tido acesso à frescura das naves, ou a oportunidade de ver os sacerdotes, velhos e jovens, do mais alto aos meninos do coro - que se sentem as pessoas mais importantes na cerimónia, e são a um tempo sagrados e impudentes - ocupando-se, num ritmo muito seu, com as preparações, guardiães de um mistério de que eles tudo conhecem. Que é o cinismo de Lord Byron, ou de Baudelaire, que líamos então com um frisson nouveau, comparado ao cinismo dessas pequenas sacerdotisas, áugures todas elas, cumprindo com o maior escrúpulo todos os ritos de uma religião sobre a qual tudo conheciam e na qual não acreditavam, sustentando, tenho a certeza, a doutrina do seu mistério entre elas. Os poetas desse tempo dir-nos-iam como um grupo de jovens beldades, atrás da cortina de uma cabina de banhos, coravam em risos ao pôr os lírios na água.

 

Não sei se se lembra da história da rapariga que salva o navio amotinado ao sentar-se no barril de pólvora com um archote aceso, ameaçando largar-lhe fogo, sabendo porém que o barril está vazio? Esta história sempre me pareceu uma encantadora imagem das mulheres do meu tempo. Ali estavam elas, mantendo a ordem do mundo, guardando o seu equilíbrio e o seu ritmo, ao sentarem-se sobre o mistério da vida, e sabendo sempre que não existia qualquer mistério. Já ouvi vocês, os jovens, dizer que as mulheres de outrora não tinham sentido de humor. Pensando no rosto da minha jovem sentada no barril, os olhos se veramente baixos, tenho-me interrogado se o nosso famoso humor masculino não será um tanto insípido, comparado com o dela. Se nós estávamos mais gratos a elas por existirem do que hoje vocês estão gratos às vossas mu-lheres, acho que tínhamos boas razões para isso.

 

Espero que não se importará - disse ele -, que um velho se demore a contemplar estas imagens de um tempo já perdido. Será, suponho eu, como se alguém lhe detivesse o passo num museu, em frente a uma vitrine mostrando as modas passadas. Pode rir-se delas, se quiser.»

 

E o galante de outras eras retomou a sua história:

 

«Enquanto eu assim despia aquela criaturinha, e as sucessivas peças de roupa, que tão severamente a dominavam e escondiam, uma a uma iam caindo ali em frente ao lume, à luz do meu grande candeeiro, ele também envolvido em sucessivos panos de seda - tudo, meu caro, tudo se embrulhava nesses tempos, e as minhas fundas poltronas tinham, bem me lembro, longas franjas de seda a toda a volta, encimadas por pequeninos pompons de veludo, que de outro modo não seriam realmente bonitas - até que ela ficou nua, e eu vi perante mim a maior obra-prima da natureza que os meus olhos jamais tiveram o privilégio de contemplar, um corpo de cortar a respiração. Sei que as pequenas imperfeições das formas femininas podem ser de todo amoráveis, e eu próprio prestei culto a uma Vénus de pernas tortas, mas este corpo jovem era patético, era tocante, por ser absolutamente perfeito. Ela era tão nova que eu senti, em meio à profunda admiração, antecipações de uma perfeição ainda maior, e nada mais posso acrescentar.

 

Todo o seu corpo brilhava à luz, delicadamente redondo e macio como o mármore. Uma linha descia recta do colo aos tornozelos. Como a coluna de uma jovem árvore que aspirasse ao céu. O mesmo carácter se expressava no alto peito do pé, quando ela se descalçou, sacudindo os sapatos velhos, como na curva do queixo, como no brilho franco e suave dos seus olhos, e nas linhas firmes e delicadas dos ombros e dos pulsos.

 

O conforto do calor do lume sobre a pele, depois do contacto pegadiço e molhado das roupas em desordem, fê-la suspirar de prazer e voltar-se levemente, como uma gata. Ria de mansinho, como criança que deixa a porta da escola a caminho das férias; os caracóis molhados caíam sobre a testa, e ela não procurou afastá-los; as faces brilhantes e pintadas pareciam-se ainda mais com as de uma boneca, encimando o belo corpo nu.

 

Creio que toda a minha alma estava nos meus olhos. A realidade viera ao meu encontro, havia tão pouco tempo, vestida de tão feias formas, que eu não queria entrar em contacto com ela de novo. Dentro de mim um negro medo ainda se albergava, e procurei refúgio no fantástico, como a criança aflita no seu livro de con-tos de fadas. Não queria olhar o futuro, nem queria, de modo algum, olhar para o passado. Senti o momento fechar-se sobre mim como uma onda. Bebi, olhando-a, um bom copo de vinho para lhe fazer companhia.

 

Eu nesse tempo era tão novo que não podia, como os jovens não podem, abandonar a fé profunda na minha boa estrela, num poder que me amava e protegia, preferindo-me entre todos os seres humanos. Nenhum milagre era inacreditável, conquanto me acontecesse a mim. É quando esta fé começa a desvanecer-se, e se concebe a possibilidade de estarmos na mesma posição dos outros, que a juventude verdadeiramente se acaba. Esta graça dos deuses não me causava surpresa nem suspeita, e creio que o meu coração estava cheio de uma dulcíssima gratidão para com eles. Achava, afinal, sobremaneira razoável, sobremaneira lógico, que esse grande poder do Universo se manifestasse de novo e me enviasse, benévolo, saindo das trevas da noite, como ajuda e consolo, esta jovem nua e embriagada, um milagre de graciosidade.

 

Sentámo-nos a cear, Nathalie e eu, no alcandor do meu quarto quente e sossegado, com a grande cidade a nossos pés e os meus pesados reposteiros de seda corridos sobre a noite chuvosa, como dois mochos numa torre em ruínas no mais profundo da floresta, e ninguém no mundo sabia que existíamos. Ela pousou na mesa um braço e descansou sobre ele a cabeça. Acho que estava cheia de fome, enfeitiçada pela comida. Havia caviar, lembro-me bem, e uma ave fria. Os seus olhos sorriam-me, ela ria, falava comigo, escutava o que eu lhe dizia.

 

Não me lembro do que falámos. Creio que fomos muito francos, e que lhe contei, coisas que a mais ninguém teria dito, como estivera quase a ser envenenado pouco antes de a encontrar. Creio também que lhe devo ter falado do meu país, porque sei que, pouco tempo depois, me veio a ideia que ela talvez me escrevesse para lá, ou fosse visitar-me, até. Lembro-me que ela me contou, muito triste a princípio, a história de um ma caco sábio que pertencera a um arménio tocador de rea-lejo. O dono morrera, e agora o macaco queria fazer as suas habilidades e estava sempre à espera da sua deixa, mas ninguém a conhecia. No decurso da história ela imitou o macaco da maneira mais engraçada, mais graciosa, mais inspirada que ima ginar se possa. Mas lembro-me sobretudo dos seus movimentos. Às vezes penso que a compreensão de algumas peças para violino e piano me veio da contemplação do contraste, ou da harmonia, entre a sua longa e fina mão e o seu queixo redondo e pequeno, quando ela levava o copo à boca.

 

Em nenhuma outra ligação - se é que pode chamar-se a isto uma ligação - senti essa liberdade e essa segurança. Na minha última aventura passei todo o tempo tentando desesperadamente descobrir o que a minha amante realmente pensava de mim, e que papel eu desempenhava aos olhos do mundo. Mas essas dúvidas e medos não podiam sequer penetrar no nosso quartinho. Creio que é esta sensação de segurança e perfeita liberdade que os casais felizes devem sentir, quando falam de serem uma só carne. Não sei se esse entendimento será tão possível no casamento como entre estranhos; mas isto será, por certo, uma questão de gosto.

 

Alguma coisa nos tocava a ambos, embora dela não ti-véssemos consciência. O mundo lá fora era mau, era horrível. A vida tinha sido cruel para mim, e mais cruel ainda o fora com certeza pa-ra ela. Mas este quarto e esta noite pertenciam-nos, e eram-nos fiéis. Embora não pensássemos nisso, a nossa ceia era na realidade uma ceia dos Girondinos.

 

Ajudou-nos o vinho. Eu não bebera muito, mas antes do primeiro trago eu já sentia a cabeça leve. O champanhe é coisa boa e gentil numa noite de chuva. Lembro-me que um velho bispo dinamarquês me disse que há muitas maneiras de reconhecer a verdade, e que um Borgonha é uma delas. E é muito bom, eu sei, para um velho, dentro do seu gabinete apainelado. Mas os jo vens que viram o rosto do demónio precisam de uma mão amiga que seja mais forte. Os nossos copos, que mansamente chiavam, levaram-nos a ver-nos a nós mesmos e à nossa noite com os olhos de um artista que tudo visse, digno do génio de um deus.

 

Eu tinha uma guitarra sobre o sofá, pois havia de fazer uma serenata, num tableau vivant, a uma beldade romântica - na vida real uma americana da Embaixada, que nem sequer responderia com um eco, fosse qual fosse o ângulo donde se lhe gritasse. Nathalie estendeu a mão para ela, a dada altura da ceia. Um pequeno arrepio me percorreu ao primeiro som, pois eu não tivera tempo ou disposição para tocar, e cruzando as pernas, sentada na minha cadeira baixa, começou a afiná-la. Depois cantou para mim duas pequenas canções. No sossego do meu quarto a sua voz grave, um pouco rouca, era límpida como o cristal, levemente tonta de felicidade, como a voz de uma abelha pousada numa flor. Cantou primeiro uma canção das variedades, melodia alegre e com um ritmo cativante. Depois ficou pensativa um momento e passou a uma cançãozinha es tranha, lamentosa, numa língua que eu não compreendi. Ela tinha o dom da música. A personalidade forte e delicada que se manifestava em todo o seu corpo surgiu ainda na sua voz. O timbre dela, ligeiramente metálico, franco e natural, correspondia aos seus olhos, aos joelhos, aos dedos. Era porém um pouco mais rica e mais cheia, como se tivesse crescido mais depressa que o corpo, ou tivesse logrado antecipar-se a ele. A sua voz era mais sábia do que ela própria, tal como o arco de Mischa Elman quando ele tocava, ainda um Wunderkind.

 

Todo o meu equilíbrio, que eu conseguira manter enquanto olhei para ela, me abandonou ao som da sua voz. Essas palavras que eu não compreendia pareceram-me cheias de um sentido mais directo que as outras que sempre reconhecera. Sentei-me na outra cadeira baixa à sua frente. Lembro-me do silêncio que se seguiu a essa canção, e que desviei a mesa, e que lentamente dobrei o joelho perante ela. Olhou para mim com uma ex-pressão tão clara, tão severa e feroz como penso que seria o olhar de um falcão quando se lhe tira o capuz. Dobrei o outro joelho e abracei as suas pernas. Não sei o que havia no meu rosto que a convencesse, mas o rosto dela transformou-se, sossegou numa expressão de suavidade heróica. Desde o primeiro momento que toda ela tinha algo de heróico. Foi isso, penso eu, que a levou a suportar esse jovem imbecil que eu era. Pois du ridicule jusqu'au sublime, realmente, il n'y a qu'un pas.

 

Meu amigo, ela era a inocente que aparentava ser. Foi a primeira rapariguinha que eu possuí. Há uma teoria, segundo a qual um homem muito novo não deve amar uma virgem, mas preferir uma parceira mais velha. Isto não é verdade; e contraria a natureza.

 

Foi talvez uma ou duas horas mais tarde que eu acordei sentindo que qualquer coisa tinha sucedido, algum perigo se instalara. Costumamos dizer, ao sentir um calafrio súbito, que alguém está a andar sobre o nosso túmulo - o futuro faz-se memória. E como l'on meurt en plain bonheur de ses malheurs passés, assim nós deixamos fu-gir a felicidade presente por uma infelicidade futura. Não foi só um caso de omne animal; foi uma desconfiança no futuro, como se ouvisse a minha própria voz perguntando: «Vou ter de pagar por isto; qual será o preço?« Mas nessa altura talvez tenha acreditado que sentia apenas medo que ela se fosse embora.

 

Uma vez ela tinha-se levantado e feito menção de me deixar, e eu tinha-a obrigado a ficar. Agora ela dizia: «Tenho de voltar«, e levantava-se. O gás luzia ainda, o lume ardia lento. Parecia-me a mim natural que ela fosse levada de mim pelas mesmas forças misteriosas que a tinham trazido, como a Cinderela, ou um geniozinho das Mil e Uma Noites. Esperava que ela se aproximasse e me dissesse quando voltaria para mim, e o que eu teria de fazer. No entanto, eu estava agora mais calado.

 

Ela vestiu-se e voltou a colocar o seu negro e coçado disfarce. Pôs o chapéu e ficou de pé, tal como eu a vira pela primeira vez à chuva, na avenida. Então aproximou-se do braço da cadeira onde eu me sentara, e disse: «E vai dar-me 20 francos, não vai?« Como eu não respondesse, ela repetiu a pergunta e acrescentou: «A Marie disse que''' disse que eu devia pedir 20 francos.«

 

Eu não falava. Fiquei a olhar para ela. Os seus olhos límpidos e alegres procuraram os meus.

 

Uma grande claridade desceu então sobre mim, como se todas as artes e ilusões com que tentamos transformar o mundo, as cores, a música e os sonhos, se afastassem e a realidade me fosse mostrada, em ruínas, como a casa destruída pelo incêndio. Era o fim da peça. Não havia lugar para qualquer pa lavra supérflua.

 

Foi este o primeiro momento, penso eu, desde que a encontrara, havia tão poucas horas, em que eu a vi como um ser humano, nos limites de uma existência própria, e não como uma dádiva que me fosse feita. Creio que todos os pensamentos que em mim se haviam concentrado desapareceram ao vê-la; mas agora era tarde.

 

Tínhamos representado os dois. Uma rara zombaria me tinha sido oferecida, e eu aceitara-a; competia-me agora manter o espírito do nosso jogo até ao fim. A exigência dela estava perfeitamente dentro do espírito daquela noite. Pelo palácio que constrói, pelos quatrocentos escravos negros e quatrocentos escravos brancos, todos recobertos de jóias, o djinn pede uma velha lâmpada de cobre; e a bruxa da floresta, que desloca três cidades e cria para o filho do lenhador um exército de cavaleiros, pede para si o coração de uma lebre. A rapariga pedia-me a sua paga com a voz e os modos do djinn e da bruxa da floresta, e se eu lhe desse os 20 francos talvez ela se conservasse a salvo, no círculo mágico do seu espírito livre, gracioso e desafiante. Eu é que não estava à altura do jogo, ali sentado em silêncio, suportando o peso do mundo frio e real, sabendo muito bem que teria de responder-lhe sob pena de, nesses escassos minutos, lhe passar a jogada.

 

Mais tarde reflecti que eu talvez tivesse tido o poder de inventar alguma coisa que a pusesse a salvo e no entanto me permitisse conservá-la. Pensei então que teria bastado dar-lhe os 20 francos e dizer-lhe: «E se quer outros 20, volte amanhã à noite.« Se ela fosse menos bela aos meus olhos, se ela não fosse tão jovem e tão inocente, eu talvez o tivesse feito. Mas esta criaturinha, durante as nossas breves horas juntos, tinha apelado para toda a galanteria que havia em mim. E a galanteria, penso eu, é isto: amar, ou querer ao orgulho do nosso parceiro, ou do nosso inimigo, como o quiser definir, tanto ou mais do que ao nosso próprio orgulho. Ou, se o meu coração fosse tão inocente como o dela, talvez tivesse pensado nisso, mas eu rodeara-me desse mundo fatal da realidade. Tinha prática das suas leis e corriam-me no sangue os bacilos dos seus costumes. Nem me passava pela cabeça alterar por uma vez as minhas respostas na igreja. Quando o sacerdote diz: «Senhor, purifica os nossos corações«, eu nunca pensei em dizer-lhe que não é preciso, ou responder-lhe outra coisa que não seja, «E que o Teu Espírito não nos abandone«.

 

E assim, como se fosse a coisa mais natural e sensata a fazer, puxei de 20 francos e entreguei-lhos.

 

Antes de sair, ela fez uma coisa que eu jamais esquecerei. Com a nota na mão esquerda, ela permaneceu junto de mim. Não me beijou, não tocou na minha mão para se despedir, mas com três dedos da sua mão direita ergueu um pouco o meu queixo e olhou para mim, lançou-me um olhar como a desejar-me coragem e consolação, tal como a irmã faria a seu irmão na despedida. E saiu.

 

Nos dias que se seguiram - não os primeiros, mas mais tarde - tentei construir uma teoria e uma explicação da minha aventura.

 

Isto aconteceu a curto espaço apenas da queda do Segundo Império, esse estranho simulacro de milénio, e da Comuna de Paris. A atmosfera andava carregada de catástrofe. Um mundo tinha soçobrado. Até a Imperatriz, que, durante uma sua visita a Paris, ainda criança, eu imaginara uma deusa repousando sobre nuvens, conduzindo com um sorriso os assuntos de toda a humanidade, tinha fugido, pela noite, numa carruagem, com o seu dentista americano, na miséria de não levar um lenço. A sua corte apertava-se em boletos de Bruxelas e de Londres, enquanto as suas casas de campo serviam de estábulos à cava laria dos Prussianos. Seguiu-se a Comuna, e os massacres de Paris pelo exército de Versalhes. Todo um mundo deve ter-se desmoronado nesses meses de desgraça.

 

Foi também o tempo do niilismo na Rússia, quando os revolucionários perderam tudo e debandaram para o exílio. Pensei neles por causa da canção que Nathalie tinha cantado para mim, e cujas palavras eu não percebi.

 

Fosse o que fosse que lhe sucedera, deve ter sido uma catástrofe de uma extraordinária violência. Deve ter-se afundado com uma sin-gular rapidez, pois de contrário havia de experimentar a resignação, essa terrível reconciliação com o destino que a vida opera em nós quando nos vai afectando gota a gota.

 

E ainda, pensei eu, deve ter estado ligada a alguém que a arrastou para o abismo, pois se fosse sozinha tal não havia de suceder-lhe. Deve ter sido, reflecti eu, alguém a quem es tivesse unida mas que não pudera ajudá-la, ou alguém muito velho, no abandono do choque ou da ruína, ou muito jovem, crianças, uma criança, um irmãozinho, uma irmãzinha. Ela por si haveria de flutuar, ou seria salva, junto à superfície, por alguém que desse valor aos seus raros dons de graça, de encanto e formosura, e se congratulasse por obtê-los; ou, mais abaixo, por alguém que podia não os compreender, mas que mesmo assim sofresse uma forte impressão. Ou, perto do fundo, por gente que pensasse tirar proveito deles. Mas ela deve ter ido a pique, de um mundo de beleza e harmonia onde aprendera essa confiança, essa luz, onde lhe ensinaram a cantar, a mover-se e a rir como ela o fazia, para um mundo onde a beleza e a graça não contam, e onde a rudeza dos factos nos olha de frente, e soçobrado na ruína, na desolação e fome. E aí, no último degrau da escada, estava a Marie, quem quer que ela fosse, uma amiga que no seu conhecimento do mundo, estreito e de treva, lhe emprestara as roupas miseráveis, a forçara a beber uma zurrapa qualquer para lhe dar coragem.

 

Sobre tudo isto eu pensei muito, e por longo tempo; mas, evidentemente, nada sabia. Assim que ela se foi e eu me vi sozinho - tão estranhos são os movimentos automáticos que fazemos nas mãos do destino - em nada mais pensei do que em segui-la e trazê-la de volta. Acho que, nesses minutos, passei pela exacta experiência, até na sensação de su-foco, de um enterrado vivo. Mas eu estava nu. Quando enfiei umas roupas e desci, a rua estava deserta. Vagueei pelas ruas durante muito tempo. Voltei, era já madrugada, ao banco onde me sentava quando a vi, e ao hôtel da minha antiga amante. Pensei em como era estranho que um rapaz corresse, na mesmíssima noite, arrastado pela louca paixão e pela perda de duas mulheres. As palavras de Mercúrio a Romeu soaram nos meus ouvidos e, como se me houvessem mostrado uma brilhante caricatura de mim pró prio, ou de todos os jovens, ri-me. Quando o sol despontou voltei para o meu quarto, e ali estava o candeeiro, aceso ainda, e a mesa posta para a ceia.

 

Este estado de espírito durou algum tempo. Os primeiros dias não foram os piores, pois vivia na esperança de descer, à mesma hora, ao mesmo lugar onde a encontrara. Pensava que ela poderia lá voltar. E depositei grandes esperanças nessa ideia, que só lentamente me morreram.

 

Tentei várias coisas para que essa esperança se mantivesse viva. Uma noite fui à Ópera, porque ouvi outros dizerem que iriam. Estava na moda, evidentemente, e talvez valesse a pena. Levavam o Orfeu. Lembra-se da música com que ele implora às sombras do Hades, e aquela em que Eurídice lhe é devolvida por um tão breve tempo? Eu ali estava, na luz brilhante dos entr'actes, um jovem de gravata branca e luvas cor de alfazema, com gente alegre que à minha volta sorria e conversava, alguns cumprimentando-me de longe, esmagado e envolto nas negras asas enormes das Euménides.

 

Nessa altura desenvolvi uma outra teoria. Pensei na deusa Nemésis, e acreditei que, se não tivesse tido aquele momento de dúvida e receio naquela noite, talvez tivesse sentido, pela manhã, a força e o direito de mudar o seu destino e o meu. Diz-se que os salteadores que outrora pululavam nas florestas da Dinamarca, costumavam esticar um arame sobre a estrada, a que prendiam um sino. As carruagens ao passar tocavam no fio e o sino soava no covil, chamando os ladrões, eu tocara o fio e um sino soara algures. A rapariga não tivera medo, eu sim. Perguntara: «Que preço terei de pagar pelo que recebo agora?« E a própria deusa me respondera: «Vinte francos«, e com ela não se pode regatear. Pensa-se em muita coisa quando se é novo.

 

Tudo isto se passou há muito tempo. As Euménides, se elas me permitirem que o diga, são como as pulgas, que tanto me afligiram em pequeno. Gostam de sangue jovem, e deixam-nos em paz quando somos velhos. Tive, porém, a honra de que viessem sobre mim mais uma vez, e não há muitos anos. Tinha vendido um pedaço de terra a um vizinho, e quando voltei a vê-lo, a floresta que ali havia tinha sido cortada. Onde estavam agora as sombras verdejantes, as clareiras e as ocultas veredas? E quando ouvi de novo o assobio das suas asas no ar, senti, misturada à dor, uma sensação estranha de esperança e de força - era, afinal, a música da minha juventude.»

 

- E voltou a vê-la? - perguntei-lhe.

 

«Não - disse ele ao fim de algum tempo - mas tive uma fantasia com ela, uma fantasie macabre, se quiser.

 

Quinze anos mais tarde, em 1889, passei por Paris a caminho de Roma, e demorei-me alguns dias para ver a Exposição e a Torre Eiffel, que tinha sido acabada de construir. Uma tarde fui visitar um amigo, um pintor. Ele fora na mocidade um artista revoltado, mas depois transformara-se por completo, e estava nessa altura a estudar anatomia com grande fervor, seguindo o exemplo de Leonardo. Passei com ele o serão, e depois de termos discutido os seus quadros e a arte em geral, ele disse-me que ia mostrar-me a coisa mais bonita que tinha no atelier. Era uma caveira que ele estava esboçando. Deleitou-se a explicar-me a sua beleza. «É realmente - disse ele - a caveira de uma mulher jovem, mas a caveira de Antínoo deve ter sido assim, se alguém pudesse encontrá-la«.

 

Eu tinha-a na minha mão, e ao olhar a fronte larga e baixa, a linha clara e nobre do maxilar, e as órbitas fundas e limpas dos olhos, a caveira subitamente me pareceu familiar. Os ossos polidos e brancos brilhavam puros à luz do candeeiro. A salvo. Nesses poucos minutos regressei ao meu quarto da Place François I, com as suas franjas de seda, os pesados reposteiros, a uma noite de chuva quinze anos atrás.»

 

- Interrogou o seu amigo sobre essa caveira? - disse eu.

 

- Não - respondeu o velho - de que serviria? Ele não saberia nada.

 

 

                     A PRIORESA

Em alguns países luteranos do Norte da Europa existem ainda casas que tomaram o nome de conventos e são dirigidas por uma prio-resa ou chanoinesse, conquanto não tenham carácter religioso. São recolhimentos para senhoras de sangue nobre que, viúvas ou solteiras, ali passam o outono e o inverno dos seus dias numa rotina de conforto e dignidade, conformes à tradição das casas. Muitas destas instituições são ex tremamente ricas, possuem grandes extensões de terra e têm recebido ao longo dos séculos vários legados e heranças. O espírito orgulhoso, gentil, feudal, dos tempos idos parece habitar os edifícios majestosos e reger a vida das comunidades.

 

A Prioresa Virgem de Closterseven, em cujas mãos o convento prosperou do ano de 1818 ao ano de 1845, tinha um macaco cinzento que lhe dera seu primo, o almirante Von Schreckenstein, no seu regresso de Zanzibar, e de que ela muito gos-tava. Quando se sentava à mesa de jogo, lugar onde passava algumas das horas mais felizes, o macaco ia de regra empoleirar-se nas costas da sua cadeira, de onde seguia com olhos cintilantes o movimento das cartas dadas e recolhidas. Noutras alturas iam dar com ele, de manhãzinha, no alto do escadote da biblioteca, puxando os frágeis fólios e espalhando pelo chão de mármore branco e negro as amarelecidas folhas onde se tratava da estratégia, dos contratos de casamento de príncipes e dos julgamentos de bruxas.

 

Numa outra sociedade a presença do macaco talvez não fosse bem vista. Mas o convento de Closterseven albergava, a par da sua estimável população feminina, todo um mundo variado de animais de estimação, bem cientes de uma ordem de pri-mazia. Ali habitavam papagaios e catatuas, cãezinhos, gatos graciosos de todas as partes do mundo, uma cabra angora, branca como a de Esmeralda, e um jovem gamo de olhos cor de púrpura. Havia até uma tartaruga que era suposta contar mais de cem anos. As velhas senhoras, portanto, usavam de in-dulgência para com os caprichos do favorito da Prioresa, a mesma talvez que nos velhos tempos uma corte mulheril teria mostrado para com os caprichos de uma real maìtresse-en-titre.    

 

De tempos a tempos, particularmente no Outono, quando os frutos amadureciam nas sebes das estradas e nas extensas florestas que rodeiam o convento, acontecia que o macaco, sentindo o apelo de uma vida mais livre, desaparecia durante algumas semanas ou um mês, para voltar depois por sua iniciativa quando chegavam as geadas nocturnas. As crianças das aldeias pertencentes a Closterseven vinham então atrás dele, que corria pelas estradas ou trepava às árvores, de onde as observava atentamente. Mas quando elas se juntavam à sua volta e começavam a bombardeá-lo com as castanhas que traziam nos bolsos, o macaco fazia rolar os olhos e arreganhava os dentes para elas, rematando a questão ao subir velozmente para os ramos e desaparecer nas copas da floresta.

 

Era a opinião geral do convento, ou o gracejo constante nele, que a Prioresa, durante estes períodos, caía em silêncios, vítima de um particular desassossego, e parecia avessa a agir na governação da casa, na qual de ordiário demonstrava uma grande energia. À puridade chamavam elas ao macaco o Geheimrat da Prioresa, e rejubilavam quando viam de novo o animal na saleta, um tanto friorento da escapada para a floresta.

 

Num belo dia de Outono, quando o macaco estava assim desaparecido há algumas semanas, chegou inesperadamente ao convento o jovem sobrinho e afilhado da Prio-resa, tenente do Real Corpo da Guarda.

 

A Prioresa era altamente respeitada por toda a parentela, e nos seus tempos levara à pia baptismal muitos bebés do seu nobre sangue, mas este jovem era o seu afilhado preferido. Era um airoso rapaz de 22 anos, de cabelos negros e olhos azuis. Conquanto não fosse o primogénito, a sua situação na vida era desafogada. Filho dilecto de sua mãe, que viera da Rússia e fora a herdeira de um título, o rapaz fez uma bela carreira. Os seus amigos espalhavam-se não pelo mundo inteiro, mas nesse mundo que é de consequência.     

 

Quando chegou ao convento não parecia, porém, um jovem nascido com uma boa estrela. Viera, como atrás se disse, em impetuoso galope, sem se fazer anunciar, e as senhoras com quem trocou algumas palavras, esperando ser recebido pela tia, repararam que ele estava pálido e parecia exausto, como se preso de uma grande agitação de espírito.

 

Elas não desconheciam, aliás, que o jovem tinha boas razões para tal. Sendo embora Closterseven um pequeno mundo fechado em si mesmo, movimentando-se numa particular atmosfera de paz e imutabilidade, as notícias do vasto mundo dos homens chegavam a ele com surpreendente rapidez, pois cada uma das recolhidas mantinha uma atenta e serviçal correspondente no exterior. Assim estas mulheres enclausuradas sabiam, tão bem como os mais bem informados, que, durante esse mês, nuvens de estranha e sinistra natureza haviam ensombrado o regimento e o círculo de amigos a que o rapaz pertencia. Um conluio de beatos, encabeçados pelo capelão da Corte, justamente ele, e muito escutados pelas altas personagens, tinham, no fingimento de uma indignação moral, erguido a voz contra estes jovens, a flor da nação, e ninguém poderia dizer ao certo, ou imaginar sequer, o rumo que as coisas tomariam.

 

As senhoras não haviam discutido muito entre si estes acontecimentos, mas o bibliotecário do convento, que era um teólogo e um eru-dito, fora arrastado para mais do que um tête-á-tête e convidado a dar a sua opinião sobre o proble ma. Com ele aprenderam a relacioná-lo de algum modo com o chão sagrado e romântico da Grécia antiga, que até esse dia elas sempre haviam tido na mais alta estima. Lembrando os dias da juventude, quando tudo o que era grego fora o dernier cri, e os vestidos e penteados foram apelidados á la grecque, elas interrogavam-se. Poderia a expressão designar também uma coisa tão estranha aos seus mortos sonhos de requinte em meninas? Elas tinham adorado esses vestidos, tinham valsado neles com príncipes; agora, se os recordavam, era com inquietude.

 

Poucas coisas teriam causado mais profunda agitação nessas mulheres. Não era só a impudência mostrada por esses heróis do púlpito e da pena ao atacar os valorosos que assim revoltava as velhas filhas de uma raça guerreira, nem era o pres sentimento de dificuldades e muito sofrimento que as afligia, mas uma coisa que nessa questão ultrapassava tudo o mais. Para todas elas fora um artigo fundamental da fé que a beleza e o fascínio da mulher, que elas mesmas representavam, na sua esfera e de acordo com os seus dons, devesse constituir a mais alta inspiração e o prémio de uma vida. No caso delas algumas houve talvez a quem o mundo armara ciladas, a capturar esse prémio dos seus seres feminis sem por eles pagar o caro preço pretendido; a outras, enredou-as talvez em algum estranho equívoco, em uma falta de apreciação - mas ainda assim o dogma se confirmara. Ouvi-lo agora contestado era para elas o mesmo que para um avaro o dizerem-lhe que o ouro já não tinha um valor absoluto, ou para um místico o afirmarem-lhe que o Senhor já não estava presente na Eucaristia. Soubessem elas que um dia o seu dogma havia de ser posto em causa e todas es tas vidas, que se encontravam agora tão perto já do fim, talvez tivessem seguido bem diferentes rumos. Para algumas poucas solteironas, que tinham os instintos estratégicos da raça desenvolvidos ao máximo, estas novas concepções foram um rude golpe. O mesmo rude golpe que seria para um velho general se, por uma longa campanha, em obediência a ordens superiores, valorosa e lealmente se tivesse mantido na defensiva, e viesse depois a saber que uma ofensiva teria sido a acção cor-recta e, mais ainda, digna de um louvor.

 

Embora inquietas, cada uma dessas velhas senhoras gostaria de conhecer algo mais dessa estranha heresia, como se afinal as ternas e perigosas emoções do coração humano fossem, mesmo dentro da segura reclusão delas, por direito o seu domínio. Era como se os altos bouquets de flores secas, sob os tremós do convento, se tivessem mexido e proclamado a sua autoridade numa qualquer questão de floricultura.

 

Dispensaram ao pálido rapaz um acolhimento indeci-so, hesitantes em ver nele um dos inocentes do massacre de Herodes ou um jovem sa-cerdote de magia negra ainda ao alcance da conversão; quando ele subiu a larga escadaria que levava aos aposentos da Prioresa, evitaram os olhares umas das outras.

 

A Prioresa recebeu o sobrinho na sua imponente sala de visitas. As três janelas altas, por entre pesados reposteiros com cercaduras de floridas grinaldas a ponto de cruz, davam para os relvados e alamedas do jardim outonal. Nas paredes forradas a damasco os pais da Prioresa, há muito já falecidos, contemplavam-no das largas molduras douradas com gravidade e graça juvenil, nos pós e laços de uma grande festa da Corte. Esses dois tinham sido os ami-gos do rapaz desde a mais tenra idade, e todavia ele hoje descobria nos seus rostos, com surpresa, um quê de perplexidade e mesmo de aflição. Julgou ainda por momentos sentir na sala um estranho odor, inquietante, misturando-se ao aroma do incenso, que fora mais amplamente queimado que o habitual. Seria este, pensou, um novo aspecto da sua propensão à catástrofe?

 

O rapaz, posto que sensível a toda aquela atmosfera de harmonia, tão sua conhecida, não queria nem ousava perder tempo. Depois de beijar a mão da tia, de perguntar pela sua saúde e pelo macaco, e de lhe dar notícias da família que dei xara na cidade, foi direito ao assunto que o trouxera a Closterseven.

 

- Tia Cathinka - disse ele - vim procurá-la por que a senhora sempre foi muito boa para mim. Gostaria - e o rapaz engoliu em seco, a sossegar um rebelde coração que não gostava de ser sufocado - de me casar, e espero que me dê o seu conselho e o seu auxílio.

 

 

O rapaz bem sabia que, em outras circunstâncias, nada que dissesse poderia agradar mais à velha senhora. Assim a vida, pensou ele, alcança satisfazer o seu gosto pelo burlesco, até em relação a pessoas como sua tia, que intimamente ele chamava pelo nome de uma divindade chinesa: Kuan-Yin, a deusa da misericórdia e da benigna subtileza. Pensou que, neste caso, ela sofreria mais até do que ele com as ironias do destino, e teve pena.

 

A caminho do convento, cortando por florestas e pequenas aldeias, deixando para trás os largos campos de resteva, onde pasciam bandos imensos de gansos, guardados por meninos de perna ao léu e por rapariguinhas, ele tentara imaginar como seria esse encontro com a tia. Conhecendo o seu fraco pelas sentenças latinas, viera interrogando-se qual ouviria dos seus lábios, se um Et tu, Bru-te, se um decidido Discite Iustitiam moniti et non temere divos. Talvez ela dissesse Ad sanitatem gradus est novisse morbum - seria um bom sinal.

 

Passado um momento, ele fitou o rosto da velha senhora. A sua cadeira de alto espaldar perdia-se no chiaroscuro da cortina de renda, enquanto ele estava na plena luz do sol da tarde. Da sombra dois olhos luminosos o fitavam, obrigando-o a desviar o olhar, e esta mímica repetiu-se ainda duas vezes.

 

- Mon cher enfant - disse por fim a Prioresa numa voz suave que deu ao rapaz uma impressão de firmeza, embora lhe surpreendesse um curioso e leve arrepio - há muito que o meu coração pedia a Deus para que o menino tomasse essa decisão. Pode com certeza contar, querido Boris, com todo o auxílio que a uma velha, retirada do mundo, seja possível oferecer-lhe.

 

Boris ergueu o rosto, os olhos sorridentes na face branca. Depois de uma semana extremamente agitada, e uma série de cenas tremendas que o amor e o ciúme da mãe haviam procurado, ele sentiu-se como alguém que, de uma cidade inundada, fosse içado para um barco. Assim que pôde falar, disse: - Deixo tudo nas suas mãos, tia Cathinka - confiando que a doçura do poder fizesse apelo a toda a sua generosidade. Ela continuou de olhos fitos nele, complacente. Aqueles olhos apoderavam-se de Boris como se ela o estivesse de facto atraindo ao seio, ou porventura ao círculo mais íntimo do coração. Levou o lencinho aos lábios, gesto comum nela quando se achava comovida. Ela o ajudaria, sim, pensou ele, mas tinha qualquer coisa a dizer primeiro.

 

- O que é - disse ela muito lentamente, à maneira de uma sibila - que só se ganha com sacrifício, é oferecido com gosto, e as mais das vezes recusado? É a ex-periência, a experiência dos velhos. Se os filhos de Adão e Eva estivessem preparados para fazer uso da experiência dos pais, há seis mil anos que o mundo viveria em sensatez. Dar-lhe-ei a minha experiência de vida numa pequena pílula, adoçada pela poesia para que o menino a possa engolir: «Pois de todos os caminhos da vida só um - o caminho do dever - leva à felicidade.»

 

Boris ficou por momentos em silêncio.

 

- Tia Cathinka - disse ele afinal - porque há-de haver um só caminho? Eu sei que os crentes julgam assim, e foi isto que eu também aprendi na Confirmação, embora a divisa da nossa família seja: «Acha um caminho ou faz o teu caminho». Não se lê um livro de cozinha em que não nos sejam dadas, pelo menos, três, quatro, ou mais maneiras de fazer um guisado de galinha. E quando Colombo partiu à descoberta da América - prosseguiu, porque eram estes os pensamentos que o vinham ocupando, e a Prioresa era sua amiga, a ela podia atrever-se a confessá-los - partiu de facto para tentar encontrar por ocidente o caminho para a Índia, o que foi considerada uma empresa heróica.

 

- Ah! - disse a Prio-resa com grande energia - o doutor Sass, que foi o pastor de Closterseven no século XVII, sustentava que no Paraíso, até ao momento da queda, todo o mundo era plano, a cortina de fundo do Senhor, e que foi o demónio que inventou uma terceira dimensão. Por isto são as palavras «chãmente», «lisura» e «rectidão» as palavras do homem nobre; e porque a maçã foi um orbe, assim o pecado dos nossos pri meiros pais foi a tentativa de tornear os desígnios de Deus. Eu, por mim, prefiro sem dúvida a arte da pintura à da escultura.

 

Boris não a contradisse. Os seus gostos diferiam nesse ponto, mas talvez ela tivesse razão. Até agora ele sempre se felicitara por gozar a vida de todos os ân-gulos, mas ultimamente vinha achando esse talento uma bênção enganosa. Era a isso, pensava ele, que estava devendo o que parecia ser o seu destino: obter tudo o que queria mas no momento em que já não o desejava. Sabia por experiência como o frenético desejo de uma orgia, ou de música, ou do mar, ou de autoconfiança, antes que se cumprisse o tempo de o satisfazer cessava de existir - como no caso de uma estrela, cuja luz apenas chega à Terra muito depois daquela se acabar - por isso no momento em que o seu desejo estava prestes a ser-lhe concedido, só uma tourada, ou a vida de um camponês arando a terra debaixo de chuva, satisfariam a fome da sua alma.

 

A Prioresa olhou-o de alto a baixo e disse:

 

É do dever a linha firme e recta.

É da beleza a linha sinuo sa.

Segue na vida a linha do dever,

Que há-de seguir-te a outra mais formosa.

 

O rapaz meditou no poema.

 

Um cristal de vinho e alguma fruta foram-lhe então oferecidos e ele, compreendendo que a Prioresa o queria calado, bebeu dois copos, que muito bem lhe fizeram, e em silêncio descascou as afamadas e sedosas pêras de Closterseven, e uma a uma colheu do cacho as baças uvas tintas. Sem olhar para a tia, era capaz de seguir todos os seus pensamentos. A urgência dramática que o assunto lhe impunha talvez tivesse assustado outra pessoa da sua idade, mas a ela não perturbou minimamente. Tinha como antepassados grandes senhores da guerra, hábeis na preparação das campanhas, mas que também foram capazes de puramente ceder à inspiração no momento certo.

 

Boris compreendia que, para ela, nestes instantes, a sala vermelha se enchia de jovens virgens de alto nascimento - morenas ou louras, esbeltas ou junescas, boas donas de casa, boas cavaleiras, netas de amigas e companheiras da sua juven tude - todo um exército de jovens mulheres que ela passava em revista, sem que alguma pudesse esconder excelências ou defeitos dos seus olhos penetrantes. Mentalmente já lambia os lábios, como um velho connaisseur que vai percorrendo a sua adega, e o próprio Boris, seguindo-a em pensamento, era o mordomo que levantava a candeia, alumiando.

 

Nesse instante a porta abriu-se e o velho criado da Prioresa entrou de novo, desta vez com uma carta numa bandeja de prata, que lhe apresentou. Ela pegou na carta com mão trémula, como se não suportasse mais outra catástrofe. Leu-a até ao fim, releu-a, e ruborizou-se frouxamente.

 

- Está entregue, Johann - disse ela, guardando a carta nas sedas do regaço.

 

Ficou por algum tempo imersa em pensamentos. Depois voltou-se para o rapaz, os seus olhos escuros tão límpidos como cristais.

 

- O menino atravessou a minha nova plantação de abetos - disse ela com a animação de quem fala de um passatempo favorito. - Qual é a sua opinião?

 

O plantio e a conservação das florestas eram, de facto, um dos maiores interesses na vida da Prioresa. Gostosamente falaram, por algum tempo, de árvores. Não havia nada melhor para a saúde, dizia ela, que o ar da floresta. Ela mesma nunca fora capaz de passar bem a noite na cidade ou nos campos, mas deitar-se à noite sabendo que as árvores se sucediam por léguas em redor, as raízes profundas na terra, as copas movendo-se no escuro, considerava ela ser um dos prazeres da vida. A floresta sempre fizera bem a Boris, quando ele ia ficar a Closterseven em pequeno. Mesmo agora ele notava a diferença, depois que permanecia na cidade por longo tempo, e ela expressou o desejo de o ver ali mais vezes.

 

- E quem, Boris - disse ela, saltando bruscamente de assunto, e com uma benevolência alegre e resoluta - quem, já que falamos nisso, poderia ser realmente melhor esposa para si do que essa grande amiga sua, e minha, a pequena Athena Hop ballehus?

 

Nenhum outro nome associado à ideia de casamento seria para Boris mais inesperado. A surpresa foi tanta que ele não respondeu. A própria frase lhe soara absurda. Nunca ouvira Ninguém referir-se a Athena como pequena, e lembrava-se de ela ser meia polegada mais alta do que ele. Mas que a Prioresa lhe chamasse sua grande amiga revelava uma completa transformação, pois, desde que a filha do vizinho se fizera uma rapariga, sua tia e sua mãe, que raramente estavam de acordo, aliaram-se para o manter afastado de Athena.

 

Enquanto o seu espírito passava da inexplicável reviravolta da velha senhora para o efeito que ela teria no seu próprio destino, compreendeu que a ideia não lhe desagradava. O burlesco sempre fora do seu agrado, e talvez fosse uma stravaganza de primeira água levar Athena para a cidade como sua esposa. Por isso, quando olhou para a tia, o seu rosto era o de uma criança.

 

- Tenho toda a fé no seu discernimento, tia Ca-thinka - disse ele.

 

A Prioresa falava agora muito lentamente, sem o olhar, como se não quisesse misturar às suas as impressões de uma outra alma.

 

- Não iremos perder tempo, Boris - disse ela. - Nunca tive por hábito adiar seja o que for.

 

E quando ela diz nunca, é mesmo nunca, pensou Boris.

 

- Vá vestir o seu uniforme enquanto eu escrevo uma carta ao Conde velho. Dir-lhe-ei que o menino me confiou os segredos do seu coração, dos quais depende toda a sua felicidade, e pelos quais a sua querida mãe não pôde demonstrar simpatia, e o menino tem de se preparar para ir lá levá-la dentro de meia hora.

 

- A tia Cathinka acha que Athena me vai querer para marido? - perguntou Boris, que se levantava. Sempre fora pronto a ter pena dos outros. Agora, contemplando o jardim e vendo duas velhotas emergirem, de galochas, de uma das alamedas onde foram dar o seu passeiozinho da tarde, ele pensou em Athena e sentiu pena dela por simplesmente existir.

 

- Athena - disse a Prioresa - nunca teve uma proposta de casamento. Du-vido que, neste último ano, tenha visto outro homem para além do Pastor Rosenquist, que vai lá jogar xadrez com o papá. Ela tem ouvido as senhoras desta casa discutir os brilhantes casamentos que o menino podia ter feito, se quisesse. Se Athena o não quiser para marido, meu pequeno Boris - disse ela, e sorriu ao rapaz com muita doçura - quero eu.

 

Boris beijou-lhe a mão por isto, reflectindo na excelência de tal projecto, e imediata e subitamente sentiu a terrível impressão de astúcia e força que teria se tocasse numa enguia eléctrica. As mulheres, pensou ele, quando já ultrapassaram a idade de se preocuparem em ser mulheres e podem dar largas à sua força, devem ser as criaturas mais poderosas do mundo inteiro. E fitou o fino rosto de sua tia.

 

Não, não daria resultado, pensou ele.

 

 

Boris partiu de Closterseven na britzka da Prioresa, com a carta junto ao coração e o aspecto ideal do jovem herói dos romanceiros. Notícias da sua pretensão espalharam-se mis teriosamente pelo convento, qual nova espécie de incenso, e tinham calado fundo no coração das velhas senhoras. Duas ou três foram sentar-se ao sol na longa varanda para o verem partir, e uma sua particular amiga, uma corpulenta solteirona, descorada de ter-se quedado à margem das luzes da vida durante cinquenta anos, foi junto à carruagem para lhe entregar três brancos ásteres de longos caules, colhidos no seu jardinzinho de Inverno. Assim partira, há trinta anos, o homem que ela amara, e depois mataram-no em Iena. Uma gentil melancolia velava sempre o seu rosto e a sua companheira dizia dela: «A condessa Anastásia carrega uma pesada cruz. A gula é uma pesa da cruz.» Mas foi a memória desse último encontro que fez com que os seus olhos, no rosto débil, ficassem sempre brilhantes como o claro esmalte azul. Sentia nesse momento a ressurreição de todo um destino, e entregava-lhe as flores como se elas fossem parte dela, misteriosamente tornando à vida uma segunda vez, como se tivessem sido três filhas por nascer, agora altas e casadoiras, companheiras daquela jornada na qualidade de da mas de honor.

 

Boris deixara no convento o seu criado, pois sabia que ele andava de paixão por uma criada das senhoras, e julgara seu dever mostrar agora simpatia por todos os amores legítimos. Queria estar só. A solidão sempre fora um dos seus prazeres, e raramente lhe era dado gozá-la. Ultimamente parecera-lhe impossível estar sozinho. Quando as pessoas não se ocupavam dele, tumultuando as suas emoções, ainda conseguiam impor-lhe uma linha de pensamento, a tal ponto que lhe doíam como exaustas essas convoluções do cérebro que se ocupam de tais assuntos. Mesmo a caminho do convento fora obrigado a ter os pensamentos de outrem. Desta vez, previa ele com uma grande alegria, e por toda uma hora, iria pensar no que bem quisesse.

 

A estrada de Closterseven a Hopballehus sobe mais de quinhentos pés e serpenteia por toda uma floresta de abetos. De vez em quando a floresta clareia e oferece uma vista magnífica sobre as largas extensões dos campos no vale. Agora, no sol da tarde, os troncos dos abetos eram vermelhos de fogo e a paisagem ao longe parecia fresca, toda azul e ouro pálido. Boris podia agora acreditar no que o velho jardineiro do convento lhe contava, era ele pequeno: que uma vez tinha visto, por esta altura do ano, por esta hora do dia, uma manada de unicórnios surgindo da floresta para virem pastar nas encostas soalheiras, as éguas brancas e malhadas, rosadas do sol, pisando graciosas e procurando com os olhos as crias, o velho ga-ranhão, ruano mais escuro, sorvendo o ar e escarvando o chão. Os aromas aqui eram de abeto e cogumelos, e os ares eram tão puros que fa-ziam bocejar. E no entanto, pensava ele, eram diferentes do ar primaveril; a coragem e a alegria vinham tocadas de desespero. Era o finale da sinfonia.

 

Lembrou-se Boris de como, numa tarde de Maio nem há seis meses atrás, fora levado ao jovem coração da Primavera, como agora ao triste coração do Outono. Ele e um jovem amigo tinham por distracção vagueado pelo país durante três semanas, visitando os lugares onde ninguém julgaria que estivessem. Tinham viajado num carrocim, levando consigo um pequeno teatro de bonecos, apresentavam as peças que eles próprios inventavam nas aldeias por que iam passando. O ar fora cheio de doces aromas, os rouxinóis cantaram a plena voz nas cerejeiras bravas, a Lua erguera-se mais pálida que o céu dessas noites primaveris.

 

Uma noite chegaram, muito cansados, a uma casa no meio de um prado; deram-lhes uma larga cama num quarto onde havia um relógio de escada e um espelho baço. Quando o relógio bateu as 12 badaladas, três raparigas muito jovens apareceram à porta, em camisa, cada uma com a sua vela acesa, mas a noite era tão clara que as pequenas chamas pareciam go-tas de luar. Evidentemente não sabiam que dois jovens viandantes tinham sido recolhidos e alojados no quarto grande, e que as observa vam em profundo silêncio por detrás das cortinas da vasta cama. Sem trocarem um olhar ou uma palavra, uma a uma elas deixaram cair a leve roupa no chão e completamente nuas abeiraram-se do espelho onde se miraram, a vela erguida acima da cabeça, absorvidas na sua imagem. Depois sopraram as velas, e no mesmo solene silêncio se encaminharam para a porta, os longos cabelos soltos, vestiram as camisas e desapareceram. Os rouxinóis continuavam a cantar lá fora, num verde arbusto jun to à janela. Os dois rapazes lembraram-se que aquela era a noite das Walpurgis e conjecturaram que haviam assistido a alguma bruxaria pela qual estas jovens esperassem ver o rosto dos futuros maridos.

 

Boris não passava por ali há muito tempo, desde que, em criança, fora no pequeno landau com a Prioresa em visita aos vizinhos. Reconhecia as curvas da estrada, mas elas tinham diminuído, e ele caiu em meditação sobre o tema da mudança.

 

A real diferença entre Deus e a espécie humana, pensou, era que Deus não suportava a permanência. Mal criava uma estação do ano, ou uma hora do dia, logo desejava algo de comple tamente diferente, e tudo desfazia com um só gesto. Mal somos jovens e felizes, logo a natureza das coisas nos precipita no casamento, no martírio ou na velhice. E a espécie humana apega-se ao estado existente das coisas. Por toda a sua vida os homens lutam por agarrar o momento, enfrentando uma force majeure. Até a sua arte nada mais é que a tentativa de capturar, a todo o preço, o momento singular - um estado de espírito, uma luz, a momentânea beleza de uma mulher ou de uma flor - e torná-lo eterno. É absolutamente errado, pensou, imaginar o Paraíso como sendo um imutável estado de bem-aventurança. Será provavelmente, ao invés, e segundo o verdadeiro espírito de Deus, um incessante carrocel, um torvelinho de mu-danças. Talvez nós, por essa altura, possamos estar em união com Deus e comecemos a apreciar a mudança. Pen sou com profunda tristeza em todos os jovens que foram, através dos tempos, perfeitos na beleza e no vigor - jovens faraós de rostos burilados, caçando em carros ao longo do Nilo, jovens sábios da China, vestidos de seda, lendo na sombra viva dos salgueiros - e que se transformaram, contra o seu desejo, em esteios da sociedade, em sogros, e autoridades em gastronomia e moral. Tudo isto era triste.

 

Uma curva da estrada e um largo panorama recortado na floresta trouxeram-no fa-ce a face com Hopballehus, ainda à distância. O velho arquitecto de há duzentos anos conseguira, por cons truir um edifício tão enorme, harmonizá-lo com a Natureza ao ponto de nela parecer uma pequena formação de rocha cinzenta. A quem estivesse agora na varanda, pensou Boris, eu e a britzka e os cavalos negros e pardos havíamos de surgir diminutos, irreconhecíveis.

 

Ao ver a casa, os seus pensamentos voltaram-se para ela. Sempre apelara à sua imaginação. Mesmo agora, que a não via há anos, acontecia-lhe sonhar com ela à noite. Era em si mesma fantástica, repousando num largo planalto, envolvendo-se em milhas de alamedas, fileiras de estátuas e fontes, construída numa fase tardia do barroco e hoje barrocamente delapidada e quase em ruínas. Parecia uma sorte de Olimpo, mais olímpica ainda pela asa da morte que sobre ela pairava. Nessa casa a existência do Conde velho e da filha tinham também o seu quê de olímpico. Viviam, mas de que maneira cumpriam as 24 horas do dia e da noite era um mistério para os humanos.

 

O Conde velho, que fora em tempos um brilhante diplomata, um cientista e um poeta, absorvera-se por longos anos num grande processo judicial que corria na Polónia, e que herdara do pai e do avô. Se o ganhasse, retomaria a posse das imensas riquezas e propriedades que em tempos pertenceram à família, mas sabia-se que ele nunca poderia ganhar esse processo, e que se arruinava assim a cada vez mais largos passos. Vivia nessas gigantescas angústias como nas nuvens, o que tornava indistintos todos os seus movimentos. Boris por vezes interrogava-se como seria o mundo aos olhos da filha. O dinheiro, se é que o vira alguma vez, sabia Boris que não ocupava um lugar na sua vida; o mesmo acontecia com a sociedade, ou aquilo a que se chama os prazeres da vida, e duvidava que alguma vez tivesse ouvido falar do amor. Só Deus saberia, pensava ele, se ela alguma vez se olhou num espelho.

 

A ligeira carruagem rolou num silvo sobre as camadas de folhas caídas no pá-tio. Em alguns lugares eram tão cerradas que chegavam aos joelhos do veado de Diana e quase cobriam os balaústres de pedra. Mas as árvores estavam nuas; só aqui e além uma solitária folha dourada tremia num alto ramo negro. Dobrando a curva da estrada surgiu o pátio fronteiro e a casa, majestosa como a Esfinge no poente. O sol parecia ter encharcado de luz as sombrias massas de pedra. Vermelhas refulgiam agora, a transformar o edifício em morada misteriosa, resplendente, onde as altas janelas eram estrelas vespertinas.

 

Boris saltou da britzka em frente à imensa escadaria de pedra, e dirigiu-se a ela, com a mão tacteando o lugar da carta. Nada se movia na casa. Era como entrar numa catedral. E, pensou ele, quando eu voltar a subir para esta carruagem, como irão ver os meus olhos tudo isto?

 

 

Neste momento as pesadas portas ao cimo da escadaria abriram-se de par em par, e o Conde velho surgiu no de-grau, lembrando o irado Sansão prestes a derrubar o templo dos Filisteus.

 

Ele era sempre uma figura formidável, curto de pernas e com o torso de um gi-gante, a cabeça poderosa ro-deada por uma juba de cabelos grisalhos e revoltos, como a de um poeta ou de um leão. Mas hoje ele parecia singularmente inspirado, preso de alguma tremenda emoção que o fazia cambalear. Imóvel ficou por momentos perscrutando o visitante, como um velho gorila macho postado junto ao covil e pronto a atacar; depois atirou-se escada abaixo, impondo ao jovem uma presença como a que teria o Todo-Poderoso se descesse, uma só e aquela vez, a escada de Jacob.

 

Santo Deus, pensou Boris ao subir a escada ao seu encontro, este velho sabe tudo e vai matar-me. Julgou ver estampar-se no rosto do Conde um triunfo assassino, os olhos inflamando-se de brilho. No instante seguinte sentiu dois braços que o rodeavam e um corpo tremendo contra o seu.

 

- Boris - exclamou ele - Boris, meu filho! - pois ele conhecia o rapaz desde pequeno e fora em tem-pos, sabia-o Boris, um dos adoradores da sua linda mãe. - Seja bem-vindo. Seja bem-vindo hoje a esta casa. Já sabe?

 

- Já sei? - disse Boris.

 

- Ganhei a causa - disse o velho.

 

Boris quedou-se a fitá-lo.

 

- Ganhei a minha causa na Polónia - repetiu. - Lariki, Lipnika, Patnov Grabovo''' são todas minhas, como o foram dos meus avós.

 

- Os meus parabéns - disse Boris devagar, tomado nos pensamentos que, estranhamente, agora se formavam. - De todo o coração. É de facto uma notícia inesperada.

 

O Conde velho agradeceu-lhe repetidas vezes, e mostrou-lhe a carta do advogado, que acabara de receber e ainda segurava na mão. Ao falar com o rapaz fê-lo com vagar a princípio, procurando as palavras, como alguém desabituado delas, mas à me-dida que falava recobrou a voz antiga e a fluência que em tempos fascinara tanta gente.

 

- Uma grande paixão, Boris - disse ele - que realmente e verdadeiramente nos devora o coração e alma, não podemos senti-la por alguém em particular. Talvez não possamos senti-la por tudo o que nos possa amar também. Esses oficiais que amaram os seus exércitos, esses nobres que amaram a terra, eles, sim, podem falar da paixão. Meu Deus, como tenho sofrido o peso de toda a terra de Hopballehus sobre o meu peito, à noite, quando imaginava tê-la conduzido a uma batalha perdida. Mas isto agora - disse ele, respirando fundo - isto é a felicidade. Boris compreendeu que não era o gosto da riqueza o que assim fremia na alma do velho, mas o triunfo da jus-tiça, estando a virtude do universo inteiro, para ele, concentrada na sua pessoa. Começou ele então a explicar o julgamento em pormenor, ainda com uma das mãos no ombro do jovem, e Boris sentiu que era bem-vindo em seu coração como o amigo que sabia ouvir.

 

- Entre, entre Boris - disse ele - vamos beber um copo os dois, do vinho que eu tenho guardado para o dia de hoje. O nosso bom Cura está cá. Mandei chamá-lo quando recebi a carta, para me fazer companhia, porque não imaginava que o meu querido Boris vinha cá.

 

No prodigioso salão, ri-camente ornamentado a mármores negros, um pequeno canto fora tornado habitável por algumas cadeiras e uma mesa coberta com os livros e os papéis do Conde. Sobre ela pendia um gigantesco quadro, muito escurecido pelo tempo, um retrato equestre de um antigo senhor de Hopballehus, firmando-se, muito calmo, sobre um cavalo de cabeça pequena, que se erguia em curveta, e apontando com um rolo de papel para um campo de batalha pintado como ao longe abaixo da barriga do cavalo. O pastor Rosenquist, homem pequeno de faces vermelhas, de há muitos anos o guia espiritual da família, e que Boris bem conhecia, estava sentado numa das cadeiras, aparentemente mergulhado em profundos pensamentos. Os sucessos do dia tinham trazido a desordem às suas teorias, coisa que para ele era um mais sério desastre do que se tivesse ardido o presbitério. Sofrera a pobreza e o infortúnio toda a vida, e havia, no transcurso dela, conseguido viver segundo um sistema de contabilidade espiritual, onde as provações terrenas se tornaram um investimento que sacava juros no outro mundo. A sua conta pessoal, sabia-o ele, compunha-se de pequeninas moe das, mas tomara grande interesse pelas mágoas do Conde, que via como um fa-vorito do Senhor, e cujos tesouros continuamente se acumulavam na Nova Jerusalém como safiras, crisóprasos e ametistas, propagando-se a si mesmos. Agora estava perturbado e não sabia o que pensar, o que para ele era uma situação terrível. Procurara conforto no Livro de Job, mas nem mesmo nele as figuras concordavam, o Beémot e o Leviatão apa-reciam como num relato das suas próprias perdas e ganhos. Tudo aquilo lhe parecia, aliás, ser da natureza daquela dádiva que, segundo o Eclesiastes, destrói o coração, e ele não podia fu-gir de pensar que este velho, que ele tanto amava, ia trilhando os maus caminhos de ver anteciparem-se na Terra os estipêndios futu-ros.

 

- Como eu gostava - disse o Conde velho, ao trazer e abrir uma garrafa dourada - que o meu pobre pai e o meu querido avô aqui estivessem connosco neste dia, bebendo deste vinho. Quando passava as noites acordado, sentia que eles me acompanhavam nessa vigília, lá em baixo, dentro dos seus sarcófagos. Estou feliz - prosseguiu, ainda de pé, erguendo o copo - por ser o filho de Abunde (era o nome que outrora dava à mãe de Boris) que esta noite bebe comigo.

 

Na exuberância do seu coração dava palmadinhas ternas nas faces de Boris, enquanto o seu rosto irradiava uma suavidade que estivera exilada há muitos anos; e o rapaz, que sabia reconhecer as boas coisas, invejava ao velho esta inocência de coração.

 

- E à saúde do nosso bom Cura - disse o Conde, voltando-se para ele. - Meu amigo, o senhor verteu lágrimas de compaixão nesta casa. Ei-las que renascem, feitas vinho.

 

Os modos do Conde velho aumentaram o desassossego do pastor. Parecia-lhe que só um frívolo coração podia mo-ver-se assim tão facilmente numa nova atmosfera, esquecendo a passada. Ele próprio educado num sistema de exames e promoções, não estava preparado para compreender uma raça criada nas leis da sorte na guerra e nos favores da corte, adaptada ao imprevisível e acostumada ao inesperado, que julga ser a segurança, ou mesmo a salvação, a menos necessária de todas as coisas. E voltaram a lembrar-lhe as palavras da Escritura: «Ao sinal da trombeta, diz: Vamos!»: E pensou que talvez o seu velho amigo tivesse razão, afinal.

 

- Sim, sim - disse ele sorrindo - a água foi realmente mudada em vinho, um dia. É sem dúvida uma boa coisa, o vinho. Mas Vossa Excelência sabe o que os nossos bons camponeses dizem: os filhos gerados no vinho terão mau fim. Assim, temos razão para temer que o mesmo aconteça às esperanças e às emoções nascidas do vinho. Embora isso - acrescentou - não se aplique, evidentemente, aos filhos das bodas de Caná, a que me referia.

 

- Em Lariki - disse o Conde - há no tecto do vestíbulo um corno de caça pendurado de uma corrente de ferro. O avô da minha avó era um homem de força hercúlea. Quando ao cair da tar-de entrava o portão, costumava agarrar no corno e, elevando-se do chão com o seu cavalo, assoprava nele. Sempre soube que posso fazer o mesmo, mas pensava que nunca eu haveria de entrar esse portão. Athena talvez o possa fazer também - acrescentou, pensativo.

 

Voltou a encher os copos.

 

- Então como acontece ter cá vindo hoje? - perguntou ele a Boris, num sorriso que o envolvia a ele e ao seu uniforme de gala, como se a sua vinda fora um feito ímpar. - Que o traz a Hopballehus?

 

Boris sentiu a franqueza do velho reflectir-se no próprio coração, como um céu azul no mar espelhado. Fitou o rosto do amigo.

 

- Vim aqui hoje - disse - para pedir Athena em casamento.

 

O velho lançou a Boris um olhar imenso, luminoso.

 

- Pedir Athena em casamento! - exclamou. - Veio hoje cá para isso?

 

Ficou por momentos profundamente comovido.

 

- Estranhos de facto são os caminhos de Deus - disse.

 

O pastor Rosenquist ergueu-se da cadeira e voltou a sentar-se, refazendo as suas contas.

 

Quando o Conde velho voltou a falar, estava muito transformado. A Embriaguez dissipara-se, e ele parecia ter recuperado nas forças da alma a boa ordem. Era este equilíbrio que lhe dera a fama outrora, quando, jovem ainda, na embaixada em Paris, na estreia da sua tragédia A Ondina, se bateu em duelo com duas pistolas no entr'acte.

 

- Boris, meu filho - disse ele - veio aqui para me dar uma alma nova. Tenho vivido com o rosto voltado para o passado, ou para esta hora de triunfo. Este é o primeiro momento em que penso no futuro. Vejo que te-rei de descer de um pináculo para caminhar sobre a estrada. As suas palavras abrem-me um grande panorama. Que irei eu ser? O patriarca de Hopballehus, coroando as virtuosas donzelas da aldeia? O vovô, a plantar ma-cieiras? Ave, Hopballehus, naturi te salutem.

 

Boris lembrou-se da carta da Prioresa, e contou ao velho que tinha passado por Closterseven. O Conde perguntou pela senhora e, ávido sempre de qualquer sorte de papéis, pôs os ócu-los e todo se absorveu na leitura da carta. Boris sentou-se a beber o seu vinho numa feliz disposição de espírito. Durante a última semana ele já duvidara que a vida alguma vez encerrasse alguma coisa agradável. Agora o acolhimento em casa do Conde velho causara-lhe uma impressão absolutamente deliciosa, e afinal ele sempre passara facilmente de um estado de espírito a outro.

 

Terminada a leitura o Conde pousou a carta e, mantendo as mãos cruzadas sobre ela, ficou por longo tempo calado.

 

- Dou-lhe - disse ele por fim, com vagar e solenidade - a minha bênção. Primeiro, devo-a ao filho de tal mãe, e tal pai, em segundo lugar devo-a ao jovem que, vejo-o agora, há tanto tempo ama, contra tudo e contra todos. E finalmente sinto que foi mandado aqui, Boris, nesta noite, por outras mãos mais poderosas do que as suas. Dou-lhe, em Athena, a chave de todo o meu mundo. Athena - repetiu, como se lhe desse alegria pronunciar o nome da filha - é ela própria como um corno de caça em plena floresta.

 

E como se, sem quase o saber, alguma triste, estranha lembrança da sua juventude se tivesse apossado dele, acrescentou, quase num murmúrio:

 

- Dieu que le son du cor est triste au fond du bois.

 

 

Enquanto estiveram conversando um forte vento levantou-se lá fora. O dia fora calmo. Esta ventania viera com o crepúsculo, como um animal nocturno. Varria as longas paredes, dobrava as esquinas da casa, e erguia as folhas mortas que rodopiavam no ar. Em meio do vento os passos de Athena, que estivera nas cavalariças desatrelando do cabriolé o cavalo do pastor Rosenquist, cruzaram o pátio e subiram a escada.

 

O Conde velho, que estivera demorando o olhar no rosto de Boris, fez um mo-vimento súbito, como se o alarmasse alguma coisa que ele próprio não compreendia.

 

- Não fale com ela esta noite - disse ele. - Compreenda: o nosso amigo, o pastor, Athena e eu temos passado tantos serões aqui, os três. Seja este o último. Eu mesmo lho direi, e o meu querido filho virá de novo a Hopballehus amanhã de manhã.

 

Boris achou que era um bom plano. Ainda o Conde falava quando a filha entrou na sala, vestida com a sua grande capa.

 

Athena era uma forte rapariga de 18 anos, seis pés de altura, larga em proporção, e com dois ombros capazes de erguer e carregar uma saca de farinha. Aos 40 anos seria enorme, mas agora, direita como um pinheiro, era demasiado jovem para ser gorda. Sob a cabeleira flamejante, a testa nobre era alva como o leite; mais abaixo as faces, como os largos pulsos, cobriam-se de sardas. Era porém tão loura e clara de pele que parecia iluminar o salão ao entrar, como a luz que inunda a casa quando há neve lá fora. Os claros olhos de Athena tinham um aro mais escuro à volta da íris - dois olhos dignos de uma jovem leoa ou de uma águia - mas, à excepção deles, o semblante da forte rapariga era sereno, e no rosto redondo lia-se a expressão atenta e reservada que de ordinário se encontra nos surdos. Dantes, ao estar junto dela, Boris pensara por vezes na velha balada sobre a filha do gigante que, encontrando um homem na floresta, surpresa e satisfeita o leva para casa com a intenção de fazer dele o seu brinquedo. O gigante ordena-lhe que o deixe ir embora, dizendo-lhe que ela o irá por certo partir.

 

O próprio gigante, o Conde velho, demonstrou-lhe um cavalheirismo antiquado, que pareceu a Boris semelhante a uma velha moeda de ouro puro, desenterrada do chão, e mantendo o seu valor mesmo já não estando a circular. Dizia-se que o Con de fora, na juventude, um dos amantes da princesa Paulina Borghese, a mais bela mulher do seu tempo. Ele vira a Vénus Anadiomena face a face, e por amor a essa visão rendia homena gem às aparências da deusa, mesmo quando mais toscamente talhadas na madeira ou na pedra. Sem pretensões à beleza, Athena havia crescido numa atmosfera que incensava a beleza feminina.

 

Athena piscou os olhos um momento, perante a luz e o estranho, e de facto Boris, no seu alvo uniforme e alta gola dourada, nos caracóis reluzentes de pomada fazendo como que um halo de luz à sua volta, era um impressionante meteoro na grande sala escura. Todavia, na segurança da própria força, Athena perguntou-lhe - sustentando-se, como era seu hábito, numa só perna, qual grande cegonha - notícias de sua tia e das senho ras de Closterseven. Co-nhecia pouquíssima gente, e por estas velhotas que lhe haviam dado muitos bons conselhos, embora um tanto chocadas pela falta de romantismo das suas proporções, ela tinha, pensou Boris, aquela admiração que a filha do camponês sente numa feira pelos dançarinos hábeis que sobem à corda, recamados de lantejoulas. Se ela casar comigo, pensou ele, ao erguer-se e falar com ela numa voz doce como o mel, sob o olhar carinhoso do Conde velho que os envolvia a am-bos, ela poderá admirar-me as piruetas; mas estará a minha vida de casado condenada a ser uma perpétua feira? E se eu cair da corda - ela ajudar-me-á a levantar ou voltar-me-á as costas, abandonando-me?

 

Athena pediu-lhe que informasse a Prioresa que tinha visto o macaco numa dessas noites no pátio de Hopballehus, sentado no pedestal da estátua de Vénus, no lugar onde outrora estivera um pequeno Cupido, hoje quebrado. Falando do ma-caco, perguntou-lhe se não achava ele curioso que o solicitador do pai, na Polónia, tivesse um macaco da mesma espécie, que também viera de Zanzibar. O Conde velho falou então dos ídolos dos Wendes, região de onde a sua família era originária, e entre os quais a deusa do amor tinha o as-pecto e a face de uma linda mulher mas, se a voltássemos, apresentava do outro lado a imagem de um macaco. Como, perguntava ele, souberam essas selvagens tribos nórdicas da existência dos macacos? Poderia ter havido macacos vivendo nas sombrosas florestas de pinheiros dos Wendes, há mil anos atrás?

 

- Não, não é possível - disse o pastor Rosenquist. - Seriam sempre muito frias para esses animais. Mas há certos símbolos que parecem ter sido propriedade comum de todos os iconólatras pagãos. Seria um tema interessante a estudar; talvez se deva à ideia do pecado original.

 

Mas como, perguntou Athena, como sabiam eles, no caso dessa deusa do amor, qual era o lado da frente e qual o de trás?

 

Boris, nesta altura, mandou tirar a carruagem e despediu-se. O Conde velho parecia penalizado por mandá-lo embora, e arrependido da sua dureza para com um apaixonado. Apresentou desculpas pelo mau tempo em Hopballehus, segurou a mão do jovem com os olhos cheios de lágrimas, e disse a Athena que o acompanhasse à porta. O Pastor Rosenquist, por seu lado, só podia sentir satisfação em ver partir alguém que tanto se parecia com um anjo sem o ser.

 

Athena percorreu o pátio com Boris. À luz das lanternas da carruagem a grande capa, que esvoaçava em torno dela, desenhava estranhas sombras no cascalho, como um par de longas asas. Sobre o vasto relvado, de uma cor cinzenta de ferro ao luar, a Lua aparecia e desaparecia num céu de tempestade.

 

Boris sentiu nesse momento verdadeira pena de deixar Hopballehus. Aquele mundo caótico fizera-o recordar a infância, e parecia-lhe infinitamente preferível à ordem maquinal da existência que acharia no convento. Ficou por momentos em silêncio junto de Athena. As nuvens apartavam-se, e algumas constelações surgiam claras no céu. A Ursa Maior lá estava, exortando: mantém a individualidade por entre a multi dão.

 

- Ainda se lembra da caçada à ursa? - perguntou Boris a Athena.

 

Às crianças não fora permitido assistir à caçada, mas eles tinham-se escapulido e juntado aos caçadores do Conde, num dia muito quente de Julho, lá em cima na montanha. Dois cães ma lhados haviam morrido, e Boris lembrava-se do terrível tumulto que fora a luta, e dos rápidos movimentos da fêmea, enorme, castanha, maltratada, dentro das moitas de abetos e fetos, e de vê-la num relance rugindo de fúria, a língua vermelha de pendurada.

 

- Sim, às vezes - disse Athena, os seus olhos, como os dele, fitos no céu, seguindo uma estelar caçada à ursa. - Era à ursa a que os camponeses chamavam a Imperatriz Catarina. Tinha morto cinco homens.

 

- Ainda é republicana, Athena? - perguntou ele. - Em tempos queria cortar a cabeça a todos os tiranos da Europa.

 

O rosto de Athena, à luz da lanterna, ganhou mais cor.

 

- Sim - respondeu - sou republicana. Li a história da Revolução Francesa. Os reis e os padres eram indolentes e licenciosos, cruéis para o povo, mas esses homens que se intitularam «a Montanha» e colocaram o vermelho barrete frígio, esses eram corajosos. Danton foi um verdadeiro patriota, e eu gostava de o ter conhecido; como o foi o Abbé Sieyès.

 

No ar nocturno ela entusiasmava-se.

 

- Gostava de ver o lu-gar em Paris onde estava a guilhotina - disse ela.

 

- E usar o barrete frígio? - perguntou-lhe Boris.

 

Athena assentiu brevemente, imersa em pensamentos. Então, como se quisesse certificar-se de que ele entenderia cabalmente a verdade, ela principiou a dizer uns versos, deixando-se ar rebatar pelo pathos das pa-lavras:

 

O Corse á cheveux plats, que la France était belle

au grand soleil de Messi dor.

C'était une cavale indomp table et rebelle

sans freins d'acier, ni rênes d'or.

Une jument sauvage, á la croupe rustique,

fumant encore du sang des rois.

Mais fière, et d'un pied libre heurtant le sol an tique.

Libre, pour la première fois!

 

Quando Boris se afastou de Hopballehus o vento soprava forte. A Lua corria os céus por trás de nuvens finas, fantásticas; o ar era frio. Deve andar perto do ponto de congelação, pensou ele. As lanternas perseguiam as árvores e as sombras, atirando-as em todas as direcções à sua volta. Um largo ramo seco de uma árvore, subitamente partido pelo vento, veio despenhar-se à frente dos cavalos assustados. Ele pensou, so zinho na escuridão, nas três pessoas que ficaram em Hop ballehus, e riu.

 

Continuando o caminho, lá em baixo no vale romperam luzes. Como se brincassem com ele, apareceram por entre as árvores, fitaram o seu rosto e desapareceram de novo. Um grande grupo de luzes fez-se como um reflexo, na Terra, das Plêiades. Eram os lampiões de Closterseven.

 

E, Subitamente ele deu-se conta que, algures, alguma coisa não estava bem, mesmo nada bem, e fora de toda a ordem. Era tão forte a sensação, tão inconfundível, como se uma mão gelada lhe tivesse arrepiado por um momento o couro cabeludo. Os cabelos chegaram a pôr-se em pé. Durante alguns minutos sentiu um verdadeiro e genuíno medo, e foi preso de um extraordinário terror. Na estranha turbulência dessa noite, em meio à vida enlouquecida das coisas mortas que o rodeavam, ele sentiu o próprio corpo, a britzka, os cavalos cinzentos e negros, coisas terrível e absurdamente pequenas, desamparadas e em perigo.

 

Dobrando a curva, ao entrar na longa alameda de Closterseven, as lanternas subitamente iluminaram um par de olhos cintilantes. Uma pequeníssima sombra atravessou a estrada e desapareceu na treva mais profunda dos arbustos da Prio-resa.

 

À sua chegada ao convento, disseram-lhe que a Prioresa tinha ido deitar-se. «Para que as forças - pensou Boris - a não abandonem amanhã.»

 

Uma ceia o aguardava na sala-de-jantar privada da Prioresa, que ela própria redecorara havia pouco. Antes fora branca, e os seus ornamentos de estuque tinham talvez cem anos. Agora estava belamente forrada a papel, cujos desenhos, sobre um fundo amarelo escuro, representavam diversas cenas da vida oriental. Uma bailarina dançava à sombra de uma palmeira, tocando tamborim, enquanto velhos de longas barbas e turbantes vermelhos ou azuis a observavam. Um sultão presidia ao tribunal sob um pálio dourado, e um grupo de caçadores a cavalo, precedidos pelos galgos e pelos negrinhos que os levavam, ia passando por umas ruínas. A Prioresa tinha também su-primido os candelabros antigos, e iluminara a mesa com altos, alegres, modernos candeeiros Carcel de porcelana azul com rosas pintadas. No aconchego da sala aquecida, Boris ceou sozinho. Como - pensou ele - Don Giovanni no último acto da ópera. «Até chegar o Comendador», acrescentaram os seus pensamentos por ele. Lançou um olhar fugaz à janela. O vento enfurecia-se ainda lá fora, mas a noite inquietante havia sido afastada quando se correram os pesados reposteiros.

 

 

Tia e sobrinho tomaram juntos o pequeno-almoço em agradável harmonia, de quando em vez absortos no samovar de prata da Prioresa, onde os seus rostos curiosamente se distorciam. Um pequeno sol radioso também ali brilhava, pois o dia que se seguiu à tempestade nocturna estava sereno e claro. O vento seguiu para outras paragens, deixando nus e expostos os jardins de Closterseven.

 

Boris tinha relatado à velha senhora o que se passara em Hopballehus, e ela escutara-o com grande contentamento e um profundo interesse no destino do seu velho amigo e vizinho. Incapaz de refrear-se, ela deixou a imaginação voar pelas glórias que aguardariam o rapaz no futuro, mas fê-lo com tanta delicadeza como se o Conde e Athena estivessem presentes.

 

- Julgo, meu querido - disse ela - que Athena devia agora viajar e conhecer um pouco do mundo. Quando eu tinha a idade dela, o papá levou-me a Roma e a Paris, e eu privei com muitas celebridades. Que prazer para um homem de talento acompanhar essa criança tão dotada a esses lugares, e mostrar-lhe o que é a vida.

 

- Sim - disse Boris, servindo-se de mais café - ela ontem disse-me que gostaria de ver Paris.

 

- Naturalmente - disse a Prioresa. - A pobre criança nunca teve um chapéu de Paris na sua vida. Em Lariki - prosseguiu, os pensamentos correndo em vaivém -, há esplêndidas caçadas ao urso e ao javali. Parece que estou a ver a sua figura divina, Boris, de lança em riste. Em Lipnika a adega está repleta de Tokay, oferecido em tempos pela imperatriz Maria Teresa. Athena há-de servi-lo com a liberalidade característica da família. Em Patnov Grabovo encontra-se a famosa série de jets d'eaux construídos pelo grande astrónomo dinamarquês Ole Roemer, o mesmo que fez as grandes eaux de Versalhes.

 

Enquanto assim se entretinham com as felizes possibilidades que a vida oferecia, o velho Johann trouxera duas cartas que haviam chegado ao mesmo tempo, embora a carta dirigida à Prioresa tivesse vindo pelo correio e aquela endereçada a Boris fosse trazida por um moço de Hopballehus. Boris, erguendo os olhos após a leitura das primeiras linhas, reparou no sorrisinho fino e duro que se desenhara no rosto da velha se-nhora, absorvida na sua carta. Não iria sorrir por muito tempo, pensou.

 

A carta do Conde velho rezava assim:

 

Escrevo-lhe, meu caro Boris, porque Athena se recusa a fazê-lo. É com profundo pesar e arrependimento que empunho a pena; na verdade, eu hoje sei o que é o desejo de cobrir a cabeça com cinzas, de que falam os autores antigos.

 

Tenho a dizer-lhe que minha filha rejeitou o pedido que ontem à noite me parecia vir coroar as benesses com que o destino estava fa-vorecendo a minha casa. Ela não sente, valha a verdade, qualquer relutância em aceitar esta aliança em particular, mas diz-me que não se casará nunca, e que lhe é impossível pensar sequer nesse assunto.

 

De certo modo, é bom que seja eu a escrever-lhe esta carta. Porque neste infortúnio a culpa é minha, a responsabilidade é toda minha.

 

Eu, que tive nas minhas mãos esta jovem vida, fiz da sua forte juventude aquele que me leva o archote para me iluminar na descida ao sepulcro. Passo a passo, nesse declinar da vida, o seu ombro tem sido o meu amparo, que ela nunca mo negou. Agora ela não quer - não pode - erguer os olhos.

 

Os camponeses da nossa província têm um ditado que diz: os filhos do casamento não podem olhar o Sol; só os bastardos o podem fazer. Ai de mim, até que ponto é a minha pobre Athena a filha legítima do meu corpo, da minha raça, e do meu destino! Tão incapaz é ela de olhar para o Sol, que não teme qualquer sorte de escuridão e os olhos se doem com a luz. Fiz da minha jovem pomba uma ave nocturna.

 

Ela para mim tem sido a filha e o filho, e com os olhos da alma a tenho visto envergar as velhas armaduras de Hopballehus. Demasiado tarde compreendo que ela não as veste como um jovem São Jorge, lutando contra os dragões, mas como Azrael, o anjo da morte da nossa casa. Ela de facto tem-se fechada aqui dentro e, por todos os anos futuros da sua vida, recusa-se a sair dela.

 

Nunca pequei contra o passado, mas vejo agora que tenho pecado contra o futu-ro; e, com razão, o futuro nada quer comigo. Sobre o túmulo de Athena donzela deporei flores por essas ge rações que não nasceram, e em cujos rostos, por momentos, meu querido filho, eu julguei ver os seus traços. Peço-lhe a si o meu perdão, e peço-o à tanta energia condenada, ao talento e à beleza por haver, às coroas de louros e de murta que ficaram perdidas. São delas as cinzas com que me cubro!

 

Boris estendeu a carta à Prioresa sem uma palavra, e encostou o queixo à mão para observar o seu rosto enquanto lesse. Quase a realidade ultrapassava a expectativa. Ela descoloriu-se numa tão mortal palidez que ele temeu que desmaiasse ou morresse, enquanto chamas rubras lhe subiram à cara como se alguém a açoitasse com um chicote. Sabe-se que o rei Salomão encerrou os mais proeminentes demónios da Judeia em garrafas, as selou e as mandou sepultar no fundo dos mares. Que diabólica agitação, nas profundezas, de fúria impotente! Semelhante, pensou Boris, às lutas que silenciosamente se travam no peito magro e seco das velhas, selado pela cera salomónica da educação. Provavelmente faltara-lhe a vista, e os damascos vermelhos da sala escureciam perante os seus olhos, porque ela pousava a carta sem ter tido tempo de a terminar.

 

- O quê! O quê! - disse numa voz rouca e quase inaudível. - O que lhe escreve o Poeta?

 

Faltava-lhe o ar; ergueu a mão direita e agitou o in-dicador, que tremia.

 

- Ela não quer casar consigo?! - exclamou.

 

- Ela não se quer casar com ninguém, tia - disse Boris para a consolar.

 

- Ah, não! Com ninguém? - escarneceu a velha senhora. - Uma Diana, então, é isso? Mas o bonito Acteon que o menino não fa ria, meu pobre Boris! E tudo o que lhe oferece, a posição, a influência, o fu-turo, isso nada conta para ela? O que é que ela quer da vida?

 

Olhava para a carta, mas na sua agonia pegara-lhe, enredada, de cabeça para baixo.

 

- Ser uma figura de pedra sobre um sarcófago, na escuridão, no silêncio, para sempre? Temos então aqui uma virgem fanática en plein dixneuvième siècle? Vraiment tu n'as pas de la chance! Aqui não há nenhum horror vaccui.

 

- A lei do horror vaccui - disse Boris, que estava realmente assustado, para lhe desviar a atenção - não se verifica a mais de trinta e dois pés de altura.

 

- A mais de quê?

 

- De trinta e dois pés - disse ele.

 

A Prioresa encolheu os ombros. Volveu para ele uns olhos cintilantes, puxando da carta que tinha vindo pelo correio até aparecer dela metade no seu bolso de seda, e voltou a guardá-la.

 

- Ela não vai ter nada - disse ela lentamente - e o menino não vai dar nada. Parece-me, em toda a modéstia, que faziam um belo par. Eu própria, dando-vos a minha bênção, nada tenho a objectar. Já era a norma dos meus antepassados: onde o nada existe, le Seigneur a perdu son droit. Boris, o menino vai voltar para a corte, e para a velha Rainha Viúva e para o seu Capelão, pelo mesmo caminho por onde veio. Porque - acrescentou ela, mais lentamente ainda - a porta por onde se entra é a porta por onde se sai.

 

Estas palavras impressionaram-na mais a ela que ao sobrinho, que já as tinha ouvido antes. A Prioresa caiu num grande silêncio.

 

Boris começou a sentir um nítido mal-estar, e quis pôr termo à conversa. Compreendia muito bem que ela queria fazê-lo sofrer. Enquanto fora feliz, gostou de rodear-se de pessoas felizes. Agora, torturada, tinha de rodear-se do mesmo que havia dentro de si, ou, como no caso do vácuo de que falara, ficaria esmagada. Mas neste caso em particular as próprias circunstân cias eram os seus mais fortes aliados. É verdade que ele ainda não se capacitara do que significaria a recusa de Athena. Se a velha se-nhora continuasse a açoitá-lo assim, com todas as suas forças, a infelicidade daquelas últimas semanas voltaria a desabar sobre a sua cabeça. Subitamente a Prioresa voltou-lhe as costas e encaminhou-se para a janela como se quisesse atirar-se dela abaixo.

 

Em meio ao seu infortúnio pessoal, Boris não podia impedir-se de pensar nas outras duas pessoas dessa trindade. Talvez Athena estivesse caminhando pelos pinhais de Hopballehus, o rosto tão desvairadamente sério como o da velha senhora naquela sala. Julgou ver-se no seu alvo uniforme, como uma marioneta, alternadamente puxada pela velha senhora, sobremaneira decidida, e pela também sobremaneira decidida Athena. Como se dava que as coisas ti-vessem tanto significado para elas? Que forças tinham dentro de si estas mulheres exaltadas, que as faziam preferir a morte à capitulação? Muito possivelmente ele tinha opiniões tão vincadas sobre o casamento como outra pessoa qualquer, mas não torcia as mãos nem perdia a fala.

 

A Prioresa abandonou a janela e veio ter com ele. Estava completamente mudada e já nada impedia o seu an-dar. Pelo contrário, ela parecia trazer-lhe uma grinalda para o coroar. Tão mais leve se tornara, como se na janela se tivesse li-bertado de algum peso, que flutuava agora, com graça, a uma polegada acima do chão.

 

- Meu querido Boris - disse ela - Athena tem ainda coração. Deve ao companheiro de folguedos da sua infância o vê-lo, dar-lhe ocasião a que ele lhe fale, e responder-lhe de viva voz. Dir-lhe-ei tudo isto, e vou mandar que levem a carta imediatamente. A filha de Hopballehus tem o sentido do dever. Ela virá.

 

- Onde? - perguntou Boris.

 

- Aqui - disse a Prioresa.

 

- Quando? - perguntou Boris, olhando em seu redor.

 

- Esta noite, para a ceia - disse a tia.

 

O seu sorrisinho era gentil, faceto mesmo, e ainda a sua boca parecia tornar-se cada vez mais peque-na, como um botão de rosa muito gracioso.

 

- Athena - disse ela - não pode sair de Closterseven amanhã sem ser'''

 

Fez uma breve pausa, olhou à direita, à esquerda, e enfim para ele.

 

- Nossa! - disse, sorrindo, num rápido murmúrio.

 

Boris fitou-a. O seu rosto era fresco como o de uma rapariga.

 

- Meu filho, meu querido filho - exclamou, na sú-bita explosão de uma paixão gentil e profunda - nada, nada se deve opor à sua fe-licidade!

 

 

Esta grande ceia da sedução, que haveria de ser um marco na existência dos que nela tomaram parte, foi servida na sala-de-jantar da Prioresa, e grupos de estadistas orientais e bailarinas a ela assistiram das paredes. A mesa estava bela mente decorada com camélias vindas do laranjal, e na toalha branca como a neve, entre os claros cristais, os copos verdes antigos punham sombras delicadas como génios das florestas de abetos no Verão. A Prioresa envergara um vestido de tafetá cinzento com rendas raríssimas, uma touca de renda branca com largas fitas, e adornara-se com os seus grandes pingentes de diamantes e broches a condizer. A heróica força de ânimo das velhas, pensou Boris, que, com grande bom gosto e trabalho, se põem belas - mais belas talvez do que nunca o foram na juventude - e que ainda assim não guardam esperança de acordar um desejo nos corações masculinos, é como a do homem justo que trabalha nas suas boas acções mesmo depois de ter perdido a fé numa recompensa divina.

 

Entre os bons manjares foi servida a famosa carpa de Closterseven, cuja confecção era um segredo do convento. O velho Johann enchia muito liberalmente os copos, e, antes do maçapão e das frutas cristalizadas, os convivas desta tranquila e digna ceia, uma velha solteira, uma jovem donzela e um amante desprezado, estavam já todos três mais do que um pouco tocados.

 

Athena estava ligeiramente embriagada no sentido literal da palavra. Pouco vinho bebera na vida, e nunca provara champanhe, e com as quantidades que a dona da casa a fazia beber, não haveria por força de aguentar-se nas pernas. Mas ela descendia de largas gerações de homens que no seu tempo rolaram para debaixo das pesadas mesas de carvalho da região, e que vinham agora em socorro da filha da sua raça. Mesmo assim o vinho subiu-lhe à cabeça. Pôs-lhe em cada face uma rosa e nos olhos um brilho intenso, libertando novas forças na sua natureza. Achou-se um tanto ou quanto impada de invenci bilidade, como um jovem capitão que avança para a batalha com grande coragem e altivez.

 

Boris, que bebia melhor do que os melhores, e que até ao fim permaneceu o mais sóbrio dos três, conhecia uma embriaguez de natureza mais espiritual. O que de mais profundo e verdadeiro havia na sua natureza era um grande amor pelo teatro em todas as suas formas. Sua mãe, em solteira, sentira essa mesma paixão e travara batalhas imensas com os pais, na Rússia, para subir a um palco. O filho não precisava de lutar com ninguém. Não tinha o dogmatismo de acreditar que têm de existir as tábuas e a ribalta para que surja o teatro; ele trazia o palco dentro de si. Criança ainda, representara muitos papéis femi ninos em espectáculos amadores, e o velho e famoso di-rector Paccazina tinha chorado copiosamente com a sua Antígona, tanto lhe lembrara a Mars. Para ele o teatro era a vida Real. Se não podia representar, via o mundo com perplexidade, inseguro do que faria nele; mas como actor era mais autêntico, e assim que podia ver uma situação à luz de uma ribalta sentia-se à von tade nela. Não temia a tra-gédia, e o seu desempenho seria gracioso numa pastoral, se lho pedissem.

 

Alguma coisa no seu modo de pensar exasperava a mãe, mau grado toda a sua simpatia por essa arte, pois ela suspeitava que ele, no seu íntimo, não tinha muita preferência pelo papel de um promissor e benquisto oficial. Estava pronto, pensava ela, a abandonar esse papel a qualquer instante, mal surgisse um outro que mais forte atracção exercesse sobre a sua personalidade do momento, fosse o de proscrito ou de mártir, ou até o papel trágico de um jovem subindo ao patíbulo. Por vezes desejara gritar-lhe, contrariamente ao Velho Franciscano: Ah, meu filho, temes pouco a impopularidade, o exílio e a morte!

 

Mesmo assim não podia deixar de admirá-lo nas suas personagens favoritas, e até de contracenar com ele, e estas representações de ambos podiam atingir grandes proporções.

 

Esta noite Paccazina haveria de deliciar-se com ele; jamais representara me-lhor. Por gratidão à madrinha, resolvera dar tudo de si. Pusera a sua máscara, com grande cuidado, frente ao espelho, e trocara o uniforme por esta cor preta que ele considerava mais apropriada ao papel. Sempre achara preferível o papel do amante infeliz ao do correspondido. O vinho ajudava-o, como o ajudavam os rostos dos outros actores, incluindo o velho Johann, que mostrava no semblante reservado um brilho discreto de felicidade. Mas ele próprio, intimamente, deixava-se arrastar pela situação, pela acção da peça e pelos seus próprios talentos. Pisava as tábuas, erguera-se o pano, cada momento era preciso, e não precisava de souffleur.

 

Ao olhar para Athena, ao seu lado esquerdo, ficou satisfeito com a sua jeune première dessa noite. Agora que juntos pisavam o pal-co, lia nela como num livro aberto.

 

Compreendia perfeitamente a profunda impressão que o seu pedido causara na rapariga. Não a lisonjeara; fizera-a ficar provavelmente furiosa no momento. E o facto de qualquer pessoa viva poder assim invadir a altiva solidão da sua vida fora um choque para ela. Concordavam nesse ponto. Tendo vivido toda a sua vida com pessoas que nunca estavam sós, ele tornara-se sensível àquela atmosfera de solidão. Acontecera-lhe, por vezes, passar uma noite completamente só, sonhando, não com as pessoas e coisas que lhe eram familiares, mas com cenas e pessoas totalmente criadas por ele, e a recordação dessas noites era-lhe muito grata. O que desconcertava agora a rapariga era o facto de o inimigo a ter abordado de uma maneira tão cheia de gentileza e de o criminoso pedir consolação. Quando Boris teve consciência de que ela sentia assim, acentuou a doçura e a tristeza da personagem.

 

Provavelmente era uma emoção tão nova para Athena sentir medo, que exerceu sobre ela uma estranha atracção. Ele duvidava que outra coisa para além do pressentimento de algum perigo a tivesse trazido a Closterseven nesta noite. De que teria medo?, pensou. De que eu e minha tia a façamos feliz? Eis a oração trágica de uma donzela: Livra-me, Senhor, de ser um sucesso na corte, uma noiva feliz e invejada, a mãe de filhos promissores. Sendo ele próprio um actor trágico de alto nível, aplaudiu-a.

 

A presença de algum perigo desconhecido, sentia ele, estava impressa na rapariga pela maneira como a Prioresa a tratava. A velha senhora tinha sido sua amiga antes, mas uma amiga severa. Muito do que a ra-pariga dissera e fizera até então fora mal visto neste convento, e ela sempre soubera que, por querer-lhe bem, a velha senhora pretendia pô-la numa jaula. Esta noite os velhos olhos repousavam nela com doce conten tamento, e o que ela dizia era recebido com pequenos sorrisos, tão gentis como carícias. A jaula tinha si-do hoje posta onde ninguém a visse. Esta sorte especial de incenso, que lhe era oferecido a ela individualmente, era tão novo para Athena quanto o champanhe, e como era queimado perante ela e a envolvia, ela talvez sentisse dificuldade em respirar na confortável sala-de-jantar de Closterseven, se não tivesse a certeza que a porta atrás de si podia abrir-se, quando ela o desejasse, para as florestas de Hopballehus.

 

Boris, que conhecia melhor essa porta, ergueu as pestanas macias como folhas de mimosas para o seu rosto ardente. Tinha-lhe o pai chamado ave nocturna, a que a luz fere os olhos? Ele próprio recuava agora lentamente perante ela, levando alguma sorte de candelabro que brilhava, tremulando, para ela. Ela piscava os olhos um pouco na luz, mas seguia-o.

 

A Prioresa, essa embriagara-se de alguma secreta alegria, que era um mistério para os outros convivas da ceia, e que cintilava na escuridão. De vez em quando levava aos olhos ou à boca o seu lencinho de renda, delicadamente perfumado.

 

 

- Minha bisavó - disse a Prioresa no decurso da conversa - foi pelo seu se-gundo casamento embaixatriz em Paris, onde viveu durante vinte anos. Foi isto durante a Regência. Deixou ela escrito nas suas memórias que, no Natal de 1727, a Sagrada Família desceu a Paris e soube-se que ali permaneceu durante doze horas. Todo o edifício da estrebaria de Belém mis teriosamente se deslocara, com a manjedoura e as panelas onde São José fizera a cerveja de especiarias para a Virgem, até ao jardim de um pequeno convento, o convento do Saint Esprit. A vaca e o burro foram também transportados, juntamente com as palhas que cobriam o chão. Quando as freiras anunciaram o milagre à corte de Versalhes, este foi mantido em segredo, pois temia-se que pressagiasse uma sentença de lascívia sobre os governantes da França. Mas o Regente foi, em grande pompa, com todas as suas jóias, acompanhado da filha, a duquesa de Berri, do cardeal Dubois e de alguns escolhidos senhores e damas da corte, render homenagem à Mãe de Deus e a seu marido. Minha bisavó foi admitida, pela grande estima que gozava na corte, nessa romagem onde era a única estrangeira, e conservou até ao fim dos seus dias o vestido de brocado e peles, de longa cauda, que en-vergou na ocasião.

 

«O Regente ficara grandemente comovido e agitado com a notícia. Ao ver a Virgem caiu num estranho êxtase. Contorcia-se e lançava gritinhos sufocados. Hão-de saber que a beleza da Mãe do Senhor, sendo sem par, era tal que não podia despertar qualquer espécie de terreno desejo. Isto o duque de Orléans nunca experimentara antes, e não sabia o que fazer. Por fim convidou-a, ora ruborizando-se de escarlate, ora empa lidecendo de morte, a cear em casa dos Berri, onde mandaria servir tais pratos e tal vinho como nunca se havia visto, e onde faria comparecer o conde de Noircy e Madame de Parabere.

 

A duquesa de Berri estava nessa altura en grossesse, e as más-línguas pre-tendiam que fosse do próprio pai, o Regente. Ela atirou-se aos pés da Virgem.

 

- Ó querida, ó doce Virgem - exclamou ela - perdoai-me. Vós nunca o teríeis feito, eu sei. Mas se soubésseis como esta corte é maçadora! Mortalmente, abominavelmente maçadora!

 

Fascinada pela beleza do Menino, ela secou as lágrimas e pediu permissão para lhe tocar.

 

- Como morangos e natas - exclamou ela - como morangos á la Zelma Kuntz!

 

O cardeal Dubois saudou São José com extrema polidez. Considerava ele que este santo não incomodaria muitas vezes o Altíssimo com as suas súplicas mas, quando o fizesse, seria ouvido, por o Senhor lhe de-ver tanto. O Regente abraçou-se ao pescoço da minha bisavó, todo lavado em lágrimas, e exclamou:

 

- Ela não virá, nunca, nunca. Ah, Madame''' a senhora, que é uma virtuosa mulher, diga-me o que eu hei-de fazer.

 

Tudo isto vem nas memórias da minha bisavó.»

 

Falaram de viagens e a Prioresa divertiu-os com grande cópia de reminiscências alegres da sua juventude. Estava de muito bom humor, e no velho rosto havia uma nova frescura de cores sobb a touca de renda. De vez em quando fazia uso de um pequeno gesto que lhe era peculiar, coçando-se graciosamente aqui e ali com a fina ponta do dedo mínimo.

 

- A minha amiguinha tem sorte - disse ela a Athena. - Para si o mundo é como um noivo, e cada revelação particular é uma surpresa e uma delícia. Nós, que já celebrámos, hélas, as nossas bodas de ouro com ele, temos uma curiosidade mais prudente. - Eu gostava - disse Athena - de ir à Índia, onde o rei de Ava combate agora o general inglês Amherst. Disse-me o pastor Rosenquist que ele usa tigres nos seus exércitos, treinados para combater ao lado das tropas.

 

No estado de agitação em que se encontrava, fez tombar o copo, partindo-lhe o pé, e o vinho correu pela toalha.

 

- Eu gostava - disse Boris, que não queria falar do pastor Rosenquist, em quem suspeitava um antagonista (desconfia, dizia-lhe uma voz, daqueles que no curso da vida nunca tomaram parte numa orgia ou não ti-veram a experiência de um parto, pois são gente perigosa) - de partir daqui e viver numa ilha esquecida, longe de tudo. Não há nada por que se anseie mais do que o mar. A paixão do homem pelo mar - prosseguiu, os olhos escuros fitos no rosto de Athena - está isenta de egoísmo. Ele não pode cultivá-lo, a sua água não a pode beber, e nele encontra a morte. Mas, mesmo assim, longe dele sentimos a nossa alma definhar, desaparecer, como uma medusa atirada para a terra enxuta.

 

- O mar! - exclamou a Prioresa. - Ir para o mar! Ah, nunca, nunca!

 

Aquela profunda aversão fez os seus olhos brilharem e o sangue subir-lhe às faces, que se tingiram de um vivo cor-de-rosa. Boris ficou impressionado, agora como antes, pela intensidade da antipatia da velha senhora para com tudo o que se relacionasse com o mar. Ele, em rapaz, tentara fugir de casa para se fazer marinheiro. Mas nada, pensou ele, atiça mais depressa a hostilidade mortal das mulheres que a simples menção do mar. Desde o cheiro a maresia ao primeiro contacto com o sal e o alcatrão dos cabos, elas sentem a aversão e a repulsa pelo mar em todas as suas formas; talvez a Igreja tivesse mantido as mulheres na ordem se lhes tivesse pintado um inferno ondulante, marítimo, frígido, cor de cinza. Porque o fogo elas não temem, esse aliado a quem prestaram já longos serviços. Mas falar-lhes do mar é o mesmo que falar do Demónio. No dia em que o domínio das mulheres tiver tornado a terra inabitável para os homens, eles terão de procurar a paz nos oceanos, pois as mulheres hão-de preferir morrer a segui-los.

 

Um pudim foi então servido, e a Prioresa, com destra gourmandise, retirou alguns dos cravinhos dele e comeu-os.

 

- Têm um aroma e um sabor muito adoráveis - disse ela - e a fragrância de um bosque de craveiros-da-Índia é incrivelmente deliciosa ao sol do meio-dia, ou quando a brisa vespertina espalha eflúvios de especiaria por toda a terra. Experimentem. É incenso para o estômago.

 

- Donde vêm, senhora minha tia? - perguntou Athena, que, de acordo com a tradição da província, costumava tratá-la deste modo.

 

- De Zanzibar - disse a Prioresa. Uma gentil me-lancolia pareceu por minutos abater-se sobre ela que, absorta em pensamentos, mordiscava os seus cravinhos.

 

Boris entretanto tinha estado a olhar para Athena, e deixara-se envolver por uma fantasia. Pensava que ela devia ter um bonito esqueleto, primorosamente belo. Jazeria na cova como uma renda sem par, uma obra de arte em marfim, e dali a cem anos, ao ser desenterrada, iria pôr a cabeça dos arqueólogos a andar à roda. Cada osso estava no seu lugar, tão perfeitamente acabado como um violino. Menos frívolo que o tradicional velho libertino que em pensamento despe as mulheres com quem se senta à mesa, Boris libertava a donzela não apenas da roupa mas ainda da sua carne forte e fresca, e imaginava que podia ser muito feliz com ela, que talvez se apaixonasse por ela, se a possuísse nuamente nos ossos esplêndidos. Imaginava-a assim, fazendo sensação montada a cavalo, ou arrastando os longos vestidos pelos salões e gale rias da corte, com a famosa tiara das avós, agora na Polónia, sobre o crânio po-lido. Muitas relações humanas, pensou ele, seriam infinitamente mais fáceis se tudo se passasse ao nível dos ossos.

 

- O rei de Ava - disse a Prioresa, acordando da doce rêverie em que caíra - tinha, na cidade de Yandabu, disse-me quem lá esteve, uma vasta colecção de animais. Como em todo o país nada mais houvesse que elefantes indianos, o Sul-tão de Zanzibar presenteou-o com um elefante africano, que é muito maior e mais magnífico do que os rotundos e domesticados elefantes indianos. São na verdade animais maravilhosos. Reinam nos planaltos da África Oriental, e os mercadores que vendem as suas enormes presas nos mercados de marfim conhecem muitos exemplos da força e ferocidade desses animais. Os elefantes de Yandabu e os tratadores ficaram aterrorizados com o elefante do Sultão, como sempre a África inspira medo à Ásia, e finalmente conseguiram que o rei o prendesse com correntes e o encerrasse numa casa feita de barras que para ele foi propositadamente feita no pátio dos animais. Mas a partir desse dia, em noites de luar, toda a cidade de Yandabu se encheu das sombras dos elefantes africanos errando por ela e abanando as largas orelhas de sombra nas ruas. Os habitantes de Yandabu acreditavam que estes elefantes fantasmas podiam caminhar pelo fundo dos mares, e emergir roçando o ancoradouro dos barcos. Ninguém já se atrevia a sair das casas depois de cair a noite. Mesmo assim não queriam derrubar a jaula do elefante cativo.

 

- Os corações dos animais enjaulados - prosseguiu a Prioresa - torram na sombra das grades como sobre a grelha. Ai, os corações queimados dos animais cativos! - exclamou com terrível energia.

 

- Mas - disse ela momentos depois, o rosto ligeiramente mudado, com um risinho surdo transparecendo na voz - foi muito bem fei-to, porque os elefantes eram grandes tiranos no seu país. Nenhum outro animal podia fazer o que queria por causa deles.

 

- E que aconteceu ao elefante do Sultão? - perguntou Athena.

 

- Morreu, morreu - disse a velha senhora, humedecendo os lábios.

 

- Na jaula? - perguntou Athena.

 

- Sim. Na jaula - respondeu a Prioresa.

 

Athena pousou as mãos cruzadas sobre a mesa, precisamente com o gesto do Conde velho depois de ter lido a carta da Prioresa. Olhou a sala à sua volta. A cor alegre esfumou-se do seu rosto. A ceia terminara e os copos de Porto estavam quase vazios.

 

- Penso, minha tia - disse ela - que, com sua licença, me vou deitar agora. Sinto-me muito cansada.

 

- O quê? - disse a Prioresa. - Não deve privar-nos assim tão cedo do privilégio da sua companhia, minha noz-moscada. Eu própria ia retirar-me agora, mas quero que os dois, como velhos amigos que são, conversem um pouco esta noite. Certamente que o prometeu a Boris, este querido rapaz.

 

- Sim, mas terá de ficar para amanhã de manhã - disse Athena - porque me parece que bebi demasiado do seu bom vinho. Veja: nem a mão tenho firme quando a coloco sobre a mesa.

 

A Prioresa fitou a rapariga. Provavelmente sentia, pensou Boris, que não devia ter falado de jaulas, que fora esse o seu único faux pas dessa noite.

 

Athena olhou para Boris, e ele sentiu que tinha obtido essa mínima vitória: ela tinha pena de separar-se dele. Talvez se apercebesse afinal que batia em retirada abrupta do campo de batalha e que, embora o lamentasse, era nas circunstâncias presentes a melhor atitude a tomar. Boris sentiu o seu olhar franco posto nele como uma condecoração recebida na frente de batalha. Não era uma alta condecoração, mas em campanha não se podia exigir mais. A rapariga desejou gentilíssimas boas noites à Prioresa, fez-lhe uma mesura, e retirou-se.

 

A Prioresa voltou-se, em grande agitação, para o sobrinho.

 

- Não a deixe ir embora - disse-lhe. - Vá atrás dela. Agarre-a. Não perca tempo.

 

- Deixemo-la só - disse Boris. - A rapariga disse a verdade. Ela não me quer para marido.

 

A dupla rebeldia dos dois jovens, cuja felicidade estava promovendo, deixou a Prioresa sem fala, ou sem fé nas suas próprias palavras. Permaneceram juntos na sala durante mais uns cinco minutos talvez, e pareceu a Boris, quando mais tarde pensou naquela ceia, que a conversa transcorrera toda em pantomina.

 

A Prioresa ficou absolutamente quieta, olhando o jovem, e este realmente não sabia se nos próximos minutos ela iria matá-lo ou bei-já-lo. Não fez uma coisa nem outra. Riu-se dele um pouco e, tacteando o bolso, exibia a carta que havia recebido nessa manhã e deu-lha para que a lesse.

 

Esta carta foi o golpe de misericórdia para o rapaz. Era escrita pela amiga da Prioresa, que era a pri-meira aia da Rainha Viúva. Com profunda compaixão pela tia do rapaz, ela dava-lhe, em tons negríssimos, as últimas notícias da capital. O seu nome fora citado, fora até apontado de modo especial pelo Capelão da corte como um dos corruptores da juventude no presente caso. Era evidente que o rapaz se encontrava neste momento à beira de um abismo e, a menos que conseguisse levar por diante o casamento, cairia no abismo e desapareceria.

 

Ele quedou-se de pé por momentos, o rosto alterado pela dor. Todo o seu ser se revoltava contra isto, que vinha roubar-lhe o papel de estrela nessa noite e desfazer-lhe o tom elegíaco do amante, para o atirar de novo para uma realidade que lhe repugnava. Ao levantar os olhos para devolver a carta a sua tia achou-a de pé junto de si. Ela ergueu a mão, mantendo o cotovelo junto ao corpo, e apontou para a porta.

 

- A tia Cathinka - disse Boris - talvez não o saiba, mas a força de vontade de um homem tem os seus limites.

 

A velha senhora continuou a fitá-lo. Estendeu a mãozinha seca e delicada e tocou-o. O rosto contorceu-se numa caretazinha perversa. Momentos depois rodeou-o e encaminhou-se para o fundo da sala, de onde trouxe uma garrafa e um pequeno copo. Com muito cuidado en-cheu o copo, passou-o ao rapaz, e assentiu com a cabeça duas ou três vezes. Por mero desespero, ele esvaziou o copo.

 

Enchia esse copo um licor colorido num tom de âmbar muito velho e escuro. Tinha um sabor penetrante e cáustico. Penetrantes e cáusticos eram também os olhos cor de âmbar muito velho e escuro da velha senhora, que o observavam por sobre a borda do copo. Quando ele bebeu, ela ria. Depois falou. Boris, coisa estranha, lembraria mais tarde estas suas palavras que ele não compreendeu:

 

- Ajuda-o, boa Faru - disse ela.

 

Quando ele já deixara a sala, passados um ou dois segundos, ela muito suavemente fechou a porta.

 

 

Seja esta a hora das lá-grimas, a hora de enternecer o altivo coração da bela, pensou Boris. Lembrou as histórias dessa horrível quadrilha de peregrinos, os velhos carrascos, que se diz terem vagueado por toda a Europa no século XII, visitando os lugares santos. Levavam consigo os atributos do seu mister: o torniquete, os açoites, os ferros e as tenazes, e estes ho mens, dizia-se, eram capazes de chorar quando queriam. «Pois sim - disse o rapaz de si para si - mas eu não esquartejei, não esfolei, não fritei vivo um número suficiente de pessoas. Al-guns, sim, evidentemente, como todos nós; mas sou apenas um jovem carrasco afinal - um aprendiz de carrasco - e o dom de chorar quando quiser ainda o não alcancei.»

 

Seguiu pelo corredor branco que levava ao quarto de Athena. Tinha à sua esquerda uma enfiada de retratos antigos de senhoras e à direita uma enfiada de janelas altas. O chão era revestido de ladrilhos de mármore, pretos e brancos, e tudo ali parecia olhá-lo seriamente na luz nocturna. Ouvia o som dos próprios passos, som fatal para os outros como para si próprio. Olhou por uma das janelas ao passar. A Lua permanecia alta no firmamento, clara e fria, mas sobre as árvores do parque e os relvados descera uma neblina de prata. Além fora estava o Universo azul e nobre, cheio de coisas, e onde a Terra flutuava e seguia por entre milhares de estrelas, umas perto e outras longe. Ó mundo, pensou, ó mundo de riqueza. No seu cérebro ardente surgiu um poema há muito esquecido:

 

Athena, alta senhora, mandado por Apolo

Aqui estou perante ti. Experimentado sou e so frido em muitas provas.

Uma casa, habitada por estranhos,

Estranha é já para mim.

Assim errei por largas terras, e pelo mar.

 

Chegara à porta. Rodou a maçaneta e entrou.

 

De todas as memórias que Boris havia de trazer consigo desta noite, a memória da transição da cor e da luz do corredor para as deste quarto seria a mais duradoura.

 

O pomposo quarto de hóspedes da Prioresa era enorme e quadrado, com janelas, onde agora estavam corridos os reposteiros, nas duas paredes. Todo ele era forrado a seda cor-de-rosa, e nesses abismos de sombra as cortinas carmesins brilhavam no leito de dossel. Havia dois candeeiros de globo cor-de-rosa, solicitamente acesos pela criada de quarto da Prioresa. Cobria o chão um tapete cor de vinho com ro-sas, que perto dos candeeiros parecia beber a luz, e mais longe deles se assemelhava a lagos de carmim escuro que a ninguém daria gosto pisar. Enchia o ar um forte aroma de incenso e flores. Um largo bouquet decorava a mesa junto ao leito.

 

Boris percebeu imediatamente o que sentia. Tinha sido em tempos, quando fora de visita a Madrid, um grande aficionado das corridas. Era-lhe bem conhecido o momento em que o touro, da escura antecâmara sob a tribuna, era empurrado para o sol ofuscante da arena onde muitas centenas de olhos caíam sobre ele. Assim ele de um momento para o outro fora atirado do corredor branco e preto, de manso luar, para esta atmosfera de encarnados. Sentia a cabeça a latejar; mal percebia onde se encontrava. Com a respiração opressa, perguntava-se se aquilo não seria já o efeito do filtro de amor da Prioresa. Não sabia se Athena era agora o cavalo de ventre aberto, que é arrastado para fora da arena já sem vontade própria, ou o matador que iria derrotá-lo. Um ou outro ela seria - mais nada ele poderia encontrar em tal lugar.

 

Athena encontrava-se de pé no meio do quarto. Tirara o vestido e estava apenas de camisinha branca e brancos calções. Parecia um ro-busto e jovem marinheiro que fosse esfregar o convés. Voltou-se quando ele entrou, os olhos fitos nele.

 

Ao imaginar o desenvolvimento da situação, Boris tivera medo de não conseguir impedir-se de rir. Esta ri-sibilidade já antes fora a sua ruína em ocasiões ternas. Mas de momento não corria esse perigo. Estava tão sério quanto a rapariga. Antes mesmo de reconhecer onde estava, agarrou-a por um pulso e puxou-a para si. Os hálitos dos dois tinham-se encontrado e confundiam-se, e ambos deixavam a descoberto os dentes, como num sorriso perplexo ou num desafio.

 

- Athena - disse ele - amei-a toda a minha vida. Sabe que sem si eu ficarei seco e murcho, nada restará de mim. Condescenda, devolva-me ao mar. Tenha piedade de mim.

 

Por um momento a luz nos olhos da rapariga incidiu sobre ele, e ela fitou-o confusa. Depois empertigou-se, como a cobra antes de atacar. Que não tentasse gritar por socorro mostrava a Boris que ela compreendia bem a situação, e sabia não ter um só amigo naquela casa, o que ele não lhe fizera a justiça de esperar; ou talvez o seu peito largo e jovem albergasse um puro amor do combate. No momento seguinte ela arremeteu contra ele. O seu punho veloz e poderoso e directo atingiu-o na boca e partiu-lhe dois dentes. A dor, e o cheiro e o gosto do sangue que lhe enchia a boca, puseram o rapaz fora de si. Li-bertou-a para a segurar melhor, e imediatamente se en-contraram nos braços um do outro, num abraço de vida e de morte.

 

Neste preciso momento o coração de Boris saltou-lhe do peito e cantou, sonoro, como o pássaro que se balança no cimo de uma árvore e ali rompe a cantar. Maior felicidade não lhe poderia trazer o mundo inteiro. Ele não sabia como iria resolver-se este conflito entre os dois, mas ela soubera; e como a costa que se afunda ao redor do barco que sai para o alto-mar, os tormentos da sua vida afundavam ao redor desta libertação de todo o seu ser. A sua existência poucas oportunidades lhe havia dado para a fúria. Agora entregava o coração a esse arrebatamento. A sua alma ria como as almas desses velhos teutões para quem a luxúria da cólera era em si mesma a maior volúpia, e que nada mais pediam ao seu paraíso que a possibilidade de serem mortos uma vez por dia.

 

Ele não poderia lutar assim contra um outro rapaz, nem que ele fosse um dos Einherjar do Valhalla, como lutou com esta rapariga. Todos os caçadores de caça grossa sabem que há uma diferença entre caçar o javali ou o búfalo, por mais perigosos que sejam, e os carnívoros que, a terem êxito, comerão o homem no fim do combate. Boris, de visita aos seus parentes na Rússia, tinha visto o seu cavalo ser devorado por uma alcateia de lobos. Depois disso nem os elefantes da Prioresa, nos paroxismos da cólera, acordariam nele o mesmo sentimento. O amor antigo, desenfreado, que a simpatia não pode conceder, e que o contraste e a oposição inspiram, enchia-o por completo.

 

Se as sombras dessas mu-lheres que o tinham enlaçado, macios braços de que o volúvel amante sempre se arrancava, pudessem neste momento juntar-se no róseo quarto de hóspedes da Prio resa, teriam visto satisfeito o orgulho feminil ao con templarem esta sua mortal perseguição de uma donzela que lutava agora menos por lhe escapar que por matá-lo. Tropeçaram abraçados os dois pelo quarto, por segundos, derrubando um dos candeeiros que caiu e se apagou. Depois estabilizou-se a luta. Deixaram de mover-se e abraçados ficaram de pé, vacilando até encontrarem um apoio, o equilíbrio de um tão dependente dessa amálgama com o outro que nenhum dos dois sabia ao certo onde findava o próprio corpo e começava o do adversário. Ofegavam. A respiração dela no seu rosto era fragrante como as maçãs. O sangue continuava a correr-lhe para a boca.

 

A rapariga não teve a inspiração feminina de arranhar ou de morder. Como uma jovem ursa, confiava na sua grande força e, quanto ao peso, levava a melhor. Contra as tentativas do rapaz para lhe dobrar os joelhos, ela erguia-se direita como uma árvore. Com um súbito movimento ela lançou-lhe as mãos à garganta. Ele segurava-a contra si, os cotovelos premindo-lhe as costelas. A postura da rapariga era a de um guerreiro, em punhando com firmeza a espada erguida, prestando um juramento vital. Ele não conhecia o poder das mãos e dos pulsos dela. Arquejando, a boca cheia de sangue, viu todo o quarto girar de um lado para outro. Pontos vermelhos e negros dançavam em frente dos seus olhos. Neste momento ele arremeteu para um último triunfo. Forçou a cabeça dela a inclinar-se com a mão que tinha sobre a nuca, e premiu a boca contra a sua boca. Os seus dentes rangeram contra os da rapariga.

 

Instantaneamente sentiu por todo o corpo, que se abraçava agora ao dela desde os joelhos até às ancas, o terrível efeito que o seu beijo provocou na rapariga. Ela, por certo, nunca havia sido beijada antes, nem sequer tinha ouvido falar ou lera alguma coisa sobre o beijo. A força usada contra ela fez com que todo o seu ser se levantasse numa repugnância mortal. Como se ele a tivesse varado com um estoque, todo o sangue lhe desapareceu da face, e o seu corpo ficou rígido nos braços do rapaz como o do licranço quando se lhe bate. Então toda a força e agilidade que ele combatera pareceram recuar e sumir-se, como faz a onda ao bater no corpo do banhista. Ele viu os olhos dela embaciarem-se, o rosto, próximo do seu, descolorir-se numa palidez de morte. Ela sucumbiu tão repentinamente que ele caiu com ela, como um afogado que o peso arrasta para o fundo, o seu rosto foi atirado contra o rosto dela.

 

Firmou-se nos joelhos, perguntando a si próprio se ela não estaria morta. Como visse que o não estava, levantou-a momentos depois, com alguma dificuldade, e depô-la sobre a cama. Ela era, de facto, agora, como a estátua jazente de um cavaleiro em cota de malha caído em combate. O seu rosto conservava a expressão de uma repugnância mortal. Observou-a por algum tempo, muito quieto ele também. Não sabia que o próprio rosto tinha a mesma expressão. Se ele se lembrasse do Capelão da corte, se o próprio Capelão em carne e osso ali estivesse, nem assim ele se moveria. O valor abandonara-o quase tão definitivamente como a ela. O efeito do vinho passara; como também passara o efeito do filtro de amor da Prio-resa, que talvez não tivesse sido calculado para mais do que uma batalha. Limpou o sangue da boca e saiu do quarto.

 

Já deitado na sua cama, no seu quarto, deu consigo a pensar se a donzela iria, ao acordar, lamentar a inocência perdida. Riu-se de si próprio no escuro, e pareceu-lhe que um riso agudo e fino, como o som da saída do vapor de uma chaleira fervente, respondia ao seu, algures, como num eco, na grande casa imersa na escuridão.

 

 

De manhã a Prioresa mandou chamar Boris. Ele ficou com um certo medo quando a viu, pois ela parecia ter mirrado. Não enchia a roupa nem a poltrona, e ele perguntava-se que horas nocturnas não teriam passado por ela, na sua cama solitária, que assim esmagaram toda a sua força. Se isto, pensou ele, ainda continua por muito tempo, nada restará dela. Mas provavelmente o meu aspecto ainda é pior. A Prioresa, no entanto, parecia estar de muito bom humor, e satisfeita por tê-lo ali, como se tivesse quase receado que ele fugisse. Disse-lhe para se sentar.

 

- Mandei também chamar Athena - disse.

 

Boris ficou aliviado por ela não lhe fazer perguntas. A boca inchara muito, e doía-lhe se falava. Enquanto esperavam pensou no visconde de Valmont, que amava, de passion, les mines de lendemain. Teriam as invulgares circunstâncias acrescentado um sabor particular a esta manhã, aos olhos do velho e prosaico conquistador de há cem anos atrás? Ou não seria mais provável que ele achasse um disparate todos os valores românticos da situação? A chegada de Athena pôs fim às suas reflexões.

 

Vestia a mesma grande capa cinzenta com que ele a vira em Hopballehus, e parecia disposta a partir. Dava de facto uma tal impressão de ter voltado as costas a Closterseven e de estar já longe do convento, que ele quase se sentiu abandonado. Enquanto ela relanceava lentamente os olhos à sua volta, ele sentiu-se vivamente impressionado com a sua aparência. Parecia estar já a caminho desse estado mais puro de esqueleto, no qual a imaginara na noite anterior. Era realmente uma máscara de morte o que ela sustentava nos ombros fortes. Os olhos, agora mais pálidos, afundavam-se em negras órbitas. Abandonara o costume de firmar-se numa só perna, como se precisasse agora de ambas para se manter direita e em equilíbrio. Confrontada pela Prioresa, cujo rosto mostrava ainda muita e ardente vida, ela bem poderia ser uma acusada no banco dos réus, trazida ali desde as mais fundas masmorras e do suplício da roda.

 

Boris, neste momento, pensou se não seria melhor contar-lhe tudo a ela, assegurá-la de que não lhe fizera mal algum, que nunca lho poderia fazer; e que, de facto, ela saíra vencida dessa prova de força com todas as honras da guerra. Mas achou que não seria o melhor. Quando nos preparamos, reflectiu ele, para levantar um peso de chumbo e ludibriados levantamos um cartão pintado, os braços ficam deslocados. Nesta sua admiração pelo esqueleto da rapariga, seria a última pessoa a desejar que isto lhe acontecesse a ela. Seria melhor que ela suportasse esse peso. Esta donzela, pensou ele, que não pode, que não quer ser feliz, que ela fique nesta hora saciada. Como o artista que, tendo a estátua pronta para a fundição, se acha com metal insuficiente para ela, e toma o ouro e a prata do seu tesouro, da sua mesa, dos guarda-jóias da mulher, assim ele lançou todo o seu ser, corpo e alma, aos abismos fatais da natureza de Athena. Agora, ela que fizesse dele o que lhe aprouvesse.

 

A Prioresa, olhando, ora para um, ora para o outro, falou à rapariga.

 

- Fui informada por Boris - disse numa voz baça e dura - do que aqui teve lugar na noite passada. Não lho perdoo a ele. É uma acção horrível seduzir uma donzela. Mas sei que ele foi a isso instigado, e sei também que um arrependimento sincero atenua o cri-me. Mas a menina, Athena, uma jovem do seu sangue e da sua educação''' o que foi fazer? A menina, que tinha obrigação de conhecer a sua própria natureza, nunca deveria ter vindo aqui.

 

- Não, não, senhora minha tia - disse Athena, olhando frontalmente a velha - vim aqui porque a senhora me convidou, e me disse que era meu dever aqui vir. Agora parto, e se não lhe agrada ter de pensar em mim, não pense.

 

- Ah, não - disse a Prioresa - não pode fazer uma coisa dessas. É terrível para mim o que aconteceu muros adentro de Closterseven. Conhece-me muito mal, se imagina que eu não vou exigir uma reparação. Mostraria eu tão pouca amizade pelo seu pai, que é um nobre? Até que esta falta seja expiada a menina não sairá daqui.

 

Athena pareceu primeiro ignorar a sentença, e nada retorquiu. Depois perguntou:

 

- E como vai ser reparada?

 

- Podemos dar graças - disse a Prioresa - por Boris, culpado como é, não ter esquecido ainda qual é o seu dever. Ele casará consigo imediatamente.

 

Com estas palavras dardejou ao sobrinho um olhar rápido e brilhante, que o assustou como se ela o tocasse ainda uma vez.

 

- Pois sim, mas eu é que não caso com ele - disse Athena.

 

A Prioresa tinha já uma cor toda rubra nas faces.

 

- Como assim? - perguntou em voz aguda. - Recusou então um pedido honrado, que o seu próprio pai aprovava, para depois aceitar, no meio da noite, o mesmo amor que tinha rejeitado?

 

- Não me parece - disse Athena - que importe muito se uma coisa acontece de dia ou de noite.

 

- E se tiver um filho? - gritou a Prioresa.

 

- O quê?! - disse Athena.

 

A Prioresa reprimiu a sua intensa paixão com uma fantástica força de ânimo.

 

- Lastimo-a tanto quanto a condeno - disse. - E se tiver um filho, infeliz?

 

O mundo de Athena desmoronava-se evidentemente, como a posição cercada pelo fogo das baterias inimigas, mas mesmo assim ela permaneceu erecta.

 

- O quê? - perguntou. - Hei-de ter um filho por causa daquilo?

 

A velha fitou-a duramente.

 

- Athena - disse momentos depois, com a primeira migalha de suavidade que durante a conversa mostrava para com a rapariga - a última coisa que eu quero no mundo é destruir a pouca inocência que lhe resta. Mas é mais do que provável que tenha um filho.

 

- Se eu tiver um filho - disse Athena, abraçando-se aos céus já que a terra tremia sob os seus pés - meu pai lhe ensinará astronomia.

 

Boris encostou o cotovelo à mesa e escondeu o rosto na mão. Com seiscentos diabos, não podia impedir-se de rir. Esta donzela quieta e pálida como a Morte não se dava por vencida. Grande parte da sua palidez e da sua imobilidade podia ficar a dever-se ao vinho e ao combate da noite anterior, e só Deus saberia se eles alguma vez a teriam em seu poder. Ela tinha dentro de si o íman, o maelstrom, o condão de atrair tudo o que viesse ter ao seu círculo de consciência e de uni-lo a si mesma. Era uma capacidade, pensou Boris, que muito provavelmente fora característica dos mártires, e que talvez tivesse irritado o inquisidor-mor, o próprio imperador Nero até, levando-o à beira da loucura. Eles se apossaram das tor turas, das fogueiras, dos leões, e lhes deram assim uma grande beleza e harmonia; mas o torturador deixaram-no alheio a eles. Por mais esforços que fizesse para os possuir, nenhuma relação tinham com ele, com que o privaram, de facto, de uma existência. Eram como o covil do leão, onde se diz que vão ter todos os trilhos e donde não parte nenhum; ou como o rio que em si envolve o sangue e a imundície, e continua o seu caminho. Aqui, no momento em que os dois conquistadores, o jovem e a velha, a julgavam encurralada pela situação, a ra pariga preparava-se para montar e partir de Closterseven, como o Sansão que erguera nos ombros as portas de Gaza, os dois postes, ferrolhos e tudo, e os levou ao alto do monte que está defronte de Hébron. E se ela desse realmente por ele, iria a filha do gigante, pensou Boris, carregá-lo na palma da sua mão até Hopballehus e fazer dele o cavalariço dos seus unicórnios? Ainda um verso de Eurípedes lhe ocorreu, e ele sentiu que devia ser o vinho da noite anterior e toda a agitação à sua volta que assim o faziam misturar agora os clássicos com as Escrituras e com as lendas da sua província, pois de ordinário não fazia tal coisa:

 

Ó Palas, salvadora da minha casa,

fui despojado da Pátria e tu ma deste

de novo por morada.

Dir-se-á na Hélade: Olhai,

este homem é ainda um Argi vo

e habita de novo as terras de seu pai.

 

- E então a honra da sua casa? - perguntou a Prioresa com uma calma fatal. - Quem pensa, Athena, que na linhagem de Hop ballehus deu antes de si à luz um bastardo?

 

A estas palavras o sangue subiu à face de Athena até fulgir mais rubro que o fulgurante cabelo. Avançou um passo em direcção à velha senhora.

 

- O meu filho - exclamou em voz baixa, mas onde ecoava profundo o rugido da leoa, ela que era da cabeça aos pés a filha ofendida de uma grande raça - o meu filho seria um bastardo?

 

- A menina é ignorante, Athena - disse a velha. - A menos que Boris case consigo, que outra coisa pode ser o seu filho senão um bastardo?

 

Corajosa como era a Prioresa, apesar de tudo, sabia que a rapariga, se quisesse, podia esmagá-la com os dedos. Manteve o vivo olhar fixo em Boris, que não se sentia chamado a in terferir na discussão das duas mulheres sobre o seu filho.

 

Athena não se moveu. Por momentos quedou-se perfeitamente imóvel.

 

- Agora - disse por fim - vou voltar para Hopballehus, falar com meu pai e pedir-lhe conselho sobre tudo isto.

 

- Não - repetiu a Prioresa - isso não pode ser. Se a menina disser a seu pai o que fez, dar-lhe-á um grande desgosto. Eu não vou consentir numa coisa dessas. E quem sabe, se a menina partir agora, se Boris ainda estará pronto a casar consigo quando se encontrarem de novo? Não, Athena, a menina tem de casar com Boris, e não deve contar nunca a seu pai o que aqui se passou. Tem de prometer-me estas duas coisas. Depois pode ir-se.

 

- Muito bem - disse Athena. - Nunca direi nada ao papá. Quanto a Boris, prometo-lhe que me casarei com ele. Mas, senhora minha tia, quando estivermos casados, e assim que eu puder fazê-lo, mato-o. Quase o matei ontem à noite, ele próprio é testemunha. Prometo-lhe estas três coisas. E agora vou-me.

 

Depois das palavras de Athena sucedeu uma longa pausa. As três pessoas reunidas na sala tinham de sobra pensamentos sem que falassem, para as ocupar.

 

Neste silêncio ouviu-se bater forte e nitidamente no vidro de uma das janelas. Boris compreendeu que já tinha ouvido antes este som, no decurso da conversa, sem que lhe tivesse prestado atenção. Agora o som repetiu-se três ou quatro vezes.

 

Ganhou completa consciência dele ao ver o extraordinário efeito que o som produziu em sua tia. Ela, tal como ele, tinha-se absorvido tanto na discussão que não o escutara. Agora o som atraía-lhe a atenção, e um terror mortal a assaltou. Lançou um rápido olhar à janela e ficou branca de cal. Os braços e as pernas agitaram-se em movimentos espasmódicos, os olhos dardejaram pelas paredes, como um rato que está preso e não pode sair. Boris voltou-se para a janela e achou o que a assustava. Não supusera que alguma coisa a pudesse assustar assim. Sobre o parapeito, ainda do lado de fora, o macaco, agachado a quatro, premia o focinho contra o vidro.

 

Boris ergueu-se para lhe abrir a janela.

 

- Não! Não! - guinchou a velha num paroxismo de horror. O animal continuou a bater. Tinha obviamente qualquer coisa na mão, com que batia na vidraça. A Prioresa ergueu-se da ca deira. Oscilou ao levantar-se mas, uma vez de pé, pareceu desperta, pronta a correr. No momento seguinte, porém, o vidro da janela espatifou-se e caiu ao chão, e o macaco saltou para a sala.

 

Imediatamente, sem um olhar, como se fugisse às labaredas de um fogo que a ameaçava, a Prioresa, apanhando à frente o vestido de seda com ambas as mãos, cor-reu, atirou-se em direcção à porta. Achando-a fechada, não se consentiu o tempo de abri-la. Com uma surpreendente e fantástica agilidade, ela trepou veloz, muito direita, pelo caixilho e no momento seguinte sentava-se, comprimida, sobre as esculturas da cornija, tremendo numa paixão de horror, e rilhando os dentes ao grupo postado no chão. Mas o macaco seguiu-a. Tão depressa como ela o tinha feito, o animal insinuou-se pela ombreira da porta acima, e estendia a mão para a agarrar quando ela, destra, se esgueirou pela ombreira oposta. Ainda segurando o vestido com ambas as mãos, e dobrando o corpo ao meio, arremessou-se pela parede adiante. Mas ainda assim o macaco a seguiu, e ele era mais rápido que ela. Saltou-lhe em cima, apoderou-se da touca de renda, e tirou-lha com tal safanão que a rasgou. O rosto que ela volveu aos dois jovens estava já transformando-se, era murcho e enrugado, e de uma cor castanha escura. Por uns momentos a luta foi feroz e alucinante. Boris esboçou um movimento para se lançar de permeio, a salvar a tia. Mas já no momento seguinte, no centro da sala de damasco vermelho, sob os olhares do velho general empoado e da mulher, na plena luz do dia, uma mudança, uma metamorfose se estava completando.

 

A velha com quem os dois estiveram conversando estava, em convulsões, desgrenhada, deitada ao chão; estava esmagada e diferente. Onde estivera uma mulher acocorava-se agora, ganindo, um macaco completamente vencido, procurando achar refúgio num canto da sala. E donde estivera o macaco em saltos, ergueu-se, um pouco arquejante devido ao esforço, o rosto ainda de um rosa vivo, a verdadeira Prioresa de Closterseven.

 

O macaco arrastou-se para as sombras ao fundo da sala, e por algum tempo continuou a choramingar e a contorcer-se. Depois, esquecendo os pesares, saltou, ágil e gracioso, para um pe destal que suportava a cabeça em mármore do filósofo Immanuel Kant, e dali se ficou a observar, de olhos cintilantes, o procedimento das três pessoas que se encontravam na sala.

 

A Prioresa tirou o lencinho e levou-o aos olhos, durante alguns minutos não achou o que dizer, mas conduzia-se com a dignidade e a amabilidade que os jovens sempre lhe conheceram.

 

Estes tinham seguido o curso dos acontecimentos, tão paralisados pela surpresa que não puderam falar, mover-se ou até olharem-se. Agora, como ao terrível tornado que reinara naquela sala se sucedesse a calmaria, acharam-se próximos um do outro. Voltaram-se e fitaram-se.

 

Desta vez os olhos lucíferos de Athena, nas fundas e negras órbitas, não conseguiram apossar-se de Boris. Ela tomava consciência dele como alguém exterior a si mesma; a memória da luta entre os dois se denunciava no seu olhar claro e límpido. Mas, neste olhar, ela decretava uma outra lei, uma ordem que não podia ser in-fringida: de agora em diante, entre, de uma parte ela e ele, que haviam presenciado juntos os acontecimentos daqueles últimos minutos, e de outra parte o resto do mundo, que ali não estivera com eles, uma barreira intransponível se erguia para sempre.

 

A Prioresa baixou o lenço a revelar o rosto, e num movimento grácil e suave tomou assento na grande poltrona. Olhou para o jovem e para a rapariga.

 

- Discite iustitiam - disse ela - et non temere divos.

 

 

                   NAS ESTRADAS DE PISA

  1. O FRASQUINHO DE SAIS

Corria o ano de 1823. Por uma tarde bonita de Maio, no jardim de uma osteria perto de Pisa, sentado à mesa cujo tampo era a mó de um moinho, o conde Augustus von Schimmelmann, jovem aristocrata dinamar quês de temperamento melancólico, um belo homem, se não fosse um tanto gordo, escrevia uma carta. Como não conseguisse terminá-la, ergueu-se e foi dar um passeio pela estrada real, enquanto na pousada se fazia o seu jantar. O sol quase desaparecia já. Raios de ouro caíam por entre os altos choupos que bordavam a estrada. O aroma das ervas e das copas enchia o ar cálido e puro, e bandos imensos de andorinhas cruzavam os céus em todas as direcções, como se quisessem gozar cada minuto dessa última meia hora de luz.

 

Os pensamentos do conde Augustus iam só para a carta. Era dirigida a um amigo na Alemanha, camarada dos tempos felizes de estudante em Ingolstadt, e a única pessoa com quem podia usar de uma absoluta franqueza. Mas terei sido, pensou, absolutamente verdadeiro na minha carta para ele? Dava um ano de vida para poder conversar com ele esta noite, e enquanto falasse observar o seu rosto. Como é difícil conhecer a verdade. Será de todo impossível sermos absolutamente verdadeiros quando estamos sós? A verdade, como o tempo, é uma ideia derivada e dependente das relações entre os seres humanos. Qual é a verdade sobre uma montanha de África, que não tem nome nem um carreiro que a sulque? A verdade sobre esta estrada é que vai dar a Pisa, e a verdade sobre Pisa é a que pode achar-se nos livros escritos e lidos por seres humanos. Qual é a verdade sobre um homem numa ilha deserta? E eu, eu sou um homem numa ilha deserta. Nos meus tempos de estudante, os amigos riam-se de mim, porque tinha o hábito de me ver ao espelho, e decorava os meus quartos com espelhos. Pensavam eles que eu tinha vaidade na minha pessoa. Mas não. Na realidade, se me olhava ao espe lho era para conhecer-me. Os espelhos não mentem. Com um arrepio de nojo, Augustus recordou o dia em que fora levado, criança ainda, a ver a sala dos espelhos do Panoptikon em Copenague, onde vemos a nossa imagem reflectida à esquerda e à direita, no tecto e no chão, em uma centena de espelhos que, um a um, distorcem e pervertem o nosso rosto e figura de um modo sempre diferente - já encurtando, já esticando, já alargando ou comprimindo as formas, mantendo porém uma sorte de se melhança connosco - e pensou como esta sala se parecia com a vida real. Ali também o próprio eu, a personalidade e a existência se reflectem na alma daqueles que nos conhecem e connosco vivem, numa semelhança, numa caricatura de nós que permanece viva e finge ser, de um certo modo, a verdade sobre nós. A imagem mais lisonjeira é tão-somente uma caricatura e uma falsidade. Um coração a que nos liga o afecto e a simpatia, e assim é o de Karl - pensou ele - é como o espelho verdadeiro da alma e por isso a sua amizade me é tão cara. O amor deveria ser mais ainda este espelho. Deveria dar-nos, pelas estradas da vida, a companhia de uma outra alma que reflectisse a nossa fortuna como o nosso infortúnio, e que nos provasse que tudo não é sonho. O casamento tem sido para mim o ideal desta presença, na minha vida, de uma mulher com quem eu possa falar amanhã do que ontem me aconteceu.

 

Suspirou, e os seus pensamentos voltaram-se de novo para a carta. Nela tentava explicar ao amigo as razões que o tinham afastado de sua casa. Tivera o infortúnio de casar-se com uma mulher muito ciumenta. Não é, pensou ele, que ela tenha ciúmes das outras mulheres. De facto não tem, de modo algum, e as razões para tal são, a primeira, ela saber que pode ombrear com qualquer mulher, pois é a mais encantadora sempre; e a segunda, ela sentir que as outras mulheres pouco signifi cam para mim. O próprio Karl há-de lembrar-se que as breves aventuras que tive em Ingolstadt significaram menos para mim do que a ópera, quando uma companhia de cantores ia dar a Alceste ou o Don Giovanni - e menos ainda que os estudos. Os ciúmes que ela tem são dos meus amigos, dos meus cães, das florestas de Lindenburg, das minhas pistolas e dos meus livros. Ela tem ciúmes das coisas mais ab surdas.

 

Augustus recordou o que se passara seis meses depois do casamento. Fora ao quarto da mulher para dar-lhe um par de brincos que obrigara um amigo a comprar para ele em Paris, de entre os bens do duque de Berri. Sempre gostara de jóias, conhecia bem o seu valor e era um en tendido em lapidação. Aborrecia-o até por vezes que os homens não fossem livres de usar jóias e, uma vez casado, fora para ele um prazer oferecê-las à mulher, a quem realçavam a beleza e ficavam tão bem. Estes brincos então eram perfeitíssimos, e ele ficara tão satisfeito por obtê-los que os quis fechar por suas mãos nas orelhas da mulher, e segurou o espelho para que ela os admirasse. Ela observava-o, e reparou que os olhos dele estavam fitos nos diamantes e não no seu rosto. Imediatamente os tirou e lhos devolveu. «Creio bem - disse ela, e os seus olhos enxutos eram mais trágicos do que se estivessem marejados de lágrimas - que não tenho o seu gosto pelas coisas boni tas.» Desde esse dia ela nunca mais pôs uma jóia e adoptou um estilo de vestir-se tão severo como o de uma freira, mas tão elegante e graciosa era ela que, fez sensação e criou toda uma escola de imitadoras.

 

Poderei fazer o Karl entender, pensou Augustus, que ela tem de facto ciúmes das próprias jóias? É uma loucura, que ninguém poderá compreender. Aliás, nem eu mesmo a compreendo, e penso até que muitas foram as vezes em que a fiz tão desgraçada como ela me fez infeliz. Esperava encontrar na minha mulher alguém com quem pudesse partilhar cada emoção da minha alma. Mas com Malvina foi absolutamente impossível. Ela obrigava-me a mentir vinte vezes por dia, a enganá-la até com o olhar e a voz. Não, estou certo que aquilo assim não podia continuar, que tive razão em abandoná-la, porque, enquanto vivesse com ela, seria sempre a mesma coisa. Mas que será de mim agora? Não sei o que fazer de mim ou da minha vida. Poderei eu confiar no destino para que me ajude e me estenda a mão pela primeira vez?

 

Tirou do bolso do colete um pequeno objecto e contemplou-o. Era um frasquinho de sais, desses que as senhoras de uma geração passada costumavam usar, feito na forma de um coração. Tinha pintada uma paisagem de grandes árvores, e uma ponte sobre um rio. Ao fundo, num alto monte ou rochedo, erguia-se um castelo rosado com uma torre, e numa fita, sob a paisagem, liam-se as palavras Amitié Sincère.

 

Sorriu ao pensar no quanto esse frasquinho pesara na sua decisão de vir a Itália. Pertencera a uma donzela tia de seu pai, que fora uma beldade nos seus tempos e ele estimara muito. Em rapariga tinha viajado pela Itália e estivera hospedada naquele mesmo palácio cor-de-rosa, e todos os sonhos de quimera e aventura estavam no seu espírito ligados a ele. Tinha fé no seu frasquinho de sais, pensava que era remédio para todas as dores - dos dentes ou da alma. Enquanto foi menino, Augustus partilhou destas fantasias da tia-avó, inventando histórias sobre as belas coisas que haveria nessa casa, e a vida feliz dos que lá viviam. Agora que a tia-avó tinha morrido, há muitos anos, ninguém mais sabia onde se achava tal lugar. Talvez, pensou ele, um dia eu atravesse a ponte sob as árvores e veja a fraga e o castelo diante dos meus olhos.

 

Como é misterioso e difícil viver, pensou, e que é a vida? Porque se me afigura a minha vida tão extraordinariamente importante, mais importante que outra coisa qualquer já sucedida? Talvez daqui a cem anos haja quem leia sobre mim, e sobre a minha tristeza desta noite, e nela ache tão-somente, se nela achar alguma coisa, um amável entretém.

 

  1. O ACIDENTE

Nesse instante foi interrompido em seus pensamentos por um ruído medonho atrás de si. Voltou-se; o Sol poente brilhou intenso nos seus olhos, cegando-o, e por segundos ele viu o mundo todo em prata, ouro e chamas. Numa nuvem de pó um grande coche vinha-se aproximando a uma velocidade aterradora, os cavalos correndo num galope desenfreado e atirando a carruagem de um ao outro lado da estrada. Nesse entretanto julgou ver duas formas humanas que o tumulto derribava e cuspia. Efectivamente, cocheiro e trintanário viravam da boleia e caíam, arremessados à estrada. Augustus ainda pensou em atravessar-se na carreira dos cavalos no intuito de os fazer parar, mas, antes que o coche o alcançasse, alguma coisa se quebrava; primeiro um, depois o outro, os cavalos desprendiam-se e passavam por ele a galope. Atirada para a berma, a carruagem ali parou de todo, com uma das rodas traseiras solta. Augustus acorreu.

 

Contra o assento da carruagem desfeita, agora imóvel no pó, jazia um velho calvo de rosto distinto e grande nariz. Fitava Augustus nos olhos, mas era tal a sua palidez e tão extrema a sua quietude, que Augustus supôs vê-lo já morto afinal.

 

- Deixe-me ajudá-lo, cavalheiro - disse Augustus. - O senhor sofreu um horrível acidente, mas espero que os seus ferimentos não sejam graves.

 

O velho voltou a fitá-lo como antes, de olhos espantados.

 

Uma robusta moça que antes viajava no banco fronteiro e tombara de mãos e joelhos, começava a desenvencilhar-se agora de almofadas e pacotes, em altos choros. O velhote volveu os olhos para ela e disse:

 

- Ponha-me o chapéu.

 

A criada, pois outra não era a moça, com algum esforço logrou alcançar um grande chapéu com plumas de avestruz e fixá-lo na cabeça calva. Presa ao interior do chapéu estava uma profusão de caracóis prateados, e de um momento para o outro o velho transformou-se numa senhora de aparência requintada e imponente. O chapéu parecia devolver-lhe a serenidade. Achou até a sombra de um sorriso com que docemente agradecia a Augustus.

 

O cocheiro aproximava-se correndo, todo coberto de pó, enquanto o trintanário permanecia estendido e desacordado no meio da estrada. Também a gente da osteria aí vinha, de braços levantados e em sonoras exclamações de compaixão. Um deles trazia um dos cavalos, e ao longe viam-se dois camponeses tentando agarrar o outro. Entre eles carregaram a velha senhora dos destroços do veículo para o melhor quarto da pousada, que se encontrava adornado com um leito enorme de cortinas vermelhas. Ela estava ainda mortalmente pálida, e respirava com dificuldade. O braço direito parecia haver-se fracturado acima do pulso, mas se outros ferimentos tinha não o sabiam eles dizer. A criada, os grandes olhos redondos como dois botões negros, voltou-se para Augustus e perguntou:

 

- O senhor é médico?

 

- Não - disse a velha senhora, da cama, numa voz muito sumida, rouca pela dor. - Não, ele não é médico nem padre, e eu também não quero nada nem dum nem doutro. É um fidalgo, e só de um fidalgo eu preciso. Saiam do quarto, todos, e deixem-me falar com ele em particular.

 

Quando ficaram sós, o seu rosto alterou-se e ela fechou os olhos; depois disse-lhe que se aproximasse e perguntou-lhe o nome.

 

- Conde - disse ela, após um curto silêncio - o senhor acredita em Deus?

 

Esta pergunta, tão directa, lançou Augustus em confusão, mas, como sentisse os olhos pálidos e cansados da senhora pousados nele, respondeu:

 

- Era exactamente essa a pergunta que eu fazia a mim mesmo quando os cavalos de Vossa Excelência largaram em disparada. Não sei.

 

- Deus existe - disse ela - e até os muito jovens se aperceberão disso um dia. Eu vou morrer - prosseguiu - mas não posso, não quero morrer sem ver a minha neta uma vez mais. O senhor, que tem sangue fidalgo e uma alma nobre, quererá encarregar-se de a descobrir e de a trazer aqui?

 

Fez uma pausa, e uma estranha série de expressões perpassou pelo seu rosto.

 

Diga-lhe que eu já não posso erguer a mão direita e que lhe darei a minha bênção.

 

Augustus, depois de reflectir por um instante, perguntou onde poderia achar a jovem.

 

- Ela está em Pisa - disse a avó - e o seu nome é Donna Rosina di Gampocorta. Se estivesse neste país há nove meses atrás, haveria de saber o seu nome, pois nessa altura não se falava de outra coisa.

 

Era tão fraco o seu murmúrio que ele precisou de encostar a cabeça ao travesseiro para ouvi-la, e por momentos julgou que ela se finava. Foi então que pareceu recuperar as forças. A sua voz era outra, chegando a ser por vezes muito clara e aguda, mas ele não tinha a certeza de que ela o via, ou sabia onde se encontrava. Uma leve cor rosada subiu-lhe às faces; as pálpebras, como um espesso crepe, estremeciam ligeiramente. Estranhas e profundas emoções se apoderavam de todo o seu ser.

 

- Vou contar-lhe a minha história - disse ela - para que o senhor possa entender o que pretendo de si.

 

III. A HISTÓRIA DA VELHA SENHORA

«Sou uma velha - disse - e conheço o mundo. Não me apego a ele, pois conheço-o o suficiente para saber que, quanto mais nos apegamos a uma coisa, seja o que for, mais somos vítimas do seu desprezo ou do seu cansaço. Nem sequer me apego a Deus, e pela mesma razão. Não queira ter pena de mim por eu estar a morrer, porque eu penso que estar-se morto é realmente mais comme il faut do que estar-se vivo.

 

Tive apaixonados, um marido, centenas de amigos e admiradores. Eu própria só amei na vida três pessoas, e só uma delas me resta agora, esta menina, Rosina.

 

Sua mãe não era minha filha, realmente - era minha enteada. Mas o afecto que nos unia era mais profundo que o foi jamais o amor de mães e filhas verdadeiras. Eu assim o quis, aliás, pois desde muito nova sempre tive o maior terror do parto, e quando fui pedida em casamento por um viúvo cuja primeira mulher morrera ao dar à luz, impus-lhe como condição que eu nunca lhe daria filhos, e ele, movido pela minha beleza e pela minha fortuna, aceitou. Essa menina, Anna, era tão linda que eu vi com os meus próprios olhos a imagem de São José na Basílica voltar a cabeça para a seguir, saudoso do rosto da Virgem no tempo do seu noivado. Os seus pés eram como o bico de um cisne, e o sapateiro fazia os nossos sapatos na mesma forma. Eu eduquei-a na aceitação de que a beleza da mulher é a arte suprema de Deus, e que se não deve desperdiçá-la, mas, quando ela fez dezassete anos, apaixonou-se por um homem, um militar, ainda para mais - porque se estava no tempo das guerras com os franceses e com o seu horrível Imperador. Anna casou com ele e seguiu-o, e um ano mais tarde morria, em grande sofrimento, como sua mãe.

 

Embora eu nunca me sentisse capaz de gostar verdadeiramente de uma criança do sexo masculino, tive esperanças que o bebé fosse um rapaz. Mas era uma menina, e foi confiada aos meus cuidados visto o pai não suportar vê-la sequer; ele acabou por morrer de desgosto poucos meses mais tarde, deixando-a herdeira de grandes riquezas, das quais a maior parte provinha dos saques de guerra.

 

Agora, que via crescer a minha neta, há-de compreender que não me saía do pensamento a preocupação de preparar-lhe o futuro. Disse-lhe que a beleza da mãe fora a arte suprema do Altíssimo? Não, essa foi afinal o esboço, e Rosina, ela sim, era a obra-prima das Suas mãos. Era tão loura que se dizia em Pisa que, ao beber ela vinho tinto, se podia seguir o curso do líquido passando pela sua garganta e pelo seu peito. Eu não desejava que ela casasse, e por isso dava-me grande alegria ver a aspereza e o desdém com que essa criança tratava todos os homens, em especial os jovens e brilhantes mancebos que a cercavam em adoração. Mas eu envelhecia, e não queria, quando morresse, deixá-la só no mundo. Na manhã dos seus dezassete anos levei à Igreja de Santa Maria della Spina um grande tesouro que estivera na família de minha mãe por muitas centenas de anos: um cinto de castidade que um dos meus antepassados mandara fazer em Espanha quando foi combater os infiéis. E porque a sua esposa era uma sobrinha de São Fernando de Castela, estava o cinto cravejado de cruzes em rubis. Ofereci-o aos santos, para que eles me ajudassem a achar o que devia fazer.

 

Nessa mesma noite dei um grande baile, durante o qual o príncipe Pozentiani viu Rosina e solicitou a sua mão. Agora pergunto-lhe, conde, não estava ali a resposta às minhas orações? Porque o príncipe era um magnífico partido. Ele é hoje o homem mais rico da Província, pois é voz corrente que a sua família não sabe como impedir-se de fa zer fortuna, seja por que maneira for. Embora seja um tanto entrado em anos, é uma pessoa absolutamente encantadora, um Mecenas, um homem de gostos requintados e de muitos talentos, e um velho amigo meu. E eu sabia também que um capricho da natureza o tornou, admirador que era do sexo feminino, incapaz de ser amante ou marido. Era a sua vaidade ou a sua fraqueza não gostar que isto se soubesse, e costumava manter consigo as mais dispendiosas cortesãs, e todos tinham medo dele, por isso o segredo nunca foi espalhado. Mas eu sabia-o porque, muitos anos antes, ele fora um dos meus maiores admiradores, e eu gostara muito dele. Fiquei tão feliz, tão grata, que vi no meu próprio rosto, sorrindo-me no espelho, a imagem de uma alma em glória.

 

A jovem Rosina também ficou satisfeita com a proposta do príncipe, e durante uns tempos gostou muito dele, pela sua inteligência, pelo seu encanto de maneiras, e por todos os ricos presentes com que ele a cu mulava. Era já público o noivado quando, uma noite, estando eu recolhida, Rosina entrou no meu quarto com o seu vestido de cetim ver melho-vivo. À luz das velas era tão linda como o jovem São Miguel comandando as hostes divinas, e ali me disse, como se me agradassem tais notícias, que se tinha apaixonado pelo seu primo Mario e só casaria com ele e com mais ninguém. Já nesse momento eu senti o cora ção estremecer dentro de mim. Mas controlei a expressão do rosto, e apenas lhe fiz lembrar que o príncipe era um atirador temível e que, pensasse ela o que pensasse do primo, seria preferível afastá-lo do caminho do príncipe, se é que realmente o amava. Ela respondeu-me de tal forma que parecia estar apaixonada pela própria Morte.

 

Eu não desgostava de Mario, pois sempre tive uma curiosa inclinação pela família de meu marido, embora todos eles tenham um quê de excêntricos, e essa excentricidade, neste Mario, surgiu em forma de paixão pela astronomia. Mas, como marido, não podia comparar-se ao príncipe - e, para além do mais, bastava-me ver Rosina perto dele para compreender que a menor fraqueza da minha parte a levaria fatalmente, dentro de nove meses, ao túmulo de sua mãe. Os galanteios do príncipe tinham dado volta à cabeça de Rosina. Imaginava que, se quisesse a Lua, acabaria por obtê-la, quanto mais o seu jovem primo. Quando vi que ela persistia nas suas loucuras, chamei-a perante mim e tive com ela uma conversa franca. Mas eu não sei o que terá dado a esta geração de mulheres que nasceu depois da Revolução Francesa, e dos romances dessa tal Madame de Sta~el - a riqueza, a posição e um marido tolerante não lhes bastam, querem o amor como nós outras o Sacramento.»

 

Neste ponto a velha senhora interrompeu a sua história.

 

- O senhor é casado? - perguntou.

 

- Sou. Sou casado - respondeu o jovem.

 

- Não precisarei então - prosseguiu ela, como se a satisfizesse o tom daquela resposta - de lhe expor a loucura de tais ideias.

 

«Rosina foi tão obstinada que eu não consegui dissuadi-la. Se ao fim ela me tivesse dito que tudo o que ambicionava era ter nove filhos, eu não teria ficado surpreendida.

 

Cheguei a uma idade em que não suporto já ser contrariada. Fiquei furiosa com ela, tão furiosa como se tivesse visto um bandoleiro atirá-la para a garupa e fugir com ela para as montanhas mais ermas. Disse ao príncipe que apressasse o casamento e fechei Rosina em casa. Vivi esses meses numa angústia mortal, a ponto de quase não dormir e cada noite ser como uma viagem à roda do mundo.

 

Rosina tinha uma amiga, Agnese delle Gherardesci, a quem desde sempre ela quis quase tanto bem como a mim própria. Um dia em que estavam ambas a bordar, picaram os dedos, misturaram o sangue e juraram ser irmãs até à morte. Esta menina foi criada ao deus-dará, e tornou-se num verdadeiro produto do nosso tempo. Meteu na cabeça que era pare cida com Lord Byron, de quem tanta coisa se diz, e gostava de vestir-se e montar como um homem e de escrever poesias. Para ver Rosina mais feliz mandei chamar Agnese, que ficou a fazer-lhe companhia nessa última semana antes do casamento. Mas as raparigas são um verdadeiro demónio quando julgam que está em perigo um romance de amor, e eu acho que Agnese conseguiu, não sei como, trazer a Rosina cartas de Mario.

 

Na véspera do casamento, pela manhã, Agnese foi buscar um fiacre, Rosina escapuliu-se de casa, e juntas tomaram a estrada de Pisa. Uma criada fiel revelou-me o segredo, e eu meti-me no meu coche e segui-as imediatamente. Ao meio-dia ultrapassei a tipóia na estrada, era Agnese que a conduzia, vestida com um capote de cocheiro, os cavalos meio mortos, enquanto os meus estavam mais vigorosos do que nunca.

 

Quando Rosina viu que eu me aproximava a grande velocidade, saiu, e eu também, ao chegar junto dela, desci para a estrada, mas nenhuma de nós disse uma palavra. Meti-a no coche, sem prestar qualquer atenção à sua amiga, e disse ao meu cocheiro que voltasse para casa. Na estrada há uma capelinha por entre as árvores. Acercando-nos, Rosina pediu-me licença para mandar parar a carruagem e entrar por uns momentos. Disse de mim para mim: «Vai fazer um voto qualquer«, e desci a acompanhá-la à igrejinha. Mas no interior dela, escuro e que cheirava a incenso frio, senti com desespero que o coração de uma donzela é, como a igreja às escuras, um lugar de mistério onde uma velha, por mais que o queira, jamais há-de penetrar. Rosina encaminhou-se para o altar e caiu de joelhos. Olhou para o rosto da Virgem e depois saiu, como se eu fosse uma velha camponesa rezando solitária na capela. A minha dor era imensa, pois por nada deste mundo eu conseguia formular uma oração. ERa como se me dissessem que a Virgem e os santos haviam ensurdecido. Quando saí depois e a vi junto ao coche, os olhos perdidos na distante Pisa, disse-lhe:

 

- Eu sei, se a menina o não sabe, a loucura que é deixar que um homem, seja ele quem for, se atravesse entre nós duas. Se a menina pode fazer um voto, eu também posso. Assim um dia nos encontremos as duas no Pa raíso, juro que, enquanto eu puder erguer a mão direita, não darei a minha bênção a qualquer casamento que faça, excepto se for com o prín cipe.

 

Rosina olhou para mim e fez uma mesura, como quando era pequenina, e não disse palavra. No dia seguinte o casamento celebrava-se com todo o esplendor.

 

Um mês depois Rosina pedia ao Papa a anulação do casamento pela razão de não ter sido consumado.

 

O escândalo foi enorme. O príncipe tinha amigos poderosos e ela estava completamente só, a princípio, e era muito nova e inexperiente; mas soube resistir com uma força espantosa até que, por fim, ninguém mais falava de outra coisa, e ela reuniu à sua volta toda a cidade de Pisa. O príncipe não era pessoa benquista, principalmente devido à sua infeliz paixão pelo dinheiro; e as histórias de amor, como sabe, atraem as simpatias do povo. Acabaram por ver nela uma espécie de santa, e quando teve quem finalmente a apresentasse em Roma, a população dessa cidade rodeou-a nas ruas e aplaudiu-a como se ela fosse uma prima donna da ópera. O príncipe fez a asneira de mover as suas influências para que Mario fosse expulso de Pisa, o que, naquelas circunstâncias, foi provavelmente a coisa mais estúpida que ele podia ter feito, troçou da Igreja e ofendeu o povo.

 

Rosina lançou-se aos pés do Santo Padre com os certificados de todos os médicos e parteiras de Roma. O príncipe ficou fulminado quando soube disto, e por três dias não foi capaz de articular palavra. Teve de cerrar as janelas para não ouvir o povo, que nas ruas cantava cantigas à Virgem de Pisa, e chorava e mordia os dedos ao imaginar a felicidade dos dois jovens - coisa, creio eu, que ele fazia muito bem - porque, assim que recebeu a carta de nulidade do Papa, Rosina casou com Mario.

 

Durante todo este tempo, ainda que a própria brisa me murmurasse o seu nome, recusei-me a vê-la e procurei não pensar nela. Mas o que há no mundo que possa distrair uma velha do que foi o seu constante pensamento durante dezassete anos, quando ela o quer esquecer?

 

Há dois meses atrás, fui informada que a minha neta espera um filho. Embora eu já estivesse preparada para isto, evidentemente, a notícia foi para mim um golpe fatal. Quase me matou. Pensei na sua mãe e no meu voto. Já não conseguia ter fé nos santos. Tinha presente noite e dia a imagem de Rosina na capela, e o meu coração estava tão cheio de amargura como não é justo que alguém o suporte ainda na minha idade. Deixei por fim de pensar no Paraíso, porque, para mim, cem anos de glória não valiam uma semana junto dela em Itália. Durante muito tempo a minha saúde não me permitiu viajar, mas ontem pus-me a caminho de Pisa.

 

Agora, meu amigo, sabe toda a minha história; escuso de lhe dizer mais: o senhor reflectirá nos desígnios da Providência.»

 

Aqui ela fez uma longa pausa. Quando, assustado pelo seu silêncio, ele foi observar-lhe o rosto, viu que tinha descaído. Toda ela parecia ter mirrado, mas sob as pálpebras de cera os olhos claros estavam ainda fitos nele.

 

- Estou pronta a deixar este mundo - disse ela. - O mundo já deve conhecer-me de cor, por esta altura, como eu o conheço a ele. Nada mais temos a dizer um ao outro. A mim mesma parece curioso que sinta ainda tanto afecto, e tanto interesse por esta velha Carlotta di Gampocorta, que em breve desaparecerá da face da Terra, a ponto de não a deixar partir sem lhe dar a oportunidade de ver e perdoar aqueles que a têm ofendido. Mas que quer? Não é fácil mudar-se de hábitos na minha idade. Vai procurar por mim a minha neta?

 

O seu braço esquerdo moveu-se no lençol, como se quisesse alcançar a mão de Augustus. Ele tocou os dedos frios.

 

- Estou ao dispor de Vossa Excelência - disse ele.

 

Ela soltou um profundo suspiro e fechou os olhos. Augustus apressou-se a ir buscar o médico, que fora chamado à aldeia.

 

Ordenou aos criados que preparassem tudo para partirem de manhã cedo, e como queria enviar a carta antes de deixar a pousada, voltou a ela e terminou-a. Ao reler as suas reflexões sobre a vida, pensou que a tristeza delas poderia preocupar o seu bom Karl, por isso tomou da pena e acrescentou dois versos do Fausto de Goethe, uma citação dilecta do amigo, que com ela muitas vezes, em Ingolstadt, encerrava as discussões de ambos:

 

Todo o homem bom, no mais escuro transe, sabe distinguir o caminho certo.

E, sorrindo quase, fechou a carta.

 

  1. AS PENAS DA JOVEM SENHORA

Na pousada onde em seguida Augustus se acolheu - que era a última antes de chegar a Pisa, e tinha à sua volta mais casas, carroças e gente, sentindo-se ali o viajante próximo já da grande cidade - um faetonte veio parar mesmo à sua frente e dele desceu um esbelto rapaz de grande capote negro, e um velho major-domo em tudo semelhante ao Pantalone. Escurecia. Algumas estrelas tinham despontado no profundo azul do céu, e no ar soprava uma ligeira brisa. Augustus sentia aquela impressão de realmente estar de passagem que é quase toda a felicidade dos que amam viajar. Passara por tantos caminhantes durante o dia - homens a cavalo ou montados em burros, guiando carros de bois ou carroças puxadas por mulas - que lhe parecia haver um rumo na vida e considerara que para ele também a vida por força teria um sentido. Agradou-lhe o ruído, a luz do lampião, e o cheiro da lenha que ardia, da gordura, e do queijo, que vinha da pousada. O ar de Itália parecia ter descido as montanhas e atravessado os rios para suavemente lhe acariciar o rosto.

 

A osteria fora em tempos o pavilhão de uma extensa villa; tinha um belo salão com pinturas a fresco nas paredes. Augustus, ao entrar, viu o velho estalajadeiro com dois criados pondo a mesa junto a uma janela aberta, e enquanto isso embrenhados em acesa discussão, de que o velho se afastou contrariado para vir receber o hóspede e assegurar-lhe que tudo faria para que ele fosse feliz ali. Mas tantos hóspedes ilustres que chegavam ao mesmo tempo, de improviso, a uma casa tão vivamente interessada em manter a sua renommée, quase o deixavam acabrunhado. Porque o príncipe Pozentiani viria dentro de meia hora, e com ele o seu jovem amigo, o príncipe Giovanni Gastone. Estes eram homens que sabiam apreciar a comida, e haviam encomendado codornizes, mas o cozinheiro tinha cometido um erro ao prepará-las. Augustus perguntou se o rapaz que ele vira chegar momentos antes era o príncipe Giovanni. Ah, não, disse o velho, esse era sem dúvida outro rico e exigente freguês. Mas seria possível que o fidalgo nunca tivesse ouvido falar do príncipe Nino? Era um jovem como não havia senão na Toscana. Em bebé a sua beleza era tanta que ele foi o modelo do Menino Jesus no quadro da catedral. Onde quer que fosse, todos o amavam. Porque ele era um patriota, um verdadeiro filho da Toscana. Embora tivesse sido enviado pela mãe, senhora ambiciosa, para as cortes de Viena e de Sam petersburgo, voltara sem vontade de falar outra língua que não fosse a dos grandes poetas. Os seus palazzi eram governados à boa maneira toscana: mantinha uma orquestra, que apenas tocava música italiana; inscrevia os cavalos nas corridas clássicas; e, quando acabavam as vindimas, as festas - em que se dançavam as velhas danças, e em que as virgens da aldeia pisavam, nuas, as uvas, e os improvisatori recitavam à maneira antiga - traziam de volta os tempos felizes de outrora.

 

Com um pano engordurado preso no braço e os olhinhos pretos vigiando cada movimento dos criados, o velho possuía a vivacidade de espírito bastante para se ocupar também do hóspede estrangeiro com uma conversa efusiva. Não tinha o príncipe Nino, quando um cantor alemão teve a audácia de actuar na Ballerina Amante, a ópera de Cimarosa, expulsado o fulano do palco e cantado ele próprio todo o papel, perante um público extasiado? Quanto ao belo sexo - aqui a larga face do estalajadeiro pareceu contrair-se ao mínimo de um ponto, tão concentrada ficou na comunicação - o fidalgo por si saberia, quando elas se querem atirar para os braços de um homem, que há-de o homem fazer? E mesmo nesse ponto ele se mostrou um verdadeiro filho da sua pátria. Porque teria podido casar com uma arquiduquesa, e até com a irmã do Czar da Rússia, que enlouqueceu de amor por ele quando o viu na corte de Sampetersburgo, mas ele disse-lhe, com as palavras desse admirável Renti no seu Baco na Toscana, que só as pipas de vinho toscano haviam de gemer às suas carícias. Dizia-se também que os maridos da Toscana nem sempre censuravam a sua invencibilidade tanto quanto se poderia pensar, porque a mulher que tivesse pertencido ao príncipe Nino jamais condescendia a tomar novo amante, e não eram poucas as senhoras galantes que, abandonadas por ele, se consagravam ao marido e às recordações. Fora uma verdadeira pena ter dissipado como o fez os bens da sua casa, e até a fortuna da mãe, pois ficara à mercê do velho príncipe Pozentiani, que é dos que emprestam dinheiro. Dizia-se que ultimamente estava mudado. Contava-se que um dia um milagre cruzara o seu caminho e o fizera acreditar em milagres. Alguns pensavam que a Rainha Santa Matilde, sua antepassada, lhe apareceu em sonhos e o fez desviar os olhos do mundo. Neste ponto um dos criados cometeu um erro tão grave ao pôr a mesa que o velho, como num terrível frenesim espiritual, deixou por ali a conversa e precipitou-se para a mesa. Voltou um pouco mais tarde, sorridente mas silencioso, com o vinho que Augustus pedira, e ali o deixou com uma profunda vénia.

 

Dois velhos padres sentaram-se a beber o seu vinho junto aos carvões rubros da lareira, que luziam nas gordurosas batinas pretas, e o rapaz que tinha conduzido o faetonte estava, pensativo, a beber café por um copo, que o seu velho criado lhe trouxera, sentado num banco baixo sob um quadro que representava os anjos visitando Abraão. A jovem silhueta era tão graciosa que Augustus, sempre um admirador da beleza, e encontrando no seu puro rosto pensativo uma semelhança com o do seu amigo Karl em rapaz, achou os olhos presos nele. Quando o velho major-domo, ao voltar, relatou uma discussão entre o cavalariço de Augustus e o seu próprio sobre qual seria o lugar melhor da cocheira, Augustus aproveitou a oportunidade para fazer ao rapaz umas perguntas sobre a estrada de Pisa, e pedir-lhe que o acompanhasse num copo de vinho. O rapaz, com muita cortesia, declinou, dizendo nunca ter pro vado vinho, mas, vendo que Augustus era um estrangeiro e desconhecia a estrada, sentou-se à sua mesa por momentos, a dar-lhe a informação pretendida. Enquanto falava, o jovem descansou o braço esquerdo na mesa e Augustus, reparando, pensou em como é fácil imaginar os naturais deste país, ao vê-los de perto, vivendo desde sempre em palácios de mármore, ocupados em escrever tratados de filosofia, en quanto os seus antepassados, esses, nas extensas florestas talhavam as armas na pedra e vestiam as peles dos ursos a que bebiam quente o sangue. Para que esta mão se formasse, este pulso, deviam ter sido precisos decerto mil anos, reflectiu ele. Na Dinamarca toda a gente tem os tornozelos e os pulsos grossos, e quanto mais alto se sobe em sociedade mais grossos eles são.

 

O rapaz corou de prazer ao ouvir que Augustus era dinamarquês, e disse-lhe que ele era a primeira pessoa que conhecia do país do príncipe Hamlet. Estava familiarizado com a tragédia inglesa, e falava como se Augustus tivesse saído da corte do rei Cláudio. A sua cortesia italiana não lhe permitia o deter-se nos acontecimentos trágicos, como se Ofélia fosse a prima recentemente falecida de Augustus, mas citou o solilóquio de um modo encantador, e disse que em pensamentos muitas vezes visitara Elsinore e estivera no cimo do penedo horrendo que avança sobranceiro pelo mar. Augustus não quis dizer-lhe que Elsinore é uma cidade absolutamente plana, por isso perguntou-lhe se não es crevia poemas.

 

- Ah, não - disse o rapaz, sacudindo os sedosos caracóis castanhos - já escrevi, mas abandonei a poesia há um ano.

 

- Fez mal, talvez - disse Augustus sorrindo. - A poesia é decerto um dos prazeres da vida, e ajuda-nos a suportar a monotonia do mundo.

 

O rapaz pareceu sentir que este estrangeiro era um amigo ou um irmão do infeliz príncipe dinamarquês, e que podia por isso abrir-lhe o coração.

 

- Uma coisa me aconteceu - disse ele após um curto silêncio - que não posso transformar em poesia. Já escrevi comédias e tragédias, mas também nelas não pode caber.

 

E de novo se seguiu uma breve pausa.

 

- Agora - acrescentou ele - vou para Pisa estudar astronomia.

 

Os seus modos graves e amistosos atraíram Augustus, que também em Ingolstadt dedicara muito tempo ao estudo das estrelas. Delas falaram, pois, por algum tempo, e ele contou ao rapaz como o grande astrónomo dinamarquês Tycho Brahe encomendara em Ausburgo a construção de um quadrante com dezanove pés e um globo celeste de cinco pés de diâ metro.

 

- Quero estudar astronomia - disse o rapaz - porque já não suporto pensar no tempo. É como viver numa prisão; se eu pudesse escapar-lhe inteiramente, creio que havia de ser feliz.

 

- Também eu já pensei o mesmo - disse Augustus, melancólico - e no entanto reflecti que, se num momento qualquer da nossa vida, mesmo naqueles momentos que nós julgamos ser os mais felizes, nos dissessem que esse instante continuaria para sempre, concluiríamos que tínhamos sido educados não para a felicidade eterna, mas para o sofrimento sem fim.

 

Lembrou-se com tristeza de como esta recordação antiga lhe viera à mente num certo momento, até, da sua noite de núpcias. O jovem parecia seguir-lhe o curso dos pensamentos com simpatia.

 

- Tenho a infelicidade, Signor - disse ele pouco depois, o jovem rosto mais pálido talvez, os olhos mais escuros do que antes - de ter sempre presente a recordação de uma única hora da minha vida. Até essa hora eu costumava pensar com prazer tanto no passado como no futuro ou no presente, e o tempo era uma estrada que atravessa uma agradável pai sagem e na qual eu podia vaguear, seguir, retroceder, como eu bem quisesse. Mas hoje eu não posso afastar o pensamento dessa hora. Cada segundo nela me parece maior que os anos todos da minha vida. Tenho de fugir-lhe enquanto é tempo. Eu sei - disse ainda - que alguns me recomendariam a ideia de um infinito moral, essa que nos é dada pela religião, como o refúgio seguro, mas já experimentei e de nada me va leu; pelo contrário, a ideia da omnipotência de Deus, do livre-arbítrio do homem, do Céu e do Inferno, tudo me lembra aquilo que eu mais quero esquecer. Quero voltar-me então para o infinito do espaço, e pelo que tenho ouvido parece-me que as estradas dos planetas e das estrelas, as suas elipses e os seus círculos no espaço infinito, devem ter o poder de desviar a mente para novos caminhos. Não pensa o mesmo, Signor?

 

Augustus reflectiu nessa época, não há muitos anos, em que ele próprio sentira ser o espaço sideral a sua verdadeira morada.

 

- Penso - disse ele tristemente - que a vida tem as suas leis de gravitação, tanto as físicas como as espirituais. A herança dos nossos avós, as mulheres'''

 

E olhou pela janela. No céu azul dessa tarde primaveril Vénus brilhava como um diamante.

 

O rapaz voltou-se para ele.

 

- Não pensa, realmente - disse - que eu seja um homem? Não sou, e dê-me licença que lhe diga que me acho feliz por não o ser. Sei, evidentemente, que os grandes feitos foram obra dos homens, mas, mesmo assim, penso que o mundo seria um lugar mais tranquilo se os homens não viessem destruir, tantas vezes, o que nós outras amamos.

 

Augustus sentiu-se confundido ao perceber que vinha tratando uma jovem senhora como se fosse um rapaz, mas não podia desculpar-se por uma coisa que não fora culpa sua. Apressou-se a declinar o nome e a oferecer-se para lhe prestar auxílio na viagem. A rapariga, porém, não alterou de forma alguma a sua atitude para com ele, e pareceu de todo indiferente a qualquer mudança que a informação pudesse ter causado em Augustus. Continuou sentada na mesma posição, cruzando as pernas elegantes sob o capote, e de mãos entrelaçadas à volta do joelho. Augustus pensou que nunca, até aí, estivera falando com uma jovem mulher cujo interesse principal na conversa não fosse a impressão que lhe estaria causando, e reflectiu que seria esse o motivo por que geralmente os colóquios com mulheres lhe pareciam difíceis e fastidiosos. O modo como esta jovem parecia tomar um interesse amistoso e confiante por ele, sem aparentemente se importar com o que ele pensava dela, pareceu-lhe doce e novo, como se subitamente compreendesse que toda a vida tinha procurado esta atitude nas mulheres. Desejava agora que ele próprio conseguisse evitar o tom convencional das conversas entre os homens e as mulheres.

 

- É muito triste - disse ele pensativo - que tenha de nós tão fraca opinião, pois estou certo que todos os homens que a conheceram tentaram agradar-lhe. Não me quer dizer porque pensa assim? Já me aconteceu muitas vezes que uma senhora me dissesse que eu a fazia infeliz, e desejava que ela e eu morrêssemos, numa altura em que precisamente eu tentava com todas as minhas forças fazê-la feliz. Passaram tantos anos depois que Adão e Eva - e olhou na parede da osteria o quadro que os representava - estiveram juntos no Paraíso, que me parece profundamente lamentável não termos aprendido já a agradar uns aos outros.

 

- E a ela, não lho perguntou? - disse a rapariga.

 

- Perguntei - respondeu ele - mas parecia ser o nosso destino que nunca enfrentássemos estas questões a sangue-frio. Quanto a mim, acho que as mulheres, por alguma razão, não querem que os homens conheçam a resposta. Não querem ser compreendidas. Querem mobilizar-se para a guerra. Mas eu desejava que, por uma vez em todo o tempo que houve homens e mulheres, dois embaixadores pudessem encontrar-se, em abertura de espírito, e alcançassem entender-se um ao outro. É verdade - acrescentou ele momentos depois - que um dia conheci em Paris uma mulher, uma grande cortesã, que talvez pudesse ser essa embaixatriz. Mas a senhora não lhe teria dado as suas credenciais, nem haveria de submeter-se às suas decisões. Nem sei se não a consideraria uma traidora ao sexo feminino.

 

A jovem reflectiu por algum tempo no que ele dissera.

 

- Suponho - disse ela então - que até no seu país há festas, bailes e conversazione?

 

- Sim - respondeu ele - com efeito.

 

- Então há-de saber - continuou a jovem lentamente - que o papel do convidado é diferente do papel do anfitrião, ou da anfitriã, e que as pessoas não querem, nem esperam, o mesmo dos dois diferentes papéis.

 

- Penso que tem razão - disse Augustus.

 

- Ora Deus - disse ela - quando criou Adão e Eva - e também ela olhou para o quadro na parede fronteira - fê-los de tal modo que o homem se coloca, nestas questões, no papel de convidado, e a mulher no de anfitriã. Por isso para o homem o amor é encarado com ligeireza, visto a honra e a dignidade da sua casa não se encontrarem envolvidas. E também porque, sem dúvida, pode ser-se convidado de muita gente que nunca havíamos de receber em nossa casa. Diga-me então, conde, que deseja o convidado?

 

- Creio - disse Augustus, depois de reflectir por momentos - que, se ignorarmos, como penso que devemos fazer neste caso, o homem grosseiro que vem para se banquetear, se aproveita do que há e se vai embora, um convidado ambiciona, acima de tudo, divertir-se, esquecer a monotonia diária ou as suas preocupações. Em segundo lugar, o convidado decente quer brilhar, expandir-se, imprimir a sua personalidade naquilo que o rodeia. E em terceiro lugar quer, talvez, achar toda uma justificação para a sua existência. Mas, já que põe a questão em termos tão cativantes, diga-me, Signora: Que quer então a anfitriã?

 

- A anfitriã - disse a jovem - quer que lhe agradeçam.

 

Neste momento sonoras vozes vindas do exterior puseram fim à conversa.

 

  1. A HISTÓRIA DO MATADOR

O dono da osteria entrou primeiro, às arrecuas, segurando um candelabro de três velas em cada mão, e com surpreendente graça e leveza para um homem da sua idade. Após ele, veio o grupo de três homens para quem se pusera a mesa, os dois primeiros dando-se o braço. A sua chegada transformou toda a sala num momento, tanta era a luz que traziam consigo e tanta a cor e altas vozes - e mesmo matéria palpável, já que dois deles eram homens corpulentos.

 

Aquele que atraiu a atenção de Augustus, como chamaria sempre a atenção de quem dele se abeirasse, era um homem de cerca de cinquenta anos, muito alto, muito largo de ombros, e extremamente gordo. Trajava com elegância, de preto, a sua camisa de linho branco resplandecia, usava nas mãos pesados anéis e na charpa imensa um diamante que fais cava de luz. O cabelo fora tinto de um negro asa-de-corvo, e o rosto pintado e empoado. Apesar da gordura e do espartilho movia-se com uma graça peculiar, como se possuísse um ritmo próprio. Em tudo, pensou Augustus, se pudéssemos afastar a ideia convencional de como deve ser a aparência de um ser humano, ele seria um belo objecto e um excelente ornamento em qualquer lugar, e teria dado, por exemplo, um ídolo poderosíssimo, impressionante. Era ele que falava, numa voz aguda e estrídula, e ao mesmo tempo curiosamente agradável.

 

- Ah, é um encanto, um encanto, meu Nino - dizia - estarmos juntos de novo. Mas só soube de si na semana passada, e soube também que comprou uma Danae de Corregio e 16 cavalos malhados de Cascine para acompanharem a sua carruagem.

 

O jovem a quem falava, dando o braço, parecia não lhe prestar muita atenção. Ao observá-lo Augustus compreendeu porque as pessoas da região admiravam tanto a sua beleza. Estivera Augustus visitando mui tas galerias de pintura ultimamente, e reflectira que desses jovens São Sebastião ou São João Baptista, alimentados a mel de abelhas bravas e gafanhotos, ou até desses anjos no Sepulcro aberto, qualquer um poderia descer da moldura, vestindo roupas modernas com elegância e displicência, e ser como ele. Havia até nos tons castanhos e intensos dos seus cabelos, da face e dos olhos, algo da pátina dos velhos quadros, e demais tinha a aparência de não estar pensando em nada, o que deve ser natural no Paraíso, onde não há necessidade de pensar.

 

O terceiro homem do grupo era um rapaz alto, também ricamente vestido, que tinha cabelos louros e ondulados e o rosto como de um carneiro cor-de-rosa, que se continuava pelo pescoço sem o mínimo sinal de um queixo. Estava absorvido a escutar o velho, e não despregava os olhos dele. Todos três se sentaram a cear, com a luz das velas incidindo sobre eles.

 

A jovem senhora olhou os recém-chegados por poucos segundos, levantou-se e, envolvendo-se no capote, saiu da sala. Augustus seguiu-a até onde o criado velho a esperava com uma vela.

 

Ao voltar traziam-lhe a ceia, e ele sentou-se em frente de um capão e de um bolo decorado com natas tintas de cor-de-rosa. Os que ceavam na mesa maior tanto barulho faziam que os pensamentos de Augustus foram perturbados e de tempos a tempos os seus olhos eram arrastados para eles. Reparou que o velho, enquanto obrigava os convidados a beber, bebia apenas limonada, mas todavia não lhes ficava atrás em crescente animação, como se possuísse uma natural embriaguez a que podia recorrer sem auxílios exteriores. Uma vez a sua voz, falando por longo tempo, se impôs à atenção de Augustus, pois contava aos rapazes uma história.

 

«Em Pisa - relatava ele - estive, há muitos anos, presente quando o nosso glorioso Monti, o poeta, sacou da pistola e disparou sobre Monsignor Talbot. Aconteceu numa ceia, tal como esta nossa, com apenas três convivas. E tudo nasceu de uma discussão sobre as penas eternas.

 

Monti, que tinha então acabado o Don Giovanni, estivera por algum tempo mergulhado numa profunda melancolia, e não queria comer nem falar, e Monsignor Talbot perguntou-lhe o que tinha, espantado por ele não estar feliz quando alcançava um tão grande sucesso. Então Monti perguntou-lhe se ele não pensava que poderia pesar na alma de um homem o ter criado um ser humano que estava condenado a arder eternamente nas chamas do Inferno. Talbot sorriu e declarou que isso era coisa que podia suceder apenas às pessoas reais. Ao ouvir isto o poeta, vociferando, perguntou-lhe se o seu Don Giovanni não era real, e monsignor, sorrindo ainda por o outro ter tomado a questão a peito, e recostando-se na cadeira, explicou que reais eram para ele os seres que têm realmente uma existência carnal.

 

- Carnal! - exclamou o poeta. - Pois duvida que Don Giovanni tenha uma existência carnal quando, só em Espanha, se podem achar mil e três senhoras habilitadas a testemunhar o facto?

 

Monsignor Talbot perguntou-lhe se acaso se considerava um criador na mesma acepção de Deus.

 

- Deus! - exclamou Monti - Deus! Pois não sabe que a real ambição de Deus é criar o meu Don Giovanni, e o Odisseus de Homero, e o Cavaleiro de Cervantes? Muito provavelmente esses são os únicos homens para quem se fez o Céu e o Inferno, pois não se concebe que um Deus Todo -Poderoso continue pela eternidade infinita na companhia da minha sogra e do Imperador da Áustria! A humanidade, os homens e as mulheres da Terra são apenas o barro de Deus, e nós, os artistas, somos os Seus instrumentos, e quando a estátua fica pronta, no mármore ou no bronze, Ele parte-nos a todos. Quando morrer, Monsignor, há-de provavelmente apagar-se como uma vela, e nada restará de si, mas nas mansões do Eterno hão-de vaguear Orlando, o Misantropo, e a minha Donna Elvira. Esse é o processo da criação de Deus, e se O achamos um tanto lento, quem somos nós para criticá-Lo, nós que nada sabemos do tempo e da eternidade?

 

Monsignor Talbot, embora ele próprio um grande admirador das artes, começou a sentir-se pouco à-vontade perante estas opiniões heréticas, e exprobou o poeta.

 

- Pois então vá lá o senhor ver como é! - exclamou Monti e, apoiando na quina da mesa o cano da pistola com que estivera brincando, disparou à queima-roupa sobre o monsignor, que se sentava em frente e caiu banhado em sangue. Foi um caso sério, porque Monsignor Talbot teve de submeter-se a uma operação delicada e ficou muito tempo entre a vida e a morte.»

 

Os dois rapazes, que por esta altura tinham já bebido muito, largaram em pilhérias sobre o mote, submetendo ao narrador as várias formas de imortalidade que poderia obter às mãos de diferentes poetas. Ao fazê-lo usaram muitos nomes e expressões que Augustus não conhecia; também as suas vozes eram menos nítidas que a do velho, por isso Augustus só voltou a dar atenção quando este falou de novo.

 

- Não, meninos, não - dizia ele - eu tenho outras esperanças. Mas como lhes poderá fazer bem ocuparem-se uns momentos pensando no Além, e porque assim talvez se dissipe essa nobre melancolia do nosso doce Nino, com que toda a província se aflige, contar-lhes-ei uma outra história.

 

Recostou-se na cadeira, e durante toda a narrativa não mais tocou no prato ou no copo. Augustus reparou que, à medida que ele prosseguia, o rapaz moreno, a quem o velho chamara «o seu Nino», adoptava comporta mento idêntico, de modo que dos três só o rapaz louro com cara de carneiro continuava a deliciar-se com os prazeres da mesa.

 

«Em Pisa viveu, caros amigos - começou o velho - no tempo do meu avô, um fidalgo de alta nobreza e grande fortuna, que conheceu a experiência de ver um jovem amigo, a quem cumulara de mercês, voltar-se contra ele com a comum ingratidão da juventude e infligir-lhe um insulto extremo, um insulto que, para mais, o cobriu de ridículo aos olhos do mundo. Este nobre era um filósofo, e mais do que tudo na vida prezava a sua paz de espírito. Ao compreender que a afronta começava a perturbar-lhe o sono, e que não teria prazer nem recobraria a saúde até vingar-se no sangue do seu jovem inimigo, decidiu-se a verter esse sangue. Ora, devido à sua posição e a outras circunstâncias, não viu modo de ser ele próprio a fazê-lo, e foi por isso falar com um jovem matador da cidade. Nesses tempos tais homens ainda existiam. Este rapaz era de um temperamento extravagante, e, como tal, havia contraído pesadas dívidas, estando numa situação tão desgraçada que não via outra saída excepto o casamento. O amigo do meu avô disse-lhe:

 

- Quero que todos saiam desta pendência perfeitamente satisfeitos. Pagar-te-ei pela minha paz de espírito o que penso que ela vale, e é muito. Presta-me este serviço que em troca liquidarei todas as tuas dívidas até ao terço de contas de coral que tu empenhaste e era da tua avó.

 

Ouvindo isto o matador concordou, e entre os dois se combinou tudo.»

 

Um grande gato, que andava passeando pela sala, neste ponto saltou para os joelhos do velho que contava a história. Sem o olhar, este acariciou-o enquanto prosseguia a narrativa.

 

«O relógio bateu a meia-noite quando o matador o deixou, e ele, sabendo que não conseguiria dormir até ter a certeza de estar re solvido o caso, ficou de vigília no seu quarto, esperando o regresso do rapaz, e mandou que lhe servissem ali mesmo uma ceia, composta de finas iguarias. Ao bater da uma hora no relógio, o rapaz entrou com a morte estampada no rosto.

 

- O meu inimigo está morto? - perguntou o fidalgo.

 

- Está - respondeu o matador.

 

- E tens a certeza? - tornou o mandante, sentindo o coração dançar-lhe no peito.

 

- Tenho - disse o matador - que só pode estar morto o homem que recebe o meu stiletto no coração três vezes até ao cabo. Todos deviam sair, como Vossa Senhoria bem disse, perfeitamente satisfeitos desta pendência. Agora vou beber uma garrafa de champanhe convosco.

 

E assim os dois partilharam de uma agradável ceia.

 

- Sabe Vossa Senhoria - disse o matador - o que eu acho que é uma grande pena? É que todos nos tivéssemos tornado tão cépticos que já mal acreditamos no que as nossas piedosas avós nos ensinaram. Porque me daria grande prazer pensar que, tanto eu como Vossa Senhoria, havemos de padecer as penas eternas do Inferno.

 

O fidalgo ficou surpreendido, e teve pena do rapaz, que parecia tresloucado. Sentiu-se preso de afeição por ele, e por isso tentou consolá-lo.

 

- Isto foi de mais para ti - disse ele. - Supus-te mais homem. Quanto às penas do Inferno, percebo o que me queres dizer, e creio que é muito provável que tenhas razão. O assassínio que cometeste esta noite já eu o tinha cometido muitas vezes em pensamento, e as Escrituras dizem que pensá-lo é o mesmo que fazê-lo com as próprias mãos. Os sofistas poderiam até provar que a tua parte nele foi puramente ilusória, e que hás-de lavar ainda os teus vestidos no sangue do Cordeiro e torná-los brancos. Mesmo assim devo dizer que a soma que recebeste foi a paga do incómodo que por mim tiveste, e do perigo que ainda corres perante as leis de Pisa e os parentes desse meu inimigo que mataste. Na tua alma eu não tinha pensado. Para compensar-te desse risco, por mais pequeno que eu o considere, dar-te-ei, além do que já tens, este anel.

 

Com estas palavras tirou do dedo um anel com um grande rubi, uma pedra muito valiosa, e entregou-o ao rapaz, que se riu ao vê-lo, como se não estivessem falando de coisas sagradas, e se foi embora. O nosso fi dalgo foi para a cama e dormiu bem, pela primeira vez em muitos meses, na consciência de ter enfim satisfeito o seu desejo, e também de ter usado de grande generosidade para com o seu matador.»

 

Neste ponto da história o gato atravessou a mesa e saltou para o colo do jovem príncipe. Como se ele fosse o reflexo num espelho do seu vizinho, também ele começou a acariciar meigamente o animal, recostando-se na cadeira e ouvindo.

 

«Mas era o seu destino - prosseguiu o velho - ver abalada a sua fé nos seres humanos. Poucas semanas mais tarde, e enquanto gozava ainda, como uma segunda juventude, o convívio dos amigos, a música, e a beleza da paisagem dos arredores de Pisa, recebeu uma carta de um seu amigo em Roma, em que este lhe contava que o seu inimigo, esse por cuja morte havia pago um tão alto preço, estava lá, mais vivo do que nunca, e recebendo a alta estima da sociedade romana e da corte papal.

 

Esta última prova da perfídia humana e da loucura que é confiar em amigos ou contratados, foi um duro golpe para esse homem, que a não esperava. Caiu doente e sofreu dores por muito tempo nos olhos e no braço direito, de modo que se viu forçado a ir a banhos para Pyrmont. Mas omitirei esse triste período. Direi somente que esse homem, dado sempre à meditação, entrou em especular no seu futuro e no do seu matador, tal como o haviam discutido à mesa da ceia. Será realmente, pensou ele, a intenção apenas que faz pesar o prato da balança, e nos salva ou nos condena, e não terá a acção nenhum papel aí? Quanto mais pensava nisto mais compreendia que assim devia ser. Provavelmente, pensou ele, a intenção só terá um peso enquanto permanecer uma intenção e nada mais. Porque a acção destrói o desejo. A maneira sem dúvida mais segura de não cobiçar a mulher do próximo é possuí-la, e poderemos amar os nossos inimigos e rezar por aqueles que desdenhosamente se servem de nós apenas se estiverem mortos. Lembrou -se da bondade com que pensara no seu jovem inimigo durante o breve tempo em que o julgara morto.

 

Portanto, pensou ele, o Inferno estará provavelmente cheio de gente que não levou a cabo o que intentara. Seu é o verme que não conhece a morte. E assim - disse o velho, a voz subitamente muito vagarosa e tão suave como uma carícia - tendo perdido a fé nos matadores, ele decidiu que, de futuro, levaria ele próprio a cabo as suas intenções. Mas ainda uma coisa - prosseguiu, no mesmo tom de voz - ele gostaria de saber, antes de votar ao esquecimento essa tragédia: quanto, perguntava-se, é que este seu matador, a quem ele pagara tão generosamente, quanto teria ele recebido por conta do outro lado?»

 

- Esta, meu doce Nino, é a minha história, e espero não o ter maçado com ela. Far-me-ia um grande favor se me dissesse o que pensa dela.

 

Fez-se um silêncio. O jovem príncipe moreno inclinou-se, pousou o braço na mesa e o queixo na mão, e olhou para o velho. Este movimento pareceu-se tanto com o do gato sentado no seu colo, que muito surpreendeu Augustus.

 

- Sim, e se me dá licença - disse ele - maçou-me um pouco; parece-me que, para história, a sua foi demasiado longa, e nem mesmo teve um fim. Que me diz de lhe darmos um fim esta noite?

 

Voltou a encher o copo com a mão esquerda e esvaziou metade dele. Depois, num movimento suave, como se tivesse bebido a ponto de não ser capaz de um esforço mais violento, atirou o copo através da mesa à cara do velho. Escorreu o vinho pela boca de escarlate e o queixo empoado. O copo rolou para o seu colo, e daí tombou ao chão e partiu-se.

 

O rapaz do cabelo louro e encaracolado deu um grito. Num salto, levantou-se, sacudiu um lencinho de renda, e tentou limpar do vinho a cara do outro, como se fosse de sangue. Mas o velho gordo empurrou-o. O seu rosto permanecia absolutamente imóvel, tornado em máscara. Instantes depois nele irradiou, como se vinda do mais íntimo de si, uma luz estranha de triunfo. Impossível seria dizer que as faces se coloriram sob a pintura, mas nelas se manifestou subitamente o mesmo efeito de uma intensa vitalidade, primitiva. Fora um velho enquanto contara a sua história. Ei-lo agora que dava uma impressão de juventude, ou de infância. Augustus viu então quem ele era verdadeira mente: ele tinha toda a corpulência mole, e oculto nela o grande poder, das antigas estátuas de Baco. A atmosfera da sala tornava-se resplendente com os seus raios, como se o velho deus se tivesse revelado aos mortais coroado de folhas de videira. Tomou de um lenço e cuidadosamente limpou a boca; depois, com os olhos fitos no lenço, falou em voz baixa e suave, a voz que um deus usaria ao falar com se res humanos, consciente que o seu vigor normal lhes seria insuportável.

 

- É uma tradição na sua família, Nino, eu sei - disse ele - este requintado savoir-mourir.

 

Sorveu um gole de limonada, para tirar o gosto do vinho que tocara a sua boca.

 

- Que excelente crítico você é - prosseguiu - não só das suas canções toscanas, mas da prosa moderna também. Era esse exactamente o defeito da minha história: não ter um fim. É uma coisa encantadora, um fim, quer vir amanhã ao nascer do Sol ao pátio nas traseiras desta casa? Eu conheço o lugar; é excelente.

 

- Irei - disse Nino, ainda na mesma atitude, com o queixo apoiado na mão.

 

- Obrigado - disse o velho - obrigado, meu caro. E agora - prosseguiu, com uma dignidade calma - se me dá licença, retiro-me. Não posso - disse ele, relanceando um olhar à camisa manchada - continuar em sua companhia neste preparo. Arture, dê-me o seu braço. Já lho mandarei, Nino, para combinarem. Boa-noite, durma bem!

 

Depois de ele sair pelo braço do rapaz louro que, mortalmente pálido, parecia tomado de pânico, o outro deixou-se ficar sentado durante algum tempo sem se mexer, como se tivesse adormecido à mesa. Então, voltando-se, olhou directamente para Augustus, de cuja presença parecia só agora dar-se conta, encaminhou-se para ele e saudou-o com toda a delicadeza. O seu passo não era muito firme, mas ainda assim tinha o ar de quem, espiritualmente, estava pronto a tomar parte num ballet.

 

- Foi testemunha, Signor - disse ele - de uma questão entre mim e o meu amigo, o príncipe Pozentiani, a quem terei de dar satisfações. Quererá o senhor, como fidalgo que é, fazer-me o obséquio de ser o meu padrinho amanhã de manhã? O meu nome é Giovanni Gastone, da Toscana, ao seu serviço.

 

Augustus disse ao príncipe que nunca na vida ele travara um duelo, e que tomar parte num, agora, o deixava inquieto.

 

- Gostaria de poder ajudá-lo - disse ele - mas não posso deixar de pensar que seria preferível resolver uma questão como esta, entre amigos e à ceia, de um modo amigável, e que, além disso, o senhor não há-de querer bater-se com um homem muito mais velho por uma questão que nem merece tal nome.

 

Giovanni sorriu-lhe com toda a doçura.

 

- Tranquilize a sua consciência, conde - disse-lhe - o príncipe é o ofendido e será ele a escolher as armas. Se vivesse na Toscana já teria ouvido falar na sua pontaria. Quanto à idade, é certo que ele já viveu o dobro dos anos que eu vivi, ou o senhor, mas apesar disso é uma criança, comparado com qualquer de nós. Ser-lhe-á coisa natural viver até aos duzentos anos, como para nós viver até aos sessenta. Aquilo que nos derruba a ele nem o atinge. Esse homem é um autêntico prodígio.

 

- O que diz - replicou Augustus - não me parece trazer mais sensatez ao vosso duelo. Não poderá ele então matá-lo a si?

 

- Não, não - disse o rapaz - que ele tem sido o meu melhor amigo há muitos anos. Queremos saber qual dos dois realmente está nas boas graças de Deus.

 

O grito claro e profundo de um pássaro soou no jardim, como se fora a voz da própria noite.

 

- Ouve cantar l'aziola? - perguntou Giovanni. - Antigamente era sinal que algo de bom me iria acontecer. Não sei - acrescentou depois - o que me anuncia agora, a menos que Deus tenha muito mais imaginação do que eu próprio''' ou melhor, a menos que Ele seja muito mais pa recido com o meu amigo príncipe do que é parecido comigo. Mas, evidentemente, confio que Ele o seja.

 

Ficou pensativo por uns momentos.

 

- Esses cavalos que eu comprei - disse ainda - não lhes dei nome. O príncipe, sabe?, acharia facilmente uns nomes para eles. Lembra-se o senhor de algum?

 

  1. AS MARIONETAS

Quando o jovem príncipe, agradecendo uma e outra vez, desejou as boas-noites ao padrinho e o deixou, o velho criado que Augustus vira no faetonte veio por trás dele, silencioso como um gato, e tocou-lhe na manga. A sua ama, disse ele, havia sido incomodada pelo barulho, e desejava que o senhor conde lhe dissesse o que se passava. Estava, aliás, à espera do conde na esquina da casa, onde a luz de uma janela batia num banco de pedra. O velho criado manteve-se às ordens, a pouca distância, junto a uma grande árvore.

 

Augustus hesitou em informar a jovem do duelo, mas afinal ela já sabia tudo, pois o velho major-domo e o patrão da estalagem tinham estado a escutar à porta. O que ela queria saber, e que muito parecia agitá-la, era como surgira a questão. Augustus pensou que o melhor seria contar-lhe, para o caso de haver mais tarde um inquérito, e assim, declarando que ele próprio não via como daí nascera uma luta de vida ou de morte, repetiu-lhe os passos da conversa de que ainda se lembrava. Ela ouviu-o sem dizer nada, tão direita e imóvel como uma estátua, mas no meio da narrativa pegou-lhe no braço e conduziu-o até ao círculo de luz. Quando Augustus terminou, ela pediu-lhe que contasse de novo toda a história do matador, interrompendo-o para que ele repetisse certas palavras e figuras.

 

Quando Augustus, pela segunda vez, chegou ao fim, ela subitamente virou-se para a luz, e ele assustou-se por ver no seu rosto, como no reflexo de um espelho, a expressão do velho príncipe ao ser tão vivamente insultado. Ela não usava pó nem pintura, de modo que Augus tus pôde seguir o curso do sangue que lentamente lhe subiu à testa, até que todo o rosto enrubesceu como se ela tivesse feito um violento exercício ou bebido um vinho forte. De uma forma mais ligeira - porque não carregava como ele um peso físico ou moral - ela compartilhou nesse instante da sua metamorfose divina, e podia ter passado, seguindo as pisadas desse velho Dionísio, por uma jovem bacante ou, até, tal era a luz dos seus grandes olhos, por uma das suas panteras.

 

Respirou profundamente.

 

- Desde o primeiro instante que o vi, Signor - disse ela - soube que algo de bom iria acontecer-me. Diga-me, peço-lhe: é possível, se ambos dispararem ao mesmo tempo, e ambos fizerem boa pontaria, que as duas balas atinjam os corações de ambos no mesmo instante, e que ambos morram?

 

Augustus pensou que esta jovem senhora tinha uma alma sanguinária, que não se coadunava com o seu interesse pela filosofia e pelas estrelas.

 

- Nunca ouvi dizer que tal coisa tivesse acontecido - disse ele - embora eu não possa afirmar que não seja possível. Por mim, estou inquieto com o resultado deste duelo; é uma estranha coincidência ter ouvido mencionar, ainda ontem, que este velho príncipe era um atirador temível.

 

- Toda a gente sabe - disse ela - que, se ele não consegue assustar as pessoas de outro modo, usa das pistolas. Mas diga-me, peço-lhe, Signor - prosseguiu ela - quem é o jovem que o príncipe vai matar? Não me disse ainda o seu nome.

 

Augustus disse-lho. De novo ela ficou em silêncio, imóvel.

 

- Giovanni Gastone - repetiu lentamente. - Então eu mesma já o vi. No dia da minha primeira comunhão, há cinco anos, ele acompanhava a avó à Basílica, e segurava a sombrinha para a proteger, no caminho da carruagem ao portal, porque chovia muito.

 

- Que se deite - disse ela pouco depois. - Se esta há-de ser a última noite em que ele poderá deitar-se, que a durma. Mas nós, Signor, nós não poderemos conciliar o sono, e que faremos? O meu criado disse-me que está uma companhia de marionetas na pousada, e, como os carroceiros de Pisa voltam tarde, os artistas vão dar um espectáculo daqui a pouco. Vamos nós também assistir.

 

Augustus sentia que, por si, também não seria capaz de adormecer. Com efeito, jamais se sentira tão desperto, ou em mais agradável vigília. Sentia o corpo mais leve, como quando era rapaz. Com o espanto feliz de um pesquisador que descobre um filão de ouro na rocha, Augustus reflectiu que dera com todo um filão de acontecimentos na vida. A companhia da jovem também lhe agradava particularmente, e ele pensava se não seria, em parte, por ela estar vestida como ele de longas calças pretas, que lhe pareciam ser o trajo normal de um ser humano. Os folhos e caudas com que as mulheres em geral acentuam a sua fe minilidade, por força, pensou, levam os homens a falar-lhes como a soldados em uniforme, ou clérigos de batina, e nem uns nem outros nos dirão grande coisa. Seguiu-a, pois, até ao grande celeiro caiado onde se levantava o teatro e já a peça corria.

 

A atmosfera ali era quente e sufocante, embora no alto uma janela se abrisse para o esmalte azul do céu nocturno. Pessoas enchiam até meio a casa, muito escassamente iluminada por umas lanternas velhas que pendiam do tecto. À volta do palco as velas da ribalta criavam um oásis mágico de luz, fazendo o carmim, o laranja e o verde vivo dos fatinhos dos bonecos, provavelmente fanados e baços à luz do dia, brilhar, resplandecer como jóias. As sombras dos bonecos, muito maiores do que eles, reflectiam todos os seus movimentos na brancura do pano de fundo.

 

O artista interrompeu a representação à chegada dos distintos espectadores, foi buscar-lhes duas poltronas e colocou-as junto ao palco, à frente da plateia. Depois retomou o fio à meada onde se interrompera, falando bem alto nas vozes diferentes das suas personagens.

 

A peça que se representava era a imortal Vingança da Verdade, a mais encantadora das comédias de marionetas. Todos se lembrarão que a acção começa quando uma feiticeira pronuncia, na casa onde se reúnem todas as personagens, uma maldição que é a seguinte: toda a mentira que ali se disser se há-de tornar em verdade. Assim, a rapariga mercenária que tenta caçar um marido rico fazendo-o crer que o ama, apaixona-se de facto por ele; o fanfarrão torna-se um herói; os hipócritas tornam-se ao fim realmente virtuosos; e o velho avarento, que diz a toda a gente que é pobre, acaba por perder a fortuna. Quando se encontram sozinhas, as mulheres falam em verso, mas a linguagem dos homens é por vezes bem grosseira; só um rapazinho, o único inocente da comédia, tem algumas belas canções, que são acompanhadas por um bandolim atrás do palco.

 

A moral da peça agradou ao público, e os rostos cansados e encardidos iluminaram-se quando riram de Mopsus, o palhaço. A jovem seguia o desenrolar da acção com os olhos de um oficial do mesmo ofício. Augustus sentiu, com estranheza, nesta sua disposição de ânimo, que algumas das falas das personagens lhe iam direitas ao coração. Quando o apaixonado disse à bela que um pedaço de pão seco mata melhor a fome do que todo um livro de cozinha, ele tomou a frase quase por uma advertência. A vítima, que não desconfia das intenções do assassino, fala da beleza do luar, e o vilão responde-lhe com uma dissertação sobre o absurdo do poder divino, que nos faz ter prazer com as coisas que não encerram para nós qualquer vantagem, e que podem afinal, muito pelo contrário, prejudicar-nos; e prossegue dizendo que, portanto, Deus nos ama da mesma forma que nós gostamos dos cães: quando Ele está bem-disposto nós andamos bem-dispostos; quando Ele está deprimido, nós ficamos deprimidos; e se Ele, num gesto romântico, cria uma noite de luar, nós seguimos, pequeninos, o Seu humor, tão bem quanto podemos. Isto fez sorrir Augustus. Pensou no quanto gostaria de sentir-se, ainda uma vez, como quando era criança, um dos cãezinhos de Deus.

 

No fim a feiticeira volta a aparecer, e ao perguntarem-lhe o que é realmente a verdade, ela responde «A verdade, meus filhos, é que nós estamos, todos nós, a representar uma comédia de marionetas. O que é importante, o mais importante de tudo, numa comédia de marionetas, é manter a clareza das ideias do autor. É essa a verdadeira felicidade; e eu, que finalmente entrei numa peça de marionetas, desejo nunca mais sair dela. E vós, actores meus irmãos, mantendo a clareza das ideias do autor. Ah, levai-a até às últimas consequências.» Esta fala pareceu a Augustus, subitamente, encerrar grandes verdades. Sim, pensou ele, se a minha vida fosse apenas uma comédia de marionetas onde me coubesse um papel, e eu o soubesse bem, então vivê-la talvez me fosse mais leve e doce. As gentes deste país parecem de algum modo praticar este ideal. São imunes aos terrores, aos crimes e aos milagres da vida, onde têm um papel como se fossem os pequeninos actores no palco do velho titereiro. Para os povos do Norte, as fortes agitações da alma sobrevêm a cada vez como estranhas, e, quando se encontram agitados, as palavras saem-lhes aos tropeços. Mas estes aqui falam fluentemente sob as mais violentas paixões, como se a vida fosse, em cada um dos seus caprichos, uma comédia que eles já tivessem ensaiado. Se eu agora, finalmente, pensou ele, entrei numa peça de marionetas, desejo nunca mais sair dela.

 

Durante a última cena, quando todas as marionetas em palco recebiam os aplausos do público, Augustus ouviu uma porta que se abria ao fundo do celeiro, e ao voltar-se viu o príncipe Giovanni e o seu criado que entravam e olhavam a assistência como à procura de alguém. Julgando que era ele a quem buscavam, Augustus levantou-se e foi ter com eles, que se mantinham um pouco afastados do barulho do teatro. Sentia-se um tanto envergonhado por ter saído a divertir-se nessa noite que poderia ser a última para o rapaz, mas Giovanni não parecia surpreendido e perguntou-lhe se a peça tinha sido boa.

 

- Aconteceu um lamentável percalço - disse ele. - O jovem amigo do príncipe, que seria seu padrinho, está com um ataque. Sente-se muito agoniado e não consegue parar de chorar. Eu lembrei-me de o ter vis-to ao serão em companhia de um rapaz que tomei, dado o modo como o senhor lhe falava, por um jovem da alta nobreza, talvez seu compatriota. Vim rogar-lhe que o convença a tomar o lugar de padrinho amanhã de manhã, porque nem eu nem o príncipe queremos adiar o combinado.

 

As palavras do príncipe colocaram Augustus num dilema. Não queria revelar o segredo da jovem senhora, e reflectiu que talvez fosse melhor manter Giovanni na suposição de que ela era realmente um rapaz do seu país, de quem Augustus estivesse mais ou menos encarregue.

 

- Esse jovem - disse ele - parece-me ser demasiado novo para tomar parte em caso tão sinistro. Mas, como ele está aqui comigo, se quiser esperar, eu vou falar com ele.

 

Ao voltar para junto da jovem senhora, ela estava ainda olhando o palco, mas nesse preciso momento o pano desceu pela última vez. Au gustus repetiu-lhe a conversa que tivera com o príncipe, e sugeriu que encontrassem uma desculpa que lhe permitisse a ela partir de manhã cedo, para não se envolver na questão. Ela pensou por uns momentos, levantou-se e olhou para Giovanni que, no outro extremo do celeiro, olhava para ela e para Augustus.

 

- Signor - disse ela em voz lenta e grave - gostaria de conhecer o seu amigo, o príncipe Nino, e nada me daria mais prazer do que ser padrinho no seu duelo. As nossas famílias nunca mantiveram relações de amizade, mas em pendências de honra é um dever ignorar quaisquer divergências do passado. Tenha a bondade de lhe dizer que o meu nome é Daniele delle Gherardesci, e que estou ao seu dispor.

 

O príncipe Giovanni, ao ver que ambos o olhavam, aproximou-se e, quando Augustus os apresentou, os dois jovens trocaram um cumprimento de extrema cortesia. Ela virava as costas ao palco, e as luzes da ri balta punham uma auréola no seu cabelo, de tal modo que, na sua atitude serena e arrogante, ela parecia um jovem santo mascarado de dandy. A assistência, que se levantava, ao reconhecer o príncipe parou a olhar para ele, mantendo-se a uma certa distância do grupo.

 

O príncipe exprimiu a sua gratidão pela cortesia que lhe fora feita.

 

- O príncipe - disse a rapariga - no Egipto, onde ela era uma velha mulher e ele o primeiro-ministro, su-cedeu que a mulher de Putifar obteve uma audiência com José para pedir-lhe a grande Ordem da Estrela do Paraíso para o genro. «Penaliza-me importuná-lo, Excelência - disse ela - mas sinto que já passou tanto tempo desde que lhe pedi alguma coisa que espero ser ouvida sem desagrado.» Ao que o primeiro-ministro respondeu: «Senhora, um dia houve em que estive no cárcere. Ali não podia olhar as estrelas, mas costumava sonhar com elas. Sonhava que, por não poder vigiá-las, elas corriam por todo o firmamento, e os pastores, que à noite conduziam as ovelhas e os camelos, se perdiam no caminho. Sonhei, até, uma vez consigo, senhora, e que, ao encontrar a estrela Aldebarã caída do céu, a apanhei e lha ofereci. A senhora colocou-a então no seu fichu e disse: Mil vezes obrigada, José. Ainda bem que o meu sonho se tornou mais ou menos realidade. A Ordem que pretende para o seu genro já a ele pertence.»

 

Pouco depois separavam-se.

 

VII. O DUELO

O Sol não nascera ainda, mas havia no ar a maravilha de uma promessa de luz, e nem uma nuvem no céu. As lajes do pátio estavam ainda húmidas de orvalho; um pássaro primeiro, depois outro, começaram a cantar, ocultos nas árvores do jardim, e da estrada chegaram as vozes dos carroceiros que já se tinham posto a caminho e seguiam a pé, ao lado dos bois de longos cornos.

 

Augustus foi o primeiro a sair da pousada. A friagem da manhã e o ar, puro como um copo de água, fizeram-no inspirar profundamente, lentamente gozando o aroma da lenha, das árvores em flor e do pó da estrada. Parecia-lhe estranho que andasse neste ar a morte, e todavia era certo que os dois adversários encaravam o duelo com a mais grave seriedade; e, pelas regras que ouvira ditar na noite anterior, pensava ele ser muito provável que um dos dois não visse já o Sol do meio-dia nesse céu sem uma nuvem.

 

A ideia da morte ia sendo cada vez mais imperiosa à medida que os seus passos se encaminhavam, lentos, para o extremo do longo pátio. Dali se descobria um vasto panorama da estrada, com os seus renques de árvores que em meandros subiam e desciam pela paisagem. Distinguiu no horizonte uma linha baixa, irregular, azul, sobre a qual pairava no céu uma pequena nuvem. Quando o Sol fosse alto, pensou ele, nela se acharia Pisa. Ei-la, a primeira estação da sua jornada, pois tinha cartas de apresentação para várias pessoas da cidade. Mas estes, aqui, apressavam-se a seguir para uma estação derradeira de uma jornada mai or, e ele reflectiu que deviam ter, de um certo modo, percorrido e conhecido mais estradas do que ele, para assim se encontrarem prepa rados a porem-lhe um fim desta maneira.

 

Ao voltar sobre os seus passos viu Giovanni sair, acompanhado pelo criado, e deter-se a olhar o céu azul como ele próprio havia feito. Vendo-o, o jovem italiano foi ao seu encontro e desejou-lhe um bom dia, e juntos caminharam de um lado ao outro do pátio, falando de assuntos indiferentes. Se o duelista estava nervoso, sepultava a inquietação no mais íntimo de si, só a deixando transparecer nessa nova suavidade e jovialidade de maneiras. Ao mesmo tempo Augustus tinha a sensação de que ele se abraçava à proximidade da hora fatídica com uma ternura apaixonada, como para não deixar que o mundo lha roubasse.

 

Dois criados do velho príncipe saíram, transportando uma vasta poltrona. A corpulência do príncipe não lhe permitia bater-se de pé, e costumava praticar o tiro sentado. Perguntaram os criados a Augustus onde haviam de colocar a cadeira, e todos começaram a procurar um sítio perfeitamente plano do lajedo. Teria de haver uma distância de 10 passos entre os combatentes, e estes foram escrupulosamente medidos, marcando-se depois o lugar onde havia de ficar Giovanni. Os criados do velho príncipe trouxeram também um par de pistolas num estojo muito elegante, e colocaram-no, junto a um copo de limonada e um lenço de seda, sobre a mesinha perto da cadeira. Voltaram a entrar na pousada. Enquanto se procedia a estes preparativos, a rapariga e o seu velho criado atravessaram o longo pátio. Ela vinha pálida, no seu grande capote, e mantinha-se um pouco afastada dos outros. O médico, que fora chamado à aldeia - um velho que cheirava a hortelã-pimenta e usava ainda a cabeleira de bolsa da geração anterior - chegou ao mesmo tempo e quedou-se junto dela, entretendo-a com histórias de duelos que lera ou ouvira contar, e que acabavam todas em mortes. O jovem príncipe, à distância, olhava-os de vez em vez. O ar parecia encher-se aos poucos de luz; o canto dos pássaros fez-se de súbito muito claro. Pairava a sensação de que alguma coisa iria suceder. Na estrada um grande rebanho de ovelhas passou, levantando uma nuvem de poeira que já se tingia de ouro.

 

Olhavam a porta da osteria quando esta foi aberta e o velho príncipe surgiu, apoiado no braço do criado. Estava vestido com muita elegância num casaco verde-garrafa, tinha-se pintado com grande esmero, e deslo cava-se com toda a graça e dignidade. Patenteava-se no seu rosto uma profunda comoção. O Sol ergueu-se então acima do horizonte, mas a sua chegada não transformou ou dominou a cena tanto como a entrada do velho. Todos os outros, de uma ou outra maneira, reprimiam ou dis farçavam as suas verdadeiras emoções, ao passo que ele mostrava a sua angústia com a simplicidade de uma criança pura, perfeitamente con fiante na simpatia de tudo o que a rodeia. Os seus olhos negros estavam húmidos, mas eram francos e gentis como se tudo na vida lhe fosse natural e benigno, dando a mesma impressão de segurança e mestria que um grande virtuoso ao percorrer no violino todas as escalas, até ao trilo do Diabo, como se fossem brincadeiras de crianças. Este seu equilíbrio mental era tão impressionante, tão surpreendente como o equilíbrio do seu obeso corpo nos pés minúsculos e elegantes. No momento em que os seus olhos encontraram os de Augustus, nessa manhã, no pátio, este ficou certo que o tiro desse velho seria mortal. O próprio Júpiter, o raio oculto no bolso da casaca, não teria provocado mais forte impressão de invencibilidade.

 

A todos cumprimentou, cortês e afável, e logo pareceu fazer do médico um seu escravo. Os olhos de peixe do clínico seguiam os menores movimentos do grande homem. Este não tinha pressa, mas também não queria retardar as coisas. Era claro, desde o momento em que ali apareceu, que tudo se processaria dentro da medida e graça de um perfeito minuete.

 

Após algumas observações sobre o tempo e o cenário, e depois de expressar a sua gratidão aos dois padrinhos, o príncipe, ainda de pé, deu as pistolas a escolher ao amigo; quando Giovanni, com uma das armas na mão, se retirou para a posição que lhe fora destinada, ele libertou-se do braço do criado, curvou-se perante o adversário numa vénia profunda e, com um grande movimento de alívio, como se agora chegasse ao fim feliz da existência quotidiana e ao princípio da verdadeira vida, segurando a outra pistola sentou-se na vasta poltrona, descansando por momentos a arma no joelho. Augustus ocupou o seu lugar a uma distância igual dos duelistas, para que ambos pudessem ouvir o seu sinal. Uma leve brisa perpassou então na folhagem do jardim, fazendo cair as flores das árvores e espalhando a sua fragrância.

 

Augustus já pigarreava, a preparar-se para o um, dois, três da praxe, quando a fraca figura da jovem, que o estava fitando, avançou até ao velho príncipe e, erguendo a mão até à anca, falou numa voz clara e profunda, como se um pássaro do jardim viesse pousar no ombro do velho e só para ele cantasse.

 

- Permita-me, príncipe - disse ela - que eu lhe fale antes que atire. Tenho algo a dizer-lhe. Tivera eu uma certeza absoluta no desfecho deste duelo, que havia de aguardar que matasse o seu amigo, mas ninguém pode adivinhar quais os desígnios da Providência, e eu não quero que morra, senhor, sem ouvir o que tenho a dizer-lhe.

 

Todos os rostos se tinham voltado para ela, mas ela fitava apenas o rosto sereno e pesaroso do velho. Parecia muito jovem e pequena, mas a profunda gravidade e o sangue-frio davam à sua figura uma importância terrível, como se um anjo destruidor e jovem tivesse descido veloz do céu azul até ao pátio de pedra, para ali presidir a um julgamento.

 

«Há um ano atrás - disse ela - Rosina, sua esposa, foi a meio da noite encontrar-se com o primo, que iria deixar Pisa nessa manhã, em casa da velha ama, junto ao porto. Era necessário que os dois se falassem, e decidissem o que fazer, e Rosina sentia, além disso, que as forças a abandonavam, que precisava de ver mais uma vez o amado, pois se o não visse cuidava ela que morria.

 

Rosina, como sabe, tinha sempre uma lamparina acesa no quarto, e não ousava apagá-la nessa noite com medo que o senhor pudesse entrar ou mandasse uma das suas espias, as criadas dela, espreitar, e sendo assim, vendo o quarto vazio, acordasse toda a casa. Por isso pediu à sua melhor amiga, uma virgem como ela, alguém que, por virtude de um juramento sagrado, estaria sempre pronta a servi-la, pediu-lhe que tomasse o seu lugar na cama por essa única hora. Entre ambas subornaram a sua criada negra, Baba, com dez varas de veludo carmesim e um cãozinho de Bolonha, que pertenciam à amiga de Rosina - e que era tudo o que elas possuíam no mundo e podiam oferecer-lhe - para que lhes abrisse a porta. Entraram e saíram vestidas como ajudantes de boticário, oficial que por vezes era chamado a dar um clister à sua velha governanta. Rosina foi a casa da ama e falou com Mario na presença da velha mulher, pois assim devia ser. Juraram um ao outro fidelidade eterna, e ela deu-lhe uma carta para o tio-avô em Roma, e voltou ao palazzo quando passava já da uma hora. Esta, príncipe, é a minha história, que eu queria que soubesse.»

 

Todos estavam perfeitamente imóveis, como um grupo de bonequinhos de madeira colocados naquele pátio, no meio de um grandioso cenário - Augustus e o velho médico, porque não percebiam o que as palavras significavam; o velho príncipe e Giovanni porque a impressão que elas causavam era tão profunda que os paralisava.

 

Por fim o velho falou.

 

- Quem - disse ele - o mandou hoje aqui para me dizer isso, meu bonito e jovem Signor?

 

A rapariga fitou-o nos olhos.

 

- Não me reconhece, príncipe? - perguntou. - Eu sou aquela rapariga, Agnese delle Gherardesci, que prestou a sua mulher tal serviço. Viu-me o senhor no seu casamento, onde fui como dama de honor, vestida de amarelo. E também outra vez em que entrou nos aposentos de Rosina e eu jogava xadrez com o professor Pachiani, que o senhor mandara para lhe falar dos seus deveres de esposa. Ela estava de pé, junto à janela, para que não se visse que chorava.

 

Depois que a jovem disse estas palavras, o príncipe Giovanni nunca mais desviou os olhos do seu rosto; por tudo o que depois aconteceu ele se quedou imóvel como as árvores do jardim.

 

O velho príncipe, sentado na sua vasta poltrona, mais se assemelhava agora a um velho ídolo, sereno e belo, feito de um mosaico de ouro, marfim e ébano. Fitou com interesse a rapariguinha.

 

- As minhas desculpas, Signora - disse ele, numa profunda mesura. Depois voltou a sentar-se em silêncio.

 

- Então - disse ele devagar, ao fim de algum tempo - se a Baba me ti vesse sido fiel eu encontraria os dois naquela noite, na casa junto do porto, e tê-los-ia em meu poder?

 

- Assim seria - disse a rapariga. - Mas eles não se importariam de morrer às suas mãos se pudessem morrer juntos.

 

- Não, não, não - disse o velho príncipe - de modo algum! Como pôde imaginar que eu os matava? Mas havia de os despir e lhes dizer que os iria mandar matar de uma maneira horrível na manhã seguinte, e fechá -los-ia juntos no mesmo quarto. Ela, quando se assustava ou se zangava, o seu rosto, todo o seu corpo se ruborizava como a flor do aloendro.

 

À recordação, mergulhou em pensamentos por largo tempo. Parecia entorpecer cada vez mais, como coisa inanimada, até que, subitamente, uma onda de cor se espalhou pelo seu rosto.

 

- E então - exclamou com profunda emoção - ainda eu a teria, a minha linda criança, para brincar comigo!

 

Fez-se um silêncio longo; ninguém se atreveu a falar na presença de tanta dor.

 

De súbito ele sorriu para todos; foi um sorriso muito suave e doce.

 

- Sempre pecamos - disse ele em voz aguda e clara - por pequenez. In vejava esse rapaz, Mario, por isso, e era um sentimento mesquinho. E na minha vaidade achei que preferia que o herdeiro do meu nome, se tivesse de existir, fosse da semente de uma casa ducal. Tão pequeno que eu fui, tão pequeno, para querer entender os caminhos de Deus!

 

- Nino - disse ele momentos depois - Nino, meu amigo, perdoe-me. Dê-me a sua mão.

 

Profundamente comovido, Giovanni largou a pistola e tomou nas suas a mão do velho amigo. Mas o príncipe, depois de apertar os dedos do rapaz, de novo tomou da pistola, como a pôr-se em guarda contra um inimigo maior.

 

Os negros olhos profundos fitavam um ponto à sua frente. Os lábios estavam entreabertos, como se fosse cantar.

 

- Carlotta - disse.

 

E depois, num estranho movimento de cansaço voltou-se para o lado direito e tombou, arrastando a cadeira, de lado no chão, o grande peso ressoando na laje com um baque surdo. A cadeira ficou com duas pernas no ar quando ele rolou do assento para o chão e se imobilizou. Nesse instante a arma, que ele ainda segurava na mão, disparou-se, e a bala, tomando uma estranha trajectória, rasou de tão perto a cabeça de Augustus que ele ouviu-a assobiar como se fosse o canto de um pássaro. Atordoou-o durante uns segundos, e trouxe-lhe a imagem da mulher. Quando voltou a sentir as pernas firmes viu que o médico, ajoelhado junto ao velho príncipe, erguia ambos os braços ao Céu. O rosto do velho tomava lentamente uma cor de cinza. A pintura das faces e dos lábios parecia um esmalte rosa e carmesim sobre um campo de prata.

 

O médico deixou cair os braços e colocou uma das mãos sobre o peito da figura imóvel. Momentos depois voltou a cabeça e encarou os que permaneciam atrás dele, o seu rosto preso de um tão imenso terror que toda a expressão dele tinha desaparecido. O seu olhar encontrou o dos outros, e o rosto alterou-se. Ergueu-se, e declarou em tom solene: - Morreu.

 

Ninguém foi capaz de um gesto. A figura do velho príncipe, jazendo imóvel no pátio, era ainda o centro do quadro, tal como se estivesse lentamente subindo aos céus e eles, os seus discípulos, deixados para trás, o seguissem ainda com os olhos. Só Nino, como uma dessas figuras que são postas nos quadros sacros para retratar o doador, só ele mantinha em certa medida uma perspectiva própria.

 

O Sol, erguendo-se no céu azul da manhã emprestava uma flor de neblina ao verde pano que cobria as pesadas curvas do corpo do velho sobre o lajedo do pátio.

 

VIII. A CATIVA LIBERTADA

Quando os criados do velho príncipe o ergueram e transportaram para dentro, Giovanni e Agnese acharam-se face a face no pátio então deserto. Os olhos negros de ambos encontraram-se e, como se esta fosse a mais fatal das suas missões nessa manhã de Primavera, ela fitou-o por todo o tempo que levou o galo do estalajadeiro - que descendia do galo da casa do sumo-sacerdote Caifás, e cujos antepassados foram trazidos para Pisa pelos Cruzados - para erguer e acabar um longo canto. Então ela voltou-se para seguir os outros e entrar na pousada. Nesse momento ele falou, ainda imóvel.

 

- Não se vá.

 

Ela deteve-se por instantes esperando, mas não lhe dirigiu uma palavra.

 

- Não se vá - repetiu ele - antes de consentir que eu lhe fale.

 

- Não creio - retorquiu ela - que possa ter alguma coisa a dizer-me.

 

Por largo tempo ele se quedou, muito pálido, como se fizesse um grande esforço para recuperar a voz, e depois disse, num tom grave e mudado:

 

Lo spirito mio, che giá cotanto

tempo era stato ch'alla sua presenza

non era di stupor tremando affranto

senza degli ochi aver più conoscenza,

per occulta virtù che da lei mosse

d'antico amor senti la gran potenza.

 

Seguiu-se um longo e profundo silêncio. Ela seria uma pequena estátua do jardim se o fraco vento matinal não brincasse nos seus cabelos, erguendo os sedosos caracóis.

 

- Tinha-te deixado - disse ele, falando como alguém que sonhasse - e ia-me embora, mas ao chegar à porta voltei-me para trás. Estavas sentada na cama. O teu rosto mergulhava na sombra, mas a lamparina iluminava-te os ombros e as costas. Estavas nua, pois eu tinha rasgado os teus vestidos. A cama tinha cortinas verdes e amarelas, como as minhas florestas nas montanhas, e tu eras a minha imagem de Dafne, que se volta e é transformada em loureiro. E eu estava ali, na escuridão. O relógio bateu a uma hora. Durante um ano - exclamou ele - não pensei em mais nada senão nesse momento!

 

De novo os jovens se imobilizaram. Como as marionetas da noite anterior, estavam em poder de outras mãos, mais fortes, e não tinham ideia do que iria suceder-lhes. Ele falou de novo:

 

 

Di penter si mi punse ivi l'ortica

che di tutt'altre cose, qual mi torse

più nel suo amor, più mi si fe' nemica.

Tanta riconoscenza il cuor mi morse

ch' io caddi vinto.

 

Deteve-se porque, embora tivesse repetido a si próprio tantas vezes estes versos, nesse momento não conseguiu lembrar-se do resto. Era como se ele também tombasse morto, como o velho adversário.

 

Ela voltou-se e de novo o olhou, muito severamente, e no entanto o seu rosto expressava a clareza e a calma que os sons da poesia produzem naqueles que a amam. Falou para ele, muito lentamente, na sua clara e doce voz, como a de um pássaro:

 

''' da tema e da vergogna

voglio che tu ormai ti disviluppe

e che non parli più com' uom che sogna.

 

Por um momento ela desviou o olhar, inspirou profundamente, e a sua voz ganhou mais força:

 

Sappi che il vaso che il serpente ruppe

fu e non è, ma chi n'ha colpa creda

che vendetta di Dio non tene suppe.

 

 

Com estas palavras ela afastou-se e, embora passasse tão perto dele que Giovanni poderia tê-la retido, se estendesse a mão, ele não se moveu nem fez um gesto para tocá-la, permanecendo no mesmo lugar como se pretendesse ali ficar para sempre, seguindo-a com os olhos até ela entrar na pousada.

 

Augustus saía nesse preciso momento e foi ao seu encontro. Embora profundamente afectado pelos acontecimentos dessa manhã, e finalmente por ver o corpo do velho príncipe, agora jazendo em paz e dignidade sobre uma larga cama da pousada, a sua consciência dizia-lhe que devia fazer um esforço por levar a mensagem da velha senhora até Pisa, e de sejava que a rapariga o ajudasse e o guiasse nesse empenho. Ao mesmo tempo, e agora que melhor compreendia o que provocara a tragédia dessa manhã, temia acercar-se da jovem, que era uma das figuras principais dela, e falar-lhe de coisas tão triviais como estradas e carruagens. Ela reuniu-se-lhe, porém, como se ele fosse um velho amigo que lhe desse alegria encontrar. Tomou a sua mão e olhou para ele. Estava mudada, como se a estátua tivesse ganho vida, pensou ele.

 

A jovem ouviu com grande interesse tudo quanto ele tinha a dizer-lhe, e ficou naturalmente ansiosa por levar a mensagem à amiga o mais brevemente possível. Sugeriu que viajassem ambos no faetonte, que seria mais rápido que a carruagem de Augustus. Disse-lhe ainda que ela própria conduziria o faetonte.

 

- Meu amigo - disse ela - vamos embora. Vamos para Pisa, e tão depressa quanto possível. Porque eu estou livre. Posso ir onde eu quiser, posso pensar no dia de amanhã. Acho que amanhã será um dia lindo. Posso lembrar-me de que tenho dezassete anos, e que, pela graça de Deus, terei ainda mais sessenta anos de vida. Já não estou encerra da dentro de uma só hora. Meu Deus! - disse ela, percorrida por um súbito e forte arrepio - já nem conseguiria lembrar-me, se o quisesse.

 

Parecia um jovem auriga confiante de vencer a corrida. A velocidade era neste momento a ideia de todas a mais atraente. Ao dirigirem-se para a pousada, ela voltou-se a olhar o pátio.

 

- Todos estávamos errados - disse ela. - Esse velho era um grande homem, e merecia ter sido amado. Enquanto viveu desejámos-lhe a morte, mas agora que está morto acho que todos desejamos que ele estivesse vivo.

 

- É o que nos faz compreender - disse Augustus, que estivera reflectindo na sua própria existência - como cada ser humano que en contramos e conhecemos é afinal alguma coisa de nossa invenção, como uma árvore plantada no nosso jardim ou os móveis da nossa casa. Será melhor guardá-los e dar-lhes algum préstimo que atirá-los fora e acabarmos não possuindo nada.

 

Ela pensou nestas palavras durante algum tempo.

 

- Então o velho príncipe há-de ser - disse ela - no jardim da minha alma uma grande fonte, em mármore negro, junto da qual tudo é sempre tranquilo e fresco e da qual grandes cascatas de água se precipitam e brincam. Hei-de ir lá sentar-me às vezes, quando tiver muito em que pensar. Se eu fosse Rosina, não teria procurado fugir dele. Tê-lo-ia feito feliz. Teria sido bom se ele fosse feliz; dói muito fazer alguém infeliz.

 

Augustus, que julgou ouvir na sua voz a sombra de um remorso tardio, disse para a consolar:

 

- Lembre-se que salvou a vida do outro.

 

Ela mudou de cor e ficou silenciosa por momentos. Depois voltou-se e olhou-o com profunda serenidade.

 

- Quem - disse ela - poderia consentir que um homem fosse tão injustamente acusado?

 

Pronta a carruagem, ambos empreenderam a viagem até Pisa, partindo a grande velocidade. O dia começava a aquecer, a estrada era poeirenta, e as sombras das árvores uniam-se a seus pés. Augustus deixara o seu endereço com o velho médico, para o caso de haver um inquérito, mas, afinal, o velho príncipe morrera de morte natural.

 

  1. UM PRESENTE À DESPEDIDA

O conde Augustus von Schimmelmann estava em Pisa há mais de três semanas e começava a gostar da cidade. Tivera uma ligação amorosa com uma senhora sueca, alguns anos mais velha do que ele, que vivia em Pisa para estar longe do marido e tinha em sua casa um pequeno teatro de ópera, onde se apresentava perante um público de amigos. Era uma discípula de Swedenborg, e disse a Augustus que tivera uma visão de ambos no outro mundo. O que mais o interessava, porém, eram as ten tativas de dois padres, um velho e o outro novo, para convertê-lo ao catolicismo. Embora não fizesse tenções de converter-se, era para ele uma surpresa e um prazer que alguém resolvesse ocupar-se tanto da sua alma, e afadigava-se a explicar aos dois clérigos as suas ideias e os seus estados de ânimo. Previa, no entanto, que esta sedução espiritual não iria durar eternamente e havia de acabar, como - para sua pouca sorte - todas as outras seduções, mais tarde ou mais cedo; principiou então a dedicar muito do seu tempo a uma sociedade política secreta, a que fora apresentado como alguém oriundo de uma nação mais livre. Nessas sessões conheceu um velho jacobino autêntico, um exilado, um antigo membro da Montanha, que fora amigo de Robespierre. Augustus visitava-o assiduamente, no quartinho sujo e escuro na trapeira de uma velha casa, e com ele discutia a liberdade e os tiranos. Tomava também lições de pintura, e começara a copiar um quadro antigo da galeria.

 

Certa vez recebeu uma carta da velha condessa di Gampocorta, que estava então residindo na sua villa nos arredores de Pisa, onde lhe pedia que a fosse ver. Escrevia-lhe com muito afecto e gratidão, e dava-lhe notícias. Ao ser informada, simultaneamente, do acidente da avó e da morte do primeiro marido, a jovem Rosina dera à luz um meni no, que fora baptizado com o nome de Carlo em homenagem à bisavó, e que esta descrevia como sendo um bebé de grande maravilha. As duas senhoras, a velha como a jovem, encontravam-se bem agora, ainda que a velha condessa escrevesse que abandonara qualquer esperança de recuperar o uso da mão direita, e ambas ansiavam por demonstrar-lhe todo o reconhecimento pelo auxílio que lhes prestara Augustus nessa hora de aflição.

 

Augustus dirigiu-se à villa da condessa numa tarde extraordinariamente quente. Ao aproximar-se do local uma trovoada, que ameaçara Pisa durante três dias, rebentou enfim. O enxofre saturava, no estranho cheiro do ar, na cor que enchia o céu, e as grandes ár vores negras junto à estrada vergavam-se às rajadas do vento. Relâmpagos terríveis pareciam faiscar bem junto à carruagem, seguidos por longos, furiosos roncos de trovões. Chegou depois a chuva, em grossas e quentes bátegas, e num momento a paisagem toda se velou ante os seus olhos, sob a capota da carruagem, atrás de fiadas de água cinzenta e luminosa. Ao passar por uma ponte de pedra com um parapeito baixo, ele viu a chuva raiar o rio escuro de mil setas. Subia a estrada por uma encosta rochosa e íngreme, traiçoeira devido à chuva, e ao parar a carruagem juno à alta escadaria de pedra, na frontaria da casa, logo veio correndo um lacaio com um enorme chapéu-de-chuva a proteger o visitante.

 

Na sala espaçosa, que abria para um longo terraço de pedra com vista para o rio, o som do rápido martelar das pesadas gotas de chuva sobre a laje era tão distinto como se na própria sala chovesse. Com ele veio, pelas altas janelas abertas, o cheiro do súbito frescor e humidade do ar, e das pedras quentes que arrefeciam sob a chuva. A sala, essa, cheirava a rosas. No outro extremo dela um velho abbate estava dando lição de piano a uma pequenita, mas interromperam-se porque o barulho da trovoada e da chuva interferia com a contagem dos tempos, e agora olhavam ambos da janela o rio e o vale.

 

A velha condessa e a jovem mãe, num sofá, tinham mandado que trouxessem o bebé para o verem. Estava nos braços da ama, uma robusta e magnífica rapariga vestida de rosa e vermelho, como a flor do aloendro, e parecia extraordinariamente pequeno, como uma maçãzinha assada a que tivessem atado grandes expansões de rendas e de fitas. A atenção delas dividia-se entre a criança e a trovoada, e ambos os temas as tinham levado a um estado de exultação, como se as suas vidas fossem nesta hora chegadas a um zénite.

 

A velha senhora quisera levantar-se para receber Augustus, mas ficou tão abalada pelas próprias emoções ao vê-lo que não pôde mover-se. Os seus olhos, sob as velhas pálpebras que eram como um crepe, mareja ram-se de lágrimas que, de vez em vez, durante a conversa, rolavam pelo seu rosto. Beijou-o em ambas as faces, e apresentou-o, pro fundamente comovida, à neta, que era na realidade tão linda como as Madonas que ele vira na Itália, e ao bebé. Augustus nunca pudera sentir outra coisa além de medo na presença de crianças muito pequenas - embora fossem, convinha ele, de algum interesse como sorte de promessa - e surpreendeu-o perceber que as mulheres eram todas de opinião que o bebé nesta idade tinha chegado ao auge mesmo da per feição, e que era uma tragédia que tivesse um dia de mudar, esta opinião que a raça humana culmina no nascimento para depois e sempre declinar impressionou-o, por a julgar mais simples de cumprir-se que a sua visão.

 

A velha senhora mudara desde o dia em que ele a tinha encontrado na estrada. O amor por uma criatura do sexo masculino, que ela afirmara ter sido então incapaz de sentir, envolvera a sua vida de uma doce e grande harmonia. Ela própria o confessou no decurso da conversa.

 

- Quando eu era pequena - contava - diziam-me que eu nunca deveria mostrar a um tolo uma coisa meio feita. Mas que outra coisa nos faz o Senhor por toda a nossa existência? Se Ele me tivesse mostrado esta criança no princípio, eu teria sido dócil e deixado que Ele me conduzisse na direcção que Lhe aprouvesse. A vida é um mosaico saído das mãos de Deus, e que Ele continua a encher, pedrinha a pedrinha. Se eu tivesse visto este pedacinho de linda cor como a peça central, teria compreendido o desenho e não o teria arremessado ao chão e destruído tantas vezes, dando ao Senhor o trabalho de o refazer.

 

Os seus outros temas de conversa foram o acidente e a tarde que ambos tinham passado juntos na pousada. Falava com esse grande prazer em recordar que dá valor a quaisquer ocorrências do passado, por mais insignificantes que hajam sido no momento.

 

Um criado veio trazer vinho e uns pêssegos lindíssimos, e o jovem pai entrou e foi apresentado ao visitante; mas não desempenhava nesse quadro mais importante papel que o mais jovem dos Magos em adoração, tendo a velha condessa reservado para si o papel de São José.

 

Quando a chuvada acalmou, a velha senhora conduziu Augustus à janela para que desfrutasse o panorama.

 

- Meu amigo - disse ela enquanto ali estavam os dois, um pouco afastados dos outros - nunca lhe poderei expressar devidamente a minha gratidão, mas quero oferecer-lhe uma pequena prova dela, para que se lembre de mim quando estiver muito longe, e espero que me dê o prazer de a aceitar.

 

Augustus estava olhando a paisagem do vale. Alguma coisa nela julgou familiar e o fez sentir uma leve tontura.

 

- Quando nos conhecemos - prosseguiu ela - disse-lhe que tinha amado três pessoas na minha vida. Duas já sabe quem são. A terceira, ou a primeira, foi uma menina da minha idade, uma amiga de um país longínquo, que eu tive apenas por pouco tempo e depois perdi. Mas prometemos lembrar-nos eternamente uma da outra, e é a sua memória que muitas vezes me dá forças, nas vicissitudes da vida. Quando nos se parámos, com muitas lágrimas, oferecemos uma à outra uma recordação. Porque este objecto me é precioso, e o símbolo de uma verdadeira amizade, quero que o leve consigo.

 

Com estas palavras, ela tirou do bolso um pequeno objecto que lhe entregou.

 

Augustus pôs nele os olhos e inconscientemente levou a mão ao peito. Era um pequeno frasquinho de sais com a forma de um coração. Nele estava pintada uma paisagem com árvores, e ao fundo uma casa branca. Ao vê-la compreendeu que essa casa era a sua, a sua casa na Dinamarca. Reconheceu os telhados altos de Lindenburg, e até os dois carvalhos em frente ao portão, e os longos renques de tílias bordando a alameda, nas traseiras da casa. O banco de pedra sob os carvalhos tinha sido pintado com grande minúcia. Em baixo, numa fita pintada, liam-se as palavras Amitié Sincère.

 

Augustus sentiu a forma do seu frasquinho dentro do bolso do colete, e esteve tentado a mostrá-lo à velha senhora. Sentia que esse gesto iria dar uma história que ela havia de lembrar com prazer, e repetir; uma história a que ela talvez dedicasse o último pensamento no seu leito de morte. Mas deteve-se; pressentia que, nesta decisão do destino, alguma coisa lhe era dada a ele só - um valor, uma intensidade, um socorro até, que na vida só a ele pertencia, e que não podia partilhar com mais ninguém, tal como não poderia partilhar os seus sonhos.

 

Agradeceu à velha senhora com muita emoção, e como ela compreendesse o quanto era apreciado o seu presente, respondeu-lhe com orgulho e dignidade.

 

Despediu-se Augustus da sua velha amiga e do jovem casal com todas as expressões de uma amizade sincera, e tomou a estrada de Pisa.

 

A chuva tinha parado. O ar da tarde era quase frio. Uma luz de ouro e sombras de um azul profundo e plácido entre si dividiam toda a paisagem. Um arco-íris baixava do céu.

 

Augustus tirou um espelhinho do bolso. Colocando-o na palma da mão, mirou-se nele, pensativo. 

 

                                                                                Karen Blixen 

 

 

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