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Planeta Criança



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SHOGUN – Volume II / James Clavell
SHOGUN – Volume II / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SHOGUN – Volume II

Primeira Parte

 

Acompanhado de Naga, Blackthorne arrastava-se desconsoladamente colina abaixo, na direção das duas figuras sentadas sobre futons no centro do anel de guardas. Para além dos guardas estavam os contrafortes das montanhas que se elevavam para um céu coberto de nuvens. O dia estava sufocante. Sua cabeça doía devido à tristeza dos últimos dias, devido à preocupação com Mariko, e devido a fazer muito tempo que só podia conversar em japonês. Agora a reconhecia e parte da sua infelicidade desapareceu. .

Fora muitas vezes à casa de Omi ver Mariko ou se informar sobre ela. Os samurais o fizeram sempre dar meia-volta, polida mas firmemente. Omi lhe dissera como tomodashi, amigo, que ela estava bem. - Não se preocupe, Anjin-san. Compreende? - Sim - dissera ele, compreendendo apenas que não podia vê-Ia.

Então fora chamado por Toranaga e quisera lhe dizer muita coisa, mas por causa da sua falta de palavras falhara em fazer outra coisa que não irritá-lo. Fujiko fora ver Mariko várias vezes. Quando voltava sempre dizia que Mariko estava bem, acrescentando o inevitável "Shinpai suruna, Anjin-san. Wakarimasu? Não se preocupe, compreende?"

Com Buntaro fora como se nada houvesse jamais acontecido. Esboçavam saudações corteses quando se encontravam durante o dia. Além de usar ocasionalmente a casa de banho, Buntaro era como qualquer outro samurai em Anjiro, nem amistoso nem inamistoso.

Do amanhecer ao pôr-do-sol Blackthorne fora acossado pelo treinamento acelerado. Tivera que eliminar a própria frustração enquanto tentava ensinar e se esforçava por aprender a língua. Ao crepúsculo estava sempre extenuado. Acalorado, transpirando e encharcado de chuva. E sozinho. Nunca se sentira tão só, tão consciente de não pertencer àquele mundo estranho.

Então houvera o horror que começara três dias atrás. Fora um longo dia úmido. Ao pôr-do-sol ele cavalgara exausto para casa e imediatamente sentira que havia algum problema permeando pela casa. Fujiko o saudara nervosamente. - Nan desu ka?

Ela respondera em voz baixa, longamente, de olhos baixos. - Wakarimasen. Nan desu ka? - perguntou ele de novo, impaciente, a fadiga deixando-o irritável.

Ela o chamara com um gesto para o jardim. Apontou para os beirais do telhado, mas a armação lhe pareceu sólida o bastante. Mais palavras e sinais, e finalmente lhe ficara claro que ela estava apontando para o local onde ele pendurara o faisão.

- Oh, esqueci disso! Watashi... - Mas não conseguiu se lembrar de como dizer, então se limitou a dar de ombros, exausto. - Wakarimasu. Nan desu kiji ka? Compreendo. Que tal o faisão?

Os criados o espiavam de portas e janelas, visivelmente petrificados. Ela falou de novo. Ele se concentrou, mas as suas palavras não fizeram sentido algum.

- Wakarimasen, Fujiko-san. Não compreendo.

Ela tomou fôlego profundamente, depois, trêmula, imitou alguém removendo o faisão, levando-o embora e enterrando-o.

- Ahhhh! Wakarimasu, Fujiko-san. Wakarimasu! Estava ficando estragado? - perguntou. Como não sabia as palavras em japonês, apertou o nariz e fez como se estivesse sentindo mau cheiro.

- Hai, hai, Anjin-san. Dozo gomen nasal, gomen nasai. - Ela emitiu o som de moscas e, com as mãos, pintou o quadro de uma nuvem zumbindo.

- Ah so desu! Wakarimasu. - Em outra ocasião ele se teria descúlpado e, se conhecesse as palavras, teria dito: sinto muito pelo inconveniente. Em vez disso sacudiu os ombros, aliviou a dor nas costas, e resmungou: - Shigata ga nai - querendo apenas mergulhar no êxtase do banho e da massagem, a única alegria que tornava a vida possível. - Que vá para o inferno - disse em inglês, voltando-se. - Se eu tivesse estado aqui durante o dia, teria notado isso. Que vá para o inferno!

- Dozo, Anjin-san?

- Shigata ga nai - repetiu mais alto. - Ah so desu, arigato goziemashita.

- Tare toru desu ka? Quem o pegou? - Ueki-ya.

- Oh, aquele velho sodomita! - Ueki-ya, o jardineiro, o velho gentil e sem dentes que cuidava das plantas com as mãos amorosas e embelezava o jardim. - Yoi. Motte kuru Ueki-ya. Ótimo, vá buscá-lo.

Fujiko meneou a cabeça. Seu rosto se tornara branco como giz.

- Ueki-ya shinda desu, shinda desu! - sussurrou ela.

- Ueki-ya ga shindato? Donoyoni? Doshité? Doshité shindanoda? Como? Por quê? Como ele morreu?

A mão dela apontou para o lugar onde o faisão estivera e falou muitas palavras gentis e incompreensíveis. Depois imitou o corte de uma espada.

- Jesus Cristo! Deus! Você condenou aquele velho à morte por causa de um maldito faisão fedorento?

Imediatamente todos os criados se precipitaram para o jardim e caíram de joelhos. Colocaram a cabeça no pó e se imobilizaram, até os filhos do cozinheiro.

- Que diabos está acontecendo? - Blackthorne estava quase encolerizado.

Fujiko esperou estoicamente até que estivessem todos lá, então também se ajoelhou e se curvou, como samurai, não como camponesa. - Gomen nasai, doto gomen na.. .

- Sífilis nos seus gomen nasai! Que direito tinha você de fazer isso? Hein? - e começou a cobri-la de impropérios, odiosamente. - Por que, em nome de Cristo, não me perguntou antes? Hein?

Ele lutou para recobrar o controle, cônscio de que todos os seus criados sabiam que legalmente ele podia retalhar Fujiko e todos eles em pedaços ali no jardim por terem lhe causado tanto dissabor, ou por nenhuma razão em absoluto, e que nem o próprio Toranaga poderia interferir no modo como ele conduzia a sua casa.

Viu que uma das crianças tremia de terror e pânico. - Jesus Cristo do paraíso, dê-me forças. . . - Agarrou-se a um dos pilares para se firmar. - A culpa não é sua - exclamou, a voz estrangulada, sem perceber que não estava falando japonês. - É dela! É você! Sua cadela assassina!

Fujiko levantou os olhos lentamente. Viu o dedo acusador e o ódio no rosto dele. Sussurrou uma ordem à criada, Nigatsu.

Nigatsu balançou a cabeça e começou a suplicar.

- Ima!

A criada saiu correndo. -Voltou com a espada mortífera, lágrimas escorrendo-lhe pela face. Fujiko pegou a espada e estendeu-a a Blackthorne com as duas mãos. Falou e, embora ele não conhecesse todas as palavras, sabia o que ela estava dizendo. - Sou responsável, por favor, tire-me a vida porque eu o desagradei.

- IYÉ! - Ele agarrou a espada e atirou-a longe. - Acha que isso vai trazer Ueki-ya de volta à vida?

Então, de repente, percebeu o que tinha feito e o que estava fazendo agora. - Oh, Jesus...

Foi embora. Em desespero dirigiu-se para o penhasco acima da aldeia, perto do santuário que ficava ao lado do velho cipreste, chorou.

Chorou porque um homem morrera desnecessariamente e porque sabia agora que fora ele quem o assassinara. - Senhor Deus, perdoe-me. Sou o responsável, não Fujiko. Eu o matei. Ordenei que ninguém tocasse no faisão além de mim. Pergunteilhe se todos haviam compreendido e ela disse que sim. Dei a ordem com seriedade zombeteira, mas isso não importa agora. Eu dei as ordens, conhecendo a lei deles e sabendo qual era o costume. O velho desrespeitou a minha ordem estúpida, então o que mais Fujiko-san podia fazer? Sou eu quem deve ser acusado.

Com o tempo as lágrimas foram se esgotando. Era noite alta quando ele retornou à casa.

Fujiko o esperava como sempre, mas sozinha. A espada estava atravessada no colo dela. Ofereceu-a a ele. - Dozo . . dozo, Anjin-san.

- Iyé - disse ele, pegando a espada do modo como se devia pegar uma espada. - Iyé, Fujiko-san. Shigata ga nai, neh? Karma, neh? - Tocou-a com a mão como desculpas. Sabia que ela tivera que) suportar o pior pela estupidez dele.

As lágrimas dela jorraram. - Arigato, arigato go-goziemashita, Anjin-san - disse ela entrecortadamente. - Gomen nasai ...

O coração dele enterneceu-se.

Sim, pensou Blackthorne com grande tristeza, sim, mas isso não o desculpa nem elimina a humilhação dela, ou traz Ueki-ya de volta à vida.. Você deve ser acusado. Devia ter pensado melhor ...

- Anjin-san! - disse Naga.

- Sim? Sim, Naga-san? - Ele se arrancou do seu remorso e olhou para o jovem que caminhava ao seu lado. - Desculpe, que disse?

- Eu disse que esperava ser seu amigo. - Ah, obrigado.

- Sim, e talvez o senhor... - Houve uma confusão de palavras que Blackthorne não compreendeu. - Por favor?

- Ensinar, neh? Compreende "ensinar"? Ensinar sobre o mundo?

- Ah, sim, desculpe. Ensinar o quê, por favor?

- Sobre terras estrangeiras... terras lá de fora. O mundo, neh?

- Ah, compreendo agora. Sim, tentar.

Estavam perto dos guardas agora. - Começar amanhã, Anjin-san. Amigos, neh?

- Sim, Naga-san. Tentar.

- Ótimo. - Muito satisfeito, Naga assentiu. Quando chegaram junto aos samurais, Naga ordenou-lhes que saíssem do caminho, fazendo sinal a Blackthorne que prosseguisse sozinho. Ele obedeceu, sentindo-se muito só no círculo de homens.

- Ohayo, Toranaga-sama. Ohayo, Mariko-san - disse, juntando-se a eles.

- Ohayo, Anjin-san. Dozo suwaru. Bom dia, Anjin-san, por favor, sente-se.

Mariko sorriu-lhe. - Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka?

- Yoi, domo. - Blackthorne retribuiu-lhe o olhar, muito contente de que ela estivesse ali. - A sua presença enche-me de alegria, de grande alegria - disse em latim.

- E a sua a mim ... é muito bom vê-lo. Mas há uma sombra no senhor. Por quê?

- Nan ia? - perguntou Toranaga.

Ela lhe contou o que fora dito. Toranaga grunhiu, depois falou.

- Meu amo diz que o senhor parece preocupado, Anjin-san. Devo concordar com ele. Ele pergunta o que o está perturbando.

- Não é nada. Domo, Toranaga-sama. Nani-mo. Não é nada.

- Nan ia? - perguntou Toranaga diretamente. - Nan ia?

Obedientemente Blackthorne respondeu de imediato: - Ueki-ya - disse. - Hai, Ueki-ya.

- Ah so desu! - Toranaga falou longamente a Mariko.

- Meu amo diz que não há necessidade de se preocupar com o Velho Jardineiro. Ele me pede que lhe diga que oficialmente está tudo resolvido. O Velho Jardineiro compreendeu perfeitamente o que estava fazendo.

- Eu não compreendo.

- Sim, seria muito difícil para o senhor, mas, veja, Anjinsan, o faisão estava apodrecendo ao sol. As moscas estavam enxameando terrivelmente. A sua saúde, a saúde da sua consorte e a de toda a sua casa estavam sendo ameaçadas. Além disso, sinto muito, tinha havido algumas queixas muito cautelosas e particulares do criado-chefe de Omi-san, e de outros. Uma das nossas regras mais importantes é que o indivíduo não pode nunca perturbar a wa, a harmonia, do grupo, lembra-se? Por isso alguma coisa tinha que ser feita. Veja, a decomposição, o mau cheiro da decomposição, é revoltante para nós. É o pior odor do mundo para nós, sinto muito. Tentei lhe dizer, mas... bem, é uma das coisas que nos deixam a todos um pouco malucos. O seu criadochefe...

-- Por que alguém não me procurou imediatamente? Por que alguém simplesmente não me disse? - perguntou Blackthorne. - O faisão não tinha importância alguma para mim.

- O que havia a dizer? O senhor tinha dado ordens. É o cabeça da sua casa. Eles não conheciam os seus costumes nem o que fazer, senão isso, procure entender o dilema de acordo com os nossos costumes. - Ela falou um instante a Toranaga, explicando o que Blackthorne dissera, depois voltou-se para ele de novo. - Isso o está afligindo? Quer que eu continue?

- Sim, por favor, Mariko-san.

- Tem certeza?

- Sim.

-- Bem, então, o seu criado-chefe, o Pequeno Cozinheiro Dentuço, convocou uma reunião dos seus criados, Anjin-san. Mura, o chefe da aldeia, foi convidado a participar oficialmente. Decidiu-se que os etas da aldeia não podiam ser solicitados a levá-lo embora. Tratava-se apenas de um problema doméstico. Um dos criados tinha que pegá-lo e enterrá-lo, apesar de o senhor ter dado ordens absolutas de não mexerem no faisão. Obviamente a sua consorte era forçada pelo dever a providenciar que suas ordens fossem obedecidas. O Velho Jardineiro pediu para ter permissão de levá-lo embora. Ultimamente ele vinha vivendo e dormindo com grande sofrimento por causa do abdome, e achava muito fatigante ajoelhar-se, carpir e plantar, e não conseguia fazer esse trabalho de modo satisfatório para si mesmo. O Terceiro Cozinheiro Assistente também se ofereceu, dizendo que era muito jovem e estúpido, e que tinha certeza de que a vida não contava nada diante de um assunto tão grave. Finalmer,°e o Velho Jardineiro recebeu a honra. Realmente foi uma. grande honra, Anjin-san. Com grande solenidade, todos se curvaram para ele, que retribuiu a reverência, e alegremente levou a coisa embora e enterrou-a para grande alívio de todos.

"Quando voltou, dirigiu-se diretamente a Fujiko-san e disselhe o que fizera, que desobedecera à sua lei, neh? Ela lhe agradeceu por remover o perigo, depois disse-lhe que esperasse. Procurou-me para pedir conselho e perguntou-me o que devia fazer. O assunto fora resolvido formalmente, portanto teria que ser tratado formalmente. Eu lhe disse que não sabia, Anjin-san. Perguntei a Buntaro-san, mas ele também não sabia. Era complicado, por sua causa. Então ele perguntou ao Senhor Toranaga. O Senhor Toranaga viu a sua consorte pessoalmente." Mariko voltou-se para Toranaga e contou-lhe em que ponto da história se encontrava, conforme ele solicitara.

Toranaga falou rapidamente. Blackthorne observava-os, a mulher tão pequena, amável e atenta, o homem compacto, pétreo, o sash apertado em torno da grande cintura. Toranaga não falava com as mãos como muitos faziam, mas mantinha-as imóveis, a esquerda apoiada na coxa, a outra sempre no punho da espada.

- Hai, Toranaga-sarna. Hai. - Mariko olhou para Blackthorne e continuou. - Nosso amo pede-me que lhe explique, sinto muito, que se o senhor fosse japonês não teria havido dificuldade, Anjin-san. O Velho Jardineiro simplesmente teria se dirigido ao cemitério para receber sua libertação. Mas, por favor, perdoe-me, o senhor é um estrangeiro, embora o Senhor Toranaga o tenha feito hatamoto, um dos seus vassalos pessoais, e era uma questão de decidir se o senhor era legalmente samurai ou não. Fico honrada em lhe dizer que ele estabeleceu que o senhor é samurai e tem direitos de samurai. Portanto foi tudo resolvido imediatamente e simplificado. Um crime tinha sido cometido. Suas ordens tinham sido deliberadamente desobedecidas. A lei é clara. Não há opção. - Ela estava séria agora. - Mas o Senhor Toranaga conhece a sua suscetibilidade a matanças, então, para poupar-lhe o sofrimento, ordenou pessoalmente a um de seus samurais que enviasse o Velho Jardineiro para o Vazio.

- Por que alguém não me perguntou antes? Aquele faisão não significava nada para mim.

- O faisão não tem nada a ver, Anjin-san - explicou ela. - O senhor é o cabeça da casa. A lei diz que nenhum membro da sua casa pode desobedecer-lhe. O Velho Jardineiro deliberadamente infringiu a lei. O mundo todo cairia em pedaços se as pessoas fossem autorizadas a desconsiderar a lei. O seu ...

Toranaga interrompeu e falou com ela. Ela ouviu, respondeu a algumas perguntas, depois ele lhe fez sinal que continuasse.

- Hai. O Senhor Toranaga quer que eu lhe assegure que providenciou pessoalmente para que o Velho Jardineiro tivesse a morte rápida, indolor e honrada que merecia. Até emprestou ao samurai a sua própria espada, que é muito afiada. E devo dizer-lhe que o Velho Jardineiro ficou muito orgulhoso de, em seus dias de outono, ser capaz de ajudar a sua casa, Anjin-san, orgulhoso por ter ajudado a estabelecer o seu status de samurai diante de todos. Acima de tudo ficou orgulhoso com a honra que lhe foi prestada. Os executores públicos não foram utilizados, Anjin-san. O Senhor Toranaga quer que eu deixe isso bem claro para o senhor.

- Obrigado, Mariko-san. Obrigado por deixar claro. - Blackthorne voltou-se para Toranaga, curvou-se muito corretamente. - Domo, Toranaga-sarna, domo arigato. Wakarimasu. Domo.

Toranaga retribuiu a mesura adequadamente. - Yoi, Anjinsan. Shinpai suru mono lanai, neh? Shigata ga nai, neh? Ótimo. Agora não se preocupe, hein? O que poderia fazer, hein?

- Nani-mo. Nada.

Blackthorne respondeu às perguntas que Toranaga lhe fez sobre o treinamento dos mosquetes, mas nada do que disseram o atingiu. Sua mente vacilava sob o impacto do que lhe haviam informado. Ele insultara Fujiko diante de todos os criados e ofendera a confiança da criadagem, quando Fujiko fizera apenas o que era certo e o mesmo fizeram os criados.

Fujiko era irrepreensível. São todos irrepreensíveis. Menos eu.

Não posso desfazer o que foi feito. Nem a Ueki-ya nem a ela. Ou a eles.

Como posso viver com essa vergonha?

Sentou-se de pernas cruzadas diante de Toranaga, a leve brisa do mar batendo-lhe no quimono, espadas ao sash. Entorpecido, ouvia e respondia e nada tinha importância. A guerra se aproxima, dizia ela. Quando? perguntava ele. Muito em breve, dizia ela, portanto o senhor deve partir comigo imediatamente, deve acompanhar-me parte do trajeto, Anjin-san, porque vou para Osaka, finas o senhor vai seguir para Yedo, por terra, a fim de preparar o seu navio para a guerra...

Repentinamente o silêncio foi colossal. Então a terra começou a tremer.

Blackthorne sentiu os pulmões prestes a explodir, e cada fibra do seu ser gritando em pânico. Tentou se levantar, mas não conseguiu, e viu que todos os guardas estavam igualmente indefesos. Toranaga e Mariko desesperadamente se agarravam ao chão com as mãos e pés. O estrondo retumbante, catastrófico, vinha da terra e do céu. Rodeou-os, crescendo sempre mais, até seus tímpanos estarem prestes a se fender. Eles se tornaram parte do delírio. Por um instante o troar cessou, o abalo continuando.

Ele sentiu o vômito elevando-se, sua mente incrédula guinchando que aquilo era terra, onde era firme e seguro, não o mar, onde todo mundo balançava a cada momento. Cuspiu para limpar o gosto repugnante na boca, agarrando-se à terra trêmula, com ânsias de vômitos cada vez mais fortes.

Uma avalanche de rocha começou a despencar da montanha ao norte, inundando o vale com o estrondo e aumentando o tumulto. Parte do acampamento dos samurais desapareceu. Blackthorne tateou o chão com as mãos e joelhos, Toranaga e Mariko fazendo o mesmo. Ouviu a si mesmo gritando, mas nenhum som pareceu sair dos seus lábios ou dos deles.

O tremor parou.

A terra estava firme de novo, firme como sempre estivera, firme como sempre deveria estar. As mãos e joelhos dele, e o corpo, tremiam descontroladamente. Ele tentou imobilizá-los e recuperar o fôlego.

Então novamente a terra se pôs a rugir. O segundo abalo começou. Foi mais violento. A terra rasgou-se na extremidade do altiplano. A fenda escancarou-se na direção deles a uma velocidade inacreditável, passou a cinco passos de distância, e seguiu em frente. Os olhos incrédulos de Blackthorne viram Toranaga e Mariko cambaleando à beira da fissura onde deveria haver chão sólido. Como que num pesadelo, ele viu Toranaga, mais próximo da goela, começar a perder o equilíbrio. Saiu do seu estupor, deu um pulo para a frente. Sua mão direita agarrou a de Toranaga, a terra tremendo como uma folha ao vento.

A fenda tinha vinte passos de profundidade e dez de largura tresandava a morte. Lama e rochas se precipitavam para o fundo, arrastando Toranaga e ele consigo. Blackthorne lutou para se agarrar com pés e mãos, aflito por ajudar Toranaga, quase puxado para baixo, para o abismo. Ainda parcialmente atordoado, Toranaga cravou os artelhos na face da parede e, meio arrastado meio carregado por Blackthorne, arrancou-se para fora. Ambos caíram deitados ofegantes, em segurança.

Nesse momento houve outro abalo.

A terra fendeu-se de novo. Mariko gritou. Tentou se arrastar para fora do caminho, mas essa nova racha engoliu-a. Desesperado Blackthorne rastejou até a borda, os abalos subseqüentes fazendo-o perder o equilíbrio. Na beirada, olhou para baixo. Ela tiritava sobre uma saliência alguns pés abaixo enquanto o chão balançava o céu parecia vir abaixo. O abismo tinha trinta pés de profundidade, dez de largura. A borda desintegrou-se sob os pés dele.

Ele se deixou deslizar, lama e pedras quase o cegando, e agarrou Mariko, puxando-a para a segurança de outra saliência. Juntos lutaram para se equilibrar. Um novo choque. A saliência cedeu quase totalmente e eles se viram perdidos. Então a mão de ferro de Toranaga agarrou-o pelo sash, detendo-lhes o escorregão para o inferno.

- Pelo amor de Cristo. . . - gritou Blackthorne, os braços quase arrancados das articulações enquanto segurava Mariko e lutava com os pés e a mão livre à procura de pontos de apoio. Toranaga o manteve firme até se encontrarem numa estreita saliência de novo, depois o sash se rompeu. A pausa de um momento no tremor deu tempo a Blackthorne de trazer Mariko para a saliência, detritos chovendo sobre eles. Toranaga saltou para a segurança, gritando-lhe que se apressasse. O abismo soltou um lamento e começou a se fechar, Blackthorne e Mariko ainda no fundo de sua goela. Toranaga já não podia ajudar. O terror de Blackthorne emprestou-lhe uma força inumana e de algum modo ele conseguiu arrancar Mariko do túmulo e empurrá-la para cima. Toranaga agarrou-a pelo pulso e içou-a para a borda. Blackthorne arrastou-se atrás dela, mas cambaleou para trás quando parte de sua parede desabou. A parede oposta rangia aproximando-se. Lama e pedras despencavam dela. Por um instante ele pensou estar liquidado, mas conseguiu rastejar às apalpadelas para fora da sua sepultura. Deitou-se na borda que estremecia, os pulmões tragando ar, incapaz de rastejar para fora, as pernas dentro da fenda. A brecha estava se fechando. E parou - com uma boca de seis passos e oito de profundidade.

O ribombar cessou totalmente. A terra firmou-se. Fez-se silêncio.

De quatro, indefesos, eles esperaram que o horror recomeçasse. Blackthorne começou a se levantar, o suor pingando.

- Iyé - Toranaga fez-lhe sinal que ficasse no chão, seu rosto uma sujeira só, um corte cruel na têmpora, no ponto onde sua cabeça se chocara com uma rocha.

Estavam todos resfolegando, o peito arfando, bile na boca. Os guardas estavam se recobrando. Alguns começaram a correr na direção de Toranaga.

Iyé! - gritou ele. - Maté! Esperem!

Obedeceram e se puseram de quatro novamente. A espera pareceu se prolongar para sempre. Então um pássaro piou numa árvore e lançou-se ao ar, guinchando. Outro pássaro o seguiu. Blackthorne sacudiu a cabeça para limpar o suor dos olhos. Viu suas unhas quebradas, as pontas dos dedos sangrando, agarrando os tufos de grama. Então, na grama, uma formiga se moveu. E outra e outra. Começaram a cata de alimento.

Ainda assustado, ele se sentou sobre os calcanhares. Quando estará seguro?

Mariko não respondeu. Estava hipnotizada pela fenda no chão. Ele se arrastou para junto dela. - Está se sentindo bem?

- Sim... sim - disse ela, sem fôlego. Tinha o rosto borrado de lama. O quimono estava rasgado e imundo. Perdera as duas sandálias e um tabi. E a sombrinha. Ele a ajudou a se afastar da borda, ainda aturdida.

Depois olhou para Toranaga. - Ikaga desuka?

Toranaga não tinha condições de falar, o peito opresso, os braços e as pernas cobertos de escoriações. Apontou. A fenda que quase o engolira agora não era mais que uma vala no solo. Ao norte a vala abria-se numa ribanceira novamente, mas não tão larga quanto fora, nem tão profunda.

Blackthorne sacudiu os ombros. - Karma.

Toranaga arrotou sonoramente, depois pigarreou, cuspiu e arrotou de novo. Isso ajudou a voz a sair e uma torrente de insultos derramou-se por sobre a vala, seus dedos ásperos apontando para ela. Embora Blackthorne não conseguisse compreender todas as palavras, Toranaga estava claramente dizendo conforme um japonês o faria: - A sífilis no karma, a sífilis no terremoto, a sífilis na vala! Perdi as minhas espadas e a sífilis nisso!

Blackthorne explodiu numa gargalhada, consumido pelo alívio de estar vivo e pela estupidez de tudo aquilo. Um instante, e Toranaga riu também, e sua hilaridade contagiou Mariko.

Toranaga pôs-se de pé. Cautelosamente. Depois, aquecido pela alegria de viver, começou a fazer micagens para a vala, ridicularizando a si mesmo e ao abalo. Parou, fez sinal a Blackthorne que se juntasse a ele e se pôs de pernas abertas sobre a vala; abriu a tanga e, ainda dominado pelo riso, disse a Blackthorne que fizesse o mesmo. Blackthorne obedeceu e os dois homens tentaram urinar na vala. Mas não saiu nada, nem uma gota. Tentaram intensamente, o que lhes aumentou o riso e os bloqueou ainda mais. Finalmente tiveram êxito e Blackthorne sentou-se para recobrar forças, reclinando-se e apoiando-se nas mãos. Quando se recuperou um pouco, voltou-se para Mariko. - O terremoto terminou definitivamente, Mariko-san?

- Até o próximo abalo, sim. - Ela continuou a limpar a lama das mãos e do quimono.

- É sempre assim?

- Não. Às vezes é bem leve. Às vezes há uma série de abalos após um bastão de tempo ou um dia, ou meio bastão ou meio dia. Às vezes há apenas um abalo - nunca se sabe, Anjinsan. Terminou até que comece de novo. Karma, neh?

Os guardas os observaram sem se mover, esperando pela ordem de Toranaga. Ao norte havia incêndio assolando a rústica coberta do acampamento. Samurais combatiam o fogo e escavavam as rochas da avalanche para encontrar os soterrados. A leste, Yabu, Omi e Buntaro encontravam-se com outros guardas ao lado da extremidade oposta da fenda, intactos com exceção de algumas contusões, também à espera de serem chamados. Igurashi desaparecera. A terra o tragara.

Blackthorne deixou-se devanear. Seu autodesdém desaparecera e ele se sentiu totalmente sereno e inteiro. Agora sua mente demorava-se orgulhosamente no fato de ele ser samurai, e em ir para Yedo, no seu navio, na guerra, no Navio Negro, e de novo na sua condição de samurai. Deu uma olhada em Toranaga e teria gostado de lhe fazer muitas perguntas, mas notou que o daimio estava perdido em seus próprios pensamentos, e sabia que seria descortês perturbá-lo. Há muito tempo, pensou ele contente, e olhou para Mariko. Estava arrumando o cabelo e o rosto, por isso ele desviou o olhar. Deitou-se de comprido e olhou para o céu, sentindo a terra cálida às costas, esperando pacientemente.

Toranaga falou, sério agora. - Domo, Anjin-san, neh? Domo.

- Dozo, Toranaga-sama. Nani-mo. Hombun, neh? Por favor, Toranaga-sama, não foi nada. Dever.

Então, sem saber muitas palavras e querendo ser preciso, disse: - Mariko-san, quer explicar por mim? Acho que compreendo agora o que a senhora e o Senhor Toranaga querem dizer com karma e a estupidez de se preocupar com o que é. Muita coisa parece mais clara. Não sei por quê, talvez seja porque nunca me senti tão aterrorizado, talvez isso me tenha limpado a cabeça, mas parece que estou pensando mais claro. É... bem, como o Velho Jardineiro. Sim, a culpa foi toda minha e sinto muitíssimo, realmente, mas aquilo foi um engano, não foi uma escolha deliberada de minha parte. É. Portanto nada pode ser feito a respeito. Há um momento atrás estávamos todos quase perdidos. Portanto toda aquela preocupação e mágoa foi um desperdício, não foi? Karma. Sim, sei o que é karma agora. Compreende?

- Sim. - E traduziu para Toranaga. - Ele disse: "Ótimo, Anjin-san. Karma é o começo do conhecimento. Depois é a paciência. A paciência é muito importante. Os fortes são os pacientes, Anjin-san. Paciência quer dizer conter a própria inclinação para as sete emoções: ódio, adoração, alegria, ansiedade, cólera, pesar, medo. Se você não dá passagem aos sete, você é paciente, depois você logo compreenderá todo tipo de coisas e estará em harmonia com a Eternidade".

- Acredita nisso, Mariko-san?

- Sim. Muitíssimo. Tento, também, ser paciente, mas é difícil.

- Concordo. Isso também é wa, harmonia, a sua "tranqüilidade", neh?

- Sim.

- Diga a ele que lhe agradeço realmente pelo que fez ao Velho Jardineiro. Antes eu não agradeci, não de coração. Digalhe isso.

- Não é preciso, Anjin-san. Ele já sabia que o senhor ia apenas ser polido.

- Como sabia?

- Eu lhe disse que ele é o homem mais sábio do mundo.

Ele sorriu.

- Aí está - disse ela -, a sua idade desapareceu de novo. - E acrescentou em latim: - O senhor é o senhor mesmo de novo, e melhor do que antes!

- Mas a senhora é linda, como sempre.

Os olhos dela animaram-se e ela os desviou de Toranaga. Blackthorne viu isso e notou-lhe a cautela. Pôs-se de pé e olhou dentro da fenda recortada. Cuidadosamente saltou dentro dela e desapareceu.

Mariko levantou-se com dificuldade, momentaneamente temerosa, mas Blackthorne logo voltou à superfície. Nas mãos trazia a espada de Fujiko. Estava embainhada, embora coberta de lama e arranhada. A espada curta desaparecera.

Ajoelhou-se diante de Toranaga e ofereceu a espada do modo como uma espada devia ser oferecida. - Dozo, Toranaga-sama - disse simplesmente. -- Kara samurai ni samurai, neh? Por ~avor, Senhor Toranaga, de um samurai para o outro, hein?

- Domo, Anjin-san. - O senhor do Kwanto aceitou a espada e enfiou-a no sash. Depois sorriu, inclinou-se para a frente, e deu um tapinha no ombro de Blackthorne. - Tomo, neh? Amigo, hein?

- Domo. -- Blackthorne olhou a distância. Seu sorriso extinguiu-se. Uma nuvem de fumaça erguia-se por sobre a elevação, acima de onde a aldeia devia estar. Imediatamente perguntou a Toranaga se podia partir, para se certificar de que Fujiko estava bem.

- Ele diz que sim, Anjin-san. E devemos vê-lo ao pôr-do-sol na fortaleza, para a refeição noturna. Há algumas coisas que ele deseja discutir com o senhor.

Blackthorne voltou à aldeia. Estava devastada, o curso da estrada estava irreconhecível, a superfície despedaçada. Mas os botes estavam ilesos. Muitos incêndios ainda ardiam. Aldeãos carregavam baldes de areia e de água. Ele dobrou a esquina. A casa de Omi oscilava como bêbada no seu lado da colina. A sua era uma ruína fumegante.

 

Fujiko se ferira. Nigatsu, a criada, estava morta. O primeiro abalo fizera desabar os pilares centrais da casa, espalhando as brasas do fogo da cozinha, Fujiko e Nigatsu tinham sido atingidas por uma das vigas caídas e as chamas transformaram Nigatsu numa tocha. Fujiko fora arrancada de sob a trave. Um dos filhos do cozinheiro também fora morto, mas o resto dos criados sofrera apenas escoriações e alguns membros torcidos. Ficaram todos exultantes ao descobrir que Blackthorne estava vivo e incólume.

Fujiko estava deitada sobre um futon poupado às chamas, perto da cerca do jardim intacta, semiconsciente. Quando também ela viu que Blackthorne estava incólume, quase chorou. - Agradeço a Buda que o senhor não esteja ferido, Anjin-san - disse debilmente.

Ainda parcialmente em choque, tentou se levantar mas ele ordenou que não se movesse. As pernas e a base das costas dela estavam com sérias queimaduras. Um médico já a estava tratando, enrolando bandagens embebidas de chá e outras ervas em torno dos membros para aliviá-los. Blackthorne dissimulou a preocupação e esperou até que o médico tivesse acabado, então, em particular, disse: - Fujiko-san, yoi ka? A Senhora Fujiko ficará bem?

O doutor encolheu os ombros. - Hai. - Seus lábios repuxaram-se em cima dos dentes protuberantes de novo. - Karma, neh?

- Hai. - Blackthorne vira morrer marujos queimados em quantidade suficiente para saber que qualquer queimadura séria era perigosa, a ferida aberta quase sempre arruinando em poucos dias e nada podendo impedir a infecção de se alastrar. - Não quero que ela morra.

- Dozo?

Repetiu em japonês e o médico meneou a cabeça e disse, que a senhora certamente ficaria bem. Era jovem e forte.

- Shigata ga nai - disse o médico, e ordenou às criadas que mantivessem as bandagens úmidas, deu a Blackthorne ervas para as suas próprias esfoladuras, disse que voltaria logo, depois subiu às pressas a colina em direção à casa danificada de Omi lá em cima.

Blackthorne manteve-se ao portão principal da sua casa, que permanecera intacta. As setas de Buntaro ainda estavam cravadas no batente esquerdo. Distraidamente, tocou uma delas. Karma que ela tenha se queimado, pensou tristemente.

Voltou para junto de Fujiko e ordenou a uma criada que trouxesse chá. Ajudou-a a beber e segurou-lhe a mão até que adormecesse, ou parecesse dormir. Os criados estavam salvando tudo o que podiam, trabalhando rapidamente, ajudados por alguns aldeãos. Sabiam que as chuvas logo chegariam. Quatro homens tentavam erguer um abrigo provisório.

- Dozo, Anjin-san. - O cozinheiro lhe oferecia chá fresco, tentando não demonstrar o sofrimento. A garotinha era a sua filha favorita.

- Domo - retrucou Blackthorne. - Sumimasen. Sinto muito.

- Arigato, Anjin-san. Karma, neh?

Blackthorne assentiu, aceitou o chá e fingiu não notar o pesar do cozinheiro, para não envergonhá-lo. Mais tarde um samurai subiu a colina trazendo um recado de Toranaga de que Blackthorne e Fujiko deviam dormir na fortaleza até a casa ser reconstruída. Chegaram dois palanquins. Blackthorne ergueu-a suavemente, colocou-a num deles e enviou-a com algumas criadas. Dispensou o seu palanquim, dizendo a ela que a seguiria logo.

A chuva começou, mas ele não prestou atenção. Sentou-se sobre uma pedra do jardim que lhe dera tanto prazer. Agora era um campo devastado. A pequena ponte estava quebrada, o lago destruído, e o riacho desaparecera.

- Não tem importância - disse ele a nin uém. - As rochas não estão mortas.

Ueki-ya lhe dissera que um jardim deve ser formado em torno das suas rochas, que sem elas um jardim está vazio, meramente um lugar de crescimento.

Uma das pedras era denteada e comum, mas Ueki-ya a plantara de modo tal que se se olhasse longa e intensamente para ela, ao crepúsculo, o brilho avermelhado, o reflexo dos veios e do cristal enterrado nela, podia-se ver toda uma cadeia de montanhas com vales indolentes, lagos profundos e, a distância, um horizonte verdejante, a noite formando-se lá.

Blackthorne tocou a rocha. - Dou-lhe o nome de Ueki-yasama - disse ele. Isso o deixou satisfeito e ele sabia que se o velho estivesse vivo, também teria ficado muito contente. Embora esteja morto, talvez ele saiba, disse-se Blackthorne, talvez o seu kami se encontre aqui agora. Os xintoístas acreditam que quando morrem tornam-se um kami...

- O que é um kami, Mariko-san?

- Kami é inexplicável, Anjin-san. É como um espírito mas não é, é como uma alma, mas não é. Talvez seja a parte insubstancial de uma coisa ou de uma pessoa ... o senhor deve saber que um ser humano se torna um katni após a morte, mas uma árvore, uma rocha ou uma planta, ou uma pintura, são kamis igualmente. Os kamis são venerados, nunca idolatrados. Existem entre o céu e a terra e visitam esta Terra dos Deuses ou a deixam, tudo ao mesmo tempo.

- E Xintó? O que é Xintó?

- Ah, isso também é inexplicável, sinto muito. É como uma religião, mas não é. No começo não tinha nem nome. Simplesmente chamávamos de Xintó, o Caminho do Kami, mil anos atrás, para distingui-lo do Butsudo, o Caminho de Buda. Mas embora indefinível, o Xintó é a essência do Japão e dos japoneses, e embora não possua nem teologia nem divindade, fé ou sistema ético, é a nossa justificação para a existência. O Xintó é um culto natural de mitos e lendas nas quais ninguém acredita sinceramente, embora todo mundo venere totalmente. Uma pessoa é xintoísta do mesmo modo como nasceu japonesa.

- A senhora também é xintoísta... assim como cristã? - Oh, sim, muito, naturalmente...

Blackthorne tocou a pedra de novo. - Por favor, kami de Ueki-ya, por favor, fique no meu jardim.

Depois, sem se importar com a chuva, deixou os olhos levarem-no pela pedra, passando pelos vales viçosos, o lago sereno e o horizonte verdejante, a escuridão formando-se lá.

Seus ouvidos lhe disseram que voltasse. Levantou os olhos. Omi o observava, pacientemente acocorado. Ainda chovia e Omi estava usando uma capa de palha de arroz, e um largo chapéu cônico de bambu. O cabelo fora lavado recentemente.

- Karma, Anjin-san - disse ele, apontando para as ruínas fumegantes.

- Hai. Ikaga desu ka? - Blackthorne enxugou a chuva do rosto.

- Yoi. - Omi apontou para a sua casa. - Watakushi no yuya wa hakaisarete imasen ostukai ni narimasen-ka? Minha casa de banho não foi danificada. Importa-se em usá-la?

- Ah so desu! Domo, Omi-san, hai, domo. - Agradecido, Blackthorne acompanhou Omi pelo caminho sinuoso, dirigindo-se para o pátio da casa dele. Os criados e alguns artesãos da aldeia, sob a supervisão de Mura, já estavam martelando e serrando e reparando. Os pilares centrais já tinham sido recolocados no lugar e o telhado estava quase reparado.

Por meio de sinais e palavras simplçs, e muita paciência, Omi explicou que seus criados haviam conseguido extinguir as chamas em tempo. Dentro de um ou dois dias, disse ele a Blackthorne, a casa estaria em pé novamente, tão boa como antes, portanto não havia nada com que se preocupar. A sua levará mais tempo, uma semana, Anjin-san. Não se preocupe, Fujiko-san é uma excelente administradora. Combinará todos os custos com Mura e sua casa ficará melhor do que nunca. Ela se queimou, ouvi dizer. Bem, isso acontece às vezes, mas não se preocupe, nossos médicos são bons especialistas em queimaduras, têm que ser, neh? Sim, Anjin-san, foi um terremoto sério, mas não muito. Os campos de arroz quase não foram tocados e o sistema de irrigação, tão essencial, permaneceu incólume. E os barcos não se danificaram, e isso é muito importante também. Apenas cento e cinqüenta e quatro samurais foram mortos pela avalanche, o que não é muito, neh? Quanto à aldeia, uma semana e o senhor mal saberá que houve um abalo. Cinco camponeses foram mortos e algumas crianças - ñada! Anjiro teve muita sorte, neh? Ouvi dizer que o senhor arrancou Toranaga-sama da morte. Somos-lhe todos gratos, Anjin-san. Muito. Se o perdêssemos... o Senhor Toranaga disse que aceitava a sua espada - o senhor tem sorte, isso é uma grande honra. Sim. O seu karma é forte, muito rico. Sim, agradeço-lhe muitíssimo. Ouça, conversaremos mais depois que o senhor tiver tomado banho. Estou contente por ser seu amigo.

Omi chamou as criadas de banho. - Isogi! Rápido!

As criadas escoltaram Blackthorne até a casa de banho, que se erguia dentro de um minúsculo bosque de bordos e se unia à casa principal por um caminho sinuoso, em condições normais coberto por um telhado. Era muito mais suntuosa do que a sua. Uma parede estava seriamente rachada, mas já havia aldeãos a rebocá-la. O telhado estava firme, embora faltassem algumas telhas e a chuva vazasse aqui e ali, mas isso não tinha importância.

Blackthorne despiu-se e se sentou no minúsculo assento. As criadas o esfregaram e o ensaboaram à chuva. Quando estava limpo, entrou na casa e mergulhou no banho fumegante. Todos os seus problemas se dissiparam.

Fujiko vai ficar boa. Sou um homem de sorte. Foi sorte eu estar lá para puxar Toranaga, sorte ter salvado Mariko, e sorte que ele estivesse lá para nos puxar para fora.

A mágica de Suwo revigorou-o como de hábito. Mais tarde ele deixou-o cuidar-lhe das escoriações e cortes, e vestiu a tanga limpa e o quimono e os tabis que tinham sido trazidos para ele, e saiu. A chuva parara.

Um abrigo provisório fora erguido num canto do jardim. Tinha um caprichoso soalho elevado e estava mobiliado com f utons limpos e um pequeno vaso com um arranjo de flores. Omi o esperava com uma velha sem dentes, de rosto duro.

- Por favor, sente-se, Anjin-san - disse Omi.

- Obrigado, e obrigado pela roupa - respondeu ele em japonês vacilante.

- Por favor, esqueça isso. Aceitaria chá? Ou saque?

- Chá - decidiu Blackthorne, pensando que era melhor conservar as idéias claras para a entrevista com Toranaga. - Obrigado.

- Esta é minha mãe - disse Omi com formalidade, claramente a idolatrando.

Blackthorne curvou-se. A velha sorriu com afetação.

- A honra é minha, Anjin-san - disse ela.

- Obrigado, mas sou eu quem fica honrado. - Black

thorne repetiu automaticamente a sucessão de cortesias formais

que Mariko lhe ensinara.

- Anjin-san, sentimos muito ver sua casa em chamas.

- O que se poderia fazer? Foi karma, neh?

- Sim, karma. - A velha desviou o olhar e carregou o

sobrolho. - Depressa! O Anjin-san deseja o seu chá quente!

A garota em pé ao lado da criada que carregava a bandeja deixou Blackthorne sem fôlego. Então se lembrou dela. Não fora aquela garota que vira com Omi, na primeira vez, quando atravessava a praça da aldeia a caminho da galera?

- Esta é minha esposa - disse Omi sucintamente.

- Estou honrado - disse Blackthorne, enquanto ela tomava seu lugar, ajoelhava-se e se curvava.

- O senhor deve perdoar-lhe a lentidão - disse a mãe de Omi. - O chá está quente o suficiente para o senhor?

- Obrigado, está muito bom. - Blackthorne notara que a velha não usara o nome 'da esposa conforme devia. Mas não se surpreendeu, porque Mariko já lhe falara sobre a posição dominante da sogra de uma garota na sociedade japonesa.

- Graças a Deus que o mesmo não acontece na Europa - dissera-lhe ele.

- A sogra de uma esposa não erra. Afinal de contas, Anjinsan, os pais escolhem a esposa em primeiro lugar, e que pai escolheria sem antes consultar a própria esposa? Claro, a nora tem que obedecer, e o filho sempre faz o que a mãe e o pai desejam.

- Sempre?

- Sempre.

- Que acontece se o filho se recusa?

- Isso não é possível. Todo mundo tem que obedecer ao cabeça da casa. O primeiro dever de um filho é para com os pais. Naturalmente. Os filhos recebem tudo das mães: vida, alimento, ternura, proteção. Ela os socorre a vida toda. Portanto, é claro que um filho deva atender aos desejos de sua mãe. A nora... tem que obedecer. É dever dela.

- Conosco não acontece o mesmo.

- É difícil ser uma boa nora, muito difícil. Tem-se apenas que esperar viver o bastante para se ter filhos e se tornar uma a gente mesma.

- E a sua sogra?

- Ah, morreu, Anjin-san. Morreu há muitos anos. Nunca a conheci. O Senhor Hiro-matsu, na sua sabedoria, nunca tomou outra esposa.

- Buntaro-san é o único filho?

- Sim. Meu marido tem cinco irmãs vivas, mas não tem irmãos. - Ela brincara: - De certo modo somos aparentados agora, Anjin-san. Fujiko é sobrinha do meu marido. O que há?

- Estou surpreso de que a senhora nunca me tenha dito, é tudo.

- Bem, é complicado, Anjin-san. - Então Mariko explicara que Fujiko na realidade era uma filha adotiva de Numara Akinori, que se casara com a irmã mais nova de Buntaro, e que o verdadeiro pai de Fujiko era um neto do ditador Goroda pela sua oitava consorte, que Fujiko fora adotada por Numata ainda recém-nascida a unia ordem do táicum, porque o táicum desejava laços mais estreitos entre os descendentes de Hiro-matsu e Goroda...

- O quê?

Mariko rira, dizendo-lhe que sim, os relacionamentos de família no Japão eram muito complicados porque a adoção era normal, os casais trocavam-se filhos e filhas com freqüência, e se divorciavam, casavam-se de novo, casavam-se entre si o tempo todo. Com tantas consortes legais e a facilidade do divórcio - particularmente se por uma ordem de um suserano -, todas as famílias logo se tornavam inacreditavelmente entrelaçadas.

- Deslindar com precisão os elos de família do Senhor Toranaga levaria dias, Anjin-san. Pense apenas na complicação: atualmente ele tem sete consortes oficiais vivas, que lhe deram cinco filhos e três filhas. Algumas consortes eram viúvas ou já tinham sido casadas, com outros filhos e filhas - alguns desses Toranaga adotou, outros não. No Japão não se pergunta se uma pessoa é adotada ou natural. Na verdade, o que importa? A herança depende sempre do cabeça da casa, portanto, adotado ou não, dá na mesma, neh? Até a mãe de Toranaga era divorciada. Mais tarde tornou a se casar e teve três filhos e duas filhas do segundo marido, todos, agora, casados! O filho mais velho do segundo casamento é Zakati, senhor de Shinano.

Blackthorne ponderara sobre isso. Depois dissera: - O divórcio não é possível para nós. Não é possível.

- Assim nos dizem os santos padres. Sinto muito, mas isso não é muito sensato, Anjin-san. Os enganos acontecem, as pessoas mudam, isso é karrna, neh? Por que um homem deveria suportar uma esposa abominável, ou uma esposa um homem abominável? É tolice ficar amarrado para sempre, homem ou mulher, neh?

- Sim.

- Nisso somos muito sábios e os santos padres não. Essa foi uma das duas grandes razões pelas quais o táicum não abraçou o cristianismo, essa tolice sobre o divórcio. E o sexto mandamento, "Não matarás". O padre-inspetor foi até Roma solicitar dispensa para o Japão com relação ao divórcio. Mas Sua Santidade, o papa, na sua sabedoria, negou. Se Sua Santidade tivesse consentido, acredito que o táicum se teria convertido, os daimios estariam seguindo a verdadeira fé agora, e o país seria cristão. O aspecto de "matar" não teria tido importância, porque na realidade ninguém presta atenção alguma a isso, os cristãos menos que todos. Uma concessão tão pequena portanto, neh?

- Sim - dissera Blackthorne. Como o divórcio parecia razoável! Por que era um pecado mortal lá em casa, atacado por cada padre da cristandade, católico ou protestante, em nome de Deus?

- Como era a esposa de Toranaga? - perguntara, querendo faze-la continuar falando. A maior parte do tempo ela evitara tema de Toranaga e a história de sua família, e era importante para Blackthorne saber tudo.

Uma sombra atravessara o rosto de Mariko. - Morreu. Era a segunda esposa dele e morreu há uns dez ou onze anos. Era filha do padrasto do táicum. O Senhor Toranaga nunca teve êxito com as esposas, Anjin-san.

- Por quê?

- Oh, a segunda era velha, cansada, avarenta, idolatrando ouro, embora fingisse o contrário, como o irmão, o próprio táicum. Estúpida e de mau temperamento. Foi um casamento político, naturalmente. Tive que ser uma das suas damas de companhia durante um tempo. Nada lhe agradava, e nenhum dos jovens ou homens conseguia desatar o nó no seu Pavilhão Dourado.

- O quê?

- O seu Portão de Jade, Anjin-san. Com a Cabeça de Tartaruga - a Seta Aquecida. Não compreende? A... coisa dela.

- Oh! Compreendo. Sim.

- Ninguém conseguia desatar-lhe o nó... satisfazê-la.

- Nem Toranaga?

- Ele nunca "travesseirou" com ela, Anjin-san - dissera ela, completamente chocada. - Claro, depois do casamento ele não tinha mais nada que ver com ela, além de dar-lhe um castelo, assistentes e as chaves da sua casa do tesouro. Por que deveria ter? Ela era muito velha, fora casada duas vezes antes, mas o irmão, o táicum, dissolvera os casamentos. Uma mulher muito desagradável. Todos ficaram muito aliviados quando ela foi para

  • Grande Vazio, até o táicum, e todas as suas noras e todas as consortes de Toranaga secretamente queimaram incenso com grande alegria.

- E a primeira esposa de Toranaga?

- Ah, a Senhora Tachibana. Esse foi outro casamento político. O Senhor Toranaga tinha dezoito anos, ela quinze. Cresceu para ser uma mulher terrível. Há vinte anos Toranaga condenou-a à morte porque descobriu que ela estava secretamente tramando o assassinato do suserano deles, o ditador Goroda, a quem ela odiava. Meu pai sempre me dizia que achava que todos eles tiveram sorte em conservar a cabeça - ele, Toranaga, Nakamura, e todos os generais -, porque Goroda era inclemente, implacável, e particularmente desconfiado dos que lhe eram mais chegados. Aquela mulher poderia te-los arruinado a todos, por mais inocentes que fossem. Devido à sua conspiração contra o Senhor Goroda, o seu único filho, Nobunaga, também foi condenado à morte, Anjin-san. Ela matou o próprio filho. Pense nisso, tão triste, tão terrível. Pobre Nobunaga, era o filho favorito de Toranaga e seu herdeiro oficial, bravo, um general totalmente leal. Era inocente, mas ela o envolveu na trama. Tinha só dezenove anos quando Toranaga lhe ordenou que cometesse seppuku.

- Toranaga matou o próprio filho? E a esposa?

- Sim, ordenou-lhes que fizessem isso, mas não teve escolha, Anjin-san. Se não tivesse feito isso, o Senhor Goroda, acertadamente, teria presumido que Toranaga fazia parte da conspiração e lhe teria ordenado instantaneamente que cortasse o ventre. Oh, sim, Toranaga teve sorte de escapar à cólera de Goroda e foi sábio em mandá-la matar-se rapidamente. Quando ela morreu, sua nora e todas as consortes de Toranaga ficaram em êxtase. O filho dela tivera que mandar a primeira esposa de volta para casa, em desgraça, por ordem dela, devido a algum descuido imaginário - depois de lhe gerar dois filhos. A garota cometeu seppuku - eu lhe disse, Anjin-san, que as senhoras cometem seppuku cortando a garganta e não o estômago, como os homens? -, mas morreu agradecida, contente por se libertar de uma vida de lágrimas, exatamente como a próxima esposa orava pela morte, já que sua vida foi tornada igualmente miserável pela sogra ...

Agora, olhando para a sogra de Midori, o chá escorrendolhe pelo queixo, Blackthorne sabia que aquela velha bruxa tinha poder de vida ou morte, divórcio ou degradação sobre Midori, desde que o marido, o cabeça da casa, concordasse. E, decidissem eles o que decidissem, Omi obedeceria. Que terrível, disse-se ele.

Midori tinha toda a graça e juventude que a velha não tinha, o rosto oval, o cabelo abundante. Era mais bonita do que Mariko, mas sem o ardor e a força da outra, flexível como uma samambaia e frágil como uma teia de aranha.

- Onde está a comida? Naturalmente o Anjin-san deve estar com fome - disse a velha.

- Oh, sinto muito - replicou Midori imediatamente. - Vá buscar - disse ela à criada. - Depressa! Sinto muito, Anjin-san!

- Sinto muito, Anjin-san - disse a velha.

- Por favor, não se desculpe - disse Blackthorne a Midori, e imediatamente percebeu que isso fora um erro. As boas maneiras decretavam que ele devia dirigir-se apenas à sogra, particularmente se ela tivesse uma má reputação. - Sinto muito - disse ele. - Eu não fome. Esta noite eu comer devo com o Senhor Toranaga.

- Ah so desu! Ouvimos dizer que o senhor lhe salvou a vida. O senhor deve saber como lhe estamos gratos, nós, todos os seus vassalos! - disse a velha.

- Foi dever. Não fiz nada.

- O senhor fez tudo, Anjin-san. Omi-san e o Senhor Yabu apreciam o seu ato tanto quanto todos nós.

Blackthorne viu a velha olhar de relance para o filho. Gostaria de poder sondá-la, sua cadela velha, pensou ele. Será que você é tão má quanto a outra, Tachibana?

- Mãe - disse Omi , sou feliz por ter o Anjin-san como amigo.

- Todos nós somos felizes -- disse ela.

- Não, sou eu quem se sente feliz - replicou Blackthorne. - Eu afortunado ter amigos como família de Kasigi Omi-san. - Estamos todos mentindo, pensou Blackthorne, mas não sei por que vocês mentem. Eu minto por autoproteção e porque é hábito. Mas nunca me esqueci ... Espere um instante. Com toda a honestidade, isso não foi karma? Você não teria feito o que Omi fez? Isso foi há muito tempo, numa vida anterior, neh? Não tem mais sentido agora.

Um grupo de cavaleiros subiu a colina com estrépito, Naga à frente. Desmontou e avançou pelo jardim. Todos os aldeãos pararam de trabalhar e puseram-se de joelhos. Ele lhes fez sinal que continuassem.

- Sinto muito perturbá-lo, Omi-san, mas o Senhor Toranaga me mandou.

- Por favor, não está me incomodando. Por favor, junte-se a nós - disse Omi. Imediatamente Midori cedeu a sua almofada, curvando-se profundamente. -- Aceita chá, ou saqué, Naga-sama?

Naga sentou-se. - Nada, obrigado. Não estou com sede.

Omi insistiu polidamente, passando pelo interminável e necessário ritual, embora fosse óbvio que Naga estava com pressa. - Como está o Senhor Toranaga? para ser uma mulher terrível. Há vinte anos Toranaga condenou-a à morte porque descobriu que ela estava secretamente tramando o assassinato do suserano deles, o ditador Goroda, a quem ela odiava. Meu pai sempre me dizia que achava que todos eles tiveram sorte em conservar a cabeça - ele, Toranaga, Nakamura, e todos os generais -, porque Goroda era inclemente, implacável, e particularmente desconfiado dos que lhe eram mais chegados. Aquela mulher poderia te-los arruinado a todos, por mais inocentes que fossem. Devido à sua conspiração contra o Senhor Goroda, o seu único filho, Nobunaga, também foi condenado à morte, Anjin-san. Ela matou o próprio filho. Pense nisso, tão triste, tão terrível. Pobre Nobunaga, era o filho favorito de Toranaga e seu herdeiro oficial, bravo, um general totalmente leal. Era inocente, mas ela o envolveu na trama. Tinha só dezenove anos quando Toranaga lhe ordenou que cometesse seppuku.

- Toranaga matou o próprio filho? E a esposa?

- Sim, ordenou-lhes que fizessem isso, mas não teve escolha, Anjin-san. Se não tivesse feito isso, o Senhor Goroda, acertadamente, teria presumido que Toranaga fazia parte da conspiração e lhe teria ordenado instantaneamente que cortasse o ventre. Oh, sim, Toranaga teve sorte de escapar à cólera de Goroda e foi sábio em mandá-la matar-se rapidamente. Quando ela morreu, sua nora e todas as consortes de Toranaga ficaram em êxtase. O filho dela tivera que mandar a primeira esposa de volta para casa, em desgraça, por ordem dela, devido a algum descuido imaginário - depois de lhe gerar dois filhos. A garota cometeu seppuku - eu lhe disse, Anjin-san, que as senhoras cometem seppuku cortando a garganta e não o estômago, como os homens? -, mas morreu agradecida, contente por se libertar de uma vida de lágrimas, exatamente como a próxima esposa orava pela morte, já que sua vida foi tornada igualmente miserável pela sogra...

Agora, olhando para a sogra de Midori, o chá escorrendolhe pelo queixo, Blackthorne sabia que aquela velha bruxa tinha poder de vida ou morte, divórcio ou degradação sobre Midori, desde que o marido, o cabeça da casa, concordasse. E, decidissem eles o que decidissem, Omi obedeceria. Que terrível, disse-se ele.

Midori tinha toda a graça e juventude que a velha não tinha, o rosto oval, o cabelo abundante. Era mais bonita do que Mariko, mas sem o ardor e a força da outra, flexível como uma samambaia e frágil como uma teia de aranha.

- Onde está a comida? Naturalmente o Anjin-san deve estar com fome - disse a velha.

- Oh, sinto muito - replicou Midori imediatamente. - Vá buscar - disse ela à criada. - Depressa! Sinto muito, Anjin-san!

- Sinto muito, Anjin-san - disse a velha.

- Por favor, não se desculpe - disse Blackthorne a Midori, e imediatamente percebeu que isso fora um erro. As boas maneiras decretavam que ele devia dirigir-se apenas à sogra, particularmente se ela tivesse uma má reputação. - Sinto muito - disse ele. - Eu não fome. Esta noite eu comer devo com o Senhor Toranaga.

- Ah so desu! Ouvimos dizer que o senhor lhe salvou a vida. O senhor deve saber como lhe estamos gratos, nós, todos os seus vassalos! - disse a velha.

- Foi dever. Não fiz nada.

- O senhor fez tudo, Anjin-san. Omi-san e o Senhor Yabu apreciam o seu ato tanto quanto todos nós.

Blackthorne viu a velha olhar de relance para o filho. Gostaria de poder sondá-la, sua cadela velha, pensou ele. Será que você é tão má quanto a outra, Tachibana?

- Mãe - disse Omi -, sou feliz por ter o Anjin-san como amigo.

- Todos nós somos felizes -- disse ela.

- Não, sou eu quem se sente feliz - replicou Blackthorne. - Eu afortunado ter amigos como família de Kasigi Omi-san. - Estamos todos mentindo, pensou Blackthorne, mas não sei por que vocês mentem. Eu minto por autoproteção e porque é hábito. Mas nunca me esqueci ... Espere um instante. Com toda a honestidade, isso não foi karma? Você não teria feito o que Omi fez? Isso foi há muito tempo, numa vida anterior, neh? Não tem mais sentido agora.

Um grupo de cavaleiros subiu a colina com estrépito, Naga à frente. Desmontou e avançou pelo jardim. Todos os aldeãos pararam de trabalhar e puseram-se de joelhos. Ele lhes fez sinal que continuassem.

- Sinto muito perturbá-lo, Omi-san, mas o Senhor Toranaga me mandou.

- Por favor, não está me incomodando. Por favor, junte-se a nós - disse Omi. Imediatamente Midori cedeu a sua almofada, curvando-se profundamente. - Aceita chá, ou saque, Naga-sama?

Naga sentou-se. - Nada, obrigado. Não estou com sede.

Omi insistiu polidamente, passando pelo interminável e necessário ritual, embora fosse óbvio que Naga estava com pressa. - Como está o Senhor Toranaga?

- Muito bem. Anjin-san, o senhor nos prestou um grande serviço. Sim. Agradeço-lhe pessoalmente.

- Foi dever, Naga-san. Mas fiz pouco. O Senhor Toranaga puxou-me da ... puxou-me da terra também.

- Sim. Mas isso foi depois. Agradeço-lhe muitíssimo.

- Naga-san, há algo que eu possa fazer pelo Senhor Toranaga? - perguntou Omi, já que a etiqueta finalmente lhe autorizava ir ao ponto.

- Ele gostaria de vê-lo após a refeição noturna. Haverá uma reunião de todos os oficiais.

- Ficarei honrado.

- Anjin-san, deve vir comigo agora, se lhe aprouver. - Naturalmente. A honra é minha.

Mais mesuras e saudações e depois Blackthorne estava sobre um cavalo, descendo a colina a trote. Quando a falange de samurais atingiu a praça, Naga puxou as rédeas.

- Anjin-san!

- Hai?

- Agradeço-lhe de todo o coração por haver salvado o Senhor Toranaga. Permita-me ser seu amigo... - e algumas palavras que Blackthorne não assimilou.

- Desculpe, não compreendo. "Karite iru"?

- Ah, desculpe, "Karite iru": um homem karite iru coisas a outro, como "dívida". O senhor entende "dívida"?

"Dever" surgiu na cabeça de Blackthorne. -- Ah so desu! Wakarimasu.

- Ótimo. Disse apenas que lhe devo uma vida. - Era o meu dever, neh?

- Sim. Ainda assim, devo-lhe uma vida.

- Toranaga-sama diz que toda a pólvora de canhão e a munição foram postos de volta no seu navio, Anjin-san, aqui em Anjiro, antes de partir para Yedo. Ele pergunta quanto tempo o senhor levaria para se preparar para zarpar.

--- Isso depende do estado do navio, se os homens o querenaram e cuidaram dele, se o mastro foi substituído, e assim por diante. O Senhor Toranaga sabe como se encontra o navio?

- O navio parece em ordem, diz ele, mas não é um marujo, por isso não poderia ter certeza. Não subiu a bordo desde que o navio foi rebocado para a enseada de Yedo, quando deu instruções para que cuidassem dele. Presumindo-se que o navio esteja em condições, neh, ele pergunta quanto tempo o senhor levaria para se preparar para a guerra.

O coração de Blackthorne perdeu uma batida. - Contra quem combatemos, Mariko-san?

- Ele pergunta contra quem o senhor gostaria de combater.

- Contra o Navio Negro deste ano - respondeu Blackthorne imediatamente, tomando unia decisão repentina, esperando desesperadamente que aquele fosse o momento correto para expor diante de Toranaga o plano que elaborara secretamente ao longo dos dias. Estava especulando com o fato de que ter salvo a vida de Toranaga naquela manhã talvez lhe desse um privilégio especial que o ajudaria a superar os obstáculos.

Mariko foi dominada pela surpresa. - O quê?

- O Navio Negro. Diga ao Senhor Toranaga que tudo o que ele tem a fazer é dar-me as suas cartas de corso. Farei o resto. Com o meu navio e uma ajudazinha... dividimos a carga, toda a seda e o dinheiro.

Ela riu. Toranaga não.

- Meu amo ... diz que isso seria um imperdoável ato de guerra contra uma nação amiga. Os portugueses são essenciais para o Japão.

- Sim, são... no momento. Mas acredito que sejam inimigos dele tanto quanto meus, e seja qual for o serviço que ofereçam, podemos fazer melhor. A um custo menor.

- Ele diz que talvez. Mas não acredita que a China faça comércio com o senhor. Nem os ingleses nem os neerlandeses estão maciçamente na Asia ainda, e necessitamos das sedas agora e de um fornecimento contínuo.

- Ele tem razão, claro. Mas num ou dois anos isso mudará e ele terá a prova. Por isso, eis outra sugestão. Já estou em guerra com os portugueses. Além do limite de três milhas, as águas são internacionais. Legalmente. com as minhas atuais cartas de corso, posso tomar o navio e, na qualidade de presa, posso levá-lo para qualquer porto e vendê-lo, assim como a carga. Com o meu navio e uma tripulação, será fácil. Em poucas semanas ou meses, eu poderia entregar o Navio Negro e tudo o que contém em Yedo. Eu poderia vendê-lo em Yedo. Metade do valor será o seu ... a taxa de porto.

- Ele diz que o que acontece no mar entre o senhor e os seus inimigos é de pouco interesse para ele. O mar pertence a todos. Mas esta terra é nossa, e aqui nossas leis governam e não podem ser infringidas.

- Sim, - Blackthorne sabia que seu curso era perigoso, mas sua intuição lhe dizia que o momento era perfeito e que Toranaga morderia a isca. E Mariko. - Foi só uma sugestão. Ele me perguntou contra quem eu gostaria de combater. Por favor, desculpe-me, mas às vezes é bom planejar para qualquer eventualidade. Nisso acredito que os interesses do Senhor Toranaga são os meus.

Mariko traduziu. Toranaga grunhiu e falou brevemente.

- O Senhor Toranaga dá valor a sugestões sensatas, Anjinsari, como a sua idéia sobre a marinha, mas isto é ridículo. Ainda que os interesses de ambos fossem os mesmos, coisa que não são, como o senhor poderia, com nove homens, atacar um vaso tão imenso com quase mil pessoas a bordo?

- Eu não faria isso. Preciso de uma nova tripulação, Mariko-san. Oitenta ou noventa homens, marujos e atiradores treinados. Encontro-os em Nagasaki, em navios portugueses. - Blackthorne fingiu não notar que ela tomou fôlego, nem o modo como o leque parou. - Deve haver alguns franceses, um inglês ou dois se eu tiver sorte, alguns alemães e holandeses, serão renegados na maioria, ou gente que foi levada à força para bordo. Eu necessitaria de um salvo-conduto para Nagasaki, alguma proteção, e um pouco de prata ou ouro. Há sempre marinheiros em frotas inimigas que se engajarão por dinheiro vivo e uma parte do dinheiro da presa.

- Meu amo diz que qualquer comandante que confie em tal imundície num ataque seria louco.

- Concordo - disse Blackthorne -, mas preciso de uma tripulação para zarpar.

- Ele pergunta se seria possível treinar samurais e nossos marujos para serem atiradores e marinheiros.

- Facilmente. Com tempo. Mas isso poderia levar meses. Com certeza estariam prontos no próximo ano. Não haveria chance de ir contra o Navio Negro deste ano.

- O Senhor Toranaga diz: "Não planejo atacar o Navio Negro dos portugueses, neste ano ou no próximo. Não são meus inimigos e não estou em guerra com eles".

- Eu sei. Mas eu estou em guerra com eles. Por favor, desculpe-me. Naturalmente isto é apenas uma discussão, mas precisarei ter alguns homens para zarpar, para estar ao serviço do Senhor Toranaga se ele desejar.

Estavam sentados nos aposentos privados de Toranaga, que davam para o jardim. A fortaleza mal fora tocada pelo terremo

  1. A noite estava úmida e sem ar, e a fumaça que vinha das espirais de incenso subia preguiçosamente para expulsar os mosquitos.

- Meu amo quer saber - estava dizendo Mariko - se o senhor, caso tivesse o seu navio agora, e os poucos membros da tripulação que chegaram com o senhor, iria a Nagasaki para encontrar esses homens suplementares que solicita.

- Não. Isso seria perigoso demais. Eu estaria tão insuficientemente tripulado, que os portugueses me capturariam. Seria muito melhor conseguir os homens primeiro, trazê-los para águas domésticas, para Yedo, neh? Uma vez que eu esteja com a tripulação completa, o inimigo não tem nada nestes mares com que consiga me tocar.

- Ele não acha que o senhor e noventa homens pudessem tomar o Navio Negro.

- Posso velejar melhor que ele e afundá-lo com o Erasmus. Naturalmente, Mariko-san, sei que tudo isso são conjecturas; mas se eu fosse autorizado a atacar o meu inimigo, no momento em que tivesse uma tripulação, navegaria imediatamente para Nagasaki. Se o Navio Negro já estivesse atracado, eu mostraria as minhas bandeiras de guerra e o bloquearia no mar. Eu o deixaria terminar o comércio e aí, quando o vento estivesse propício para a viagem para casa, fingiria precisar de suprimentos e o deixaria sair do porto. Depois o capturaria a algumas léguas, porque temos mais velocidade e meus canhões fariam o resto. Uma vez que ele tenha arriado suas bandeiras, eu ponho uma tripulação a bordo e trago-o para Yedo. Ele deve ter mais de trezentas, quase quatrocentas toneladas de ouro a bordo.

- Mas por que o capitão do Navio Negro não afundaria o navio uma vez que o senhor o tivesse derrotado, se o derrotar, antes que o senhor possa ir a bordo?

- Geralmente. . . - Blackthorne ia dizer: "Geralmente a tripulação se amotina se o capitão é um fanático, mas nunca conheci nenhum tão louco. Na maioria das vezes faz-se um acordo com o capitão: poupa-se a vida dele, dá-se-lhe uma pequena parte da carga e transporte até o porto mais próximo. Mas desta vez terei que lidar com Rodrigues e eu o conheço e sei o que ele fará". Mas pensou melhor nisso e decidiu não revelar todo o plano. É melhor deixar os métodos bárbaros aos bárbaros, disse a si mesmo. - Geralmente o navio derrotado capitula, Marikosan. É uni costume, um dos nossos costumes de guerra no mar, poupar a perda desnecessária de vidas.

- O Senhor Toranaga diz, sinto muito, Anjin-san, que isso é um costume repulsivo. Se ele tivesse navios, não haveria rendição. - Mariko tomou um gole de chá, depois continuou: - E se o navio não estiver no porto?

- Aí eu corro as rotas marítimas para capturá-lo a algumas léguas, em águas internacionais. Será mais fácil pegá-lo pesado de carga e chafurdando, mas mais difícil de trazer para Yedo. Quando se espera que atraque?

-- Meu amo não sabe. Talvez dentro de trinta dias, diz ele. O navio virá mais cedo este ano.

Blackthorne sabia que estava muito perto da presa, muito perto. - Então é bloqueá-lo e torná-lo no fim da estação. - Ela traduziu e Blackthorne pensou ver um desapontamento momentâneo perpassar o rosto de Toranaga. Fez uma pausa, como se estivesse considerando alternativas, e disse: - Se estivéssemos na Europa, haveria outro modo. Poderíamos navegar à noite e torná-lo a força. Um ataque de surpresa.

Toranaga apertou com força o punho da espada.

- Ele pergunta se o senhor ousaria atacar os seus inimigos na nossa terra.

Os lábios de Blackthorne estavam secos. - Não. Claro que isto ainda é uma suposição, mas se existisse um estado de guerra entre ele e os portugueses, e o Senhor Toranaga os quisesse prejudicar, seria esse o modo de faze-lo. Se eu tivesse duzentos ou trezentos combatentes bem disciplinados, uma boa tripulação e o Erasmus, seria fácil emparelhar com o Navio Negro e abordá-lo, arrastá-lo para o largo. Ele poderia escolher a época do ataque de surpresa. . . se estivéssemos na Europa.

Houve um longo silêncio.

- O Senhor Toranaga diz que isto não é a Europa e que não existe, nem jamais existirá, um estado de guerra entre ele e os portugueses.

- Claro. Um último ponto, Mariko-san: Nagasaki não está sob controle do Senhor Toranaga, está?

- Não, Anjin-san. O Senhor Harima é dono do porto e de toda a região.

- Mas na prática não são os jesuítas que controlam o porto e todo o comércio? -- Blackthorne reparou na relutância dela em traduzir, mas pressionou-a mais ainda. - Não é essa a honto, Mariko-san? E o Senhor Harima não é católico? A maior parte de Kyushu não é católica? E por conseguinte os jesuítas, em certa medida, não controlam a ilha toda?

- O cristianismo é uma religião. Os daimios controlam suas terras, Anjin-san - disse Mariko por si mesma.

- Mas fui informado de que Nagasaki na realidade é solo português. Fui informado de que eles agem como se o fosse. O pai do Senhor Harima não vendeu a terra aos jesuítas?

A voz de Mariko excitou-se. - Sim. Mas o táicum tomou-a de volta. Nenhum estrangeiro tem autorização para possuir terra aqui, agora.

- Mas o táicum não permitiu que seus editos caducassem, de modo que hoje nada acontece lá sem a aprovação dos jesuítas? Os jesuítas não controlam toda a navegação em Nagasaki, e todo o comércio? Não negociam todo o comércio para voces e não agem como intermediários?

- O senhor está muito bem informado sobre Nagasaki, Anjin-san - disse ela enfaticamente.

- Talvez o Senhor Toranaga devesse tomar do inimigo o controle do porto. Talvez...

- Eles são seus inimigos, Anjin-san, não nossos - disse ela, mordendo a isca finalmente. - Os jesuítas são...

- Nan ia?

Ela se voltou para Toranaga desculpando-se, e explicou o que fora dito entre eles. Quando terminou ele falou severamente, uma reprimenda evidente. - Hai - disse ela várias vezes, e curvou-se, disciplinada.

- O Senhor Toranaga me lembra - disse ela - de que as minhas opiniões não têm valor e que um intérprete deve apenas interpretar, neh? Por favor, desculpe-me.

Em outra oportunidade Blackthorne se teria desculpado por ter-lhe armado uma cilada. Agora isso não lhe ocorreu. Mas como atingira o alvo, riu e disse: - Hai, kawaii Tsukkuko-sama! Sim, linda Senhora Intérprete!

Mariko sorriu atravessado, furiosa consigo mesma por ter caído na armadilha, a mente em conflito com suas lealdades divididas.

- Yoi, Anjin-san - disse Toranaga, mais uma vez cordial.

- Mariko-san kawaii desu yori! Tsukku-san anamsu ka nori masen, neh? E Mariko-san é muito mais bonita do que o velho Sr. Tsukku, não é, e também muito mais perfumada?

Toranaga riu. - Hai.

Mariko corou e serviu chá, um pouco abrandada. Depois Toranaga falou. Seriamente.

- Nosso amo pergunta por que o senhor está fazendo tantas perguntas - ou tantas afirmações - sobre o Senhor Harima e Nagasaki.

- Só para mostrar que o porto de Nagasaki de fato é controlado por estrangeiros. Pelos portugueses. E pela minha lei, tenho o direito legal de atacar o inimigo em qualquer lugar.

- Mas isto não é "qualquer lugar", diz ele. Esta é a Terra dos Deuses e tal ataque é impensável.

- Concordo inteiramente. Mas se o Senhor Harima se tornasse hostil, ou os jesuítas que comandam os portugueses se tornassem hostis, seria esse o modo de atingi-los.

- O Senhor Toranaga diz que nem ele nem qualquer daimio jamais permitiria um ataque de qualquer nação estrangeira contra outra em solo japonês, ou que elas matassem qualquer um dos nossos. Contra inimigos do imperador, o caso é diferente. Quanto a conseguir combatentes e uma tripulação, seria fácil um homem conseguir qualquer quantidade desde que falasse japonês. Há muitos wakos em Kyushu.

- Wakos, Mariko-san?

- Oh, desculpe. Chamamos os corsários de "wakos", Anjinsan. Costumavam ter muitos covis em torno de Kyushu, mas foram destruidos, na maioria, pelo táicum. Infelizmente ainda se podem encontrar sobreviventes. Os wakos aterrorizaram as costas da China durante séculos. Foi por causa deles que a China fechou seus portos para nós. - Explicou a Toranaga o que fora dito. Ele falou de novo, mais enfaticamente. - Ele diz que nunca permitirá, planejará ou lhe permitirá realizar um ataque por terra, embora fosse correto que o senhor pilhasse o inimigo da sua rainha em alto-mar. Ele repete que isto não é qualquer lugar. Esta é a Terra dos Deuses. O senhor deve ser paciente, conforme ele lhe disse.

- Sim. Pretendo tentar ser paciente à maneira dele. Só quero atingir o inimigo porque eles são o inimigo. Acredito de todo o coração que são inimigos dele também.

- O Senhor Toranaga diz que os portugueses lhe dizem que o senhor é o inimigo. dele, e Tsukku-san e o padre-inspetor têm certeza absoluta disso.

- Se eu fosse capaz de capturar o Navio Negro no mar e trazê-lo como presa legal para Yedo, sob a bandeira da Inglaterra, teria autorização para vendê-lo e tudo o que contém, em Yedo, de acordo com o nosso costume?

- O Senhor Toranaga diz que isso depende.

- Se a guerra vier, posso ser autorizado a atacar o inimigo, o inimigo do Senhor Toranaga, da melhor maneira que eu puder?

- Ele diz que esse é o dever de um hatamoto. Um hatamoto, naturalmente, está sob as ordens pessoais dele o tempo todo. Meu amo deseja que eu deixe claro que as coisas no Japão nunca serão resolvidas por outro método que não seja o japonês.

- Sim. Compreendo perfeitamente. Com a devida humildade, eu gostaria de assinalar que quanto mais eu souber sobre os problemas dele, mais eu poderei ajudar.

- Ele diz que o dever de um hatamoto é sempre ajudar seu senhor, Anjin-san. Diz que devo responder a quaisquer perguntas razoáveis que o senhor queira me fazer mais tarde.

- Obrigado. Posso perguntar-lhe se ele gostaria de ter uma marinha? Conforme sugeri na galera?

- Ele já disse que gostaria de ter uma marinha, uma marinha moderna, Anjin-san, manejada pelos seus próprios homens. Que daimio não gostaria?

- Então consideremos isto: se eu tivesse sorte o bastante para tomar o navio inimigo, eu o levaria a Yedo para ser reparado e para avaliar a presa. Depois baldearia a minha metade do butim para o Erasmus e venderia o Navio Negro aos portugueses, ou o ofereceria a Toranaga-sama como presente, ou o queimaria, o que ele desejasse. Aí eu voltaria para casa. Dentro de um ano retornaria e traria quatro belonaves, como um presente da rainha da Inglaterra ao Senhor Toranaga.

- Ele pergunta onde estaria o seu lucro nisso.

- A honto é que sobraria muito para mim, Mariko-san, depois que os navios fossem pagos, dado por Sua Majestade. Depois eu gostaria de levar um dos conselheiros dele mais dignos de confiança, como embaixador junto à minha rainha. Um tratado de amizade entre os nossos países poderia ser do interesse dele.

- O Senhor Toranaga diz que isso seria muita generosidade da sua rainha. Ele pergunta, porém, no caso de tal coisa miraculosamente acontecer e o senhor voltar com os novos navios, quem treinaria os marinheiros, os samurais e os capitães para equipá-los.

- Inicialmente eu mesmo, se isso lhe aprouvesse. Eu ficaria honrado, depois outros poderiam se seguir.

- Ele pergunta o que é "inicialmente".

- Dois anos.

Toranaga sorriu fugazmente.

- Nosso amo diz que dois anos não seria "inicialmente" suficiente. Entretanto, acrescenta, é tudo uma ilusão. Ele não está em guerra com os portugueses nem com o Senhor Hirama de Nagasaki. Repete que o que o senhor fizer fora de águas japonesas, no seu próprio navio, com a sua própria tripulação, é o seu karma. - Mariko parecia perturbada. - Fora das nossas águas o senhor é estrangeiro, diz ele. Mas aqui é samurai.

- Sim. Sei da honra que ele me concedeu. Posso perguntar como um samurai consegue dinheiro emprestado, Mariko-san?

- De um prestamista, Anjin-san. Onde mais? De um imundo mercador prestamista. - Traduziu para Toranaga. - Por que o senhor precisaria de dinheiro?

- Existem prestamistas em Yedo?

- Oh, sim. Os prestamistas estão por toda parte, neh? Não ocorre o mesmo no seu país? Pergunte à sua consorte, Anjin-san, talvez ela possa ajudá-lo. Isso faz parte do dever dela.

- A senhora disse que partimos para Yedo amanhã?

- Sim, amanhã.

- Infelizmente Fujiko-san não será capaz de viajar amanhã. Mariko conversou com Toranaga.

- O Senhor Toranaga diz que a mandará de galera, quando o navio partir. Ele pergunta por que o senhor precisa de dinheiro emprestado.

- Terei que arrumar uma nova tripulação, Mariko-san, para zarpar a qualquer parte, a fim de servir o Senhor Toranaga, caso ele o deseje. Isso é permitido?

- Uma tripulação de Nagasaki?

- Sim.

- Ele lhe dará uma resposta quando o senhor chegar a Yedo.

- Domo, Toranaga-sama. Mariko-san, quando eu chegar a

Yedo, para onde vou? Haverá alguém para me orientar?

- Oh, o senhor não deve jamais se preocupar com coisas

assim, Anjin-san. É um hatamoto do Senhor Toranaga. Houve uma batida na porta interna.

- Entre.

Naga abriu a shoji e curvou-se. - Desculpe-me, Pai, mas o senhor queria ser avisado do momento cm que todos os oficiais estivessem presentes.

- Obrigado, estarei lá dentro em pouco. - Toranaga pensou um instante, depois fez sinal a Blackthorne, amistosamente. - Anjin-san, vá com Naga-san. Ele lhe mostrará o seu lugar. Obrigado pelas suas opiniões.

- Sim, senhor. Obrigado por ter escutado. Obrigado pelas suas palavras. Sim. Tento arduamente ser paciente e perfeito.

- Obrigado, Anjin-san. - Toranaga observou-o se curvar, se afastar. Quando ficaram a sós, voltou-se para Mariko: - Bem, o que pensa?

- Duas coisas, senhor. Primeiro, o ódio dele pelos jesuítas é incomensurável, superando até a aversão que tem pelos portugueses, portanto ele é um flagelo que o senhor pode usar contra qualquer um deles ou contra ambos, se o desejar. Sabemos que ele é corajoso, portanto rechaçaria arrojadamente qualquer ataque vindo do mar. Segundo, o objetivo dele ainda é dinheiro. Em sua defesa, pelo que aprendi, devo dizer que o dinheiro é o único meio real de que os bárbaros dispõem para tornar duradouro o poder. Compram terras e posição - até a rainha é uma mercadora, que "vende" terra aos seus lordes, e compra navios e terras, provavelmente. Eles não são muito diferentes de nós, senhor, exceto nisso. E também no fato de não compreenderem o poder, nem que a guerra é a vida e a vida é a morte.

- Os jesuítas são meus inimigos?

- Não acredito nisso.

- Os portugueses?

- Acredito que estejam interessados apenas em lucros, terra a difusão da palavra de Deus.

- Os cristãos são meus inimigos?

- Não, senhor. Embora alguns dos seus inimigos possam ser cristãos - católicos ou protestantes.

- Ah, acha que o Anjin-san é meu inimigo?

- Não, senhor. Não. Acredito que ele o honra e, com o tempo, se tornará um vassalo autêntico.

- Quanto aos nossos cristãos? Quem é inimigo?

- Os senhores Harima, Kiyama, Onoshi, e qualquer outro samurai que se volte contra o senhor.

Toranaga riu. - Sim, mas os padres os controlam, conforme Anjin-san insinua?

- Não creio.

- Esses três vão se colocar contra mim?

- Não sei, senhor. No passado foram tanto hostis quanto amistosos em relação ao senhor. Mas se se puserem do lado de Ishido, será muito mau.

- Concordo. Sim. Você é uma conselheira de valor. É difícil para você, sendo cristã católica, ser amiga de um inimigo, ouvir idéias inimigas.

- Sim, senhor.

- Ele a pegou numa armadilha, neh?

- Sim. Mas na verdade ele tinha o direito. Eu não estava fazendo o que o senhor ordenara. Estava me colocando entre os pensamentos dele e o senhor. Por favor, aceite as minhas desculpas.

- Continuará a ser difícil. Talvez até mais.

- Sim, senhor. Mas é melhor conhecer os dois lados da moeda. Muito do que ele disse comprovou-se verdadeiro. Por exemplo, sobre o mundo sendo dividido por espanhóis e portugueses, sobre os padres contrabandeando armas, por mais impossível de crer que seja. Não deve nunca recear pela minha lealdade, senhor. Por mais grave que se torne a situação, sempre cumprirei o meu dever para com o senhor.

- Obrigado. Bem, foi muito interessante o que o Anjin-san disse, neh? Interessante, mas absurdo. Sim, obrigado, Mariko-san, você é uma conselheira valiosa. Devo ordenar que você se divorcie de Buntaro?

- Senhor?

- Bem?

Oh, ser livre, cantou o espírito dela. Oh, minha Nossa Senhora, ser livre!

Lembre-se de quem você é, Mariko, lembre-se do que é. E lembre-se de que "amor" é uma palavra bárbara.

Toranaga a observava em meio ao grande silêncio. Mosquitos vindos de fora vagavam até as espirais de incenso para disparar imediatamente para a segurança. Sim, ponderou ele, ela é um falcão. Mas contra que presa eu a lanço?

- Não, senhor - disse Mariko, finalmente. - Obrigada, senhor, mas não.

- O Anjin-san é um homem estranho, neh? Tem a cabeça cheia de sonhos. Ridículo considerar a idéia de atacar os nossos amigos portugueses, ou o Navio Negro deles. Absurdo acreditar no que ele fala sobre quatro navios, ou vinte.

Mariko hesitou. - Se ele diz que uma marinha é possível, senhor, então acredito que seja.

- Não concordo - disse Toranaga enfaticamente. - Mas você tem razão em que ele serve de equilíbrio contra os outros, ele e o seu navio de combate. Que curioso - mas que esclarecedor! É como disse Omi : no momento necessitamos dos bárbaros, para aprender com eles. E ainda há muito o que aprender, particularmente com ele, neh?

- Sim.

- É tempo de abrir o império, Mariko-san. Ishido o fechará tão apertado quanto uma ostra. Se eu fosse presidente dos regentes novamente, faria tratados com qualquer nação, desde que amistosa. Enviaria homens para aprender com as outras nações, sim, e enviaria embaixadores. A rainha deste homem seria um bom começo. Para uma rainha talvez eu devesse enviar uma embaixadora, se ela fosse inteligente o bastante.

Ela teria que ser muito inteligente e muito forte, senhor.

Sim. Seria uma viagem perigosa.

Todas as viagens são perigosas, senhor - disse Mariko.

Sim. - Novamente Toranaga se desviou sem avisar:

- Se o Anjin-san partisse com o seu navio carregado será que retornaria? Ele mesmo?

Após um longo tempo, ela disse: - Não sei.

Toranaga resolveu não pressioná-la agora. - Obrigado, Mariko-san - disse numa dispensa cordial. - Quero que esteja presente à reunião, para traduzir ao Anjin-san o que eu disser.

- Tudo, senhor?

- Sim. E esta noite, quando for à casa de chá para comprar o contrato de Kiku, leve o Anjin-san com você. Diga à consorte dele que tome as providências. Ele necessita de uma recompensa, neh?

- Hai.

Quando ela se encontrava junto à shoji, Toranaga disse: - Uma vez que a questão entre mim e Ishido esteja resolvida, ordenarei que você se divorcie.

A mão dela se crispou sobre a tela. Assentiu ligeiramente em agradecimento. Mas não olhou para trás. A porta fechou-se. Toranaga observou a fumaça um instante, depois se levantou, encaminhou-se para o jardim, até a latrina, e se acocorou. Quando terminou e usou o papel, ouviu um criado puxar o recipiente de sob o buraco para substituí-lo por outro limpo. Os mosquitos zumbiam e ele os afastou distraidamente. Estava pensando em falcões e gaviões, sabendo que até os maiores falcões cometem erros, como Ishido, e Kiri, e Mariko, e Omi, e até o Anjin-san.

Os cento e cinqüenta oficiais estavam alinhados em fileiras, Yabu, Omi e Buntaro à frente. Mariko estava ajoelhada perto de Blackthorne, ao lado. Toranaga marchou sala adentro com a sua guarda pessoal, e sentou-se sobre a almofada solitária, encarando-os.

Agradeceu-lhes a mesura, depois informou-os resumidamente sobre a essência do despacho e expôs diante deles, pela primeira vez publicamente, seu plano de batalha definitivo. Novamente omitiu a parte que se relacionava com as secretas e cuidadosamente planejadas insurreições, e também o fato de que o ataque tomaria a estrada nordeste e não a estrada costeira de sudeste. E, para aclamação geral - pois todos os seus guerreiros ficaram contentes de que finalmente a incerteza chegasse ao fim -, disselhes que quando as chuvas cessassem ele pronunciaria as palavras em código "Céu Carmesim", o que os lançaria ao ataque. - Nesse meio tempo, espero que Ishido ilegalmente reúna um novo conselho de regentes. Espero ser falsamente impedido. Espero que a guerra seja declarada contra mim, contra a lei. - Inclinou-se para a frente, o punho esquerdo caracteristicamente apoiado na coxa, o outro apertado à espada.

- Ouçam. Eu apóio o testamento do táicurn e reconheço meu sobrinho Yaemon como kwampaku e herdeiro do táicum. Não desejo outras honras. Mas se for atacado por traidores, devo me defender. Se traidores iludirem Sua Alteza Imperial e tentarem assumir o poder, é meti dever defender o imperador e banir o mal. Neh?

Um troar de aprovação saudou o comentário. Gritos de batalha de "Kasigi" e "Toranaga" se derramaram pela sala, para ecoarem por toda a fortaleza.

- O regimento de ataque será preparado para embarcar dentro de cinco dias em galeras com destino a Yedo, Toda Buntaro-san comandando, Kasigi Omi-san como segundo em comando. O Senhor Kasigi Yabu, por favor, mobilizará Izu e ordenará que seis mil homens se postem nas passagens da fronteira, para o caso de o traidor Ikawa Jikkyu atacar o sul para cortar as nossas linhas de comunicação. Quando as chuvas cessarem, Ishido atacará o Kwanto.. .

Omi, Yabu e Buntaro silenciosamente concordaram com a sabedoria de Toranaga em omitir a informação sobre a decisão daquela tarde de deslanchar o ataque na estação chuvosa, imediatamente.

Isso causará um impacto, disse-se Omi, os intestinos se contorcendo ante o pensamento de combater sob a chuva através das montanhas de Shinano.

- Nossos atiradores romperão caminho à força - dissera Yabu entusiasticamente aquela tarde.

- Sim - concordara Omi, não confiando no plano mas não tendo alternativa para oferecer. É loucura, disse a si mesmo, embora estivesse encantado com a promoção a segundo em comando. Não compreendo como Toranaga pode conceber que haja qualquer chance de êxito na estrada nordeste.

Não há chance alguma, disse-se ele novamente, e semicerrou os ouvidos à estimulante exortação de Toranaga, a fim de se permitir concentrar-se mais uma vez no problema da sua vingança. Certamente o ataque em Shinano dará a você dezenas de oportunidades para manipular Yabu na linha de frente, sem risco para você mesmo. Guerra, qualquer guerra lhe será vantajosa, desde que não seja perdida...

Então ouviu Toranaga dizer: - Hoje quase fui morto. Hoje o Anjin-san arrancou-me da terra. Esta é a segunda vez, talvez até a terceira, que ele me salva a vida. Minha vida não é nada em relação ao futuro do meu clã, e quem pode dizer se eu teria vivido ou morrido sem a ajuda dele? Mas, embora seja bushido que vassalos nunca devem esperar recompensa por qualquer serviço, é dever de um suserano conceder favores de tempos em tempos.

Entre a aclamação geral, Toranaga disse: - Anjin-san, sente-se aqui! Mariko-san, você também.

Ciumentamente Omi observou o homem altaneiro se erguer e se ajoelhar no ponto que Toranaga indicara, ao seu lado, e não houve um homem na sala que não desejasse ter tido ele próprio a boa fortuna de fazer o que o bárbaro fizera.

- Ao Anjin-san é concedido um feudo próximo à aldeia pesqueira de Yokohama, ao sul de Yedo, no valor de dois mil kokus anuais, e direito de recrutar duzentos assistentes samurais, direitos absolutos de samurai e hatainoto da casa de Yoshi Toranaga-noh-Chikitada-Minowara. Além disso, receberá dez cavalos, vinte quimonos, junto com equipamento de batalha completo para os seus vassalos. E o posto de almirante-chefe e piloto do Kwanto. - Toranaga esperou até que Mariko tivesse traduzido, depois chamou: - Naga-san!

Obedientemente Naga trouxe a Toranaga o pacote embrulhado em seda. Toranaga atirou longe o envoltório. Havia duas espadas, uma curta, a outra, a espada mortífera. - Notando que a terra engolira as minhas espadas e que eu estava desarmado, o Anjin-san desceu novamente ao abismo para buscar as suas e me dar. Anjin-san, dou-lhe estas em troca. Foram feitas pelo mestre artesão, Yori-ya. Lembre-se, a espada é a alma do samurai. Se ele a esquece, ou a perde, nunca será perdoado.

Para aclamação ainda maior, e inveja individual igualmente maior, Blackthorne pegou as espadas, curvou-se corretamente, e colocou-as no sash, curvando-se novamente em seguida.

- Obrigado, Toranaga-sarna. Concede-me muita honra. Obrigado.

Começou a se afastar, mas Toranaga mandou-o ficar. - Não, sente-se aqui, ao meu lado, Anjin-san. - Toranaga olhou de novo para o rosto militante e fanático dos seus oficiais.

Imbecis! Tinha ele vontade de gritar. Não compreendem que a guerra, tanto agora como depois das chuvas, só seria desastrosa? Qualquer guerra com Ishido-Ochiba-Yaemon e seus atuais aliados terminaria em massacre de todos os meus aliados, todos vocês, e aniquilação de mim e de toda a minha linhagem? Não compreendem que não tenho chance senão aguardando, e esperando que Ishido se estrangule?

Mas, em vez disso, incitou-os ainda mais, pois era essencial desconcertar o inimigo.

- Ouçam, samurais: logo serão capazes de provar o seu valor, homem a homem, como os nossos antepassados fizeram. Destruirei Ishido e todos os seus traidores, e o primeiro será Ikawa Jikkyu. Por isso dôo todas as terras dele, as duas províncias de Suruga e Totomi, no valor de trezentos mil kokus, ao meu fiel vassalo Kasigi Yabu, e, em Izu, confirmo-o, e à sua descendência, como governantes.

Uma estrondosa aclamação. Yabu ficou rubro de júbilo.

Omi martelava o chão, gritando de modo igualmente exultante. Agora a sua presa era ilimitada, pois por costume o herdeiro de Yabu herdaria todas as suas terras.

Então seus olhos se fixaram no Anjin-san, que aplaudia vigorosamente. Por que não deixar o Anjin-san faze-lo por você, perguntou-se ele, e riu alto ante o pensamento imbecil. Buntaro inclinou-se para ele e deu-lhe um tapinha no ombro, amavelmente interpretando mal a risada como felicidade por Yabu. - Logo você terá o feudo que merece, neh? - gritou por sobre o tumulto. - Você também merece reconhecimento. Suas idéias e conselhos são valiosos.

- Obrigado, Buntaro-san.

- Não se preocupe. Podemos atravessar quaisquer montanhas.

- Sim. - Buntaro era um feroz general de batalha e Omi sabia que estavam bem combinados: Omi, o audacioso estrategista, Buntaro, o destemido líder de ataque.

Se há alguém que pode nos fazer atravessar as montanhas, é ele.

Houve uma outra explosão de alegria quando Toranaga ordenou que trouxessem saquê, encerrando a reunião formal.

Omi tomou seu saquê e observou Blackthorne esvaziar outro cálice, seu quimono em ordem, as espadas corretas, Mariko ainda falando. Você mudou muitíssimo, Anjin-san, desde aquele primeiro dia, pensou ele satisfeito. Ainda tem muitas das suas idéias estranhas, mas está quase se tornando civilizado...

- O que há, Omi-san?

- Nada... nada, Buntaro-san...

- Você está com o ar que teria se um eta lhe tivesse esfregado as nádegas no rosto!

- Não é nada disso ... em absoluto! Iiiiiih, é exatamente q oposto. Tive o começo de uma idéia. Beba! Ei, Flor de Pêssego, traga mais saquê, o meu Senhor Buntaro está com o cálice vazio!

 

- Tenho instruções de indagar se Kiku-san estaria livre esta noite - disse Mariko.

- Oh, sinto muito, Senhora Toda, mas não estou certa - disse cordialmente Gyoko, a Mama-san. - Posso perguntar se o honrado cliente solicitaria a Senhora Kiku para a noite toda ou parte dela, ou talvez até amanhã, se ela já não estiver comprometida?

A Mama-san era uma mulher alta, elegante, no começo dos cinqüenta, com um sorriso adorável. Mas bebia saquê demais, seu coração era um ábaco, e o nariz podia sentir o cheiro de uma única moeda de prata a cinqüenta ris de distância.

As duas mulheres encontravam-se numa sala de oito esteiras, contíguas aos aposentos privados de Toranaga. Fora destinada a Mariko e dava para um pequeno jardim, fechado pelo primeiro dos muros internos de defesa. Chovia novamente e os pingos faziam archotes faiscar.

- Isso seria um assunto que caberia ao cliente decidir - disse Mariko delicadamente. - Talvez se pudesse fazer um acordo agora que abrangesse qualquer eventualidade.

- Sinto muito, por favor, desculpe-me por eu não saber da disponibilidade dela imediatamente. Ela é muito procurada, Senhora Toda. Estou certa de que compreende.

- Oh, sim, claro. Somos realmente muito afortunados de ter uma dama da sua qualidade aqui em Anjiro. - Mariko acentuara o "Anjiro". Mandara chamar Gyoko ao invés de ir visitá-la, como poderia ter feito. E quando a mulher chegara, tarde o suficiente para ser distinta, mas não o suficiente para ser rude, Mariko ficara contente com a oportunidade de terçar armas com uma adversária tão à sua altura.

- A casa de chá ficou muito danificada? - perguntou.

- Não, felizmente, com exceção de alguma louça de valor e roupas, embora vá custar uma pequena fortuna para reparar o telhado e pôr ordem no jardim. É sempre tão dispendioso conseguir que as coisas sejam feitas rapidamente, não acha?

- Sim. É muito cansativo. Em Yedo, em Mishima, ou mesmo nesta aldeia.

- É tão importante ter arredores tranqüilos, neh? O cliente nos honraria, talvez, na casa de chá? Ou desejaria que Kiku-san o visitasse aqui, se ela estiver disponível?

Mariko franziu os lábios, pensando. - Na casa de chá.

- Ah, so desu! - O verdadeiro nome de Mama-san era Heiko-ichi, Primeira Filha do Construtor de Muros. Seu pai e seu avô tinham sido especialistas na construção de muros de jardim. Durante muitos anos ela fora cortesã em Mishima, a capital de Izu, atingindo a categoria de segunda classe. Mas os deuses lhe sorriram e, com presentes do seu protetor, associados a um astuto senso de negócios, juntara dinheiro suficiente para comprar o próprio contrato a bom tempo e assim tornar-se uma empresária de damas, com uma casa de chá própria, quando deixara de ser procurada pelo corpo excelente e o espírito atrevido com que os deuses a haviam dotado. Agora se chamava Gyoko-san, Senhora Sorte. Aos catorze anos, ainda cortesã iniciante, recebera o nome de Tsukaiko - Senhora Encantadora de Cobras. Sua proprietária lhe explicara que aquela parte especial do homem podia ser comparada a uma cobra, que cobras davam sorte, e que se ela conseguisse se tornar uma encantadora de cobras, nesse sentido, teria um êxito imenso. Além disso o nome faria os clientes rir, e o riso era essencial naquele negócio. Gyoko nunca se esquecera da advertência sobre o riso.

- Saquê, Gyoko-san?

-- Sim, obrigada, Senhora Toda, obrigada.

A criada serviu. Depois Mariko dispensou-a.

Beberam silenciosamente um momento. Mariko tornou a encher os cálices.

- Que louça adorável. Tão elegante - disse Gyoko.

-- É muito pobre. Sinto muito que tenhamos que usá-la.

- Se eu conseguisse deixá-la disponível, cinco kobans seriam uma soma aceitável? - Um koban era uma moeda de ouro que pesava dezoito gramas. Equivalia a três kokus de arroz.

- Desculpe, talvez eu não me tenha feito clara. Não desejava comprar toda a casa de chá de Mishima, apenas os serviços da dama por uma noite.

Gyoko riu. - Ah, Senhora Toda, sua reputação é bem merecida. Mas posso assinalar que Kiku-san é de primeira categoria? A corporação concedeu-lhe essa honra no ano passado.

- Estou certa de que a classificação é merecida. Mas isso foi em Mishima. Mesmo em Kyoto... mas é claro que a senhora estava fazendo pilhéria, desculpe.

Gyoko engoliu a vulgaridade que lhe estava na ponta da língua e sorriu benevolamente. - Infelizmente eu teria que reembolsar os clientes que, se bem me lembro, já reservaram. Pobre criança, quatro dos seus quimonos ficaram arruinados quando a água extinguiu as chamas. Tempos difíceis se aproximam, senhora. Tenho certeza de que compreende. Cinco não seria irrazoável.

- Claro que não. Cinco seria justo em Kyoto, para uma semana de orgia, com duas damas de primeira classe. Mas os tempos não são normais e é preciso fazer economias. Meio

koban. Saquê, Gyoko-san?

- Obrigada, obrigada. O saque é muito bom, a qualidade é excelente, excelente. Só mais um, por favor, depois tenho que ir. Se Kiku-san não estiver livre esta noite, ficaria encantada em combinar com uma das outras damas. Akeko, talvez. Ou talvez outro dia seria satisfatório? Depois de amanhã, talvez?

Mariko não respondeu por um instante. Cinco kobans era um ultraje - tanto quanto se pagaria por uma famosa cortesã de primeira classe em Yedo. Meio koban seria mais que razoável para Kiku. Mariko conhecia os preços das cortesãs porque Buntaro as usava de tempos em tempos, chegara até a comprar o contrato de uma, e ela tivera que pagar as contas, as quais, como era natural e correto, tinham-lhe sido encaminhadas. Seus olhos avaliaram Gyoko. A mulher sorvia seu saquê calmamente, a mão firme.

- Talvez - disse Mariko. - Mas não creio, nem outra dama nem outra noite... Não, se não puder combinar para esta noite, receio que depois de amanhã seria tarde demais, sinto muito. E quanto a uma outra dama. .. - Mariko sorriu e deu de ombros.

Gyoko pousou o cálice tristemente. - Ouvi dizer, realmente, que os nossos gloriosos samurais estão de partida. Que pena! As noites são tão agradáveis aqui. Em Mishima não se tem a brisa do mar como aqui. Também sentirei muito partir daqui.

- Talvez um koban. Se este acordo for satisfatório, depois eu gostaria de discutir quanto custaria o contrato dela.

- O contrato dela!

- Sim. Saque?

- Sim, obrigada. Contrato... o contrato dela? Bem, isso é outra coisa. Cinco mil kokus.

- Impossível!

- Sim - concordou Gyoko -, mas Kiku-san é como se fosse minha filha. É minha filha, mais do que a minha própria filha. Eduquei-a desde os seis anos de idade. É a dama do Mundo do Salgueiro mais completa de toda Izu. Oh, eu sei, em Yedo a senhora encontraria damas formidáveis, mais espirituosas, mais mundanas, mas isso só porque Kiku-san não teve a boa fortuna de cruzar com a mesma qualidade de pessoas. Mas mesmo agora, nenhuma se equipara em canto e no samisen. Juro por todos os deuses. Dê-lhe um ano em Yedo, com o protetor certo e as fontes de conhecimento, e ela competirá satisfatoriamente com qualquer cortesã do império. Cinco mil kokus é uma soma pequena por uma flor como ela. - A perspiração porejava na testa da mulher. - A senhora deve me desculpar, mas nunca considerei antes a venda do contrato dela. Mal tem dezoito anos, é imaculada. Na realidade penso que jamais poderei vender-lhe o contrato, mesmo pelo preço mencionado. Não, acho que terei que reconsiderar, sinto muito. Talvez pudéssemos discutir isso amanhã. Perder Kiku-san? Minha pequena Kiku-chan? - Lágrimas juntaram-se nos cantos dos olhos da mulher e Mariko pensou: essas lágrimas são tão autênticas, Gyoko, quanto o fato de você nunca ter-se entregado a um Pilão Magnífico.

- Sinto muito. Shigata ga nai, neh? - disse cortesmente, e deixou a mulher lamentar-se e chorar, enchendo-lhe continua mente o cálice. Quanto será que o contrato vale realmente? perguntava a si mesma. Quinhentos kokus seria fantasticamente mais do que justo. Depende da ansiedade do homem, que neste caso não está ansioso. Certamente o Senhor Toranaga não está. Para quem estará comprando? Omi? Provavelmente. Mas por que Toranaga ordenou que o Anjin-san viesse aqui?

- Concorda, Anjin-san? - perguntara-lhe com um riso nervoso, por sobre a turbulência dos oficiais embriagados.

- Está dizendo que o Senhor Toranaga arranjou uma dama para mim? Como parte da minha recompensa?

- Sim. Kiku-san. Dificilmente o senhor poderia recusar. Eu ... recebi ordem de interpretar.

- Ordem?

- Oh, ficarei feliz em interpretar para o senhor. Mas, Anjin-san, o senhor de fato não pode recusar. Seria terrivelmente descortês, depois de tantas honras, neh? - Ela lhe sorrira, desafiando-o, orgulhosa e encantada com a inacreditável generosidade de Toranaga. - Por favor. Nunca estive numa casa de chá ... adoraria ver a mim mesma conversando corn uma autêntica dama do Mundo do Salgueiro.

- O quê?

- Oh, elas são chamadas assim porque se supõe que sejam tão graciosas quanto salgueiros. Às vezes é Mundo Flutuante, porque são comparadas a lírios flutuando num lago. Vamos, Anjin-san, concorde, por favor.

- E Buntaro-sama?

- Oh, ele sabe que devo fazer os arranjos para o senhor. O Senhor Toranaga lhe disse. É tudo muito difícil, naturalmente. Recebi ordem. O senhor também! - Depois dissera em latim, muito contente de que mais ninguém em Anjiro falasse a língua: - Há uma outra razão que lhe direi mais tarde.

- Ah ... diga agora.

- Mais tarde. Mas concorde, com prazer. Porque eu estou pedindo.

- A senhora... como posso lhe recusar?

- Mas com prazer. Tem que ser com prazer. Prometa!

- Com riso. Prometo que tentarei. Não lhe prometo nada além de que tentarei fazer o melhor.

Depois ela o deixara se preparar.

- Oh, fico perturbada com o simples pensamento de vender o contrato da minha beldade - estava gemendo Gyoko. - Sim, obrigada, só mais um pouco de saquê. Depois realmente tenho que ir embora. - Esvaziou o cálice e estendeu-o debilmente para ser enchido de novo. - Digamos dois kobans para esta noite... uma prova do meu desejo de agradar a uma senhora de tanto mérito?

- Um. Se isso for combinado, talvez possamos falar mais sobre o contrato, esta noite, na casa de chá. Sinto muito por ser precipitada, mas o tempo, a senhora compreende. . . - Mariko acenou vagamente na direção da sala de conferência. - Negócios de Estado ... o Senhor Toranaga ... o futuro do reino ... a senhora compreende, Gyoko-san.

- Oh, sim, Senhora Toda, naturalmente. - Gyoko começou a se levantar. - Estamos de acordo em um koban e meio para a noite. Ótimo, então isso está...

- Um.

- Oh ko, senhora, o meio koban é um mero símbolo e nem merece discussão - lamuriou-se Gyoko, agradecendo aos deuses pela sua sagacidade e mantendo a angústia fingida no rosto. Um koban e meio seria paga tripla. Mas. mais do que o dinheiro, aquilo era, finalmente, o primeiro convite vindo da aristocracia autêntica de todo o Japão, coisa de que vinha atrás há muito tempo, pela qual ela de bom grado aconselharia Kiku-san a fazer tudo por nada, duas vezes. -- Por todos os deuses, Senhora Toda, coloco-me à sua mercê, um koban e meio. Por favor, pense nas minhas outras crianças, que têm que ser vestidas e treinadas e alimentadas durante anos, que não se tornam tão inestimáveis como Kiku-san, mas que têm que ser nutridas como ela.

- Um koban, de ouro, amanhã. Neh?

Gyoko ergueu o frasco de porcelana e encheu dois cálices. Ofereceu um a Mariko, bebeu o outro, e tornou a encher o seu imediatamente. - Um - disse ela, a voz abafada.

- Obrigada, é muito gentil e atenciosa. Sim, os tempos estão difíceis. - Mariko sorveu o seu vinho afetadamente. - O Anjinsan e eu estaremos na casa de chá dentro em breve.

- Hein? O-que-foi-que-disse?

- Que o Anjin-san e eu logo estaremos na casa de chá. Vou interpretar para ele.

- O bárbaro? - exclamou Kiku, boquiaberta.

- O bárbaro. E estará aqui a qualquer momento, a menos que o detenhamos... com ela, a hárpia mais cruel e que já conheci, que renasça como prostituta de décima quinta categoria!

Apesar do seu temor, Kiku riu francamente. - Oh, Mamasan, por favor, não se aflija! Ela parece uma senhora tão adorável, e um koban inteiro... a senhora realmente fez um negócio maravilhoso! Ora, ora, temos muito tempo. Primeiro um pouco de saque para dissipar o seu azedume. Ako, rápida como um beija-flor!

Ako desapareceu.

- Sim, o cliente é o Anjin-san. - Gyoko quase sufocou de novo.

Kiku abanou-a e Hana, a pequena aprendiz, abanou-a e segurou-lhe ervas aromáticas junto ao nariz. - Pensei que ela estivesse negociando para o Senhor Buntaro... ou o próprio Senhor Toranaga. Claro que quando ela disse que era o Anjin-san eu perguntei por que a consorte dele mesma, a Senhora Fujiko, não negociou, conforme a educação correta determina, mas tudo o que ela disse foi que a senhora está seriamente doente, com queimaduras, e ela recebeu ordem do próprio Senhor Toranaga de conversar comigo.

- Oh! Oh, como eu seria afortunada de servir ao senhor!

- Você o fará, criança, fará se nós planejarmos. Mas o bárbaro! O que pensarão todos os seus outros clientes? O que dirão? Claro que deixei a coisa em suspenso, dizendo à Senhora Toda que não sabia se você estava livre, portanto você ainda pode recusá-lo se quiser, sem ofensa.

- O que os outros clientes podem dizer? O Senhor Toranaga ordenou isso. Não há nada a fazer, neh? - Kiku dissimulou a própria apreensão.

- Oh, você pode recusar facilmente. Mas tem que ser rápida, Kiku-chan. Oh ko, eu devia ter sido mais esperta... devia.

- Não se preocupe, Gyoko-sarna. Tudo dará certo. Mas temos que pensar com clareza. É um grande risco, neh?

- Sim. Enorme.

- Nunca poderemos voltar atrás se aceitarmos.

- Sim. Eu sei.

- Aconselhe-me.

- Não posso, Kiku-chan. Sinto que fui pega numa armadilha por kamis. A decisão deve ser sua.

Kiku avaliou todos os horrores. Depois avaliou as vantagens. - Vamos arriscar. Vamos aceitá-lo. Afinal de contas, é samurai, e hatamoto, e o vassalo favorito do Senhor Toranaga. Não se esqueça do que disse o adivinho: que eu a ajudaria a ficar rica e famosa para sempre. Rezo para poder fazer isso, para poder retribuir-lhe todas as gentilezas.

Gyoko acariciou o adorável cabelo de Kiku. - Oh, criança, você é tão boa, obrigada, obrigada. Sim, acho que é sábia. Concordo. Deixemos que ele nos visite. - Beliscou-lhe a maçã do rosto afetuosamente. - Você sempre foi a minha favorita! Mas eu teria pedido o dobro pelo almirante bárbaro, se soubesse.

- Mas conseguimos o dobro, Mama-san.

- Deveríamos receber o triplo!

Kiku deu um tapinha na mão de Gyoko. Não se preocupe... este é o começo da sua boa fortuna.

- Sim, e é verdade que o Anjin-san não é nenhum bárbaro comum, mas um samurai e hatarnoto. A Senhora Toda contou-me que ele recebeu um feudo de dois mil kokus, foi feito almirante de todos os navios de Toranaga, e toma banho como uma pessoa civilizada e não fede mais...

Ako chegou sem fôlego e serviu o vinho sem derramar uma gota. Quatro cálices desapareceram em rápida sucessão. Gyoko começou a se sentir melhor. - Esta noite tem que ser perfeita. Sim. Se o Senhor Toranaga ordenou, claro que tem que ser. Ele não ordenaria pessoalmente se não fosse importante para ele pessoalmente, neh? E o Anjin-san é realmente como um daimio. Dois mil kokus anuais ... por todos os kainis, devíamos mesmo ter uma sorte tão boa! Kiku-san, ouça! - Chegou mais perto, e o mesmo fez Ako, toda olhos. - Perguntei à Senhora Toda, vendo que ela falava a infame linguagem deles, se conhecia alguns dos estranhos costumes ou modos deles, histórias, danças, posições, canções, instrumentos ou estimulantes que o Anjin-san preferiria.

- Ah, isso seria muito útil, muito - disse Kiku, assustada e desejando ter tido a prudência de recusar.

- Ela não me disse nada! Fala a língua deles mas não conhece nada sobre os hábitos de "travesseiro". Perguntei-lhe se já lhe havia perguntado alguma vez e ela disse que sim, mas com resultados desastrosos. - Gyoko relatou o ocorrido no Castelo de Osaka. - Você pode imaginar como isso deve ter sido embaraçoso!

- Pelo menos sabemos que não devemos sugerir meninos ... já é alguma coisa.

- Além disso, há apenas a criada da casa!

- Temos tempo para mandar buscar a criada?

- Fui lá eu mesma. Direto à fortaleza. Nem um mês de salário abriu a boca da garota, carunchinho estúpido!

- Ela é apresentável?

- Oh, sim, para uma criada amadora e destreinada. Tudo o que disse foi que o amo era viril e não era pesado, que "travesseirava" abundantemente, na posição mais comum. E que era generosamente dotado.

- Isso não ajuda muito, Mama-san.

- Eu sei. Talvez o• melhor a fazer seja ter tudo preparado, só para o caso de ser necessário. Tudo.

- Sim. Simplesmente terei que ser mais cautelosa. É muito importante que saia tudo perfeito. Será muito difícil - se não impossível - entretê-lo corretamente se eu não conversar com ele.

- A Senhora Toda disse que interpretaria.

- Ah, que gentileza da parte dela. Isso ajudará enormemente, embora não seja a mesma coisa, claro.

- É verdade, é verdade. Mais saque, Alço ... graciosamente, criança, sirva graciosamente. Mas Kiku-san, você é uma cortesã de primeira classe. Improvise. O almirante bárbaro salvou a vida do Senhor Toranaga hoje, e senta-se à sombra dele. Nosso futuro depende de você! Sei que conseguirá lindamente. Ako!

- Sim, ama!

- Certifique-se de que os futons estejam perfeitos, que tudo esteja perfeito. Veja que as flores... não. Eu mesma cuidarei das flores! E o Cozinheiro, onde está o Cozinheiro? - Deu um tapinha no joelho de Kiku. - Use o quimono dourado, com o verde por baixo. Temos que impressionar muito a Senhora Toda esta noite. - Saiu correndo para começar a pôr a casa em ordem, todas as damas, criadas, aprendizes e empregados apressados limpando e ajudando, muito orgulhosos da boa fortuna que tocara a sua casa.

Quando tudo ficou arrumado, o horário das outras garotas reajustado, Gyoko foi para o seu quarto e deitou-se um instante para recuperar as forças. Ainda não havia falado a Kiku sobre a oferta do contrato.

Vou esperar e ver, pensou. Se conseguir fazer o acordo que pretendo, então talvez eu deixe a minha adorável Kiku partir. Mas nunca antes de saber com quem. Fico contente por ter tido a antevisão de deixar isso claro à Senhora Toda antes de vir embora. Por que está chorando, sua velha tola? Está bêbada de novo? Ponha os miolos a funcionar! De que lhe serve a infelicidade?

- Hana-chan!

- Sim, Mãe-sama? A criança veio correndo a ela. Seis anos recém-completados, grandes olhos castanhos, e um cabelo longo, encantador. Usava um quimono novo, de seda escarlate. Gyoko a comprara há dois dias, por intermédio de Mura e do vendedor de crianças local.

- O que acha do seu novo nome, criança?

- Oh, gosto muitíssimo, muitíssimo. Estou honrada, Mãe-sama!

O nome significava "Pequena Flor" - assim como Kiku significava "Crisântemo" -, e Gyoko o dera a ela no primeiro dia. - Sou sua mãe agora - dissera-lhe, gentilmente mas com firmeza, ao pagar o preço e tomar posse da menina, maravilhada de que tanta beleza potencial pudesse surgir de uma pescadora tão grosseira como a rotunda mulher Tamasaki. Após quatro dias de barganha intensa, pagara um koban pelos serviços da criança até a idade de vinte anos, o suficiente para alimentar a família Tamasaki durante dois anos. - Vá buscar um pouco de chá, depois o meu pente e algumas folhas de chá aromático para me tirar o saque do cérebro.

- Sim, Mãe-sama. - Saiu na disparada cegamente, sem fôlego, ávida por agradar, e colidiu com as saias de Kiku, leves como teia, na soleira da porta.

- Oh, oh, oh, descuuuuuulpe...

- Deve tomar cuidado, Hana-chan.

- Desculpe, desculpe, Irmã Mais Velha... - Hana-chan estava quase em lágrimas.

- Por que está triste, Pequena Flor? Pronto, pronto - disse Kiku, secando-lhe as lágrimas ternamente. - Nesta casa eliminamos a tristeza. Lembre-se, nós do Mundo do Salgueiro nunca precisamos de tristeza, criança, pois que bem faria isso? A tristeza nunca agrada. Nosso dever é agradar e ser alegres. Corra, criança, mas gentilmente, gentilmente, seja graciosa. - Kiku voltou-se e se mostrou à mulher mais velha, com um sorriso radiante. - Isto lhe agrada, Ama-san?

Blackthorne olhou para ela e murmurou: - Aleluia!

- Esta é Kiku-san - disse Mariko formalmente, exultante com a reação dele.

A garota entrou no aposento com um roçar de seda, ajoelhou-se, curvou-se e disse alguma coisa que Blackthorne não entendeu.

- Ela diz que o senhor é bem-vindo, que honra esta casa.

- Domo - disse ele.

- Do itashimashité. Saquê, Anjin-san? - disse Kiku.

- Hai, domo.

Blackthorne observou-lhe as mãos perfeitas buscar o frasco com precisão, certificar-se de que a temperatura estava correta, depois encher o cálice que ele ergueu para ela, conforme Mariko lhe mostrara, com mais graça do que ele imaginara possível.

- Promete que se comportará como um japonês, de verdade? - perguntara Mariko quando saíram da fortaleza, ela no palanquim, ele caminhando ao lado, descendo o caminho que coleava até a aldeia e a praça que ficava de frente para o mar. Carregadores de archotes avançavam à frente e atrás deles. Dez samurais os acompanhavam, como guarda de honra.

- Tentarei, sim - disse Blackthorne. - O que devo fazer?

- A primeira coisa que deve fazer é esquecer o que o senhor tem que fazer e simplesmente se lembrar de que esta noite é dedicada apenas ao seu prazer.

Este foi o melhor dia da minha vida, pensava ele. E esta noite... que tal esta noite? Estava excitado com o desafio e determinado a tentar ser japonês, apreciar tudo e não ficar embaraçado.

- Quanto ... quanto é que a noite ... bem ... vai custar? - perguntara.

- Isso é muito não-japonês, Anjin-san - censurou-o ela. - O que é que tem a ver? Fujiko-san concordou que o trato era satisfatório.

Ele vira Fujiko antes de sair. O médico a visitara e trocara as bandagens e lhe dera remédios de ervas. Estava orgulhosa das honras e do feudo e havia tagarelado muito, não demonstrando dor, contente por ele estar indo à casa de chá - claro, Mariko-san a consultara e tudo fora arranjado, como Mariko-san era boa! Que pena que ela tivesse aquelas queimaduras e não tivesse podido fazer os arranjos pessoalmente. Ele tocara a mão de Fujiko antes de sair, gostando dela. Ela lhe agradecera, desculpara-se de novo, e se despedira, esperando que ele tivesse uma noite maravilhosa.

Gyoko e as criadas esperavam cerimoniosamente ao portão da casa de chá para saudá-lo.

- Esta é Gyoko-san, a Mama-san aqui.

- Muito honrada, Anjin-san, muito honrada.

Mama-san? Quer dizer "mamãe"? "Mãe"? É o mesmo que em inglês, Mariko-san. "Mama"... "mommy"... "mother".

- Oh! É quase a mesma coisa, mas desculpe, "mama-san" só quer dizer "madrasta" ou "parente adotivo", Anjin-san. "Mãe" é "haha-san" ou "oba-san".

Num instante Gyoko se desculpou e se afastou às pressas. Blackthorne sorriu para Mariko. Ela estivera como uma criança, olhando tudo de olhos arregalados. - Oh, Anjin-san, sempre desejei ver o lado de dentro de um destes lugares. Os homens têm tanta sorte! Não é lindo? Não é maravilhoso, mesmo numa aldeia minúscula? Gyoko-san deve ter mandado mestres artesãos reformar tudo completamente! Olhe a qualidade das madeiras e... oh, é tão gentil de me permitir estar com o senhor. Nunca terei outra oportunidade... olhe as flores... que arranjo extraordinário ... e, oh, olhe o jardim ...

Blackthorne estava muito contente e muito pesaroso de haver uma criada na sala, e a porta shoji aberta, pois mesmo ali, numa casa de chá, seria impensável e letal para Mariko ficar sozinha com ele numa sala.

- A senhora é linda - disse em latim.

- O senhor também. - O rosto dela dançava. - Estou muito orgulhosa do senhor, almirante dos navios. E Fujiko também ... oh, estava tão orgulhosa que mal conseguia permanecer imóvel!

- As queimaduras parecem graves.

- Não tenha receio. Os médicos têm muita prática e ela é jovem, forte e confiante. Esta noite nada de preocupações ... apenas coisas mágicas.

- A senhora é mágica para mim.

Ela agitou o leque, serviu o vinho e não disse nada. Ele a observou, depois sorriram juntos. - Como há outros aqui e as línguas se movem, devemos continuar sendo cautelosos. Mas, oh, estou tão feliz pelo senhor.

- Qual era a outra razão? A senhora disse que havia outra razão para querer que eu viesse aqui esta noite.

- Ah, sim, a outra razão. - O mesmo perfume pairava densamente em torno dele. - É um antigo costume nosso, Anjinsan. Quando uma senhora que pertence a outra pessoa se interessa por outro homem, e deseja dar-lhe alguma coisa significativa que é proibido dar, então providencia para que outra lhe tome o lugar - um presente -, a cortesã mais perfeita que ela puder pagar.

- A senhora disse "quando uma senhora se interessa por alguém". Quer dizer, "ama"?

- Sim. Mas só esta noite.

- Por que esta noite, Mariko-san, por que não antes?

- Esta é uma noite mágica e os kamis caminham conosco.

Eu o desejo.

Então Kiku apareceu à soleira da porta. - Aleluia! - E ele recebeu boas-vindas e foi servido de saque.

- Como digo que a dama é particularmente bonita? Mariko lhe disse e ele repetiu as palavras. A garota riu alegremente, aceitou o cumprimento, e retribuiu.

- Kiku-san pergunta se o senhor gostaria de que ela cantasse ou dançasse para o senhor.

- Qual é a sua preferência? - perguntou ele em latim.

- Esta dama está aqui apenas para o seu prazer, samurai, não para o meu.

- E a senhora? Também está aqui para o meu prazer? - Sim, de certo modo... num sentido muito particular. - Então, por favor, peça-lhe que cante.

Kiku bateu palmas gentilmente e Ako trouxe o samisen. Era comprido, de formato semelhante ao de uma guitarra, e de três cordas. Ako colocou-o em posição no chão e deu o plectro de marfim a Kiku.

- Senhora Toda - disse Kiku -, por favor, diga ao nosso honrado hóspede que primeiro cantarei A canção da libélula.

- Kiku-san, eu ficaria honrada se esta noite, aqui, você me chamasse de Mariko-san.

- É muito gentil comigo, senhora. Por favor, desculpe-me.

Possivelmente eu não conseguiria ser tão descortês.

- Por favor.

- Farei isso, se lhe apraz, embora. .. - Seu sorriso foi adorável. - Obrigada, Mariko-sarna.

Feriu o acorde. Desde o momento em que os hóspedes atravessaram o portão, entrando no mundo dela, todos os seus sentidos tinham-se aguçado. Observara-os secretamente enquanto estavam com Gyoko-san e enquanto estiveram sozinhos, procurando qualquer indício de como agradá-lo ou como impressionar a Senhora Toda.

Não estava preparada para o que logo se tornou óbvio: o Anjin-san desejava a Senhora Toda, embora o dissimulasse tão bem quanto qualquer pessoa civilizada. Isso, em si, não era de surpreender, pois a Senhora Toda era muito bonita, completa e, o mais importante, era a única que podia conversar com ele. O que a assombrou foi que teve certeza de que a Senhora Toda o desejava igualmente, se não mais.

O samurai bárbaro e a senhora samurai, filha patrícia do assassino Akechi Jinsai, esposa do Senhor Buntaro! Iüih! Pobre homem, pobre mulher. Muito triste. Com certeza isso vai terminar em tragédia.

Kiku sentiu-se prestes a irromper em lágrimas ao pensar na tristeza da vida, na injustiça. Oh, como desejaria ser samurai e não camponesa, de modo a poder até me tornar consorte de Omi-sama, não apenas um brinquedo temporário. De bom grado daria a minha esperança de renascer em troca disso.

Afaste a tristeza. Dê prazer, é esse o seu dever.

Seus dedos feriram um segundo acorde, um acorde cheio de melancolia. Então notou que embora Mariko estivesse encantada com a sua música, o Anjin-san não estava.

Por quê? Kiku sabia que não era por causa do seu modo de tocar, pois tinha certeza de que tocava quase perfeitamente. Talento como o seu era concedido a poucas.

Um terceiro acorde, mais bonito, experimentalmente. Não há dúvida, disse-se ela impaciente, isto não lhe agrada. Deixou que o acorde se extinguisse e começou a cantar sem acompanhamento, sua voz elevando-se com as repentinas mudanças de ritmo que se levava anos para aprender. Novamente Mariko ficou fascinada, ele não, então imediatamente Kiku parou. - Esta noite não é para música nem canto - anunciou. - Esta noite é para felicidade. Mariko-san, como digo "por favor" na língua dele?

- "Por favor".

- Por favor, Anjin-san, esta noite devemos apenas rir, neh? - Domo, Kiku-san. Hai.

- É difícil entreter sem palavras, mas não impossível, neh? Ah, já sei! - Pôs-se em pé e começou a fazer pantomimas cômicas - daimio, kaga, pescador, falcoeiro, um samurai pomposo, até um velho fazendeiro coletando um balde cheio -, e as fez tão bem e tão humoristicamente que logo Mariko e Blackthorne estavam rindo e. aplaudindo. Então ela ergueu a mão. Brejeiramente começou a mostrar através de mímica um homem urinando, segurando-se ou achando falta de alguma coisa, agarrando, procurando o insignificante ou maravilhado com o inacreditável, em todos os estágios de sua vida, começando primeiro como uma criança molhando a cama e berrando, depois um rapaz apressado, outro tendo que se deter, outro com tamanho, outro com pequenez ao ponto de 'onde foi parar", e finalmente um homem muito velho gemendo de êxtase simplesmente por ser capaz de urinar.

Kiku curvou-se ao aplauso e tomou um gole de chá, secando com tapinhas a leve perspiração da testa. Notou que ele estava contraindo os ombros e as costas. - Oh, por favor, senhor! - disse em português, e se ajoelhou atrás dele e começou a massagear-lhe a nuca.

Seus dedos experientes imediatamente encontraram os pontos de prazer. - Oh, Deus, isso é... hai... bem aí!

Ela fez conforme ele pedia. - Seu pescoço logo estará melhor. Está sentado há muito tempo, Anjin-san!

- Isso é muito bom, Kiku-san. Faz Suwo quase mau!

- Ah, obrigada, Mariko-san, os ombros do Anjin-san são tão vastos, e a senhora me ajudaria? Cuide do ombro esquerdo, enquanto eu me ocupo do direito, sim? Desculpe, mas as minhas mãos não são suficientemente fortes.

Mariko permitiu-se ser persuadida e fez o que ela pedira. Kiku ocultou o próprio sorriso ao senti-lo retesar-se sob os dedos de Mariko, e ficou muito satisfeita com as suas improvisações. Agora o cliente estava sendo satisfeito através do seu talento e conhecimento, e manobrado como devia ser.

- Está melhor, Anjin-san?

- Bem, muito bem, obrigado.

- Oh, não há de quê. O prazer é meu. Mas a Senhora Toda é muito mais hábil do que eu. - Kiku podia sentir a atração entre eles, embora tentassem esconde-la. -- Agora um pouco de comida, talvez. - Veio imediatamente.

- Para o senhor, Anjin-san - disse orgulhosamente. O prato continha um pequeno faisão, cortado em pedaços minúsculos assados sobre brasas, com um molho doce de soja. Ela serviu.

- Está delicioso, delicioso - disse ele.., E estava.

- Mariko-san?

- Obrigada. - Mariko pegou um pedaço simbólico, que não comeu.

Kiku segurou um fragmento nos pauzinhos e mastigou-o com prazer.

- Está bom, neh?

- Não, Kiku-san, está ótimo! Ótimo!

- Por favor, Anjin-san, coma mais. - Ela pegou um segundo bocado. - Há muito.

- Obrigado. Por favor. Como foi ... como isto? - Apontou para o espesso molho marrom.

Mariko traduziu. - Kiku diz que é açúcar com soja e um pouco de gengibre. Perguntou se o senhor tem açúcar e soja no seu país.

- Açúcar de beterraba sim, soja, não, Kiku-san.

- Oh! Como pode alguém viver sem soja? - Kiku tornouse solene. - Por favor, diga ao Anjin-san que temos açúcar aqui há mil anos. O monge budista Ganjin trouxe-o da China. Todas as nossas melhores coisas vieram da China, Anjin-san. O chá chegou a nós há cerca de quinhentos anos. O monge budista Eisai trouxe sementes e plantou-as na província de Chikuzen, onde nasci. Também trouxe o zen-budismo.

Mariko traduziu com igual formalidade, então Kiku soltou uma gargalhada. - Oh, desculpe, Mariko-sarna, mas os dois pareciam tão graves. Eu só estava fingindo solenidade em relação ao chá... como se tivesse importância! Era só para diverti-los.

Observaram Blackthorne terminar o faisão. - Bom - disse ele. - Muito bom. Por favor, agradeça a Gyoko-san.

- Ela ficará honrada. - Kiku serviu mais saquê para os dois. Depois, sabendo que era tempo, disse inocentemente: - Posso perguntar o que aconteceu hoje durante o terremoto? Ouvi dizer que o Anjin-san salvou a vida do Senhor Toranaga. Consideraria uma honra saber em primeira mão.

Acomodou-se pacientemente, deixando Blackthorne e Mariko apreciar o relato, juntando um "oh" ou "que aconteceu depois?", ou servindo saquê, nunca interrompendo, sendo a ouvinte perfeita.

Quando terminaram, Kiku maravilhou-se com a bravura deles e com a boa fortuna do Senhor Toranaga. Conversaram algum tempo, depois Blackthorne levantou-se e a criada recebeu ordem de mostrar-lhe o caminho.

Mariko rompeu o silêncio. - Você nunca tinha comido carne antes, tinha, Kiku-san?

- É meu dever fazer tudo o que posso para agradá-lo, só por algum tempo, neh?

- Eu não sabia como uma dama podia ser perfeita. Compreendo agora por que tem sempre que haver um Mundo Flutuante, um Mundo do Salgueiro, e como os homens têm sorte, como sou inadequada.

- Oh, não tive a intenção, Mariko-sama, nunca. E não é a nossa intenção. Estamos aqui apenas para agradar, por um momento fugaz.

- Sim. Eu só quis dizer que a admirava muito. Gostaria que fosse minha irmã.

Kiku curvou-se. - Eu não seria digna dessa honra. - Havia cordialidade entre elas. - Este é um lugar muito secreto e todo o mundo merece confiança, não há olhos à espreita. A sala de prazer no jardim é muito escura, se alguém a desejar escura. E a escuridão guarda todos os segredos.

- O único modo de guardar um segredo é estar sozinha e sussurrá-lo dentro de um poço vazio ao meio-dia, neh? - disse Mariko despreocupadamente, precisando de tempo para se decidir.

- Entre irmãs não há necessidade de poços. Dispensarei a minha criança até o amanhecer. Nossa sala de prazer é um lugar muito privado.

- Lá você deve ficar sozinha com ele.

- Sempre posso ficar sozinha, sempre.

- É muito gentil comigo, Kiku-chan, muito atenciosa.

- É uma noite mágica, neh? E muito especial.

- Noites mágicas terminam cedo demais, Irmãzinha. Noites mágicas são para as crianças, neh? Não sou uma criança.

- Quem sabe o que acontece numa noite mágica? A escuridão encerra tudo.

Mariko meneou a cabeça, triste, e tocou-a ternamente. - Sim. Mas para ele, se a noite contivesse você, seria tudo.

Kiku fez uma pausa. Depois disse.         Sou um presente para o Anjin-san? Ele não pediu por mim pessoalmente?

- Se a tivesse visto, como poderia não pedir? Sinceramente, é uma honra para ele que você o tenha recebido. Compreendo isso agora.

- Mas ele me viu uma vez, Mariko-san. Eu estava com Omi-san quando ele passou a caminho do navio para ir para Osaka, na primeira vez.

- Oh, mas o Anjin-san disse que viu Midori-san com Omi-san. Era você? Ao lado do palanquim?

- Sim, na praça. Oh, sim, era eu, Mariko-san, não a senhora esposa de Omi-sama. Ele me disse "konnichi wa'. Mas, claro, ele não se lembraria. Como poderia? Foi durante a sua vida anterior, neh?

- Oh, ele se lembra dela, a bela garota com a sombrinha verde. Disse que era a garota mais bela que já vira. Falou-me dela muitas vezes. - Mariko estudou-a mais de perto. - Sim, Kiku-san, você poderia facilmente ser confundida com ela num dia como aquele, sob a sombrinha.

Kiku serviu saquê e Mariko ficou fascinada pela sua elegância inconsciente. - Minha sombrinha era verde-mar - disse Kiku, muito satisfeita de que ele se lembrasse.

- Como era o Anjin-san então? Muito diferente? A Noite dos Gritos deve ter sido terrível.

- Sim, sim, foi. E ele era mais velho então, a pele do rosto repuxada... Mas ficamos sérias demais, Irmã Mais Velha. Ah, não sabe como me sinto honrada em ser autorizada a chamála assim. Esta é uma noite de prazer apenas. Nada de seriedade mais, neh?

- Sim. Concordo. Por favor, perdoe-me.

- Agora, passando a assuntos mais práticos, a senhora me daria alguns conselhos?

- Pois não - disse Mariko, igualmente amistosa.

- Quanto a "travesseiro", as pessoas do país dele preferem algum instrumento ou posição de que a senhora esteja a par? Desculpe por perguntar, mas talvez a senhora pudesse me orientar.

Mariko precisou de todo o seu treinamento para permanecer impassível. - Não, não que eu saiba. O Anjin-san é muito suscetível a qualquer coisa que tenha a ver com "travesseiro".

- Ele poderia ser interrogado de algum modo indireto?

- Não creio que você possa fazer perguntas a um estrangeiro assim. Com certeza não ao Anjin-san. E, sinto muito, não sei quais são os instrumentos, exceto, claro, o harigata.

- Ah! - Novamente a intuição de Kiku a guiou e ela perguntou com naturalidade. - A senhora gostaria de vê-]os? Eu poderia mostrá-los, talvez com ele lá, então não seria preciso perguntar-lhe. Poderíamos ver pelas reações dele.

Mariko hesitou, sua curiosidade turvando-lhe a capacidade de julgamento. - Se pudesse ser feito com humor...

Ouviram Blackthorne aproximando-se. Kiku deu-lhe boasvindas e serviu vinho. Mariko tomou o seu, contente por não estar mais sozinha, embaraçadamente certa de que Kiku podia ler-lhe os pensamentos.

Tagarelaram, jogaram alguns jogos e, quando Kiku julgou que chegara o momento certo, perguntou-lhes se não gostariam de ver o jardim e as salas de prazer.

Saíram para a noite. O jardim faiscava à luz dos archotes onde as gotas de chuva ainda escorriam. O caminho coleava ao lado de um lago minúsculo e uma gorgolejante queda-d'água.

Na extremidade do caminho ficava a pequena casa isolada no centro do bosque de bambu. Erguia-se sobre solo tratado e tinha quatro degraus até a varanda que a rodeava. Tudo na construção de dois cômodos era de bom gosto e caro. As melhores madeiras, a melhor carpintaria, os melhores tatamis, as melhores almofadas de seda, os mais elegantes reposteiros no takonoma.

- É encantador, Kiku-san - disse Mariko.

- A casa de chá em Mishima é muito mais bonita, Marikosan. Por favor, ponha-se à vontade, Anjin-san! Por favor, isto lhe agrada, Anjin-san?

- Sim, muitíssimo.

Kiku viu que ele ainda estava inebriado pela noite e pelo saquê, mas totalmente consciente de Mariko. Estava muito tentada a se levantar, entrar para a sala onde os futons estavam desdobrados, sair para a varanda de novo e ir embora. Mas se o fizesse sabia que estaria violando a lei. Mais que isso, sentia que tal atitude seria irresponsável, pois sabia que no íntimo Mariko estava pronta e já quase ultrapassara qualquer preocupação.

Não, pensou, não devo empurrá-la para uma indiscrição trágica, por mais valiosa que pudesse ser para o meu futuro. Ofereci, mas Mariko-san se impôs recusar. Prudentemente. Serão amantes? Não sei. Isso é o karma deles.

Ela se inclinou para a frente e riu, com ar de cúmplice. - Ouça, Irmã Mais Velha, por favor, diga ao Anjin-san que há alguns instrumentos de "travesseiro" aqui. Ele os tem no seu país?

- Diz que não, Kiku-san. Lamenta mas nunca ouviu falar de nenhum.

- Oh! Ele não se divertiria em vê-los? Estão na sala ao lado, posso ir buscá-los. São realmente muito excitantes.

- Gostaria de vê-los, Anjin-san? Ela diz que são realmente muito engraçados. - Mariko mudou deliberadamente a palavra.

- Por que não? --- disse Blackthorne, a garganta apertada, todo o seu ser carregado com a consciência do perfume e feminilidade delas. - Vocês... vocês usam instrumentos para "travesseirar"? - perguntou.

- Kiku-san diz que às vezes sim. Diz, e isso é verdade, que é nosso costume sempre tentar prolongar o momento das Nuvens e Chuva, pois acreditamos que por esse breve instante nós, mortais, tornamo-nos um com os deuses. - Mariko observava-o. - Por isso é muito importante faze-lo durar tanto quanto possível, neh? Quase um dever, neh?

- Sim.

- Sim. Ela diz que tornar-se um com os deuses é muito essencial. É uma boa crença e bem possível, não acha? A sensação de Aguaceiro é tão extraterrena e divina. Não é? Portanto qualquer meio de se igualar aos deuses tanto tempo quanto possível é nosso dever, neh?

- Sim. Oh, sim.

- Aceitaria um pouco de saque? Anjin-san? - Obrigado.

Ela se abanou. - Isso sobre Aguaceiro e Nuvens e Chuva ou Fogo e Torrente, como chamamos às vezes, é muito japonês, Anjin-san. É muito importante ser japonês em coisas de "travesseiro", neh?

Para seu alívio, ele sorriu e se curvou para ela como um palaciano. - Sim. Muito. Sou japonês, Mariko-san. Honto!

Kiku voltou com a caixa revestida de seda. Abriu-a e tirou um substancial pênis em tamanho natural, feito de marfim, e outro feito de material mais suave, elástico, que Blackthorne nunca vira antes. Negligentemente, colocou-os de lado.

- Isso, naturalmente, são harigatas comuns, Anjin-san - disse Mariko desinteressada, de olhos grudados nos outros objetos.

- Isso é um fato? - disse Blackthorne, sem saber o que dizer. - Mãe de Deus!

- Mas é só um harigata comum, Anjin-san. Com certeza as suas mulheres os têm!

- Certamente que não! Não, não têm - exclamou ele, tentando se lembrar do humor.

Mariko não podia acreditar. Explicou ã Kiku, que ficou igualmente surpresa. Kiku falou longamente, Mariko concordando.

- Kiku-san diz que isso é muito estranho. Devo concordar, Anjin-san. Aqui quase todas as garotas usam um harigata para se aliviar, sem pensar duas vezes. De que outro modo uma garota pode permanecer saudável quando tem restrições onde o homem não tem? Tem certeza, Anjin-san? Não está arreliando?

- Não ... eu, eu, tenho certeza de que as nossas mulheres não os têm. Isso seria ... Jesus, isso ... bem, não, nós ... elas ... não os têm.

- Sem eles a vida deve ser muito difícil. Temos um ditado que diz que um harigata é como um homem, mas melhor, porque é exatamente como a melhor parte dele, sem as partes piores. Neh? E também é melhor porque nem todos os homens são ... têm uma suficiência, como os harigatas têm. Além disso, são devotados, Anjin-san, e nunca se cansam da gente, como um homem se cansaria. E podem ser tão ásperos ou macios... Anjin-san, o senhor prometeu, lembra-se? Com humor!

- Tem razão! - Blackthorne sorriu. - Por Deus, a senhora tem razão. Por favor, desculpe-me. - Pegou o harigata e o estudou de perto, assobiando desafinado. Depois levantou-o. -= Estava dizendo, Professora-san? Pode ser áspero?

- Sim - disse ela alegremente. - Pode ser tão áspero ou liso como se desejar, e os harigatas muito particularmente têm muito mais resistência do que qualquer homem e nunca se esgotam!

- Oh, esse é um detalhe e tanto!

- Sim. Não se esqueça de que nem toda mulher tem a sorte de pertencer a um homem viril. Sem um objeto destes para ajudar a libertar paixões comuns e necessidades normais, uma mulher comum logo se tornaria envenenada de corpo, e isso certamente muito em breve lhe destruiria a harmonia, ferindo a ela e aos que a rodeassem. As mulheres não têm a liberdade que os homens têm, em maior ou menor grau, e com razão, neh? O mundo pertence aos homens, e com razão, neh?

- Sim. - Ele sorriu. - E não.

- Lastimo pelas suas mulheres, sinto muito. Devem ser iguais a nós. Quando voltar, o senhor deve instruí-las, Anjin-san. Ah, sim, diga à sua rainha, ela compreenderá. Somos muito sensatas em assuntos de "travesseiro".

- Mencionarei isso a Sua Majestade. - Blackthorne pôs o harigata de lado com uma relutância fingida. - E depois?

Kiku retirou da caixa quatro contas redondas e grandes de jade branco, presas a intervalos num forte fio de seda. Mariko ouviu atentamente a explicação de Kiku, os olhos maiores do que nunca, o leque esvoaçando, e olhou para as contas maravilhada, quando Kiku concluiu. - Ah so desu! Bem, Anjin-san - começou com firmeza -, isto é chamado konomi-shinju. Pérolas de Prazer, e tanto o homem quanto a mulher podem usá-las. Saque, Anjin-san?

- Obrigado.

- Sim. Tanto a dama quanto o homem podem usá-las. As contas são cuidadosamente colocadas na passagem de trás e depois, no momento das Nuvens e Chuva, .puxadas lentamente, uma a uma.

- O quê?

- Sim. - Mariko pousou as contas na almofada à frente dele. - A Senhora Kiku diz que a sintonia é muito importante e que sempre. . . não sei como o senhor diria, ah, sim, sempre se deve usar uma pomada oleosa... por conforto, Anjin-san. - Ela levantou os olhos para ele e acrescentou: - Ela também diz que as Pérolas de Prazer podem ser encontradas em muitos. tamanhos e que, se usadas corretamente, podem causar um resultado realmente muito considerável.

Ele riu ruidosamente e exclamou em inglês: - Aposto um barril de dobrões contra uma moeda de bosta de porco que se pode acreditar nisso!

- Desculpe, não compreendi, Anjin-san.

Quando conseguiu falar, ele disse em português: - Aposto uma montanha de ouro contra uma folha de grama, Mariko-san, que o resultado deve ser realmente muito considerável! - Apanhou as contas e as examinou, assobiando sem notar. - Pérolas de Prazer, hein? - Pouco depois, pousou-as no chão. - O que mais?

Kiku estava satisfeita de sua experiência estar tendo êxito. E mostrou-lhe um himitsu-kawa, a Pele Secreta. - É um anel de prazer, Anjin-san, que o homem usa para se manter ereto quando está exaurido. Com isto Kiku-san diz que o homem pode gratificar a mulher após ter passado o seu apogeu, ou o seu desejo ter esmorecido. - Mariko observou-o. - Neh?

- Absolutamente. - Blackthorne sorriu. - O Senhor me proteja tanto de uma coisa quanto da outra, e de não ser gratificante. Por favor, peça a Kiku-san para me comprar três... só para o caso de serem necessários!

Depois mostraram-lhe os hiro-gumbi, o Equipamento do Cansado, talos secos e finos de uma planta que, quando encharcados e envoltos em torno da Parte Sem Par, faziam-na inchar e parecer forte. Depois havia todo tipo de estimulantes - para excitar ou aumentar a excitação -, e todo tipo de pomada - para umedecer, para avolumar, para reforçar.

- Nunca para enfraquecer? - perguntou ele, para maior hilaridade.

- Oh, não, Anjin-san. Isso seria despropositado!

Depois Kiku lhes mostrou outros anéis para o homem, de marfim, elástico ou seda, com nódulos, cerdas, fitas, penduricalhos e apêndices de todo tipo, feitos de marfim, crina de cavalo, grãos ou até de sinos minúsculos.

- Kiku-san diz que quase qualquer um destes objetos deixará voluptuosa a mais acanhada das damas.

Oh, Deus, como eu gostaria de ver você voluptuosa, pensou ele. - Mas isto é só para homens, neh? - perguntou.

- Quanto mais excitada esteja a dama, maior é o gozo do homem, neh? - disse Mariko. - Claro, dar prazer à mulher é igualmente um dever do homem, não é, e com um destes objetos, se ele infelizmente for pequeno, fraco, ou velho ou cansado, ainda poderá satisfazê-la com honra.

- A senhora os usou, Mariko-san?

- Não, Anjin-san, nunca os tinha visto antes. Essas coisas... as esposas não são para o prazer, mas para engravidar e para tomar conta da casa e do lar.

- As esposas não esperam ser satisfeitas?

- Não. Isso não seria usual. Isso é para as damas do Mundo do Salgueiro. - Mariko abanou-se e explicou a Kiku o que fora dito. - Ela diz que com certeza acontece o mesmo no seu mundo, não? Que é dever do homem satisfazer a mulher, assim como é dever dela satisfazê-lo.

- Por favor, diga-lhe que sinto muito mas não acontece mesmo, apenas exatamente o contrário.

- Ela diz que isso é muito mau. Saqué?

- Por favor, diga-lhe que somos ensinados a nos envergonhar do nosso corpo, de "travesseiro", da nudez e... e todo tipo de estupidez. Foi só depois de ter chegado aqui que entendi isso. Agora que estou um pouco civilizado, sei melhor.

Mariko traduziu. Ele esvaziou seu cálice. Foi enchido imediatamente por Kiku, que se inclinou para a frente e segurou a longa manga com a mão esquerda, de modo que não tocasse a mesinha laqueada enquanto ela servia com a direita.

- Domo.

- Do itashimashité, Anjin-san.

- Kiku-san diz que devemos nos sentir honrados de que senhor diga coisas assim. Eu concordo, Anjin-san. Fiquei muito orgulhosa do senhor hoje. Mas com certeza não é tão mau quanto senhor diz.

- É pior. É difícil compreender, quanto mais explicar, se vocês nunca estiveram lá nem foram criadas lá. Veja... na verdade. . . - Blackthorne viu-as a observá-lo, esperando pacientemente, tão atraentes e limpas, o aposento tão austero, despojado, tranqüilo. Imediatamente sua mente começou a contrastá-lo com cálido e amistoso mau cheiro do seu lar inglês, palha sobre o chão de terra, fumaça da lareira aberta de tijolos erguendo-se para o buraco no telhado - em toda a sua aldeia só havia três das novas lareiras com chaminés, apenas para os muito abastados. Dois pequenos dormitórios e depois a grande e desarrumada sala do chalé, para comer, viver, cozinhar e conversar. Entrava-se de botas no chalé, no verão ou no inverno, a lama despercebida, a bosta despercebida, e sentava-se numa cadeira ou banco, a mesa de carvalho atravancada como a sala, três ou quatro cães e as duas crianças - seu filho e a menina do falecido irmão, Arthur - subindo e caindo e brincando numa balbúrdia só, Felicity cozinhando, seu vestido comprido arrastando pelas palhas e pela sujeira, a empregada fungando e atrapalhando o caminho e Mary, a viúva de Arthur, tossindo no cômodo contíguo que ele construíra para ela, às portas da morte como sempre, mas não morrendo nunca.

Felicity. Querida Felicity. Um banho por mês, talvez, e no verão, muito em particular, na banheira de cobre, mas lavando o rosto, as mãos e os pés todos os dias, sempre escondida até o pescoço e os punhos, envolta em camadas de lãs pesadas o ano todo, que não eram lavadas durante meses ou anos, cheirando forte como todo mundo, infestada de piolhos como todo mundo, coçando-se como todo mundo.

E todas as outras crenças e superstições estúpidas, que a limpeza podia matar, janelas abertas podiam matar, água podia matar e estimular a gripe ou trazer a peste, que piolhos, pulgas, moscas, sujeira e doença eram punições de Deus para os pecados na terra.

Pulgas, moscas e palha trocada a cada primavera, mas todo dia na igreja e duas vezes aos domingos, para ouvir a Palavra martelada nos ouvidos.

Nascida em pecado, vivendo em vergonha, preocupada com demônio, condenada ao inferno, orando pela salvação e pelo perdão, Felicity tão devota e cheia de temor pelo Senhor e de terror pelo Diabo, desesperada pelo paraíso. Depois indo para casa para comer. Um pernil no espeto, e caso um pedaço caísse no chão era apanhado, espanado e comido, isso se os cães não agarrassem primeiro, mas os ossos eram atirados a eles de qualquer modo. Restos jogados ao chão para serem varridos, talvez, e talvez atirados na rua. Dormindo a maior parte das vezes com as roupas usadas de dia e coçando-se como um cão satisfeito, sempre se coçando. Velha tão jovem, e feia tão jovem, morrendo tão jovem. Felicity. Agora com vinte e nove anos, grisalha, com poucos dentes, velha, murcha.

- Antes do tempo, pobre mulher. Meu Deus, que desnecessário! - gritou ele, enraivecido. - Que maldito e fedorento desperdício!

- Nan desu ka, Anjin-san? - disseram ambas as mulheres no mesmo fôlego, seu contentamento esvanecido.

- Desculpem... foi só que... vocês são todos tão limpos e nós somos imundos, e é um desperdício tão grande, milhões incontáveis, eu também, toda a minha vida... e só porque não somos mais bem informados! Jesus Cristo, que desperdício! São os padres... são os educados e os educadores, os padres são donos de todas as escolas, responsáveis por todo o ensino, sempre em nome de Deus, imundície em nome de Deus... Essa é a verdade!

- Oh, sim, naturalmente - disse Mariko apaziguadora, tocada pelo sofrimento dele. - Por favor, não se preocupe com isso agora, Anjin-san. Deixe para amanhã...

Kiku ostentou um sorriso, mas estava furiosa consigo mesma. Você devia ter sido mais cuidadosa, disse a si mesma. Estúpida, estúpida, estúpida! Mariko-san preveniu-a! Agora você permitiu que a noite se arruinasse, e a mágica se foi, foi, foi!

De fato a pesada, quase tangível sexualidade que os tocara a todos desaparecera. Talvez esteja igualmente bem, pensou ela. Pelo menos Mariko e o Anjin-san estão protegidos por mais uma noite.

Pobre homem, pobre senhora. Tão triste. Ela os observou conversando, depois sentiu uma mudança do tom entre eles.

- Agora devo deixá-los - disse Mariko em latim.

- Vamos partir juntos.

- Rogo-lhe que fique. Pela sua honra e a dela. E a minha, Anjin-san.

- Não quero esse seu presente. Quero a senhora.

- Eu sou sua, acredite, Anjin-san. Por favor, fique, imploro-lhe, e saiba que esta noite eu sou sua.

Ele não insistiu para que ela ficasse.

Depois que ela se foi, ele se deitou, passou o braço por sob a cabeça e contemplou a noite pela janela. A chuva respingava nas telhas, o vento soprava acariciante do mar.

Kiku estava ajoelhada imóvel diante dele. Tinha as pernas rígidas. Também teria gostado de se deitar, mas não desejava alterar-lhe o ânimo com o menor movimento. Você não está cansada. Suas pernas não estão doendo, disse-se ela. Ouça a chuva e pense em coisas agradáveis. Pense em Omi-san e na casa de chá em Mishima, e que você está viva, que o terremoto de ontem foi apenas mais um terremoto. Pense em Toranaga-sama e o preço inicial inacreditavelmente extravagante que Gyoko-san ousou pedir pelo seu contrato. O adivinho estava certo, é sua boa fortuna faze-la rica para além dos sonhos. E se essa parte é verdade, porque não o resto todo? Que um dia você se casará com um samurai a quem honrará, e terá um filho dele, que você viverá e morrerá em idade avançada, fazendo parte da família dele, rica e honrada, e que, milagre dos milagres, seu filho crescerá em condição igual - samurai - à dos filhos dele.

Kiku começou a se animar com o seu futuro maravilhoso, inacreditável. Depois de algum tempo, Blackthorne espreguiçouse voluptuosamente, com um agradável cansaço. Viu-a e sorriu.

- Nan desu ka, Anjin-san?

Ele meneou a cabeça gentilmente, levantou-se e abriu a shoji para o aposento contíguo. Não havia nenhuma criada ajoelhada junto aos futons sob o mosquiteiro. Ele e Kiku estavam sozinhos na magnífica casinha. Dirigiu-se para o quarto de dormir e começou a tirar o quimono. Ela se apressou a ajudá-lo. Ele despiu-se completamente, depois vestiu o quimono de dormir, de seda leve, que ela lhe segurou. Kiku abriu o mosquiteiro e ele se deitou.

Depois Kiku também se trocou. Ele a viu tirar o obi, o primeiro quimono, o segundo, de um verde mais claro e barra escarlate, e finalmente a combinação. Vestiu o quimono de dormir, cor de pêssego, depois removeu a elaborada peruca formal e soltou o cabelo. Era preto-azulado, belíssimo e muito comprido.

Ajoelhou-se do lado de fora do mosquiteiro. - Dozo, Anjin-san?

- Domo - disse ele.

- Domo arigato goziemashita - sussurrou ela.

Ela deslizou por sob o mosquiteiro e deitou-se ao lado dele. As velas e lâmpadas de óleo ardiam brilhantemente. Ele ficou contente de que houvesse luz, porque ela era muito bonita.

Sua necessidade desesperadora desaparecera, embora a dor continuasse. Não a desejo, Kiku-san, pensou. Se você fosse Mariko, seria a mesma coisa. Ainda que você fosse a mulher mais bela que eu já tivesse visto, mais até do que Midori-san, que achei mais bela do que uma deusa. Não a desejo. Mais tarde, talvez, mas agora não, sinto muito.

A mão dela esticou-se e tocou-o. - Dozo?

- Iyé - disse ele gentilmente, meneando a cabeça. Segurou-lhe a mão, depois deslizou um braço por sob os seus ombros. Obedientemente ela se aninhou contra ele, compreendendo de imediato. Seu perfume combinava com a fragrância dos lençóis e futons. Tão limpa, pensou ele, tudo tão inacreditavelmente limpo.

  • que foi que Rodrigues disse? "O Japão é o paraíso na terra, Inglês, se você souber para onde olhar", ou "Isto é o paraíso, Inglês". Não me lembro. Só sei que não é lá, do outro lado do mar, onde pensei que fosse. Não é lá.

Paraíso na terra é aqui.

 

O mensageiro desceu a galope a estrada na escuridão, em direção à aldeia adormecida. O céu estava matizado pelo amanhecer e os barcos de pesca noturna que estiveram lançando as redes perto dos bancos de areia vinham regressando. O mensageiro cavalgara sem descanso desde Mishima, através dos desfiladeiros e estradas ruins, requisitando cavalos descansados em todos os lugares onde pôde.

O cavalo martelou pelas ruas da aldeia - observado, agora, por olhos escondidos -, através da praça e subindo o caminho para a fortaleza. Seu estandarte ostentava o emblema de Toranaga e ele conhecia a senha atual. Não obstante, foi detido e identificado quatro vezes antes de ser autorizado a entrar e ter uma audiência com o oficial do turno.

- Despachos urgentes de Mishima, Naga-san, mandados pelo Senhor Hiro-matsu!

Naga pegou o rolo e correu para dentro. Ante a shoji pesadamente guardada, parou. - Pai?

- Sim?

Naga correu a porta e esperou. A espada de Toranaga deslizou de volta para a bainha. Um dos guardas trouxe uma lâmpada de óleo.

Toranaga sentou-se sob o mosquiteiro e rompeu o lacre. Duas semanas antes ordenara que Hiro-matsu, com um regimento de elite, se dirigisse secretamente para Mishima, a cidade-castelo na estrada Tokaido que guardava a entrada para o caminho que levava através das montanhas até as cidades de Atami e Odawara, na costa leste de Izu. Atami era o portão de ingresso para Odawara, ao norte. Odawara era a chave da defesa do Kwanto inteiro.

Hiro-matsu escrevia:

"Senhor, seu meio irmão, Zataki, senhor de Shinano, chegou aqui hoje, vindo de Osaka, pedindo um salvo-conduto para vê-lo em Anjiro. Viaja formalmente com cem samurais e carregadores, sob o emblema do `novo' conselho de regentes. Lamento informar-lhe que as notícias da Senhora Kiritsubo são corretas. Zataki tornou-se traidor e está abertamente alardeando a sua aliança com Ishido. O que ela não sabia é que Zataki agora é regente no lugar do Senhor Sugiyama. Ele me mostrou sua designação oficial, corretamente assinada por Ishido, Kiyama, Onoshi e Ito. Pedir-lhe que a mostrasse era tudo o que eu podia fazer para conter meus homens diante da arrogância dele e obedecer às suas ordens de deixar passar qualquer mensageiro de Ishido. Quis matar esse comedor de bosta pessoalmente. Viajando com ele vai o padre bárbaro, Tsukku-san, que chegou por mar ao porto de Numazu, proveniente de Nagasaki. Ele pediu permissão para visitá-lo, então despachei-o com o mesmo grupo. Mandei duzentos dos meus homens para escoltá-los. Chegarão a Anjiro dentro de dois dias. Quando o senhor retorna a Yedo? Os espiões dizem que Jikkyu está se mobilizando secretamente e chegam notícias de Yedo de que os clãs do nordeste estão prontos para atacar com Ishido, agora que Shinano de Zataki está contra o senhor. Rogo-lhe que deixe Anjiro imediatamente - retire-se por mar. Deixe Zataki segui-lo até Yedo, onde podemos lidar com ele adequadamente".

 

Toranaga socou o punho contra o chão.

- Naga-san. Traga Buntaro-san, Yabu-san e Omi-san imediatamente.

Chegaram todos rapidamente. Toranaga leu-lhes a mensagem. - É melhor cancelarmos totalmente o treinamento. Mandem o Regimento de Mosquetes, todos os homens, para as montanhas. Não queremos nenhuma falha de segurança agora.

- Por favor, desculpe-me, senhor - disse Omi -, mas poderia considerar a interceptação do grupo sobre as montanhas. Digamos em Yokosé. Convide o Senhor Zataki - Omi escolheu o título cuidadosamente - para experimentar as águas de uma das nascentes das redondezas, mas faça a reunião em Yokosé. Então, depois de ele ter entregado a mensagem, ele e todos os seus homens podem ser escoltados até a fronteira, ou destruidos, como o senhor desejar.

- Não conheço Yokosé.

- É linda - disse Yabu com ares de importância -, quase no centro de Izu, senhor, num vale entre as montanhas. Fica ao lado do rio Kano. O Kano corre de norte, conseqüentemente através de Mishima e Numato, até o mar, neh? Yokosé fica numa encruzilhada de estradas que levam de norte a sul e de leste a oeste. Sim. Yokosé seria um bom lugar para encontrá-lo, senhor. A nascente Shuzenji fica perto - muito quente, muito boa -, urna das nossas melhores. O senhor deve visitá-la, senhor. Acho que Omi-san fez uma boa sugestão.

- Poderíamos defendê-la com facilidade?

- Sim, senhor - disse Omi rapidamente. - Há uma ponte. O terreno cai abruptamente das montanhas. Quaisquer atacantes teriam que combater numa estrada coleante. As duas passagens podem ser defendidas com poucos homens. O senhor nunca sofreria uma emboscada. Temos homens mais que suficientes para defendê-lo e massacrar dez vezes o número deles - se necessário.

- Nós os massacraremos aconteça o que acontecer, neh? - disse Buntaro, com desprezo. - Mas melhor lá do que aqui. Senhor, por favor, deixe-me tornar o lugar seguro. Quinhentos arqueiros, nenhum mosqueteiro, todos a cavalo. Junto com os homens que meu pai enviou, teremos mais que o suficiente.

Toranaga conferiu a data no despacho. - Atingirão a encruzilhada quando?

Yabu olhou para Omi pedindo confirmação. - Esta noite, o mais tardar?

- Sim. Talvez não antes do amanhecer de amanhã.

- Buntaro-san, parta imediatamente - disse Toranaga. - Detenha-os em Yokosé, mas mantenha-os do outro lado do rio. Partirei ao amanhecer, amanhã, com outros cem homens. Devemos estar lá pelo meio-dia. Yabu-san, encarregue-se do nosso Regimento de Mosquetes por enquanto e guarde a nossa retirada. Ponha-o em emboscada do outro lado da estrada Heikawa, de modo que, se necessário, possamos nos retirar com a sua ajuda.

Buntaro começou a se retirar, mas parou quando Yabu disse, apreensivo: - Como pode haver traição, senhor? Eles só têm cem homens.

- Espero traição. O Senhor Zataki não colocaria a própria cabeça nas minhas mãos sem um plano, pois, é claro, eu lhe tirarei a cabeça se puder - disse Toranaga. - Sem ele para liderar os seus fanáticos, teremos uma chance muito maior de atravessar as montanhas do seu feudo. Mas por que será que está arriscando tudo? Por quê?

Tentativamente, Omi disse: - Ele não poderia estar pronto para trocar de aliado novamente?

Todos sabiam da antiga rivalidade que existia entre os meio irmãos. Uma rivalidade amistosa até agora.

- Não, não ele. Nunca confiei nele antes. Algum de vocês o faria agora?

Eles menearam a cabeça.

- Certamente não há nada para perturbá-lo, senhor - disse Yabu. - O Senhor Zataki é um regente, sim, mas é apenas um mensageiro, neh?

Imbecil, queria gritar Toranaga, você não compreende nada? - Logo saberemos. Buntaro, vá imediatamente.

- Sim, senhor. Escolherei cuidadosamente o lugar para a reunião, mas não o deixe se aproximar além de dez passos. Estive com ele na Coréia. É rápido demais com a espada.

- Sim.

Buntaro saiu às pressas. Yabu disse: - Talvez Zataki possa ser tentado a trair Ishido. Uma recompensa talvez? Qual será a isca para ele? Mesmo sem a sua liderança, as montanhas de Shinano são cruéis.

- A isca é óbvia - disse Toranaga. - O Kwanto. Não é isso o que ele quer, o que sempre quis? Não é isso o que querem todos os meus inimigos? Não é isso o que o próprio Ishido quer?

Não lhe responderam. Não havia necessidade.

- Que Buda nos ajude - disse Toranaga gravemente. - A paz do táicum terminou. A guerra está começando.

Os ouvidos de Blackthorne, treinados no mar, tinham percebido a urgência nos cascos aproximando-se e sussurraram-lhe perigo. Ele acordara imediatamente, pronto para atacar ou recuar, todos os sentidos aguçados. Os cascos passaram, depois subiram a colina em direção à fortaleza, para morrer de novo.

Ele esperou. Não ouviu som de escolta seguindo. Provavelmente um mensageiro sozinho, pensou. De onde? É a guerra, já?

O alvorecer estava iminente. Agora Blackthorne podia ver uma pequena parte do céu. Estava nublado e carregado de chuva, o ar quente com um travo de sal, elevando o mosquiteiro de tempos em tempos. Um mosquito zumbia fracamente do lado de fora. Ele se sentiu muito satisfeito por estar dentro, seguro no momento. Goze da segurança e da tranqüilidade enquanto duram, disse a si mesmo.

Kiku dormia ao seu lado, enrolada como um gatinho. Com o cabelo em desalinho, parecia-lhe ainda mais bela. Cuidadosamente ele relaxou de novo na maciez dos acolchoados sobre o chão de tatami.

Isto é muito melhor do que uma cama. Melhor do que qualquer beliche - meu Deus, muito melhor! Mas logo estarei de novo a bordo, neh? Logo cairemos em cima do Navio Negro e tomaremos, neh? Acho que Toranaga concordou embora não tenha dito isso abertamente. Simplesmente não concordou à moda

japonesa? "Nada poderá jamais ser resolvido no Japão senão por métodos japoneses." Sim, acredito que isso seja verdade.

Gostaria de estar mais bem informado. Ele não disse a Mariko que traduzisse tudo e explicasse sobre os seus problemas políticos? Gostaria de ter dinheiro para comprar a minha nova tripulação. Ele não me deu dois mil kokus?

Pedi duzentos ou trezentos corsários. Ele não me deu duzentos samurais com todo o poder e dignidade de que necessito? Eles me obedecerão? Claro. Ele me fez samurai e hatamoto. Portanto obedecerão até a morte e eu os levarei para bordo do Erasmus, serão o meu destacamento de abordagem e eu comandarei o ataque.

Estou com uma sorte inacreditável! Tenho tudo o que quero. Exceto Mariko. Mas tenho até a ela. Tenho seu espírito secreto, o seu amor. E possuí o seu corpo na noite passada, a noite mágica que nunca existiu. Amamos sem amar. Faz muita diferença?

Não há amor entre mim e Kiku, apenas um desejo que floresceu. Foi formidável para mim. Espero que o tenha sido igualmente para ela. Tentei ser japonês integralmente e cumprir o meu dever, satisfazê-la como ela me satisfez.

Ele se lembrou de como usara um anel de prazer. Sentira-se muito desajeitado e constrangido e se voltara de costas para colocá-lo, petrificado ante a idéia de que sua força desapareceria. Mas não desapareceu. E depois, quando o anel estava no lugar, eles haviam "travesseirado" novamente. O corpo dela estremecia se contorcia, e a vibração o elevara a um plano mais premente do que ele jamais conhecera.

Depois, quando conseguiu respirar de novo, começou a rir e ela sussurrara: - Por que ri? - e ele respondera: - Não sei, só sei que você me fez feliz.

Nunca tinha rido nesse momento, nunca. Tornou tudo perfeito. Não amo Kiku-san - eu a estimo. Amo Mariko-san sem reservas e gosto completamente de Fujiko-san.

Você dormiria com Fujiko-san? Não. Pelo menos, acho que não poderia.

Seu dever não é esse? Se você aceita os privilégios de samurai e exige que os outros o tratem totalmente como samurai, com tudo o que isso significa, deve aceitar as responsabilidades e deveres, neh? É apenas justo, neh? E honroso, neh? É seu dever dar um filho a Fujiko.

E Felicity. O que ela diria disso?

E quando você partir, como fica Fujiko-san, e como fica Mariko-san? Você realmente voltará para cá, abandonando o título de cavaleiro e as honras até maiores que certamente lhe serão concedidas, desde que retorne carregado de riquezas? Você navegará para os abismos hostis mais uma vez, para se arrebentar através do horror enregelante do estreito de Magalhães, suportar tempestade e mar e escorbuto e motim por outros seiscentos e noventa e oito dias para fazer um segundo desembarque aqui? Para levar esta vida de novo?

Decida!

Então se lembrou do que Mariko lhe dissera sobre compartimentos da mente: - Seja japonês, Anjin-san, o senhor tem que fazer isso, para sobreviver. Faça o que fazemos, renda-se ao ritmo do karma francamente. Alegre-se com as forças que estão além do seu controle. Coloque todas as coisas nos seus compartimentos separados e entregue-se à wa, a harmonia da vida. Entregue-se, Anjin-san, karma é karma, neh?

Sim. Decidirei quando chegar o momento.

Primeiro tenho que arranjar uma tripulação. Depois capturo o Navio Negro. Em seguida navego meio caminho em torno do mundo até a Inglaterra. Então compro e equipo os navios de guerra. E depois decidirei. Karma é karma.

Kiku mexeu-se, depois se enterrou mais fundo nos acolchoados, aconchegando-se mais a ele. Blackthorne sentiu-lhe o calor através dos quimonos de seda. E inflamou-se.

- Anjin-chan - murmurou ela, ainda adormecida. - Hai?

Não a despertou. Contentou-se em embalá-la e descansar, arrebatado pela serenidade que a entrega fio karma lhe dera. Mas antes de adormecer, abençoou Mariko por ter-lhe ensinado.

- Sim, Omi-san, certamente - disse Gyoko. - Vou buscar o Anjin-san imediatamente. Por favor, desculpe-me. Alço, venha comigo.

Gioko mandou Ako buscar chá, depois apressou-sé jardim adentro, perguntando-se que notícias vitais o mensageiro noturno a galope teria trazido, pois também ela ouvira o tropel. E por que Omi está tão estranho hoje? perguntou-se ela. Por que tão frio, áspero e perigoso? E por que veio pessoalmente, para uma tarefa tão baixa? Por que não enviou um samurai qualquer?

Ah, quem sabe? Omi é um homem. Como se pode compreendê-los, particularmente os samurais? Mas alguma coisa está errada, terrivelmente errada. Será que o mensageiro trouxe uma declaração de guerra? Suponho que sim. Se é a guerra, então é a guerra, e a guerra nunca prejudicou o nosso negócio. Daimios e samurais ainda precisarão de entretenimento, como sempre - mais até, em guerra -, e na guerra o dinheiro tem menos valor do que nunca para eles. Bom, bom, bom. Ela sorriu consigo mesma. Lembra-se da guerra, quarenta e muitos anos atrás, quando você tinha dezessete anos e era a menina dos olhos de Mishima? Lembra-se de todo o riso, "travesseiro" e noites de orgulho que se fundiram naqueles dias? Lembra-se de como serviu o Velho Baldy em pessoa, o pai de Yabu, o velho e bondoso cavalheiro que cozinhava criminosos como o filho faz agora? Lembra-se de como você teve que dar duro para deixá-lo flexível - ao contrário do filho! Gyoko soltou uma risadinha. "Travesseiramos" três dias e três noites, depois ele se tornou meu protetor por um ano inteiro. Bons tempos - um bom homens. Oh, como "travesseirávamos"!

Guerra ou paz, não importa! Shigata ga nai? Há o suficiente investido com os prestamistas e os comerciantes de arroz, um pouco aqui, um pouco ali. Depois há a fábrica de saque em Odawara, a casa de chá em Mishima está prosperando, e hoje o Senhor Toranaga vai comprar o contrato de Kiku!

Sim, tempos interessantes à frente, e como a noite anterior fora fantasticamente interessante! Kiku estivera brilhante, a explosão do Anjin-san aflitiva. E depois, quando a Senhora Toda os deixara, o talento de Kiku tornara tudo perfeito e a noite bem-aventurada. Ah, homens e mulheres. Tão previsíveis. Especialmente os homens. Bebês, sempre. Tolos, difíceis, terríveis, petulantes, flexíveis, horríveis - maravilhosos mais raramente -, mas todos nascidos com aquela saliência única, incrivelmente compensadora, que nós no negócio chamamos de Raiz de Jade, Cabeça de Tartaruga, Bico de Yang, Seta Aquecida, Intrometido do Macho, ou simplesmente Pedaço de Carne.

Que insultante! E no entanto tão adequado!

Gyoko casquinou e perguntou a si mesma pela décima milésima vez: por todos os deuses, vivos, mortos e ainda por nascer, o que faríamos neste mundo sem o Pedaço de Carne?

Ela correu de novo, seus passos audíveis apenas o bastante para anunciar a sua presença. Subiu os degraus de cedro polido. Sua batida foi experiente.

- Anjin-san... Anjin-san, desculpe, mas o Senhor Toranaga mandou buscá-lo. O senhor deve se dirigir à fortaleza imediatamente.

- O quê? O que foi que disse?

Ela repetiu em linguagem mais simples.

- Ah! Compreender! Está bem... eu lá depressa - ela ouviu-o dizer, com seu sotaque engraçado.

- Sinto muito, por favor, desculpe-me. Kiku-san?

- Sim, Mama-san? - Num instante a shoji se abriu. Kiku sorriu para ela, apertando o quimono junto ao corpo, o cabelo lindamente desarranjado. - Bom dia, Mama-san, teve bons sonhos?

- Sim, sim, obrigada. Sinto muito perturbá-la, Kiku-san, gostaria de um pouco de chá fresco?

- Oh! - O sorriso de Kiku desapareceu. Aquela era a frase em código que Gyoko podia usar livremente diante de qualquer cliente, para dizer a Kiku que seu cliente mais especial, Omi-san, estava na casa de chá. Desse modo Kiku sempre podia terminar mais depressa a sua história, ou canção, ou dança, e ir ao encontro de Omi-san, se quisesse. Kiku "travesseirava" com muito poucos, embora entretivesse a muitos - se pagassem o preço. Muito, muito poucos podiam pagar todos os serviços dela.

- O que é? - perguntou Gyoko, atenta.

- Nada, Mama-san. Anjin-san - chamou Kiku alegremente -, desculpe, gostaria de tomar um chá?

- Sim, por favor.

- Estará aqui imediatamente - disse Gyoko. - Ako! Depressa, criança!

- Sim, ama. - Ako entrou com a bandeja de chá e duas xícaras, e serviu. Gyoko se afastou, novamente se desculpando por incomodá-los. Kiku deu a xícara a Blackthorne pessoalmente. ElC, bebeu, sedento, depois ela o ajudou a se vestir. Ako estendeu um quimono limpo para ela. Kiku estava muito atenciosa, mas consumida pela idéia de que logo teria que acompanhar o Anjinsan até o lado de fora do portão e curvar-se para ele em despedida. Fazia parte das boas maneiras. Mais que isso, era um privilégio seu, e dever. Apenas as cortesãs de primeira classe eram autorizadas a ultrapassar a soleira para conferir aquela honra rara; todas as outras tinham que ficar dentro do pátio. Era impensável que ela não terminasse a noite como era esperado - isso seria um terrível insulto ao hóspede -, e no entanto...

Pela primeira vez na vida, Kiku não estava com vontade de se curvar para um convidado em despedida diante de outro convidado.

Não posso, não com o Anjin-san diante de Omi-san.

Por quê? perguntou a si mesma. É por que o Anjin-san é bárbaro e você está envergonhada de que todo mundo saiba que você foi possuída por um bárbaro? Não. Toda Anjiro já sabe e um homem é como qualquer outro, a maior parte do tempo. Este homem é samurai, hatamoto, e almirante dos navios do Senhor Toranaga! Não, não é nada disso.

O que é então?

É porque descobri durante a noite que estava envergonhada pelo que Omi-san fez a ele. Assim como nós todos devíamos estar. Omi-san nunca lhe devia ter feito aquilo. O Anjin-san está marcado a ferro e os meus dedos parçciam sentir a marca através da seda do quimono. Estou ardendo de vergonha por ele, um bom homem, a quem nunca devia ter sido feito aquilo.

Estou desonrada?

Não, claro que não, só estou envergonhada diante dele. E envergonhada diante de Omi-san por estar envergonhada.

Então, nos ermos da sua mente, ouviu Mama-san dizendo de novo: - Criança, criança, deixe ao homem as coisas de homens. O riso é o nosso lenitivo contra eles, e contra o mundo, os deuses e até a velhice.

- Kiku-san?

- Sim, Anjin-san?

- Agora eu vou.

- Sim. Vamos juntos - disse ela.

Ele pegou-lhe suavemente o rosto nas mãos ásperas e beijou-a. - Obrigado. Não palavras suficientes para agradecer.

- Sou eu quem deve agradecer. Por favor, permita-me agradecer-lhe, Anjin-san. Vamos agora.

Deixou que Ako lhe desse os últimos retoques no cabelo, que ela deixou pendendo frouxamente, amarrou o sash do quimono limpo, e saiu com ele.

Kiku caminhava ao seu lado, conforme era privilégio seu, e não alguns passos atrás, como uma esposa, consorte, filha ou criada era obrigada a fazer. Ele pôs a mão no ombro dela momentaneamente e isso foi desagradável para ela, pois não se encontravam na privacidade de um quarto. Então teve um súbito e horrível pressentimento de que ele ia beijá-la em público - o que Mariko mencionara como costume bárbaro -, ao portão. Oh, Buda, não deixe acontecer, pensou, quase desmaiando de susto.

As espadas dele estavam na sala de recepção. Por costume, todas as armas eram deixadas sob guarda, fora dos quartos de prazer, para evitar discussões letais entre clientes, e também para impedir qualquer dama de pôr fim à vida. Nem todas as damas do Mundo do Salgueiro eram felizes ou afortunadas.

Blackthorne pôs as espadas no sash. Kiku curvou-se e fê-lo passar à varanda, onde ele calçou as sandálias, Gyoko e outros reunidos para se despedir dele, um hóspede honrado. Além do portão estava a praça da aldeia e o mar. Muitos samurais estavam lá, andando em círculos, a esmo, Buntaro entre eles. Kiku não podia ver Omi, embora tivesse certeza de que ele estava observando de algum lugar.

O Anjin-san parecia imensamente alto, ela muito pequena ao seu lado. Agora estavam atravessando o pátio. Ambos viram Omi ao mesmo tempo. Estava em pé perto do portão.

Blackthorne parou. - Bom dia, Omi-san - disse como um amigo, e curvou-se como um amigo, sem saber que Omi e Kiku eram mais que amigos. Como poderia saber? pensou ela. Ninguém lhe disse, por que deveriam dizer-lhe? E o que importa isso, de qualquer modo?

- Bom dia, Anjin-san. - A voz de Omi estava amistosa também, mas ele o viu curvar-se apenas com a polidez suficiente. Depois os seus olhos de azeviche voltaram-se para ela de novo, que se curvou, com um sorriso perfeito. - Bom dia, Omi-san. Esta casa está honrada.

- Obrigado, Kiku-san. Obrigado.

Ela sentiu-lhe o olhar perscrutador, mas fingiu não notar, mantendo os olhos afetadamente baixos. Gyoko e as criadas e cortesãs que estavam livres observavam da varanda.

- Eu vou fortaleza, Omi-san - disse Blackthorne. – Está tudo bem?

- Sim. O Senhor Toranaga mandou chamá-lo. Ir agora. Esperar vê-lo em breve.

- Sim.

Kiku levantou os olhos num relance. Omi ainda a fitava. Ela sorriu o seu melhor sorriso e olhou para o Anjin-san. Este observava Omi intensamente; então, sentindo os olhos dela, voltou-se e correspondeu ao sorriso. A ela o sorriso pareceu constrangido. - Sinto muito, Kiku-san, Omi-san, devo ir agora. - Ele se curvou para Omi. Foi correspondido. Atravessou o portão. Ela o seguiu, quase sem respirar. O movimento parou na praça. No silêncio, ela o viu se voltar e por um terrível momento sentiu que ele ia abraçá-la. Mas para seu enorme alívio, ele não fez isso, e apenas permaneceu ali, esperando como uma pessoa civilizada esperaria.

Ela se curvou com toda a ternura que pôde reunir, o olhar de Omi cravado nela.

- Obrigada, Anjin-san - disse, e sorriu para ele apenas. Um suspiro atravessou a praça. - Obrigada. - Depois acrescentou o tradicional: - Por favor, visite-nos de novo. Contarei os momentos até que nos vejamos de novo.

Ele se curvou com a medida exata de negligência, e partiu a passos largos arrogantemente, como qualquer samurai de qualidade o faria. Depois, porque ele a tratara muito corretamente, e para pagar a Omi pela frieza desnecessária na mesura, ao invés de voltar para dentro de casa imediatamente, permaneceu onde estava, olhando o Anjin-san, para honrá-lo ainda mais. Esperou até que ele estivesse na última esquina. Viu-o olhar para trás. Acenar. Ela se curvou bem profundamente, agora encantada com a atenção na praça, fingindo não notá-la. E apenas quando ele realmente desapareceu foi que caminhou de volta. Com orgulho e grande elegância. E até que o portão se fechasse, todos os homens a olharam, nutrindo-se daquela beleza, invejosos do Anjinsan, que devia ser muito homem para que ela esperasse daquele modo.

- Você está muito bonita - disse Omi.

- Gostaria que isso fosse verdade - disse ela com um sorriso contido. - Aceitaria um pouco de chá, Omi-sama? Ou comida?

- Com você, sim.

Gyoko juntou-se a eles untuosamente. - Por favor, desculpe-me os maus modos, Omi-sama. Coma conosco, por favor. Já tomou a sua primeira refeição?

- Não... ainda não, mas não estou com fome. - Omi olhou Kiku de relance. - Você ainda não comeu?

Gyoko interrompeu expansivamente: - Permita-nos trazerlhe alguma coisa que não seria inadequado demais, Omi-sama. Kiku-san, quando se tiver trocado junte-se a nós, neh?

- Naturalmente. Por favor, desculpe-me, Omi-sama, por aparecer assim. Sinto muito. - A garota saiu correndo, fingindo uma felicidade que não sentia, Ako a reboque.

Omi disse abruptamente: - Eu gostaria de estar com ela esta noite, para comer e me entreter.

- Naturalmente, Omi-sama - replicou Gyoko com uma profunda mesura, sabendo que ela não estaria livre. - O senhor honra a minha casa e nos concede muita honra. Kiku-san é muito afortunada de que o senhor a distinga com o seu favor.

- Três mil kokus? - Toranaga estava escandalizado.

- Sim, senhor - disse Mariko. Estavam na varanda particular da fortaleza. A chuva já começara de novo, mas não abrandara o calor do dia. Ela se sentia desatenta, muito cansada, e ansiando pelo frescor do outono. - Sinto muito, mas não consegui negociar de modo que a mulher reduzisse mais o preço. Conversei quase até o amanhecer. Sinto muito, senhor, mas ordenou-me que concluísse um acordo na noite passada.

- Mas três mil, Mariko-san! Isso é usura! - Na realidade Toranaga estava contente por ter outro problema que lhe desviasse a mente da preocupação que o atormentava. O padre cristão Tsukku-san viajando com Zataki, o regente pretensioso, não pressagiava nada além de complicação. Ele examinara cada via de escapada, cada estrada de retirada e ataque que cada homem poderia imaginar, e a resposta fora sempre a mesma: se Ishido se mover rapidamente, estou perdido. Tenho que arranjar tempo. Mas como?

Se eu fosse Ishido, começaria agora, antes que as chuvas cessassem.

Colocaria os homens em posição, exatamente como o táicum e eu fizemos para destruir os Beppu. O mesmo plano vencerá sempre - é tão simples! Ishido não pode ser tão estúpido para não ver que o único meio real de defender o Kwanto é possuir Osaka, e todas as terras entre Yedo e Osaka. Enquanto Osaka for inamistosa, o Kwanto estará em perigo. O táicum sabia disso, por que outro motivo me deu o Kwanto? Sem Kiyama, Onoshi e os padres bárbaros ...

Com um esforço, Toranaga colocou o amanhã dentro do seu compartimento e se concentrou totalmente naquela impossível quantia em dinheiro. - Três mil kokus está fora de questão!

- Concordo, senhor. O senhor está certo. A culpa é inteiramente minha. Achei que até quinhentos seria excessivo, mas a mulher Gyoko não desceu mais o preço. Há uma concessão, porém.

- Qual?

- Gyoko implorou a honra de reduzir o preço para dois mil e quinhentos kokus se o senhor lhe conceder a honra de concordar em vê-Ia em particular por um bastão de tempo.

- Uma Mama-san desistiria de quinhentos kokus só para falar comigo?

- Sim, senhor.

- Por quê? - perguntou ele, desconfiado.

- Ela me contou a razão, senhor, mas humildemente suplicou pela autorização de poder explicar-lhe pessoalmente. Acredito que a proposta dela lhe seria interessante, senhor. E quinhentos kokus... seria uma economia. Estou horrorizada por não ter conseguido fazer um acordo melhor, ainda que Kiku-san seja de primeira classe e mereça absolutamente esse status. Sei que lhe falhei.

- Concordo - disse Toranaga acidamente. - Mesmo mil seria demais. Isto é Izu, não Kyoto!

- Tem toda a razão, senhor. Eu disse à mulher que o preço era tão ridículo, que possivelmente nem eu mesma conseguiria concordar com ele, embora o senhor me tivesse dado ordens diretas de concluir o negócio à noite passada. Espero que o senhor perdoe a minha desobediência, mas eu disse que primeiro consultaria a Senhora Kasigi, a mãe de Omi-san, que é a dama mais velha aqui, antes que o acordo fosse confirmado.

Toranaga iluminou-se, suas outras preocupações esquecidas. - Ah, então está arranjado, mas não está?

- Sim, senhor. Não foi nada decidido até que eu possa me consultar com a Senhora Kasigi. Eu disse que daria uma resposta ao meio-dia de hoje. Por favor, perdoe a minha desobediência.

- Você devia ter concluído o negócio, conforme ordenei! - Toranaga estava secretamente encantado com que Mariko tivesse inteligentemente dado a ele a oportunidade de concordar ou discordar sem qualquer perda de dignidade. Teria sido impensável que ele, pessoalmente, relutasse por uma mera questão de dinheiro. Mas oh ko, três mil kokus... - Você diz que o contrato da garota vale o suficiente, em arroz, para alimentar mil famílias durante três anos?

- Vale cada grão de arroz, para o homem certo. Toranaga olhou-a, perspicaz. - Oh? Conte-me sobre ela e sobre o que aconteceu.

Ela lhe contou tudo - exceto seu sentimento pelo Anjin-san e a profundidade do dele por ela. Ou sobre a oferta que Kiku lhe fizera.

- Bom. Sim, muito bom. Isso foi inteligente. Sim - disse Toranaga. - Ele deve ter-lhe agradado muitíssimo, para que ela ficasse ao portão como ficou, na primeira vez. - A maior parte de Anjiro estivera à espera daquele momento, para ver como os dois agiriam, o bárbaro e a Senhora Salgueiro de primeira classe.

- Sim.

- Os três kokus investidos valeram bem a pena para ele. Sua fama agora correrá à sua frente.

- Sim - concordou Mariko, muito orgulhosa com o sucesso de Blackthorne. - Ela é uma dama excepcional, senhor.

Toranaga estava intrigado com a confiança de Mariko no seu acordo. Mas quinhentos kokus pelo contrato teria sido mais justo. Quinhentos kokus era mais do que a maioria das Mama-sans conseguia ganhar a vida inteira, portanto, para que uma delas sequer considerasse a possibilidade de desistir de quinhentos... - Vale cada grão, você diz? Mal posso acreditar nisso.

- Para o homem certo, senhor. Acredito que sim. Mas não saberia julgar quem seria o homem certo.

Houve uma batida na shoji.

- Sim?

- O Anjin-san está ao portão principal, senhor. - Traga-o aqui.

- Sim, senhor.

Toranaga abanou-se. Estivera observando Mariko dissimuladamente e vira a luz momentânea no seu rosto. Deliberadamente não a prevenira de que mandara chamá-lo.

O que fazer? Tudo o que foi planejado ainda se aplica. Mas agora preciso de Buntaro, do Anjin-san e de Omi-san mais do que nunca. E de Mariko, muitíssimo.

- Bom dia, Toranaga-sarna.

Ele retribuiu a mesura de Blackthorne e notou-lhe o súbito calor quando o homem viu Mariko. Houve saudações e réplicas formais, depois ele disse: - Mariko-san, diga-lhe que vai partir comigo ao amanhecer. Você também. Você continuará até Osaka.

Um calafrio percorreu-a. - Sim, senhor.

- Eu vou Osaka, Toranaga-sama? - perguntou Blackthorne.

- Não, Anjin-san. Mariko-san, diga-lhe que vou à nascente Shuzenji por um dia ou dois. Vocês dois me acompanharão até lá. Você continuará para Osaka. Ele viajará com você até a fronteira, depois seguirá para Yedo sozinho.

Observou-os atentamente enquanto Blackthorne falava com ela, rápida e urgentemente.

- Desculpe-me, Toranaga-sama, mas o Anjin-san humildemente pergunta se poderia me tomar emprestada por mais alguns dias. Ele diz, por favor, desculpe-me, que a minha presença com ele aceleraria grandemente o assunto do seu navio. Depois, se lhe aprouvesse, ele tomaria imediatamente um dos seus navios costeiros e me levaria a Osaka, seguindo sozinho para Nagasaki. Ele sugere que isso poderia poupar tempo.

- Ainda não decidi nada sobre o navio. Ou sobre uma tripulação. Ele pode não precisar ir a Nagasaki. Deixe isso bem claro. Não, nada está decidido. Mas considerarei a solicitação a seu respeito. Você terá a minha decisão amanhã. Pode ir agora... Oh, sim, por último, Mariko-san, diga-lhe que quero a genealogia dele. Ele pode escrever e você traduzirá, ratificando-lhe a correção.

- Sim, senhor. O senhor deseja isso imediatamente?

- Não. Quando ele chegar a Yedo haverá tempo suficiente.

Mariko explicou a Blackthorne.

- Por que ele quer isso? - perguntou ele.

Mariko encarou-o. - Naturalmente todos os samurais têm que ter seus nascimentos e mortes registrados, Anjin-san, assim como seus feudos e concessões de terras. De que outro modo um suserano pode manter tudo avaliado? Não acontece o mesmo no seu país? Aqui, por lei, todos os nossos cidadãos constam de registros oficiais, até os etas: nascimentos, mortes, casamentos. Cada vila, aldeia ou rua de cidade tem o seu pergaminho oficial. De que outro modo se pode ter certeza de onde e a quem se pertence?

- Nós não escrevemos isso. Nem sempre. E não oficialmente. Todo mundo é registrado? Todo mundo?

- Oh, sim, até os etas, Anjin-san. É importante, neh? Assim ninguém finge ser o que não é, malfeitores podem ser apanhados com mais facilidade, e homens e mulheres ou parentes não podem trapacear em casamentos, neh?

Blackthorne pôs isso de lado para consideração posterior e jogou outra carta no jogo que iniciara com Toranaga, o que, esperava ele, levaria à morte do Navio Negro.

Mariko ouviu atentamente, interrogou-o um momento, depois voltou-se para Toranaga. - Senhor, o Anjin-san lhe agradece pelo seu favor e os seus muitos presentes. Pergunta se o senhor o honraria escolhendo os duzentos vassalos para ele. Diz que a sua orientação nisso valeria qualquer coisa.

- Vale mil kokus? - perguntou Toranaga imediatamente. Viu a surpresa dela e a do Anjin-san. Estou contente de que você ainda seja transparente, Anjin-san, apesar de toda a sua aparência de civilização, pensou ele. Se eu fosse um jogador, apostaria que não era essa a sua idéia - pedir a minha orientação.

- Hai - ouviu Blackthorne dizer com firmeza.

- Bom - retrucou ele, incisivo. - Já que o Anjin-san é tão generoso, aceitarei o seu oferecimento. Mil kokus. Isso ajudará outros samurais necessitados. Diga-lhe que os seus homens o estarão esperando em Yedo. Vejo-o ao amanhecer, amanhã, Anjin-san.

- Sim. Obrigado, Toranaga-sama.

- Mariko-san, consulte-se com a Senhora Kasigi imediatamente. Já que você aprovou a quantia, imagino que ela concordará com o seu arranjo, por mais hediondo que pareça, embora eu suponha que ela precisará de tempo até o amanhecer para dar a uma soma tão ridícula sua consideração plena. Mande algum criado ordenar à mulher Gyoko que esteja aqui ao crepúsculo. Ela pode trazer a cortesã consigo. Kiku-san pode cantar enquanto conversamos, neh?

Dispensou-os, encantado com o fato de ter poupado mil e quinhentos kokus. As pessoas são tão extravagantes, pensou benevolamente.

- Isso me deixará o suficiente para conseguir uma tripulação? - perguntou Blackthorne.

- Oh, sim, Anjin-san. Mas ele ainda não concordou com que o senhor vá a Nagasaki - disse Mariko. - Quinhentos kokus seria mais que suficiente para viver durante um ano, e os outros quinhentos lhe darão cerca de cento e oitenta kobans em ouro, para contratar marujos. É uma grande quantia de dinheiro.

Fujiko ergueu-se penosamente e falou com Mariko.

- Sua consorte diz que o senhor não devia se preocupar, Anjin-san. Ela pode lhe dar cartas de crédito a certos prestamistas, que lhe adiantarão tudo de que o senhor necessitar. Ela arranjará tudo.

- Sim, mas não tenho que pagar a todos os meus assistentes? Como pago por uma casa, Fujiko-san, minha criadagem?

Mariko estava chocada. - Por favor, desculpe, mas isso naturalmente não é preocupação sua. A sua consorte lhe disse que se encarregará de tudo. Ela...

Fujiko interrompeu e as duas mulheres conversaram um instante.

- Ah so desu, Fujiko-san! - Mariko voltou-se para Blackthorne. - Ela diz que o senhor não deve perder tempo pensando nisso. Roga-lhe, por favor, que gaste o seu tempo preocupando-se apenas com os problemas do Senhor Toranaga. Ela tem dinheiro seu, que pode sacar, caso seja necessário.

Blackthorne pestanejou. - Ela me emprestará o seu próprio dinheiro?

- Oh, não, Anjin-san, claro que o dará ao senhor, se necessitar, Anjin-san. Não se esqueça de que os seus problemas são só por este ano - explicou Mariko. - No próximo ano o senhor estará rico. Quanto aos seus assistentes, por um ano eles receberão dois kokus cada um. Não se esqueça de que Toranaga-sama está dando ao senhor todas as armas e cavalos deles, e que dois kokus é suficiente para alimentá-los, aos seus cavalos e famílias. E não se esqueça, também, de que deu ao Senhor Toranaga metade da sua renda de um ano para garantir que eles seriam escolhidos por ele pessoalmente. Isso é uma honra tremenda, Anjin-san.

- Acha?

- Certamente. Fujiko-san concorda inteiramente. O senhor foi muito astuto ao pensar nisso.

- Obrigado. - Blackthorne permitiu que um pouco do seu prazer se mostrasse. Você está recuperando os miolos, e está começando a pensar como eles, disse a si mesmo alegremente. Sim, foi inteligente cooptar Toranaga. Agora você terá os melhores homens possíveis, e sozinho nunca teria conseguido isso. O que são mil kokus contra o Navio Negro? Portanto, mais uma das coisas que Mariko disse é verdade: que uma das fraquezas de Toranaga é ser sovina. Claro, não o disse tão diretamente, disse apenas que Toranaga fez toda a sua inacreditável riqueza aumentar mais do que a de qualquer daimio do reino. Esse indício, junto com as suas próprias observações - que a roupa de Toranaga era tão simples quanto a sua comida, e o seu estilo de vida pouco diferente do de um samurai comum -, havia-lhe dado outra chave para desvendar Toranaga.

Graças a Deus por Mariko e por Frei Domingo!

A memória de Blackthorne levou-o de volta à cela e ele pensou em como estivera próximo da morte, então, e em como estava próximo da morte agora, mesmo com todas as suas honrarias. O que Toranaga dá, pode tomar de volta. Você acha que ele é seu amigo, mas se ele assassinaria uma esposa e mataria um filho favorito, como você pode dar valor à amizade dele ou à sua vida? Não dou, disse Blackthorne a si mesmo, renovando o seu compromisso. Isso é karma. Não posso fazer nada em relação ao karma, e vivi próximo da morte a vida toda, portanto não há nada de novo. Rendo-me ao karma em toda a sua beleza. Aceito o karma em toda a sua majestade. Confio em que o karma me fará atravessar os próximos seis meses. Depois, por esta altura no próximo ano, estarei atravessando de vento em popa o passo de Magalhães, a caminho de Londres, fora do alcance dele...

Fujiko estava falando. Ele a observou. As bandagens ainda estavam manchadas. Ela estava penosamente deitada sobre os f utons, uma criada a abaná-la.

- Ela arranjará tudo para o senhor até o amanhecer, Anjinsan - disse Mariko. - Sua consorte sugere que o senhor leve dois cavalos e um cavalo de bagagem. Um criado homem e uma criada...

- Um criado homem será suficiente.

- Sinto muito, mas a criada deve ir para servi-lo. E, naturalmente, um cozinheiro e um ajudante de cozinheiro.

- Não haverá cozinhas que nós... eu possa usar?

- Oh, sim. Mas o senhor ainda tem que ter os seus próprios cozinheiros, Anjin-san. O senhor é um hatamoto.

Ele sabia que não havia sentido em argumentar. – Deixarei tudo por sua conta.

- Oh, isso é sábio de sua parte, Anjin-san, muito sábio.

Agora devo ir fazer as malas, por favor, desculpe-me. - Mariko partiu alegremente. Não haviam conversado muito, só o suficiente, em latim, para que ambos soubessem que, embora a noite mágica nunca tivesse ocorrido e, como a outra noite, não devesse nunca ser discutida, ambas viveriam na imaginação deles para sempre.

- Fiquei tão orgulhosa quando soube que ela permaneceu ao portão por tanto tempo! A sua dignidade é imensa agora, Anjin-san.

- Por um instante quase esqueci o que a senhora me tinha dito. Involuntariamente cheguei à distância de um fio de cabelo de beijá-la em público.

- Oh ko, Anjin-san, isso teria sido terrível!

- Oh ko, a senhora tem razão! Não fosse pela senhora, eu estaria desonrado... um verme contorcendo-se no pó.

- Em vez disso, é famoso e a sua proeza indubitável. O senhor apreciou algum daqueles objetos curiosos?

- Ah, linda senhora, na minha terra temos um antigo costume: um homem não discute os hábitos íntimos de uma dama com outra.

- Temos o mesmo costume. Mas perguntei se foi apreciado, não usado. Sim, temos o mesmo costume. Estou contente de que a noite tenha sido a seu gosto. - O sorriso dela era acolhedor. - Ser japonês no Japão é sábio, neh?

- Não posso lhe agradecer o suficiente por me haver ensinado, por me haver orientado, por me ter aberto os olhos - disse ele. - Por. . . - Ele ia dizer "me amar", mas acrescentou: - por ser.

- Não fiz nada. O senhor é o senhor mesmo.

- Agradeço-lhe, por tudo... e pelo seu presente.

- Estou contente de que o seu prazer tenha sido grande.

- Estou triste de que o seu prazer tenha sido nenhum. Estou muito contente de que a senhora também tenha recebido ordem de ir à nascente. Mas por que Osaka?

- Oh, não recebi ordem de ir para Osaka. O Senhor Toranaga me autorizou a ir. Temos propriedades e assuntos de família que devem ser tratados. Além disso, meu filho se encontra lá agora. Depois, também, posso levar mensagens particulares para Kiritsubo-san e a Senhora Sazuko.

- Não é perigoso? Lembre-se das suas palavras: a guerra se aproxima e Ishido é o inimigo. O Senhor Toranaga não disse o mesmo? foi inteligente cooptar Toranaga. Agora você terá os melhores homens possíveis, e sozinho nunca teria conseguido isso. O que são mil kokus contra o Navio Negro? Portanto, mais uma das coisas que Mariko disse é verdade: que uma das fraquezas de Toranaga é ser sovina. Claro, não o disse tão diretamente, disse apenas que Toranaga fez toda a sua inacreditável riqueza aumentar mais do que a de qualquer daimio do reino. Esse indício, junto com as suas próprias observações - que a roupa de Toranaga era tão simples quanto a sua comida, e o seu estilo de vida pouco diferente do de um samurai comum -, havia-lhe dado outra chave para desvendar Toranaga.

Graças a Deus por Mariko e por Frei Domingo!

A memória de Blackthorne levou-o de volta à cela e ele pensou em como estivera próximo da morte, então, e em como estava próximo da morte agora, mesmo com todas as suas honrarias. O que Toranaga dá, pode tomar de volta. Você acha que ele é seu amigo, mas se ele assassinaria uma esposa e mataria um filho favorito, como você pode dar valor à amizade dele ou à sua vida? Não dou, disse Blackthorne a si mesmo, renovando o seu compromisso. Isso é karma. Não posso fazer nada em relação ao karma, e vivi próximo da morte a vida toda, portanto não há nada de novo. Rendo-me ao karma em toda a sua beleza. Aceito o karma em toda a sua majestade. Confio em que o karma me fará atravessar os próximos seis meses. Depois, por esta altura no próximo ano, estarei atravessando de vento em popa o passo de Magalhães, a caminho de Londres, fora do alcance dele...

Fujiko estava falando. Ele a observou. As bandagens ainda estavam manchadas. Ela estava penosamente deitada sobre os futons, uma criada a abaná-la.

- Ela arranjará tudo para o senhor até o amanhecer, Anjinsan - disse Mariko. - Sua consorte sugere que o senhor leve dois cavalos e um cavalo de bagagem. Um criado homem e uma criada...

- Um criado homem será suficiente.

- Sinto muito, mas a criada deve ir para servi-lo. E, naturalmente, um cozinheiro e um ajudante de cozinheiro.

- Não haverá cozinhas que nós... eu possa usar?

- Oh, sim. Mas o senhor ainda tem que ter os seus próprios cozinheiros, Anjin-san. O senhor é um hatamoto.

Ele sabia que não havia sentido em argumentar. – Deixarei tudo por sua conta.

- Oh, isso é sábio de sua parte, Anjin-san, muito sábio.

Agora devo ir fazer as malas, por favor, desculpe-me. - Mariko partiu alegremente. Não haviam conversado muito, só o suficiente, em latim, para que ambos soubessem que, embora a noite mágica nunca tivesse ocorrido e, como a outra noite, não devesse nunca ser discutida, ambas viveriam na imaginação deles para sempre.

- Fiquei tão orgulhosa quando soube que ela permaneceu ao portão por tanto tempo! A sua dignidade é imensa agora, Anjin-san.

- Por um instante quase esqueci o que a senhora me tinha dito. Involuntariamente cheguei à distância de um fio de cabelo de beijá-la em público.

- Oh ko, Anjin-san, isso teria sido terrível!

- Oh ko, a senhora tem razão! Não fosse pela senhora, eu estaria desonrado... um verme contorcendo-se no pó.

- Em vez disso, é famoso e a sua proeza indubitável. O senhor apreciou algum daqueles objetos curiosos?

- Ah, linda senhora, na minha terra temos um antigo costume: um homem não discute os hábitos íntimos de uma dama com outra.

- Temos o mesmo costume. Mas perguntei se foi apreciado, não usado. Sim, temos o mesmo costume. Estou contente de que a noite tenha sido a seu gosto. - O sorriso dela era acolhedor. - Ser japonês no Japão é sábio, neh?

- Não posso lhe agradecer o suficiente por me haver ensinado, por me haver orientado, por me ter aberto os olhos - disse ele. - Por. . . - Ele ia dizer "me amar", mas acrescentou: - por ser.

- Não fiz nada. O senhor é o senhor mesmo.

- Agradeço-lhe, por tudo ... e pelo seu presente.

- Estou contente de que o seu prazer tenha sido grande.

- Estou triste de que o seu prazer tenha sido nenhum. Estou muito contente de que a senhora também tenha recebido ordem de ir à nascente. Mas por que Osaka?

- Oh, não recebi ordem de ir para Osaka. O Senhor Toranaga me autorizou a ir. Temos propriedades e assuntos de família que devem ser tratados. Além disso, meu filho se encontra lá agora. Depois, também, posso levar mensagens particulares para Kiritsubo-san e a Senhora Sazuko.

- Não é perigoso? Lembre-se das suas palavras: a guerra se aproxima e Ishido é o inimigo. O Senhor Toranaga não disse o mesmo?

- Sim. Mas ainda não há guerra, Anjin-san. E samurais não combatem contra mulheres, a menos que as mulheres os ataquem.

- Mas a senhora? E a ponte em Osaka, do outro lado do fosso? A senhora não me seguiu para enganar Ishido? Ele me teria matado. E lembre-se da sua espada na luta no navio.

- Ah, aquilo foi só para proteger a vida do meu suserano, e a minha vida, quando esteve ameaçada. Era meu dever, Anjinsan, nada mais que isso. Não há risco para mim. Fui dama de companhia da Senhora Yodoko, a viúva do táicum, até da Senhora Ochiba, mãe do herdeiro. Tenho a honra de ser amiga delas. Estou absolutamente segura. E por isso que Toranaga-sama me autoriza a ir. Mas para o senhor em Osaka não há segurança, por causa da fuga do Senhor Toranaga, e do que foi feito ao Senhor Ishido. Portanto o senhor não deve nunca aportar lá. Nagasaki lhe será segura.

- Então ele concordou com a minha ida?

- Não. Ainda não. Mas quando o fizer, será seguro. Ele tem poder em Nagasaki.

Ele queria perguntar "maior do que o dos jesuítas?", mas apenas disse: - Rezo para que o Senhor Toranaga ordene que a senhora vá de navio para Osaka. - Viu-a tremer ligeiramente. - O que a perturba?

- Nada, exceto... exceto que o mar não me agrada. - Ele ordenará assim mesmo?

- Não sei. Mas... - ela se transformou de novo na arreliadora travessa e disse em português: - mas, pela sua saúde, devíamos levar Kiku-san conosco, neh? Esta noite o senhor vai de novo à Câmara Rubro-Escarlate dela?

Ele riu com ela. - Seria ótimo, embora. . . - Parou, lembrando-se com súbita clareza do olhar de Omi. - Sabe, Marikosan, quando eu estava ao portão, tenho certeza de que vi Omi-san olhando para ela de um modo muito especial, como um amante olharia. Um amante ciumento. Eu não sabia que eles eram amantes.

- Consta-me que ele é um dos clientes dela, um cliente favorecido, sim. Mas por que isso o preocuparia?

- Porque foi um olhar muito particular. Muito especial.

- Ele não tem direito especial sobre ela, Anjin-san. Ela é uma cortesã de primeira classe. E livre para aceitar ou rejeitar quem lhe apraza.

- Se estivéssemos na Europa e eu "travesseirasse" com a garota dele... compreende, Mariko-san?

- Acho que sim, Anjin-san, mas por que isso o preocuparia? Não está na Europa, Anjin-san, ele não tem nenhum direito formal sobre ela. Se ela quer aceitá-lo e a ele, ou mesmo rejeitar o senhor ou a ele, o que isso tem a ver com qualquer coisa?

- Eu diria que ele é amante dela, no nosso sentido da palavra. Isso tem tudo a ver, neh?

- Mas o que tem isso a ver com a profissão dela, ou com "travesseiro"?

Ele acabou por agradecer-lhe de novo e deixou a questão parar nesse ponto. Mas sua cabeça e seu coração diziam-lhe que estivesse alerta. Não é tão simples quanto você pensa, Marikosan, mesmo aqui. Omi acredita que Kiku é mais que especial, mesmo que ela não sinta o mesmo. Gostaria de ter sabido que ele era amante dela. Prefiro ter Omi como amigo a tê-lo como inimigo. Mariko poderia estar certa de novo? Que "travesseiro" não tem nada a ver com amor, para eles?

Deus me ajude, estou muito confuso. Agora, um oriental; na maior parte, um ocidental. Tenho que agir como eles e pensar como eles para continuar vivo. E muito daquilo em que eles acreditam é tão melhor do que o nosso modo de pensar, que é tentador querer tornar-me um deles totalmente, e ainda assim. . . o lar é lá, do outro lado do mar, onde nasceram meus ancestrais, onde vive a minha família, Felicity, Tudor e Elizabeth. Neh?

- Anjin-san?

- Sim, Fujiko-san?

- Por favor, não se preocupe com dinheiro. Não posso suportar vê-lo preocupado. Sinto tanto não poder ir a Yedo com o senhor.

- Logo ver em Yedo, neh?

- Sim. O médico diz que estou me curando depressa e a mãe de Omi concorda.

- Quando médico aqui?

- Ao pôr-do-sol. Sinto muito não poder ir amanhã. Por favor, desculpe-me.

Ele se perguntou de novo sobre o seu dever para com a consorte. Depois devolveu esse pensamento ao seu compartimento quando um outro se precipitou para a frente. Examinou essa ideia e achou-a excelente. E urgente. - Eu vou agora, volto logo. Você descansa ... compreende?

- Sim. Por favor, desculpe-me por não me levantar, e por... sinto muito.

Ele a deixou e foi para o seu quarto. Pegou uma pistola do esconderijo, examinou a escorva, e enfiou-a por sob o quimono. Depois caminhou sozinho até a casa de Omi. Omi não estava. Midori deu-lhe as boas-vindas e ofereceu-lhe chá, que ele polidamente recusou. Midori estava com seu bebê de dois anos nos braços. Disse que sentia muito, mas Omi voltaria logo. O Anjinsan gostaria de esperar? Ela parecia pouco à vontade, embora polida e atenciosa. Novamente ele recusou e agradeceu, dizendo que voltaria mais tarde, depois desceu para a sua casa.

Aldeãos já haviam limpado o chão, preparando para reconstruir tudo. Nada fora poupado ao incêndio, exceto utensílios de cozinha. Fujiko não lhe contaria o custo da reconstrução. Era muito barato, dissera. Por favor, não se preocupe.

- Karma, Anjin-sama - disse um dos aldeãos.

- Sim.

- O que se poderia fazer? Não se preocupe, sua casa logo estará pronta... melhor do que antes.

Blackthorne viu Omi subindo a colina, tenso e rígido. Foi ao seu encontro. Quando Omi o viu, pareceu perder parte da fúria. - Ah, Anjin-san - disse cordialmente. - Ouvi dizer que vai partir com Toranaga-sama ao amanhecer. Muito bom, podemos cavalgar juntos.

Apesar da aparente amistosidade de Omi, Blackthorne manteve-se em guarda.

- Ouça, Omi-san, agora eu vou lá. - Apontou na direção do altiplano. - Por favor, o senhor vai comigo, sim? - Não há treinamento hoje.

- Compreender. Por favor, ir comigo, sim?

Omi viu que a mão de Blackthorne estava no punho da espada mortífera, ao modo característico, preparando-a. Depois seus olhos agudos notaram o volume sob o sash e ele entendeu imediatamente, pela forma parcialmente delineada, que era uma pistola escondida. - Um homem que tem autorização de usar as duas espadas deveria ser capaz de utilizá-las, não apenas usá-las, neh? - disse a voz fraca.

- Por favor? Não compreendo.

Omi repetiu, mais simplesmente.

- Ah, compreendo. Sim. Melhor.

- Sim. O Senhor Yabu disse - agora que o senhor é totalmente samurai - que devia começar a aprender mais do que consideramos correto. Como agir como assistente num seppuku, por exemplo - e mesmo como se preparar para o seu próprio seppuku, conforme somos todos obrigados a aprender. Sim, Anjinsan, o senhor devia aprender a usar as espadas. É muito necessário para um samurai saber como usar e honrar sua espada, neh?

Blackthorne não compreendeu metade das palavras. Mas sabia o que Omi estava dizendo. Pelo menos, corrigiu-se ele, apreensivo, sei o que ele está dizendo na superfície.

- Sim. Verdade. Importante - disse ele. - Por favor, um dia o senhor ensinar... desculpe, o senhor ensina, talvez? Por favor? Eu honrado.

- Sim, gostaria de ensinar-lhe, Anjin-san.

Os pêlos de Blackthorne se eriçaram ante a ameaça implícita na voz de Omi. Atenção, censurou-se ele. Não comece a imaginar coisas. - Obrigado. Agora caminhar lá, por favor? Pouco tempo. O senhor vai com? Sim?

- Muito bem, Anjin-san. Mas iremos a cavalo. Volto num instante. - Omi afastou-se colina acima, entrando no seu próprio pátio.

Blackthorne ordenou a um criado que selasse o seu cavalo e montou desajeitadamente pelo lado direito, conforme o costume no Japão e na China. Não penso que haveria muito futuro em deixá-lo me ensinar esgrima, disse a si mesmo, a mão direita apalpando a pistola escondida, o agradável calor da arma tranqüilizando-o. Sua confiança esvaneceu-se quando Omi reapareceu. Com ele vinham quatro samurais montados.

Juntos tomaram a estrada destruída a meio galope, em direção ao altiplano. Passaram por muitas companhias de samurais em equipamento de marcha completo, armados, comandados pelos seus oficiais, galhardetes de lança esvoaçando. Quando alcançaram o cume, viram que todo o Regimento de Mosquetes estava fora do acampamento, em ordem de marcha, cada homem em pé ao lado do seu cavalo armado, um comboio de bagagem na retaguarda, Yabu, Naga e os oficiais na vanguarda. A chuva começou a cair pesadamente.

- Todas as tropas vão? - perguntou Blackthorne, perturbado, e puxou as rédeas do seu cavalo.

- Sim.

- Vão nascente com Toranaga-sama, Omi-san?

- Não sei.

O sentido de sobrevivência de Blackthorne preveniu-o para não fazer mais perguntas. Mas uma tinha que ser feita. – E Buntaro-sama? - perguntou com indiferença. - Ele conosco amanhã, Omi-san?

- Não. Ele já foi. Esta manhã ele estava na praça quando você saiu da casa de chá. Não o viu, perto da casa de chá?

Blackthorne não conseguiu ler nada de aparente no rosto de Omi.

- Não. Não ver, sinto muito. Ele ir nascente também?

- Acho que sim. Não tenho certeza. - A chuva gotejava do chapéu cônico de Omi, amarrado sob o queixo. Seus olhos estavam quase escondidos. - Agora por que quis que eu viesse aqui com você?

- Mostrar lugar, como eu digo. - Antes que Omi pudesse dizer qualquer coisa mais, Blackthorne esporeou o cavalo. Com o seu acurado sentido marítimo, tomou posições precisas de memória e se dirigiu rapidamente para o ponto exato sobre a fenda. Desmontou e chamou Omi com um gesto. - Por favor.

- O que é, hein? - A voz de Omi estava afiada.

- Por favor, aqui, Omi-san. Sozinho.

Omi afastou os guardas com um aceno e avançou até estar sobranceiro a Blackthorne. - Nan desu ka? - perguntou, sua mão aparentemente apertando a espada.

- Este lugar Toranaga-sama... - Blackthorne não conseguia pensar nas palavras, então explicou parcialmente com as mãos. - Compreende?

- Aqui você o arrancou da terra, neh? E daí?

Blackthorne olhou para ele, depois deliberadamente para a espada dele, depois encarou-o de novo, sem dizer mais nada. Enxugou a chuva do rosto.

- Nan desu ka? - repetiu Omi, mais irritado.

Blackthorne ainda não respondeu. Omi olhou para a fenda e novamente para o rosto de Blackthorne. Então seus olhos se iluminaram. - Ah so desu! Wakarimasu! - Omi pensou um momento, depois chamou um dos guardas. - Traga Mura aqui imediatamente. Com vinte homens e pás!

O samurai se afastou a galope. Omi mandou os outros de volta à aldeia, depois desmontou e parou ao lado de Blackthorne. - Sim, Anjin-san, foi uma excelente idéia. Uma boa idéia.

- Idéia? Que idéia? - perguntou Blackthorne com inocência. - Só mostrar lugar... pensar o senhor querer conhecer lugar, neh? Sinto muito... não compreendo.

- Toranaga-sama perdeu as espadas aqui - disse Omi.

- As espadas são muito valiosas. Ele ficará feliz em recuperá-las. Muito feliz, neh?

- Ah so! Não minha idéia, Omi-san - disse Blackthorne. - Omi-san idéia.

- Claro. Obrigado, Anjin-san. O senhor é um bom amigo e sua mente é rápida. Eu devia ter pensado nisso sozinho. Sim, o senhor é um bom amigo e todos nós precisaremos de amigos nos próximos meses. A guerra está conosco agora, queiramos ou não.

- Por favor? Sinto muito. Não compreendo, falar depressa demais. Por favor, desculpe.

- Contente de sermos amigos... o senhor e eu. Compreende?

- Hai. O senhor diz guerra? Guerra agora?

- Logo. O que podemos fazer? Nada. Não se preocupe. Toranaga-sama dominará Ishido e os traidores. Essa é a verdade, compreende? Não se preocupe, neh?

- Compreender. Eu vou agora, minha casa. Está bem?

- Sim. Vejo-o ao amanhecer. Novamente obrigado.

Blackthorne assentiu. Mas não foi embora. - Ela é bonita, neh?

O quê?

- Kiku-san. - As pernas de Blackthorne estavam ligeiramente separadas e ele estava pronto para saltar para trás e sacar a pistola, apontar e atirar. Lembrava-se com clareza absoluta da inacreditável rapidez com que Omi decapitara o primeiro aldeão, muito tempo atrás, e se preparou do melhor modo que pôde. Raciocinou que sua única segurança estava em precipitar o assunto de Kiku. Omi nunca o faria. Omi consideraria impensável essa falta de educação. E, muito envergonhado com a própria fraqueza, Omi trancaria esse ciúme muito não-japonês num compartimento secreto. Como era estranho e vergonhoso, esse ciúme apodreceria até que, quando menos se esperasse, Omi explodisse cega e ferozmente.

- Kiku-san? - disse Omi.

- Hai. - Blackthorne podia ver que Omi estava petrificado. Ainda assim, ficou contente de ter escolhido o momento e o lugar. - Ela é bonita, neh?

- Bonita?

- Hai.

A chuva aumentou. As pesadas gotas respingavam na lama. Os cavalos arrepiavam desconfortavelmente. Os dois homens estavam encharcados, mas a chuva era quente.

- Sim - disse Omi. - Kiku-san é muito bonita - e pronunciou uma torrente de palavras que Blackthorne não assimilou.

- Não palavras suficientes agora, Omi-san... não suficientes para falar claro agora - disse Blackthorne. - Mais tarde, sim. Não agora. Compreende?

Omi não pareceu ter ouvido. Depois disse: - Há muito tempo, Anjin-san, muito tempo para falar sobre ela, e sobre o senhor, eu e karma. Mas concordo, este não é o momento, neh?

- Acho compreender. Sim. Ontem não saber Omi-san e Kiku-san bons amigos - disse ele, forçando o ataque.

- Ela não é minha propriedade.

- Não saber o senhor e ela muito amigos. Agora...

- Agora vá embora. O assunto está encerrado. A mulher não é nada. Nada.

Obstinado, Blackthorne continuou onde estava. - Próxima vez eu...

-- Esta conversa está encerrada! Não ouviu? Acabada! - lyé! Iyé, por Deus!

A mão de Omi foi para a sua espada. Blackthorne saltou dois passos para trás sem perceber. Mas Omi não sacou a arma e Blackthorne não puxou a espada. Os dois homens se prepararam, embora nenhum dos dois quisesse começar.

- O que quer dizer, Anjin-san?

- Próxima vez, primeiro eu pergunto ... sobre Kiku-san. Se Omi-san dizer sim... sim. Se não... não! Compreende? Amigo para amigo, neh?

Omi relaxou ligeiramente a mão sobre a espada. - Repito: ela não é minha propriedade. Obrigado por me ter mostrado este lugar, Anjin-san. Adeus.

- Amigo?

- Claro. - Omi dirigiu-se para o cavalo de Blackthorne e segurou as rédeas. Blackthorne saltou para a sela.

Olhou para Omi. Se pudesse sair ileso, sabia que teria estourado a cabeça do samurai agora. Seria o rumo mais seguro. - Adeus, Omi-san, e obrigado.

- Adeus, Anjin-san. - Omi observou Blackthorne se afastando e não voltou as costas até que ele estivesse sobre a elevação. Marcou o lugar exato na fenda com algumas pedras e depois, perturbado, acocorou-se para esperar, esquecido do dilúvio.

Logo chegaram Mura e os camponeses, salpicados de lama.

- Toranaga-sama caiu no abismo exatamente neste ponto, Mura. As suas espadas estão enterradas aqui. Traga-as a mim ao crepúsculo.

- Sim, Omi-sarna.

- Se você tivesse miolos, se estivesse interessado em mim, seu suserano, já teria feito isso.

- Por favor, desculpe a minha estupidez.

Omi foi embora. Os homens o observaram brevemente, depois se espalharam num círculo em torno das pedras, e começaram a cavar.

Mura baixou a voz. - Uo, você irá com o comboio de bagagem.

Sim, Mura-san. Mas como?

- Vou oferecê-lo ao Anjin-san. Ele não vai notar diferença alguma.

- Mas a consorte dele, oh ko, vai - sussurrou Uo.

Ela não vai com ele. Ouvi dizer que as queimaduras são graves. Ela irá de navio para Yedo mais tarde. Você sabe o que fazer?

- Procurar o santo padre em particular, responder a todas as perguntas.

- Sim. - Mura descontraiu-se e começou a conversar normalmente. - Você pode ir com o Anjin-san, Uo, ele pagará bem. Faça-se útil, mas não demais, ou ele o levará até Yedo.

Uo riu. - Ei, ouvi dizer que Yedo é tão rica que todo mundo mija em potes de prata, até os etas. E as mulheres têm a pele como espuma do mar, sem pêlos púbicos.

- É verdade, Mura-san? - perguntou outro aldeão. - Elas não têm pelinhos?

- Yedo era só uma fedorenta aldeiazinha de pesca, nada de tão bom quanto Anjiro, quando estive lá a primeira vez - contou-lhes Mura, sem parar de cavar. - Isso foi com Toranagasama, quando estávamos todos dando caça aos Beppu. Cortamos mais de três mil cabeças. Quanto aos pêlos, todas as garotas que conheci os tinham, menos uma da Coréia, mas ela disse que os arrancara, um a um.

- O que algumas mulheres não fariam para nos atrair, hein? - disse alguém.

- Sim. Mas eu gostaria de ver isso - disse Ninjin desdentadamente. - Sim, gostaria de ver um Portão de Jade sem um bosque.

- Eu apostaria um barco carregado de peixe contra um balde de merda como dói arrancar todos aqueles pêlos. - Uo assobiou.

- Quando eu for um kami, vou morar no Pavilhão do Paraíso de Kiku-san! Dizem que ela nasceu perfumada e sem pêlos!

Em meio à risada, Uo perguntou: - Fez alguma diferença, Mura-san, atacar o Portão de Jade sem o bosque?

- Foi o mais próximo que eu já consegui chegar. Iiiiih! Cheguei mais perto e mais fundo do que nunca, e isso é importante, neh? Por isso sei que é sempre melhor que a garota tire o bosque, embora algumas sejam supersticiosas com relação a isso e outras se queixem da coceira. Fica mais perto para a gente, e muito mais para ela... e chegar perto faz toda a diferença, neh? - Eles riram e se abraçaram sobre a escavação. O buraco crescia sob a chuva.

- Aposto como o Anjin-san chegou mais perto a noite passada, para que ela ficasse ao portão daquele jeito! Iüih, o que eu não daria para ter sido ele. - Uo enxugou o suor da testa. Como todos os demais, usava apenas uma tanga e um chapéu cônico de bambu, e estava descalço.

- Iiiiih! Eu estava lá, Uo, na praça, e vi tudo. Vi o sorriso dela e o senti descer até a minha Fruta e os meus artelhos.

- Sim - disse outro. - Tenho que admitir que só o sorriso dela me deixou duro como um remo.

- Mas não tão grande quanto o do Anjin-san, hein, Murasan? - casquinou Uo. - Vamos, conte-nos a história de novo.

Alegremente Mura aquiesceu e contou sobre a primeira noite e a casa de banho. A história melhorara à medida que fora sendo repetida, mas nenhum deles se importava.

- Oh, ser tão imenso! - Uo fez de conta que carregava uma gigantesca ereção à sua frente, e riu tanto que escorregou na lama.

- Quem teria imaginado que o bárbaro estrangeiro sairia do buraco para o paraíso? - Mura curvou-se sobre a sua pá um instante, recobrando fôlego. - Eu nunca teria acreditado... como uma lenda antiga. Karma, neh?

- Talvez ele tenha sido um de nós, numa vida anterior, e tenha voltado com a mesma mente mas uma pele diferente.

Ninjin assentiu. - Isso é possível. Deve ser... porque, pelo que disse o santo padre, eu pensei que ele estaria ardendo na fornalha do Diabo há muito tempo. O padre não disse que rogaria uma praga especial nele? Eu o ouvi invocar a vingança do grande kami Jesus sobre o Anjin-san e, oh ko, até eu fiquei muito assustado. - Persignou-se e os outros mal notaram isso. - Mas Jesus Cristo, Nossa Senhora, Deus punem seus inimigos muito estranhamente, se é que vocês querem saber a minha opinião.

- Bem - disse Uo -, eu não sou cristão, como vocês bem sabem, mas, sinto muito, parece-me que o Anjin-san é um bom homem, por favor, desculpem-me, e melhor do que o padre cristão, que fedia, praguejava e assustava todo mundo. E ele tem sido bom conosco, neh? Trata bem a sua gente... alguns dizem que ele é amigo do Senhor Toranaga, deve ser com todas as honrarias, neh? E não se esqueçam de que Kiku-san o honrou com o seu Rego de Ouro.

- É de ouro, sim. Ouvi dizer que a noite lhe custou cinco kobans!

- Quinze kokus por uma noite? - exclamou Ninjin. - Iiiiiih, que sorte o Anjin-san tem! Tem um kami ótimo para um inimigo de Deus Pai, Filho, e Nossa Senhora.

- Ele pagou um koban, três kokus - disse Mura. - Mas se vocês acham que isso é muito. . . - Parou e olhou em torno com ar de conspiração, para se certificar de que não havia ouvidos clandestinos, embora soubesse, é claro, que com aquela chuva não haveria nenhum -- e mesmo que houvesse, que importava?

Todos pararam e se aproximaram. - Sim, Mura-san?

- Simplesmente ouvi dizer que ela vai ser consorte do Senhor Toranaga. Ele comprou o contrato dela esta manhã. Três mil kokus.

Era uma cifra assustadora, mais do que a aldeia inteira ganhava com peixe e arroz em vinte anos. O respeito por Kiku aumentou, se é que isso era possível. E pelo Anjin-san, que fora portanto o último homem na terra a desfrutar dela como cortesã de primeira classe.

- Iiiiih! - resmungou Uo, falando com 8ificuldade. - Tanto dinheiro... não sei se quero vomitar, mijar ou peidar.

- Não faça nenhuma das três coisas - disse Mura laconicamente. - Cave. Vamos encontrar as espadas.

Obedeceram, cada um perdido nos próprios pensamentos. Inexoravelmente o buraco se aprofundava.

Logo Ninjin, ardendo de preocupação, não conseguiu mais se conter e parou de cavar. - Mura-san, por favor, desculpe-me, mas o que decidiu sobre as novas taxas? - perguntou. Os outros pararam.

Mura continuou cavando no seu ritmo metódico, esfalfante. - O que há para decidir? Yabu-sama diz paguem, nós pagamos, neh?

- Mas Toranaga-sama reduziu os nossos impostos para quatro partes sobre dez e ele é o nosso suserano agora.

- Verdade. Mas o Senhor Yabu recebeu Izu de volta, e Suruga e Totomi junto, e se tornou governador de novo, portanto quem é o nosso suserano?

- Toranaga-sama. Certamente, Mura-san, Tora...

- Você vai se queixar para ele, Ninjin? Hein? Acorde, Yabu-sama é governador como sempre foi. Nada mudou. E se ele sobe os impostos, pagamos mais impostos. Está acabado!

- Mas isso vai levar todos os nossos estoques de inverno. Tudo. - A voz de Ninjin era um lamento enraivecido, mas todos eles sabiam da verdade do que ele dissera. - Mesmo com o arroz que roubamos ...

- O arroz que poupamos! - sibilou Uo, corrigindo-o.

- Mesmo com isso, não haverá o suficiente para durar todo o inverno. Teremos que vender um bote ou dois.

- Não venderemos bote algum - disse Mura. Espetou a pá na lama e enxugou o suor de sobre os olhos, reamarrou o cordão do chapéu com mais firmeza. Depois começou a cavar de novo. - Trabalhe, Ninjin. Isso lhe desviará a mente do amanhã.

- Como agüentamos o inverno, Mura-san?

- Ainda temos que atravessar o verão.

- Sim - concordou Ninjin amargamente. - Pagamos mais de dois anos de impostos adiantados e ainda não é suficiente. - Karma, Ninjin - disse Uo.

- A guerra se aproxima. Talvez tenhamos um novo senhor que seja mais justo, neh? - disse outro. - Não pode ser pior... ninguém poderia ser pior.

- Não apostem nisso - disse Mura a todos. - Vocês estão vivos ... mas podem estar totalmente mortos rapidamente e então não haverá mais Regos de Ouro, com ou sem bosque. - Sua pá atingiu a rocha e ele parou. - Dê-me uma mão, Uo, amigo velho.

Juntos tiraram a rocha à força da lama. Um cochichou ansiosamente: - Mura-san, e se o santo padre perguntar sobre as armas?

- Conte-lhe. E diga-lhe que estamos prontos... que Anjiro está pronta.

 

Chegaram a Yokosé pelo meio-dia. Buntaro já havia interceptado Zataki na noite anterior e, conforme ordenara Toranaga, dera-lhe as boas-vindas com grande formalidade. - Pedi-lhe que acampasse fora da aldeia, ao norte, senhor, até que o local de encontro pudesse ser preparado - disse Buntaro. - A reunião formal ocorrerá aqui esta tarde, se lhe aprouver - acrescentou, inexpressivo. - Achei que a hora do Bode seria auspiciosa.

- Bom.

- Ele queria encontrá-lo esta noite, mas eu rejeitei isso. Disse-lhe que o senhor ficaria "honrado" em encontrá-lo hoje ou amanhã, como ele quisesse, mas não após escurecer.

Toranaga grunhiu uma aprovação, mas continuou montado no seu cavalo coberto de suor. Usava um peitoral de armas, elmo, e uma leve armadura de bambu, assim como a sua escolta, igualmente esgotada pela viagem. Novamente olhou em torno com cuidado. A clareira fora muito bem escolhida, sem possibilidade alguma de emboscada. Não havia árvores ou casas nas proximidades, que pudessem ocultar arqueiros ou mosqueteiros. A leste da aldeia o terreno era plano e um pouco mais alto. Norte, oeste e sul estavam guardados pela aldeia e pela ponte de madeira que se estendia sobre o rio de curso rápido. Ali na garganta a água redemoinhava, o leito infestado de rochas. A leste, atrás dele e dos cavaleiros exaustos e transpirando, o caminho subia abruptamente o passo até o cume enevoado, a cinco ris de distância. Montanhas erguiam-se acima de tudo ao redor, muitas vulcânicas, a maioria com os picos nas nuvens. No centro da clareira, um estrado de doze esteiras fora especialmente erguido sobre colunas baixas. Cobria-o um alto dossel de junco. Os artesãos nao pareciam ter tido pressa. Duas almofadas de brocado estavam colocadas uma diante da outra sobre os tatamis.

- Tenho homens ali, ali e ali - continuou Buntaro, apontando com o arco para todos os penhascos que davam para o vale. - O senhor pode vê-los a muitas ris em todas as direções, senhor. Boas posições de defesa - a ponte e a aldeia inteira estão cobertas. A leste a sua retirada está garantida por mais homens. É claro que a aldeia está bem vigiada por sentinelas, e deixei uma "guarda de honra" de cem homens no acampamento dele.

- O Senhor Zataki está lá agora?

- Não, senhor. Escolhi uma hospedaria para ele e seus escudeiros nos arredores da aldeia, a norte, digna da posição dele, e convidei-o a desfrutar dos banhos lá mesmo. A hospedaria é isolada e está protegida. Sugeri que o senhor iria à nascente Shuzenji amanhã e ele seria seu convidado. - Buntaro indicou uma hospedaria de um andar na extremidade da clareira, que dava para a melhor vista, perto de uma fonte pequena que efervescia da rocha num banho natural. - Aquela hospedaria é sua, senhor. - Em frente da estalagem, estava um grupo de homens, todos ajoelhados, de cabeça bem baixa, curvados imóveis na direção deles. - São o chefe e os anciãos da aldeia. Eu não sabia se o senhor iria querer vê-los imediatamente.

- Mais tarde. - O cavalo de Toranaga relinchou, cansado, e sacudiu a cabeça, os freios retinindo. Ele o afagou e, agora totalmente satisfeito com a segurança, fez sinal a seus homens e desmontou. Um dos samurais de Buntaro segurou-lhe as rédeas - o samurai, como Buntaro e todos eles, de armadura, armado para combate, e de prontidão.

Toranaga espreguiçou-se e fez flexões para relaxar os músculos com cãibras das costas e das pernas. Viera na dianteira desde Anjiro em marcha forçada, parando apenas para trocar as montarias. O resto do comboio de bagagem, sob o comando de Omi - palanquins e carregadores -, ainda estava bem longe, enfileirado na estrada que descia do cume. A estrada de Anjiro serpeava ao longo da costa, depois se ramificava. Eles haviam tomado o caminho oeste, para o interior, e subido resolutamente através de florestas luxuriantes com caça abundante, o monte Omura à direita, os picos da cordilheira vulcânica Amagi à esquerda, elevando-se quase a cinco mil pés. A cavalgada o havia alegrado - finalmente um pouco de ação! Parte da jornada fora através de uma região tão boa para falcoar, que ele se prometeu que um dia caçaria por toda Izu.

- Bom. Sim, muito bom - disse ele por sobre o alarido dos seus homens desmontando e tagarelando e se separando. - Você agiu bem.

- Se me quiser honrar, senhor, rogo-lhe que me permita destruir o Senhor Zataki e seus homens imediatamente. - Ele o insultou?

- Não... pelo contrário, seus modos foram dignos de um cortesão, mas a bandeira sob a qual ele viaja é uma traição contra o senhor.

- Paciência. Quantas vezes tenho que lhe dizer? - disse Toranaga, sem grosseria.

- Tenho medo sempre, senhor - replicou Buntaro, asperamente. - Por favor, desculpe-me.

- Você costumava ser amigo dele.

- Ele costumava ser seu aliado.

- Ele lhe salvou a vida em Odawara.

- Estávamos do mesmo lado em Odawara - disse Buntaro gelidamente, depois explodiu: - Como ele pode lhe fazer isso, senhor? Seu próprio irmão! O senhor não o favoreceu, não lutou do mesmo lado que ele, a vida toda?

- As pessoas mudam. - Toranaga concentrou toda a atenção no estrado. Delicadas cortinas de seda tinham sido penduradas às vigas sobre a plataforma como decoração. Borlas ornamentais de brocado, combinando com as almofadas, formavam um friso agradável, e dos quatro pilares dos cantos pendiam borlas maiores. - Está rico demais e dá ao encontro importância excessiva - disse ele. - Deixe-o mais simples. Remova as cortinas, todas as borlas e almofadas, devolva-as aos mercadores, e se eles não derem o dinheiro de volta ao mestre quarteleiro, diga-lhe que as venda. Providencie quatro almofadas, não duas, simples, de palha.

- Sim, senhor.

O olhar de Toranaga deu com a fonte e ele se aproximou de lá. A água, fumegante e sulfurosa, chiava quando ele se aproximou de uma fenda nas rochas. Seu corpo doía por um banho. - E o cristão? - perguntou.

- Senhor?

- Tsukku-san, o padre cristão?

- Oh, ele! Está em algum lugar na aldeia, mas do outro lado da ponte. Está proibido de vir a este lado sem a sua permissão. Por quê? É importante? Ele disse alguma coisa sobre como ficaria honrado em vê-lo, quando fosse conveniente. O senhor o quer aqui agora?

- Ele está sozinho?

Buntaro fez um muxoxo. - Não. Tem uma escolta de vinte acólitos, todos tonsurados como ele. Todos homens de Kyushu, senhor, todos bem-nascidos e todos samurais. Todos bem montados, mas sem armas. Mandei revistá-los completamente.

- E ele?

- Claro que a ele também, mais que a qualquer outro. Havia quatro pombos-correio na sua bagagem. Confisquei-os.

- Bom. Destrua-os ... Algum imbecil fez isso por engano, sinto muito, neh?

- Compreendo. Quer que eu mande buscá-lo agora? - Mais tarde. Vê-lo-ei mais tarde.

Buntaro franziu o cenho. - Foi errado revistá-lo?

Toranaga meneou a cabeça e distraidamente olhou para trás, para o cume da montanha, perdido em pensamento. Depois disse: - Mande um par de homens em quem possamos confiar vigiar o Regimento de Mosquetes.

- Já fiz isso, senhor. - O rosto de Buntaro acendeu-se com uma satisfação austera. - E a guarda pessoal do Senhor Yabu contém alguns dos nossos ouvidos e olhos. Ele não vai poder peidar sem que o senhor saiba, se for esse o seu desejo.

- Bom. - A cabeça do comboio de bagagem, ainda bem distante, contornou uma curva no caminho sinuoso. Toranaga podia ver os três palanquins, Omi cavalgando na liderança, conforme o ordenado, o Anjin-san ao seu lado, também cavalgando com desembaraço.

Toranaga deu-lhes as costas. - Trouxe sua esposa comigo. - Sim, senhor.

- Ela está me pedindo permissão para ir a Osaka.

Buntaro encarou-o, mas não disse nada. Depois olhou de soslaio para as figuras discerníveis.

- Dei-lhe a minha aprovação... desde que, naturalmente, você também aprove.

- Tudo o que o senhor aprovar, eu aprovarei - disse Buntaro.

- Posso permitir-lhe que vá por terra, de Mishima, ou que acompanhe o Anjin-san até Yedo, e vá de lá para Osaka, por mar. O Anjin-san concordou em ser responsável por ela. .. se você aprovar.

- Seria mais seguro por mar - Buntaro estava ardendo por dentro.

- Tudo depende da mensagem do Senhor Zataki. Se Ishido declarou formalmente guerra contra mim, então é claro que devo proibi-lo. Senão, sua esposa pode seguir amanhã ou depois de amanhã, se você aprovar.

- Concordo com qualquer coisa que o senhor decida.

- Esta tarde transfira os seus deveres a Naga-san. É um bom momento para você e sua esposa fazerem as pazes.

- Por favor, desculpe-me, senhor. Devo ficar com os meus homens. Imploro-lhe que me deixe com os meus homens. Até que o senhor esteja longe, em segurança.

- Esta noite você transferirá seus deveres ao meu filho. Você e sua esposa se reunirão a mim à refeição noturna. Ficarão na hospedaria. Farão as pazes.

Buntaro olhava fixamente para o chão. Depois disse, ainda mais rígido: - Sim, senhor.

- Ordeno-lhe que tente fazer as pazes - disse Toranaga. Pretendia acrescentar "uma paz honrosa é melhor do que a guerra, neh?" Mas isso não era verdade, poderia ter dado início a uma discussão filosófica, e ele estava cansado e não queria discussões, apenas um banho e repouso. - Agora vá buscar o chefe da aldeia!

O cabeça e os anciãos da aldeia caíram uns sobre os outros na sua pressa de se curvar diante dele, dando-lhe as boas-vindas do modo mais extravagante. Toranaga disse-lhes bruscamente que a conta que apresentariam ao seu mestre quarteleiro quando ele partisse naturalmente seria justa e razoável. - Neh?

- Hai - disseram em coro humildemente, abençoando os deuses pela inesperada boa fortuna e pelos gordos lucros que aquela visita inevitavelmente lhes traria. Com muitas mesuras e cumprimentos mais, dizendo de como estavam orgulhosos e honrados de poderem servir ao maior daimio do império, o chefe da aldeia, um velho alegre, conduziu-o até a hospedaria.

Toranaga inspecionou-a completamente por entre multidões de mesuras, criadas sorridentes de todas as idades, a nata da aldeia. Havia dez aposentos em torno de um jardim indefinível, com uma pequena casa de chá no centro, cozinhas nos fundos e, a oeste, aninhada nas rochas, uma grande casa de banho alimentada pelas fontes naturais. A hospedaria inteira era rodeada por uma cerca caprichada - um caminho coberto levava ao banho - e fácil de defender.

- Não necessito da hospedaria inteira, Buntaro-san - disse ele, novamente em pé na varanda. - Três aposentos serão suficientes: um para mim, um para o Anjin-san e um para as mulheres. Fique você com um quarto. Não há necessidade de pagar pelo resto.

- O meu mestre quarteleiro diz que fez um negócio muito bom pela hospedaria inteira, senhor, dia a dia, melhor do que metade do preço, e ainda está fora de estação. Aprovei o custo, por causa da sua segurança.

- Muito bem - concordou Toranaga relutante. – Mas quero ver a conta antes de partirmos. Não há necessidade de desperdiçar dinheiro. É melhor encher os quartos com guardas, quatro em cada aposento.

- Sim, senhor. - Buntaro já havia decidido fazer isso. Observou Toranaga afastar-se a passos largos com dois guardacostas, rodeado pelas quatro criadas mais bonitas, indo para o seu quarto na ala leste. Que mulheres? perguntou-se ele, sombriamente. Que mulheres precisavam do quarto? Fujiko? Não importa, pensou, cansado, logo saberei.

Uma criada passou alvoroçada. Sorriu-lhe, alegre, e ele retribuiu mecanicamente. Era jovem, bonita, tinha uma pele macia, e ele dormira com ela na noite anterior. Mas a união não lhe dera prazer, e embora ela fosse hábil, animada e bem treinada, a luxúria dele desaparecera - ele nunca sentira desejo por ela. Finalmente, por causa das boas maneiras fingira atingir o auge, assim como ela fingira, para deixá-lo logo depois.

Ainda meditando saiu do pátio, para apreciar a estrada.

Por que Osaka?

À hora do Bode, as sentinelas da ponte se afastaram para o lado. O cortejo começou a passar. Primeiro vinham batedores portando bandeiras decoradas com o todo-poderoso emblema dos regentes, depois o rico palanquim, e finalmente mais guardas.

Aldeãos se curvaram, todos de joelhos. Tanta riqueza e pompa os deixava secretamente curiosos. Precavidamente o chefe da aldeia perguntara se devia reunir toda a sua gente para honrar a ocasião. Toranaga mandara uma mensagem dizendo que todos os que não estivessem trabalhando poderiam assistir, com a permissão dos respectivos amos. Então o chefe, com cautela ainda maior, selecionara uma delegação que incluía velhos e jovens obedientes, exatamente o suficiente para fazer uma demonstração - embora todos os adultos tivessem gostado de estar presentes -, mas não o suficiente para ir contra as ordens do grande daimio. Todos os que podiam estavam assistindo às escondidas, por trás de janelas e portas.

Saigawa Zataki, senhor de Shinano, era mais alto do que Toranaga, e cinco anos mais jovem, com a mesma largura de ombros e nariz proeminente. Mas tinha o estômago chato, a barba curta, preta e densa, os olhos meras fendas no rosto. Embora parecesse haver uma fantástica semelhança entre os meios irmãos quando estavam longe, agora que estavam juntos eram absolutamente diferentes. O quimono de Zataki era luxuoso, a armadura cintilante e cerimonial, as espadas bem usadas.

- Bem-vindo, irmão - Toranaga avançou do estrado e se curvou. Estava usando o mais simples dos quimonos e sandálias de palha de soldado. E as espadas. - Por favor, desculpe-me por recebe-lo assim informalmente, mas vim tão depressa quanto pude.

- Por favor, desculpe-me por incomodá-lo. Está com boa aparência, irmão. Muito boa. - Zataki desceu do palanquim e retribuiu a reverência dando início às intermináveis e meticulosas formalidades do cerimonial que agora dirigia a ambos.

- Por favor, tome esta almofada, Senhor Zataki.

- Por favor, desculpe-me, eu ficaria honrado se o senhor se sentasse primeiro, Senhor Toranaga.

- É muito gentil. Mas, por favor, honre-me sentando-se primeiro.

Continuaram com o jogo que já haviam jogado tantas vezes, um com o outro e com os amigos e inimigos, ascendendo a escada do poder, apreciando as regras que governavam cada movimento e cada frase, que protegiam a honra individual de cada um, de modo que nenhum deles pudesse cometer um engano, se comprometer ou comprometer a missão.

Finalmente sentaram-se um diante do outro sobre as almofadas, à distância de duas espadas um do outro. Buntaro postou-se atrás à esquerda de Toranaga. O principal assistente de Zataki, um velho samurai grisalho, também se pôs atrás, à esquerda do amo. Em torno do estrado, a vinte passos, estavam samurais de Toranaga, sentados em fileiras, todos deliberadamente ainda vestidos com os trajes de viagem, mas com as armas em perfeitas condições. Omi estava sentado no chão à extremidade do estrado, Naga no lado oposto. Os homens de Zataki estavam vestidos formalmente, e ricamente, as capas imensas e com ombros em forma de asas presas com fivelas de prata. Mas estavam igualmente bem armados. Acomodaram-se, também a vinte passos de distância.

Mariko serviu o chá cerimonial e houve uma conversa formal e inócua entre os dois irmãos. No momento correto, Mariko curvou-se e saiu, Buntaro doloridamente consciente da presença dela e imensamente orgulhoso da sua graça e beleza. Depois, cedo demais, Zataki disse bruscamente: - Trouxe ordens do conselho de regentes.

Um silêncio repentino caiu sobre a área. Todos, até os seus homens, ficaram agastados com a falta de modos de Zataki, com o modo insolente como dissera "ordens" e não "mensagem", e com a sua falha não esperando que Toranaga perguntasse "Como posso ser-lhe útil?", conforme exigia o cerimonial.

Naga disparou os olhos do braço da espada de Zataki para o pai. Viu o rubor no pescoço de Toranaga, o que era sinal infalível de uma explosão iminente. Mas o seu rosto continuou tranqüilo, e Naga ficou atônito quando ouviu a resposta controlada: - Desculpe, o senhor tem ordens? Para quem, Irmão? Certamente tem uma mensagem?

Zataki sacou com violência dois pequenos rolos da manga. A mão de Buntaro quase disparou para a espada à espera ante a rapidez inesperada, pois o ritual exigia que todos os movimentos fossem lentos e calculados. Toranaga não se movera.

Zataki rompeu o selo do primeiro rolo e leu numa voz alta, insensível: - "Por ordem do conselho de regentes, em nome do Imperador Go-Nijo, o Filho do Céu: saudamos nosso ilustre vassalo Yoshi-noh-Minowara e convidamo-lo a prestar obediência diante de nós em Osaka, incontinenti, e convidamo-lo a informar o nosso ilustre embaixador, o regente Senhor Saigawa Zataki, se o nosso convite é aceito ou recusado - incontinenti".

Levantou os olhos e, em voz igualmente alta, continuou: - Está assinado por todos os regentes e selado com o Grande Selo do reino. - Com arrogância, colocou o rolo diante dele. Toranaga fez sinal a Buntaro, que avançou, curvou-se profundamente para Zataki, pegou o rolo, voltou-se para Toranaga, curvouse de novo. Toranaga aceitou o rolo e fez sinal a Buntaro que voltasse a seu lugar.

Toranaga estudou o rolo interminavelmente.

- Todas as assinaturas são autênticas - disse Zataki. - O senhor aceita ou recusa?

Numa voz controlada, de modo que apenas os que estavam no estrado e Omi e Naga pudessem ouvi-lo, Toranaga disse:

- Por que eu não lhe tiro a cabeça pelas maneiras abomináveis? - Porque sou filho de minha mãe - replicou Zataki. - Isso não o protegerá se continuar assim. - Então ela morrerá antes do tempo. - O quê?

- A senhora nossa mãe encontra-se em Takato. - Takato era a inexpugnável fortaleza e capital de Shinano, a província de Zataki. - Lamento que o corpo dela tenha que permanecer lá para sempre.

- Blefe! Você a honra tanto quanto eu.

- Pelo espírito imortal dela, Irmão, por mais que a honre, detesto ainda mais o que você está fazendo ao reino.

- Não viso a mais território e...

- Você visa a destruir a sucessão.

- Está errado de novo, e sempre protegerei o meu sobrinho de traidores.

- Você visa à queda do herdeiro. É nisso que acredito e por isso resolvi continuar vivo e fechar Shinano e a estrada nordeste contra você, custe o que custar, e continuarei a fazer isso até que o Kwanto esteja em mãos amistosas, custe o que custar.

- Nas suas mãos, Irmão?

- Quaisquer mãos seguras, o que exclui as suas, Irmão.

- Confia em Ishido?

- Não confio em ninguém, você me ensinou isso. Ishido é Ishido, mas a lealdade dele é inquestionável. Até você admitirá isso.

- Admitirei que Ishido está tentando me destruir e dividir o reino, que usurpou o poder e que está infringindo o testamento do táicum.

- Mas você tramou com o Senhor Sugiyama para aniquilar o conselho de regentes. Neh?

A veia da testa de Zataki latejava como um verme preto. - O que você pode dizer? Um dos conselheiros dele admitiu a traição: que você conspirou com Sugiyama para que ele aceitasse o Senhor Ito no seu lugar, depois renunciasse na véspera da primeira reunião e fugisse à noite, e assim lançasse o reino em confusão. Ouvi a confissão... Irmão.

- Você foi um dos assassinos?

Zataki corou. - Ronins fanáticos mataram Sugiyama, não eu, nem qualquer dos homens de Ishido!

- Curioso que você tenha tomado o lugar dele como regente tão depressa, neh?

- Não. Minha linhagem é tão antiga quanto a sua. Mas não ordenei essa morte, nem Ishido. Ele jurou isso pela sua honra de samurai. Eu também. Os ronins mataram Sugiyama, mas ele merecia morrer.

- Por tortura, desonrado numa cela imunda, seus filhos e consortes esquartejados diante dele?

- Isso é um boato espalhado por descontentes infames, talvez pelos seus espiões, para desacreditar o Senhor Ishido e, através dele, a Senhora Ochiba e o herdeiro. Não há prova disso.

- Olhe os corpos deles.

- Os ronins incendiaram a casa. Não há corpos.

- Muito conveniente, neh? Como é que você pode ser tão crédulo? Você não é um camponês estúpido!

- Recuso-me a sentar aqui e ouvir esse lixo. Dê-me a sua resposta agora. E então ou me tire a cabeça, e ela morre, ou deixe-me ir. - Zataki inclinou-se para a frente. - Poucos momentos depois de a minha cabeça ter rolado dos ombros, dez pomboscorreio estarão voando para o norte, em direção a Takato. Tenho homens de confiança ao norte, leste e oeste, a um dia de marcha daqui, fora do seu alcance, e se eles falharem, há mais homens em segurança do outro lado das suas fronteiras. Se você me tirar a cabeça, mandar me assassinar ou se eu morrer em Izu - seja qual for a razão -, ela também morrerá. Agora, ou você me corta a cabeça ou vamos terminar a entrega dos rolos e parto imediatamente de Izu. Escolha!

- Ishido assassinou o Senhor Sugiyama. Oportunamente lhe darei a prova. Isso é importante, neh? Só preciso de um pouco ...

- Você não tem mais tempo! "Incontinenti", diz a mensagem. Claro que se você se recusar a obedecer, ótimo, assim será feito. Olhe - Zataki colocou o segundo rolo sobre os tatamis -, aqui está o seu impedimento formal e a ordem para cometer seppuku, que você tratará com desprezo igual - que Buda o perdoe! Agora está tudo feito. Partirei imediatamente, e na próxima vez que nos virmos será num campo de batalha, e por Buda, antes do pôr-do-sol desse dia, prometi a mim mesmo que verei a sua cabeça na ponta de um chuço.

Toranaga mantinha os olhos fixos no adversário. - O Senhor Sugiyama era seu amigo e meu. Companheiro nosso, um samurai tão honrado quanto jamais existiu. A verdade sobre a morte dele deveria ser de importância para você.

- A sua tem mais importância, Irmão.

- Ishido o sugou como um bebê faminto na teta da mãe.

Zataki voltou-se para o seu conselheiro. - Pela sua honra de samurai, eu postei homens e qual é a mensagem?

O velho samurai, grisalho e digno, chefe dos confidentes de Zataki, e bem conhecido de Toranaga como homem honrado, sentia-se aborrecido e envergonhado pela ruidosa demonstração de ódio, assim como todos os que ouviam. - Sinto muito, senhor - disse ele, num sussurro sufocado, curvando-se para Toranaga -, mas meu amo, naturalmente, está dizendo a verdade. Como se poderia questionar isso? E, por favor, desculpe-me, mas é meu dever, com toda a honra e humildade, assinalar-lhes que... essa falta de polidez tão surpreendente e vergonhosa, entre os senhores, não é digna da sua posição nem da solenidade desta ocasião. Se os seus vassalos... se pudessem ter ouvido ... duvido que qualquer um dos senhores pudesse tê-los contido. Esqueceram-se do seu dever como samurais e do seu dever para com os seus homens. Por favor, desculpem-me - ele se curvou para os dois -, mas isto tinha que ser dito. - E acrescentou: - Todas as mensagens foram idênticas, Senhor Toranaga, e sob o selo oficial do Senhor Zataki: "Matem a senhora minha mãe imediatamente".

- Como posso provar que não estou tentando destruir o herdeiro? - perguntou Toranaga ao irmão.

- Abdique imediatamente de todos os seus títulos e poder em favor do seu filho e herdeiro, o Senhor Sudara, e cometa seppuku hoje. Então eu e os meus homens, até o último, apoiaremos Sudara como senhor do Kwanto.

- Considerarei o que você disse.

- Hein?

- Considerarei o que você disse - repetiu Toranaga com mais firmeza. - Encontramo-nos amanhã à mesma hora, se lhe aprouver.

O rosto de Zataki contorceu-se. - Isso é mais um dos seus truques? O que há para justificar outro encontro?

- O que você disse e isto - Toranaga levantou o rolo que tinha na mão. - Dar-lhe-ei a minha resposta amanhã.

- Buntaro-san! - Zataki apontou o segundo rolo. - Por favor, dê isto ao seu amo.

- Não! - A voz de Toranaga repercutiu em torno da clareira. Depois, com grande cerimônia, acrescentou alto: - Fico formalmente honrado em aceitar a mensagem do conselho e submeterei a minha resposta ao seu ilustre embaixador, meu irmão, o senhor de Shinano, amanhã a esta hora.

Zataki encarou-o desconfiado. - Que possível resp...

- Por favor, desculpe-me, senhor -- interrompeu o velho samurai baixinho, com uma dignidade grave, novamente mantendo a conversa em particular -, sinto muito, mas o Senhor Toranaga está perfeitamente correto em sugerir isso. E uma escolha solene que o senhor lhe deu, uma escolha que não está contida nos pergaminhos. E justo e honrado que se dê a ele o tempo que solicita.

Zataki pegou o segundo pergaminho e o empurrou de volta à manga. - Muito bem. Concordo. Senhor Toranaga, por favor, desculpe-me os maus modos. Por último, por favor, diga-me onde está Kasigi Yabu. Tenho um pergaminho para ele. Só um, no caso dele.

- Eu o mandarei ao senhor.

O falcão fechou as asas e caiu a mil pés no céu vespertino, chocando-se contra o pombo em fuga com uma explosão de penas, depois segurou-o nas garras e carregou-o para o solo, novamente caindo como uma pedra. Então, a poucos pés do chão, soltou a presa agora morta, freou furiosamente e pousou perfeitamente. - Ic-ic-ic-ic-üicc! - guinchou a ave, arrepiando as penas do pescoço com orgulho, as garras dilacerando a cabeça do pombo no seu êxtase da conquista.

Toranaga, com Naga como escudeiro, saiu a galope. O daimio deslizou da sela. Gentilmente chamou a ave de volta ao punho. Obediente, ela subiu para a luva. Imediatamente foi recompensada com um pedaço de carne de uma presa anterior. Ele lhe colocou o capuz, apertando as correias com os dentes. Naga pegou o pombo e o colocou na sacola de caça cheia pela metade que pendia da sela do seu pai, depois se voltou e chamou com gestos os batedores e guardas afastados.

Toranaga montou novamente, o falcão confortavelmente na sua luva, seguro pelos delgados pioses de couro. Ele levantou os olhos para o céu, avaliando a claridade que ainda havia.

No fim da tarde, o sol aparecera, e agora, no vale, o dia morrendo rapidamente, o sol de há muito oculto pelo pico ocidental, estava frio e agradável. As nuvens estavam tomando rumo norte, empurradas pelo vento dominante, flutuando sobre os picos das montanhas e ocultando muitos. Àquela altitude, o ar era limpo e suave.

- Devemos ter um bom dia amanhã, Naga-san. Sem nuvens, imagino. Acho que caçarei assim que amanhecer.

- Sim, Pai. - Naga o observava, perplexo, com medo de fazer perguntas como sempre, mas querendo saber tudo. Não conseguia entender como o pai podia estar tão despreocupado depois de uma reunião tão hedionda. Despedir-se de Zataki com a cerimônia devida, depois, imediatamente, convocar seus gaviões, batedores e guardas e levá-los para as colinas ondulantes além da floresta, parecia a Naga uma extraordinária demonstração de autocontrole. O simples fato de pensar em Zataki fazia a pele de Naga arrepiar-se, e ele sabia que o velho conselheiro tinha razão: se um décimo da conversa tivesse sido ouvido, os samurais teriam saltado para defender a honra dos respectivos senhores. Não fosse pela ameaça que pendia sobre a cabeça da sua venerada avó, Naga teria se atirado a Zataki pessoalmente. Acho que é por isso que meu pai é o que é, e está onde está, pensou ele...

Seus olhos perceberam cavaleiros surgindo da floresta abaixo e galopando na direção deles sobre os contrafortes ondulantes. Além do verde escuro da floresta, o rio era uma faixa negra enroscando-se. As luzes nas hospedarias piscavam como vagalumes. - Pai!

- Hein? Ah, sim, estou vendo agora. Quem são?

- Yabu-san, Omi-san e... oito guardas.

- Seus olhos são melhores do que os meus. Ah, sim, agora os reconheço.

Sem pensar, Naga disse: - Eu não teria deixado Yabu-san ir sozinho ao encontro do Senhor Zataki sem. .. - Parou e gaguejou: - Por favor, desculpe-me.

- Por que não teria mandado Yabu-san sozinho?

Naga se amaldiçoou por abrir a boca e estremeceu sob o olhar fixo de Toranaga. - Por favor, desculpe-me, mas porque eu nunca saberia que acordo secreto eles teriam feito. Ele poderia fazer isso, Pai, facilmente. Eu os teria mantido separados... por favor, desculpe-me. Não confio nele.

- Se Yabu-san e Zataki-san planejam traição pelas minhas costas, eles o farão, mande eu uma testemunha ou não. Algumas vezes é mais prudente dar linha extra à vítima... é assim que se pega um peixe, neh?

- Sim, por favor, desculpe-me.

Toranaga percebeu que o filho não havia compreendido, nunca compreenderia, seria sempre meramente um falcão para ser lançado contra um inimigo, veloz, voraz e mortalmente.

- Fico contente de que você compreenda, meu filho - disse para encorajá-lo, conhecendo-lhe as boas qualidades e valorizando-as. - Você é um bom filho - acrescentou, falando sinceramente.

- Obrigado, Pai - disse Naga, cheio de orgulho com o raro elogio. - Só espero que o senhor me perdoe minhas tolices e me ensine a servi-lo melhor.

- Você não é tolo - disse Toranaga, quase acrescentando "Yabu é que é". Quanto menos gente souber, melhor, e não é necessário esforçar a sua mente. Você é tão jovem... meu filho mais novo, não fosse o seu meio irmão, Tadateru. Quantos anos ele tem? Ah, sete, sim, deve estar com sete.

Observou um momento os cavaleiros que se aproximavam. - Como está sua mãe, Naga?

- Como sempre, a mulher mais feliz do mundo. Só me deixa vê-Ia uma vez por ano. O senhor não pode convence-la a mudar?

- Não - disse Toranaga. - Ela nunca mudará.

Toranaga sempre se animava quando pensava em ChanoTsuboné, sua oitava consorte oficial e mãe de Naga. Riu consigo mesmo ao se lembrar do humor grosseiro dela, suas faces com covinhas, o traseiro insolente, o modo como ondulava e o entusiasmo com que "travesseirava".

Fora a viúva de um fazendeiro das proximidades de Yedo, que o atraíra vinte anos atrás. Ficara com ele três anos, depois pedira permissão para retornar à terra. Ele lhe permitira ir-se. Agora vivia numa boa fazenda perto do lugar onde nascera - gorda e contente, uma monja budista, honrada por todos e sem obrigação para com ninguém. De vez em quando ia vê-Ia e então riam muito juntos, sem motivo, amigos.

- Ah, é uma boa mulher - disse Toranaga.

Yabu e Omi chegaram e desmontaram. A dez passos, pararam e se curvaram.

- Ele me deu um pergaminho - disse Yabu, enraivecido, brandindo-o. - "...Convidamo-lo a deixar Izu imediatamente e rumar para Osaka hoje, e apresentar-se no Castelo de Osaka para uma audiência, ou todas as suas terras ficam confiscadas e o senhor, conseqüentemente, declarado fora da lei." - Amarrotou o rolo na mão e atirou-o ao chão. - "Hoje"!

- Então o senhor deve partir imediatamente - disse Toranaga, repentinamente muito bem-humorado ante a truculência e estupidez de Yabu.

- Senhor, imploro-lhe - começou Omi apressadamente, caindo de joelhos -, o Senhor Yabu é seu vassalo devotado e imploro-lhe humildemente que não escarneça dele. Perdoe-me por ser tão rude, mas o Senhor Zataki ... Perdoe-me por set tão rude.

- Yabu-san, desculpe a observação, por favor, tinha a inténção de ser cordial - disse Toranaga, amaldiçoando o seu lapso.

- Devemos todos ter senso de humor ante essas mensagens, neh?

- Chamou o falcoeiro, deu-lhe a ave do punho, e dispensou a ele e aos batedores. Depois afastou todos os samurais do raio de audição, exceto Naga, acocorou-se e os mandou fazer o mesmo. - Talvez fosse melhor me contar o que aconteceu.

- Quase não há nada a contar - disse Yabu. - Fui vê-lo. Recebeu-me com o mínimo absoluto de cortesia. Primeiro houve "saudações" do Senhor Ishido e um convite brusco para me aliar secretamente a ele, planejar o seu assassinato imediato, e matar cada samurai de Toranaga em Izu. Naturalmente me recusei a ouvir, e imediatamente - imediatamente -, sem qualquer cortesia, ele me estendeu isto! - Os dedos dele apontaram beligerantemente na direção do pergaminho. - Se a sua ordem direta não o estivesse protegendo, eu o teria feito em pedaços na hora! Solicito-lhe que anule essa ordem. Não posso viver com essa vergonha. Tenho que me vingar!

- Isso foi tudo o que aconteceu?

- Não é o suficiente?

Toranaga passou por cima da rudeza de Yabu e olhou carrancudo para Omi. - Você merece ser censurado, neh? Por que não teve a inteligência de proteger melhor o seu senhor? Supõe-se que você seja um conselheiro. Deveria ter sido o escudo dele. Deveria ter levado o Senhor Zataki a falar às claras tentando descobrir o que Ishido tem em mente, qual era o suborno, que planos eles têm. Supõe-se que você seja um conselheiro de valor. Teve uma oportunidade perfeita e desperdiçou-a como um simplório inexperiente!

Omi baixou a cabeça. - Por favor, desculpe-me, senhor.

- Eu poderia desculpá-lo, mas não vejo por que o Senhor Yabu deva fazer isso. Agora tem que agir, de um modo ou de outro.

- O quê? - disse Yabu.

- Por que outro motivo acha que fiz o que fiz? Para adiar... naturalmente, para adiar - disse Toranaga.

- Mas um dia? Que valor tem um dia? - perguntou Yabu.

- Quem sabe? Um dia para nós é um dia a menos para o inimigo. - Os olhos de Toranaga relampejaram de volta a Omi. - A mensagem de Ishido foi verbal ou por escrito?

Foi Yabu quem respondeu. - Verbal, é claro.

Toranaga mantinha o olhar penetrante fixo em Omi. -

Você falhou no seu dever para com o seu senhor e para comigo. - Por favor, desculpe...

- O que foi que você disse exatamente? Omi não respondeu.

- Esqueceu-se da sua educação, também? O que foi que disse?

- Nada, senhor. Não disse nada.

- O quê?

- Ele não disse nada a Zataki porque não estava presente - rugiu Yabu. - Zataki pediu para falar comigo sozinho.

- Oh? - Toranaga ocultou o contentamento por Yabu ter tido que admitir o que ele já supunha, e que parte da verdade agora estava às claras. - Por favor, desculpe-me, Omi-san. Naturalmente presumi que você tivesse estado presente.

- O erro foi meu, senhor. Deveria ter insistido. O senhor tem razão, falhei em proteger o meu senhor - disse Omi. - Eu deveria ter sido mais enérgico. Por favor, desculpe-me. Yabusarna, por favor, desculpe-me.

Antes que Yabu pudesse responder, Toranaga disse: - É claro que você está perdoado, Omi-san. Se o seu senhor rejeitou a sua companhia, isso é privilégio dele. O senhor rejeitou, Yabu-sama?

- Sim... sim, mas não achei que tivesse importância. O senhor acha que eu ...

- Bem, o dano está feito agora. O que planeja fazer?

- Naturalmente ignorar a mensagem, senhor. - Yabu estava inquieto. - O senhor acha que eu poderia ter evitado pegá-la?

- É claro. Poderia ter negociado com ele por um dia. Talvez mais. Semanas até - acrescentou Toranaga, revolvendo a faca mais fundo na ferida, maliciosamente deliciado com o fato de a própria estupidez de Yabu tê-lo atirado ao anzol, e nem um pouco preocupado com a traição para a qual Yabu indubitavelmente fora atraído, bajulado, lisonjeado, ou ameaçado. - Sinto muito, mas está comprometido. Não tem importância, é como o senhor diz: "Quanto mais depressa todo mundo escolher posições, melhor". - Levantou-se. - Não há necessidade de voltar ao regimento esta noite. Vocês dois juntem-se a mim à refeição noturna. Providenciarei um entretenimento. - Para todo mundo, disse a si mesmo, com muita satisfação.

Os hábeis dedos de Kiku feriram um acorde, o plectro seguro com firmeza. Depois ela começou a cantar e a pureza da sua voz encheu a noite silenciosa. Estavam sentados no grande aposento que se abria para a varanda e o jardim, fascinados pelo extraordinário efeito que ela causava sob os archotes bruxuleantes, os fios de ouro do seu quimono captando a luz quando ela se curvava sobre o samisen.

Toranaga correu os olhos em torno momentaneamente. A um lado seu, Mariko estava sentada entre Blackthorne e Buntaro. Do outro, Omi e Yabu, lado a lado. O lugar de honra ainda estava vazio. Zataki fora convidado, mas naturalmente lamentara ter que declinar do convite, por estar mal de saúde, embora tivesse sido visto galopando pelas colinas a nordeste, e agora estivesse "travesseirando" com o seu vigor lendário. Naga e guardas escolhidos com muito cuidado estavam por toda parte. Gyoko vagava em algum lugar na obscuridade. Kiku-san estava ajoelhada na varanda de frente para eles, de costas para o jardim - minúscula, sozinha e esplêndida.

Mariko tinha razão, pensou Toranaga. A cortesã vale o dinheiro. Seu espírito estava fascinado por ela, sua preocupação com Zataki abrandada. Mando chamá-la de novo esta noite ou durmo sozinho? Sua virilidade levantou-se quando se lembrou da noite anterior.

- Então, Gyoko-san, deseja ver-me? - perguntara em seus aposentos particulares da fortaleza.

- Sim, senhor.

Ele acendera o bastão de incenso. - Por favor, prossiga.

Gyoko se curvara, mas ele mal tinha olhos para ela. Era a primeira vez que via Kiku de perto. A proximidade realçava-lhe os traços magníficos, ainda não marcados pelos rigores da sua profissão. - Por favor, toque um pouco de música enquanto conversamos - dissera, surpreso de que Gyoko estivesse preparada para conversar na frente dela.

Kiku obedecera imediatamente, mas a música não fora nada como a desta noite. Fora calmante, um acompanhamento para o negócio que estava sendo tratado. Esta noite era para excitar, para admirar, e para prometer.

- Senhor - começara Gyoko formalmente -, primeiro possa eu humildemente agradecer-lhe a honra que me faz, à minha pobre casa, e a Kiku-san, a primeira das minhas damas do Mundo do Salgueiro. O preço que pedi pelo contrato é insolente, eu sei, impossível, tenho certeza, não decidido até o amanhecer de amanhã, quando a Senhora Kasigi e a Senhora Toda, na sua sabedoria, decidirão. Se se tratasse de um assunto seu, o senhor teria decidido há muito tempo, pois o que significa o desprezível dinheiro para qualquer samurai, ainda mais para o maior daimio do mundo?

Gyoko fizera uma pausa para efeito. Ele não mordera a isca, mas movera o leque ligeiramente, o que podia ser interpretado como irritação com a expansividade dela, aceitação do cumprimento, ou uma absoluta rejeição do preço solicitado, dependendo da disposição dela. Ambos sabiam com muita clareza quem é que realmente aprovava a quantia.

- O que é o dinheiro? Nada além de um meio de comunicação - continuara ela -, assim como a música de Kiku-san. O que, de fato, nós, do Mundo do Salgueiro, fazemos senão comunicar e entreter, iluminar a alma do homem, aliviar-lhe o fardo... - Toranaga reprimira uma resposta cáustica, lembrando-se de que a mulher comprara um bastão de tempo por quinhentos kokus, e quinhentos kokus mereciam uma audição atenta. Por isso deixou-a continuar e ouviu com um ouvido, deixando o outro gozar da música perfeita que o atingia no âmago do ser, afagando-o até uma sensação de euforia. Então fora rudemente arrastado de volta ao mundo da realidade, por alguma coisa que Gyoko dissera.

- O quê?

- Eu estava meramente sugerindo que o senhor devia tomar o Mundo do Salgueiro sob a sua proteção e mudar o curso da história.

- Como?

- Fazendo o que sempre fez, senhor, interessando-se pelo futuro do império inteiro, antes de se interessar pelo seu.

Ele deixou o ridículo exagero passar e disse a si mesmo que fechasse os ouvidos à música - que ele caíra na primeira armadilha dizendo a Gyoko que trouxesse a garota, na segunda deixando-se regalar com a beleza e o perfume dela, e na terceira permitindo-lhe tocar sedutoramente enquanto a ama falava.

- O Mundo do Salgueiro? O que há com _o Mundo do Salgueiro?

- Duas coisas, senhor. Primeiro, atualmente o Mundo do Salgueiro está misturado com o mundo real, para prejuízo de ambos. Segundo, as nossas damas não podem, realmente, atingir a perfeição que todo homem tem o direito de esperar.

- Oh? - O perfume de Kiku, um perfume que ele nunca conhecera antes, chegou-lhe numa lufada. Fora escolhido à perfeição. Involuntariamente olhou para ela. Encontrou um meio sorriso, para ele apenas. Languidamente ela baixou os olhos e seus dedos feriram as cordas, enquanto ele os sentia em si mesmo intimamente.

Tentou se concentrar. - Desculpe, Gyoko-san. Estava dizendo?

- Por favor, desculpe-me por não ser clara, senhor. Primeiro: o Mundo do Salgueiro devia ser separado do mundo real. Minha casa de chá em Mishima fica numa rua ao sul da cidade, enquanto outras se espalham por toda a cidade. Acontece o mesmo em Kyoto e Nara, e por todo o império. Até em Yedo. Mas pensei que Yedo poderia estabelecer o padrão do mundo.

- Como? - Seu coração perdeu uma batida quando um acorde perfeito se encaixou.

- Todos os outros ofícios, sabiamente, têm ruas só para si, áreas para si. Nós deveríamos ser autorizados a ter o nosso próprio lugar, senhor. Yedo é uma cidade nova; o senhor poderia considerar a possibilidade de reservar um setor especial para o seu Mundo do Salgueiro. Traga todas as casas de chá para dentro dos muros dessa área e proíba qualquer casa de chá, ainda que modesta, do lado de fora.

Agora a mente dele se concentrou totalmente, pois ali estava uma idéia imensa. Era tão boa, que ele se censurou por não tê-la pensado por si mesmo. Todas as casas de chá e todas as cortesãs dentro de uma cerca e, em conseqüência, extraordinariamente fáceis de policiar, de observar, e de taxar, e todos os clientes igualmente fáceis de policiar, de observar e de espionar. A simplicidade estonteou-o. Ele também sabia da poderosa influência exercida pelas damas de primeira classe.

Mas seu rosto não traiu nada do seu entusiasmo. - Que vantagem há nisso, Gyoko-san?

- Teríamos a nossa própria corporação, senhor, com toda a proteção que uma corporação implica, uma corporação real num lugar, não algo espalhado, por assim dizer, uma corporação a que todos obedeceriam...

- Deveriam obedecer?

- Sim, senhor. Deveriam obedecer, pelo bem de todos. A corporação seria responsável por que os preços fossem justos e que os padrões fossem mantidos. Por que, em poucos anos, uma dama de segunda classe em Yedo se igualaria a uma de Kyoto, e assim por diante? Se o esquema tivesse valor em Yedo, por que não em cada cidade do seu domínio?

- Mas os proprietários que estivessem dentro da cerca dominariam tudo. São monopolistas, neh? Podem estipular preços de entrada extorsivos, neh, podem trancar as portas a muitos que têm um direito igual de trabalhar no Mundo do Salgueiro, neh?

- Sim, poderia ser assim, senhor. E acontecerá em alguns lugares, e em algumas épocas. Mas leis estritas podem facilmente ser feitas para garantir a justiça, e pareceria que o bem supera o mal, para nós e para os nossos honrados clientes e fregueses. Segundo: damas do ...

- Vamos concluir o seu primeiro ponto, Gyoko-san - disse Toranaga secamente. - Então isso é um aspecto contra a sua sugestão, neh?

- Sim, senhor. É possível. Mas qualquer daimio poderia facilmente dar ordens em contrário. E teria que lidar apenas com uma corporação num lugar. O senhor não teria problema. Cada área, naturalmente, seria responsável pela paz da área. E pelos impostos.

- Ah, sim, os impostos! Certamente seria muito mais fácil coletar os impostos. Esse é um ponto muito bom a seu favor.

Os olhos de Gyoko estavam no bastão de incenso. Mais da metade já desaparecera. - O senhor, na sua sabedoria, poderia decretar que o nosso Mundo do Salgueiro fosse o único, no mundo todo, a nunca ser taxado. Nunca, nunca, nunca. - Ela levantou os olhos para ele, olhos sem malícia. - Afinal, senhor, nosso mundo também não é chamado de "Mundo Flutuante", não é a beleza a nossa única oferenda, não é a juventude uma grande parte da beleza? Uma coisa tão fugaz e efêmera como a juventude não é uma dádiva dos deuses, e sagrada? Dentre todos os homens, o senhor deve saber como a juventude é rara e fugaz, como a mulher o é.

A música morreu. Os olhos dele foram atraídos para Kikusan. Ela o observava atentamente, uma pequena ruga no cenho.

- Sim - disse ele honestamente. - Sei quão fugaz pode ser. - Tomou um gole de chá. - Considerarei o que você disse. Segundo?

- Segundo - Gyoko reuniu seus dotes. - Segundo e último. O senhor poderia colocar o seu carimbo no Mundo do Salgueiro para sempre. Considere algumas das nossas damas, Kikusan, por exemplo. Estuda canto, dança e samisen desde os seis anos de idade. Cada momento em que esteve acordada ela passou trabalhando muito arduamente para aperfeiçoar a sua arte. Reconhecidamente se tornou uma dama de primeira classe, conforme merece o seu talento ímpar. Mas sempre é uma cortesã e alguns clientes esperam desfrutar dela no "travesseiro" assim como através da sua arte. Creio que se deviam criar duas categorias de damas. Primeiro, cortesãs como sempre: divertidas, felizes, físicas. Segundo, uma nova classe, talvez a palavra "gueixa" as descrevesse: "pessoas de arte", pessoas dedicadas exclusivamente à arte. Não se esperaria que "travesseirar" fizesse parte do seu dever. Seriam unicamente artistas, dançarinas, cantoras, musicistas - especialistas - e assim se dedicariam exclusivamente a essa profissão. As gueixas entretêm a mente e o espírito dos homens com sua beleza, graça e talento. As cortesãs satisfazem o corpo com a beleza, graça e igual talento.

Novamente ele foi dominado pela simplicidade e as possibilidades de longo alcance da idéia. - Como se selecionaria uma gueixa?

- Pela aptidão. Na puberdade o seu proprietário decidiria o futuro dela. E a corporação poderia aprovar, ou rejeitar, a aprendiz, neh?

- É uma idéia extraordinária, Gyoko-san.

A mulher curvou-se e estremeceu. - Por favor, desculpe o meu fôlego, senhor, mas desse modo, quando a beleza se fana e o corpo engrossa, a garota ainda pode ter um futuro excelente e um valor real. Não terá que descer a estrada por onde, hoje, todas as cortesãs devem viajar. Rogo pelas artistas que existem entre elas, Kiku-san, por exemplo. Solicito-lhe que conceda às poucas favoritas um futuro e a posição que merecem na terra. Aprender a cantar, a dançar e a tocar exige prática e prática durante anos. O "travesseiro" necessita de juventude e não há afrodisíaco como a juventude. Neh?

- Não. - Toranaga observou. - As gueixas não poderiam "travesseirar"?

- Isso não faria parte do dever de uma gueixa, fosse qual fosse o dinheiro oferecido. As gueixas nunca seriam obrigadas a "travesseirar", senhor. Se uma desejasse "travesseirar" com um homem em particular, isso seria problema particular seu - ou talvez devesse ser combinado, com a permissão da sua ama, um preço tão elevado quanto o homem pudesse pagar. O dever de uma cortesã seria "travesseirar" com talento; as gueixas e as aprendizes de gueixas seriam intocáveis. Por favor, desculpe-me por falar tanto. - Gyoko curvou-se e Kiku curvou-se. Restava uma fração mínima de incenso.

Toranaga fez-lhe perguntas por duas vezes o tempo concedido, satisfeito com a oportunidade de aprender sobre o mundo delas, sondando-lhe as idéias, as esperanças e os receios. O que aprendeu excitou-o. Reservou a informação para uso posterior, depois mandou Kiku-san para o jardim. - Esta noite, Gyoko-san, eu gostaria que ela ficasse, se lhe aprouver, até o amanhecer... se estiver livre. Quer perguntar-lhe, por favor? Naturalmente entendo que ela possa estar cansada agora. Afinal de contas, tocou tão soberbamente, por tanto tempo, que eu compreenderei totalmente. Mas talvez ela considerasse a idéia. Eu ficaria agradecido se pudesse perguntar-lhe.

- Naturalmente, senhor, mas sei que ela ficaria honrada com o seu convite. É nosso dever servir de todo modo que pudermos, neh?

- Sim. Mas ela, conforme você acertadamente assinalou, é muito especial. Compreenderei totalmente se ela estiver cansada demais. Por favor, pergunte-lhe. - Deu a Gyoko um saquinho de couro contendo dez kobans lamentando a ostentação, mas sabendo que a sua posição a exigia. - Talvez isto a compense por uma noite tão exaustiva, e seja um pequeno símbolo do meu agradecimento pelas suas idéias.

- É nosso dever servir, senhor - disse Gyoko. Ele a viu tentando impedir os dedos de contar através do couro macio, e falhar. - Obrigada, senhor. Por favor, desculpe-me, eu perguntarei a ela. - Então, estranha e inesperadamente, lágrimas encheram-lhe os olhos. - Por favor, aceite os agradecimentos de uma mulher velha e vulgar pela sua cortesia e por tê-la escutado. É só que, por todo o prazer que damos, nossa única recompensa é um rio de lágrimas. Na verdade, senhor, é difícil explicar como uma mulher se sente... por favor, desculpe-me ...

- Ouça, Gyoko-san, compreendo. Não se preocupe. Considerarei tudo o que você disse. Oh, sim, vocês duas partirão comigo pouco depois do amanhecer. Alguns dias nas montanhas farão uma agradável mudança. Imagino que o preço do contrato será aprovado, neh?

Gyoko curvou-se agradecida, depois enxugou as lágrimas e disse com firmeza: - Posso, então, perguntar o nome da honrada pessoa para quem o contrato dela será comprado?

- Yoshi Toranaga-noh-Minowara.

Agora, sob a noite de Yokosé, o ar docemente frio, a música e a voz de Kiku-san possuindo a mente e o coração de todos, Toranaga deixou a própria mente devanear. Lembrou-se da cintilação de orgulho que inundara o rosto de Gyoko e admirou-se de novo com a desnorteante credulidade das pessoas. Que desconcertante que até as pessoas mais inteligentes e astutas freqüentemente vissem apenas o que queriam ver, e raramente olhassem para além da mais delgada das fachadas. Ou que ignorassem a realidade, rejeitando-a como uma fachada. E depois, quando o seu mundo inteiro caísse em pedaços e essas pessoas estivessem de joelhos. rasgando o ventre ou cortando o pescoço, ou atiradas ao mundo indiferente, arrancassem os cabelos, ou rasgassem as roupas ou lamentassem o karma, acusando deuses ou kamis ou a sorte, ou o senhor, o marido, o vassalo - qualquer coisa ou qualquer pessoa -, mas nunca a si mesmas.

Muito estranho.

Olhou para os seus convidados e viu que ainda estavam observando a garota, fechados em seus segredos, a mente expandida pelo talento dela - todos menos o Anjin-san, que estava impaciente e buliçoso. Não tem importância, Anjin-san, pensou Toranaga divertido, é apenas a sua falta de civilização. Sim, não importa, isso virá com o tempo, e ainda assim isso não tem importância, desde que você obedeça. No momento preciso da sua suscetibilidade, da sua cólera e da sua violência.

Sim, vocês estão todos aqui. Você, Omi e Yabu, Naga, Buntaro, e você, Mariko, e Kiku-san, e até Gyoko, todos os meus gaviões e falcões de Izu, todos treinados e muito preparados. Todos aqui, menos um: o padre cristão. E logo chegará a sua vez, Tsukku-san. Ou a minha.

O Padre Martim Alvito, da Companhia de Jesus, estava furioso. Bem quando sabia que devia estar se preparando para seu encontro com Toranaga, para o qual precisaria de todos os seus talentos, era defrontado com aquela nova abominação que não podia esperar. - O que você tem a dizer em sua defesa? - vociferou contra o amedrontado acólito japonês, abjetamente ajoelhado à sua frente. Os outros irmãos erguiam-se em torno do pequeno aposento, em semicírculo.

- Por favor, perdoe-me, padre. Pequei - gaguejou o homem em completa aflição. - Por favor, perdoe...

- Repito: perdoar cabe a Deus todo-poderoso, na sua sabedoria, não a mim. Você cometeu um pecado mortal. Quebrou o seu voto sagrado. Bem?

A resposta veio quase inaudível. - Sinto muito, padre. - O homem era magro e frágil. Seu nome de batismo era José e ele tinha trinta anos. Os acólitos seus companheiros, todos irmãos da Companhia, iam dos dezoito aos quarenta anos. Eram todos tonsurados, e de nobre origem samurai de províncias de Kyushu, todos rigorosamente educados para o sacerdócio, embora ainda nenhum fosse ordenado.

- Eu confessei, padre - disse o Irmão José, mantendo a cabeça curvada.

- Acha que isso basta? Impaciente Alvito deu-lhe as costas e se dirigiu para a janela. A sala era comum, as esteiras razoáveis, as divisórias shoji pobremente consertadas. A hospedaria era velha e de terceira classe, mas a melhor que ele conseguira encontrar em Yokosé, já que as demais tinham sido tomadas pelos samurais. Ele contemplou a noite, ouvindo parcialmente a distante voz de Kiku elevando-se acima do ruído do rio. Antes que a cortesã terminasse, Alvito soube que não seria chamado por Toranaga. - Prostituta imunda - disse ele, meio para si mesmo, a lamentosa dissonância da canção japonesa aborrecendo-o mais do que de costume, intensificando-lhe a raiva pela traição de José.

- Ouçam, irmãos - disse aos demais, voltando-se para eles. - Está em julgamento o Irmão José, que saiu com uma prostituta ontem à noite, quebrando o seu voto sagrado de castidade, quebrando o seu voto sagrado de obediência, profanando sua alma imortal, sua posição como jesuíta, seu lugar na Igreja e tudo aquilo que ela sustenta. Diante de Deus pergunto a cada um de vocês: já fizeram o mesmo?

Todos menearam a cabeça.

- Você já fez isso antes? - Não, padre.

- Você, pecador! Diante de Deus, admite o seu pecado? - Sim, padre, já conf...

- Diante de Deus, essa foi a primeira vez?

- Não, não foi a primeira vez - disse José. - Eu ... eu saí com outra há algumas noites... em Mishima.

- Mas... mas ontem dissemos missa! E a sua confissão de ontem, e a de anteontem, e a de trasanteontem, você não .. . Ontem dissemos missa! Pelo amor de Deus, você recebeu a eucaristia sem se ter confessado, com conhecimento pleno do seu pecado mortal?

O Irmão José estava cinza de vergonha. Estava com os jesuítas desde os oito anos de idade. - Foi a ... foi a primeira vez, padre. Faz só quatro dias. Vivi a vida toda sem pecado. Novamente fui tentado ... e a abençoada Nossa Senhora me perdoe, desta vez falhei. Tenho sede. Sou um homem... somos todos homens. Por favor, o Senhor Jesus Pai perdoou os pecadores... por que o senhor não pode me perdoar? Somos todos homens ...

- Somos todos padres!

- Não somos padres de verdade! Não professamos... não somos sequer ordenados! Não somos jesuítas de verdade. Não podemos receber o quarto voto como o senhor, padre - disse José sombriamente. - Outras ordens ordenam os seus irmãos, mas não os jesuítas. Por que não...

- Cale a boca!

- Não calo! - dardejou José. - Por favor, desculpe-me, padre, mas por que alguns de nós não devem ser ordenados? - Apontou para um dos irmãos, um homem alto, de rosto redondo, que observava serenamente. - Por que o Irmão Miguel não deve ser ordenado? Estuda desde os doze anos. Agora tem trinta e seis e é um cristão perfeito, quase um santo. Converteu milhares, mas ainda não foi ordenado, embora...

- Em nome de Deus, você vai ...

- Em nome de Deus, padre, por que um de nós não pode ser ordenado? Alguém tem que ousar lhe perguntar! - José estava de pé agora. - Venho estudando há dezesseis anos, o Irmão Mateus há vinte e três, Julião mais ainda, toda a nossa vida, anos incontáveis. Sabemos as preces, os catecismos e os hinos melhor do que o senhor, e Miguel e eu até falamos latim tão bem quanto port ...

- Pare!

- ... português, e fazemos a maior parte da pregação e debate com os budistas e todos os outros idólatras, e fazemos a maior parte das conversões. Nós fazemos! Em nome de Deus e de Nossa Senhora, o que há de errado conosco? Por que não somos bons o bastante para sermos jesuítas? É só porque não somos portugueses ou espanhóis, ou porque não somos peludos nem temos olhos redondos? Em nome de Deus, padre, por que não existe um jesuíta japonês ordenado?

- Agora você vai calar a boca!

- Estivemos até em Roma, Miguel, Julião e eu! - explodiu José. - O senhor nunca esteve em Roma nem se encontrou com o padre-geral ou Sua Santidade como nós...

- O que é mais uma razão para que você soubesse fazer melhor que discutir. Vocês juraram castidade, pobreza e obediência. Foram escolhidos entre muitos, favorecidos dentre muitos, e agora você deixou sua alma se corromper tanto que...

- Sinto muito, padre, mas não penso que tenhamos sido favorecidos em gastar oito anos indo até lá e voltando se, depois de todo o nosso aprendizado, as nossas orações, as nossas pregações e a nossa espera, nem um de nós foi ordenado, embora isso tenha sido prometido. Eu tinha doze anos quando parti. Julião tinha onz...

- Proíbo-o de continuar falando! Ordeno-lhe que pare. - Depois, em meio ao terrível silêncio, Alvito olhou para os outros, que se alinhavam ao longo das paredes, olhando e ouvindo atentamente. - Vocês todos serão ordenados, em tempo. Mas você, José, diante de Deus, você será ...

- Diante de Deus - irrompeu José -, no tempo de quem?

- No tempo de Deus! - bradou Alvito, pasmado com a rebelião aberta, seu fervor exaltado. - Ponha-se-de-joelhos!

O Irmão José tentou faze-lo baixar os olhos, mas não conseguiu, depois, perdendo o ânimo, suspirou, caiu de joelhos e curvou a cabeça.

- Deus tenha piedade de você. Você se confessou culpado de hediondo pecado mortal, culpado de quebrar o seu voto sagrado de castidade, o seu voto sagrado de obediência aos seus superiores. E culpado de insolência inacreditável. Como ousa questionar as nossas ordens gerais ou a política da Igreja? Você colocou em risco a sua alma imortal. Você é uma desgraça para o seu Deus, a sua Companhia, a sua Igreja, a sua família e os seus amigos. Seu caso é tão sério que terá de ser tratado pelo padre-inspetor em pessoa. Até lá você não comungará, não se confessará, nem ouvirá confissão, nem tomará parte em qualquer serviço. .. - Os ombros de José começaram a -tremer com a agonia do remorso que o possuía. - Como penitência inicial, você fica proibido de falar, receberá apenas arroz e água durante trinta dias, passará cada noite nos próximos trinta dias de joelhos, em oração à Nossa Senhora por perdão para os seus terríveis pecados, e depois será chicoteado. Trinta chicotadas. Tire a sotaina.

Os ombros pararam de tremer. José levantou os olhos. - Aceito tudo o que o senhor ordenou, padre - disse ele -, e peço desculpas de todo o coração, com toda a minha alma. Imploro-lhe o seu perdão, assim como implorarei o perdão dele para sempre. Mas não serei açoitado como um criminoso comum.

- Você-será-chicoteado!

- Por favor, desculpe-me, padre - disse José. - Em nome da abençoada Nossa Senhora, não é a dor. A dor não é nada para mim, a morte não é nada para mim. Que eu esteja danado e vá arder no fogo do inferno por toda a eternidade pode ser o m• eu karma, e eu suportarei. Mas sou samurai. Sou da família do Senhor Harima.

- Seu orgulho me enoja. Não é pela dor que você deve ser punido, mas para eliminar esse seu orgulho repugnante. Criminoso comum? Onde está a humilhação? Nosso Senhor Jesus Cristo suportou mortificação. E morreu com criminosos comuns.

- Sim. Esse é o nosso principal problema aqui, padre.

- O quê?

- Por favor, desculpe-me a franqueza, padre, mas se o rei dos reis não tivesse morrido como um criminoso comum na cruz, os samurais poderiam aceitar...

- Pare!

-- ... o cristianismo com mais facilidade. A Companhia é sábia em evitar de pregar o Cristo crucificado como as outras ordens...

Como um anjo vingador, Alvito ergueu a cruz como um escudo à sua frente. - Em nome de Deus, cale-se e obedeça ou-será-excomungado! Peguem-no e dispam-no!

Os outros voltaram à vida e avançaram, mas José pôs-se de pé num salto. Uma faca apareceu-lhe nas mãos, puxada de sob o hábito. Pôs-se de costas para a parede. Todos pararam. Menos o Irmão Miguel. Este avançou lenta e calmamente, a mão estendida. - Por favor, dê-me a faca, irmão - disse gentilmente.

- Não. Por favor, desculpe-me.

- Então reze por mim, irmão, assim como eu rezo por você. - Tranqüilamente Miguel avançou para a arma.

José recuou alguns passos, depois se preparou para um golpe mortal. - Perdoe-me, Miguel.

Miguel continuou a se aproximar.

- Miguel, pare! Deixe-o em paz - comandou Alvito.

Miguel obedeceu, a algumas polegadas da lâmina suspensa no ar.

Então Alvito disse, pálido: - Deus tenha piedade de você, José. Você está excomungado. Satã tomou posse da sua alma na terra, assim como a possuirá depois da morte.

- Renuncio ao Deus cristão! Sou japonês... sou xintoísta. Minha alma é minha agora. Não tenho medo - gritou José. - Sim, nós temos orgulho, ao contrário dos bárbaros. Somos japoneses, não somos bárbaros. Nem os nossos camponeses são bárbaros.

Gravemente Alvito fez o sinal-da-cruz como proteção para todos eles e destemidamente deu as costas à faca. - Oremos juntos, irmãos. Satã está entre nós.

Os outros também se voltaram, muito tristes, alguns ainda chocados. Apenas Miguel permaneceu onde estava, olhando para José. José arrancou o seu rosário e a cruz. Estava prestes a atirálos ao chão, mas Miguel estendeu-lhe a mão de novo. - Por favor, irmão, por favor, dê isso a mim... é um presente tão simples - disse.

José o olhou um longo momento, depois deu-lhe. - Por favor desculpe-me.

- Rezarei por você - disse Miguel.

- Você não ouviu? Renunciei a Deus!

- Rezarei a Deus para que não renuncie a você, Uruganoh-Tadamasa-san.

- Perdoe-me, irmão - disse José. Enfiou a faca no sash, abriu a porta com um repelão, e caminhou às cegas pelo corredor, rumo à varanda. As pessoas o olhavam curiosas, entre elas Uo, o pescador, que esperava pacientemente e à sombra. José cruzou o pátio e se dirigiu para o portão. Um samurai surgiu em seu caminho.

- Alto!

José parou.

- Aonde vai, por favor?

- Desculpe, por favor, desculpe-me, eu ... eu não sei.

- Sirvo ao Senhor Toranaga. Sinto muito, não pude deixar de ouvir o que aconteceu lá. A hospedaria inteira deve ter ouvido. Uma chocante falta de educação... chocante para o seu líder, gritar assim e perturbar a paz. E para você também. Estou a serviço aqui, acho que é melhor que você veja o oficial do meu turno.

- Acho ... obrigado, irei pelo outro caminho. Por favor, desculpe...

- Você não vai a parte alguma, sinto muito. Vai ver o meu oficial.

- O quê? Oh... sim. Sim, desculpe, naturalmente. - José tentou fazer o cérebro funcionar.

- Bom. Obrigado. - O samurai voltou-se quando outro

samurai se aproximou, vindo da ponte, e saudou.

- Devo levar o Tsukku-san ao Senhor Toranaga. - Bom. Você é esperado.

 

Toranaga observou o padre alto aproximando-se através da clareira, a luz bruxuleante dos archotes fazendo o rosto enxuto mais severo do que o habitual, acima do negrume da barba. O hábito budista do padre era laranja e elegante, e um rosário e uma cruz pendiam-lhe da cintura.

A dez passos de distância, Alvito parou, ajoelhou-se e curvou-se respeitosamente, dando início às formalidades costumeiras.

Toranaga estava sentado sozinho sobre o estrado, guardas num semicírculo à sua volta, mas a distância. Apenas Blackthorne estava perto, indolentemente recostado à plataforma, conforme lhe fora ordenado, os olhos cravados no padre. Alvito não pareceu notá-lo.

- É bom vê-lo, senhor - disse o padre, quando foi polido fazer isso.

- Vê-lo, também, Tsukku-san. - Toranaga fez sinal ao padre que se pusesse confortável sobre a almofada que fora colocada sobre o tatami, no chão, diante da plataforma. - Faz muito tempo desde que o vi pela última vez.

- Sim, senhor, há muito o que contar. - Alvito estava profundamente consciente de que a almofada estava sobre a terra e não sobre o estrado. Além disso, estava agudamente consciente das espadas de samurai que Blackthorne agora usava tão perto de Toranaga e do modo negligente como se portava. - Trago uma mensagem confidencial do meu superior, o padre-inspetor, que o saúda com deferência.

- Obrigado. Mas primeiro fale-me de você.

- Ah, senhor - disse Alvito, sabendo que Toranaga era perspicaz demais para não ter notado o remorso que o atormentava, por mais que ele tivesse tentado dissimular. - Esta noite estou consciente demais dos meus próprios fracassos. Esta noite eu gostaria de poder renunciar aos meus deveres terrenos e ir para um retiro orar, implorar pelo favor de Deus. - Ele se sentia envergonhado pela própria falta de humildade. Embora o pecado de José tivesse sido terrível, Alvito agira com ódio, raiva e estupidez. Era culpa sua que uma alma tivesse sido proscrita, se perdesse para sempre. - Nosso Senhor uma vez disse: "Por favor, Pai, afasta de mim esse cálice". Mas mesmo ele teve que reter o cálice. Nós, no mundo, temos que tentar seguir-lhe os passos do melhor modo que pudermos. Por favor, desculpe-me por permitir que o meu problema se mostre.

- Qual foi o seu cálice, amigo velho?

Alvito contou-lhe. Sabia que não havia motivo para esconder os fatos, pois naturalmente Toranaga os ouviria muito em breve, se já não os conhecesse, e era muito melhor ouvir a verdade do que uma versão deturpada. - É tristíssimo perder um irmão, terrível fazer um proscrito, por mais terrível que tenha sido o crime. Eu deveria ter sido mais paciente. A culpa foi minha.

- Onde está ele agora?

- Não sei, senhor.

Toranaga chamou um guarda. - Encontre o cristão renegado, e traga-o a mim ao meio-dia de amanhã. - O samurai afastou-se correndo.

- Rogo piedade para ele, senhor - disse Alvito rapidamente, falando com sinceridade. Mas sabia que qualquer coisa que dissesse faria pouco para dissuadir Toranaga de uma trilha já escolhida. Novamente teve vontade de que a Companhia tivesse o seu próprio braço secular, capacitado a deter e punir os apóstatas, como por toda parte no resto do mundo. Recomendara reiteradamente que isso fosse criado, mas a idéia fora sempre rejeitada, ali no Japão, e também em Roma, pelo geral da ordem. Mas sem o braço secular, pensou ele cansado, nunca seremos capazes de exercer uma disciplina real sobre nossos irmãos e o nosso rebanho.

- Por que não há padres japoneses ordenados na sua Companhia, Tsukku-san?

- Porque, senhor, nem um dos nossos acólitos está, ainda, suficientemente bem treinado. Por exemplo, o latim é uma necessidade absoluta, porque a nossa ordem exige que qualquer irmão viaje para qualquer lugar do mundo a qualquer momento, e infelizmente é uma língua muito difícil de aprender. Nenhum está treinado ainda, ou pronto.

Alvito acreditava nisso com todo o coração. Também era implacavelmente contra um clero jesuíta japonês ordenado, em oposição ao padre-inspetor. - Eminência - sempre dissera ele -, suplico-lhe, não se deixe enganar pela aparência modesta e decorosa deles. Por baixo são características em que não se pode confiar, e o orgulho e a condição de japoneses sempre dominarão no final. Nunca serão servos autênticos da Companhia, ou soldados de confiança de Sua Santidade, o vigário de Cristo na terra, obedientes a ele apenas. Nunca.

Alvito relanceou o olhar momentaneamente para Blackthorne, depois olhou de novo para Toranaga, que disse: - Mas dois ou três desses padres aprendizes falam latim, neh, e português? É verdade o que o homem disse, neh? Por que eles não foram escolhidos?

- Sinto muito, mas o geral da nossa Companhia não os considera suficientemente preparados. Talvez a trágica queda de José seja um exemplo.

- É sério quebrar um juramento solene - disse Toranaga. Lembrou-se do ano em que os três meninos haviam zarpado de Nagasaki, num Navio Negro, para serem festejados na corte do rei espanhol e na corte do sumo-sacerdote dos cristãos, o mesmo ano em que Goroda fora assassinado. Nove anos depois regressaram, o tempo todo cuidadosamente controlados. Tinham partido como ingênuos e jovens cristãos fanáticos, e regressado igualmente tacanhos e quase tão mal informados como quando partiram. Desperdício estúpido, pensou Toranaga, desperdício de uma oportunidade incrível, de que Goroda se recusou a tirar vantagem, por mais que tenha sido aconselhado a fazer isso.

- Não, Tora-san, precisamos dos cristãos contra os budistas - dissera Goroda. - Muitos sacerdotes e monges budistas são soldados, neh? A maioria deles. Os cristãos não, neh? Deixemos o Padre Gigante ter os três jovens que ele quer, são apenas cabeças ocas de Kyushu, neh? Digo-lhe que estimule os cristãos. Não me perturbe com um plano de dez anos, mas queime cada mosteiro budista ao alcance. Budistas são como moscas sobre carniça, e os cristãos nada além de um saco de peidos.

Agora não são, pensou Toranaga com irritação crescente Agora são vespões.

- Sim - disse alto. - É muito sério quebrar um juramento, gritar e perturbar a harmonia de uma hospedaria.

- Por favor, desculpe-me, senhor, e perdoe-me por mencionar os meus problemas. Obrigado por ter ouvido. Como sempre, o seu interesse me faz sentir melhor. Posso ser autorizado a saudar o piloto?

Toranaga assentiu.

- Devo cumprimentá-lo, piloto - disse Alvito em português. - Suas espadas lhe assentam bem.

- Obrigado, padre, estou aprendendo a usá-las - replicou Blackthorne. - Mas, sinto dizer, não sou muito bom com elas ainda. Continuarei usando pistolas, alfanjes ou canhões, quando tiver que combater.

- Rezo para que o senhor nunca mais precise combater, piloto, e que seus olhos se abram para a infinita mercê de Deus.

- Os meus estão abertos. Os seus é que estão enevoados.

- Pela salvação da sua alma, piloto, conserve os olhos abertos, e a mente também. Talvez o senhor possa se enganar. Ainda assim, devo agradecer-lhe por haver salvado a vida do Senhor Toranaga.

- Quem lhe contou isso?

Alvito não respondeu. Voltou-se para Toranaga.

- O que foi dito? - perguntou Toranaga, rompendo o silêncio.

Alvito contou-lhe, acrescentando: - Embora ele seja o inimigo da minha fé e um pirata, estou contente de que o tenha salvado, senhor: Deus se move por caminhos misteriosos. O senhor o honrou grandemente fazendo-o samurai.

- Ele também é hatamoto. - Toranaga ficou satisfeito com a fugaz surpresa do padre. - Trouxe o dicionário?

- Sim, senhor, com vários dos mapas que o senhor queria, mostrando algumas das bases portuguesas desde Goa. O livro se encontra na minha bagagem. Posso mandar alguém buscá-lo, ou posso dá-lo pessoalmente a ele mais tarde?

- Dê-o a ele mais tarde. Esta noite, ou amanhã. Também trouxe o relatório?

- Sobre as supostas armas que se acredita tenhamos trazido de Macau? O padre-inspetor o está preparando, senhor.

- E as quantidades de mercenários japoneses utilizados em cada uma das suas novas bases?

- O padre-inspetor solicitou um relatório atualizado sobre todos eles, senhor, que lhe entregará assim que estejam completos.

- Bom. Agora conte-me como soube da minha salvação.

- Dificilmente acontece alguma coisa a Toranaga-noh-Minowara que não se torne assunto de boato e lenda. Vindo de Mishima, ouvimos dizer que o senhor quase tinha sido engolido por um terremoto, mas que o Bárbaro Dourado o havia puxado para fora. Além disso, que o senhor havia feito o mesmo por ele e por uma dama ... presumo que seja a Senhora Mariko?

Toranaga assentiu brevemente. - Sim. Ela está aqui em Yokosé. - Pensou um momento, depois disse: - Amanhã ela gostaria de se confessar, de acordo com os seus costumes. Mas apenas as coisas que sejam não-políticas. Eu imaginaria que isso exclui tudo o que se refira a mim, e aos meus vários hatamotos, neh? Também expliquei isso a ela.

Alvito curvou-se, compreendendo. - Com a sua permissão, eu poderia dizer missa para todos os cristãos aqui, senhor? Seria muito discreta, naturalmente. Amanhã?

- Considerarei isso. - Toranaga continuou a falar sobre assuntos inconseqüentes algum tempo, depois disse: - Tem uma mensagem para mim? Do seu padre-chefe?

- Com humildade, senhor, rogo para lhe dizer que é uma mensagem particular.

Toranaga fingiu pensar nisso, embora tivesse determinado com exatidão como o encontro se processaria e já tivesse dado ao Anjin-san instruções específicas de como agir e o que dizer. - Muito bem. - Voltou-se para Blackthorne: - Anjin-san, pode ir agora, conversaremos mais tarde.

- Sim, senhor - retrucou Blackthorne. - Desculpe, o Navio Negro. Chegar Nagasaki?

- Ah, sim, obrigado - replicou Toranaga, satisfeito que a pergunta de Anjin-san não tivesse soado ensaiada. - Bem, Tsukku-san, ele já atracou?

Alvito ficou desconcertado com o japonês de Blackthorne e grandemente perturbado com a questão. - Sim, senhor. Atracou há catorze dias.

- Ah, c orze? -disse Toranaga. - Compreende, Anjinsan?     

- Sim. Obrigado.

- Bom. Mais alguma coisa você pode perguntar ao Tsukkusan mais tarde, neh?

- Sim, senhor. Por favor, com licença. - Blackthorne levantou-se, curvou-se e saiu calmamente.

Toranaga observou-o afastando-se. - Um homem muito interessante ... para um pirata. Agora, me conte primeiro sobre o Navio Negro.

- Chegou em segurança, senhor, com a maior carga de seda que jamais existiu. - Alvito tentou soar entusiasmado. - O acordo feito entre os senhores Harima, Kiyama, Onoshi e o senhor está em vigor. Por esta época, no próximo ano, o seu tesouro estará mais rico com dezenas de milhares de kobans. A qualidade das sedas é a melhor, senhor. Trouxe uma cópia da declaração para o seu mestre quarteleiro. O Capitão-Mor Ferreira envia-lhe os seus respeitos, esperando vê-lo pessoalmente em breve. Foi essa a razão do meu atraso em vir vê-lo. O inspetor geral me mandou às pressas de Osaka a Nagasaki, para providenciar que tudo fosse perfeito. Exatamente quando eu estava saindo de Nagasaki, ouvimos dizer que o senhor partira de Yedo, rumando para Izu, por isso vim para cá tão rápido quanto possível, de navio até o Porto Nimazu, com um dos nossos cúteres mais velozes, depois por terra. Em Mishima, encontrei o Senhor Zataki e pedi permissão para juntar-me a ele.

- Seu navio ainda está em Nimazu?

- Sim, senhor. Vai esperar por mim lá.

- Bom. - Por um momento Toranaga se perguntou se mandaria ou não Mariko para Osaka naquele navio, depois resolveu tratar do assunto mais tarde. - Por favor, dê a declaração ao mestre quarteleiro esta noite.

- Sim, senhor.

- E o acordo sobre a carga deste ano está selado? - Sim. Absolutamente.

- Bom. Agora a outra parte. A parte importante.

As mãos de Alvito ficaram secas. - Nem o Senhor Kiyama nem o Senhor Onoshi concordarão em desertar o General Ishido. Sinto muito. Não concordarão em se colocar sob a sua bandeira agora, apesar da nossa sugestão mais intensa.

A voz de Toranaga tornou-se baixa e cruel. - Já lhe assinalei que exijo mais que sugestões!

- Sinto muito trazer más notícias quanto a esta parte, senhor, mas nenhum deles concordaria em mudar de idéias publicamente a...

- Ah, publicamente, você diz? E em particular... secretamente?

- Em particular eles ficaram tão inflexíveis quanto pub... - Você conversou com eles separadamente ou juntos?

- Naturalmente juntos e em separado, muito confidencial

mente, mas nada do que sugerimos...

- Você apenas "sugeriu" um rumo de ação? Por que não lhes deu ordens?

- E como o padre-inspetor disse, senhor, não podemos dar ordens a qualquer daimio ou a qualquer...

- Ah, mas você pode dar ordens a um dos seus irmaos, neh?

Sim, senhor.

Você ameaçou torná-los proscritos também? Não, senhor.

Por quê?

Porque não cometeram pecado mortal - disse Alvito com firmeza, conforme havia combinado com Dell'Aqua, mas o seu coração batia acelerado agora, porque o Senhor Harima, que legalmente possuía Nagasaki, lhes contara em particular que toda a sua imensa riqueza e influência iriam para o lado de Ishido. - Por favor, desculpe-me, senhor, mas não faço regras divinas, assim como o senhor não fez o código do bushido, o Caminho do Guerreiro. Nós, nós temos que nos sujeitar ao que...

- Você baniu um pobre imbecil por um ato natural como "travesseirar", mas quando dois dos seus convertidos se comportam de modo antinatural, sim, até traiçoeiramente, quando eu busco o seu auxílio, o seu auxílio urgente, e sou seu amigo, você faz apenas "sugestões". Você compreende a seriedade disso, neh?

- Sinto muito, senhor. Por favor, desculpe-me, mas...

- Talvez eu não o desculpe, Tsukku-san. Foi dito antes: agora todo mundo tem que escolher um lado - disse Toranaga.

- Claro que estamos do seu lado, senhor. Mas não podemos ordenar ao Senhor Kiyama ou ao Senhor Onoshi que façam qualquer coisa...

- Felizmente eu posso dar ordens ao meu cristão.

- Senhor?

- Posso ordenar e o Anjin-san estará livre. Com o navio dele. Com            hoes dele.

- Tome cuidado com ele, senhor. O piloto é diabolicamente inteligente, mas é um herege, um pirata e não deve merecer conf...

- Aqui o Anjin-san é samurai e hatamoto. Ao mar talvez seja um pirata. Se é um pirata, imagino que atrairá muitos outros corsários e wakos a si, muitos deles. O que um estrangeiro faz em mar aberto é problema dele, neh? Nossa política foi sempre essa. Neh?

Alvito conservou-se em silêncio e tentou fazer o cérebro funcionar. Ninguém planejara que o inglês se tornaria tão próximo de Toranaga.

- Esses dois daimios cristãos não farão compromisso algum, nem mesmo um compromisso secreto?

- Não, senhor. Tentamos at... - Nenhuma concessão, nenhuma? - Não, senhor...

- Nenhum trato, nenhum acordo, nenhum compromisso, nada?

- Não, senhor. Tentamos todos os induzimentos e toda persuasão. Por favor, acredite-me. - Alvito sabia que estava na armadilha e parte do seu desespero se mostrou. - Se fosse eu, sim, eu os ameaçaria com excomunhão, embora fosse uma falsa ameaça porque eu nunca a concretizaria, não a menos que eles cometessem um pecado mortal e não confessassem ou se arrependessem e submetessem. Mas uma ameaça por causa de um ganho temporal seria um grande erro de minha parte, senhor, um pecado mortal. Eu arriscaria a danação eterna.

- Está dizendo que, se eles pecassem contra o seu credo, você os baniria?

- Sim. Mas não estou sugerindo que isso poderia ser usado para trazê-los para o seu lado, senhor. Por favor, desculpe-me, mas eles... eles estão totalmente contra o senhor no momento. Sinto muito, mas essa é a verdade. Ambos deixaram isso muito claro, juntos e em particular. Diante de Deus, rezo para que eles mudem de idéia. Nós, o padre-inspetor e eu, demos ao senhor a nossa palavra de que tentaríamos, diante de Deus. Cumprimos a nossa promessa. Diante de Deus, falhamos.

- Então perderei - disse Toranaga. - Você sabe disso, não sabe? Se eles continuarem aliados a Ishido, todos os daimios cristãos se colocarão do lado deles. Então tenho que perder. Vinte samurais contra cada um dos meus, neh?

- Sim.

- Qual é o plano deles? Quando me atacarão? - Não sei, senhor.

- Se soubesse me contaria? - Sim ... sim, contaria.

Duvido, pensou Toranaga, e desviou o olhar para a noite, o fardo da preocupação quase a esmagá-lo. Será que afinal de contas terá que ser Céu Carmesim, perguntou a si mesmo, desamparado. O estúpido e fadado ao fracasso ataque a Kyoto?

Odiava a gaiola vergonhosa dentro da qual se encontrava. Como o táicum e Goroda antes dele, tinha que tolerar os padres cristãos, porque eram tão inseparáveis dos mercadores portugueses quanto as moscas dos cavalos, exercendo um absoluto poder temporal e espiritual sobre o seu obstinado rebanho. Sem os padres não havia comércio. Sua boa vontade como negociadores e intermediários na operação do Navio Negro era vital, porque falavam a língua e contavam com a confiança de ambos os lados, e, se alguma vez os padres viessem a ser completamente proibidos no império, todos os bárbaros obedientemente partiriam, para nunca mais voltar. Toranaga se lembrava da vez em que o táicum tentara, se livrar dos padres e ao mesmo tempo encorajar o comércio. Durante dois anos não houvera Navio Negro. Os espiões relataram como o chefe gigante dos padres, postado como uma aranha negra venenosa em Macau, ordenara que não houvesse mais comércio como represália aos editos de expulsão do táicum, sabendo que o táicum acabaria se humilhando. No terceiro ano ele se curvara ao inevitável e convidara os padres a voltar, fazendo vista grossa aos seus próprios editos e à traição e rebelião que os padres haviam patrocinado. Não há escapatória dessa realidade, pensou Toranaga. Nenhuma. Não acredito no que diz o Anjin-san - que o comércio é tão essencial para os bárbaros quanto é para nós, que a sua cobiça os fará comerciar, não importa o que façamos aos padres. O risco é grande demais para fazer uma experiência e não há tempo e eu não tenho o poder. Experimentamos uma vez e falhamos. Quem sabe? Talvez os padres pudessem esperar dez anos; são inclementes o suficiente. Se os padres ordenarem que não haja comércio, creio que não haverá. Não poderíamos esperar dez anos. Nem cinco. E se expulsarmos todos os bárbaros, deve levar vinte anos para que o bárbaro inglês preencha a lacuna, se é que o Anjin-san está falando a verdade integral e se - e esse é um "se" imenso - os chineses concordassem em comerciar com eles, contra os bárbaros meridionais. Não acredito que os chineses mudassem seu padrão. Nunca fizeram isso. Vinte anos é tempo demais. Dez anos é tempo demais.

Não há escapatória dessa realidade. Ou da pior realidade de todas, o espectro que secretamente petrificava Goroda e o táicum e agora está empinando a cabeça asquerosa de novo: que os fanáticos e destemidos padres cristãos, se pressionados demais, colocariam toda a sua influência, o poder de comércio, o poder marítimo, por trás de um dos grandes ddimios cristãos. Depois, engendrariam uma força de invasão vestida de ferro, conquistadores igualmente fanáticos, armados com os mosquetes mais modernos para apoiar esse daimio cristão - como quase fizeram na última vez. Por si mesmos, qualquer número de bárbaros invasores e seus padres não são a ea contra as nossas esmagadoras forças conjuntas. Nós esmagamos a hordas de Kublai-cã e podemos lidar com qualquer invasor. Mas aliados a um dos nossos, um grande daimio cristão com exércitos de samurais, e havendo guerras civis por todo o reino, isso poderia, finalmente, dar a esse daimio o poder absoluto sobre todos nós.

Kiyama ou Onoshi? É óbvio, agora, que tem que ser o esquema do padre. O momento é perfeito. Mas que daimio?

Ambos, inicialmente, ajudados por Harima de Nagasaki. Mas quem portará a bandeira final? Kiyama - porque Onoshi, o leproso, não vai durar muito nesta terra e porque a óbvia recompensa a Onoshi por apoiar seu odiado inimigo e rival, Kiyama, seria uma garantida, indolor e eterna vida nó paraíso cristão, com um assento permanente à direita do Deus cristão.

Entre si, agora, eles têm quatrocentos mil samurais. Sua base é Kyushu e essa ilha está a salvo do meu alcance. Juntos, aqueles dois poderiam subjugar facilmente a ilha inteira, e depois teriam tropas ilimitadas, provisões ilimitadas, todos os navios necessários a uma invasão, toda a seda, e Nagasaki. No país inteiro há, talvez, outros quinhentos ou seiscentos mil cristãos. Desses, mais da metade - os convertidos pelos jesuítas - são samurais, todos lindamente misturados às forças de todos os daimios, uma vasta rede de traidores em potencial, espiões ou assassinos - caso os padres assim ordenassem. E por que não o fariam? Conseguiriam aquilo que desejam acima da própria vida: poder absoluto sobre todas as nossas almas, conseqüentemente sobre toda esta Terra dos Deuses - herdar a nossa terra e tudo o que ela contém -, exatamente conforme o Anjin-san explicou que já aconteceu cinqüenta vezes nesse Novo Mundo deles ... Convertem um rei, depois o usam contra a sua própria gente, até que o país inteiro seja engolido.

  • tão fácil para eles, esse minúsculo bando de padres bárbaros, conquistar-nos. Quantos deles existem no Japão? Cinqüenta ou sessenta? Mas têm o poder. E acreditam. Estão preparados para morrer de bom grado pelas próprias crenças, com orgulho e bravura, com o nome do seu Deus nos lábios. Vimos isso em Nagasaki quando a experiência do táicum provou ser um erro desastroso. Nenhum dos padres abjurou, dezenas de milhares testemunharam as mortes na fogueira, dezenas de milhares foram convertidos, e esse "martírio" deu à religião cristã um prestígio imenso, de que os padres cristãos, desde então, vêm se nutrindo.

A mim, os padres falharam, mas isso não os dissuade do seu curso implacável. Isso é realidade, também.

Portanto é Kiyama.

O plano já estará estabelecido, com Ishido, que é um simplório, e a Senhora Ochiba e Yaemon também? Harima já aderiu a eles secretamente? Devo atirar o Anjin-san contra o Navio Negro e Nagasaki imediatamente?

O que devo fazer?

Nada além do habitual. Ser paciente, procurar a harmonia, pôr de lado todas as preocupações sobre Eu ou Você, Vida ou Morte, Alívio ou Pós-Vida, Agora ou Depois, e pôr em funcionamento um novo plano. Que plano? queria ele gritar em desespero. Não há um sequer!

- Entristece-me que aqueles dois fiquem com o verdadeiro inimigo.

- Juro que tentamos, senhor - Alvito o observava compadecidamente, vendo-lhe a opressão do espírito.

- Sim. Acredito nisso. Acredito que você e o padre-inspetor mantiveram a sua promessa solene, por isso manterei a minha. Podem começar a construir o seu templo em Yedo imediatamente. O terreno já foi designado. Não posso proibir os padres, os outros, cabeludos, de entrar no império, mas pelo menos posso torná-los indesejados nos meus domínios. Os novos bárbaros serão igualmente indesejados, se jamais chegarem. Quanto ao Anjinsan... - Toranaga encolheu os ombros. - Mas quanto tempo isto tudo ... bem, é karma, neh?

Alvito estava agradecendo a Deus com todo o fervor pela sua mercê e favor, com a inesperada moratória. - Obrigado, senhor - disse, quase incapaz de falar. - Sei que o senhor não se arrependerá. Rezo para que os seus inimigos se dispersem como cisco e que o senhor possa colher as recompensas do paraíso.

- Sinto muito pelas minhas palavras ásperas. Foram ditas pela cólera. Há tanto... - Toranaga levantou-se pesadamente. - Você tem a minha permissão para dizer o seu serviço amanhã, amigo velho.

- Obrigado, senhor - disse Alvito, curvando-se profundamente, com pena do homem normalmente majestoso. - Obrigado de todo o coração. Que a Divindade o abençoe e o ac ha na sua guarda.

Toranaga arrastou-se para a hospedaria, seus guardas seguindo-o - Naga-san!

- Sim, Pai - disse o jovem, acorrendo.

- Onde está a Senhora Mariko?

- Lá, senhor, com Buntaro-san. - Naga apontou para a pequena casa de chá iluminada com lanternas, dentro do cercado no jardim, os vultos indistintos lá dentro. - Devo interromper a cha-no-yu? - Uma cha-no-yu era uma cerimônia do chá formal, extremamente ritualizada.

- Não. Nunca se deve interferir nisso. Onde estão Omi e Yabu-san?

- Na hospedaria deles, senhor. - Naga indicou a construção baixa que se esparramava do outro lado do rio, perto da ribanceira oposta.

- Quem escolheu aquela?

- Eu, senhor. Por favor, desculpe-me, o senhor me pediu que encontrasse uma hospedaria para eles do outro lado da ponte. Compreendi mal?

- O Anjin-san?

- Está no seu quarto, senhor. Está esperando para o caso de o senhor querer vê-lo.

Novamente Toranaga meneou a cabeça. - Vê-lo-ei amanhã. - Após uma pausa, disse na mesma voz distraída: - Vou tomar um banho agora. Depois não quero ser incomodado até o amanhecer, exceto ...

Naga esperava apreensivo, observando o pai fitar o vazio, grandemente desconcertado pela atitude dele. - Sente-se bem, Pai?

- O quê? Oh, sim ... sim, estou bem. Por quê?

- Nada... por favor, desculpe-me. Ainda quer caçar ao amanhecer?

- Caçar? Ah, sim, é uma boa idéia. Obrigado por sugeri-la, sim, isso seria muito bom. Providencie. Bem. Boa noite ... Ah, sim, o Tsukku-san tem a minha permissão para dizer uma missa particular amanhã. Todos os cristãos podem comparecer. Você também.

- Senhor?

- No primeiro dia do Ano Novo você se tornará cristão. - Eu!?

- Sim. De livre e espontânea vontade. Diga isso ao Tsukkusan em particular.

- Senhor?

Toranaga caiu em cima dele. - Ficou surdo? Já não compreende a coisa mais simples?

- Por favor, desculpe-me. Sim, Pai, compreendo.

- Bom. - Toranaga voltou à sua atitude distraída, depois se afastou, a guarda pessoal a reboque. Todos os samurais se curvaram rigidamente, mas ele não os notou.

Um oficial se aproximou de Naga, igualmente apreensivo. - O que há com o nosso senhor?

- Não sei, Yoshinawa-san. - Naga olhou para a clareira.

Alvito estava acabando de sair, rumando para a ponte, um único samurai a escoltá-lo. - Deve ter alguma coisa a ver com ele.

- Nunca vi o Senhor Toranaga caminhar tão pesadamente. Nunca. Dizem... dizem que o padre bárbaro é mágico, um bruxo. Deve ser, para falar a nossa língua tão bem, neh? Ele poderia ter posto um encantamento no nosso senhor?

- Não. Nunca. Não no meu pai.

- Os bárbaros também fazem a minha espinha tremer, Naga-san. Ouviu falar sobre a briga... Tsukku-san e seu bando berrando e discutindo como etas sem educação?

- Sim. Repugnante. Tenho certeza de que aquele homem deve ter destruido a harmonia do meu pai.

- Se me pedir, uma seta na garganta daquele padre pouparia o nosso amo de muitos problemas.

- Sim.

- Talvez devêssemos falar a Buntaro-san sobre o Senhor Toranaga? É o nosso oficial superior.

- Concordo... mas mais tarde. Meu pai disse claramente que eu não devia interromper a cha-no-yu. Esperarei até que termine.

Na paz e silêncio da pequena casa, Buntaro abriu com toda a delicadeza a pequena caixa de chá de louça, da dinastia T'ang, e, com cuidado igual, pegou acolher de bambu, iniciando a parte final da cerimônia. Habilmente tirou com a colher a quantidade exata de pó verde e colocou-o na xícara de porcelana sem asa. Um antigo caldeirão de ferro fundido cantava sobre o braseiro. Com a mesma graça tranqüila, Buntaro verteu a água borbuIhante na xícara, recolocou o caldeirão no tripé, depois gentilmente bateu o pó e a água com o batedor de bambu para misturar perfeitamente.

Juntou uma colherada de água fria, curvou-se para Mariko, ajoelhada à sua frente, e ofereceu a xícara. Ela se curvou e a pegou com requinte igual, admirando o líquido verde, e tomou três goles, descansou, depois sorveu de novo, terminando-o. Devolveu a xícara. Ele repetiu a simetria do preparo formal do chá e novamente lhe ofereceu. Ela lhe pediu que provasse o chá ele mesmo, conforme era esperado dela. Ele sorveu, depois mais uma vez, e terminou. Depois ele preparou uma terceira xícara, e uma quarta. A quinta foi polidamente recusada.

Com grande cuidado, ritualmente, ele lavou e enxugou a xícara, usando um pano de algodão exclusivo, e colocou os objetos em seus lugares. Curvou-se para ela e ela para ele. A chano-yu estava terminada.

Buntaro sentia-se contente por ter feito o melhor possível e por haver agora, pelo menos no momento, paz entre eles. Naquela tarde não houvera paz alguma.

Ele fora ao encontro do palanquim dela. Imediatamente, como sempre, sentira-se vulgar e tosco em contraste com a frágil perfeição da mulher - como um dos aipos peludos, selvagens, desprezados e bárbaros, que habitaram o país um dia, mas que agora tinham sido expulsos para o extremo-norte, para o outro lado dos estreitos, para a ilha inexplorada de Hokkaido. Todas as suas bem pensadas palavras o abandonaram e ele canhestramente a convidara à cha-no-y u, acrescentando: - Faz anos que nós... Nunca lhe ofereci uma, mas esta noite será conveniente. - Depois deixara escapar, sem ter a intenção de dizê-lo, sabendo que era estúpido, deselegante e um erro imenso: - O Senhor Toranaga disse que era tempo que conversássemos.

- Mas o senhor acha que não?

Apesar da sua determinação, ele corou e sua voz soou rascante. - Eu gostaria de que houvesse harmonia entre nós, sim, o mais. Não mudei, neh?

- Naturalmente, senhor, por que deveria mudar? Se existe alguma falha, não cabe ao senhor mudar, mas a mim. E se existe alguma falha, é por minha causa, por favor, desculpe-me.

- Eu a desculparei - dissera ele, lá ao lado do palanquim, profundamente consciente de que estavam sendo observados, entre outros pelo Anjin-san e por Omi. Ela era tão amável, minúscula e singular, seu cabelo penteado para o alto, seus olhos baixos aparentemente tão modestos, e no entanto, para ele, agora, cheia do mesmo gelo negro que sempre o lançava a uma fúria cega, impotente, fazendo-o querer matar e gritar e mutilar e esmagar e comportar-se do modo como um samurai nunca deveria se comportar.

- Reservei a casa de chá para esta noite - disse-lhe ele. - Para esta noite, após a refeição noturna. Recebemos ordem de fazer a refeição noturna com o Senhor Toranaga. Eu ficaria honrado se você aceitasse o meu convite para depois.

- Sou eu quem fica honrada. - Ela se curvou e esperou com os mesmos olhos baixos, e ele teve vontade de socá-la no chão até a morte, depois mergulhar a faca em cruz no próprio ventre e deixar a dor eterna limpar-lhe o tormento da alma.

Ele a viu levantar os olhos na sua direção, perspicaz.

- Havia mais alguma coisa, senhor? - perguntou, muito suavemente.

O suor escorria pelas costas e pelas coxas dele, manchandolhe o quimono, o peito doendo, assim como a cabeça. - Você vai... você vai ficar na hospedaria esta noite. - Depois se afastou e tomou cuidadosas disposições para o comboio de bagagem inteiro. Assim que pôde, passou seus deveres a Naga e se afastou com uma truculência simulada, em direção da margem do rio. Quando ficou sozinho, mergulhou nu na torrente, sem se preocupar com a própria segurança, e lutou com o rio até a cabeça clarear e a dor martelante desaparecer.

Deitara-se na margem, recompondo-se. Agora que ela aceitara, ele tinha que começar. Havia pouco tempo. Reunira as forças e caminhara de volta ao tosco portão do jardim que ficava dentro do jardim principal e permanecera ali algum tempo, repensando seu plano. Naquela noite queria que tudo fosse perfeito. Obviamente a cabana era imperfeita, assim como o jardim - uma grosseira tentativa provinciana de uma verdadeira casa de chá. Não importa, pensou ele, agora completamente absorto na sua tarefa, terá que servir. A noite ocultará muitas falhas e as luzes terão que criar a forma que falta.

Os criados já haviam trazido as coisas que ele ordenara mais cedo - tatamis, lâmpadas de cerâmica a óleo, e utensílios de limpeza -, as melhores de Yokosé, tudo muito novo, mas modesto, discreto e despretensioso.

Ele tirou o quimono, pousou as espadas, e começou a limpar. Primeiro a minúscula sala de recepção, a cozinha e a varanda. Depois o caminho sinuoso e as lajes assentadas no musgo, e finalmente as rochas e o jardim em torno. Ele lavou, varreu, escovou até que tudo estivesse imaculado, rebaixando-se à humilhação do trabalho manual que era o início da cha-no-yu, onde se exigia que o anfitrião sozinho deixasse tudo impecável. A primeira perfeição era a limpeza absoluta.

Pelo crepúsculo havia acabado a maior parte dos preparativos. Depois tomara um banho meticuloso, suportara a refeição noturna e o canto. Assim que pôde, trocara-se de novo, vestindo roupas mais escuras, e voltara correndo para o jardim. Trancara o portão. Primeiro colocara o pavio nas lâmpadas de óleo. Depois, cuidadosamente, borrifara água nas lajes e nas árvores - que agora estavam salpicadas aqui e ali com uma luz bruxuleante -, até que o minúsculo jardim se transformasse num mundo de fadas de gotas de orvalho dançando ao calor da brisa de verão. Reposicionara algumas lanternas. Finalmente satisfeito, destrancara o portão e se dirigira para o vestíbulo. Os pedaços de carvão cuidadosamente selecionados, que tinham sido meticulosamente colocados numa pirâmide sobre areia branca, ardiam corretamente. As flores pareciam corretas no takonoma. Mais uma vez ele limpara os utensílios já impecáveis. O caldeirão começara a cantar e ele se sentira satisfeito com o som que era enriquecido pelos pedacinhos de ferro que colocara tão diligentemente na base.

Ouviu os passos dela nas lajes, o som de suas mãos mergulhando ritualmente na cisterna de água fresca do rio e sendo secas. Três passos suaves subindo a varanda. Mais dois até a soleira acortinada. Até ela tinha que se curvar para atravessar a minúscula porta, construída deliberadamente pequena para deixar humilde todo mundo. Numa cha-no-yu todos eram iguais, anfitrião e convidado, o mais alto daimio e o mais simples samurai. Até um camponês, se fosse convidado.

Primeiro ela estudou o arranjo de flores do marido. Ele escolhera um único botão de rosa branca selvagem, pingara uma única pérola de água sobre a folha verde, e colocara-o sobre pedras vermelhas. O outono se aproxima, estava ele sugerindo com a flor, falando através da flor, não chore pelo outono, a época de morrer, quando a terra começa a dormir; desfrute do tempo de começar de novo e experimente o frio glorioso do ar outonal nesta noite de verão... logo a lágrima desaparecerá, e a rosa, apenas as pedras permanecerão - logo você e eu desapareceremos, e apenas as pedras permanecerão.

Ele a observou, esquecido de si, agora mergulhado no transe próximo que um mestre de chá às vezes tinha a boa fortuna de experimentar, completamente em harmonia com o ambiente que o cercava. Ela se curvou para a flor em homenagem, aproximouse e ajoelhou-se diante dele. O seu quimono era marrom-escuro, um fio de ouro queimado nas costuras realçando-lhe a coluna branca do colo e o' rosto; o obi era do mais escuro dos verdes, combinando com o sobquimono; o cabelo simples, natural, sem adornos.

- Seja bem-vinda - disse ele com uma mesura, começando o ritual.

A honra é minha - replicou ela, aceitando o seu papel.

Ele serviu o minúsculo repasto numa imaculada bandeja de laca, os pauzinhos colocados num lado, as fatias de peixe sobre o arroz que ele preparara, e para completar o efeito algumas flores campestres que ele encontrara perto da margem do rio, distribuídas num desarranjo perfeito. Quando ela terminou de comer e Buntaro, por sua vez, terminou de comer, ele ergueu a bandeja, cada movimento formalizado - para ser observado, avaliado, recordado - e levou-a através da porta baixa para a cozinha.

Então, sozinha, em repouso, Mariko olhou o fogo criticamente, as brasas numa montanha incandescente, sobre o mar de areia branca embaixo do tripé, seus ouvidos ouvindo o som sibilante do fogo, fundindo-se ao suspirar do caldeirão que chiava levemente e, da cozinha que não era visível, a sibilação de pano sobre a porcelana e água limpando o que já estava limpo. Depois seus olhos passearam pelas vigas entrelaçadas, pelos bambus e juncos que formavam o telhado. As sombras lançadas pelas poucas lâmpadas que ele colocara aparentemente ao acaso tornavam o pequeno grande, o insignificante raro, e o conjunto uma harmonia perfeita. Depois de ter visto tudo e avaliado a própria alma, Mariko voltou para o jardim, para a bacia rasa que, ao longo de eras, a natureza formara na rocha. Mais uma vez purificou as mãos e a boca com a água fria, fresca, enxugando-as numa nova toalha.

Quando ela se acomodara de novo em seu lugar, ele disse: - Talvez agora pudéssemos tomar chá?

- A honra seria minha. Mas, por favor, não se dê a tanto incômodo por minha causa.

- A honra é minha. Você é minha convidada.

Então ele a servira. E agora era o término.

Em meio ao silêncio, Mariko não se moveu um instante. Permaneceu na sua tranqüilidade, não querendo ainda reconhecer o fim nem perturbar a paz que a rodeava. Mas sentiu o vigor crescente nos olhos dele. A cha-no-vu estava encerrada. Agora a vida devia começar de novo.

- O senhor o fez perfeitamente - sussurrou ela, sua tristeza dominando-a. Uma lágrima deslizou-lhe dos olhos, e a sua queda arrancou o coração de Buntaro ao peito.

- Não... não. Por favor, desculpe-me ... você é perfeita... foi comum - disse ele, desconcertado com um aplauso tão inesperado.

- Foi a melhor que jamais vi - disse ela, tocada pela total honestidade na voz dele.

- Não. Não, por favor, desculpe-me, se foi belo, foi por sua causa, Mariko-san. Foi apenas belo - você a tornou melhor.

- Para mim foi impecável. Tudo. Que triste que outros, mais dignos do que eu, também não pudessem te-la presenciado! - Seus olhos reluziam à luz piscante.

- Você a presenciou. Isso é tudo. Era apenas para você. Outros não teriam compreendido.

Ela agora sentiu as lágrimas quentes nas faces. Normalmente se teria envergonhado delas, mas agora não a incomodaram. - Obrigada, como posso agradecer-lhe?

Ele pegou um galho de timo selvagem e, de dedos trêmulos, inclinou-se para a frente e gentilmente apanhou uma de suas lágrimas. Silenciosamente baixou os olhos para a lágrima e o raminho sumiu em contraste com o seu punho imenso. - O meu trabalho ... qualquer trabalho ... é inadequado diante da beleza disto. Obrigado.

Observou a lágrima na folha. Um pedaço de carvão tombou da montanha e, sem pensar, ele pegou as tenazes e recolocou-o. Algumas centelhas dançaram no ar, do topo da montanha, que se transformou num vulcão em erupção.

Ambos devanearam numa doce melancolia, reunidos pela simplicidade da lágrima única, contentes, juntos no silêncio, reunidos pela humildade, sabendo que o que fora dado fora retribuído em pureza.

Mais tarde ele disse: - Se o nosso dever não o proibisse, eu lhe pediria que se juntasse a mim na morte. Agora.

- Eu iria com o senhor. Contente - respondeu ela de imediato. - Vamos para a morte. Agora.

- Não podemos. Nosso dever é para com o Senhor Toranaga.

Ela tirou o estilete do obi e reverentemente colocou-o sobre o tatami. - Então, por favor, permita-me preparar o caminho. - Não. Isso seria falhar com o nosso dever.

- O que tem que ser, será. O senhor e eu não podemos decidir.

- Sim. Mas não podemos ir antes do nosso amo. Nem você nem eu. Ele necessita de cada vassalo digno de confiança por um pouco mais. Por favor, desculpe-me, devo proibi-lo.

- Eu ficaria satisfeita em ir esta noite. Estou preparada. Mais do que isso, desejo totalmente ir para o além. Sim. Minha alma está transbordando de alegria. - Um sorriso hesitante.

- Por favor, desculpe-me por ser egoísta. O senhor está perfeitamente certo sobre o nosso dever.

A lâmina afiada cintilava à luz das lâmpadas. Eles a observaram, perdidos em contemplação. Então ele quebrou o encanto.

- Por que Osaka, Mariko-san?

- Há coisas a serem feitas lá que apenas eu posso fazer.

O cenho dele aprofundou-se enquanto observava a luz de um pavio gotejante bater na lágrima e se refratar num bilhão de cores.

- Que coisas?

- Coisas que dizem respeito ao futuro da nossa casa e que devem ser feitas por mim.

- Nesse caso você deve ir. - Olhou-a inquisitivo. - Mas você sozinha?

- Sim. Desejo me certificar de que todos os arranjos de família estão perfeitos entre nós e o Senhor Kiyama para o casamento de Saruji. Dinheiro, dote, terras, e assim por diante. Há o feudo aumentado dele a formalizar. O Senhor Hiro-matsu e o Senhor Toranaga exigem que isso seja feito. Eu sou a responsável pela casa.

- Sim - disse ele lentamente -, é seu dever. - Seus olhos encontraram os dela. - Se o Senhor Toranaga diz que você pode ir, então vá, mas não é provável que você tenha permissão para ficar lá. Ainda assim ... deve voltar rapidamente. Muito rapidamente. Seria imprudente ficar em Osaka um momento além do necessário.

- Sim.

- Por mar seria mais rápido do que por terra. Mas você sempre detestou o mar.

- Ainda detesto.

- Você tem que estar lá logo?

- Não creio que meio mês ou um mês fizesse diferença. Talvez, não sei. Só sinto que devo ir imediatamente.

- Então deixaremos o momento e o assunto da ida ao Senhor Toranaga, se ele permitir que você vá. Com o Senhor Zataki aqui, e os dois pergaminhos, isso só pode significar a guerra. Ir será perigoso demais.

- Sim. Obrigada.

Contente de que aquilo estivesse terminado, ele olhou em torno na pequena sala, satisfeito, sem se preocupar agora com o fato de que sua feia corpulência dominava o espaço, cada uma das suas coxas mais vasta do que a cintura dela, seus braços mais grossos do que o pescoço dela. - Esta sala foi excelente, melhor do que me atrevi a esperar. Gostei de estar aqui. Fui lembrado de novo de que um corpo não é nada além de uma cabana na selva. Obrigado a você por ter estado aqui. Estou muito contente de que tenha vindo a Yokosé, Mariko-san. Não fosse por sua causa, eu nunca teria dado uma cha-no-yu aqui e nunca me teria sentido tão unificado com a eternidade.

Ela hesitou, depois cautelosamente pegou a caixa de chá T'ang. Era um pote simples, com tampa, sem ornamentos. O esmalte laranja-amarronzado estava gasto, deixando uma borda desigual de porcelana nua na base, dramatizando a importância do oleiro e sua relutância em dissimular a simplicidade do seu material. Buntaro a comprara de Sen-Nakada, o mais famoso mestre de chá que jamais existira, por vinte mil kokus. - E tão bonita - murmurou ela, apreciando-lhe o toque. - Tão perfeita para a cerimônia.

- Sim.

- O senhor foi realmente um mestre esta noite, Buntarosan. Deu-me muita felicidade. - A sua voz era baixa e intensa, e ela se inclinou um pouco para a frente. - Tudo foi perfeito para mim, o jardim e como o senhor usou talento para superar as falhas com luz e sombra. E isto - tocou novamente a caixa de chá. - Tudo perfeito, até o símbolo que o senhor escreveu na toalha, ai, afeição. Para mim, esta noite, afeição foi a palavra perfeita. - Novamente as lágrimas lhe escorreram pelas faces.. - Por favor, desculpe-me - disse, enxugando-as.

Ele se curvou, embaraçado com tal elogio. Para dissimular, começou a envolver a caixa nos abafadores de seda. Quando terminou, colocou-a noutra caixa e pousou-a cuidadosamente diante dela. - Mariko-san, se a nossa casa tem problemas de dinheiro, pegue isto. Venda.

- Nunca! - Era a única posse, além das espadas e do arco, que ele prezava na vida. - Isso seria a última coisa que eu venderia.

- Por favor, desculpe-me, mas se pagar aos meus vassalos é um problema, pegue isto.

- Há o suficiente para todos eles, com cuidado. E as melhores armas e os melhores cavalos. Nisso nossa casa é forte. Não, Buntaro-san, a T'ang é sua.

- Não nos resta muito tempo. A quem eu deveria legá-la? Saruji?

Ela olhou para as brasas e o fogo consumindo o vulcão, humilhando-o. - Não. Não até que ele seja um mestre de chá digno, igual ao pai. Aconselho-o a deixar a T'ang ao Senhor Toranaga, que a merece, e pedir a ele que, antes de morrer, julgue se o nosso filho merecerá recebe-la.

- E se o Senhor Toranaga perder e morrer antes do inverno, como estou certo de que perderá?

- O quê?

- Aqui, em particular, posso lhe dizer calmamente essa verdade, sem fingimento. Não é uma parte importante da cha-no-yu não se fingir? Sim, ele vai perder, a menos que consiga Kiyama Onoshi e Zataki.

- Nesse caso, determine no seu testamento que a T'ang deve ser enviada com um cortejo a Sua Alteza Imperial, solicitando-lhe que a aceite. Certamente a T'ang merece a divindade.

- Sim. Essa seria a escolha perfeita.'- Ele estudou a faca, depois acrescentou tristemente: - Ah, Mariko-san, não há nada a se fazer pelo Senhor Toranaga. Seu karma está escrito. Ele vence ou perde. E se vencer ou perder, haverá uma grande matança.

- Sim.

Meditativo, ele desviou os olhos da faca e contemplou o ramo de timo selvagem, a lágrima ainda pura. Mais tarde, disse: - Se ele perder, antes que eu morra, ou que seja morto, eu ou um dos meus homens matará o Anjin-san.

O rosto dela ficou etéreo contra a escuridão. A brisa suave moveu-lhe alguns fios de cabelo, fazendo-a parecer-se ainda mais com uma estátua.

- Por favor, desculpe-me, posso perguntar por quê?

- Ele é perigoso demais para continuar vivo. Seu conhecimento, suas idéias, que ouvi até de quinta mão... Ele infectará o reino, até o Senhor Yaemon. O Senhor Toranaga já está sob o encantamento dele, neh?

- O Senhor Toranaga aprecia o conhecimento dele - disse ela.

- No momento em que o Senhor Toranaga morrer será a ordem para a morte do Anjin-san. Mas espero que os olhos do nosso senhor se abram antes disso. - A lâmpada gotejante crepitou e extinguiu-se. Ele deu uma olhada nela. - Você está sob encantamento.

- E um homem fascinante. Mas sua mente é tão diferente da nossa ... seus valores ... sim, tão diferente em tantos sentidos, que às vezes é quase impossível compreendê-lo. Uma vez tentei explicar uma cha-no-yu a ele, mas isso estava além da sua capacidade de compreensão.

- Deve ser terrível ter nascido bárbaro ... terrível - disse Buntaro.

- Sim.

Os olhos dele caíram sobre a lâmina do estilete. - Algumas pessoas pensam que o Anjin-san foi japonês numa vida anterior. Não é como os outros bárbaros e... tenta arduamente falar e agir como um de nós, embora falhe, neh?

- Gostaria que o senhor o tivesse visto quase cometer seppuku, Buntaro-san... foi extraordinário. Vi a morte visitá-lo, ser afastada pela mão de Omi. Se ele foi japonês anteriormente, isso explicaria muitas coisas. O Senhor Toranaga o considera muito valioso para nós agora.

- É tempo que você pare de treiná-lo e se torne japonesa de novo.

- Senhor?

- Acho que o Senhor Toranaga está sob o encantamento dele. E você também.

- Por favor, desculpe-me, mas não acho que eu esteja.

- Aquela noite em Anjiro, aquela que acabou mal, naquela noite senti que você estava do lado dele, contra mim. Claro que foi um mau pensamento, mas senti isso.

O olhar dela afastou-se da lâmina. Olhou para ele firmemente e não respondeu. Outra lâmpada crepitou rapidamente e extinguiu-se. Agora só restava uma na sala.

- Sim, eu o odiei naquela noite - continuou Buntaro, na mesma voz calma -, e quis vê-lo morto, assim como a você e a Fujiko-san. Meu arco cochichava comigo, como faz algumas vezes, pedindo uma morte. E quando, na manhã seguinte, eu o vi descendo a colina com aquelas covardes pistolazinhas nas mãos, minhas setas imploraram para beber-lhe o sangue. Mas eu pus de lado a idéia de matá-lo e me humilhei, odiando minha falta de educação mais do que a ele, envergonhado pela minha falta de educação e pelo saque. - Seu cansaço mostrava-se agora. - Muitas vergonhas a suportar, você e eu. Neh?

- Sim.

- Não quer que eu o mate?

- Deve fazer aquilo que sabe ser o seu dever - disse ela. - Assim como eu sempre farei o meu.

- Ficamos na hospedaria esta noite - disse ele. - Sim.

Então, como ela fora uma convidada perfeita e a cha-no-yu a melhor que ele jamais realizara, ele mudou de idéia e deu-lhe tempo e paz em medida igual à que recebera dela. - Vá para a hospedaria. Durma - disse. Sua mão pegou o estilete e estendeu-o a ela. - Quando os bordos estiverem despidos de folhas, ou quando você regressar de Osaka, começaremos. Como marido e mulher.

- Sim. Obrigada.

- Concorda espontaneamente, Mariko-san?

- Sim. Obrigada.

- Diante do seu Deus?

- Sim. Diante de Deus.

Mariko curvou-se e aceitou a faca, recolocou-a no esconderijo, curvou-se de novo e partiu.

Seus passos morreram a distância. Buntaro baixou os olhos para o raminho ainda no seu punho, a lágrima ainda presa a uma folha minúscula. Seus dedos tremeram ao, gentilmente, pousar o galho sobre a última brasa. As folhas de um verde puro começaram a se contorcer e a se carbonizar. A lágrima desapareceu com um silvo.

Então, em silêncio, ele começou a chorar com raiva, subitamente certo, no mais íntimo do seu ser, de que ela o traíra com o Anjin-san.

 

Blackthorne viu-a sair do jardim e atravessar o pátio bem iluminado. Susteve o fôlego ante a brancura da sua beleza. O amanhecer estava se insinuando no céu oriental.

- Alô, Mariko-san.

- Oh ... alô, Anjin-san! O senhor... desculpe, o senhor me assustou ... não o tinha visto. Levantou-se cedo.

- Não. Gomen nasal, estou na hora. - Ele sorriu e apontou para a manhã, que não estava muito distante. - É um hábito que adquiri ao mar, acordar pouco antes do amanhecer, em bom tempo para subir ao convés e medir o sol. - Seu sorriso ampliou-se. - Foi a senhora que acordou cedo!

- Eu não havia percebido que era... que a noite já se fora. - Samurais estavam postados aos portões e soleiras, observando curiosos, Naga entre eles. A voz dela tornou-se quase imperceptível ao passar para o latim. - Vigie os seus olhos, rogolhe: Até a escuridão da noite contém arautos da destruição.

- Peço perdão.

Desviaram o olhar quando cavalos subiram em tropel até o portão principal. Falcoeiros, o grupo de caça e guardas. Desanimado, Toranaga surgiu de dentro da casa.

- Está tudo pronto, senhor - disse Naga. - Posso ir com o senhor?

- Não, não, obrigado. Descanse um pouco. Mariko-san, como foi a cha-no-yu?

- Muito bonita, senhor. Muitíssimo bonita. - Buntaro-san é um mestre. Você tem sorte. - Sim, senhor.

- Anjin-san! Gostaria de ir caçar? Eu gostaria de aprender como é que você faz voar um falcão.

- Senhor?

Mariko traduziu imediatamente.

- Sim, obrigado - disse Blackthorne.

- Bom. - Toranaga indicou-lhe um cavalo. - Venha comigo.

- Sim, senhor.

Mariko observou-os partir. Depois de vê-los subir a trote o caminho, dirigiu-se ao seu quarto. A criada ajudou-a a se despir, a remover a maquilagem e a soltar o cabelo. Depois disse à criada que ficasse no quarto, que ela não queria ser perturbada até o meio-dia.

- Sim, ama.

Mariko deitou-se, fechou os olhos e permitiu que seu corpo mergulhasse na maravilhosa maciez dos acolchoados. Estava exausta e jubilosa. A cha-no-yu a havia impelido a uma estranha altura de paz, limpando-a, e a partir dali, a decisão sublime e plena de alegria de ir para a morte a colocara num pináculo ainda mais elevado, que nunca atingira antes. O retorno à vida deixara-a com uma misteriosa e inacreditável lucidez quanto à beleza de estar viva. Ela parecera estar fora de si mesma ao responder pacientemente a Buntaro, certa de que suas respostas e o seu desempenho tinham sido igualmente perfeitos. Enrodilhou-se na cama, muito contente de que essa paz existisse agora ... até que as folhas caíssem.

Oh, Nossa Senhora, orou fervorosamente, agradeço-lhe pela sua mercê em me conceder o meu glorioso alívio. Agradeço-lhe e adoro-a com todo o coração, com toda a minha alma e por toda a eternidade.

Repetiu uma ave-coaria em humildade e depois, pedindo perdão, de acordo com o seu costume e em obediência ao seu suserano, por outro dia colocou o seu Deus num compartimento da mente.

O que eu teria feito, ruminou pouco antes de o sono se apossar dela, se Buntaro tivesse pedido para compartilhar o meu leito?

Eu teria recusado.

E se ele tivesse insistido, conforme o seu direito?

Eu teria cumprido a promessa que fiz a ele. Oh, sim. Nada mudou.

 

À hora do Bode, o cortejo cruzou a ponte de novo. Foi tudo como antes, exceto que agora Zataki e seus homens usavam trajes mais leves, para viajar - ou para enfrentar uma escaramuça. Estavam todos pesadamente armados e, embora muito bem disciplinados, todos ansiosos por um combate de morte, se viesse. Sentaram-se em ordem em frente às forças de Toranaga, que os superavam largamente em quantidade. O Padre Alvito estava a um lado, entre os assistentes. E Blackthorne.

Toranaga deu as boas-vindas a Zataki com a mesma formalidade calma, prolongando o sentar-se cerimonioso. Desta vez os dois daimios ficaram sozinhos sobre o estrado, as almofadas mais afastadas uma da outra, sob um céu carregado. Yabu, Omi, Naga e Buntaro estavam no chão, em torno de Toranaga, e quatro dos conselheiros de combate de Zataki se espaçavam atrás dele. No momento correto, Zataki pegou o segundo pergaminho. - Vim para a sua resposta formal.

- Concordo em ir a Osaka e em me submeter à vontade do conselho - disse Toranaga calmamente, e curvou-se.

- Vai se submeter? - começou Zataki, o rosto desfigurado de incredulidade. - O senhor, Toranaga-noh-Minowara, vai...

- Ouça - interrompeu Toranaga, numa ressonante voz de comando que ricocheteou em torno da clareira, sem parecer alta. - O conselho de regentes deve ser obedecido! Embora seja ilegal, está constituído e nenhum daimio isolado-tem o direito de dividir o reino, por mais razão que ele tenha. O reino tem precedência. Se um daimio se revolta, é dever de todos destruí-lo.

Jurei ao táicum que nunca seria o primeiro a romper a paz, e não serei, ainda que o país esteja dominado pelo mal. Aceito o convite. Aceito-o hoje.

Agastado, cada samurai estava tentando adivinhar o que aquela inacreditável meia-volta significaria. Estavam todos doloridamente certos de que muitos, se não todos, seriam forçados a se tornar ronins, com tudo o que isso significava - perda de honra, de renda, de família, de futuro.

Buntaro sabia que acompanharia Toranaga na sua última viagem e lhe compartilharia o destino - morte com toda a família, de todas as gerações. Ishido era seu inimigo demais para perdoar, e de qualquer modo, quem quereria continuar vivo quando seu próprio senhor desistia da verdadeira luta de um modo tão covarde? Karma, pensou Buntaro, cáustico. Buda me dê forças! Agora estou comprometido em tirar a vida de Mariko e a do nosso filho, antes de tirar a minha. Quando? Quando meu dever estiver cumprido e nosso senhor tiver segura e honradamente partido para o Vazio. Ele precisará de um assistente fiel, neh? Foi-se tudo, como folhas de outono, todo o futuro e o presente, Céu Carmesim e o destino. Está igualmente bem, neh? Agora o Se- - nhor Yaemon herdará, com certeza. O Senhor Toranaga deve estar secretamente tentado, no mais íntimo do seu coração, a tomar o poder, por mais que o negue. Talvez o táicum volte à vida por intermédio do filho e, oportunamente, combateremos com a China de novo e desta vez venceremos, para nos erguer ao topo do mundo, como é nosso dever divino. Sim, a Senhora Ochiba e Yaemon não nos venderão na próxima vez, como Ishido e seus covardes seguidores fizeram na última...

Naga estava desconcertado. Nada de Céu Carmesim? Nada de guerra honrosa? Nada de luta até a morte nas montanhas de Shinano ou nas planícies de Kyoto? Nada de morte honrosa em batalha, heroicamente defendendo o estandarte do pai, nada de pilhas de inimigos mortos, em cima dos quais se escarranchar num último momento de glória, ou numa vitória divina? Nada de ataque, mesmo com as vis armas de fogo? Nada disso - apenas um seppuku, provavelmente às pressas, sem pompa, cerimônia ou honra, e sua cabeça espetada num chuço, exposta ao escárnio do populacho. Apenas uma morte e o fim da linhagem Yoshi. Pois naturalmente cada um deles morreria, o pai, todos os irmãos, irmãs, primos, sobrinhos e sobrinhas, e tias e tios. Seus olhos se fixaram em Zataki. O sangue começou a inundar-lhe o cérebro.

Omi observava Toranaga com olhos semicerrados, o ódio a devorá-lo. Nosso amo enlouqueceu, pensou. Como pode ser tão estúpido? Temos cem mil homens e o Regimento de Mosquetes e mais cinqüenta mil em torno de Osaka! Céu Carmesim é mil vezes melhor do que urna solitária sepultura fedorenta!

Sua mão pesava sobre o punho da espada e, num momento de enlevo, ele se imaginou pulando para a frente para decapitar Toranaga, estender a cabeça do suserano ao regente Zataki e assim pôr termo à charada desprezível. Depois morrer pela própria mão com honra, ali, diante de todos. Pois que sentido havia em viver agora? Agora Kiku estava fora do seu alcance, seu contrato comprado e possuído por Toranaga, que os traíra a todos. Na noite passada seu corpo ficara em chamas enquanto ela cantava e ele sabia que a canção, secretamente, se destinava a ele, e só a ele. Ardor não reconhecido - ele e ela. Espere: por que não um suicídio conjunto? Morrer lindamente juntos, estar juntos por toda a eternidade. Oh, que maravilhoso seria isso! Fundir nossas almas na morte, como um testemunho sem fim da nossa adoração à vida. Mas primeiro o traidor Toranaga, neh?

Com um esforço, Omi se arrastou de volta da beira do precipício.

Tudo deu errado, pensou. Não existe paz na minha casa, sempre raiva e discussão, e Midori sempre em lágrimas. Minha vingança contra Yabu é remota agora. Não houve acordo secreto com Zataki, com ou sem Yabu, negociado durante horas na noite passada. Nenhum acordo de espécie alguma. *Nada certo. Mesmo quando Mura encontrou as espadas, estavam ambas tão mutiladas pela força da terra, que sei que Toranaga me odiou por te-las mostrado a ele. E agora, finalmente, isto - esta covarde e traidora rendição!

É quase como se eu estivesse enfeitiçado - num mau encantamento. Lançado pelo Anjin-san? Talvez. Mas está tudo perdido do mesmo jeito. Nada de espadas, vinganças, via secreta de fuga, Kiku, o futuro. Espere. Existe um futuro com ela. A morte é um futuro, e passado e presente, e será muito limpo e simples...

- Está desistindo? O senhor não vai combater? - berrou Yabu, consciente de que a sua morte e a da sua linhagem estavam garantidas agora.

- Aceito o convite do conselho - replicou Toranaga. Como o senhor aceitará o convite do conselho!

- Não farei...

Omi saiu do devaneio com presença de espírito suficiente para saber que tinha que interromper Yabu e protege-lo da morte instantânea que qualquer confrontação com Toranaga causaria. Mas deliberadamente apertou os lábios, dando vivas de alegria consigo mesmo diante desse presente enviado pelo céu, e esperou que o desastre de Yabu o arruinasse de vez.

- Não vai fazer o quê? - perguntou Toranaga.

A alma de Yabu guinchou perigo. Ele tentou disfarçar: - Eu... eu... naturalmente seus vassalos obedecerão. Sim.. se o senhor decide... qualquer coisa que o senhor decida eu... eu farei.

Omi praguejou intimamente e permitiu que a expressão vítrea do rosto voltasse, a mente ainda paralisada pela totalmente inesperada capitulação de Toranaga.

Furioso, Toranaga deixou Yabu continuar gaguejando, aumentando a intensidade do pedido de desculpas. Depois, desdenhosamente, interrompeu-o: - Bom.

Voltou-se para Zataki, mas não relaxou a vigilância. - Então, Irmão, o senhor pode ignorar o segundo pergaminho. Não há mais nada... - Do canto do olho, viu o rosto de Naga alterar-se e girou na sua direção: - Naga!

O jovem quase saltou fora da própria pele, mas a mão deixou a espada. - Sim, Pai? - gaguejou ele.

- Vá buscar meus materiais de escrita! Já! - Quando Naga estava bem longe do alcance da espada, Toranaga respirou, aliviado por ter impedido o ataque a Zataki antes que tivesse começado. Seus olhos estudaram Buntaro cuidadosamente. Depois Omi. E por último Yabu. Achou que os três estavam agora suficientemente controlados para não fazer qualquer gesto imbecil que precipitaria um tumulto imediato e uma grande carnificina.

Mais uma vez dirigiu-se a Zataki. - Dar-lhe-ei a minha aceitação formal e por escrito imediatamente. Isso preparará o conselho para a minha visita de cerimônia. - Baixou a voz e falou apenas aos ouvidos de Zataki: - Dentro de Izu o senhor está seguro, regente. Fora também está seguro. Até que minha mãe esteja fora do seu alcance, o senhor estará seguro. Só até lá. Esta reunião está encerrada.

- Bom. "Visita de cerimônia"? - Zataki foi abertamente desdenhoso. - Que hipocrisia! Nunca pensei que veria o dia em que Yoshi Toranaga-noh-Minowara se ajoelharia ao General Ishido. O senhor é ...

- O que é mais importante, Irmão? - disse Toranaga. - A continuidade da minha linhagem ou a do reino?

A escuridão pairava sobre o vale. Estava se espalhando agora, a base das nuvens mal e mal a trezentos pés do solo, obscurecendo completamente o caminho para o passo. A clareira e o adro da hospedaria estavam cheios de samurais se acotovelando, malhumorados. Cavalos pisoteavam irritadamente. Oficiais gritavam ordens com aspereza desnecessária. Carregadores atemorizados corriam de um lado para o outro, preparando a coluna que partia. Faltava por volta de uma hora para o escurecer.

Toranaga escrevera a floreada mensagem, assinara, e a enviara por um mensageiro a Zataki, ignorando as súplicas de Buntaro, Omi e Yabu, em conferência privada. Ouvira os argumentos deles silenciosamente.

Quando terminaram, ele disse: - Não quero mais saber de conversa. Escolhi o meu caminho. Obedeçam!

Dissera-lhes que regressaria a Anjiro imediatamente para reunir o resto dos seus homens. No dia seguinte tomaria a estrada costeira de leste em direção a Atami e Odawara, dali para os desfiladeiros entre as montanhas, até Yedo. Buntaro comandaria a sua escolta. No dia seguinte, também, o Regimento de Mosquetes deveria embarcar em galeras, em Anjiro, e zarpar para esperá-lo em Yedo, com Yabu ao comando. Omi seguiria para a fronteira, pela estrada central, com todos os guerreiros disponíveis em Izu. Devia dar assistência a Hiro-matsu, que estava no comando supremo, e garantir que o inimigo, Ikawa Jikkyu, não interferisse no tráfego normal. Omi devia se basear em Mishima por enquanto, para guardar aquele setor da estrada Tokaido, e preparar palanquins e cavalos em quantidade suficiente para Toranaga e o séquito considerável que era necessário para uma visita de cerimônia formal. - Alerte todos os pontos de parada ao longo da estrada e prepare-os igualmente.

Compreendeu?

- Sim, senhor.

- Certifique-se de que esteja tudo perfeito!

- Sim, senhor. Pode contar comigo. - Até Omi tinha estremecido sob o olhar penetrante e terrível.

Quando tudo ficou pronto para a partida, Toranaga saiu dos seus aposentos para a varanda. Todos se curvaram. Carrancudo, fez-lhes sinal que continuassem e mandou buscar o estalajadeiro. O homem foi todo mesuras ao apresentar a conta, de joelhos. Toranaga verificou item por item. A conta era justa. Ele assentiu e atirou-a ao seu pagador, para que a pagasse, depois chamou Mariko e o Anjin-san. Mariko recebeu permissão para ir a Osaka. - Mas antes você irá direto daqui até Mishima. Entregue este despacho particular a Hiro-matsu, depois continue até Yedo com o Anjin-san. É responsável por ele até chegarem. Você provavelmente irá por mar a Osaka, decidirei isso mais tarde. Anjin-san! Recebeu o dicionário do padre-san?

- Por favor? Sinto muito, não compreendo. Mariko traduzira.

-- Sinto muito. Sim, eu livro recebi.

- Quando nos encontrarmos em Yedo, você estará falando japonês melhor do que agora. Wakarimasu ka?

- Hai. Gomen nasal.

Tristemente, Toranaga saiu para o pátio, um samurai segurando-lhe um amplo guarda-chuva para protegê-lo da chuva. Como um só, todos os samurais, carregadores e aldeãos novamen te se curvaram. Toranaga não prestou atenção neles, simplesmente subiu no seu palanquim coberto, à testa da coluna, e fechou as cortinas.

Imediatamente, os seis carregadores semidespidos ergueram a liteira e se puseram em marcha, num trote cerrado, os calosos pés descalços chapinhando nas poças. Samurais da escolta caval gavam à frente, e outra guarda montada cercava o palanquim. Carregadores de reserva e o comboio de bagagem seguiam atrás, todos correndo, todos tensos e apavorados. Omi chefiava a vanguarda. Buntaro estava no comando da retaguarda. Yabu e Naga já haviam partido ao encontro do Regimento de Mosquetes, que ainda estava atravessado na estrada em emboscada, à espera de Toranaga no cume; o regimento engataria atrás, para formar uma retaguarda. - Retaguarda contra quem? - rosnara Yabu a Omi nos poucos momentos à parte que tiveram antes de Yabu partir a galope.

Buntaro avançou a passos largos para o alto e curvo portão da hospedaria, sem tomar conhecimento do aguaceiro. - Mariko-san!

Obedientemente ela se apressou na direção dele, seu guardachuva laranja de papel oleado batido pelos pingos pesados. - Sim, senhor?

Sob a aba do chapéu de bambu, os olhos de Buntaro foram dela para Blackthorne, que observava da varanda. - Diga a ele. . . - Parou.

- Senhor?

Ele a encarou. - Diga-lhe que o torno responsável por você. -- Sim, senhor - disse ela. - Mas, por favor, desculpe-me, eu sou responsável por mim.

Buntaro voltou-se e mediu a distância até a cabeça da coluna. Quando a olhou de novo, seu rosto mostrava um vestígio do seu tormento.

- Agora não haverá folhas outonais para os nossos olhos, nela?

- isso está nas mãos de Deus, senhor.

-- Não, está nas mãos do Senhor Toranaga - disse ele com desdém.

Ela levantou os olhos, sem vacilar sob o olhar dele. A chuva caía forte. As gotas caíam da borda do guarda-chuva como uma cortina de lágrimas. A lama salpicava na barra do quimono dela. Então disse: - Sayonara... até que eu a veja em Osaka.

Ela ficou surpresa. - Oh, desculpe, mas eu não vou vê-]o em Yedo? Com certeza o senhor estará lá com o Senhor Toranaga, chegará quase ao mesmo tempo, tieli:' Vê-lo-ei então.

- Sim. Mas em Osaka, quando nos encontrarmos lá ou quando você regressar de lá, será quando começaremos de novo. Será então que eu a verei realmente, neh?

- Ah, compreendo. Sinto muito.

- Sayonara, Mariko-san - disse ele.

- Sayonara, meu senhor. - Mariko curvou-se, Ele lhe retribuiu a reverência imperiosamente e se afastou pelo charco ria direção do seu cavalo. Saltou para a sela e disparou, sem olhar para trás.

- Vá com Deus - disse ela, de olhos fixos nele.

Blackthorne viu os olhos dela acompanhando Buntaro. Esperava ao abrigo do telhado, a chuva diminuindo. Logo a cabeça da coluna desapareceu nas nuvens, depois o palanquim de Toranaga, e ele respirou com mais facilidade, ainda abalado por Toranaga e por todo o dia de mau agouro.

Naquela manhã a caça começara muito bem. Ele escolhera um falcão minúsculo, de longas asas, como um esmerilhão, e fizera-o voar com muito sucesso contra uma calhandra. Comandan do o ataque, conforme era privilégio seu, ele galopara através da floresta ao longo de uma trilha bem batida, mascates e sitiantes itinerantes dispersos pelo caminho. Mas um vendedor de óleo. alquebrado pelo tempo, com um cavalo igualmente molambento, bloqueou o caminho c, rixento, não se moveu do lugar. Na animação da caçada, Blackthorne gritara ao homem que se afastasse, mas o mascate não arredou pé, então ele o cobrira de imprecações. O vendedor de óleo retrucara com rudeza, gritando também, e então Toranaga se aproximara, apontara para o seu próprio guarda-costas e dissera: - Anjin-san, dê-lhe a sua espada um instante - e algumas palavras que ele não compreendeu. Blackthorne obedeceu imediatamente. Antes que percebesse o que estava acontecendo, o samurai investiu contra o mercador. O golpe foi tão selvagem e perfeito, que o vendedor de óleo ainda deu um passo antes de cair, dividido em dois pela cintura.

Toranaga dera um murro na maçaneta da sela com um prazer momentâneo, depois caíra de novo na sua melancolia, enquanto os outros samurais davam vivas. O guarda-costas limpou a lâmina cuidadosamente, usando o seu sash de seda para proteger o aço. Embainhou a espada com satisfação e devolveu-a, dizendo alguma coisa que Mariko depois explicou: - Ele só disse, Anjin-san, que ficou orgulhoso de poder testar essa lâmina. O Senhor Toranaga está sugerindo que o senhor apelide a espada de "Vendedor de óleo", porque um tal golpe e agudeza deviam ser lembrados com honra. Sua espada agora tornou-se lendária, neh?

Blackthorne lembrava-se de como assentira, ocultando a própria angústia. Estava usando a Vendedor de óleo agora - seria Vendedor de óleo para sempre -, a mesma espada que Toranaga lhe presenteara. Gostaria que ele nunca me tivesse dado, pensou Blackthorne. Mas a culpa não foi toda dele, foi minha também. Gritei com o homem, ele foi rude, e samurais não podem ser tratados com rudeza. Que outra linha de conduta havia? Blackthorne sabia que não havia nenhuma. Ainda assim, a morte suprimira-lhe a alegria da caçada, embora tivesse que esconder isso com cuidado porque Toranaga estivera taciturno e difícil o dia todo.

Pouco antes do meio-dia, retornaram a Yokosé, depois houve o encontro de Toranaga com Zataki, e depois, após um banho de vapor e uma massagem, repentinamente o Padre Alvito apareceu lhe no caminho, como um espectro vingador, acompanhado de dois acólitos hostis. - Jesus Cristo, afaste-se de mim!

- Não há necessidade de ter medo, ou de blasfemar - dissera Alvito.

- Deus amaldiçoe o senhor e todos os padres! - dissera Blackthorne, tentando se controlar, sabendo que se encontrava mergulhado em território inimigo. Anteriormente vira meia cen tena de samurais católicos escoando aos poucos pela ponte para a missa que Mariko lhe dissera estava sendo realizada no pátio da hospedaria de Alvito. Sua mão procurou o punho da espada, mas não a estava usando com o roupão de banho, ou carregando-a como era costumeiro, e amaldiçoou a própria estupidez, detestando estar desarmado.

- Que Deus lhe perdoe a lhe perdoe e lhe abra os olhos. blasfêmia, piloto. Sim. Que ele Não lhe desejo mal. Vim para lhe trazer um presente. Tome, um presente de Deus, piloto. Blackthorne pegou o pacote desconfiado. Quando o abriu e viu o dicionário-gramática de português, latim e japonês, um arrepio o percorreu. Folheou algumas páginas. A impressão era certamente a melhor que ele já vira, a qualidade e o pormenor da informação surpreendentes. - Sim, isto é um presente de Deus, está bem, mas o Senhor Toranaga lhe ordenou que me desse.

- Obedecemos apenas às ordens de Deus. - Toranaga lhe pediu que me desse?

- Sim. Foi solicitação dele.

- E uma "solicitação" de Toranaga não é uma ordem?

- Depende, capitão-piloto, de quem se é, do que se é, e de quão grande é a fé que se tem. - Alvito apontou para o livro. - Três dos nossos irmãos

- Por que o senhor está me dando? - Pediram-nos que fizéssemos isso.

- Por que não evitou a solicitação do Senhor Toranaga? O senhor é astuto mais que o suficiente para fazer isso.

Alvito deu de ombros. Rapidamente Blackthorne folheou o livro, examinando-o. Excelente papel, impressão números das páginas estavam em seqüência.

- Está completo - disse Alvito, divertido. com meios livros.

- Isto é valioso em troca?

- Ele nos pediu que lhe déssemos. O padre-inspetor gastaram vinte e sete anos

preparando.

O que quer concordou. Por isso o estamos dando. Foi impresso neste ano, finalmente. É lindo, não? Só lhe pedimos que o estime, que trate bem o livro. É digno de ser bem tratado.

- É digno de ser protegido com a vida. Isto é cimento inestimável, como um dos nossos portulanos Melhor ainda. O que quer por ele?

- Não pedimos nada em troca.

- Não acredito. - Blackthorne sopesou-o na mais desconfiado. - O senhor deve saber que isto me ao senhor. Dá-me todo o seu conhecimento e nos poupa. Com isto logo estarei falando tão bem quanto o senhor. Uma vez que possa fazer isso, poderei ensinar a outros. Esta é a chave do Japão, neh? A língua é a chave de qualquer lugar estrangeiro, neh? Dentro de seis meses serei capaz de conversar diretamente com Toranaga-sama.

- Sim, talvez seja. Se tiver seis meses. - O que significa isso?

- Nada mais além do que o senhor já sabe. O Senhor Toranaga estará morto bem antes que se passem seis meses.

- Por quê? Que novidades o senhor lhe trouxe? Desde que conversou com o senhor ele ficou como um touro, com metade da garganta dilacerada. O que foi que lhe disse, hein?

- Minha mensagem era particular, de Sua Eminência ao Senhor Toranaga. Sinto muito, sou meramente um mensageiro. Mas o General Ishido controla Osaka, como o senhor certamente sabe, e quando Toranaga-sama for a Osaka, estará tudo acabado para ele. E para você.

Blackthorne sentiu o gelo na medula. - Por que eu?

- Não se pode escapar ao seu destino, piloto. Ajudou Toranaga contra Ishido. Esqueceu? Colocou as mãos violentamente em cima de Ishido. Comandou a arremetida para fora da enseada de Osaka. Sinto muito, mas ser capaz de falar japonês, ou as suas espadas ou o status de samurai não o ajudarão em absoluto. Talvez seja pior agora, sendo o senhor samurai. Agora receberá ordem de cometer seppukií e se recusar. . . - Alvito acrescentou na mesma voz gentil: - Eu lhe disse antes que eles são um povo simples.

- Nós, ingleses, também somos um povo simples - disse ele, com não pouca bravata. - Quando estamos mortos, estamos mortos, mas antes disso depositamos nossa confiança em Deus e mantemos a nossa pólvora seca. Restam-me alguns truques, não receie.

- Oh, não tenho receio, piloto. Não receio nada, nem o senhor nem a sua heresia, nem as suas armas. Estão amarrádas. . . assim como o senhor.

- Isso é karma, está nas mãos de Deus, chame como quiser - disse-lhe Blackthorne, aturdido. - Mas por Deus, recuperarei o meu navio e então, em alguns anos, comandarei uma esquadra de navios ingleses até aqui, e vou mandá-los todos para o inferno, para fora da Ásia.

Alvito falou novamente, com a sua calma imensa e enervante. - Isso está nas mãos de Deus, piloto. Mas os dados estão lançados e nada do que o senhor diz acontecerá. Nada. -- Alvito o olhara como se ele já estivesse morto. - Que Deus tenha piedade do senhor, pois como Deus é o meu juiz, piloto, creio que o senhor nunca deixará estas ilhas.

Blackthorne estremeceu, lembrando-se com que Alvito dissera isso.

- Está com frio, Anjin-san?

Mariko estava em pé à sua frente na varanda, agora, sacudindo o guarda-chuva. - Oh, desculpe, não, não estou com frio... só estava devaneando. - Olhou para o passo. A coluna toda desaparecera nas nuvens. A chuva diminuíra um pouco e se tornara branda e suave. Alguns aldeãos e criados vinham chapinhando nas poças, em direção da casa. O átrio estava vazio, o jardim alagado. Lanternas a óleo acesas estavam aparecendo por toda a aldeia. Já não havia sentinelas junto ao portão, nem dos dois lados da ponte. Um grande vazio parecia dominar o fusco-fusco. - É muito mais bonito à noite, não é? - disse ela.

- Sim - replicou ele, totalmente consciente de que estavam sozinhos, e a salvo, se fossem cuidadosos e se ela quisesse como ele queria.

Uma criada veio e pegou-lhe o guarda-chuva, trazendo tubis secos. Ajoelhou-se e começou a enxugar os pés de Mariko com uma toalha.

- Amanhã, ao amanhecer, começaremos Anjin-san.

-- Quanto tempo levaremos?

- Alguns dias, Anjin-san. O Senhor Toranaga disse... - Mariko desviou o olhar quando Gyoko surgiu obsequiosamente de dentro da hospedaria. - O Senhor Toranaga me disse que havia muito tempo.

Gyoko curvou-se profundamente.

Toda, por favor, desculpe-me por interrompê-la. - Como vai, Gyoko-san?

- Muito bem, obrigada, embora quisesse que parasse. Não gosto dessa umidade. Mas depois, quando as cessarem, teremos o calor e isso é muito pior, neh? Mas o outono não está longe... Ah, temos sorte em ter um outono para esperar, e uma primavera celestial, neh?

Mariko não respondeu. A criada amarrou-lhe os rabis e se levantou. - Obrigada - disse Mariko, dispensando-a. - Então, Gyoko-san? Há alguma coisa que eu possa fazer pela senhora? - Kiku-san perguntou se a senhora gostaria que ela a da convicção da nossa jornada, servisse no jantar, ou que dançasse ou cantasse esta noite. O Senhor Toranaga deixou-lhe instruções para entretê-la, se a senhora quisesse.

- Sim, ele me disse, Gyoko-san. Seria muito bom, mas talvez não esta noite. Temos que partir ao amanhecer e estou muito cansada. Haverá outras noites, neh? Por favor, peça-lhe as minhas desculpas, e, oh, sim, diga-lhe que estou encantada em ter a companhia de vocês duas na estrada. - Toranaga ordenara a Mariko que levasse as duas mulheres consigo, e ela lhe agradecera, satisfeita de tê-las como acompanhantes formais.

- A senhora é muito gentil - disse Gyoko, com mel na língua. - Mas a honra é nossa. Ainda vamos para Yedo?

- Sim. Naturalmente. Por quê?

- Por nada, Senhora Toda. Mas, nesse caso, talvez pudéssemos parar em Mishima por um ou dois dias? Kiku-san gostaria de reunir algumas roupas. Não se sente adequadamente vestida para o Senhor Toranaga, e ouvi dizer que o verão de Yedo é muito mormacento e cheio de mosquitos. Temos que ir buscar o guarda-roupa dela, por pior que seja.

- Sim. Naturalmente. As duas terão tempo mais que o suficiente.

Gyoko não olhou para Blackthorne, embora estivessem ambas muito conscientes da presença dele. - É ... é trágico o que aconteceu ao nosso amo, neh?

- Karma - respondeu Mariko calmamente. E acrescentou com uma suave malignidade feminina: - Mas nada mudou, Gyoko-san. A senhora será paga no dia em que chegarmos, em prata, conforme diz o contrato.

- Oh, desculpe - disse a mulher mais velha, fingindo estar chocada. - Desculpe, Senhora Toda, mas dinheiro? Isso estava muito distante da minha mente. Nunca! Só estava preocupada com o futuro do nosso amo.

- Ele é senhor do próprio futuro - disse Mariko afavelmente, já não acreditando nisso. - Mas o seu futuro é bom, não é, aconteça o que acontecer? Está rica agora. Todos os seus pro blemas materiais terminaram. Logo a senhora será uma potência em Yedo, com a sua nova corporação de cortesãs, seja quem for que governe o Kwanto. Logo será a maior de todas as Mamasans, e aconteça o que acontecer, bem, Kiku-san ainda é a sua protegida e a sua juventude não foi tocada, nem o seu karina, neh?

- Minha única preocupação é com o Senhor Toranaga - respondeu Gyoko, com uma gravidade experiente, o ânus contraindo-se com o pensamento de dois mil e quinhentos kokus tão perto da sua caixa-forte. - Se há algum meio por que eu possa ajudá-lo, eu ...

- Que generoso de sua parte, Gyoko-san! Falarei a ele do seu oferecimento. Sim, mil kokus do preço ajudariam muitíssimo. Aceito em nome dele.

Gyoko agitou o leque, pôs um sorriso gracioso no rosto, e a custo conseguiu não se pôr a gemer alto pela sua imbecilidade de cair numa armadilha como uma novata intoxicada de saquê. - Oh, não, Senhora Toda, como o dinheiro poderia ajudar um protetor tão generoso? Não, evidentemente o dinheiro não é ajuda para ele - balbuciou, tentando se recuperar. - Não, dinheiro não é ajuda. Melhor uma informação ou um serviço ou ...

- Por favor, desculpe-me, mas que informação?

- Nenhuma, nenhuma no momento. Só usei isso como uma figura de linguagem, sinto muito. Mas dinheiro...

- Ah, desculpe, sim. Bem, falarei a ele sobre a sua oferta. E sobre a sua generosidade. Em nome dele, obrigada.

Gyoko curvou-se, sendo dispensada, e correu de volta para dentro da hospedaria.

Mariko soltou uma risadinha entrecortada. - De que está rindo, Mariko-san?

Ela lhe contou o que fora dito. - As Mama-sans devem ser a mesma coisa no mundo todo. Ela só está preocupada com o seu dinheiro.

- O Senhor Toranaga pagará apesar de... - Blackthorne parou. Mariko esperou, com ar inocente. Depois, sob o olhar dela, ele continuou: - O Padre Alvito disse que quando o Senhor Toranaga for a Osaka, estará liquidado.

- Oh, sim. Sim, Anjin-san, isso é totalmente verdadeiro - disse Mariko, com uma vivacidade que não sentia. Depois colocou Toranaga e Osaka nos respectivos compartimentos e ficou tranqüila de novo. - Mas Osaka está a muitas léguas de distância e a incontáveis bastões de tempo no futuro, e até lá, quando o que tem que ser é, Ishido não sabe, o bom padre não sabe realmente, nós não sabemos, ninguém sabe o que realmente vai acontecer. Neh? Exceto o Senhor Deus. Mas ele não nos dirá, dirá? Até, talvez, que já tenha passado. Neh?

- Hai! - Ele riu com ela. - Ah, a senhora é tão sábia. -- Obrigada. Tenho uma sugestão, Anjin-san. Durante a viagem, vamos esquecer todos os problemas externos. Todos eles. - É bom vê-Ia - disse ele em latim.

- Digo o mesmo. Um cuidado extraordinário diante das duas mulheres durante a viagem é muito necessário, neh?

- Pode contar com isso, senhora.

- Conto. Na verdade conto muitíssimo.

- Agora estamos quase sozinhos, neh? A senhora e eu. - Sim. Mas o que foi não é, nem nunca aconteceu.

- É verdade. Sim. A senhora tem razão de novo. E é linda. Um samurai avançou pelo portão e a saudou. Era um homem de meia-idade, de cabelo grisalho, rosto marcado de varíola, e caminhava coxeando levemente. - Por favor, desculpe-me, Senhora Toda, mas partiremos ao amanhecer, neh?

- Sim, Yoshinaka-san. Mas não tem importância se nos atrasarmos até o meio-dia, se o senhor quiser. Temos muito tempo. - Sim. Se a senhora prefere, partimos ao meio-dia. Boa noite, Anjin-san. Por favor, permita-me que me apresente. Sou Akira Yoshinaka, capitão da sua escolta.

- Boa noite, capitão.

Yoshinaka voltou-se para Mariko. - Sou responsável pela senhora e por ele, por isso, por favor, diga-lhe que ordenei que dois homens durmam no quarto dele à noite, como guardas pes soais. Além disso, haverá dez sentinelas em serviço a noite toda. Estarão o tempo todo à sua volta. Tenho cem homens no total. - Muito bem, capitão. Mas, desculpe, seria melhor não postar nenhum homem no quarto do Anjin-san. Eles têm o costume, muito sério, aliás, de dormirem sozinhos, ou sozinhos com uma dama. Minha criada provavelmente ficará com ele, portanto estará protegido. Por favor, mantenha os guardas por perto, mas não demais, assim ele não ficará perturbado.

Yoshinaka coçou a cabeça e franziu o cenho. - Muito bem, senhora. Sim, concordo com isso, embora o meu jeito seja mais sensato. Então, desculpe, por favor, peça-lhe que, nas próximas noites, não dê as caminhadas dele. Até que cheguemos a Yedo eu sou o responsável, e quando sou responsável por pessoas muito importantes, fico muito nervoso. - Curvou-se rigidamente e se afastou.

- O capitão pediu que o senhor não caminhe por aí sozinho durante a nossa viagem. Se se levantar à noite, leve sempre um samurai consigo, Anjin-san. Ele disse que isso o ajudaria.

- Está bem. Sim, farei isso. - Blackthorne observou-o afastando-se.

"O que mais ele disse? Ouvi alguma coisa sobre dormir? Não consegui compreendê-lo muito. Ele parou. Kiku vinha saindo. Estava usando um roupão de banho com uma toalha decorosamente envolta em torno do cabelo. Descalça, saracoteando na direção da casa de banho alimentada pela nascente quente, fez-lhes uma meia mesura, e acenou alegremente. Eles retribuíram à saudação.

. Blackthorne admirou suas longas pernas e o modo ondulante do caminhar até que ela desaparecesse. Sentiu os olhos de Mariko a observá-lo atentamente, e voltou-se para ela. - Não - disse suavemente, e meneou a cabeça.

Ela riu. - Pensei que poderia ser difícil... poderia ser desconfortável para o senhor tê-la apenas como companheira de viagem, depois de um "travesseiro" tão especial.

- Desconfortável, não. Pelo contrário, muito agradável. Tenho lembranças muito agradáveis. Estou contente de que ela pertença ao Senhor Toranaga agora. Isso torna tudo fácil, para ela

e para mim. E para todos. - Ia acrescentar "todo mundo, menos Omi", mas pensou melhor e disse: - Afinal de contas, para mim ela foi apenas um presente glorioso e muito especial. Nada mais. Neh?

- Ela foi um presente, sim.

Ele teve vontade de tocar Mariko. Mas não o fez. Em vez disso, voltou-se e contemplou o desfiladeiro, sem ter certeza do que lera por trás dos olhos dela. A noite obscurecia o passo agora. E as nuvens. A água pingava delicadamente do telhado. - O que mais o capitão disse?

- Nada de importância, Anjin-san.

 

A viagem até Mishïma levou nove dias, e todas as noites, durante parte da noite, eles estiveram juntos. Secretamente. Involuntariamente Yoshinaka os ajudava. A cada hospedaria, com toda

a naturalidade, escolhia quartos contíguos para todos eles. - Espero que não faça objeção, senhora, mas isto facilitará muito a segurança - dizia sempre, e Mariko concordava e tomava o quarto central, com Kiku e Gyoko de um lado, Blackthorne do outro. Depois, no escuro da noite, ela deixava a sua criada, Chimmoko, e ia ao encontro dele. Com quartos contíguos, mais o vozerio habitual, os sons noturnos, a cantoria e a pândega de outros viajantes, com seus enxames de criadas sempre presentes e ansiosas por agradar, as alertas sentinelas guardando o exterior não tinham como perceber nada. Apenas Chimmoko estava a par do segredo.      -

Mariko tinha consciência de que Gyoko, Kiku e todas as mulheres do grupo acabariam sabendo. Mas isso não a preocupava. Era samurai e elas não. A sua palavra pesaria contra a delas,

a menos que fosse surpreendida em flagrante, e nenhum samurai, nem mesmo Yoshinaka, normalmente abriria a sua porta à noite, sem ser convidado. Pelo que constava a todos, Blackthorne compartilhava o leito com Chimmoko, ou uma das criadas da hospedaria. Não era assunto de ninguém, só dele. Então, apenas uma mulher podia traí-Ia, e se ela fosse traída, a delatora e todas as mulheres do grupo morreriam de uma morte ainda mais vulgar e prolongada do que a dela, por uma traição tão repugnante. Depois, além disso, se ela desejasse, antes que atingissem Mishima ou Yedo, todas sabiam que ela podia mandar matá-las, conforme o seu capricho, pela mais ligeira das indiscrições, real ou alegada. Mariko tinha certeza de que Toranaga não se oporia a essas mortes. Certamente não à de Gyoko e, bem no íntimo, Mariko tinha certeza de que ele não objetaria nem à de Kiku. Dois mil e quinhentos kokus podiam comprar muitas cortesãs de primeira classe.

Por isso se sentia segura quanto às mulheres. Mas não quanto a Blackthorne, por mais que o amasse agora. Ele não era japonês. Não fora educado desde o nascimento para construir as cercas internas e impenetráveis atrás das quais se esconder. Seu rosto, seu comportamento ou seu orgulho o trairiam. Ela não tinha medo por si mesma. Apenas por ele.

- Finalmente sei o que significa amor - murmurou ela na primeira noite. E como não lutava mais contra o furioso assalto do amor, mas se entregara à sua irresistibilidade, o seu terror pela segurança dele a consumia. - Eu o amo, por isso temo por você - sussurrou, abraçada a ele, usando o latim, a língua dos amantes. - Eu a amo. Oh, como a amo.

- Eu o destruí, meu amor. Estamos condenados agora. Destruí-o ...           essa é a verdade.

- Não, Mariko, de algum modo acontecerá alguma coisa que fará tudo dar certo.

- Eu não deveria ter começado. A culpa é minha. - Não se preocupe, peço-lhe. Karma é karma. Finalmente ela fingiu ser persuadida e fundiu-se aos braços dele. Mas tinha certeza de que ele seria a sua própria nêmesis. Por si mesma não tinha medo.

As noites foram jubilosas. Ternas. Cada uma melhor do que a anterior. Os dias foram fáceis para ela, difíceis para ele. Ele estava constantemente em guarda, determinado, por causa dela,

a não cometer nenhum engano. - Não haverá engano - disse ela enquanto cavalgavam juntos, seguramente afastados dos outros, agora mantendo uma simulação de absoluta confiança após o lapso da primeira noite. - Você é forte. É samurai e não haverá engano - disse em latim.

- E quando chegarmos a Yedo?

- Deixe Yedo se preocupar com Yedo. Eu o amo. -- Sim. Eu também a amo.

- Então por que está tão triste?

- Triste, não, senhora. É só que o silêncio é doloroso. Eu gostaria de gritar o meu amor do topo das montanhas. Deliciavam-se com a sua privacidade e com a certeza de que ainda estavam a salvo de olhos curiosos.

- O que acontecerá a eles, Gyoko-san? - perguntou Kiku suavemente no palanquim, no primeiro dia de viagem.

- Desastre, Kiku-san. Não há esperança para o futuro deles. Ele dissimula bem, mas ela ... ! A adoração que sente é gritante. Olhe para ela! Parece uma jovenzinha! Oh, como é tola!

- Mas é tão bela, neh? Que sorte ser tão completa, neh? - Sim, mas ainda assim eu não gostaria que a morte deles recaísse sobre mais ninguém.

- O que Yoshinaka fará quando os descobrir? - perguntou Kiku.

- Talvez não descubra. Rezo para isso. Os homens são muito tolos e estúpidos. Não conseguem ver as coisas mais simples sobre as mulheres, graças a Buda, abençoado o seu nome. Oremos para que eles não sejam descobertos até que tenhamos concluído o nosso negócio em Yedo. Oremos para que não nos considerem responsáveis. Oh, sim! E esta tarde, quando pararmos, vamos procurar o santuário mais próximo e acender dez bastões de incenso. Por todos os deuses, vou até doar a um templo para todos os deuses três kokus anuais, durante dez anos, se escaparmos e se eu conseguir o meu dinheiro.

- Mas eles são tão lindos juntos, neh? Nunca tinha visto uma mulher desabrochar tanto.

- Sim, mas ela vai murchar como uma camélia quebrada quando for acusada diante de Buntaro-san. O karma deles é o karma deles, e não há nada que possamos fazer por eles. Ou pelo Senhor Toranaga - ou mesmo por Omi-san. Não chore, criança. - Pobre Omi-san.

Omi os havia alcançado no terceiro dia. Ficara na hospedaria deles, e após a refeição noturna falara em particular com Kiku, pedindo-lhe formalmente que se juntasse a ele por toda a eternidade.

- De boa vontade, Omi-san, de boa vontade - respondera ela imediatamente, permitindo-se chorar, pois gostava muitíssimo dele. - Mas o meu dever para com o Senhor Toranaga, que me favoreceu, e para com Gyoko-san, que me formou, me proíbe isso. - Mas o Senhor Toranaga perdeu os seus direitos sobre você. Ele se rendeu. Está liquidado.

- Mas o contrato não, Omi-san, por mais que eu deseje isso. O contrato dele é legal, um compromisso. Por favor, desculpe-me, devo recusar...

- Não responda agora, Kiku-san. Pense. Por favor, eu lhe peço. Dê-me a sua resposta amanhã - dissera ele, e se fora. Mas a lacrimosa resposta fora a mesma. - Não posso ser tão egoísta, Omi-san. Por favor, perdoe-me. Meu dever para com o Senhor Toranaga, para com Gyoko-san ... não posso., por mais que o deseje. Por favor, perdoe-me.

Ele argumentara. Houvera mais lágrimas. Juraram adoração perpétua e depois ela o mandara embora, com uma promessa: - Se o contrato se romper, ou o Senhor Toranaga morrer e eu ficar livre, farei qualquer coisa que o senhor queira, obedecerei a qualquer ordem sua. -- E então ele deixara a hospedaria e seguira na frente para Mishima, cheio de pressentimentos, e ela secara as lágrimas e retocara a maquilagem. Gyoko a cumprimentara: - Você é tão sábia, criança. Oh, como eu gostaria de que a Senhora Toda tivesse metade da sua sabedoria.

Yoshinaka os levava vagarosamente de hospedaria em hospedaria ao longo do curso do rio Kano, que coleava para o norte, rumo ao mar, conformando-se com os atrasos que sempre pare ciam acontecer, não se preocupando com o tempo. Toranaga lhe dissera reservadamente que não era preciso se apressar. - Preferiria que eles chegassem mais tarde do que cedo, Yoshinaka-san. Compreende?

- Sim, senhor - respondera ele. Agora abençoava seu kami guardião por lhe dar um intervalo. Em Mishima, com o Senhor Hiro-matsu - ou em Yedo, com o Senhor Toranaga -, ele teria que fazer o seu relatório obrigatório, oral e por escrito. Então teria que decidir se contaria o que pensava, não o que fora tão cuidadoso em não ver. Iiiiiih, dizia a si mesmo atônito, com certeza estou enganado. A Senhora Toda? Ela e outro, homem, e ainda por cima o bárbaro!

O seu dever não é ver? perguntou a si mesmo. Obter provas. Surpreendê-los por trás de portas fechadas, deitados juntos. Você será condenado por cumplicidade se não fizer isso, neh? Seria muito fácil, embora eles sejam muito cuidadosos.

Sim, mas apenas um imbecil levaria informações assim, pensou ele. Não é melhor fazer o papel de estúpido e rezar para que ninguém os traia e assim não traia a você? A vida dela terminou, estamos todos condenados, então o que importa? Desvie os olhos. Deixe-os ao karma deles. Que importância tem isso?

Com toda a alma o samurai sabia que tinha muitíssima importância.

- Ah, bom dia, Mariko-san. Que lindo dia - disse o Padre Alvito, caminhando até eles. Estavam fora da hospedaria, prontos para iniciar a jornada do dia. Ele fez o sinal-da-cruz sobre ela. - Que Deus a abençoe e a mantenha em suas mãos para sempre. - Obrigada, padre.

- Bom dia, piloto. Como está hoje? - Bem, obrigado. E o senhor?

O grupo deles e os jesuítas haviam se encontrado durante a marcha. Algumas vezes tinham ficado na mesma hospedaria. Outras, viajaram juntos.

- Gostaria de que eu cavalgasse com o senhor esta manhã, piloto? Eu ficaria feliz em continuar as aulas de japonês, se estiver disposto.

- Obrigado. Sim, eu gostaria.

No primeiro dia, Alvito se oferecera para tentar ensinar a língua a Blackthorne.

- Em troca de quê? - perguntara Blackthorne, cauteloso. - De nada. Ajudar-me-ia a passar o tempo, e para lhe dizer a verdade, no momento me sinto entristecido com a vida e velho. Também, talvez, para me desculpar pelas minhas palavras ásperas.

- Não espero desculpas de sua parte. O senhor tem o seu jeito, eu o meu. Não podemos nunca nos encontrar.

- Talvez... mas durante a nossa viagem poderíamos compartilhar coisas, neh? Somos viajantes da mesma estrada. Gostaria de ajudá-lo.

- Por quê?

- O conhecimento pertence a Deus. Não a um homem. Gostaria de ajudá-lo com um presente... nada em troca.

- Obrigado, mas não confio no senhor.

- Então, se insiste, em troca fale-me sobre o seu mundo, sobre o que viu e onde esteve. Qualquer coisa que queira, mas apenas o que quiser. A verdade. Realmente, eu ficaria fascinado

e seria uma troca justa. Vim para o Japão com treze ou catorze anos, e não vi nada do mundo. Poderíamos até combinar uma trégua para a viagem, se o senhor desejar.

- Mas sem religiões, política ou doutrinas papais? - Sou o que sou, piloto, mas tentarei.

Então começaram a trocar conhecimento cautelosamente. Para Blackthorne parecia uma troca injusta. A erudição de Alvito era enorme, ele era um professor exemplar, enquanto Blackthorne achava que relatava apenas coisas que qualquer piloto saberia. - Mas isso não é verdade - dissera Alvito. - O senhor é um piloto único, fez coisas inacreditáveis. Um entre meia dúzia na terra, neh?

Gradualmente uma trégua aconteceu de fato entre eles, e isso agradou a Mariko.

- Isso é amizade, Anjin-san, ou o começo dela - disse ela. - Não. Amizade, não. Desconfio dele tanto quanto sempre, assim como ele de mim. Somos inimigos perpétuos. Não esqueci nada, nem ele. Isto é uma trégua, temporária, provavelmente para uma finalidade especial que ele nunca revelaria se eu perguntasse. Eu o compreendo e não há mal nisso, desde que eu não descuide da minha guarda.

Enquanto ele passava o tempo com Alvito, Mariko cavalgava indolentemente com Kiku e Gyoko e conversava sobre "travesseiro" e sobre modos de agradar aos homens e sobre o Mundo do Salgueiro. Em troca falava-lhes sobre o mundo, compartilhando o que presenciara, participara ou aprendera sobre o ditador Goroda, o táicum e até o Senhor Toranaga, contando-lhes histórias criteriosas sobre os grandes que nenhum plebeu jamais conheceria.

Poucas léguas ao sul de Mishima, o rio se insinuava para oeste, para tombar placidamente na costa e no grande porto de Numazu, e eles abandonaram a região barrancosa e seguiram pelas férteis e chatas planícies onde se cultivava o arroz, ao longo da larga e movimentada estrada que rumava para o norte. Havia muitos riachos e afluentes a vadear. Alguns eram rasos. Outros profundos e muito largos, e eles tinham que atravessa-los em batelões impelidos a varas. Mas o mais comum era serem vadeados sobre os ombros de carregadores, dos muitos que estavam sempre posicionados por perto com essa finalidade específica, tagarelando e se oferecendo para esse privilégio.

Aquele era o sétimo dia desde Yokosé. A estrada se bifurcava e ali o Padre Alvito disse que tinha que deixa-los. Tomaria a direção oeste, para retornar ao seu navio por um dia ou pouco mais, mas os alcançaria e se juntaria a eles de novo na estrada de Mishima a Yedo, se isso fosse permitido. - Naturalmente são ambos bem-vindos, se quiserem vir comigo.

- Obrigado, mas, sinto muito, há coisas que devo fazer em Mishima - disse Mariko.

- Anjin-san? Se a Senhora Mariko vai estar ocupada, o senhor seria bem-vindo sozinho. O nosso cozinheiro é muito bom, o vinho é excelente. Como Deus é o meu juiz, o senhor estaria seguro, e livre para ir e vir como quisesse. Rodrigues está a bordo. Mariko viu que Blackthorne queria deixa-la. Como pode ele? perguntou a si mesma com uma grande tristeza. Como pode querer me deixar quando o tempo é tão curto? - Por favor, vá, Anjin-san - disse ela. - Seria ótimo para o senhor... e bom ver o Rodrigues, neh?

Mas Blackthorne não foi, apesar do muito que queria. Não confiava no padre. Nem por Rodrigues ele colocaria a cabeça naquela armadilha. Agradeceu a Alvito e os dois ficaram a observá-lo se afastar.

- Vamos parar agora, Anjin-san - disse Mariko, embora mal fosse meio-dia. - Não há pressa, neh?

- Excelente. Sim, eu gostaria.

- O padre é um bom homem, mas fiquei contente de que tenha ido embora.

- Eu também. Mas ele não é um bom homem. É um padre. Ela ficou perplexa com a veemência dele. - Oh, desculpe, Anjin-san, desculpe-me por dizer ...

- Não é importante, Mariko-chan. Eu lhe disse... nada foi esquecido. Ele estará sempre atrás da minha pele. - Blackthorne foi ao encontro do Capitão Yoshinaka.

Desconcertada, ela olhou para a estrada ocidental.

Os cavalos da comitiva do Padre Alvito moviam-se por entre os outros viajantes sem pressa. Alguns passantes curvavam-se para o pequeno cortejo, alguns se ajoelhavam, muitos ficavam curiosos, muitos carrancudos. Mas todos, polidamente, saíam do caminho. Exceto qualquer samurai. Quando encontrava um samurai, ainda que de importância ínfima, o Padre Alvito se movia para a esquerda ou para a direita, e seus acólitos o acompanhavam.

Ele estava contente por deixar Mariko e Blackthorne, contente com o intervalo. Tinha despachos urgentes a enviar ao padre-inspetor, que não pudera mandar porque os seus pombos correio tinham sido destruídos em Yokosé. Havia tantos problemas a resolver: Toranaga, Uo, o pescador, Mariko, e o pirata. E José, que continuava a seguir-lhe os passos.

- O que ele está fazendo ali, Capitão Yoshinaka? - exclamara ele no primeiro dia, ao notar José entre os guardas, usando um quimono militar e, desajeitadamente, espadas.

- O Senhor Toranaga ordenou-me que o levasse para Mishima, Tsukku-san. Lá devo entregá-lo ao Senhor Hiro-matsu. Oh, sinto muito, a vista dele o ofende?

- Não... não - dissera ele, de modo não convincente. - Ah, está olhando para as espadas dele? Não há razão para se preocupar. São apenas punhos, não têm lâminas. Foram ordens do Senhor Toranaga. Parece que o homem foi mandado para a sua ordem tão jovem, que não está claro se ele deve ou não usar espadas de verdade, por mais direito que tenha de usálas e por mais que as queira. Parece que ele sé juntou à sua ordem ainda criança, Tsukku-san. Ainda assim, naturalmente, não podemos ter um samurai sem espadas, neh? Uraga-noh-Tadamasa certamente é um samurai, embora tenha sido um padre bárbaro durante vinte anos. Nosso amo prudentemente fez essa acomodação.

- O que vai acontecer a ele?

- Devo entregá-lo ao Senhor Hiro-matsu. Talvez ele seja mandado de volta ao tio para ser julgado, talvez fique conosco. Só obedeço a ordens, Tsukku-san.

O Padre Alvito fora falar com José, mas Yoshinaka o detivera polidamente. - Sinto muito, mas o meu amo também ordenou que ele fosse deixado sozinho. Longe de todo mundo. Particular mente de cristãos. Até que o Senhor Harima faça um julgamento, disse o meu amo. Uraga-san é vassalo do Senhor Harima, neh? O Senhor Harima também é cristão. Neh? O Senhor Toranaga diz que um daimio cristão deve lidar com um renegado cristão. Afinal de contas, o Senhor Harima é tio dele e líder da casa, e foi ele quem o colocou sob a sua custódia.

Embora fosse proibido, Alvito tentara de novo, naquela noite, conversar em particular com José, para lhe pedir que se retratasse do seu sacrilégio e se ajoelhasse em penitência diante do padre inspetor, mas o jovem friamente se afastara, sem ouvir, e depois daquilo José era sempre mandado bem à frente.

De algum modo, Santa Mãe de Deus, temos que trazê-lo de volta à mercê de Deus, pensou Alvito angustiado. O que posso fazer? Talvez o padre-inspetor saiba como lidar com José. Sim, e saberá o que fazer quanto à inacreditável decisão de Toranaga de se submeter, o que, nas reuniões secretas, eles haviam descartado como uma impossibilidade. - Não, isso é totalmente contra o caráter de Toranaga - dissera Dell'Aqua. - Ele irá à guerra. Quando as chuvas cessarem, talvez antes, se conseguir que Zataki se desdiga e traia Ishido. Minha previsão é que ele esperará tanto quanto puder e tentará forçar Ishido a fazer o primeiro movimento - o seu jogo de espera habitual. Aconteça o que acontecer, se Kiyama e Onoshi apoiarem Ishido e Osaka, o Kwanto será arrasado e Toranaga destruído.

- E Kiyama e Onoshi? Manterão pelo bem comum?

- Sim. Estão totalmente convencidos de que uma vitória de Toranaga seria o dobre de morte para a Santa Igreja. Agora que Harima vai se pôr do lado de Ishido, receio que Toranaga seja uma ilusão perdida.

Guerra civil de novo, pensou Alvito. Irmão contra irmão, pai contra filho, aldeia contra aldeia. Anjiro pronta para se revoltar, armada com mosquetes roubados, assim cochichou Uo, o pescador. E as outras notícias assustadoras: um Regimento de Mosquetes secreto quase pronto! Uma unidade de cavalaria moderna, em estilo europeu, com mais de dois mil mosquetes, adaptado à tática de guerra japonesa. Oh, Nossa Senhora, proteja os fiéis e amaldiçoe aquele herege...

Que lástima que Blackthorne tenha a mente deformada. Poderia ser um valioso aliado. Eu nunca teria pensado nisso, mas é verdade. É inacreditavelmente bem informado sobre as peculia ridades do mar e do mundo. Bravo e astuto, honesto dentro da sua heresia, franco e sem malícias. Nunca precisa que lhe digam alguma coisa duas vezes, sua memória é surpreendente. Ensinoume muito sobre o mundo. E sobre si mesmo. É errado isso? perguntou-se Alvito tristemente enquanto se voltava para acenar a Mariko uma última vez. É errado aprender sobre o seu inimigo e, em troca, ensinar? Não. Errado é fazer vista grossa a um pecado mortal.

Três dias após a partida de Yokosé, a observação do Irmão Miguel o abalara.

- Acredita que são amantes?

- O que é Deus senão amor? Não Senhor Jesus? - retrucara Miguel. - Só se tocando com os olhos e isso

ao corpo deles, não sei, padre, e Suas almas se tocam e eu pareço causa disso.

- Você deve estar enganado. Ela nunca faria isso! É contra toda a sua formação, contra a sua lei e a lei de Deus. Ela é uma cristã devota. Sabe que o adultério é um pecado hediondo.

- Sim, isso é o que ensinamos. Mas o casamento dela foi xintoísta, não foi consagrado diante do Senhor nosso Deus. É adultério ainda assim?

- Você também questiona a Palavra? Está contaminado pela heresia de José?

- Não, padre, por favor, desculpe-me, a Palavra nunca. Apenas o que o homem fez dela.

A partir dali ele os observara mais de perto. Evidentemente o homem e a mulher gostavam grandemente um do outro. Por que não gostariam? Nada de errado nisso! Constantemente jun tos, cada um aprendendo com o outro, a mulher com ordem de pôr de lado a própria religião, o homem sem nenhuma, ou somente uma pátina da heresia luterana, como Dell'Aqua disse que era verdadeiro para todos os ingleses. Ambos pessoas fortes, vitais, embora díspares.

À confissão ela não dissera nada. Ele não a pressionara. Os olhos dela não lhe disseram nada e disseram tudo, mas não havia nada de real para julgar. Ele podia ouvir a si mesmo explicando

a Dell'Aqua: "Miguel deve ter-se enganado, Eminência". "Mas cometeu adultério? Houve alguma prova?" "Ne é essa a palavra do mencionei que os vi foi muito bonito de ver. Quanto na verdade não me importa. mais consciente de Deus por ela realmente nhuma."

Alvito freou e se voltou momentaneamente. Viu-a em pé sobre a leve elevação, o piloto conversando com Yoshinaka, a velha madama e a prostituta pintada reclinadas no palanquim. Estava atormentado pelo zelo fanático que sentia manar de dentro de si. Pela primeira vez ousou perguntar, ainda que a si mesmo: você se prostituiu com o piloto, Mariko-san? O herege danou a sua alma por toda a eternidade? Você, que foi escolhida em vida para ser uma freira e provavelmente a nossa primeira abadessa nativa? Está vivendo em pecado hediondo, inconfesso, profanada, ocultando o seu sacrilégio do seu confessor, e assim conspurcada diante de Deus? Viu-a acenar. Desta vez ele não retribuiu e deu as costas, cravou as esporas nos flancos do cavalo, e disparou.

Naquela noite o sono deles foi perturbado. - O que é, meu amor?

- Nada, Mariko-chan. Durma de novo.

Mas ela não dormiu. Nem ele. Muito antes de ter que fazer isso, ela deslizou de volta ao seu quarto, e ele se levantou e sentou no pátio, estudando no dicionário à luz de velas até o ama nhecer. Quando o sol surgiu e o dia esquentou, suas preocupações noturnas se dissiparam e eles continuaram a jornada pacificamente. Logo atingiram a grande via principal, a Tokaido, a leste de Mishima, e os viajantes se tornaram mais numerosos. A grande maioria estava, como sempre, a pé, os pertences às costas. Havia alguns cavalos de carga na estrada e nenhuma carruagem.

- Oh, carruagem... uma coisa com rodas, neh? Não são utilizadas no Japão, Anjin-san. Nossas estradas são íngremes demais e sempre entrecortadas por rios e riachos. As rodas também estragariam a superfície das estradas, por isso são proibidas para todo mundo, exceto o imperador, e ele viaja apenas algumas ris cerimoniais em Kyoto, sobre uma estrada especial. Não necessitamos de rodas. Como se pode atravessar um rio ou um riacho com veículos? - e há muitos, muitíssimos a vadear. Há, talvez, sessenta riachos para cruzar entre este ponto e Yedo, Anjin-san. Quantos já tivemos que atravessar? Dúzias, neh? Não, todos nós andamos ou cavalgamos. Claro que cavalos e palanquins, particularmente, são permitidos apenas para pessoas importantes, daimios e samurais, e ainda assim nem para todos os samurais.

- O quê? Mesmo se se tem dinheiro não se pode alugar um? - Não, a menos que se seja da classe correta, Anjin-san. Isso é muito sábio, não acha? Os médicos e os muito velhos podem viajar a cavalo ou de palanquim, ou os muito doentes, se tiverem permissão escrita concedida pelo seu suserano. Palanquins ou cavalos não seriam certos para camponeses e plebeus, Anjinsan. Isso poderia ensinar-lhes hábitos preguiçosos, neh? É muito mais saudável, para eles, caminhar.

- Além disso, conserva-os no seu lugar. Neh?

- Oh, sim. Mas isso tudo contribui para a paz, a ordem e a wa. Apenas mercadores têm dinheiro para desperdiçar, e o que são eles senão parasitas que não criam nada, não cultivam nada, não fazem nada senão se nutrir do trabalho alheio? Definitivamente eles todos devem caminhar, nelh? Nisso somos muito sábios. - Nunca tinha visto tanta gente em movimento - disse Blackthorne.

- Oh, isso não é nada. Espere até que cheguemos perto de Yedo. Adoramos viajar, Anjin-san, mas raramente sozinhos. Gostamos de viajar em grupos.

Mas as multidões não lhes impediam o avanço. O emblema de Toranaga que seus estandartes exibiam, a posição pessoal de Toda Mariko, e a brusca eficiência de Akira Yoshinaka e os batedores que mandara à frente para anunciar quem os seguia, garantiam os melhores aposentos particulares a cada noite, em cada hospedaria, e uma passagem ininterrupta. Todos os outros viajantes e samurais rapidamente se punham de lado e se curvavam profundamente, esperando até que tivessem passado.

- Eles todos têm que parar e se ajoelhar assim para todo mundo?

- Oh, não, Anjin-san. Apenas para daimios e pessoas importantes. E para a maioria dos samurais... sim, isso seria uma prática muito sábia para qualquer plebeu. É polido agir assim, Anjin-san, e necessário, neh? A menos que as pessoas comuns respeitem os samurais e a si mesmas, como pode a lei ser preservada e o reino ser governado? Depois, vale o mesmo para todos. Nós paramos e nos curvamos e cedemos passagem ao mensageiro imperial, não? Todo mundo deve ser polido, neh? Daimios menos importantes têm que desmontar e se curvar para daimios mais importantes. O ritual governa a nossa vida, mas o reino é obediente. - Digamos que dois daimios iguais se encontrem?

-- Então ambos desmontariam e se curvariam igualmente, e seguiriam seus caminhos.

- Digamos que o Senhor Toranaga e o General lshido se encontrassem?

Mariko passou delicadamente para o latim. - Quem são eles, Anjin-san? Esses nomes eu não conheço, não entre mim e você. - Tem razão. Por favor, desculpe-me.

- Ouça, meu amor, vamos fazer a promessa de que, se Nossa Senhora nos sorrir e escaparmos de Mishima, apenas em Yedo, na Primeira Ponte, apenas quando formos completamente obrigados a isso, deixaremos o nosso mundo particular. Por favor?

- Que perigo especial existe em Mishima?

- Lá o nosso capitão deve apresentar um relatório ao Senhor Hiro-matsu. Lá eu devo vê-lo, também. Ele é um homem sábio, muito vigilante. Seria fácil nós nos trairmos.

- Temos sido cautelosos. Vamos pedir a Deus que os seus temores sejam infundados.

- Por mim mesma não me preocupo, apenas por você. - E eu por você.

- Então prometemos, um ao outro, continuar dentro do nosso mundo particular?

- Sim. Vamos fingir que é o mundo real... o nosso próprio mundo.

- Lá está Mishima, Anjin-san. - Mariko apontou para o outro lado do último riacho.

A espraiada cidade-castelo que abrigava perto de sessenta mil pessoas estava em grande parte obscurecida pela neblina baixa da manhã. Apenas o topo de algumas casas e o castelo de pedra eram distinguíveis. Além havia montanhas que desciam para o mar ocidental. Longe, a noroeste, estava a glória do monte Fuji. A norte e a leste, a cordilheira invadia o céu. - E agora?

- Agora Yoshinaka foi tentar encontrar a hospedaria mais habitável dentro de dez ris. Ficaremos lá dois dias. Levarei no mínimo isso para concluir o meu negócio. Gyoko e Kiku-san nos deixarão depois.

- E depois?

- Depois continuamos. O que o seu sentido de tempo lhe diz sobre Mishima?

- Que é amistosa e segura - replicou ele. - Depois de Mishima, será o quê?

Ela apontou para nordeste, não convencida. - Então iremos naquela direção. Há um caminho que vai caracolando através das montanhas até Hakoné. É a parte mais exaustiva de toda a es trada Tokaido. Depois a estrada desce até a cidade de Odawara, que é muito maior do que Mishima, Anjin-san. Fica no litoral. De lá até Yedo é só uma questão de tempo.

- Quanto tempo? - Não o bastante. - Está errada, meu todo o tempo do mundo.

amor, sinto muito - disse ele. - Há

 

O General Toda Hiro-matsu aceitou o despacho particular que Mariko lhe estendeu. Quebrou os selos de Toranaga. O pergaminho relatava brevemente o que acontecera em Yokosé, con firmava a decisão de Toranaga de se submeter, ordenava a Hiromatsu que defendesse a fronteira e as passagens para o Kwanto contra qualquer intruso até que ele chegasse (mas para despachar qualquer mensageiro de Ishido ou proveniente de leste), e continha instruções sobre o cristão renegado e sobre o Anjin-san. Com ar cansado o velho soldado leu a mensagem uma segunda vez. - Agora conte-me tudo que viu em Yokosé, ou ouviu, que se relacione ao Senhor Toranaga.

Mariko obedeceu.

- Agora conte-me o que você pensa que aconteceu. Novamente ela obedeceu.

- O que ocorreu na cha-no-yu entre você e meu filho? Ela lhe contou tudo exatamente como acontecera.

- Meu filho disse que o nosso amo perderia? Antes do segundo encontro com o Senhor Zataki?

- Sim, senhor. - Tem certeza? - Oh, sim, senhor.

Houve um longo silêncio na sala que ficava bem alta no torreão do castelo, que dominava a cidade. Hiro-matsu pôs-se de pé e dirigiu-se para a seteira na espessa parede de pedra, as cos tas e os joelhos doendo, a espada frouxa nas mãos. - Não entendo.

- Senhor?

- Nem a meu filho, nem a nosso amo. Podemos esmagar quaisquer exércitos que Ishido lance em campo. E quanto à decisão de se submeter...

Ela brincou com o leque, observando o céu noturno, estrelado e agradável.

Hiro-matsu estudou-a. - Você está com ótima aparência, Mariko-san, mais jovem do que nunca. Qual é o seu segredo? - Não tenho segredo algum, senhor - respondeu ela, sua garganta repentinamente seca. Pensou que sua fala se fragmentaria, mas o momento passou e o velho desviou novamente os olhos astutos para a cidade lá embaixo.

- Agora conte-me o que aconteceu desde que você saiu de Osaka. Tudo o que você viu, ouviu, ou de que participou - disse ele.

A noite ia alta quando ela concluiu. Relatou tudo claramente, exceto a extensão da sua intimidade com o Anjin-san. Mesmo nisso foi cuidadosa em não ocultar a estima que sentia por ele,

o respeito pela sua inteligência e bravura. Ou a admiração de Toranaga pelo seu valor.

Por algum tempo Hiro-matsu continuou a andar de um lado para o outro, o movimento abrandando-lhe a dor. Tudo se encaixava com o relatório de Yoshinaka e o de Omi - até a tirada de Zataki antes de esse daimio abalar para Shinano. Agora ele compreendia muitas coisas que não estavam claras, e tinha informação suficiente para tomar uma decisão calculada. Parte do que ela relatou desgostou-o. Parte fê-lo odiar ainda mais o filho; conseguia entender-lhe os motivos, mas isso não fazia diferença. O resto do que ela disse forçou-o a ressentir-se com o bárbaro e algumas vezes a admirá-lo. - Você o viu puxar o nosso senhor para a segurança?

- Sim. O Senhor Toranaga estaria morto agora, senhor, não fosse ele. Tenho absoluta certeza. Ele salvou o nosso amo três vezes: escapando do Castelo de Osaka, a bordo da galera, na enseada de Osaka, e absolutamente no terremoto. Vi as espadas que Omi-san tirou da escavação. Estavam retorcidas como massa de talharim e inutilizadas.

- Acha que o Anjin-san realmente pretendia cometer seppuku?

- Sim. Pelo Senhor Deus dos cristãos, acredito que ele assumiu esse compromisso. Apenas Omi-san o impediu. E, senhor, acredito totalmente que ele seja digno de ser samurai, digno de ser hatamoto.

- Não pedi essa opinião.

- Por favor, desculpe-me, senhor, na verdade não pediu. Mas o senhor estava com a pergunta na ponta da língua.

- Tornou-se leitora de pensamento, assim como treinadora de bárbaro?

- Oh, não, por favor, desculpe-me, senhor, claro que não - disse ela, na sua voz mais delicada. - Meramente respondi ao líder do meu clã com o melhor da minha paupérrima habili dade. Os interesses do nosso amo estão em primeiro lugar na minha cabeça. Os seus vêm em segundo apenas em relação aos dele. - Vêm?

- Por favor, desculpe-me, mas não deveria ser necessário perguntar. Ordene-me, senhor. E eu obedecerei.

- Por que tão orgulhosa, Mariko-san? - perguntou ele, irritadiço. - E-tão segura? Hein?

- Por favor, desculpe-me, senhor. Fui rude. Não mereço essa...

- Eu sei! Nenhuma mulher merece! - Hiro-matsu riu. - Mas ainda assim há vezes em que necessitamos da sabedoria de uma mulher, a sabedoria fria, cruel, malévola, astuciosa e prática. Elas são muitíssimo mais espertas do que nós, neh?

- Oh, não, senhor - disse ela, perguntando-se o que ele realmente tinha em mente.

- É ótimo que estejamos sozinhos. Se isso fosse repetido em público, diriam que o velho Punho de Aço está caduco, que é tempo de ele aposentar a espada, raspar a cabeça, e começar

a dizer preces a Buda pelas almas dos homens que mandou para o Vazio. E teriam razão.

- Não, senhor. É como o senhor seu filho disse. Até que o destino do nosso amo esteja determinado, o senhor não pode se retirar. Nem o senhor, nem o senhor meu marido. Nem eu.

- Sim. Ainda assim eu ficaria muito satisfeito em pousar a minha espada e procurar a paz de Buda para mim e para aqueles que matei.

Contemplou a noite algum tempo, sentindo a própria idade, depois olhou para ela. Ela era agradável de se ver, mais do que qualquer outra mulher que ele jamais conhecera.

- Senhor?

- Nadá, Mariko-san. vez em que a vi.

Isso fora quando Hiro-matsu secretamente empenhara a própria alma a Goroda para obter aquela garota frágil para o filho, o mesmo filho que havia massacrado a própria mãe, a única mu lher que Hiro-matsu realmente adorara. Por que consegui Mariko para ele? Porque eu queria magoar o táicum, que também a desejava. Para magoar um rival, mais nada.

Minha consorte foi realmente infiel? perguntou-se o velho, reabrindo a chaga perpétua. Ó deuses, quando os olhar no rosto, pedirei uma resposta para essa pergunta. Quero um sim ou não!

Exijo essa verdade. Acho que é uma mentira, mas Buntaro disse que ela estava sozinha com aquele homem no quarto, o cabelo em desalinho, o quimono solto, e foi meses antes de eu voltar. Poderia ser uma mentira, neh? Ou a verdade, neh? Deve ser a

Só estava me lembrando da primeira verdade - com certeza filho algum decapitaria a própria mãe sem ter certeza, não?

Mariko estava observando os sulcos no rosto de Hiro-matsu, a pele repuxada e esfoliada pela idade, e a vetusta força muscular dos seus braços e ombros. No que estará pensando? perguntou a si mesma, gostando dele. Já terá visto através de mim? Sabe sobre mim e o Anjin-san agora? Sabe que tremo de amor por ele? Que quando eu tiver que escolher entre ele, o senhor e Toranaga, escolherei a ele?

Hiro-matsu erguia-se junto da seteira, olhando para a cidade, os dedos apertando a bainha e o punho da espada, esquecido dela. Estava meditando sobre Toranaga e o que Zataki dissera há al guns dias, em amargo desgosto, desgosto que ele compartilhara. - Sim, é claro que quero conquistar o Kwanto e plantar o meu estandarte nos muros do castelo de Yedo agora e torná-lo meu. Nunca quis isso antes, mas agora quero. Mas assim? Não há honra! Não há honra para o meu irmão nem para mim! Ou para qualquer pessoa! Exceto Ishido, e aquele camponês não entende nada de nada.

- Então apóie Toran...

- Para quê? Para aniquilar o herdeiro?

- Ele disse uma centena de vezes que apóia o herdeiro. Acredito nele. E se tivéssemos um Minowara para nos comandar, não um camponês arrivista e a bruxa da Ochiba, neh? Esses in competentes terão oito anos de governo até que Yaemon atinja a idade, se o Senhor Toranaga morrer. Por que não dar ao Senhor Toranaga os oito anos? Ele é Minowara! Disse mil vezes que entregará o poder a Yaemon. Está com o cérebro no traseiro? Toranaga não é inimigo de Yaemon nem seu!

- Nenhum Minowara se ajoelharia diante daquele camponês! Ele mijou na própria honra e na de todos nós. Na sua e na minha!

Discutiram e se xingaram e, em particular, quase chegaram a -ias de fato. - Vamos - escarnecera ele, insultando Zataki - saque a espada, traidor! Você é traidor do seu irmão, que é o --abeça do seu clã!

- Sou cabeça do meu próprio clã. Temos a mesma mãe, mas não o mesmo pai. O pai de Toranaga mandou minha mãe embora em desgraça. Não ajudarei Toranaga - mas se ele abdicar e rasgar o ventre, apoiarei Sudara ...

Toranaga! Com a sua ajuda o Senhor que meu irmão possa se tornar xógum e

- Por favor, desculpe-me, mas não deveria ser necessário perguntar. Ordene-me, senhor. E eu obedecerei.

- Por que tão orgulhosa, Mariko-san - perguntou ele, irritadiço. – E tão segura? Hein?

- Por favor, desculpe-me, senhor. Fui rude. Não mereço essa. . .

- Eu sei! Nenhuma mulher merece! - Hiro-matsu riu. - Mas ainda assim há vezes em que necessitamos da sabedoria de uma mulher, a sabedoria fria, cruel, malévola, astuciosa e prática. Elas são muitíssimo mais espertas do que nós, neh?

- Oh, não, senhor - disse ela, perguntando-se o que ele realmente tinha em mente.

- É ótimo que estejamos sozinhos. Se isso fosse repetido em público, diriam que o velho Punho de Aço está caduco, que é tempo de ele aposentar a espada, raspar a cabeça, e começar

a dizer preces a Buda pelas almas dos homens que mandou para o Vazio. E teriam razão.

- Não, senhor. É como o senhor seu filho disse. Até que o destino do nosso amo esteja determinado, o senhor não pode se retirar. Nem o senhor, nem o senhor meu marido. Nem eu.

- Sim. Ainda assim eu ficaria muito satisfeito em pousar a minha espada e procurar a paz de Buda para mim e para aqueles que matei.

Contemplou a noite algum tempo, sentindo a própria idade, depois olhou para ela. Ela era agradável de se ver, mais do que qualquer outra mulher que ele jamais conhecera.

- Senhor?

- Nadá, Mariko-san. Só estava me lembrando da primeira vez em que a vi.

Isso fora quando Hiro-matsu secretamente empenhara a própria alma a Goroda para obter aquela garota frágil para o filho, o mesmo filho que havia massacrado a própria mãe, a única mu lher que Hiro-matsu realmente adorara. Por que consegui Mariko para ele? Porque eu queria magoar o táicum, que também a desejava. Para magoar um rival, mais nada.

Minha consorte foi realmente infiel? perguntou-se o velho, reabrindo a chaga perpétua. Ó deuses, quando os olhar no rosto, pedirei uma resposta para essa pergunta. Quero um sim ou não! Exijo essa verdade. Acho que é uma mentira, mas Buntaro disse que ela estava sozinha com aquele homem no quarto, o cabelo em desalinho, o quimono solto, e foi meses antes de eu voltar. Poderia ser uma mentira, neh? Ou a verdade, neh? Deve ser a verdade - com certeza filho algum decapitaria a própria mãe sem ter certeza, não?

Mariko estava observando os sulcos no rosto de Hiro-matsu, a pele repuxada e esfoliada pela idade, e a vetusta força muscular dos seus braços e ombros. No que estará pensando'? perguntou a si mesma, gostando dele. Já terá visto através de mim'? Sabe sobre mim e o Anjin-san agora? Sabe que tremo de amor por ele? Que quando eu tiver que escolher entre ele, o senhor e Toranaga, escolherei a ele?

Hiro-matsu erguia-se junto da seteira, olhando para a cidade, os dedos apertando a bainha e o punho da espada, esquecido dela. Estava meditando sobre Toranaga e o que Zataki dissera há al guns dias, em amargo desgosto, desgosto que ele compartilhara. - Sim, é claro que quero conquistar o Kwanto e plantar o meu estandarte nos muros do castelo de Yedo agora e torná-lo meu. Nunca quis isso antes, mas agora quero. Mas assim? Não há honra! Não há honra para o meu irmão nem para mim! Ou para qualquer pessoa! Exceto Ishido, e aquele camponês não entende nada de nada.

- Então apóie o Senhor Toranaga! Com a sua ajuda Toran...

- Para quê? Para que meu irmão possa se tornar xógum e aniquilar o herdeiro?

- Ele disse uma centena de vezes que apóia o herdeiro. Acredito nele. E se tivéssemos um Minowara para nos comandar, não um camponês arrivista e a bruxa da Ochiba, neh? Esses in competentes terão oito anos de governo até que Yaemon atinja a idade, se o Senhor Toranaga morrer. Por que não dar ao Senhor Toranaga os oito anos? Ele é Minowarn! Disse mil vezes que entregará o poder a Yaemon. Está com o cérebro no traseiro? Toranaga não é inimigo de Yaemon nem seu!

- Nenhum Minowara se ajoelharia diante daquele camponês! Ele mijou na própria honra c na de todos nós. Na sua e na minha!

Discutiram e se xingaram e, em particular, quase chegaram a -'ias de fato. - Vamos - escarnecera ele, insultando Zataki - saque a espada, traidor! Você é traidor do seu irmão, que é o cabeça do seu clã!

- Sou cabeça do meu próprio clã. Temos a mesma mãe, mas não o mesmo pai. O pai de Toranaga mandou minha mãe embora em desgraça. Não ajudarei Toranaga - mas se ele abdicar e rasgar o ventre, apoiarei Sudara...

Não há necessidade de fazer isso, disse Hiro-matsu para a noite, ainda enraivecido. Não há necessidade de fazer isso enquanto eu estiver vivo, nem de se submeter humilhado. Sou gene ral-chefe. É meu dever proteger a honra e a casa do meu amo, até dele mesmo. Portanto agora decido eu:

Ouça, senhor, por favor, desculpe-me, mas desta vez desobedeço. Com orgulho. Desta vez eu o traio. Agora vou cooptar o seu filho e herdeiro, o Senhor Sudara, e a esposa dele, a Se nhora Genjiko, e juntos ordenaremos Céu Carmesim quando as chuvas cessarem, e então a guerra começará. E até que morra o último homem no Kwanto, enfrentando o inimigo, vou mantê-lo em segurança no castelo de Yedo, diga o senhor o que disser, custe o que custar.

Gyoko estava encantada de estar novamente em casa, em Mishima, entre as suas garotas e os razões e contas de transporte, seus débitos a receber, hipotecas e notas promissórias.

- Agiu muito bem - disse ao seu contador-chefe.

O mirrado homenzinho balbuciou um agradecimento e se afastou coxeando. Ele se voltou com violência para o cozinheirochefe. - Treze chogins de prata, duzentos momnes de cobre pela comida de uma semana?

- Oh, por favor, desculpe-me, ama, mas os rumores de guerra fizeram os preços ir voando para o céu - disse o homem gordo truculentamente. - Tudo. Peixe, arroz e verduras – até o molho de soja dobrou de preço do mês passado para cá, e o saquê é pior. Trabalhar, trabalhar, trabalhar, naquela cozinha quente, sem ar, que com certeza precisa ser melhorada. Caro! Ah! Em uma semana servi cento e setenta e dois convidados, alimentei dez cortesãs, onze famintas aprendizes de cortesã, quatro cozinheiros, dezesseis criadas, e catorze criados. Por favor, desculpe-me, ama, sinto muito, mas a minha avó está muito doente, por isso preciso pedir dez dias de folga para...

Gyoko arrancou os cabelos só o suficiente para ser enfática, mas não o suficiente para prejudicar a própria aparência, e dispensou-o dizendo que estava arruinada, arruinada, que teria que fechar a mais famosa casa de chá de Mishima sem um cozinheirochefe tão perfeito e que seria tudo por culpa dele - culpa dele que ela tivesse que atirar na neve todas as suas devotadas garotas, e fiéis mas infelizes auxiliares. - Não se esqueça de que o inverno se aproxima - lamuriou-se ela a título de salva de despedida.

Depois, contente, sozinha, calculou lucros e perdas, e os lucros foram o dobro do que ela esperava. O saquê que tomou teve um gosto melhor do que nunca, e se o preço dos alimentos estava subindo, o mesmo acontecia com o custo do saquê. Imediatamente escreveu ao filho em Odawara, onde se localizava a fábrica de saquê deles, dizendo-lhe que dobrasse a produção. Depois deu ouvidos às inevitáveis brigas de criadas, despediu três, contratou mais quatro, mandou chamar a agente de cortesãs, e fez generosas ofertas pelos contratos de sete cortesãs que admirava.

- E quando gostaria de que as honradas damas chegassem, Gyoko-san? - sorriu a velha, de modo afetado, a sua própria comissão considerável.

- Imediatamente. Imediatamente. Vamos, mexa-se.

Depois convocou o carpinteiro e fez planos para a ampliação da casa de chá, para os quartos extras para as damas extras.

- Finalmente o lugar na Sexta Rua está à venda, ama. Quer que eu feche negócio agora?

Por meses ela esperara pela locação daquela esquina em particular. Mas agora meneou a cabeça e mandou-o embora com instruções para optar pela compra de quatro hectares de terreno em estado natural na colina, ao norte da cidade. - Mas não faça tudo sozinho. Use intermediários. Não seja ganancioso. E não quero que corra por aí que estou comprando para mim.

- Mas quatro hectares? Isso é...

- No mínimo quatro, talvez cinco, nos próximos cinco meses. Mas apenas opções, compreendeu? Devem todos ser colocados em nome destas pessoas.

Estendeu a lista de prepostos seguros e o tocou para fora, vendo mentalmente a cidade murada dentro de uma cidade já florescendo. Riu consigo mesma, de alegria.

Em seguida cada cortesã foi chamada e a cada uma Gyokosan repreendeu, elogiou, tratou aos berros ou juntou-se no choro. Algumas foram promovidas, algumas rebaixadas, os pre ços de "travesseiro" aumentados ou diminuídos. Depois, no meio de tudo, Omi foi anunciado.

-- Sinto muito, mas Kiku-san não está bem - disse-lhe ela. - Nada sério! Apenas a mudança de clima, pobre criança.

- Insisto em vê-Ia.

- Sinto muito, Omi-san, mas certamente o .riste. Kiku-san pertence ao nosso suserano, neh?

- Sei a quem ela pertence - gritou Omi. - Quero vê-Ia, isso é tudo.

- Oh, sinto muito, claro, o senhor tem todo o direito de gritar e blasfemar, sinto muito, por favor, desculpe-me. Mas, sinto muito, ela não está bem. Esta noite... ou talvez mais tar de... ou amanhã... o que posso fazer, Omi-san? Se ela ficar bem o bastante, talvez eu pudesse mandar-lhe um recado, se o senhor me dissesse onde está hospedado. ..

Ele disse, sabendo que não havia o que pudesse fazer, e abalou furioso, querendo estraçalhar Mishima inteira.

Gyoko pensou em Omi. Depois mandou chamar Kiku e contou-lhe o programa que arranjara para as suas duas noites em Mishima. - Talvez possamos persuadir a nossa Senhora Toda a protelar quatro ou cinco noites, criança. Conheço meia dúzia de pessoas aqui que pagariam um resgate de pai para que você as entretivesse em festas particulares. Ah! Agora que o grande daimio a comprou, ninguém pode tocá-la, nunca mais, então você pode cantar, dançar e fazer mímica e será a nossa primeira gueixa!

- E o pobre Omi-san, ama? Nunca o ouvi tão mal-humorado antes, sinto muito que tenha gritado com a senhora.

- Ah! O que é um grito ou dois quando finalmente privamos com daimios e os mais ricos do rico arroz e corretores de seda. Esta noite direi a Omi-san onde você estará na última vez em que cantar, mas direi cedo demais, assim ele terá que esperar. Arranjarei um aposento por perto. Enquanto isso ele terá muito saquê... e Akiko para servi-lo. Não vai fazer mal algum cantar uma ou duas canções tristes para ele depois - ainda não temos certeza sobre Toranaga-sama, neh? Não recebemos um pagamento à vista, e ainda há um saldo a receber.

- Por favor, desculpe-me, mas Choko não seria uma escolha melhor? É mais bonita, mais jovem e mais meiga. Tenho certeza de que ele a apreciaria mais.

- Sim, criança. Mas Akiko é forte e muito experiente. Quando esse tipo de loucura se apossa dos homens, eles tendem a ser rudes. Mais do que você imaginaria. Até Omi-san. Não convite formal para o chá, no dia seguinte, às oito Mama-sans mais influentes de Mishima, a fim de discutirem um assunto de grande importância -, ela mergulhou com prazer num banho perfeito. Ahhhhhhh! No momento perfeito, uma massagem perfeita. Perfume, pó, maquilagem e penteado. Agora um quimono folgado de seda leve. Em seguida, no momento perfeito, seu favorito chegou. Tinha dezoito anos, um estudante, filho de um samurai empobrecido. Chamava-se Inari.

- Oh, como você é adorável... corri para cá assim que o seu poema chegou - disse ele sem fôlego. - Fez uma viagem agradável? Estou tão feliz em dar-lhe as boas-vindas! Obrigado, obrigado pelos presentes... a espada é perfeita, e o quimono! Oh, como a senhora é boa para mim!

Sim, sou, disse ela a si mesma, embora o negasse resolutamente por causa da dignidade dele. Logo estava deitada ao lado dele, suada e langorosa. Ah, Inari, pensou ela inebriada, o seu Pilão Translúcido não tem a compleição do do Anjin-san, mas o que lhe falta em tamanho você certamente compensa com um vigor cataclísmico.

- Por que ri? - perguntou ele, sonolento.

- Porque você me faz feliz - suspirou ela, encantada por ter tido a grande fortuna de ter sido educada. Tagarelou com facilidade, elogiou-o com extravagância e afagou-o até que pegasse no sono, suas mãos e sua voz realizando tudo o que era necessário por volição própria, advinda do longo hábito. Tinha a mente bem longe. Pensava em Mariko e no seu amante, repensando as alternativas. Até onde ousaria pressionar Mariko? Ou a quem deveria entregá-los, ou ameaçá-la com essa possível entrega, sutilmente é claro: Toranaga, Buntaro ou quem? O padre cristão? Haveria algum lucro nisso? Ou o Senhor Kiyama - certamente qualquer escândalo envolvendo a grande Senhora Toda com o bárbaro arruinaria a chance do filho dela de se casar com a neta de Kiyama. Essa ameaça a tornaria flexível à minha vontade? Ou não devo fazer nada - há mais lucro nisso, de algum modo?

Coitada de Mariko. Uma senhora tão adorável! Caramba, mas ela daria uma cortesã sensacional! Coitado do Anjin-san.

os mosquetes e armas escondidos pelos camponeses em Anjiro, por exemplo, ou sobre o novo Regimento de Mosquetes - seus efetivos, oficiais, organização e quantidade de armas. Ou sobre Toranaga, que na última noite em Yokosé "travesseirou" com Kiku alegremente, usando um ritmo clássico de "seis rasos e cinco fundos" com o vigor de um homem de trinta anos, e depois dormiu como um bebê até o amanhecer. Esse não é o padrão de um homem perturbado por preocupações, neh?

E quanto à agonia do padre tonsurado, virgem, que, nu e de joelhos, primeiro rezou ao seu intolerante Deus cristão, implorando perdão pelo pecado que estava prestes a cometer com a garota, e o outro pecado, um pecado de verdade, que ele cometera em Osaka - estranhas coisas secretas do "confessionário", que lhe foram sussurradas por um leproso, depois traiçoeiramente passadas por ele ao Senhor Harima. O que Toranaga faria com isso? Interminavelmente pondo para fora o que fora sussurrado, passado adiante, e depois a oração com os olhos bem fechados - antes que o pobre imbecil se esparramasse em cima da garota sem habilidade alguma e, depois, saísse correndo como uma abominável criatura da noite. Tanto ódio, sofrimento e vergonha entrelaçados.

E quanto ao segundo cozinheiro de Omi, o qual cochichara a uma criada a qual cochichara ao amante o qual cochichara a Akiko que tinha ouvido às ocultas Omi e a mãe tramando a morte de Kasigi Yabu, seu suserano? Ah! Se isso viesse a público, seria como lançar um gato entre todos os pombos Kasigi! Assim como o oferecimento secreto de Omi e Yabu a Zataki, se soprado aos ouvidos de Toranaga - ou as palavras que Zataki resmungou no sono que a sua parceira de "travesseiro" memorizou e me vendeu no dia seguinte por um chogin de prata inteiro, palavras que sugeriam que o General Ishido e a Senhora Ochiba comem juntos, dormem juntos, e que o próprio Zataki ouvira-os grunhindo e gemendo e gritando enquanto Yang atravessava Yin. Gyoko sorriu consigo mesma, satisfeita. Chocante, neh, pessoas em posições tão elevadas!

E o outro fato estranho de que, no momento das Nuvens e Chuva, e alguns momentos antes, o Senhor Zataki inconscientemente chamara a parceira de "Ochiba". Curioso, neh?

Será que o oh-tão-necessário-de-ambos-os-lados Zataki mudaria a canção se Toranaga lhe oferecesse Ochiba como isca? Gyoko casquinou consigo mesma, animada com todos os adorá veis segredos, todos muito valiosos nos ouvidos certos, que homens haviam derramado junto com o Sumo do Prazer. - Ele mudaria - murmurou confiante. - Oh, sim.

- O quê?

- Nada, nada, Inari-chan. Dormiu bem?

- O quê?

Ela sorriu e deixou-o mergulhar no sono de novo. Depois, quando ele estava pronto, tocou-o com a mão e os lábios para o prazer dele. E para o seu.

- Onde está o Inglês agora, padre?

- Não sei exatamente, Rodrigues. Ainda. Deve estar numa das hospedarias ao sul de Mishima. Deixei um criado para descobrir qual. - Alvito juntou o resto do molho com uma casca de pão fresco.

- Quando saberá?

- Amanhã, sem falta.

- Que va, eu gostaria de vê-lo de novo. Ele está bem? - perguntou Rodrigues.

- Sim. - O sino do navio soou seis vezes. Três da tarde. - Ele contou ao senhor o que lhe aconteceu desde que partiu de Osaka?

- Sei de alguns trechos. Por ele e por outros. É uma longa história e há muito a contar. Primeiro lidarei com os meus despachos, depois conversaremos.

Rodrigues encostou-se na cadeira, na pequena cabina de popa. - Bom. Isso seria muito bom. - Viu os traços agudos do jesuíta, os penetrantes olhos castanhos salpicados de amarelo. Olhos de gato. - Ouça, padre - disse ele -, o Inglês salvou o meu navio e a minha vida. Claro que é inimigo, claro que é herege, mas é um piloto, um dos melhores que já existiram. Não é errado respeitar um inimigo, ou mesmo gostar dele.

- Jesus perdoou a seus inimigos, mas eles ainda o crucificaram. - Calmamente Alvito retribuiu o olhar fixo do piloto. - Mas eu também gosto dele. Pelo menos, compreendo-o melhor. Vamos deixá-lo por enquanto.

Rodrigues assentiu, concordando. Notou que o prato do padre estava vazio, então esticou-se por sobre a mesa e colocoulhe a travessa mais perto. - Pronto, padre, coma mais um pouco de frango. Pão?

- Obrigado. Sim, tava faminto. - O padre agradecidamente arrancou outra perna,

comerei. Não tinha percebido como espegou mais salva, cebola e pão, depois cobriu tudo com o fim do espesso molho.

- Vinho?

- Sim, obrigado.

- Onde está o resto da sua gente, padre?

- Deixei-os numa hospedaria perto do ancoradouro. Rodrigues olhou pelas vigias que davam para Nimazu, os ancoradouros e o porto, bem a estibordo, a embocadura do Kano, onde a água era mais escura do que o resto do mar. Muitos barcos de pesca iam e vinham. - Esse criado que deixou lá, padre... pode confiar nele? Tem certeza de que os encontrará? - Oh, sim. Eles certamente não vão sair de lá por dois dias no mínimo. - Alvito já decidira não mencionar o que ele, ou mais corretamente, lembrou-se, o que o Irmão Miguel suspeitava, por isso apenas acrescentou: - Não se esqueça de que eles estão viajando formalmente. Com a posição de Toda Mariko e as bandeiras de Toranaga, viajam com toda a formalidade. Todo mundo, em quatro léguas, saberia sobre eles e onde estão hospedados. Rodrigues riu. - O Inglês viajando formalmente? Quem teria acreditado nisso? Como um daimio sifilítico?

- Isso não é nem a metade, piloto. Toranaga tornou-o samurai e hatamoto.

- O quê?

- Agora o Piloto-Mor Blackthorne usa as duas espadas. Com as pistolas. E é confidente de Toranaga, em certa medida, e seu protegido.

- O Inglês?

- Sim. - Alvito deixou o silêncio pairar na cabina e voltou a comer.

- Sabe o porquê disso? - perguntou Rodrigues. - Sim, em parte. Tudo a seu tempo, piloto.

- Conte-me apenas o porquê. Rapidamente. Os detalhes mais tarde, por favor.

- O Anjin-san salvou a vida de Toranaga pela terceira vez. Duas durante a fuga de Osaka, a última em Izu, durante um terremoto. - Alvito atacou vigorosamente a carne da coxa. Um filete de sumo correu-lhe pela barba negra.

Rodrigues esperou, mas o padre não disse mais nada. Pensativamente seus olhos caíram no cálice que segurava entre as mãos. A superfície do vinho vermelho-escuro refletiu a luz. Após uma longa pausa, disse: - Não seria bom para nós aquele Inglês incrível perto de Toranaga. Não em absoluto. Não ele. Hein?

- Concordo.

- Ainda assim, gostaria de vê-lo. - O padre não disse nada. Rodrigues deixou-o limpar o prato em silêncio, depois ofereceu mais, agora Ja não sentindo alegria alguma. O resto da carcaça e

a última asa foram aceitos, e outro cálice de vinho. Depois, para terminar, um pouco de excelente conhaque francês, que o padre pegou num armário.

- Rodrigues, gostaria de tomar um copo?

- Obrigado. - O marujo observou Alvito verter o líquido amarronzado no copo de cristal. Todo o vinho e o conhaque tinham vindo do estoque particular do padre-inspetor, como um presente de despedida ao seu amigo jesuíta.

- Naturalmente, Rodrigues, você ficará à vontade para compartilhá-lo com o padre - dissera Dell'Aqua. - Vá com Deus, que ele vele por você e o leve com segurança a bom porto e para casa de novo.

- Obrigado, Eminência.

Sim, obrigado, Eminência, mas nada de malditos agradecimentos, disse-se Rodrigues causticamente, nada de agradecimentos por conseguir que o meu capitão-mor me mandasse vir para bordo deste barco de porcos sob o comando deste jesuíta e longe dos braços da minha Gracia, pobre querida. Nossa Senhora, a vida é tão curta, curta demais e traiçoeira demais para. desperdiçá-la sendo acompanhante de padres fedorentos, até de Alvito, que é mais homem do que qualquer outro e, por causa disso, mais perigoso. Nossa Senhora, ajude-me!

- Oh! Você já vai, Rod-san? Vai tão cedo? Oh, que pena. . . - Volto logo, minha querida.

- Oh, que pena ... sentimos falta, o pequenino e eu.

Por um momento ele considerara a possibilidade de levá-la para bordo do Santa Filipa, mas imediatamente pusera de lado o pensamento, sabendo que seria perigoso para ela, para ele e para o navio. - Sinto muito, volto logo.

- Nós esperamos, Rod-san. Por favor, desculpe minha tristeza, sinto muito.

Sempre o português hesitante e com sotaque pesado que ela tentava tão arduamente falar, insistindo em ser chamada pelo nome de batismo, Gracia, e não por Nyan-nyan, de som tão agradável, que significava Gatinho e lhe assentava tão bem e de que ele gostava mais ainda.

Ele zarpara de Nagasaki, detestando partir, amaldiçoando todos os padres e capitães-mor, querendo que o verão terminasse e o outono chegasse, de modo que ele pudesse levantar ferros com o Navio Negro, os porões carregados, rumar para casa finalmente, rico e independente. Mas depois o quê? A perpétua pergunta o assoberbava. E ela - e a criança? Nossa Senhora,.ajudeme a responder isso com paz.

- Uma excelente refeição, Rodrigues - disse Alvito, brincando com uma migalha de pão na toalha. - Obrigado.

- Bom. - Rodrigues estava sério agora. - Qual é o seu plano, padre? Devemos. . . - Ele parou no meio da frase e olhou para fora. Depois, descontente, levantou-se da mesa, coxeou doloridamente até uma vigia do lado da terra e perscrutou o exterior. - O que é, Rodrigues?

- Pensei ter sentido a maré mudar. Só quis verificar o nosso espaço de manobras. - Abriu mais a vigia e se inclinou para fora, mas ainda não conseguiu ver a âncora de proa. - Com licença um instante, padre.

Subiu ao convés. A água lambia a corrente da âncora que mergulhava angulosa na água lamacenta. Nenhum movimento. Então apareceu um fio de esteira e o navio começou a se mover em segurança, para tomar sua nova posição com a maré vazante. Ele examinou a posição, depois as vigias. Estava tudo perfeito, nenhum outro navio por perto. A tarde estava excelente, a neblina dissipada há muito tempo. Estavam a uma amarra mais ou menos da praia, afastados o suficiente para impedir uma abordagem súbita, e bem longe das rotas que levavam aos atraçadouros.

O navio era uma lorcha, um casco japonês adaptado às velas e cordame portugueses modernos: veloz, de dois mastros, e equipado como uma corveta. Tinha quatro canhões a meia-nau, dois pequenos morteiros de proa e dois de popa. Chamava-se Santa Filipa e carregava uma tripulação de trinta marujos.

Seus olhos foram para a cidade e para as colinas além. - Pesaro!

- Sim, senhor?

- Prepare a chalupa. Vamos a terra antes do crepúsculo. - Bom. Estará pronto. Quando volta?

- Ao amanhecer.

- Melhor ainda! Comandarei o grupo de desembarque - dez homens.

- Nada disso, Pesaro. É kinjiru! Minha Nossa Senhora, o seu cérebro está podre? - Rodrigues se escarranchou no tombadilho e se inclinou sobre a amurada.

- Não está certo que todos devam sofrer - disse o contramestre, Pesaro. - Comandarei o grupo e prometo que não haverá problema. Estamos engaiolados há duas semanas já.

- As autoridades do porto daqui disseram kinjiru, sinto muito, mas sempre é o maldito kinjiru! Lembra? Isto não é Nagasaki!

- Sim, pelo sangue de Jesus Cristo, e que ele tenha piedade! - O homem atarracado carregou o sobrolho. - Foi só um japona que foi retalhado.

- Um morto retalhado, dois esfaqueados gravemente, muitos feridos, e uma garota ferida antes que os samurais interrompessem a arruaça. Preveni vocês todos antes de descerem a terra: "Nimazu não é Nagasaki, portanto comportem-se!" Minha Nossa Senhora! Tivemos sorte em dar o fora com apenas um marujo morto. Eles estariam dentro da lei se quisessem picar vocês cinco em pedaços.

- Lei deles, piloto, não nossa. Malditos macacos! Foi só uma rixa de bordel.

- Sim, mas os seus homens começaram, as autoridades puseram o meu navio de quarentena, e vocês estão todos marcados. Você inclusive! - Rodrigues mudou a perna de posição para

diminuir a dor. - Seja paciente, Pesaro. À hora que o padre voltar, zarparemos.

- Ao amanhecer? Isso é uma ordem?

- Não, ainda não. Só prepare a chalupa. Gomez virá comigo.

- Deixe-me ir também, hein? Por favor, piloto. Estou doente de morte de estar enfiado neste maldito balde.

- Não. E é melhor não ir a terra esta noite. Nem você qualquer outro.

- E se o senhor não voltar ao amanhecer? - Você apodrece claro?

A carranca do contramestre aprofundou-se. Ele recuou. - Sim, sim, está claro, por Deus.

- Bom. - Rodrigues desceu.

Alvito estava adormecido, mas despertou no momento que o piloto abriu a porta da cabina. - Ah, está tudo bem? - perguntou, satisfeito agora, de mente e corpo.

- Sim. Foi só o turno. - Rodrigues tomou uns goles de vinho, para tirar o gosto horrível da boca. Era sempre assim depois de um quase-motim. Se Pesaro não tivesse cedido imediatamente, mais uma vez Rodrigues teria tido que estourar a cara de um pois aqui, nem ancorado, até que eu volte. Está hesitou, de em homem ou colocá-lo a ferros ou ordenar cinqüenta chicotadas ou mergulhar o homem abaixo da quilha, ou pôr em prática qualquer uma da centena de obscenidades essenciais, pela lei do mar, para se manter a disciplina. Sem disciplina qualquer navio estaria perdido. - Qual é o plano agora, padre? Zarpamos ao amanhecer? - Como estão os pombos-correio?

- Em boa saúde. Ainda temos seis: quatro Nagasaki, dois Osaka.

O padre verificou o ângulo do sol. Quatro ou cinco horas até o crepúsculo. Muito tempo para soltar as aves com a primeira mensagem codificada que ele planejara há muito tempo: "Tora naga rende-se às ordens dos regentes. Vou primeiro a Yedo, depois a Osaka. Acompanharei Toranaga a Osaka. Ele diz que ainda podemos construir a catedral em Yedo. Despachos pormenorizados com Rodrigues".

- Quer dizer ao tratador, por favor, para preparar dois Nagasaki e um Osaka imediatamente? - disse Alvito. - Depois conversaremos. Não vou voltar com você. Estou indo para Yedo por terra. Vai me tomar a maior parte da noite e do dia de amanhã escrever um despacho detalhado, que você levará ao padre-inspetor, entregando às mãos dele apenas. Você zarpará assim que eu tiver terminado?

- Está bem. Se for muito perto do crepúsculo, esperarei até o amanhecer. Há bancos de areia e areias movediças por dez léguas.

Alvito assentiu. As doze horas extras não fariam diferença. Sabia que teria sido muitíssimo melhor se ele tivesse podido mandar as notícias de Yokosé, Deus amaldiçoe o demônio pagão que destruiu os meus pombos lá! Tenha paciência, disse a si mesmo. Para que a pressa? Isso não é uma regra vital da nossa ordem? Paciência. Quem espera sempre alcança. Quem espera e quem trabalha. O que importam doze horas, ou mesmo oito dias? Não mudarão o curso da história. Os dados foram lançados em Yokosé.

- Vai viajar com o Inglês? - estava perguntando Rodrigues. - Como antes?

- Sim. De Yedo voltarei para Osaka. Acompanharei Toranaga. Gostaria de que você parasse em Osaka com uma cópia do meu despacho, para o caso de o padre-inspetor estar lá ou ter partido de Nagasaki antes que você chegue lá e esteja a caminho. Você pode entregá-lo ao Padre Soldi, secretário dele... apenas a ele.

- Está bem. Ficarei contente em partir. Somos odiados aqui.

- Com a mercê de Deus, podemos mudar tudo isso, Rodrigues. Com a boa graça de Deus, converteremos todos os pagãos aqui.

- Amém a isso. Sim. - O homem alto moveu a perna, o latejamento momentaneamente abrandado. Olhou fixamente pela janela. Depois se levantou, impaciente. - Vou eu mesmo buscar os pombos. Escreva a sua mensagem, depois conversaremos. Sobre o Inglês. - Subiu ao convés e selecionou as aves nos cestos. Quando retornou, o padre já usara a pena especial, aguçada com uma agulha, e a tinta para inscrever a mesma mensagem em código nas minúsculas tiras de papel. Alvito encheu os minúsculos cilindros, lacrou-os, e soltou os pássaros. Os três fizeram um círculo no ar, depois rumaram para oeste, ao sol da tarde.

- Conversaremos aqui ou lá embaixo?

- Aqui. É mais fresco. - Rodrigues apontou o centro do tombadilho, fora do raio de audição.

Alvito sentou-se numa cadeira-de-mar. - Primeiro sobre Toranaga.

Contou brevemente ao piloto o que acontecera em Yokosé, omitindo o incidente com o Irmão José e a sua suspeita sobre Mariko e Blackthorne. Rodrigues ficou tão assombrado com a rendição quanto ele ficara. - Nada de guerra? É um milagre! Agora estamos realmente seguros, o nosso Navio Negro está seguro, a Igreja está rica, estamos ricos... graças a Deus, aos santos e a Nossa Senhora! Essa é a melhor notícia que o senhor poderia ter trazido, padre. Estamos seguros!

- Se Deus quiser. Uma coisa que Toranaga disse me perturbou. Colocou deste jeito: "Posso ordenar e o meu cristão estará livre - o Anjin-san. Com seu navio, e com seus canhões".

O imenso bom humor de Rodrigues sumiu. - O Erasmus ainda está em Yedo? Ainda está sob o controle de Toranaga?

- Sim. Seria grave se o Inglês fosse solto?

- Grave? Aquele navio nos mandaria para o inferno se apanhasse o nosso Navio Negro entre aqui e Macau com ele a bordo, armado, com metade de uma tripulação decente. Temos apenas a pequena fragata para intervir e ela não é páreo para o Erasmus! Nem nós. Ele poderia dançar em torno de nós e teríamos que arriar as nossas bandeiras.

- Tem certeza?

- Sim. Diante de Deus... o Erasmus seria um assassino.

- Furioso, Rodrigues fechou um punho. - Mas espere um momento... o Inglês disse que chegou aqui com apenas doze homens, e nem todos marujos, muitos deles mercadores e a maioria doente. Esses poucos não conseguiriam manejar o navio. O único lugar onde ele poderia conseguir uma tripulação seria Nagasaki - ou Macau. Poderia conseguir o suficiente em Nagasaki! Há os que... é melhor que seja mantido longe de lá, e de Macau! - Digamos que ele tivesse uma tripulação nativa?

- Quer dizer, alguns dos degoladores de Toranaga? Ou wakos? Quer dizer, se Toranaga se rendeu, todos os seus homens se tornam ronins, neh? Se o Inglês tivesse tempo suficiente poderia treiná-los. Facilmente. Jesus Cristo... por favor, desculpe-me, padre, mas se o Inglês conseguisse samurais ou wakos... Não podemos arriscar isso - ele é bom demais. Todos vimos isso em Osaka! Ele solto nessa maldita Ásia com uma tripulação de samurais.. .

Alvito observava-o, ainda mais preocupado agora. - Acho que é melhor eu enviar outra mensagem ao padre-inspetor. Ele deve ser informado, se é urgente assim. Ele saberá o que fazer.

- Eu sei o que fazer! - O punho de Rodrigues esmagou-se contra a amurada. Pôs-se de pé e deu as costas. - Ouça, padre, escute a minha confissão: na primeira noite, quando ele se encon trava ao meu lado e na galera, ao mar, quando estávamos indo de Anjiro, meu coração me disse que o matasse, e depois de novo durante a tempestade. Jesus me ajude, foi a hora em que o mandei para a frente e deliberadamente dei uma guinada sem preveni-lo, ele sem um salva-vidas, para assassiná-lo, mas o Inglês não caiu ao mar como qualquer outro teria caído. Achei que aquilo era a mão de Deus, e tive certeza disso quando, mais tarde, ele me salvou o navio, e depois quando o navio estava salvo e a onda me pegou e eu estava me afogando, meu último pensamento foi que aquilo também era punição de Deus pela minha tentativa de assassinato. Não se faz isso a um piloto - ele nunca faria isso a mim! Mereci daquela vez e depois, quando me descobri vivo e ele se inclinando em cima de mim, ajudando-me a beber, fiquei tão envergonhado e novamente implorei o perdão de Deus e fiz um juramento sagrado de tentar retribuir-lhe isso. Minha Nossa Senhora! - exclamou ele atormentado. - Aquele homem me salvou embora soubesse que eu tentei matá-lo. Vi isso nos olhos dele. Salvou-me e me ajudou a viver e agora tenho que matá-lo. - Por quê?

- O capitão-mor estava certo: Deus nos ajude se o Inglês zarpar no Erasinus, armado, com metade de uma tripulação decente.

Blackthorne e Mariko dormiam na paz noturna da sua casinha, no conjunto de casinhas que constituía a Hospedaria das Camélias, que ficava na Nona Rua Sul. Havia três aposentos em cada casa. Mariko tomara um para si e Chimmoko, Blackthorne outro, e o terceiro, que dava para a porta da frente e a varanda, fora deixado vazio, para estar, comer, e conversar.

- Acha que isto é seguro? - perguntara Blackthorne ansioso. - Não ter Yoshinaka, ou mais criadas ou guardas dormindo aqui?

- Não, Anjin-san. Na realidade nada é seguro. Mas será agradável ficarmos sozinhos. 'Esta hospedaria é considerada a mais bonita e famosa de Izu. É bonita, neh?

E era. Cada casa minúscula erguia-se sobre pilares elegantes, tinha varandas circundantes e quatro degraus, feitos das melhores madeiras, tudo polido e brilhando. Ficavam todas separadas cin qüenta passos da vizinha e cercadas por jardins bem tratados dentro do jardim maior por trás dos altos muros de bambu. Havia riachos, tanques de lírios, quedas-d'água, árvores floridas em abundância, com perfumes diurnos e perfumes noturnos, um aroma doce e voluptuoso. Caminhos de pedra, limpos, cobertos com delicados telhados, levavam aos banhos centrais, frio, quente e muito quente, alimentados por fontes naturais. Lanternas multicoloridas, criados e criadas felizes, e nunca uma palavra áspera para perturbar os sinos das árvores, a água borbulhando e os pássaros cantando nos aviários.

- Naturalmente pedi duas casas, Anjin-san, uma para o senhor e uma para mim. Infelizmente, apenas uma estava disponível, sinto muito. Mas Yoshinaka-san não ficou descontente. Pelo con trário, ficou aliviado pois assim não terá que dividir os seus homens. Postou sentinelas em cada caminho, portanto estamos totalmente seguros e não podemos ser incomodados como em outros lugares. Por que deveríamos ser incomodados? O que poderia estar errado com um quarto aqui, outro ali, e Chimmoko para partilhar o seu leito?

- Nada. Nunca vi um inteligente, e como é bela.

- Ah, como é gentil comigo, Anjin-san. Primeiro tome um banho, depois a refeição da noite e muito saque.

- Bom. Muito bom.

- Ponha de lado seu dicionário, Anjin-san, por favor. - Mas a senhora está sempre me encorajando.

- Se largar o livro um instante... eu conto-lhe um segredo. - Qual?

- Convidei Yoshinaka-san para comer conosco. E algumas senhoras. Para nos entreter.

- Ah!

- Sim. Depois que eu o deixar, o senhor escolherá uma, neh? - Mas isso poderia perturbar-lhe o sono, sinto muito.

- Prometo que dormirei pesadamente, meu amor. Falando sério, uma mudança poderia ser bom para você.

- Sim, mas no próximo ano, não agora. - Seja sério.

- Eu sou.

- Ah, então, nesse caso, se por acaso você polidamente mudar de idéia e mandá-la embora cedo - depois que Yoshinakasan tenha partido com a sua acompanhante -, ah, quem sabe o que o kami da noite poderia encontrar para você então?

- O quê?

- Fui fazer compras hoje. - Oh? E o que comprou? - Ah!

Ela havia comprado um sortimento dos acessórios de "travesseiro" que Kiku lhes mostrara, e muito mais tarde, quando Yoshinaka partira e Chimmoko vigiava na varanda, ela os ofereceu a ele com uma profunda mesura. Meio jocosamente, ele aceitou com igual formalidade, e juntos escolheram um anel de prazer.

- Isso parece que pica muito, Anjin-san, neh? Tem certeza de que não se importa?

- Não, não se você não se importa, mas pare de rir ou vai estragar tudo. Apague as velas.

- Oh, não, por favor, quero olhar.

- Pelo amor de Deus, pare de rir, Mariko! - Mas você também está rindo!

- Não interessa, apague a luz ou ... Pronto, agora olhe o que você fez.

- Oh!

- Pare de rir! Não é bom pôr a cabeça sobre os futons.. . Depois, mais tarde, problemas.

- Mariko ...

- Sim, meu amor?

- Não consigo encontrá-lo. - Oh! Deixe-me ajudá-lo.

- Ah, está tudo bem. Eu estava deitado em cima.

- Oh! Você tem... tem certeza de que não se importa?

- Não, mas é um pouco, bem, toda esta conversa e ter que esperar, não e uma coisa que levante exatamente, é?

- Oh, eu não me importo. A culpa foi minha, por rir. Oh, Anjin-san, amo-o muito, por favor, desculpe-me.

- Está desculpada. - Adoro tocar você. - Nunca conheci nada como o seu toque. - O que está fazendo, Anjin-san?

- Colocando isto. - Está difícil?

- Sim. Pare de rir!

- Oh, sinto muito, talvez você... - Pare de rir!

- Por favor, perdoe-me ...

Depois ela pegou no sono na hora, totalmente extenuada. Ele não. Para ele fora bom, mas não perfeito. Ficara preocupado demais com ela. Resolvera que aquela vez seria para o prazer

dela, não o seu. Sim, isto foi para ela, pensou, amando-a. Mas uma coisa foi perfeita: sei que realmente a satisfiz. Por uma vez. Estou absolutamente certo.

Dormiu. Algum tempo mais tarde o som de vozes e discussão e, misturado a isso, o som de português, começou a se infiltrar pelo seu sono leve. Por um momento pensou estar sonhando, depois reconheceu a voz: - Rodrigues!

Mariko murmurou, ainda mergulhada no sono.

Ao som de passos no caminho, ele se pôs de joelhos em pânico controlado. Ergueu-a como se fosse uma boneca, dirigiu-se para a shoji, e parou exatamente quando a porta foi aberta por fora. Era Chimmoko. A criada estava de cabeça baixa, os olhos discretamente fechados. Ele passou às pressas por ela, com Mariko nos braços, e deitou-a gentilmente sobre os seus próprios acolchoados, ainda meio adormecida, e correu silenciosamente para o seu quarto de novo, sentindo um suor gelado embora a noite estivesse quente. Enfiou um quimono às apalpadelas e rumou às pressas para a varanda. Yoshinaka atingira o segundo degrau. - Nan desu ka, Yoshinaka-san?

- Gomen nasai, Anjin-san - disse Yoshinaka. Apontou para os archotes no portão da hospedaria, acrescentando muitas palavras que Blackthorne não entendeu. Mas a essência do que disse era que aquele homem lá, o bárbaro, quer vê-lo e eu lhe disse que esperasse e ele disse que não esperaria, agindo como um daimio, coisa que ele não é, e tentou entrar à força, o que eu impedi. Disse que era seu amigo. É?

- Ei, Inglês! Sou eu, Vasco Rodrigues!

- Ei, Rodrigues! - gritou Blackthorne, feliz. - Já vou. Hai, Yoshinaka-san. Kare wa watashi no iehi yujin desu. Ele é meu amigo.

- Ah so desu! - Hai. Domo.

Blackthorne desceu correndo os degraus para se dirigir ao portão. Atrás ouviu a voz de Mariko. - Nan ja, Chimmoko? - e um sussurro, e depois ela chamou com autoridade: - Yoshinaka-san!

- Hai, Toda-sama!

Blackthorne correu os olhos em torno. O samurai subiu os degraus e tomou a direção do quarto de Mariko. A porta dela estava fechada. Chimmoko erguia-se do lado de fora. Seus lençóis amarrotados estavam, agora, perto da porta, onde devia dormir sempre, corretamente, caso a ama não a desejasse no quarto consigo. Yoshinaka curvou-se para a porta e começou a relatar. Blackthorne seguiu pelo caminho com alegria crescente, descalço, os olhos no português, um largo sorriso de boas-vindas, a luz dos archotes dançando nos brincos e na fivela do vistoso chapéu dele.

- Ei, Rodrigues! É ótimo vê-lo. Como vai a perna? Como me achou?

- Nossa Senhora, você cresceu, Inglês, está mais cheio? Sim, bem, saudável e agindo como um maldito daimio! - Rodrigues deu-lhe um abraço de urso e ele retribuiu.

- Como vai a perna?

- Dói como merda, mas funciona, e achei você perguntando onde estava o grande Anjin-san - o grande bárbaro bandido e bastardo, de olhos azuis!

Riram juntos, trocando obscenidades, sem se preocupar com os samurais e criados que os rodeavam. Num instante Blackthorne mandou uma criada buscar saquê e levou Rodrigues para a varanda. Ambos andavam com a ginga de marinheiro, a mão direita de Rodrigues, por hábito, no punho do florete, o outro polegar enganchado no cinto largo, perto da pistola. Blackthorne era algumas polegadas mais alto mas o português tinha ombros ainda mais largos e um peito que parecia um barril.

Yoshinaka esperava na varanda.

- Domo arigato, Yoshinaka-san - disse Blackthorne, agradecendo de novo ao samurai, e apontou uma das almofadas a Rodrigues. - Vamos conversar aqui.

Rodrigues pôs um pé nos degraus, mas parou quando Yoshinaka se moveu para a sua frente, apontando para o florete e a pistola, e estendeu a mão esquerda, palma para cima. - Dozo!

O português franziu o cenho. - Iyé, samurai-sama, domo ari. . .

- Dozo!

- Iyé, samurai-sama, iyé! - repetiu Rodrigues mais ríspido. Watashi yujin Anjin-san, neh?

Blackthorne deu um passo à frente, ainda surpreso com o inesperado da confrontação. - Yoshinaka-san, shigata ga nai, neh? - disse com um sorriso. - Rodrigues yujin wata...

- Gomen nasai, Anjin-san. Kinjiru! - Yoshinaka vociferou uma ordem. Imediatamente samurais avançaram, rodeando Rodrígues ameaçadoramente, e novamente ele estendeu a mão. - Dozo!

- Esses putos de merda são melindrosos, Inglês - disse Rodrigues através de um sorriso arreganhado. - Mande-os sossegar, hein? Nunca tive que entregar as minhas armas antes.

- Não, Rodrigues! - disse ele rapidamente, sentindo a iminente decisão do amigo, depois a Yoshinaka: - Domo, gomen nasai, Rodrigues yujin, watash.. .

- Goinen nasai, Anjin-san. Kinjiru. - Depois, asperamente, para o português: - Ima.

- Iyé! Wakarimasu ka! - rosnou Rodrigues.

Blackthorne rapidamente postou-se entre eles. - Ei, Rodrigues, o que importa isso, neh? Deixe Yoshinaka-san ficar com elas. Não tem nada a ver com você ou comigo. É por causa da senhora, Toda Mariko-sama. Ela está lá dentro. Você sabe como eles são melindrosos sobre armas perto de daimios ou das esposas deles. Discutiremos a noite toda, você sabe como eles são, hein? Que diferença faz?

O português forçou um sorriso. - Claro. Por que não? Hai, shigata ga nai, samurai-sama. So desu?

Curvou-se como um cortesão sem sinceridade, soltou o florete e a bainha do gancho, tirou a pistola Jlo cinto e estendeu a eles. Yoshinaka fez sinal a um samurai, que pegou as armas e correu para o portão, onde as colocou no chão e ficou de guarda. Rodrigues começou a subir os degraus, mas de novo Yoshinaka polida e firmemente pediu-lhe que parasse. Outros samurais se aproximaram para revistá-lo. Furioso, Rodrigues saltou para trás. - 1 YÉ! Kin jiru, por Deus! Que ...

Os samurais caíram-lhe em cima, seguraram-lhe os braços com força, e revistaram-no completamente. Encontraram duas facas no alto das botas, outra amarrada no antebraço esquerdo, duas pequenas pistolas - uma escondida no forro do casaco, outra sob a camisa - e um pequeno frasco de estanho ao quadril. Blackthorne examinou as pistolas. Estavam ambas engatilhadas. - A outra também estava engatilhada?

- Sim. Claro. Esta terra é hostil, não notou, Inglês? Digalhes que me larguem!

- Esse não é o modo habitual de visitar um amigo à noite. Neh?

- Estou lhe dizendo que esta terra é hostil. Estou sempre armado assim. Você não, normalmente? Minha Nossa Senhora, diga a esses bastardos que me deixem em paz.

- Isso é tudo? Tudo?

- Claro. Diga-lhes que me deixem em paz, Inglês! Blackthorne entregou as pistolas a um samurai e deu um passo à frente. Seus dedos tatearam cuidadosamente a face interna do largo cinto de couro de Rodrigues. Um estilete escorregou de sua bainha secreta, muito fino, muito maleável, feito do melhor aço de Damasco. Yoshinaka praguejou contra os samurais que haviam feito a vistoria. Eles se desculparam, mas Blackthorne só olhava para Rodrigues.

- Mais alguma coisa? - perguntou, o estilete solto na mão. Rodrigues sustentou-lhe o olhar, impassível.

- Eu digo a eles onde olhar... e como olhar, Rodrigues. Como um espanhol faria ... alguns deles. Hein?

- Me cago en la leche, che cabrón!

- Que va, leche! Depressa! - Nenhuma resposta. Blackthorne avançou com a faca. - Dozo, Yoshinaka-san. Watash... Rodrigues disse, rouco: - Na fita do meu chapéu -, e Blackthorne parou.

- Bom - disse ele, e estendeu a mão para o chapéu de aba larga.

- Você os ensinaria, não ensinaria? - Você não?

- Tenha cuidado com a pluma, Inglês, eu aprecio muito isso.

A fita era larga e rígida, a pluma vistosa como o chapéu.

Dentro da fita estava um delgado estilete, menor, especialmente desenhado, o aço excelente moldando-se com facilidade à curva. Yoshinaka vociferou outra violenta reprimenda aos samurais.

- Diante de Deus, isso é tudo, Rodrigues? - Nossa Senhora, eu lhe disse!

- Jure.

Rodrigues aquiesceu.

- Yoshinaka-san, ima ichi-ban. Domo - disse Blackthorne. Ele está em ordem agora. Obrigado.

Yoshinaka deu a ordem. Seus homens soltaram o português. Rodrigues esfregou os membros para abrandar a dor. - Posso me sentar, Inglês?

- Sim.

Rodrigues enxugou o suor com um lenço vermelho, depois pegou o frasco de estanho e se sentou de pernas cruzadas sobre uma das almofadas. Yoshinaka permaneceu por perto, na varan da. Todos os samurais, menos quatro, voltaram a seus postos. - Por que eles são tão melindrosos? Por que você é tão melindroso, Inglês? Nunca tive que entregar as minhas armas antes. Sou um assassino?

- Eu lhe perguntei se aquilo eram todas as armas e você mentiu.

- Eu não estava ouvindo. Nossa Senhora! Você... me trataria como um criminoso comum? - disse Rodrigues com azedume. - Ei, o que importa, Inglês, o que importa qualquer coisa? A noite está estraga ... Ei, mas espere, Inglês! Por que se deveria permitir que alguma coisa estragasse uma grande noite? Eu perdôo a eles. E a você, Inglês. Você estava certo e eu errado. Peço desculpas. É bom revê-lo. - Desenroscou a tampa e ofereceu o frasco. - Tome ... tome um pouco de um conhaque excelente.

- Você primeiro.

O rosto de Rodrigues ficou _pálido. - Nossa Senhora ... você acha que eu trago veneno?

- Não. Você bebe primeiro. Rodrigues bebeu.

- Mais!

O português obedeceu, depois enxugou a boca com as costas da mão. Blackthorne aceitou o frasco. - À saúde! - Entornou-o e fingiu engolir, secretamente mantendo a língua sobre a abertura para impedir a bebida de lhe entrar na boca, por mais que tivesse vontade de beber. - Ah! - disse. - Estava bom. Tome!

- Fique com ele, Inglês. É um presente. - Do bom padre? Ou de você?

- De mim.

- Diante de Deus?

- Deus, a Virgem, você e o seu "diante de Deus"! - disse Rodrigues. - É um presente meu e do padre! Ele é dono de toda a bebida a bordo do Santa Filipa, mas a Eminência disse que eu podia compartilhá-la e o frasco é um de uma dúzia a bordo. É um presente. Onde está a sua educação?

Blackthorne fingiu beber de novo e ofereceu-o de volta. - Tome, beba mais.

Rodrigues sentiu a bebida chegar-lhe aos artelhos e ficou contente, depois de aceitar o frasco cheio de Alvito, de tê-lo secretamente esvaziado, lavado cuidadosamente e enchido com co nhaque da sua própria garrafa. Minha Nossa Senhora, perdoe-me, orou, perdoe-me por duvidar do santo padre. Oh, Nossa Senhora, Deus, e Jesus, pelo amor de Deus, venham de novo à terra e mudem este mundo onde às vezes não ousamos confiar nem nos padres.

- Qual é o problema?

- Nada, Inglês. Só estava pensando que este mundo é nojento, quando não se pode mais confiar em ninguém. Vim como amigo e agora há um buraco no mundo.

- Veio mesmo? - Sim.

- Armado desse jeito?

- Estou sempre armado desse jeito. É por isso que estou vivo. Saúde! - O homenzarrão ergueu o frasco tristemente e bebeu de novo. - Mijo no mundo, mijo em tudo.

- Está dizendo que mija em mim?

- Inglês, este sou eu, Vasco Rodrigues, piloto da Marinha portuguesa, não um samurai degenerado. Troquei muitos insultos com você, todos em amizade. Esta noite vim ver o meu amigo e agora não tenho amigo. É muito triste.

- Sim.

- Eu não deveria estar triste, mas estou. Ser seu amigo me complicou a vida extraordinariamente. - Rodrigues levantou-se, descontraiu as costas, depois se sentou de novo. - Detesto sentar nestas malditas almofadas! As cadeiras são para mim. A bordo. Bem, saúde, Inglês!

- Quando você deu aquela guinada e eu fiquei a meia-nau, foi para me atirar ao mar. Não foi?

- Sim - respondeu Rodrigues imediatamente. Pôs-se de pé. - Sim. Fico contente de que você tenha perguntado, pois isso está na minha consciência terrivelmente. Fico contente de me desculpar em vida, pois não poderia me forçar a confessar a você. Sim, Inglês. Não peço perdão, compreensão, nada. Mas fico contente em confessar essa vergonha na sua cara.

- Acha que eu faria isso a você?

- Não. Mas se o momento chegasse... Nunca se sabe até o momento de julgamento da gente mesma.

- Veio aqui para me matar?

- Não. Acho que não. Acho que não era isso o que estava em primeiro lugar na minha cabeça, embora para a minha gente e o meu país nós ambos saibamos que seria melhor que você estivesse morto. É muito triste, mas é verdade. Como a vida é tola, hein, Inglês?

- Não o quero morto, piloto. Só o seu Navio Negro.

- Ouça, Inglês - disse Rodrigues, sem raiva. - Se nos encontrarmos ao mar, você no seu navio, armado, eu no meu, cuidado com a sua vida. Isso é tudo o que posso lhe prometer, apenas isso. Achei que seria possível lhe dizer isso como amigo, e ainda sou seu amigo. Exceto quanto a um encontro ao mar, estou em dívida com você para sempre. À saúde!

- Espero capturar o seu Navio Negro ao mar. À saúde, piloto!

Rodrigues partiu em silêncio. Yoshinaka e os samurais o seguiram. Ao portão o português reuniu as armas. Logo foi engolido pela noite.

Yoshinaka esperou até que as sentinelas se dispersassem. Quando ficou satisfeito de que estava tudo seguro, dirigiu-se coxeando para os seus aposentos. Blackthorne sentou-se de novo numa das almofadas e pouco depois a criada que ele mandara buscar saquê surgiu com a bandeja. Serviu-lhe um cálice e teria ficado para servi-lo, mas ele a dispensou. Agora estava sozinho. Os sons da noite rodearam-no de novo, o murmurar da quedad'água e os movimentos das aves noturnas. Estava tudo como antes, mas tudo mudara.

Tristemente ele esticou o braço para reencher o cálice, mas ouviu um roçar de seda e a mão de Mariko segurou o frasco. Ela o serviu, e outro cálice para si mesma.

- Doino, Mariko-san.

- Do itashiinashité, Anjin-san. - Ela se acomodou sobre a outra almofada. Beberam o vinho quente.

- Ele ia matá-lo, neh?

- Não sei, não com certeza.

-- O que significava aquilo: procurar como um espanhol? - Alguns deles despem os prisioneiros e depois investigam em lugares íntimos. E não com gentileza. Chamam a isso de procurar con significa, com significado. Algumas vezes usam facas. - Oh. - Ela tomou um gole e ouviu a água entre as pedras. - Acontece o mesmo aqui, Anjin-san. Às vezes. É por isso que nunca é prudente ser capturado. Se se é capturado, fica-se tão completamente desonrado, que qualquer coisa que o captor faça... É melhor não ser capturado. Neh?

Ele contemplou as lanternas movendo-se à brisa fresca e suave. - Yoshinaka tinha razão, eu estava errado. A busca era necessária. A idéia foi sua, neh? Você disse a Yoshinaka que o revistasse?

- Por favor, desculpe-me, Anjin-san, espero que isso não lhe tenha criado algum embaraço. Foi só porque eu estava com medo por sua causa.

- Agradeço-lhe - disse ele, em latim de novo, embora lamentasse que tivesse havido uma busca. Sem a vistoria ele ainda teria um amigo. Talvez, admoestou-se ele.

- Não há de quê - disse ela. - Mas era apenas o meu dever.

Mariko estava usando um quimono de noite e um sobrequimono azul, o cabelo trançado frouxamente, caindo-lhe até a cintura. Olhou para o portão, que se podia ver por entre as árvores. - Você foi muito esperto quanto à bebida, Anjin-san. Quase me belisquei de raiva por ter esquecido de prevenir Yoshinaka sobre isso. Você foi muito astuto em fazê-lo beber duas vezes. Usa-se muito o veneno nos seus países?

- Algumas vezes. Algumas pessoas usam. É um método infame.

- Sim, mas muito eficaz. Aqui também acontece.

- Terrível, não, não se poder confiar em ninguém?

- Oh, não, Anjin-san, sinto muito - respondeu ela. - Essa é apenas uma das regras mais importantes da vida - nada mais, nada menos.

 

O Erasmus resplendia ao sol alto do meio-dia, ao lado do ancoradouro de Yedo.

- Jesus Deus no paraíso, Mariko, olhe só! Já viu alguma coisa como ele? Olhe que linhas!

O navio estava além das paliçadas fechadas, circundantes, a uns cem passos de distância, atracado ao cais com cordas novas. A área toda estava pesadamente guardada, havia mais samurais no convés, e os sinais por toda parte diziam que a área era proibida, exceto com a permissão do Senhor Toranaga.

O Erasmus fora recentemente pintado e pichado, os conveses estavam imaculados, o casco calafetado e o cordame reparado. Até o mastro de proa, que fora arrebatado pela tempestade, fora substituído pelo último dos sobressalentes que o navio carregava no porão, e colocado num ângulo perfeito. Todas as cordas estavam caprichosamente enroladas, todos os canhões brilhando sob uma camada protetora de óleo, por trás das portinholas. E o esfarrapado Leão da Inglaterra tremulava orgulhosamente acima de tudo.

- Ó de bordo! - gritou ele alegremente de fora das barreiras, mas não houve resposta. Uma das sentinelas lhe disse que não havia bárbaros a bordo hoje.

- Shigata ga nai - disse Blackthorne. - Domo. - Sofreou a impaciência crescente por ir a bordo imediatamente e sorriu para Mariko. - É como se ele tivesse acabado de sair de uma reforma no estaleiro de Portsmouth, Mariko-san. Olhe os canhões - os rapazes devem ter trabalhado como cães. É lindo, neh? Não posso esperar para ver Baccus e Vinck e os outros. Nunca pensei que o encontraria desse jeito. Jesus Cristo, parece tão bonito, neh?

Mariko observava a ele e não ao navio. Sabia que agora fora esquecida. E substituída.

Não importa, disse a si mesma. Nossa viagem terminou. Naquela manhã haviam chegado ao último dos postos de controle nos arredores de Yedo. Mais uma vez seus papéis de viagem foram examinados. Mais uma vez foram polidamente autorizados a passar, mas dessa vez uma nova guarda de honra os esperava.

- Vão nos levar até o castelo, Anjin-san. O senhor ficará lá, e esta noite devemos nos encontrar com o Senhor Toranaga. - Bom, então há muito tempo. Olhe, Mariko-san, o cais não está a mais de uma milha da praia, neh? Meu navio está lá em algum lugar. Quer perguntar ao Capitão Yoshinaka se podemos ir lá, por favor?

- Ele diz que sente muito mas não tem instruções para fazer isso, Anjin-san. Tem que nos levar ao castelo.

- Por favor, diga-lhe... talvez seja melhor que eu tente. Taicho-san! Okashira, sukoshi no aida watakushi wa ikitai no desu. Watakushi no funega asoko ni arimasu. Capitão, quero ir até lá um instante. Meu navio está lá.

- Iyé, Anjin-san, gomen nasai. Ima...

Mariko ouvira aprovadora e divertida enquanto Blackthorne discutia cortesmente e insistia com firmeza, e depois, relutante, Yoshinaka os permitira fazer um desvio, mas só por um momento, neh? e só porque o Anjin-san alegou o status de hatamoto, o que lhe dava certos direitos inalienáveis, e assinalara que um exame rápido era importante para o Senhor Toranaga, que isso certamente pouparia ao senhor deles um tempo imensamente valioso e era vital para o seu encontro à noite. Sim, o Anjin-san pode olhar um instante, mas, sinto muito, naturalmente é proibido subir ao navio sem papéis assinados pessoalmente pelo Senhor Toranaga, e deve ser apenas por um momento porque somos esperados, sinto muito.

- Domo, Taicho-san - dissera Blackthorne expansivamente, muito satisfeito com a sua compreensão aumentada dos meios corretos de persuadir e com o seu domínio crescente da língua.

A noite e grande parte do dia anterior eles haviam passado numa hospedaria a mais ou menos duas ris ao sul, Yoshinaka permitindo-lhes perder tempo como antes.

Oh, foi uma noite tão adorável, pensou ela.

Houvera tantos dias e noites adoráveis. Tudo perfeito, exceto o primeiro dia depois de partirem de Mishima, quando o Padre Tsukku-san os alcançara de novo e a precária trégua entre os dois homens se rompera furiosamente. A discussão fora repentina, violenta, alimentada pelo incidente com Rodrigues e por excesso de conhaque. Ameaças, contra-ameaças e imprecações e depois o Padre Alvito disparara para Yedo na frente, deixando desastre no seu rastro, a alegria da viagem arruinada.

- Não devemos deixar que isso aconteça, Anjin-san. - Mas aquele homem não tinha o direito...

- Oh, sim, concordo. E naturalmente você tem razão. Mas, por favor, se deixar esse incidente destruir a sua harmonia, estará perdido, e eu também. Por favor, imploro-lhe que seja japonês. Afaste esse incidente - isso é tudo o que ele é, um incidente entre dez mil. Não deve Permitir que ele destroce a sua harmonia. Afaste-o para um compartimento.

- Como? Como posso fazer isso? Olhe as minhas mãos. Estou tão furioso que não posso impedi-Ias de tremer!

- Olhe para esta rocha, Anjin-san. Ouça-a crescendo. - O quê?

- Ouça a rocha crescer, Anjin-san. Concentre a mente nisso, na harmonia da rocha. Ouça o kami da rocha. Ouça o meu amor, pela salvação da sua vida. E da minha.

Ele tentara e conseguira um pouco, e no dia seguinte, amigos de novo, amantes de novo, em paz novamente, ela continuou a ensinar, tentando moldá-lo - sem que ele soubesse que estava sendo moldado - à Cerca õctupla, construindo paredes interiores e defesas que eram o único caminho que o levaria à harmonia. E à sobrevivência.

- Estou contente de que o padre tenha ido embora e não vá voltar, Anjin-san.

- Sim.

- Teria sido melhor se não tivesse havido discussão alguma. Tenho medo por você.

- Nada está diferente. Ele sempre foi meu inimigo, sempre será. Karma é karma. Mas não se esqueça de que não existe nada além de nós. Ainda não. Nem ele nem ninguém. Não até Yedo. Neh?

- Sim. Você é muito sábio. E tem razão de novo. Estou muito feliz de estar com você...

A estrada de Mishima deixou as terras planas rapidamente e se retorceu montanha acima até o passo de Hakoné. Descansaram ali durante dois dias no alto das montanhas, alegres e con tentes, o monte Fuji glorioso ao nascer do sol e ao crepúsculo, o cume obscurecido por uma grinalda de nuvens.

- A montanha é sempre assim?

- Sim, Anjin-san, quase sempre encoberta. Mas isso faz a vista de Fuji-san, clara e limpa, tão mais admirável, neh? Pode-se subir até o topo, se se quiser.

- Vamos fazer isso agora!

- Não agora, Anjin-san. Um dia. Temos que deixar alguma coisa para o futuro, neh? Escalaremos o Fuji-san no outono... Houve sempre hospedarias bonitas e privadas ao longo das planícies do Kwanto. E sempre rios e riachos e regatos para cruzar, o mar à direita agora. Sua expedição coleara em direção norte ao longo da movimentada e alvoroçada Tokaido, através da maior tigela de arroz do império. As lisas planícies de aluvião eram ricas em água, cada polegada cultivada. O ar era quente e úmido agora, denso com o cheiro de esterco humano que os fazendeiros regavam com água e punham a conchadas sobre as plantas com todo o amor e carinho.

- O arroz nos dá alimento para comer, Anjin-san, tatamis para dormir, sandálias com que andar, roupas para nos proteger da chuva e do frio, sapé para manter as nossas casas aquecidas, papel para escrever. Sem arroz não podemos existir.

- Mas o mau cheiro, Mariko-san!

- Esse é um preço pequeno a pagar por tanta generosidade, neh? Faça apenas o que fazemos, abra os olhos, os ouvidos e a mente. Ouça o vento e a chuva, os insetos e os pássaros, escute as plantas crescendo, e, mentalmente, veja as suas gerações seguindo até o fim dos tempos. Se fizer isso, Anjin-san, logo estará aspirando apenas o encanto da vida. Exige prática... mas o senhor se torna muito japonês, neh?

- Ah, obrigado, senhora! Mas devo confessar que estou começando a gostar de arroz. Sim. Certamente prefiro arroz e batatas e, quer saber de outra coisa? Não sinto falta de carne como sentia. Isso não é estranho? Não sinto tanta fome quanto antes.

- Eu sinto mais fome do que nunca. - Ah, eu estava falando de comida. - Ah, eu também ...

A três dias do passo de Hakoné, o período mensal dela começara e ela pedira a ele que tomasse uma das criadas da hospedaria. - Seria prudente, Anjin-san.

- Prefiro não fazer isso, sinto muito.

- Por favor, eu lhe peço. É uma salvaguarda. Uma discrição.

- Já que você me pede, então sim. Mas amanhã, não esta noite. Esta noite vamos dormir em paz.

Sim, pensou Mariko, naquela noite dormimos pacificamente e o amanhecer seguinte foi tão fascinante, que eu me sentei na varanda com Chimmoko e assisti ao nascimento de mais um dia.

- Ah, bom dia, Senhora Toda - dissera Gyoko, curvandose, à sua espera na entrada do jardim. - Um deslumbrante amanhecer, neh?

- Sim, lindo.

- Por favor, posso interrompê-la? Poderia lhe falar em particular... a sós? Sobre um assunto de negócios.

- Naturalmente. - Mariko deixara a varanda, não desejando perturbar o sono do Anjin-san. Mandara Chimmoko buscar chá e ordenara que se colocassem mantas sobre o gramado, perto da pequena queda-d'água.

Quando foi correto começar e elas ficaram sozinhas, Gyoko disse: -- Estive considerando de que modo eu poderia ser de mais valia para Toranaga-sama.

- Os mil kokus seriam mais que generosos. - Três segredos poderiam ser mais.

- Um, talvez, Gyoko-san, se fosse o segredo correto.

- O Anjin-san é um bom homem, neh? O futuro dele deve ser ajudado também, neh?

-- O Anjin-san tem o seu próprio karma - replicara ela, sabendo que chegara o momento de negociar, perguntando-se o que devia conceder, se é que ousaria conceder alguma coisa. - Estávamos falando sobre o Senhor Toranaga, neh? Ou um dos segredos é sobre o Anjin-san?

- Oh, não, senhora. É como a senhora diz. O Anjin-san tem o seu próprio karma, assim como estou certa de que ele tem seus próprios segredos. Só me ocorreu que o Anjin-san é um dos vassalos favoritos do Senhor Toranaga, portanto qualquer proteção que o nosso senhor tenha em certo sentido ajuda a seus vassalos, neh?

- Concordo. Naturalmente é dever dos vassalos transmitir qualquer informação que pudesse ajudar o seu senhor.

- É verdade, senhora, muito verdade. Ah, é uma honra tão grande para mim servi-Ia. Honto. Posso dizer-lhe de como fiquei honrada em ser autorizada a viajar com a senhora, conversar com a senhora, comer e rir com a senhora, e ocasionalmente agir como uma modesta conselheira, por menos à altura que eu seja, pelo que peço desculpas. E finalmente dizer que a sua sabedoria é tão grande quanto a sua beleza, e a sua bravura tão vasta quanto a sua posição.

- Ah, Gyoko-san, por favor, desculpe-me, a senhora é muito gentil, muito atenciosa. Sou apenas a esposa de um dos generais do meu senhor. Estava dizendo? Quatro segredos?

- Três, senhora. Eu estava me perguntando se a senhora intercederia junto ao Senhor Toranaga por mim. Seria impensável que eu sussurrasse diretamente a ele o que sei ser verdadeiro. Seria muita falta de educação, porque eu não saberia as palavras certas a escolher, ou como colocar a informação diante dele, e em qualquer caso, num assunto de qualquer importância, o nosso costume de usar um intermediário é tão melhor, neh?

- Kiku-san não seria melhor escolha? Não tenho como saber quando serei chamada ou dentro de quanto tempo terei uma audiência com ele, ou mesmo se ele estaria interessado em ouvir qualquer coisa que eu pudesse ter para lhe dizer.

- Por favor, desculpe-me, senhora, mas a senhora seria extraordinariamente melhor. Poderia julgar o valor da informação, ela não. A senhora possui o ouvido, ela, outras coisas.

- Não sou conselheira, Gyoko-san. Nem avaliadora. - Eu diria que eles valem mil kokus.

- So desu ka?

Gyoko certificou-se perfeitamente de que ninguém estava ouvindo, depois contou a Mariko o que o padre cristão renegado murmurara que o Senhor Onoshi lhe havia sussurrado ao confes sionário, e que ele relatara ao tio, o Senhor Harima; depois o que o segundo cozinheiro de Omi ouvira da conspiração de Omi e sua mãe contra Yabu; e por último, tudo o que sabia sobre Zataki, sua aparente luxúria pela Senhora Ochiba, e sobre Ishido e a Senhora Ochiba.

Mariko ouvira atentamente sem fazer comentário - embora romper o sigilo do confessionário a chocasse grandemente -, a mente dançando ante o enxame de possibilidades que aquelas informações desvendavam. Depois interrogou mais uma vez Gyoko com cuidado, para ter certeza de que entendera claramente o que lhe estava sendo dito e gravá-lo completamente na própria memória.

Quando ficou satisfeita, achando que sabia tudo o que Gyoko estava preparada para divulgar no momento - pois, obviamente, uma negociante tão astuta sempre conservaria muito de reserva -, mandou buscar chá.

Serviu pessoalmente a xícara de Gyoko, e tomaram o chá com gravidade afetada. Ambas cautelosas, ambas confiantes.

- Não tenho meio de saber quão valiosa é essa informação, Gyoko-san.

- Naturalmente, Mariko-sama.

- Imagino que essa informação - e os mil kokus - agradariam grandemente ao Senhor Toranaga.

Gyoko engoliu a obscenidade que lhe relampejou por trás dos lábios. Esperara uma redução substancial no lance inicial. - Desculpe, mas o dinheiro não tem significado para tal daimio, embora seja uma herança para uma camponesa como eu - mil kokus me tornam uma ancestral, neh? Sempre se deve saber o que se é, Senhora Toda. Neh? - Seu tom de voz tinha farpas.

- Sim. É bom saber o que a senhora é, e quem é, Gyokosan. Esse é um dos raros dons que a mulher tem sobre o homem. Uma mulher sempre sabe. Felizmente eu sei o que sou. Oh, sim, muito. Por favor, vá ao ponto.

Gyoko não vacilou sob a ameaça, mas revidou o ataque com uma concisão descortês correspondente. - O ponto é que ambas conhecemos a vida e compreendemos a morte, e ambas acredita mos que o tratamento no inferno e em qualquer outro lugar depende de dinheiro.

- Acreditamos?

- Sim. Sinto muito, acho que mil kokus é demais. - A morte é preferível?

- Já escrevi o meu poema de morte, senhora:

"Quando eu morrer, não me queimem, não me enterrem, simplesmente atirem meu corpo num campo para cevar algum cão de barriga vazia".

- Isso poderia ser providenciado. Facilmente.

- Sim. Mas tenho ouvidos aguçados e uma língua segura, o que poderia ser mais importante.

Mariko serviu mais chá. Para si mesma. - Desculpe, tem mesmo?

- Oh, sim, muito. Por favor, desculpe-me, mas não é ostentação dizer que fui bem treinada, senhora, nisso e em muitas outras coisas. Não tenho medo de morrer. Escrevi o meu testa mento, e detalhei instruções aos meus parentes para o caso de uma morte repentina. Fiz as pazes com os deuses há muito tempo, e quarenta dias depois de morrer sei que renascerei. Se não renascer - a mulher deu de ombros -, então serei um kami. - O leque dela estava parado. - Portanto posso me permitir aspirar à lua, neh? Por favor, desculpe-me por mencionar isto, mas sou como a senhora: não temo nada. Mas, ao contrário da senhora nesta vida, não tenho nada a perder.

- Tanta conversa sobre coisas más, Gyoko-san, numa manhã tão agradável. Está agradável, neh? - Mariko preparou-se para cravar as presas. - Eu preferiria muitíssimo vê-Ia viva, vi vendo até uma velhice honrada, um dos sustentáculos da sua nova corporação. Ah, essa foi uma idéia de muita sensibilidade. Muito boa, Gyoko-san.

- Obrigada, senhora. Eu igualmente gostaria de vê-Ia segura e feliz e prosperando do modo como a senhora quisesse. Com todos os brinquedos e honras de que necessitasse.

- Brinquedos? - repetiu Mariko, perigosa agora.

Gyoko era como um cão de faro treinado. - Sou apenas uma camponesa, senhora, por isso não saberia que honras a senhora desejaria, que brinquedos a agradariam. Nem ao seu filho.

Sem que nenhuma das duas notasse, o delgado cabo de madeira do leque de Mariko quebrou-se entre os seus dedos. A brisa morrera. Agora o ar quente e úmido pairava sobre o jardim que dava para um mar sem ondas. Moscas enxamearam e pousaram e enxamearam de novo.

- De que... que honras ou brinquedos a senhora gostaria? Para si mesma? - Mariko encarou-a com uma fascinação malévola, claramente consciente agora de que precisava destruí-Ia ou seu filho pereceria.

- Nada para mim mesma. O Senhor Toranaga concedeume honras e riquezas para além dos meus sonhos. Mas para o meu filho? Ah, sim, ele poderia ter uma mão que o auxiliasse. - Que ajuda?

- Duas espadas. - Impossível.

- Eu sei, senhora. Sinto muito. Tão fácil de conceder e no entanto tão impossível. A guerra se aproxima. Muitos serão necessários para combater.

- Não haverá guerra agora. O Senhor Toranaga irá a Osaka.

- Duas espadas. Não é pedir demais.

- Isso é impossível. Sinto muito, não cabe a mim dar isso.

- Sinto muito, mas não pedi que a senhora concedesse coisa alguma. Mas essa é a única coisa que me agradaria. Sim. Nada mais. - Um fio de suor escorreu do rosto ao colo de Gyoko. - Eu gostaria de oferecer ao Senhor Toranaga quinhentos kokus do preço do contrato, como símbolo da minha estima nestes tempos difíceis. Os outros quinhentos irão para o meu filho. Um samurai necessita de um legado, neh?

- Está condenando seu filho à morte. Todos os samurais Toranaga morrerão ou se tornarão ronins muito em breve.

- Karma. Meu filho já tem filhos, senhora. Eles contarão aos próprios filhos que um dia fomos samurais. Isso é tudo o que importa, neh?

- Não cabe a mim dar isso.

- É verdade. Sinto muito. Mas isso é tudo o que me satisfaria.

Irritado, Toranaga meneou a cabeça. - A informação dela é interessante, talvez, mas não vale que eu lhe faça o filho samurai.

- Ela parece ser uma vassala leal, senhor - replicou Mariko. - Disse que ficaria honrada se o senhor deduzisse mais quinhentos kokus do preço do contrato para alguns samurais necessitados.

- Isso não é generosidade. Não, em absoluto. É meramente culpa pelo preço extorsivo que pediu originalmente.

- Talvez valha a pena considerar, senhor. A idéia dela sobre a corporação, sobre as gueixas e as novas classes de cortesãs terá efeitos de longo alcance, neh? Talvez não houvesse mal algum.

- Não concordo. Não. Por que deveria ela ser recompensada? Não há razão para conceder-lhe essa honra. Ridículo! Ela certamente não lhe pediu isso, pediu?

- Teria sido mais que um pouco impertinente da parte dela fazer isso, senhor. Fiz a sugestão porque acredito que ela poderia lhe ser muito valiosa.

- É melhor que ela seja mais valiosa. Os segredos provavelmente também são mentiras. Atualmente ela não tem nada além de mentiras. - Toranaga tocou um sininho e um escudeiro apareceu imediatamente à porta oposta.

- Senhor?

- Onde está a cortesã Kiku?

- Nos seus aposentos, senhor.

- A mulher Gyoko está com ela? - Sim, senhor.

- Ponha as duas para fora do castelo. Imediatamente! Mande-as de volta para... Não, aloje-as numa hospedaria, numa hospedaria de terceira classe, e diga-lhes que esperem lá até que eu mande chamá-las. - Quando o homem sumiu, Toranaga disse irritado: - Nojento! Alcoviteiros querendo ser samurais? Camponeses imundos, não conhecem mais o seu lugar?

Mariko observou-o sentado sobre a almofada, o leque agitando-se irregularmente. Estava chocada com a mudança nele. Abatimento, irritação e rabugice onde antes houvera sempre uma animada confiança. Ouvira os segredos com interesse, mas não com a animação que ela esperara. Pobre homem, pensou ela com pena, desistiu. De que lhe serve qualquer informação? Talvez ele seja sábio em pôr de lado as coisas do mundo e se preparar para o desconhecido. Seria melhor que você também fizesse isso, pensou ela, morrendo internamente um pouquinho mais. Sim, mas você não pode, ainda não, de algum modo você tem que proteger o seu filho.

Estavam no sexto andar do alto torreão fortificado e as janelas davam para a cidade inteira, abrangendo três pontos cardeais. O pôr-do-sol estava escuro aquela noite, um filete de lua baixo no horizonte, o ar úmido e sufocante, embora ali, quase cem pés acima das muralhas do castelo, o aposento apanhasse cada sopro de vento. A sala era baixa e fortificada, e tomava metade do andar inteiro, com outras salas adiante.

Toranaga pegou o despacho que Hiro-matsu lhe enviara por Mariko e leu-o de novo. Ela notou que a mão dele tremia. - Para que ele quer vir a Yedo? - Com impaciência, Toranaga atirou o pergaminho para um lado.

- Não sei, senhor, sinto muito. Só me pediu que lhe entregasse esse despacho.

- Você conversou com o renegado cristão?

- Não, senhor. Yoshinaka-san disse que o senhor tinha dado ordens para que ninguém fizesse isso.

- Como esteve Yoshinaka durante a viagem?

- Muito capaz, senhor - disse ela, pacientemente respondendo à pergunta pela segunda vez. - Muito eficiente. Protegeu-nos muito bem e trouxe-nos exatamente no prazo.

- Por que o Padre Tsukku-san não voltou com vocês o caminho todo?

- Na estrada de Mishima, senhor, ele e o Anjin-san discutiram - disse-lhe Mariko, não sabendo o que o Padre Alvito já poderia ter contado a Toranaga, se, de fato, Toranaga já tivesse mandado chamá-lo. - O padre resolveu continuar a viagem sozinho.

Sobre o que foi a discussão?

Parcialmente sobre mim, minha alma, senhor. Na maior parte por causa da inimizade religiosa deles e por causa da guerra entre seus governantes.

- Quem começou?

- Os dois são igualmente responsáveis. Começou por causa de um frasco de bebida. - Mariko contou-lhe o que se passara com Rodrigues, depois continuou: - O Tsukku-san havia tra zido uma segunda garrafa consigo, desejando, conforme disse, interceder por Rodrigues-san, mas o Anjin-san disse, chocante e abruptamente, que não queria nenhuma "bebida papista", preferia saquê, e que não confiava em padres. O... o santo padre enfureceu-se, foi abrupto de modo igualmente chocante, dizendo que nunca lidara com veneno, nunca o faria, e nunca poderia desculpar uma coisa dessas.

- Ah, veneno? Eles usam veneno como arma?

- O Anjin-san me disse que alguns deles sim, senhor. Isso levou a palavras mais violentas e depois se puseram a se agredir mutuamente sobre religião, a minha alma, católicos e protestan tes. .. Saí para procurar Yoshinaka-san tão rápido quanto pude, e ele interrompeu a discussão.

- Os bárbaros só causam problema. Os cristãos só problema. Neh?

Ela não lhe respondeu. A petulância dele a perturbava. Não era nada do seu feitio e parecia não haver razão para tal colapso do seu lendário autocontrole. Talvez o choque de ser derrotado seja demais para ele, pensou ela. Sem ele estamos todos liquidados, meu filho está liquidado, e o Kwanto logo estará em outras mãos. A melancolia de Toranaga a estava contagiando. Ela notara nas ruas e no castelo a mortalha que parecia pairar sobre a cidade inteira - uma cidade que era famosa pela sua alegria, impudente bom humor, e encanto com a vida.

- Nasci no ano em que os primeiros cristãos chegaram e desde então eles não pararam de atormentar o país - disse Toranaga. - Durante cinqüenta e oito anos, nada além de problemas. Neh?

- Sinto muito que eles o tenham ofendido, senhor. Há mais alguma coisa? Com a sua perm ...

- Sente-se. Ainda não terminei. - Toranaga tocou o sino de novo. A porta se abriu. - Mande Buntaro-san entrar. Buntaro avançou. De cara fechada, ajoelhou-se e curvou-se. Ela se curvou para ele estarrecida, pois ele não fizera menção de tê-la notado.

Pouco antes Buntaro encontrara o seu cortejo ao portão do castelo. Após uma breve saudação, dissera-lhe que devia se apresentar ao Senhor Toranaga imediatamente. O Anjin-san seria chamado mais tarde.

- Buntaro-san, pediu para me ver na presença de sua esposa o mais cedo possível?

- Sim, senhor. - O que deseja?

- Humildemente peço-lhe permissão para cortar a cabeça do Anjin-san - disse Buntaro.

- Por quê?

- Por favor, desculpe-me, mas eu ... eu não gosto do modo como ele olha para a minha mulher. Eu queria... queria dizer isso diante dela, pela primeira vez, na sua frente. Além disso, ele me insultou em Anjiro e não posso mais viver com essa vergonha. Toranaga deu uma olhada em Mariko, que parecia ter congelado no tempo. - Acusa-a de encorajá-lo?

- Eu ... eu peço permissão para tirar-lhe a cabeça. - Acusa-a de encorajá-lo? Responda à pergunta!

- Por favor, desculpe-me, senhor, mas se eu achasse isso, seria forçado pelo dever a tirar a cabeça dela imediatamente - respondeu Buntaro como uma pedra, de olhos nos tatamis. – O bárbaro é uma constante irritação à minha harmonia. Acredito que ele seja um aborrecimento ao senhor. Deixe-me tirar-lhe a cabeça, peço-lhe. - Levantou os olhos, as pesadas mandíbulas por barbear, os olhos profundamente ensombrecidos. - Ou deixeme tomar minha esposa agora e esta noite iremos antes do senhor... para preparar o caminho.

- O que diz a isso, Mariko-san?

- Ele é meu marido. Qualquer coisa que decida é o que eu farei - a menos que o senhor decida em contrário. Esse é o meu dever.

Toranaga olhou do homem para a mulher. Depois sua voz se endureceu, e por um instante foi como o Toranaga de antigamente. - Mariko-san, você partirá dentro de três dias para Osaka. Vai preparar esse caminho para mim e me esperará lá. Buntaro-san, você me acompanhará como comandante da minha escolta quando eu partir. Depois de ter agido como meu auxiliar, você ou um dos seus homens pode fazer o mesmo com o Anjinsan - com ou sem a aprovação dele.

Buntaro pigarreou. - Senhor, por favor, ordene Céu...

- Cale-se! Não sabe se comportar? Já lhe disse não três vezes! Na próxima vez em que tiver a impertinência de oferecer um conselho indesejável, você rasgará o ventre num monturo de Yedo!

A cabeça de Buntaro tocou os tatamis. - Peço desculpas, senhor. Peço desculpas pela minha impertinência.

Mariko ficou igualmente estarrecida com a falta de educação de Toranaga, a vergonhosa explosão, e também se curvou profundamente para ocultar o próprio embaraço. Pouco depois Tora naga disse: - Por favor, desculpem-me o mau humor. Seu pedido está concedido, Buntaro-san, mas só depois de ter agido como meu assistente.

- Obrigado, senhor ofendido.

- Ordenei que vocês fizessem as pazes. Fizeram? Buntaro assentiu secamente. Mariko

- Bom. Mariko-san, você voltará noite, à hora do Cão. Pode ir agora. Ela se curvou e saiu.

Toranaga encarou Buntaro. -- Bem?

- É... é impensável que ela me traísse, senhor - respondeu Buntaro sombriamente.

- Concordo. - Toranaga afastou uma mosca com o leque, parecendo muito cansado. - Bem, você terá a cabeça do Anjinsan dentro em breve. Preciso que ela esteja sobre os ombros dele um pouco mais.

- Obrigado, senhor. Desculpe-me de novo por tê-lo irritado. - Estes tempos são irritantes. Tempos abomináveis. - Toranaga inclinou-se para a frente. - Ouça, quero que você vá a Mishima imediatamente para render seu pai por alguns dias. Ele pede permissão para vir aqui consultar-se comigo. Não sei o que... De qualquer modo, preciso ter alguém em Mishima em quem eu possa confiar. Parta por favor ao amanhecer, mas via Takato.

- Senhor? - Buntaro viu que Toranaga conservava a calma

Por favor, desculpe-me por tê-lo também.

Você a acusa?

- Tenho uma mensagem particular para minha mãe em Takato. Você não deve dizer a ninguém que irá lá. Mas assim que estiver longe da cidade, rume para o norte.

- Compreendo.

- O Senhor Zataki pode impedi-lo de entregar a mensagem, pode tentar impedir. Você deve entregá-la apenas nas mãos dela. Compreendeu? Apenas a ela. Pegue vinte homens e parta a ga lope. Mandarei um pombo-correio para pedir um salvo-conduto a ele.

- Sua mensagem será oral ou escrita, senhor? - Escrita.

- E se eu não conseguir entregá-la?

- Tem que entregá-la, claro que tem. É por isso que estou escolhendo você! Mas... se for traído como eu fui... se for traído, destrua-a antes de se suicidar. No momento em que eu receber essa má notícia, a cabeça do Anjin-san lhe rolará dos ombros. E se ... e Mariko-san? E a sua esposa, se alguma coisa der errado?

- Por favor, mate-a, senhor, antes de morrer. Eu ficaria honrado se... Ela merece um assistente digno.

- Ela não morrerá desonrosamente, você tem a minha promessa. Providenciarei isso. Pessoalmente. Agora, por favor, volte ao amanhecer para levar a mensagem. Não me falhe. Apenas nas mãos de minha mãe.

Buntaro agradeceu-lhe de novo e saiu, envergonhado pela demonstração de medo de Toranaga.

Sozinho agora, Toranaga puxou um lenço e enxugou o suor do rosto. Seus dedos tremiam. Tentou controlá-los, mas não conseguiu. Exigira-lhe toda a força continuar se comportando como o simplório estúpido, esconder a desmedida excitação com os segredos, os quais, fantasticamente, prometiam a longamente ansiada prorrogação.

- Uma prorrogação possível, apenas possível... se for verdade - disse ele alto, quase incapaz de pensar, a surpreendentemente bem-vinda informação de Gyoko que Mariko trouxera ainda a lhe guinchar no cérebro.

Ochiba, exultava ele.. . então essa hárpia é a isca para trazer o meu irmão aos trambolhões do seu ninho na montanha. Meu irmão quer Ochiba. Mas agora é igualmente óbvio que ele quer mais do que ela, e mais do que apenas o Kwanto. Quer o reino. Ele detesta Ishido, tem aversão aos cristãos, e agora está doente de ciúme devido à notória luxúria de Ishido por Ochiba. Por isso ele vai se desavir com Ishido, Kiyama e Onoshi. Porque o que o meu traiçoeiro irmão realmente deseja é tornar-se xógum. É Minowara, com toda a linhagem necessária, toda a ambição, mas não o mandato. Nem o Kwanto. Primeiro tem que conseguir o Kwanto, para depois conseguir o resto.

Toranaga esfregou as mãos de alegria ante as maravilhosas possibilidades novas que esse conhecimento recente lhe dava contra o irmão.

E Onoshi, o leproso! Uma gota de mel no ouvido de Kiyama no momento exato, pensou ele, o teor da traição do renegado alterado um pouco, melhorado modestamente, e Kiyama poderia reunir suas legiões e imediatamente cair a ferro e fogo em cima de Onoshi. "Gyoko tem toda a certeza, senhor. O Irmão José disse que o Senhor Onoshi sussurrou no confessionário que havia feito um acordo secreto com Ishido contra um daimio cristão amigo, e queria absolvição. O acordo solenemente combinava que, em troca de apoio agora, Ishido prometia que, no dia em que o senhor estiver morto, esse cristão amigo seria impedido por traição e convidado a partir para o Vazio; no mesmo dia, à força se necessário, o filho e herdeiro de Onoshi herdaria todas as terras. O nome do cristão não foi pronunciado, senhor."

Kiyama ou Harima de Nagasaki? perguntou-se Toranaga. Não tem importância. Para mim deve ser Kiyama.

Levantou-se trêmulo, apesar do seu júbilo, dirigiu-se a uma das janelas e apoiou-se pesadamente ao peitoril de madeira. Esquadrinhou a lua e o céu além. As estrelas estavam baças. Nuvens de chuva se formavam.

- Buda, todos os deuses, quaisquer deuses, deixem meu irmão morder a isca - e façam os cochichos daquela mulher serem verdadeiros!

Nenhuma estrela cadente apareceu para mostrar que os deuses haviam tomado conhecimento da mensagem. Nenhum vento surgiu, nenhuma nuvem súbita obscureceu a lua crescente. Mesmo que tivesse havido um sinal celeste, ele o teria ignorado como coincidência.

Seja paciente. Considere apenas os fatos. Sente-se e pense, disse a si mesmo.

Sabia que o esforço estava começando a agir sobre ele, mas era vital que nenhum dos seus íntimos ou vassalos – portanto nenhum da legião de imbecis de língua frouxa ou espiões em Yedo - suspeitasse um instante que ele estava apenas fingindo capitulação e representando o papel de um homem derrotado. Em Yokosé ele percebera de imediato que aceitar o segundo pergaminho do irmão era o seu dobre de morte. Resolvera que a sua única e minúscula chance de sobrevivência era convencer a todo mundo, até a si mesmo, que aceitara totalmente a derrota, embora na realidade isso fosse uma dissimulação para ganhar tempo, continuando o esquema que usara a vida toda, de negociação, adiamento, e aparente retirada, sempre esperando pacientemente até que uma fenda na armadura aparecesse acima de uma jugular, depois cravando a faca violentamente, sem hesitação.

Desde Yokosé ele esperava, ao longo de dias e noites de vigília solitária, cada dia mais difícil de suportar. Nada de caça ou riso, nada de conspiração, planejamento, natação, gracejos, dança ou canto nas peças nó que o encantaram a vida toda. Apenas o mesmo papel solitário, o mais difícil da sua vida: melancolia, rendição, indecisão, aparente desamparo, com semi-inanição auto-imposta.

Para ajudar a passar o tempo, continuara a burilar o Legado. Tratava-se de uma série de instruções secretas particulares aos seus sucessores, que ele vinha formulando ao longo dos anos, sobre o melhor modo de governar depois dele. Sudara já havia jurado conformar-se ao Legado, assim como cada herdeiro seria solicitado a fazer. Desse modo o futuro do clã estaria garantido - pode ser garantido, lembrou-se Toranaga enquanto trocava uma palavra ou acrescentava uma frase ou eliminava um parágrafo, desde que eu escape desta armadilha atual.

O Legado começava assim: "O dever do senhor de uma província é dar paz e segurança ao povo e não consiste em fazer resplandecer os seus ancestrais ou trabalhar para a prosperidade dos seus descendentes..."

Uma das máximas era: "Lembre-se de que a fortuna e o infortúnio devem ser deixados ao céu e à lei natural. Não devem ser comprados por oração ou qualquer ardil astucioso a ser pen

sado por qualquer homem ou santo por atribuição própria". Toranaga eliminou "... ou santo por atribuição própria" e mudou a frase de modo a terminar em "...por qualquer homem que seja".

Normalmente ele apreciaria esforçar a mente para escrever clara e sucintamente, mas durante os longos dias e noites fora-lhe necessária toda a autodisciplina para continuar a desempenhar esse papel tão estranho.

O fato de ter tido êxito lhe agradava, mas o Como as pessoas podiam ser tão ingênuas?

Agradeça aos deuses por elas o serem - respondeu a si mesmo pela milionésima vez. Aceitando a "derrota" você evitou a guerra duas vezes. Ainda está encurralado, mas agora, finalmen te, a sua paciência trouxe a recompensa e você tem uma nova chance.

Talvez você tenha uma chance, corrigiu-se ele. A menos que os segredos sejam falsos e dados por um inimigo para emaranhar você ainda mais.

O peito começou a doer, ele se sentiu fraco e com vertigem, então sentou e respirou fundo, conforme seus professores zen lhe haviam ensinado anos atrás. "Dez fundos, dez lentos, dez fundos, dez lentos, envie a mente para o Vazio. Não há passado nem nem trio, dor nem alegria - do nada, para o desanimava.

Logo começou a pensar com giu-se para a sua mesa e começou clareza de a escrever. agisse como intermediária entre ele e o meio irmão, e apresentasse uma oferta para o futuro do clã. Primeiro solicitava ao irmão que considerasse um casamento com a Senhora Ochiba:

... claro que seria impensável que eu fizesse isso, irmão. Muitos daimios ficariam enfurecidos com a minha `ambição exagerada'. Mas tal ligação com você consolidaria a paz do reino, e confirmaria a sucessão de Yaemon - ninguém duvida da sua lealdade, embora alguns, erroneamente, duvidem da minha. Você certamente poderia encontrar uma esposa mais conveniente, mas ela dificilmente conseguiria encontrar um marido melhor. Uma vez que os traidores de Sua Alteza Imperial sejam eliminados, e eu reassuma o meu legítimo lugar de presidente do conselho de regentes, convidarei o Filho do Céu a exigir o casamento, se você concordar em assumir tal encargo. Sinceramente penso que esse sacrifício é o único meio de podermos ambos assegurar a sucessão e cumprir o juramento que fizemos ao táicum. Em segundo lugar, ficam-lhe oferecidos todos os domínios dos traidores cristãos Kiyama e Onoshi, que atualmente conspiram, com os padres bárbaros, uma guerra traiçoeira contra todos os daimios não-cristãos, apoiados por uma invasão de bárbaros armados com mosquetes, como fizeram antes contra o nosso suserano, o icurn. Depois, ficam-lhe oferecidas todas as terras de quaisquer outros cristãos novos. Então pediu à mãe que de Kyushu que se alinhem ao lado do traidor Ishido contra mim na batalha final. (Você soube que esse camponês arrivista teve a impertinência de fazer saber que, assim que eu estiver morto e ele governar os regentes, planeja dissolver o conselho e se casar com a mãe do herdeiro?)

"Em troca do citado acima, apenas isto, irmão: um tratado de aliança secreto agora, passagem garantida para os meus exércitos através das montanhas de Shinano, um ataque conjunto sob

o meu comando a Ishido no momento e do modo que eu escolher. Por último, como medida da minha confiança, mandarei imediatamente o meu filho Sudara, sua esposa, a Senhora Genjiko, e os filhos deles, inclusive o meu único neto, a você em Takato. . . "

Isto não é obra de um homem derrotado, disse-se Toranaga ao lacrar o pergaminho. Zataki notará imediatamente. Sim, mas agora a armadilha está montada. Shinano está atravessada no meu único caminho, e Zataki é a chave inicial aos planos de Osaka. Será verdade que Zataki deseja Ochiba? Arrisco tanto sobre os supostos sussurros de uma criada de pernas arreganhadas e um homem grunhindo. Gyoko poderia estar mentindo em vantagem própria, aquela sanguessuga impertinente! Samurai? Então essa é a verdadeira chave para lhe destrancar todos os segredos.

Ela deve ter prova de Mariko com o Anjin-san. Por que outro motivo Mariko me faria uma solicitação assim? Toda Mariko e o bárbaro! O bárbaro e Buntaro! Iiiiih, a vida é estranha.

Outra pontada no coração alquebrou-o. Após um momento, escreveu a mensagem para o pombo-correio e subiu com dificuldade os degraus até o pombal. Cuidadosamente selecionou um pombo Takato num dos muitos cestos e introduziu o minúsculo cilindro. Depois pôs o pombo sobre o poleiro na caixa aberta que permitiria à ave levantar vôo à primeira luz.

A mensagem pedia à mãe que solicitasse passagem em segurança para Buntaro, que levava um importante despacho para ela e para Zataki. E assinou-a, como à oferta, "Yoshi Toranaga noh-Minowara", ostentando o título pela primeira vez na vida. - Voe no rumo correto, avezinha - disse ele, acariciando-a com uma pena quebrada. - Você carrega uma herança de dez mil anos.

Mais uma vez seus olhos foram para a cidade lá embaixo. Uma ínfima faixa de luz aparecia no horizonte a oeste. Junto aos embarcadouros, viu os minúsculos archotes que rodeavam o navio bárbaro.

Lá está outra chave, pensou ele, e começou a repensar os três segredos. Sabia que alguma coisa lhe escapara.

-- Gostaria que Kiri estivesse aqui - disse à noite.

Mariko estava ajoelhada diante do seu espelho de metal polido. Desviou o olhar do rosto. Nas suas mãos estava a adaga, captando a luz bruxuleante. - Eu deveria usá-la - disse, cheia de pesar. Seus olhos buscaram Nossa Senhora e a Criança no nicho ao lado do belo ramo de flores, e...

- Sei que suicídio é pecado mortal, Como posso viver com esta vergonha? antes de ser traída.

O quarto estava silencioso como a casa. Era a casa da família, construída dentro do anel mais interno de defesa, atrás do largo fosso em torno do castelo, onde apenas os hatamotos favo ritos e dignos de confiança tinham autorização de morar. Rodeando a casa havia um jardim cercado de bambu e atravessado por um minúsculo riacho desviado da abundância de águas que rodeavam o castelo. Ela ouviu passos. O portão da frente rangeu e houve o som de criados acorrendo para saudar o amo. Rapidamente ela enfiou a faca no obi e enxugou as lágrimas. Logo houve mais passos e ela abriu a porta, curvando-se polidamente.

Mal-humorado, Buntaro disse-lhe que Toranaga mudara de idéia novamente, que agora lhe ordenara que fosse temporariamente para Mishima. - Partirei ao amanhecer. Quis desejar-lhe uma viagem segura. . . - Parou e observou-a, atento. - Por que está chorando?

- Desculpe-me, senhor. É só porque sou uma mulher e a vida me parece muito difícil. E por causa de Toranaga-sama.

- Ele é um junco quebrado. Envergonho-me de dizer. Terrível, mas foi isso o que ele se tornou. Devíamos ir à guerra. Muito melhor ir à guerra do que saber que o único futuro que tenho é ver a cara imunda de Ishido rindo do meu karma!

- Sim, sinto muito. Gostaria que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer para ajudar. O senhor tomaria saquê ou chá? Buntaro voltou-se e berrou a um criado que esperava no corredor. - Traga -saquê! Depressa!

Entrou no quarto. Mariko fechou a porta. Ele parou junto da janela, olhando para os muros do castelo e o torreão além. - Por favor, não se preocupe, senhor - disse ela apaziguadora. - O banho está pronto e mandei chamar a sua favorita.

Se encheram de lágrimas. mas o que posso fazer? É melhor que eu o faça

Ele manteve os olhos no torreão, alterado. Depois disse: - Ele deveria renunciar em favor do Senhor Sudara, se não tem mais estômago para a liderança. O Senhor Sudara é filho dele e herdeiro legal, neh? Neh?

- Sim, senhor.

- Sim. Ou, melhor ainda, ele devia fazer conforme Zataki sugeriu. Cometer sepukku. Aí teríamos Zataki e seus exércitos lutando conosco. Com eles e os mosquetes, poderíamos esmagar o inimigo até Kyoto, sei que poderíamos. Ainda que falhássemos, seria melhor que desistir como imundos e covardes comedores de alho! Nosso amo perdeu todos os seus direitos. Neh? NEH? - Voltou-se bruscamente para ela.

- Por favor, desculpe-me ... não cabe a mim dizer isso. Ele é nosso suserano.

Buntaro deu-lhe as costas de novo, meditando, fitando o torreão. Luzes tremulavam em todos os níveis. Particularmente no sexto. - Minha sugestão ao conselho dele é convidá-lo a par tir, e se ele não fizer isso... ajudá-lo. Há precedentes suficientes! Há muitos que compartilham da minha opinião, mas não o Senhor Sudara, ainda não. Talvez o faça secretamente, quem sabe, quem sabe o que ele realmente pensa? Quando você encontrar a esposa dele, quando encontrar a Senhora Cenjiko, converse com ela, convença-a. Depois ela o convencerá - ela o traz pelo nariz, neh? Vocês são amigas, ela a ouvirá. Convença-a.

- Penso que isso seria muito grave, senhor. É traição. - Ordeno-lhe que converse com ela!

- Obedecerei.

- Sim, obedecerá a uma ordem, não? - vociferou ele. - Obedecer? Por que você é sempre tão fria e amarga? Hein? - Ele agarrou o espelho e o colocou com um repelão à frente dela. - Olhe-se!

- Por favor, desculpe se o desagrado, senhor. - A voz dela foi firme e ela desviou o olhar do espelho para encará-lo. - Não desejo enfurecê-lo.

Ele a observou um instante, depois repentinamente arremessou o espelho de volta à mesa laqueada. - Eu não a acusei. Se eu achasse isso eu ... eu não hesitaria.

Mariko ouviu-se revidar, de modo imperdoável. - Não hesitaria em fazer o quê? Matar-me, senhor? Ou deixar-me viver para me envergonhar mais?

- Não a acusei, apenas a ele! - berrou Buntaro.

- Mas eu o acuso! - guinchou ela de volta. - E o senhor me acusou!

- Cale a boca!

- Envergonhou-me na frente do nosso senhor! Acusou-me e não cumprirá o seu dever! Tem medo! O senhor é um covarde! Um imundo covarde e comedor de alho!

A espada dele voou para fora da bainha e ela exultou com o fato de finalmente ter ousado levá-lo além dos limites.

Mas a espada continuou assestada no ar. - Eu... eu tenho a sua... tenho a sua promessa diante do seu... seu Deus, em Osaka. Antes de... de irmos para a morte... tenho a sua promessa e eu... eu exijo que você a cumpra!

A ardilosa risada dela foi estridente e malévola. - Oh, sim, poderoso senhor. Serei sua almofada só mais uma vez, mas a sua acolhida será seca, amarga e rançosa!

Ele golpeou cegamente com a força de duas mãos uma coluna a um canto e a lâmina quase cortou em duas a trave de madeira com a espessura de um pé. Ele puxou com violência, mas a espada resistiu. Alucinado, ele a torceu, lutando por soltá-la, até que a lâmina se partiu. Com uma última imprecação, ele atirou o cabo quebrado através da frágil parede e dirigiu-se cambaleante para a porta. O trêmulo criado erguia-se ali com a bandeja e o saquê. Buntaro mandou a bandeja pelos ares com um murro. Imediatamente o criado se ajoelhou, encostou a cabeça ao chão, e se imobilizou.

Buntaro apoiou-se ao esqueleto da porta destroçada. - Espere... espere até Osaka.

Arrastou-se para fora da casa.

Mariko permaneceu imóvel durante algum tempo, aparentemente em transe. Depois a cor começou a voltar-lhe ao rosto. Seus olhos tornaram a enxergar. Silenciosamente voltou ao espe lho. Estudou o próprio reflexo um instante. Depois, absolutamente calma, acabou de se maquilar.

Blackthorne subiu correndo, de dois em dois degraus, seu guarda consigo. Encontravam-se na escada principal, dentro do torreão, e ele se sentia contente por não estar estorvado pelas espadas. Entregara-as formalmente no pátio aos primeiros guardas, que também o haviam revistado polida mas completamente. Archotes iluminavam a escada e os patamares. No quarto patamar parou, quase explodindo de animação contida, e chamou: - Mariko-san, a senhora está bem?

- Sim, sim. Estou ótima, obrigada, Anjin-san.

Ele começou a subir de novo, sentindo-se leve e muito forte, até atingir o último patamar no sexto andar. Aquele andar estava pesadamente guardado como todos os outros. Seu samurai de escolta aproximou-se dos outros agrupados junto à última porta fortificada com ferro e curvou-se. Retribuíram-lhe a reverência e fizeram sinal a Blackthorne que esperasse.

Todo o trabalho em ferro e madeira no castelo inteiro era excelente. Ali no torreão, todas as janelas, embora delicadas e elevadas, também serviam de posições para arqueiros, e havia pesados postigos cobertos de ferro, prontos para se fecharem para maior proteção.

Mariko contornou o último ângulo da escada facilmente defendível e os alcançou.

- Está bem? - perguntou ele.

- Oh, sim, obrigada - respondeu ela, ligeiramente sem fôlego. Mas ainda possuía a mesma curiosa serenidade e desinteresse que ele notara imediatamente quando a encontrara no pátio, mas que nunca vira antes.

Não tem importância, pensou ele confiantemente, é só o castelo e Toranaga e Buntaro e o fato de estar aqui em Yedo. Sei o que fazer agora.

Desde que vira o Erasmus, fora dominado por uma imensa alegria. Na realidade nunca esperara encontrar o seu navio tão perfeito, tão limpo, cuidado e pronto. Quase não há motivo para ficar em Yedo agora, pensara ele. Vou só dar uma olhada rápida lá embaixo, para examinar os porões, um mergulho para examinar a quilha, depois as armas, a sala de pólvora, munição e velas. Durante a viagem para Yedo ele planejara como usar seda grossa ou tecido de algodão para fazer velas; Mariko lhe dissera que não existia lona no Japão. É tratar de utilizar as velas disponíveis, casquinou ele, e quaisquer outros sobressalentes de que necessitemos, depois zarpar para Nagasaki, como um dardo relâmpago. - Anjin-san! - O samurai estava de volta.

- Hai? - Dozo.

A porta fortificada girou nos gonzos silenciosamente. Toranaga estava sentado na outra extremidade da sala quadrada, sobre um elevado forrado de tatamis.

Blackthorne ajoelhou-se e se curvou profundamente, as mãos estendidas no chão. - Konbanwa, Toranaga-sama. Ikaga desu ka? - Okagesana de genki desu. Anata wa?

Toranaga parecia mais velho e sem viço, e muito mais magro do que antes. Shigata ga nai, disse Blackthorne a si mesmo. O karma de Toranaga não vai afetar o Erasmus - o navio será o seu salvador, por Deus.

Respondeu às perguntas-padrão de Toranaga num japonês simples de boa pronúncia, usando uma técnica simplificada que desenvolvera com a ajuda de Alvito. Toranaga cumprimentou-o pelo progresso e começou a falar mais depressa.

Blackthorne usou uma das frases de reserva que havia elaborado com Alvito e Mariko: - Por favor, desculpe-me, senhor, como o meu japonês não é bom, poderia falar mais devagar e usar palavras simples, assim como eu tenho que usar palavras simples? Por favor, desculpe-me por lhe causar tanto incômodo. - Está bem. Sim, certamente. Diga-me, o que achou de Yokosé?

Blackthorne respondeu, acompanhando-o, as respostas vacilantes, o vocabulário ainda muito limitado, até que Toranaga fez uma pergunta cujas palavras-chave ele perdeu inteiramente. - Dozo? Gomen nasai, Toranaga-sama - disse desculpando-se. - Wakarimasen.

Toranaga repetiu numa linguagem mais simples. Blackthorne olhou para Mariko. - Sinto muito, Mariko-san, o que é "sonkei sit beki um?'?

- "Em condição de navegar", Anjin-san.

- Ah! Domo. - Blackthorne voltou-se. O daimio perguntara se ele poderia se certificar rapidamente de que o navio estava em total condição de navegar, e quanto tempo isso levaria. Ele respondeu: - Sim, fácil. Meio dia, senhor.

Toranaga pensou um instante, depois disse-lhe que fizesse isso no dia seguinte e se apresentasse a ele à tarde, durante a hora do Bode. - Wakarimasu?

- Hai.

- Então você poderá ver os seus homens - acrescentou.

- Senhor?

- Os seus vassalos. Mandei chamá-lo para lhe dizer que amanhã você terá os seus vassalos.

- Ah, desculpe, compreendi. Vassalos samurais. Duzentos homens.

- Sim. Boa noite, Anjin-san. Vê-lo-ei amanhã.

- Por favor, desculpe-me, senhor, posso respeitosamente perguntar três coisas?

- O quê?

- Primeiro: possível ver minha tripulação agora, por favor? Poupar tempo, neh? Por favor.

Toranaga concordou e deu uma ordem curta a um dos samurais para que guiasse Blackthorne. - Leve uma guarda de dez homens. Leve o Anjin-san lá e traga-o de volta ao castelo. - Sim, senhor.

- Depois, Anjin-san?

- Por favor, possível conversar sozinho? Pouco tempo. Por favor, desculpe minha rudeza. - Blackthorne tentou não demonstrar a ansiedade quando Toranaga perguntou a Mariko do que se tratava. Ela respondeu sinceramente que só sabia que o Anjinsan tinha alguma coisa particular a dizer, mas que não perguntara o que era.

- Tem certeza de que estará correto que eu peça a ele, Mariko-san? - dissera Blackthorne quando começaram a subir os degraus.

- Oh, sim. Desde que o senhor espere até ele terminar. Mas esteja certo de saber exatamente o que vai dizer, Anjin-san. Ele está... ele não está tão paciente quanto normalmente é. - Ela não perguntara o que ele queria perguntar, e ele não dissera nada.

- Muito bem, Anjin-san - disse Toranaga. - Por favor, espere lá fora, Mariko-san. - Ela se curvou e saiu. - Sim?

- Sinto muito ouvir Senhor Harima de Nagasaki agora inimigo.

Toranaga se surpreendeu, pois ficara sabendo do compromisso público de Harima com Ishido apenas quando chegara a Yedo. - Onde obteve essa informação?

- Por favor?

Toranaga repetiu a pergunta mais devagar.

- Ah! Compreendo. Ouvi sobre Senhor Harima em Hakoné. Gyoko-san nos diz. Gyoko-san ouvir em Mishima.

- Essa mulher é bem informada. Talvez bem informada demais.

- Senhor?

- Nada. Continue. O que há com o Senhor Harima?

- Senhor, posso respeitosamente dizer: meu navio, grande arma contra Navio Negro, neh? Se eu tomo Navio Negro bem rápido - padres muito zangados porque não dinheiro cristão aqui - não dinheiro também português outras terras. Ano passado não Navio Negro aqui, por isso não dinheiro, nelh? Se agora tomar Navio Negro rápido, muito rápido, e também próximo ano, todos padres grande medo. Essa é a verdade, senhor. Penso padres devem ceder se se ameaçar. Padres deste jeito para Toranagasama! - Blackthorne fechou a mão como quem agarra, para ser mais claro.

Toranaga ouvira atentamente, observando-lhe os lábios, assim como ele fazia o mesmo. - Estou acompanhando, mas para quê, Anjin-san?

- Senhor?

Toranaga adotou o mesmo esquema de usar poucas palavras: - Para obter o quê? Pegar o quê? Conseguir o quê?

- Senhor Onoshi, Senhor Kiyama e Senhor Harima.

- Então você quer interferir na nossa política, como os padres? Também acha que sabe como nos governar, Anjin-san? - Sinto muito, por favor, desculpe, não compreendo.

- Não tem importância. - Toranaga pensou um longo tempo, depois disse: - Os padres dizem que não têm poder para dar ordens aos daimios cristãos.

- Não verdade, senhor, por favor, desculpe. Dinheiro grande poder sobre padres. É a verdade, senhor. Se não Navio Negro este ano, e no próximo ano também não Navio Negro, ruína. Muito, muito mau para padres. É a verdade, senhor. Dinheiro é poder. Por favor, considere: com Céu Carmesim ao mesmo tempo ou antes, eu ataco Nagasaki. Nagasaki inimigo agora, neh? Tomo Navio Negro e ataco rotas marítimas entre Kyushu e Honshu. Talvez ameaça suficiente para transformar inimigo em amigo?

- Não. Os padres pararão o comércio. Não estou em guerra com os padres nem com Nagasaki. Oti com ninguém. Vou a Osaka. Não haverá Céu Carmesim. Wakarimasu?

- Hai. - Blackthorne não se perturbou. Sabia que agora Toranaga compreendia claramente que essa possível tática certamente esvaziaria uma larga proporção das forças de Kiyama Onoshi-Harima, todas baseadas em Kyushu. E o Erasmus certamente poderia destroçar qualquer transferência de tropa marítima em larga escala, daquela ilha para a ilha principal. Tenha paciência, advertiu a si mesmo. Deixe Toranaga pensar no assunto. Talvez seja como Mariko diz: há um longo tempo entre aqui e Osaka, e quem sabe o que pode acontecer? Prepare-se para o melhor, mas não tema o pior.

- Anjin-san, por que não dizer isso diante de Mariko-san? Ela diria aos padres? Você acha que sim?

- Não, senhor. Só querer tentar falar direto. Guerra não assunto de mulher. Um último pedido, Toranaga-sarna. - Blackthorne se lançou no rumo que escolhéra. - Costume hatamoto pedir favores, às vezes. Por favor, desculpe, senhor, posso respeitosamente dizer agora possível pedido?

O leque de Toranaga parou. - Que favor?

- Sei divórcio fácil se senhor diz. Peço Toda Mariko-sarna esposa. - Toranaga ficou pasmado e Blackthorne receou ter ido longe demais. - Por favor, desculpe a minha rudeza - acrescentou.

Toranaga recuperou-se rapidamente. - Mariko-san concorda?

- Não, Toranaga-sarna. Segredo meu. Nunca dizer a ela, a ninguém. Segredo meu apenas. Não dizer a Toda Mariko-san. Nunca. Kinjiru, neh? Mas sei raiva entre marido e mulher. Di vórcio fácil no Japão. Esse meu segredo apenas. Pedir Senhor Toranaga apenas. Muito secreto. Nunca Mariko-san. Por favor, desculpe se o ofendi.

- Isso é uma solicitação presunçosa para um estrangeiro. Inaudita! Como você é um hatamoto, o dever me obriga a considerá-la, embora você fique proibido de menciona-la sob quaisquer circunstâncias, a ela ou ao marido. Está claro?

- Por favor? - perguntou Blackthorne, sem compreender nada, quase incapaz de pensar.

- Pedido e pensamento muito maus, Anjin-san. Compreende?

- Sim, senhor, sinto mui ...

- Como Anjin-san é hatamoto, não estou zangado. Considerarei, compreende?

- Sim, acho que sim. Obrigado. Por favor, desculpe o meu mau japonês, sinto muito.

- Não fale a ela, Anjin-san, sobre divórcio. Mariko-san nem Buntaro-san. Kinjiru, wakarimasu?

- Sim, senhor. Compreendo. Apenas segredo senhor e eu. Segredo. Obrigado. Por favor desculpe minha rudeza e obrigado pela sua paciência. - Blackthorne curvou-se perfeitamente e, quase como num sonho, saiu. A porta fechou-se atrás dele. No corredor todos o olhavam de modo esquisito.

Quis compartilhar a sua vitória com Mariko. Mas ficou ini

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bido pela serenidade distraída dela e a presença dos guardas. - Desculpe tê-la feito esperar - foi tudo o que disse.

-- O prazer foi meu - respondeu ela, de modo igualmente inócuo.

Começaram a descer a escada. Depois, após um lance de degraus, ela disse: - O seu modo simples de falar é estranho, mas absolutamente compreensível, Anjin-san.

- Fiquei perdido muitas vezes. Saber que a senhora estava lá ajudou-me tremendamente.

- Eu não fiz nada.

Continuaram em silêncio, Mariko ligeiramente atrás dele, conforme o costume correto. A cada andar passavam por um cordão de samurais, depois, contornando uma espiral na escada,

a cauda do quimono dela prendeu-se nas grades e ela pisou em falso. Ele a segurou, ajudando-a a se firmar, e o súbito toque íntimo agradou aos dois. - Obrigada - disse ela, aturdida, enquanto ele a soltava. Seguiram em frente, muito mais próximos do que já tinham estado aquela noite.

Fora, no adro iluminado de archotes, havia samurais por toda parte. Mais uma vez seus passes foram examinados e depois foram escoltados pelos carregadores de tochas através do portão principal do torreão, ao longo de uma passagem que se enroscava em labirinto, por entre altos muros de pedra com ameias, até o portão seguinte que levava ao fosso e à ponte de madeira. Ao todo havia sete anéis de fossos dentro do conjunto do castelo. Alguns artificiais, alguns adaptados dos riachos e rios que abundavam. Enquanto rumavam para o portão principal, o portão sul, Mariko disse a ele que, quando a fortaleza estivesse concluída, dentro de dois anos, abrigaria cem mil samurais e vinte mil cavalos, com todas as provisões necessárias para um ano.

- Então será a maior do mundo - disse Blackthorne.

- Esse era o plano do Senhor Toranaga. - A voz dela estava grave. - Shigata ga nai, neh? - Finalmente atingiram a última ponte. - Daqui, Anjin-san, pode ver que o castelo é o centro de Yedo, neh? O centro de um entrelaçamento de ruas que se dispõem em ângulos para formar a cidade. Há dez anos havia apenas uma pequena aldeia de pescadores aqui. Agora, quem sabe. Trezentos mil? Duzentos? Quatrocentos? O Senhor Toranaga ainda não contou a sua gente. Mas estão todos aqui apenas com uma finalidade: servir o castelo que protege o porto e as planícies que alimentam os exércitos.

- Nada mais? - perguntou ele.

- Nada.

Não há necessidade de se preocupar, Mariko, nem de parecer tão solene, pensou ele alegremente. Resolvi tudo isso. Toranaga me concederá todas as minhas solicitações.

Do outro lado da Ichi-bashi iluminada por archotes - a Primeira Ponte -, que levava à cidade propriamente dita, ela parou. - Devo deixá-lo agora, Anjin-san.

- Quando posso vê-Ia?

- Amanhã. À hora do Bode. Esperarei no adro. - Não posso vê-Ia esta noite? Se eu voltar cedo?

- Não, sinto muito, por favor, desculpe-me. Esta noite não. - Depois se curvou formalmente: - Konbanwa, Anjin-san. Ele se curvou. Como um samurai. Observou-a voltando pela ponte, alguns dos carregadores de archotes indo com ela, insetos esvoaçando em torno dos archotes enfiados em recipientes presos a postes. Logo ela foi engolida pela multidão e pela noite. Então, sentindo crescer a própria animação, deu as costas ao castelo e se pôs em marcha atrás do guia.

 

- Os bárbaros moram ali, Anjin-san - disse o samurai, apontando à frente.

Pouco à vontade, Blackthorne semicerrou os olhos na escuridão, o ar irrespirável e sufocante. - Onde? Aquela casa? Ali? - Sim. Está certo, sinto muito. O senhor está vendo? Havia outra série de cabanas e vielas a cem passos à frente, além da faixa nua de terreno pantanoso e, dominando-as, uma casa grande, vagamente delineada contra o céu de azeviche. Blackthorne olhou em torno um momento para tomar posições aproximadas, usando o leque contra os insetos noturnos. Logo depois de terem passado a Primeira Ponte ele se vira perdido no labirinto.

O caminho levava através de inúmeras ruas e ruelas, inicialmente em direção à praia, seguindo para leste algum tempo, sobre pontes maiores e menores, depois novamente para o norte, acom panhando a margem de outro regato que serpeava através dos arredores da cidade. À medida que se distanciavam do castelo, mais sórdidas se tornavam as ruas, mais pobres as construções. As pessoas eram mais obsequiosas e menos reflexos de luz vinham de trás das shojis. Yedo era uma massa que se espraiava horizontalmente e parecia a Blackthorne ter sido construída de vilas separadas meramente por ruas e riachos.

Ali na extremidade sul-oriental da cidade, o terreno era totalmente pantanoso e o caminho se desmanchava em podridão sob os pés. Durante algum tempo o mau cheiro fora se aden sando perceptivelmente, um miasma de algas marinhas, fezes e lama estagnada, e pairando sobre isso um odor agridoce que ele não conseguia identificar, mas que parecia familiar.

- Fede como Billingsgate em maré baixa - resmungou ele, matando outro inseto que lhe pousara no rosto. Sentia o corpo todo pegajoso de suor.

Então ouviu um débil trechinho de um alegre canto marítimo em holandês e todo o seu desconforto foi esquecido. - Será que é Vinck?

Exultante, acelerou o passo na direção do som, com carregadores a lhe iluminar cuidadosamente o caminho e samurais seguindo-o.

Agora, mais próximo, viu que a construção de um andar era parte japonesa, parte européia. Erguia-se sobre pilares e era rodeada de uma alta e tosca cerca de bambu, aparentemente prestes a ruir, muito mais nova do que as cabanas que se amontoavam por perto. Não havia portão na cerca, apenas um buraco. O telhado era de sapé, a porta da frente sólida, as paredes de madeira rústica, e as janelas cobertas com venezianas em estilo holandês. Aqui e ali havia salpicos de luz vinda das fendas. O canto e a troça aumentaram, mas ele ainda não conseguia reconhecer as vozes. As lajes por trás da cerca levavam direto aos degraus da varanda, através de um jardim maltratado. Amarrado com cordas ao portão, um curto mastro de bandeira. Ele parou e o contemplou. Do mastro pendia indiferentemente uma bandeira holandesa, mole e provisória, e o pulso dele se acelerou ao vê-Ia.

A porta da frente estava escancarada. Um raio de luz jorrava para a varanda. Baccus van Nekk, bêbado, cambaleou até a borda do terraço, olhos semicerrados, puxou o codpiece para o lado, e urinou num jato alto e curvo.

- Ahhhhh - murmurou ele, num êxtase suspiroso. - Nada como uma mijada.

- Não é mesmo? - disse Blackthorne, do portão. - Por que você não usa um balde?

- Hein? - Van Nekk piscou, míope, para a escuridão, na direção de Blackthorne, que se erguia com os samurais sob os archotes. - Jesus Deus do paraíso! - Ele segurou as partes com um grunhido e se curvou desajeitadamente só da cintura para cima. - Gomen nasai, samurai-sama. Ichiban gomen nasal a todos os macacos-samas. - Ele se endireitou, forçou um sorriso, e murmurou meio consigo mesmo: - Estou mais bêbado do que imaginei. Pensei que o bastardo filho de uma puta estivesse falando holandês! Gomen nasal, neh? - disse de novo, voltando vacilante para dentro da casa, coçando-se e ajeitando o codpiece às apalpadelas.

- Ei, Baccus, não sabe fazer coisa melhor do que emporcalhar o próprio ninho?

- O quê? - Van Nekk deu meia-volta abruptamente e olhou para os archotes, desesperadamente tentando enxergar com clareza. - Piloto? - disse, a voz estrangulada. - É o senhor, piloto? Deus amaldiçoe os meus olhos, não consigo enxergar. Piloto, pelo amor de Deus, é o senhor?

Blackthorne riu. O velho amigo parecia tão despido ali, tão imbecil, o pênis pendurado para fora. - Sim, sou eu! - Depois, para os samurais que observavam com desdém mal dissimulado: - Matte kurasai. Esperem por mim, por favor.

- Hai, Anjin-san.

Blackthorne avançou e agora, à luz, pôde ver o lixo espalhado por toda parte no jardim. Com repugnância, tirou os tamancos e subiu correndo os degraus. - Alô; Baccus, está mais gordo do que quando partimos de Rotterdam, neh? - Bateu-lhe cordialmente nos ombros.

- Senhor Jesus Cristo, é o senhor mesmo? - Sim, claro que sou' eu.

- Nós o tínhamos dado por morto há muito tempo. - Van Nekk estendeu a mão e tocou Blackthorne para se certificar de que não estava sonhando. - Senhor Jesus, minhas preces foram atendidas. Piloto, o que lhe aconteceu, de onde está vindo? É um milagre! É o senhor mesmo?

- Sim. Agora, por favor, ponha o cod no lugar e vamos entrar - disse Blackthorne, consciente dos seus samurais.

- O quê? Oh! Desculpe, eu. .. - Van Nekk obedeceu às pressas e lágrimas começaram a lhe escorrer pelas faces. - Oh, Jesus, piloto... pensei que os demônios do gim estivessem me pregando uma peça de novo. Vamos entrar, mas deixe-me anunciá-lo, hein?

Tomou a dianteira, oscilando um pouco, muito da sua embriaguez já evaporada com a alegria. Blackthorne o seguiu. Van Nekk segurou a porta para que ele passasse, depois gritou por sobre a cantoria roufenha: - Rapazes! Olhem o que o Papai Noel nos trouxe! - Bateu a porta atrás de Blackthorne, para aumentar o efeito.

O silêncio foi instantâneo.

Foi preciso um momento para que os olhos de Blackthorne se acomodassem à luz. O ar fétido quase o sufocou. Viu todos eles a olhá-lo embasbacados como se ele fosse um espectro ma ligno. Então o encanto se rompeu e houve gritos de boas-vindas e alegria e todo mundo se pôs a abraçá-lo e esmurrá-lo nas costas, todos falando ao mesmo tempo. - Piloto, de onde veio - Tome um drinque - Cristo, é possível - Mijo no meu chapéu, é ótimo vê-lo - Já o tínhamos dado por morto - Não, estamos bem, pelo menos razoavelmente bem - Levante-se da cadeira, sua prostituta, o piloto-sama deve se sentar na melhor cadeira - Ei, grogue, neh, depressa, maldição, depressa! Deus amaldiçoe os meus olhos, saia do meu caminho, quero apertar a mão dele ...

Finalmente Vinck gritou: - Um de cada vez, rapazes! Dêem-lhe uma chance! Dêem a cadeira ao piloto e um drinque, pelo amor de Deus! Sim, pensei que ele fosse samurai também ...

Alguém empurrou um copo de madeira para a mão de Blackthorne. Ele se sentou na raquítica cadeira e todos ergueram os copos e a enxurrada de perguntas começou de novo.

Blackthorne olhou em torno. A sala estava mobiliada com bancos, algumas cadeiras toscas e mesas, e iluminada por velas e lâmpadas a óleo. No chão imundo, um imenso barril de saquê.

Uma das mesas estava coberta de pratos sujos, com um pernil parcialmente assado e cheio de moscas.

Seis mulheres em andrajos encolhiam-se de joelhos, curvando-se para ele, encostadas à parede.

Seus homens, todos sorridentes, esperavam que ele começasse: Sonk, o cozinheiro; Johann Vinck, imediato de contramestre e atirador-chefe; Salamon, o mudo; Croocq, o menino; Ginsel,

o veleiro; Baccus van Nekk, mercador-chefe e tesoureiro, e finalmente Jan Roper, o outro mercador, que estava sentado longe dos outros, com o mesmo sorriso sombrio no rosto magro e tenso. - Onde está o capitão-mor? - perguntou Blackthorne.

- Morreu, piloto, morreu. . . - responderam seis vozes, uma sobrepondo-se à outra, confundindo o relato até que Blackthorne levantasse a mão. - Baccus?

- Ele morreu, piloto. Não chegou a sair do buraco. Lembra-se de que ele estava doente, hein? Depois que levaram o senhor embora, bem, naquela noite nós o ouvimos sufocando na escuridão. Não foi, rapazes?

Um coro de "sins" e Van Nekk acrescentou: - Eu estava sentado ao lado dele, piloto. Ele estava tentando chegar até a água, mas não havia água, e ele tinha falta de ar e gemia. Não tenho muita certeza sobre a hora, estávamos todos com medo da morte, mas ele acabou se asfixiando e depois, bem. ouvimos o estertor da morte. Foi péssimo, piloto.

- Foi terrível, sim - acrescentou Jan Roper. - Mas foi castigo de Deus.

Blackthorne olhou de um a um. - Alguém o acertou? Pará dar-lhe sossego?

- Não... não, oh, não - respondeu Van Nekk. -- Ele simplesmente rebentou. Foi deixado no poço com o outro, o japona, lembra-se dele, o que tentou se afogar no balde de mijo? Depois o Senhor Omi mandou tirarem o corpo de Spillbergen de lá e eles o queimaram. Mas aquele outro pobre sodomita foi deixado lá embaixo. O Senhor Omi simplesmente lhe deu uma faca, ele rasgou a barriga e taparam o poço. Lembra-se dele, piloto?

-- Sim. E Maetsukker?

- É melhor que você conte isso, Vinck.

- O pequeno Cara de Rato apodreceu, piloto - começou Vinck, e os outros começaram a gritar detalhes e contar a história até que Vinck berrou: - Baccus pediu a mim, por Cristo! Vocês todos terão a sua vez!

As vozes morreram e Sonk disse, solícito: - Conte, Johann. -- Piloto, foi o braço dele que começou a apodrecer. Ele se cortou na luta, lembra-se da luta em que o senhor ficou sem sentidos? Jesus Cristo, parece que foi há tanto tempo! De qualquer modo, o braço dele supurou. Sangrei-o no dia seguinte no outro, aí ele começou a ficgr preto. Eu lhe disse que seria melhor que eu o lancetasse ou o braço todo teria que ser tirado, disse-lhe dúzias de vezes, todos nós dissemos, mas ele não concordou. No quinto dia o ferimento estava cheirando mal. Nós o seguramos e eu amputei a maior parte da gangrena mas não adiantou nada. Eu sabia que não ia adiantar, mas alguns de nós achamos que valia a pena tentar. Esse médico amarelo bastardo veio algumas vezes, mas também não pôde fazer nada. Cara de Rato durou um dia ou dois, mas a gangrena estava profunda demais e ele delirou um bocado. Tivemos que amarrá-lo perto do fim.

- Foi isso mesmo, piloto - disse Sonk, coçando-se confortavelmente. -- Tivemos que amarrá-lo.

- O que aconteceu ao corpo dele? - perguntou Blackthorne.

- Levaram-no para o alto da colina e queimaram-no, também. Queríamos dar a ele e ao capitão-mor um funeral cristão apropriado, mas não nos deixaram. Simplesmente os queimaram.

Um silêncio invadiu a sala. - O senhor não tocou no seu drinque, piloto!

Blackthorne levou-o aos lábios e provou. O copo estava imundo e ele quase vomitou. A bebida pura queimou-lhe a garganta. O mau cheiro de corpos sem banho e rançosos e de roupa não lavada quase o derrubava.

- Que tal o grogue, piloto? - perguntou Van Nekk. - ótimo, ótimo.

- Conte-lhe, Baccus, vamos!

- Ei! Fiz um alambique, piloto. - Van Nekk estava muito orgulhoso e os outros também sorriam. - Fazemos bebidas aos barris, agora. Arroz, frutas e água, deixamos fermentar, espera mos uma semana mais ou menos, depois, com a ajuda de uma pequena mágica. . . - O homem redondo riu e se coçou, feliz. - Claro que seria melhor conservá-lo um ano ou mais para amadurecer, mas nós o tomamos mais depressa. . . - Suas palavras se arrastaram. - Não está gostando?

- Oh, desculpe, está ótimo... ótimo. -- Blackthorne viu piolhos no ralo cabelo de Van Nekk.

- E o senhor, piloto? - disse Jan Roper desafiador. - Está ótimo, não está? O que conta?

Outra enxurrada de perguntas, que morreu quando Vinck gritou: - Dêem-lhe uma chance! - Então o homem com rosto coriáceo exclamou: - Cristo, quando o vi em pé à porta, pensei que fosse um dos macacos, verdade.. . verdade! - Outro coro de anuência e Van Nekk interrompeu: - Ele tem razão. Malditos quimonos imbecis... está parecendo uma mulher, piloto, ou um desses meios homens! Frescos malditos, hein? Muitos japonas são frescos, por Deus! Um andou dando em cima de Croocq... - Houve muita gritaria e troça obscena, depois Van Nekk continuou: - O senhor vai querer suas roupas adequadas, piloto. Ouça, trouxemos a sua roupa para cá. Viemos para Yedo no Erasinus. Rebocaram-no para cá e pudemos trazer nossas roupas para terra, e mais ainda. Trouxemos a sua, deixaram-nos fazer isso, guardá-la para o senhor. Trouxemos uma mala, toda sua roupa de mar. Sonk, vá buscar, hein?

- Claro, mas mais tarde, hein, Baccus? Não quero perder nada.

- Está bem.

O fino sorriso de Jan Roper estava se repuxando. - Espadas e quimanos... como um autêntico pagão! Talvez o senhor agora prefira os modos pagãos, piloto?

- A roupa é fresca, melhor do que a nossa - respondeu Blackthorne, embaraçado. - Eu tinha esquecido que estava vestido de modo diferente. Aconteceram muitas coisas. Esta roupa era a única que eu tinha, de modo que me acostumei a usá-la. Nunca pensei muito sobre ela. Certamente é mais confortável. - Essas espadas são de verdade?

- Sim, claro, por quê?

- Não temos permissão para usar armas. Quaisquer armas! - disse Jan Roper, carrancudo. - Por que o senhor tem? Exatamente como qualquer samurai pagão?

Blackthorne riu brevemente. - Você não mudou, Jan Roper, não é? Mais santarrão do que nunca? Bem, tudo a seu tempo com relação às minhas espadas, mas primeiro a melhor notícia de todas. Ouçam, dentro de um mês ou pouco mais estaremos ao mar de novo.

- Jesus, está falando sério, piloto? - disse Vinck. - Sim.

Houve uma grande explosão de alegria e outra enxurrada de perguntas e respostas. - Eu disse que nós iríamos embora - Eu disse que Deus estava do nosso lado! Deixem-no falar - deixem o piloto falar... - Finalmente Blackthorne levantou a mão.

Apontou para as mulheres, que continuavam de joelhos, imóveis, mais humildes agora, sob a atenção dele. - Quem são elas?

Sonk riu. - As nossas zinhas, piloto. Nossas prostitutas, e baratas, Jesus Cristo, mal custam um caracol por semana. Temos uma casa cheia delas na porta ao lado, e há muitas mais na aldeia.

- São agitadas como arminhos - intrometeu-se Croocq, e Sonk disse: - Ele tem razão, piloto. Claro que são atarracadas e arqueadas, mas têm muito vigor e não têm sífilis. Quer uma, piloto? Temos os nossos próprios beliches, não somos como os macacos, temos todos os nossos beliches e quartos...

- Experimente a Mary Bunda Grande, piloto, é perfeita para o senhor - disse Croocq.

A voz de Jan Roper sobrepôs-se: - O piloto não quer nenhuma das nossas meretrizes. Ele tem as dele, hein, piloto?

Os rostos reluziram. - É verdade, piloto? Conseguiu mulheres? Ei, conte-nos, hein? Essas macacas são as melhores que jamais existiram, hein?

- Fale-nos das suas zinhas, piloto! - Sonk coçou os piolhos de novo.

- Há muito que contar - disse Blackthorne. - Mas devia ser em particular. Quanto menos ouvidos, melhor, neh? Mandem as mulheres embora, aí podemos conversar em particular.

Vinck brandiu um polegar para elas. - Dêem o fora, hai? As mulheres se curvaram, mastigaram agradecimentos e pedidos de desculpas e saíram apressadas, fechando a porta silenciosamente.

- Primeiro sobre o navio. É inacreditável. Quero lhes agradecer e cumprimentá-los, pelo trabalho todo. Quando chegarmos em casa, vou insistir para que vocês recebam partes triplicadas do prêmio em dinheiro por todo esse trabalho e vai haver um prêmio para além de... - Viu os homens se entreolharem embaraçados. - O que é que há?

Constrangido, Van Nekk disse: - Não fomos nós, piloto. Foram os homens do Rei Toranaga. Eles é que fizeram. Vinck lhes mostrou como, mas nós não fizemos nada.

- O quê?

- Não nos deixaram vez. Nenhum de nós esteve voltar a bordo depois da primeira a bordo com exceção de Vinck, que vai até lá uma vez a cada dez dias mais ou menos. Não fizemos nada.

- Ele é o único - disse Sonk. - Johann lhes mostrou. - Mas como você conversa com eles, Johann?

- Um dos samurais fala português e conversamos nessa língua, o suficiente para que um compreenda o outro. Esse samurai, que se chama Sato-sama, ficou encarregado quando chegamos aqui. Perguntou quais de nós eram oficiais ou marinheiros. Dissemos que era Ginsel, mas ele é principalmente atirador, eu e Sonk que...

- Que é o pior cozinheiro de bosta que... - Cale essa boca maldita, Croocq!

- Merda, você não sabe cozinhar em terra, que dirá a bordo, por Deus!

- Por favor, façam silêncio, vocês dois! - disse Blackthorne. - Continue, Johann.

Vinck continuou: - Sato-sama me perguntou o que havia de errado no navio e eu lhe disse que ele precisava ser querenado, raspado e todo consertado. Bem, eu lhe contei tudo o que sabia e eles puseram mãos à obra. Eles o querenaram perfeitamente e limparam os porões, esfregando-os como se fossem a privada de um príncipe - os chefes eram samurais e outros macacos trabalhavam como demônios, centenas de sodomitas. Merda, piloto, o senhor nunca viu trabalhadores como eles!

- Isso é verdade - disse Sonk. - Como demônios!

- Fiz tudo do melhor modo que pude e... Jesus, piloto, acha mesmo que podemos dar o fora?

- Sim, se formos pacientes e se ... - Se Deus quiser, piloto. Só então.

- Sim. Talvez você tenha razão - respondeu Blackthorne, pensando: e daí que Roper seja um fanático? Preciso dele ... de todos eles. E da ajuda de Deus. - Sim. Precisamos da ajuda de Deus - disse, e voltou-se para Vinck: - Como está a quilha? - Limpa e firme, piloto. Eles a deixaram melhor do que eu imaginei. Esses bastardos são tão espertos quanto quaisquer carpinteiros, construtores navais e cordoeiros da Holanda toda. O cordame está perfeito... tudo.

- Velas?

- Eles fizeram um conjunto de seda, dura como lona. Com um jogo sobressalente. Tiraram as nossas e as copiaram exatamente, piloto. Os canhões estão tão perfeitos quanto possível - todos de volta a bordo, e há pólvora e munição em quantidade. O navio está pronto para zarpar, esta noite, se for necessário. Claro que ele não esteve no mar, por isso não sabemos sobre as velas até enfrentarmos um vendaval, mas eu apostaria a minha vida como as costuras estão tão apertadas quanto quando ele foi lançado ao Zuider Zee pela primeira vez - melhor até, porque os costados já estão experimentados agora, graças a Deus! - Vinck fez uma pausa para tomar fôlego. - Quando zarpamos? - Dentro de um mês. Mais ou menos.

Eles se cutucaram sorrindo de júbilo, e brindaram sonoramente ao piloto e ao navio.

- E quanto à navegação inimiga? Há alguma por aqui? E presas, piloto? - perguntou Ginsel.

- Muitas... para além dos seus sonhos. Estamos todos ricos.

Outro grito de alegria. - Já era tempo.

- Ricos, hein? Vou comprar um castelo para mim.

- Senhor Deus todo-poderoso, quando eu chegar a casa... - Ricos! Urra para o piloto!

- Muitos papistas para matar? Bom - disse Jan Roper brandamente. - Muito bom.

- Qual é o plano, piloto? - perguntou Van Nekk, e todos pararam de falar.

- Falo disso num minuto. Vocês têm guardas? Podem circular livremente, quando têm vontade? Com que freqüência... - Podemos ir a qualquer lugar na área da aldeia - disse Vinck calmamente -, talvez numa distância de meia légua ao redor. Mas não podemos ir a Yedo e não...

- Não podemos atravessar a ponte - interrompeu Sonk. - Conte-lhe sobre a ponte, Johann!

- Oh, pelo amor de Deus, eu já estava chegando à ponte, Sonk. Pelo amor de Deus, pare de interromper. Piloto, há uma ponte a cerca de meia légua a sudoeste. Há muitos avisos nela. Só podemos ir até lá. Não podemos ir além. "Kiniiru", por Deus, dizem os samurais. Compreende "kiniiru", piloto?

Blackthorne assentiu e não disse nada.

- À parte isso, podemos ir aonde quisermos. Mas só até as paliçadas. Há paliçadas em toda a volta, a uma meia légua de distância. Senhor Deus... vocês conseguem acreditar, voltar para casa em breve!

- Conte-lhe sobre o médico, hein, e sobre o ...

- Os samurais mandam um médico de vez em quando, piloto, e temos que tirar a roupa e ele nos examina ...

- Sim. Ter um bastardo macaco e pagão olhando para a gente, nu assim, é o suficiente para fazer um homem cagar.

- Com exceção disso, piloto, eles não nos incomodam, a não ser...

- Ei, não se esqueça de que o médico nos deu umas ervas imundas em pó, um "char", que devíamos pôr de infusão em água quente, mas jogamos tudo fora. Quando adoecemos, o bom Johann nos faz uma sangria e ficamos curados.

- Sim - disse Sonk. - Jogamos o "char" fora. - A não ser isso, com exceção do.. .

- Afora isso temos sorte aqui, piloto, não meço.

- Ele tem razão. No começo...

- Conte-lhe sobre as inspeções, Baccus!

- Eu estava chegando a isso, pelo amor de Deus, tenham paciência, dêem uma chance a alguém. Como posso contar alguma coisa com vocês todos tagarelando? Sirvam-me um drinque! - disse Van Nekk, e continuou: - A cada dez dias alguns samurais vêm aqui, nós nos alinhamos lá fora e eles nos contam. Depois nos dão sacos de arroz e dinheiro, dinheiro de cobre. É o suficiente para tudo, piloto. Trocamos arroz por carne e outras coisas - frutas ou seja o que for. Há de tudo e as mulheres fazem tudo o que queremos. Primeiro nós...

- Mas não foi assim no começo. Conte-lhe sobre isso, Baccus!

Van Nekk sentou-se no chão. - Deus me dê forças!

- Está se sentindo mal, pobre rapaz? - perguntou Sonk, solicitamente. - É melhor não beber mais ou vai ficar com os demônios de novo, hein? Ele fica com os demônios, piloto, uma vez por semana. Nós todos também.

- Você vai ficar quieto enquanto eu falo com o piloto?

- Quem, eu? Eu não disse nada. Não o estou interrompendo. Tome, tome o seu drinque!

- Obrigado, Sonk. Bem, piloto, primeiro eles nos colocaram numa casa a oeste da cidade ...

- Ficava lá embaixo, perto dos campos.

- Maldição, então conte você a história, Johann!

- Está bem. Cristo, piloto, foi terrível. Nada de bóia ou bebida e essas malditas casas de papel, é como morar num campo - um homem não pode dar uma mijada ou enfiar o dedo no nariz, nada sem que alguém esteja olhando, hein? Sim, e o barulho mais leve faz os vizinhos caírem em cima da gente, e samurais na varanda, e quem quer esses bastardos por perto, hein? Ficavam brandindo as malditas espadas contra a gente, gritando e chamando, dizendo-nos que ficássemos quietos. Bem, uma noite alguém derrubou uma vela e os macacos caíram todos em cima da gente! Jesus Deus, o senhor devia tê-los ouvido. Vieram fervilhando com baldes de água, doidos, sibilando e curvando-se e praguejando... Foi só uma parede sifilítica que se queimou... Centenas deles se lançaram sobre a casa como baratas. Bastardos! O senhor...

- Acabe logo com isso! - Você quer contar?

- Continue, Johann, não preste atenção nele. É só um cozinheiro cheio de merda.

- O quê?

- Oh, cale a boca! Pelo amor de Deus! - Van Nekk retomou a narrativa mais uma vez. - No dia seguinte, piloto, tocaram-nos de lá e nos puseram em outra casa da área do embarca douro. Era igualmente ruim. Depois, algumas semanas mais tarde, Johann topou com este lugar. Era o único de nós, naquela época, que tinha autorização para sair, por causa do navio. Iam buscá-lo diariamente e levavam-no de volta ao pôr-do-sol. Ele estava pescando - estamos a apenas algumas centenas de jardas do... É melhor que você conte, Johann.

Blackthorne sentiu uma coceira na perna nua e esfregou-a sem pensar. A irritação piorou. Então viu a protuberância sarapintada de uma picada de pulga, enquanto Vinck continuava orgulho samente. - É como Baccus disse, piloto. Perguntei a Sato-sama se podíamos nos mudar e ele disse sim, por que não. Eles geralmente me deixavam pescar com um dos pequenos botes deles, para passar o tempo. Foi o meu nariz que me trouxe aqui, piloto. O velho nariz conduziu-me: sangue!

- Um matadouro! - disse Blackthorne. - Um matadouro e um curtume! Isto é. . . - Ele parou e empalideceu.

- O que foi? O que há?

- Isto é uma aldeia eta? Jesus Cristo, essa gente é eta?

- O que há de errado com os "eters"? - perguntou Van Nekk. - Claro que são "eters".

Blackthorne afastou os mosquitos que infestavam o ar, a pele arrepiando-se. - Malditos insetos... são detestáveis, não são? Há um curtume aqui, não há?

- Sim. Algumas ruas acima, por quê? - Nada. Não reconheci o cheiro, só isso. - O que há com os "eters"?

- Eu... eu não percebi, que estúpido fui. Se tivesse visto um dos homens, eu o teria reconhecido pelo cabelo curto. Com as mulheres nunca se sabe. Desculpem. Continue a história, Vinck. - Bem, então eles disseram ...

Jan Roper interrompeu: - Espere um minuto, Vinck! O que há de errado, piloto? O que há com os "eters"?

- É só que os japoneses acham que eles são diferentes. São os executores, trabalham com peles e lidam com cadáveres. - Sentiu os olhos deles, de Jan Roper em particular. - Os etas trabalham as peles - disse ele, tentando conservar a voz indiferente -, e matam todos os cavalos velhos e bois e lidam com corpos mortos.

- Mas o que há de errado nisso, piloto? O senhor pessoalmente enterrou uma dúzia, amortalhou-os, lavou-os - todos nós fizemos isso, hein? Nós abatemos os animais que comemos, sempre fizemos isso. Ginsel foi carrasco ...          O que há de errado nisso tudo?

- Nada - disse Blackthorne, sabendo que era verdade, embora se sentisse embaraçado ainda assim.

Vinck bufou. - Os "eters" são os melhores pagãos que vimos aqui. Mais parecidos conosco do que os outros bastardos. Temos muita sorte de estar aqui, piloto, carne fresca não é problema, nem sebo - eles não nos causam problema.

- É isso mesmo. Se o senhor tivesse morado com "eters", piloto ...

- Jesus Cristo, o piloto teve que morar com os outros bastardos o tempo todo! Ele não conheceu nada melhor. Que tal irmos buscar a Mary Bunda Grande, Sonk?

- Ou a Rabo Rápido?

- Merda, ela não, não essa prostituta velha. O piloto vai querer uma especial. Vamos pedir à Mama-san...

- Aposto como ele está morto de fome, com vontade de comer uma bóia de verdade! Ei, Sonk, corte um pedaço de carne para ele.

- Tome mais um pouco de grogue ...

Em meio ao tumulto feliz, Van Nekk deu uns tapinhas nos ombros de Blackthorne. - Está em casa, amigo velho. Agora que voltou, nossas preces foram atendidas e está tudo bem no mundo. Está em casa, amigo velho. Ouça, fique com o meu beliche. Insisto ...

Alegremente Blackthorne acenou uma última vez. Houve um grito de resposta vindo da escuridão do outro lado da pontezinha. Então virou as costas, a forçada amabilidade evaporada, e dobrou a esquina, a guarda samurai de dez homens a rodeá-lo.

No caminho de volta ao castelo, sua mente esteve num turbilhão. Não havia nada de errado com os etas, e havia tudo de errado com eles, aqueles lá são a minha tripulação, minha própria gente, e os etas são pagãos e estrangeiros e inimigos...

Ruas e vielas e pontes passaram como um borrão. Então ele notou que estava com a mão por dentro do quimono, coçando-se, e parou.

- Aqueles malditos imundos... - Desenrolou o sashh, arrancou o quimono encharcado e, como se ele estivesse contaminado, atirou-o numa vala.

- Dozo, nan desu ka, Anjin-san? - perguntou um dos samurais.

- Nani mo! Nada, por Deus! - Blackthorne continuou a caminhar, carregando as espadas.

- Ah! Eta! Wakarimasu! Gomen nasai! - Os samurais tagarelaram entre si, mas ele não lhes prestou atenção.

Assim é melhor, pensou ele com um alívio imenso, sem perceber que estava quase nu, sentindo apenas que a pele parara de coçar agora que tirara o quimono infestado de pulgas.

Jesus Deus, eu adoraria um banho bem agora!

Contara suas aventuras à tripulação, mas não que era samurai e hatamoto; ou que era um dos protegidos de Toranaga, ou sobre Fujiko. Ou Mariko. E não lhes contara que iam aportar à força em Nagasaki e tomar o Navio Negro de assalto, ou que ele estaria à testa dos samurais. Isso pode vir mais tarde, pensou cansado. E o resto todo.

Eu poderia falar a eles sobre Mariko-san?

Seus tamancos de madeira soavam ruidosos contra os sarrafos de madeira da Primeira Ponte. Sentinelas samurais, também semidespidas, e indolentemente recostadas até o virem, curvaram-se polidamente enquanto ele passava, observando-o atentamente, porque aquele era o bárbaro incrível que, surpreendentemente, fora favorecido pelo Senhor Toranaga, a quem Toranaga, inacreditavelmente, concedera a honra, jamais concedida antes a um bárbaro, de hatamoto e samurai.

Ao portão principal sul do castelo, outro guia esperava por ele. Escoltaram-no aos seus aposentos, dentro da fortificação interna. Fora-lhe designado um quarto numa das casas de hóspedes, fortificadas mas atraentes, porém polidamente ele recusou dirigirse imediatamente para lá. - Primeiro banho, por favor - disse aos samurais.

- Ah, compreendo. Isso é muito atencioso de sua parte. A casa de banho fica nesta direção, Anjin-san. Sim, a noite está quente, neh? E ouvi dizer que o senhor esteve lá embaixo, com os imundos. Os outros hóspedes da casa apreciarão a sua consideração. Agradéço-lhe em nome deles.

Blackthorne não compreendeu todas as palavras, mas captou o sentido. "Imundos." Isso descreve a minha gente e a mim - nós, não eles, pobres coitados.

- Boa noite, Anjin-san - disse o chefe dos criados de banho. Era um homem de meia-idade, imenso, com um vasto ventre e um grande bíceps. Uma criada acabara de despertá-lo para avisar que outro cliente retardatário estava chegando. Ele bateu palmas. Criadas de banho apareceram. Blackthorne seguiuas para a sala onde elas o limparam, ensaboaram e esfregaram, e ele as fez repetir tudo uma segunda vez. Em seguida dirigiu-se para o banho de imersão, entrou na água escaldante e entregou-se ao abraço relaxante do calor.

Depois, mãos fortes o ajudaram a sair e lhe untaram a pele com óleo perfumado, descontraindo-lhe músculos e pescoço, depois levaram-no para uma sala de repouso e lhe deram um quimono de algodão, lavado e fresco. Com um longo e profundo suspiro de prazer, ele se deitou.

- Dozo gomen nasai, chá, Anjin-san? - Hai. Domo.

O chá chegou. Ele disse à criada que ficaria ali naquela noite, não iria para os seus aposentos. Depois, sozinho e em paz, tomou o chá, sentindo-o purificá-lo, "...ervas `char' de aparência irnunda...",pensou com desagrado.

- Tenha paciência, não deixe que isso lhe perturbe a harmonia - disse alto. - Eles são apenas pobres ignorantes imbecis, que não conhecem coisa melhor. Você já foi a mesma coisa um dia. Não tem importância, agora você pode mostrar a eles, neh? Tirou-os da cabeça e estendeu a mão para pegar o dicionário. Mas naquela noite, pela primeira vez desde que se vira na posse do livro, pousou-o descuidadamente ao lado e soprou a vela. Estou cansado demais, disse a si mesmo. Mas não cansado demais para responder a uma questão simples, disse a sua mento: eles são realmente imbecis ignorantes, ou é você que está se fazendo de tolo? Responderei a isso mais tarde, quando for o momento. Agora a resposta não tem importância. Agora só sei que não os quero perto de mim.

Virou-se, colocou o problema de lado, e adormeceu.

Despertou revigorado. Um quimono limpo, uma tanga e tabis estavam preparados para ele. As bainhas das suas espadas tinham sido polidas. Vestiu-se rapidamente. Fora da casa, os samurais esperavam, acocorados. Levantaram-se e se curvaram.

- Somos a sua guarda hoje, Anjin-san. - Obrigado. Ir navio agora?

- Sim. Aqui está o seu passe.

- Bom. Obrigado. Posso perguntar o seu nome, por favor? - Musashi Mitsutoki.

- Obrigado, Musashi-san. Ir agora?

Desceram para os embarcadouros. O Erasmus estava firmemente atracado a três braças sobre um leito arenoso. Os porões tinham um cheiro agradável. Ele mergulhou e nadou por sob a quilha. A alga grudada era mínima e havia muito pouca craca. O leme estava intacto. No paiol, que estava seco e impecável, encontrou uma pederneira e ateou uma fagulha a um minúsculo monte de pólvora. Ardeu instantaneamente, em perfeitas condições.

Subindo ao topo do mastro de proa, procurou vestígios de rachas. Não havia nenhum, ali ou na subida ou ao redor de qualquer um dos mastros que examinou. Muitas das curdas, adriças e ovéns estavam atados incorretamente, mas para mudar isso bastaria meio turno apenas.

Mais uma vez no tombadilho, permitiu-se um grande sorriso. - Você está tão perfeito quanto... quanto o quê? - Não conseguiu pensar num "quê" suficientemente grande, por isso apenas riu e desceu novamente. Na sua cabina, sentiu-se estranho. E muito só. Suas espadas estavam sobre o beliche. Tocou-as, depois tirou a Vendedor de óleo da bainha. O acabamento era perfeito e a ponta perfeita. Olhar para a espada deu-lhe prazer, pois era realmente uma obra de arte. Mas uma obra de arte mortífera, pensou como sempre, virando-a à luz.

Quantas mortes você causou na sua vida de duzentos anos? Quantas mais causará, antes que você mesmo morra? Será que algumas espadas têm vida própria mesmo, conforme diz Mariko? Mariko. O que será dela?

Então viu no aço o reflexo do seu baú e isso tirou-o da sua súbita melancolia.

Embainhou a Vendedor de óleo, evitando cuidadosamente tocar a lâmina, pois o costume dizia que até um simples toque podia empanar tal perfeição.

Encostando-se ao beliche, seus olhos deram com o baú vazio. - E os portulanos? e os instrumentos de navegação? - perguntou à sua imagem na lâmpada de cobre que fora escrupulosamente polida, como tudo mais. Ele se viu responder: - Você compra tudo em Nagasaki, junto com a sua tripulação. E pega Rodrigues. Sim. Você o pega antes do ataque. Neh?

Observou o próprio sorriso alargar-se. - Você tem muita certeza de que Toranaga o deixará ir, não tem?

- Sim - respondeu com total confiança. - Vá ele ou não a Osaka, conseguirei o que quero. E conseguirei Mariko também. Satisfeito, enfiou as espadas no sash, subiu de volta ao convés e esperou até que as portas fossem lacradas de novo.

Quando retornou ao castelo, ainda não era meio-dia, então se dirigiu para os seus aposentos para comer. Comeu arroz e dois pratos de peixe que tinham sido grelhados na brasa com soja, pelo seu próprio cozinheiro, conforme ele ensinara ao homem. Um pequeno frasco de saquê, depois chá.

- Anjin-san? - Hai?

A shoji se abriu. Fujiko sorriu timidamente e curvou-se.

 

- Eu tinha esquecido de você - disse ele em inglês. - Fiquei com medo que tivesse morrido.

- Dozo goziemashita, Anjin-san, nan desu ka?

- Nani mo, Fujiko-san - disse ele, envergonhado consigo mesmo. - Gomen nasai. Hai. Gomen nasai. Ma-suware odoroita ponto ni mata aete ureshi. Por favor, desculpe-me... uma surpresa, neh? Bom vê-Ia. Por favor, sente-se...

- Domo arigato goziemashita - disse ela, e falou-lhe, na sua voz fina e alta, de como estava contente em vê-lo, de como o japonês dele melhorara, de como ele estava com boa aparência, e de como ela estava felicíssima de se encontrar ali.

Ele a observou ajoelhar-se desajeitadamente sobre a almofada em frente a ele. - Pernas. . . - Procurou a palavra "queimadura", mas não conseguiu se lembrar, então disse: - Pernas fogo machucou. Mal?

- Não. Sinto muito. Mas ainda dói um pouco para sentar - disse Fujiko, concentrando-se, observando-lhe os lábios. - Pernas doem, sinto muito.

- Por favor, mostre-me.

- Sinto muito, por favor, Anjin-san. Não quero perturbá-lo. O senhor tem outros problemas. Eu...

- Não compreendo. Depressa demais, desculpe.

- Ah, sinto muito. Pernas estão bem. Não há problema - suplicou ela.

- Problema. Você é consorte, neh? Não vergonha. Mostre agora!

Obedientemente ela se levantou. Estava visivelmente desconfortável, mas assim que se pôs ereta começou a desatar as faixas do obi.

- Por favor, chame a criada - ordenou ele.

Ela obedeceu. Imediatamente a shoji se descerrou e uma mulher que ele não reconheceu se apressou para ajudá-la.

- Qual é o seu nome? - perguntou ele bruscamente, como devia fazer um samurai.

- Oh, por favor, desculpe-me, senhor, sinto muito. Meu nome é Hana-ichi.

Ele grunhiu um assentimento. Senhorita Primeiro Botão, finalmente um belo nome! Todas as criadas, por costume, chamavam-se Senhorita Escova ou Sifão ou Peixe ou Segunda Vassoura ou Quarta ou Estrela ou Árvore ou Ramo, e assim por diante. Hana-ichi era de meia-idade e estava muito preocupada. Aposto como é uma agregada de família, disse ele a si mesmo. Talvez uma vassala do falecido marido de Fujiko. Marido! Tinha esquecido dele também, e da criança que foi assassinada - assim como o marido foi assassinado pelo demônio Toranaga, que não é um demônio, mas um daimio, e um bom, talvez um grande lidei. Sim. Provavelmente o marido mereceu a sorte que teve, se é verdade o que soubemos, neh? Mas não a criança, pensou ele. Não há desculpa para isso.

Fujiko deixou que o seu quimono verde estampado caísse de lado frouxamente. Seus dedos tremiam quando desatou o delgado sash de seda do quimono interno, amarelo, que também deixou cair. Sua pele era clara e a parte dos seios que ele conseguiu ver por entre as dobras de seda mostrava-os chatos e pequenos. Hanaichi ajoelhou-se e desamarrou os cordões da combinação que ia da cintura ao chão, para que a ama pudesse tirá-la.

- Iyé - ordenou ele. Aproximou-se e ergueu a barra. As queimaduras começavam na barriga das pernas. - Gomen nasai - disse ele.

Ela permaneceu imóvel. Uma lágrima de suor escorreu-lhe pelo rosto, manchando a maquilagem. Ele levantou mais a saia.

A pele estava queimada por toda a área da barriga das pernas, mas parecia estar cicatrizando perfeitamente. O tecido já se formara e não havia infecção, nem supuração, apenas um pouco de sangue limpo onde o tecido novo se rompera nas costas dos joelhos, quando ela se ajoelhara.

Ele moveu-lhe os quimonos para o lado e afrouxou a faixa de cintura da combinação. As queimaduras terminavam no alto da perna, contornavam-lhe as nádegas onde a trave a imobilizara e protegera, depois começavam de novo na base das costas. Uma bandagem de queimadura, com meio palmo de largura, rodeavalhe a cintura. A cicatriz já estava se acomodando em rugas permanentes. De aparência feia, mas sarando perfeitamente.

- Médico muito bom. O melhor que já vi! - Ele deixou os quimonos dela caírem. - O melhor, Fujiko-san! As cicatrizes, que importância têm, neh? Nenhuma. Vi muitos ferimentos de fogo, compreende? Querer ver depois, certeza estar boa ou não boa. Médico muito bom. Buda vela Fujiko-san. - Pousou-lhe as mãos sobre os ombros e olhou-a nos olhos. - Não se preocupe agora. Shigata ga nai, neh? Compreende?

As lágrimas dela escorreram. -- Por favor, desculpe-me, Anjin-san. Estou tão embaraçada. Por favor, desculpe a minha estupidez por estar lá, apanhada como uma eta estúpida. Eu deve ria estar com o senhor, guardando-o, não enfiada com os criados na casa. Não havia nada para mim na casa, nada, nenhuma razão para estar na cas ...

Ele a deixou falar embora não compreendesse quase nada do que dizia, abraçando-a compadecido. Tenho que descobrir o que foi que o médico usou, pensou excitado. É a cura melhor e mais rápida que já vi. Cada mestre de cada um dos navios de Sua Majestade devia conhecer esse segredo - sim, e na verdade, cada capitão de cada navio da Europa. Espere um instante, cada mestre não pagaria guinéus de ouro por esse segredo? Você poderia fazer uma fortuna! Sim. Mas não desse modo, disse-se ele, nunca. Nunca com o sofrimento de um marinheiro.

Ela tem sorte de que tenha sido só na barriga das pernas e nas costas, e não na face. Olhou-lhe o rosto. Continuava tão quadrado e chato como sempre, os dentes exatamente tão pontu dos, mas o calor que lhe emanava dos olhos compensava a feiúra. Deu-lhe outro abraço. - Agora. Não chore. Ordem!

Mandou a criada ir buscar chá e saquê e muitas almofadas e ajudou-a a se reclinar sobre elas, por mais embaraçada que ela, no começo, se sentisse em obedecer. - Como posso lhe agradecer? - disse ela.

- Não agradecimentos. Retribuo - Blackthorne pensou um instante, mas não conseguiu se lembrar das palavras japonesas para "favor" ou "lembrar", então pegou o dicionário e procurou-as ali. - "Favor: o-negai". . . "lembrar: omoi dasu". Hai, fnondoso o-negai! Omi desu ka? Retribuir favor. Lembra-se? - Levantou os punhos, imitando pistolas e apontando-as. - Omi-san, lembra-se?

- Oh, claro - exclamou ela. Depois, maravilhada, pediu para olhar o livro. Nunca vira escrita romana antes, e a coluna de palavras japonesas passadas para o latim e o português e vice versa não tinham significado para ela, mas logo captou a finalidade daquilo. - É um livro com todas as nossas... desculpe. Livro de palavras, neh?

- Hai.

- "Hombun"? - perguntou ela.

Ele lhe mostrou como encontrar a palavra em latim e em português. - "Hombun: dever." - E acrescentou em japonês: - Compreendo dever. Dever de samurai, neh?

- Hai. - Ela bateu palmas como se lhe tivessem mostrado um brinquedo mágico. Mas é mágica, não é? pensou ele, um presente de Deus. Isto desvenda a mente dela e a de Toranaga, e logo estarei falando perfeitamente.

Ela lhe deu outras palavras e ele as disse em inglês ou em latim ou em português, sempre compreendendo as palavras que ela escolhia e sempre as encontrando. O dicionário não falhava nunca.

Ele olhou uma palavra. - Majutsu desu, neh? É mágica, não é?

- Sim, Anjin-san. O livro é mágica. - Ela tomou um gole de chá. - Agora posso conversar com o senhor. Realmente conversar.

- Um pouco. Só devagar, compreende?

- Sim. Por favor, tenha paciência comigo. Por favor, desculpe-me.

O imenso sino do torreão tocou a hora do Bode e os templos em Yedo ecoaram a mudança da hora.

- Eu vou agora. Vou Senhor Toranaga. - Colocou o livro na manga.

- Esperarei aqui, por favor, se puder. - Onde está alojada?

Ela apontou. - Oh, ali, meu quarto fica ao lado. Por favor, desculpe a minha indelicadeza.

- Devagar. Fale devagar. Fale com simplicidade!

Ela repetiu devagar, com mais desculpas. - Bom - disse ele. - Bom. Vejo-a mais tarde.

Ela começou a se levantar, mas ele meneou a cabeça e saiu para o pátio. O dia estava nublado agora, o ar sufocante. Guardas o esperavam. Logo se encontrou no adro do torreão. Mariko estava lá, mais delgada do que nunca, mais etérea, o rosto de alabastro sob o guarda-sol amarelo-ouro. Usava um quimono marrom-escuro, barrado de verde.

- Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka? - perguntou ela, curvando-se formalmente.

Ele lhe disse que estava ótimo, mantendo alegremente o hábito dos dois de falar em japonês o mais que pudessem, passando para o português só quando ele se cansava ou quando desejavam ser mais reservados.

- Você. . . - disse ele cautelosamente, em latim, enquanto subiam as escadas do torreão.

- Você - ecoou Mariko, e passou imediatamente para o português com a mesma gravidade da noite anterior. - Sinto muito, por favor, nada de latim hoje, Anjin-san, hoje o latim não assenta bem. Não pode servir à finalidade para a qual foi feito, neh?

- Quando posso lhe falar?

- Isso é muito difícil, sinto muito. Tenho deveres... - Não há nada de errado, há?

- Oh, não - replicou ela. - Por favor, desculpe-me, o que poderia estar errado? Nada está errado.

Subiram outro lanço em silêncio. No andar seguinte, os passes foram examinados como sempre, guardas à frente e atrás deles. A chuva começou a cair pesadamente e isso diminuiu a umidade.

- Vai chover durante horas - disse ele.

- Sim. Mas sem as chuvas não há arroz. Logo cessarão, dentro de duas ou três semanas, então ficará quente e úmido até o outono. - Ela olhou pelas janelas para o aguaceiro cerrado. - Vai gostar do outono, Anjin-san.

- Sim. - Ele observava o Erasinus, muito distante, lá embaixo ao lado do embarcadouro. Então a chuva obscureceu o navio e ele subiu mais um trecho.

- Depois de falarmos com o Senhor Toranaga, teremos que esperar até que essa chuva passe. Talvez houvesse um lugar onde pudéssemos conversar?

- Isso poderia ser difícil - disse ela vagamente, coisa que ele estranhou. Normalmente ela era decisiva e executava as polidas "sugestões" dele como ordens que normalmente seriam consi deradás. - Por favor, desculpe-me, Anjin-san, mas as coisas são difíceis para mim no momento, e tenho muito o que fazer. - Parou momentaneamente e passou o guarda-sol para a outra mão, segurando a barra da saia. - Como foi a noite passada? Como estavam os seus amigos, a sua tripulação?

- Otimos. Esteve tudo ótimo - disse ele. - Mas não "ótimo"? - perguntou ela.

- Otimo... mas muito estranho. - Ele a encarou. - A senhora percebe tudo, não?

- Não, Anjin-san. Mas o senhor não os mencionou e vem pensando enormemente neles nesta última semana. Não sou mágica. Sinto muito.

Após uma pausa, ele disse: - Tem certeza de que está bem? Não há problema com Buntaro-san, há?

Ele nunca falara de Buntaro com ela ou sequer lhe mencionara o nome desde Yokosé. Por acordo, aquele espectro nunca era invocado por nenhum deles desde o primeiro momento. - É

o meu único pedido, Anjin-san - sussurrara ela na primeira noite. - Aconteça o que acontecer durante a nossa viagem, para Mishima ou, se Nossa Senhora quiser, para Yedo, isto não tem nada a ver com mais ninguém além de nós, neh? Entre nós, nada do que realmente é deve ser mencionado. Neh? Nada. Por favor? - Concordo. Juro.

- E eu faço o mesmo. Afinal, a nossa viagem termina na Primeira Ponte de Yedo.

- Não.

- Tem que haver um término, meu amor. Na Primeira Ponte a nossa viagem acaba. Por favor, ou morrerei de aflição com o medo pelo senhor e o perigo em que o coloquei ...

Na manhã anterior, ele parara ao limiar da Primeira Ponte, um peso súbito no espírito, apesar da sua alegria com o Erasmus. - Devemos atravessar a ponte agora, Anjin-san - dissera ela.

- Sim. Mas é só uma ponte. Uma dentre muitas. Venha, Mariko-san. Caminhe ao meu lado através desta ponte. Ao meu lado, por favor. Vamos caminhar juntos - depois, em latim: - e imagine que está sendo carregada e que vamos de mãos dadas para um começo.

Ela descera do palanquim e andara ao lado dele até atingirem o outro lado. Ali subira de novo à liteira acortinada e os dois seguiram pela leve elevação. Buntaro esperava ao portão do castelo.

Blackthorne lembrou-se de como orara para que um relâmpago caísse do céu.

- Não há problema com ele, há? - perguntou de novo, quando atingiram o último patamar.

Ela meneou a cabeça.

- Navio muito rápido, Anjin-san? -- disse Toranaga. -Não engano?

- Não engano, senhor. Navio perfeito.

- Quantos homens extras... quantos homens mais quer para o navio... - Toranaga relanceou o olhar para Mariko. - Por favor, pergunte-lhe de quantos homens mais ele necessitará para navegar adequadamente. Quero ter certeza absoluta de que ele compreende o que quero saber.

- O Anjin-san diz que precisaria de um mínimo de trinta marujos e vinte atiradores. Sua tripulação original era de cento e sete homens, incluindo cozinheiros e mercadores. Para navegar

e combater nestas águas, o complemento de duzentos samurais seria suficiente.

- E ele acredita que os outros homens de que necessita poderiam ser contratados em Nagasaki?

- Sim, senhor.

- Eu certamente não confiaria em mercenários - disse Toranaga com desagrado.

- Por favor, desculpe-me, senhor, quer que eu traduza isso? - O quê? Oh, não, isso não terra importância.

Toranaga levantou-se, ainda fingindo rabugice, e olhou a chuva pelas janelas. A cidade inteira estava obscurecida pelo aguaceiro. Que chova durante meses, pensou ele. Que todos os .deuses façam a chuva durar até o Ano Novo. Quando Buntaro encontrará meu irmão? - Diga ao Anjin-sara que lhe darei seus vassalos amanhã. Hoje está terrível. Essa chuva vai continuar o dia todo. Não faz sentido se ensopar.

- Sim, senhor - ouviu-a dizer, e sorriu ironicamente consigo mesmo. Nunca, em toda a sua vida, o tempo o impedira de fazer coisa alguma. Isso certamente deve convencê-la, e a quaisquer outros céticos, de que mudei definitivamente para pior, pensou ele, sabendo que ainda não podia se desviar do rumo escoIhído. - Amanhã ou depois de amanhã, que diferença faz? Digalhe que, quando eu estiver pronto, mandarei chama-lo. Até lá, ele deve ficar dentro do castelo.

Ouviu-a passar as ordens para o Anjin-san.

- Sim, Senhor Toranaga, compreendo - respondeu Blackthorne por si mesmo. - Mas posso respeitosamente perguntar: é possível ir a Nagasaki depressa? Penso é importante. Sinto muito.

- Decidirei isso mais tarde - disse Toranaga bruscamente., sem simplificar para ele. Fez-lhe sinal que saísse. - Até logo, Anjin-san. Decidirei o seu futuro em breve. - Viu que o homem queria insistir, mas polidamente não o fez. Bom, pensou, pelo menos está aprendendo boas maneiras! - Diga ao Anjin-san que ele não precisa espera-la, Mariko-san. Até logo, Anjin-san.

Mariko fez conforme o ordenado. Toranaga voltou-se para contemplar a cidade e o temporal. Ouviu o som da chuva. A porta fechou-se atrás do Anjin-san. - Sobre o que foi a discussão? - perguntou Toranaga, sem olhar para ela.

- Senhor?

Os ouvidos dele, cuidadosamente aguçados, captaram o débil tremor na voz dela.

- Claro que entre Buntaro e você, ou você teve alguma outra discussão que me interesse? - acrescentou ele com um sarcasmo mordaz, precisando precipitar o assunto. - Com o Anjin-san, talvez, ou com os meus inimigos cristãos, ou com o Tsukku-san?

- Não, senhor. Por favor, desculpe-me. Começou como sempre, como a maioria das discussões, senhor, entre marido e mulher. Realmente por causa de nada. Então, de repente, como sempre, o passado todo vem à tona e infecta o homem e a mulher se ... se eles estiverem mal-humorados.

- E você estava mal-humorada?

- Sim. Por favor, desculpe-me. Provoquei meu marido impiedosamente. A culpa foi inteiramente minha. Lamento, senhor, que nestes tempos ruins, sinto muito, as pessoas digam coisas irrefletidas.

- Vamos, depressa, que coisas irrefletidas?

Ela estava como uma corça encurralada. Seu rosto estava branco como giz. Sabia que os espiões já lhe deviam ter cochichado o que fora gritado no silêncio da casa deles.

Contou-lhe tudo o que fora dito da melhor maneira que conseguiu se lembrar. E acrescentou: - Acredito que as palavras do meu marido tenham sido ditas devido à cólera desenfreada que provoquei. Ele é leal, sei que é. Se alguém deve ser punido sou eu, senhor. Realmente provoquei a loucura.

Toranaga sentou-se de novo sobre a almofada, as costas rijas, o rosto granítico. - O que disse a Senhora Genjiko?

- Não falei com ela, senhor.

- Mas pretende fazer isso, neh? ou pretendia?

- Não, senhor. Com a sua permissão, pretendo partir imediatamente para Osaka.

- Você partirá quando eu disser e não antes disso, e traição é uma besta abominável onde quer que seja descoberta!

Ela se curvou ante o açoite da língua dele. - Sim, senhor. Por favor, perdoe-me. A culpa é minha.

Ele tocou um sininho. A porta se abriu. Naga apareceu. - Sim, senhor?

- Ordene que o Senhor Sudara venha aqui imediatamente, com a Senhora Genjiko.

- Sim, senhor. - Naga voltou-se.

- Espere! Depois convoque o meu conselho, Yabu e todos... e todos os generais mais velhos. Devem estar aqui à meianoite. E esvazie este andar. Todos os guardas! Você volta com Sudara!

- Sim, senhor. - Pálido, Naga fechou a porta atrás de si. Toranaga ouviu homens descendo as escadas com estrépito. Dirigiu-se para a porta e abriu-a. O corredor estava vazio. Bateu a porta e trancou-a. Pegou outro sino e tocou-o. Uma porta interna na outra extremidade do aposento se abriu. Era uma porta que mal se notava, tão inteligentemente se fundia ao revestimento de madeira da sala. Uma mulher de meia-idade, atarracada, surgiu por ali. Usava um hábito encapuzado de monja budista. - Sim, grande senhor?

- Chá, por favor, Chano-chan - disse ele. A porta se fechou. Os olhos de Toranaga voltaram para Mariko. - Então você acha que ele é leal?

- Eu sei disso, senhor. Por favor, perdoe-me, a culpa foi minha, não dele - disse ela, desesperada por agradar. - Eu o provoquei.

- Sim, provocou. Repugnante. Terrível. Imperdoável! - Toranaga pegou um lenço de papel e enxugou a fronte. - Mas oportuno.

- Senhor?

- Se você não o tivesse provocado, talvez eu nunca viesse a saber de qualquer traição. E se ele tivesse dito tudo isso sem provocação, teria havido apenas uma linha de ação. Sendo como é - continuou ele -, você me dá uma alternativa.

- Senhor?

Ele não respondeu. Estava pensando. Gostaria que Hiromatsu estivesse aqui, então haveria pelo menos um homem em quem eu poderia confiar completamente. - E quanto a você? Quanto à sua lealdade?

- Por favor, senhor, deve saber que a tem.

Ele não respondeu. A expressão de seus olhos era inexorável. A porta interna se abriu e Chano, a monja, entrou confiantemente na sala sem bater, uma bandeja nas mãos. - Aqui está, grande senhor, estava pronto para o senhor. - Ajoelhou-se como uma camponesa, suas mãos ásperas como as de uma camponesa, mas sua autoconfiança era enorme e seu contentamento interior óbvio. - Que Buda o abençoe com a sua paz. - Depois se voltou para Mariko, curvou-se como uma camponesa se curvaria, e se sentou confortavelmente. - Talvez me honrasse servindome, senhora. A senhora o fará lindamente, sem derramar, neh? - Seus olhos cintilavam com um deleite particular.

- Com prazer, Oku-san - disse Mariko, dando-lhe o título religioso de "madre", dissimulando a própria surpresa. Nunca vira antes a mãe de Naga. Conhecia a maioria das outras damas oficiais de Toranaga, vira-as em cerimônias oficiais, mas dava-se apenas com Kiritsubo e a Senhora Sazuko.

- Chano-chan - disse Toranaga -, esta é a Senhora Toda Mariko-noh-Buntaro.

- Ah, so desu, sinto muito, pensei que fosse uma das honradas damas do meu grande senhor. Por favor, desculpe-me, Senhora Toda, que as bênçãos de Buda estejam com a senhora.

- Obrigada - disse Mariko. Ofereceu a xícara a Toranaga. Ele aceitou e bebeu.

- Sirva Chano-chan e a si mesma - disse ele.

- Sinto muito, para mim não, grande senhor, com a sua permissão. Meus dentes de trás estão amolecidos de tanto chá e o balde fica longe demais destes velhos ossos.

- O exercício lhe faria bem - disse Toranaga, contente de tê-la mandado buscar quando retornara a Yedo.

- Sim, grande senhor. Tem razão, como sempre. – Chano voltou sua atenção cordial a Mariko. - Então a senhora é a filha do Senhor Akechi Jinsai?

A xícara de Mariko hesitou no ar. - Sim. Por favor, desculpe-me...

- Oh, não há nada de que se desculpar, criança. - Chano riu gentilmente, e seu estômago balançou para cima e para baixo. - Eu só a identifiquei pelo nome, por favor, desculpe-me, ruas a última vez que a vi foi no seu casamento.

- Oh?

- Oh, sim, eu a vi no seu casamento, mas a senhora não me viu. Eu espiei por detrás de uma divisória. Sim, a senhora e todos os grandes, o ditador, e Nakamura, o futuro táicum, e todos os nobres. Oh, eu era tímida demais para me misturar àquela companhia. Mas aquele foi um bom tempo para mim. O melhor da minha vida. Foi o segundo ano em que o meu grande senhor me favoreceu e eu estava pesada, com criança, embora continuasse sendo a camponesa que sempre fui. - Seus olhos se enrugaram e ela acrescentou: - A senhora mudou muito pouco, desde aqueles dias, continua sendo uma das escolhidas de Buda. - Ah, gostaria que isso fosse verdade, Oku-san.

- É verdade. Sabia que foi uma das escolhidas de Buda? - Não fui, Oku-san, por mais que gostasse de ser.

-- Ela é cristã -- disse Toranaga.

- Ah, cristã... o que importa para urna mulher, ser cristã ou budista, grande senhor? Não muito às vezes, embora algum deus seja necessário para uma mulher. - Chano soltou uma risadinha alegre. - Nós, mulheres, precisamos de um deus, grande senhor, para nos ajudar a lidar com os homens, neh?

- E nós, homens, precisamos de paciência, de uma paciência divina, para lidar com as mulheres, neh?

A mulher riu, e isso aqueceu a sala inteira e, por um instante, abrandou parte dos pressentimentos de Mariko. - Sim, grande senhor - continuou Chano -, e tudo por causa de um Pavilhão Celestial que não tem futuro, tem pouco calor e uma capacidade do inferno.

Toranaga grunhiu: - O que diz a isso, Mariko-san?

- A sabedoria da Senhora Chano excede a sua juventude - disse Mariko.

- Ah, senhora, diz belas coisas a uma velha tola - disse a monja. - Lembro-me tão bem da senhora. O seu quimono era azul com as garças estampadas mais adoráveis que já vi. Pratea das. - Seus olhos voltaram-se para Toranaga. - Bem, grande senhor, só quis me sentar um instante. Por favor, com licença agora.

- Ainda há tempo. Fique onde está.

- Sim, grande senhor - disse Chano, pesadamente pondose cm pé -, eu obedeceria como sempre, mas a natureza chama. Por isso, por favor, seja gentil com uma velha camponesa, eu odiaria envergonhá-lo. É tempo de ir. Está tudo pronto, há comida e saquê para quando desejar, grande senhor.

- Obrigado.

A porta fechou-se sem ruído atrás dela. Mariko esperou até que a xícara de Toranaga se esvaziasse, e encheu-a de novo.

-- No que está pensando? - Estava esperando, senhor. - O quê, Mariko-san?

- Senhor, sou hatamoto. Nunca lhe pedi um favor antes. Gostaria de lhe pedir um favor como hata...

- Não quero que você peça favor algum como hatamoto - disse Toranaga.

- Então um desejo de vida.

- Não sou um marido para conceder isso.

- Às vezes um vassalo pode pedir ao susera...

- Sim, às vezes, mas não agora! Agora você vai calar a boca sobre qualquer desejo de vida ou favor ou solicitação ou seja o que for. - Um desejo de vida era um favor que, por cos tume antigo, uma esposa podia pedir ao marido, um filho ao pai - e ocasionalmente um marido à esposa -, sem perda de dignidade, sob a condição de que, se o desejo fosse concedido, a pessoa concordava em nunca mais pedir outro favor na vida. Por costume, não se podiam fazer quaisquer perguntas sobre o favor, nem ele devia ser mencionado novamente.

Houve uma batida polida à porta. - Destranque-a - disse Toranaga.

Ela obedeceu. Sudara entrou, seguido da esposa, a Senhora Genjiko, e Naga.

- Naga-san, desça ao segundo pavimento abaixo deste e impeça qualquer pessoa de vir aqui sem as minhas ordens. Naga saiu com grande gravidade e arrogância.

- Mariko-san, feche a porta e sente-se ali. - Toranaga apontou um lugar ligeiramente diante dele, encarando os outros. - Ordenei que viessem ambos aqui porque há assuntos de família particulares e urgentes a discutir.

Os olhos de Sudara involuntariamente se dirigiram para Mariko, depois voltaram a fitar o pai. Os da Senhora Genjiko não piscaram.

Toranaga disse asperamente: - Ela está aqui, meu filho, por duas razões: a primeira é porque quero que esteja aqui e a segunda é porque quero que esteja aqui!

- Sim, Pai - respondeu Sudara, envergonhado com a descortesia do pai a todos eles. - Posso, por favor, perguntar-lhe por que o ofendi?

- Há alguma razão pela qual eu deveria estar ofendido? - Não, senhor, a menos que o meu zelo pela sua segurança e a minha relutância em permitir-lhe que parta desta terra sejam causa de ofensa.

- E quanto a traição? Ouvi dizer que você está ousando assumir o meu lugar como cabeça do nosso clã!

Sudara empalideceu. A Senhora Genjiko igualmente. - Nunca fiz isso, nem por palavras nem por atos. Nem qualquer membro da minha família ou alguém na minha presença.

- Isso é verdade, senhor - disse a Senhora Genjiko, com a mesma intensidade. Sudara era um homem orgulhoso, esbelto, com olhos frios e estreitos, e lábios frios que nunca sorriam. Tinha vinte e quatro anos, era um excelente general, e o segundo dos cinco filhos vivos de Toranaga. Adorava os próprios filhos, não tinha consortes e era devotado à esposa.

Genjiko era baixa, três anos mais velha que o marido, e rechonchuda devido aos quatro filhos que já lhe dera. Mas tinha as mesmas costas retas e todo o orgulho da irmã, Ochiba, uma inclemente preocupação com a proteção da própria prole, junto com a mesma ferocidade latente herdada do avô, Goroda.

- Quem quer que tenha acusado meu marido é mentiroso - disse ela.

- Mariko-san - disse Toranaga -, diga à Senhora Genjiko o que o seu marido lhe ordenou que dissesse!

- Meu Senhor Buntaro pediu-me, ordenou-me, que a convencesse de que chegou o momento de o Senhor Sudara assumir o poder, de que outros no conselho compartilham da opinião de meu marido, e que, se o nosso Senhor Toranaga não quisesse ceder o poder, deveria... deveria ser tomado à força.

- Nunca nenhum de nós nutriu esse pensamento, Pai - disse Sudara. - Somos leais e nunca cons ...

- Se eu lhe desse o poder, o que você faria? - perguntou Toranaga.

Genjiko respondeu imediatamente: - Como pode o Senhor Sudara saber, quando jamais considerou essa pecaminosa possibilidade? Sinto muito, senhor, mas para ele é impossível responder, porque isso nunca lhe esteve na mente. Como poderia estar? E quanto a Buntaro-san, obviamente os kamis tomaram posse dele.

Buntaro alegou que outros compartilham da sua opinião. Quem? - perguntou Sudara, malignamente. - Diga-me quem e eles morrerão dentro de minutos.

- Diga-me você quem!

- Não conheço nenhum, senhor, ou lhe teria relatado. - Não os teria matado antes?

- A sua primeira lei é ter paciência, a segunda é ter paciência. Sempre segui suas ordens. Eu teria esperado e relatado. Se o ofendi, ordene que eu cometa seppuku. Não mereço a sua cólera, senhor; não cometi traição alguma. Não posso suportar a sua cólera.

A Senhora Genjiko acorreu. - Sim, senhor. Por favor, com licença, mas humildemente concordo com meu marido. Ele está inocente, assim como toda a nossa gente. Somos fiéis... tudo o que temos é seu, tudo o que somos foi o senhor que fez, tudo o que ordenar faremos.

- Ótimo! São vassalos leais, não são? Obedientes? Sempre obedecem a ordens?

- Sim, senhor.

- Bom. Então vá e mate os seus filhos. Já. Sudara desviou os olhos do pai e fitou a esposa.

A cabeça dela moveu-se levemente, em aquiescência. Sudara curvou-se para Toranaga. Sua mão apertou o punho da espada e ele se levantou. Fechou silenciosamente a porta atrás de si. Houve um grande silêncio no seu rastro. Genjiko olhou uma vez para Mariko, depois cravou os olhos no chão.

Sinos tocaram a metade da hora do Bode. O ar na sala parecia se adensar. A chuva parou brevemente, depois começou de novo, mais pesada do que antes.

Pouco depois de os sinos indicarem a hora seguinte, houve uma batida.

- Sim?

A porta se abriu. Naga disse: - Por favor, com licença, senhor, meu irmão ... o Senhor Sudara quer subir de novo.

- Deixe-o ... e volte ao seu posto.

Sudara entrou, ajoelhou-se e curvou-se. Estava ensopado, o cabelo emaranhado de chuva. Seus ombros tremiam levemente.

- Meus... meus filhos estão... O senhor já tomou meus filhos, senhor.

Genjiko oscilou e quase caiu para a frente. Mas dominou a fraqueza e encarou o marido. - O senhor... o senhor não os matou?

Sudara meneou a cabeça e Toranaga disse com severidade: - Os seus filhos estão nos meus aposentos, no andar abaixo. Ordenei a Chano-san que fosse buscá-los depois que vocês rece bessem a ordem de vir aqui. Preciso ter certeza sobre vocês dois. Tempos infames exigem testes infames. - Tocou o sino.

- O senhor... o senhor retira a sua or... a sua ordem, senhor? - perguntou Genjiko, desesperadamente tentando manter uma fria dignidade.

- Sim. Minha ordem está retirada. Desta vez. Foi necessária para conhecer você. E o meu herdeiro.

- Obrigado, obrigado, senhor. - Sudara baixou a cabeça humildemente.

A porta interna se abriu. - Chano-san, traga meus netos aqui um instante - disse Toranaga.

Logo três mães adotivas em trajes escuros e a ama de leite trouxeram as crianças. As meninas tinham quatro, três e dois anos, e o filho recém-nascido, com algumas semanas, estava adorme cido nos braços da ama. Todas as meninas usavam quimonos escarlates com fitas escarlates no cabelo. As mães adotivas ajoelharam-se e curvaram-se para Toranaga; suas pupilas imitaram-nas com ar de importância e encostaram a cabeça aos tatamis - exceto a mais nova, cuja cabeça necessitou de uma ajuda gentil, embora firme.

Toranaga retribuiu a mesura gravemente. Depois, cumprido o dever, as crianças correram ao seu abraço - menos o menorzinho, que foi para os braços da mãe.

À meia-noite, Yabu atravessou empertigado o adro do torreão iluminado de archotes. O corpo de elite da guarda pessoal de Toranaga se encontrava por toda parte. A lua estava indistinta e nebulosa, e as estrelas quase invisíveis.

- Ah, Naga-san, qual é a razão disto tudo?

- Não sei, senhor, mas a ordem é que todos se dirijam à câmara de conferência. Por favor, com licença, mas deve deixar suas espadas comigo.

Yabu corou ante a inaudita quebra de etiqueta. – Você está... - Mudou de idéia, sentindo a tensão enregelante do jovem e o agitado nervosismo dos guardas próximos. - Por ordem de quem, por favor, Naga-san?

- De meu pai, senhor. Sinto muito, o senhor pode não comparecer à reunião, se quiser, atas tenho que preveni-lo de que a ordem é para o senhor se apresentar sem espadas e, sinto mui to, é assim que vai ser. Por favor, desculpe-me, mas não tenho escolha.

Yabu viu a pilha de espadas já ao abrigo da guarita ao lado do imenso portão principal. Ponderou os riscos de uma recusa e achou-os descomunais. Relutantemente, entregou suas armas. Naga curvou-se polidamente, igualmente embaraçado ao aceitálas. Yabu entrou. A sala imensa tinha seteira, chão de pedras e traves de madeira.

Logo estavam reunidos os cinqüenta generais mais velhos, vinte e três conselheiros, e sete daimios amistosos de províncias menores do norte. Estavam todos excitados e desconfortavelmente impacientes.

- O que é isto tudo, afinal? - perguntou Yabu, carrancudo, enquanto tomava o seu lugar.

Um general deu de ombros. - Provavelmente é por causa da viagem para Osaka.

Outro olhou em torno esperançosamente: - Talvez seja uma mudança de plano, neh? Ele vai ordenar Céu ...

- Sinto muito, mas o senhor está com a cabeça nas nuvens. Ele está decidido. Nosso senhor está decidido ... É Osaka e nada mais! Ei, Yabu-sama, quando chegou aqui?

- Ontem. Fiquei enfiado numa imunda aldeiazinha de pesca chamada Yokohama durante mais de duas semanas, ao sul daqui, com as minhas tropas. O porto é ótimo, mas os percevejos! Mos quitos fedorentos e percevejos... nunca foram tão ruins em Izu. - Está a par de todas as novidades?

- Quer dizer, de todas as más novidades? O deslocamento ainda será dentro de seis dias, neh?

- Sim, terrível. Vergonhoso!

- É verdade, mas esta noite é pior -- disse outro general, severamente. - Nunca estive sem espadas antes. Nunca.

- É um insulto -- disse Yabu deliberadamente. Todos os que lhe estavam próximos o olharam.

- Concordo - retrucou o General Kiyoshio, quebrando o silêncio. Serata Kiyoshio era o grisalho e rijo comandante do Sétimo Exército. - Nunca estive sem espadas em público antes.

Faz-me sentir como um mercador fedorento! Acho... iiiih, ordens são ordens, mas algumas não deviam ser dadas.

- Tem toda a razão - disse alguém. - O que o velho Punho de Aço teria feito se estivesse aqui?

- Teria rasgado o ventre antes de entregar as suas espadas! Teria feito isso esta noite, no adro! - disse um jovem. Era Serata Tomo, o filho mais velho do general, segundo em comando do Quarto Exército. - Gostaria de que Punho de Aço estivesse aqui! Poderia entender ... teria aberto o ventre antes.

- Considerei isso. - O General Kiyoshio limpou a garganta asperamente. - Alguém tem que ser responsável... e cumprir o seu dever! Alguém tem que assinalar que ser suserano significa responsabilidade e dever!

- Sinto muito, mas é melhor o senhor ter cuidado com a língua - advertiu Yabu.

- Para que serve uma língua na boca de um samurai se ele é proibido de ser samurai?

- Para nada - resmungou Isamu, um velho conselheiro. - Concordo. Melhor estar morto.

- Sinto muito, Isamu-san, mas esse é o nosso futuro imediato de qualquer modo - disse o jovem Serata Tomo. - Somos pombos empalados para um certo falcão desonrado!

- Por favor, calem-se! - disse Yabu, dissimulando a própria satisfação. E acrescentou cuidadosamente: - Ele é o nosso suserano e, até que o Senhor Sudara ou o conselho assuma decla radamente a responsabilidade, continua sendo o suserano e deve ser obedecido. Neh?

O General Kiyoshio estudou-o, a mão inconscientemente tateando à procura do punho da espada. - O que foi que ouviu, Yabu-sama?

- Nada.

- Buntaro-san disse que. . . - começou o conselheiro.

O General Kiyoshio interrompeu: - Por favor, com licença, Isamu-san, mas o que o General Buntaro disse ou o que não disse não tem importância. O que Yabu-sama disse é verdade. Um suserano é um suserano. Ainda assim, um samurai tem direitos, um vassalo tem direitos. Mesmo daimios. Neh?

Yabu retribuiu-lhe o olhar, calculando a profundidade daquele convite. - Izu é província do Senhor Toranaga. Não sou mais daimio de Izu, apenas a governo por ele. - Correu os olhos pela sala enorme. - Estão todos aqui, neh?

- Menos o Senhor Noboru - disse um general, meneio nando o filho mais velho de Toranaga, que contava com aversão generalizada.

- Sim. Mas dá na mesma e não tem importância, general, a doença chinesa logo dará cabo dele e estaremos livres para sempre de seu humor péssimo - disse alguém.

- E do mau cheiro. - Quando vai voltar?

- Quem sabe? Nem sabemos por que Toranaga-sama o mandou para o norte. É melhor que fique lá, neh?

- Se o senhor tivesse essa doença, seria tão mal-humorado quanto ele, neh?

- Sim, Yabu-san. Sim, seria. É uma pena que ele seja sifilítico, é um bom general ... melhor do que o Peixe Frio - acrescentou o General Kiyoshio, usando o apelido particular de Sudara.

- Iiiiih - assobiou o conselheiro. - Há demônios no ar esta noite para fazê-lo tão descuidado com é o saquê?

- Talvez seja a doença chinesa Kiyoshio com uma risada amarga.

- Buda me proteja disso! - disse Yabu. - o Senhor Toranaga mudasse de idéia sobre Osaka! - Eu rasgaria o ventre se isso o convencesse jovem.

- Sem ofensa, meu filho, mas você está nuvens. Ele nunca mudará.

- Sim, Pai. Mas simplesmente não o - Vamos todos com ele? No mesmo guntou Yabu um instante depois.

Isamu, o velho conselheiro, disse: - Sim. Devemos ir como escolta. Com dois mil homens com equipamento cerimonial completo e toda a pompa. Vamos levar trinta dias para chegar lá. Só nos restam seis.

- Isso não neral Kiyoshio.

Yabu não respondeu. Não havia necessidade. O general solicitava uma resposta. Mergulharam todos nos próprios pensamentos.

Uma porta lateral se abriu. Toranaga entrou. Sudara seguiu-o. Todos se curvaram rigidamente. Toranaga retribuiu e se sentou à frente deles, Sudara, na qualidade de herdeiro presuntivo, ligeiramente à sua frente, também encarando os demais. Naga entrou pela porta principal e fechou-a.

Apenas Toranaga usava espadas.

- Foi relatado que alguns dos senhores falam em traição, pensam em traição e planejam traição - disse friamente. Ninguém respondeu ou se moveu. Lentamente, implacavelmente, Toranaga olhou rosto a rosto.

Ainda nenhum movimento. Então o General Kiyoshio falou: - Posso respeitosamente perguntar, senhor, o que quer dizer com "traição"?

- Todo questionamento de uma ordem, de uma decisão, de uma posição de um suserano, em qualquer momento, é traição - revidou Toranaga com violência.

As costas do general se enrijeceram. - Então sou culpado de traição.

- Então saia e cometa seppuku imediatamente.

- Farei isso, senhor - disse o soldado orgulhosamente -, mas antes reivindicarei o direito de livre expressão diante dos seus leais vassalos, oficiais e tons ...

- O senhor perdeu todos os seus direitos!

- Muito bem. Então reivindico-o como desejo de morte, na qualidade de hatamoto, e em troca de vinte e oito anos de serviço leal!

- Exponha-o rapidamente.

- Farei isso, senhor - respondeu gelidamente o General Kiyoshio. - Peço para dizer, primeiro: ir a Osaka e curvar-se ao camponês Ishido é traição contra a sua honra, a honra do seu clã, a honra dos seus fiéis vassalos, sua herança especial, e totalmente contra o bushido. Segundo: eu o acuso dessa traição e digo que em conseqüência o senhor perdeu o seu direito de ser nosso suserano. Terceiro: solicito que o senhor imediatamente abdique em favor do Senhor Sudara e honrosamente parta desta vida... ou raspe a cabeça e se retire para um mosteiro, o que preferir.

O general curvou-se rigidamente, depois sentou-se de cócoras. Todo mundo esperava, quase não respirando, agora que o inacreditável se tornara uma realidade.

Abruptamente Toranaga sibilou: - O que está esperando? O General Kiyoshio sustentou-lhe o olhar. - Nada, senhor. Por favor, com licença. - O filho dele começou a se levantar. - Não. Ordeno-lhe que fique aqui! - disse ele.

O general curvou-se uma última vez para Toranaga, levantou-se e saiu com imensa dignidade. Alguns se mexeram nervosamente e um burburinho percorreu a sala, mas a aspereza de Toranaga dominou de novo: - Há mais alguém que admita traição? Mais alguém que ouse quebrar o bushido, mais alguém que ouse acusar seu suserano de traição?

- Por favor, com licença, senhor - disse calmamente Isamu, o velho conselheiro. - Mas lamento dizer que se o senhor for a Osaka, será traição contra a sua herança.

- No dia em que eu for a Osaka você partirá desta terra. O homem grisalho curvou-se polidamente. - Sim, senhor. Toranaga os examinou. Sem piedade. Alguém mudou de posição, apreensivo, e seus olhos saltaram para cima dele. O samurai, um guerreiro que anos antes perdera a vontade de combater e raspara a cabeça para se tornar monge budista e agora era membro da administração civil de Toranaga, não disse nada, quase definhando com o medo evidente que tentava desesperadamente ocultar.

- Do que está com medo, Numata-san?

- De nada, senhor - disse o homem, de olhos - Bom. Então vá e cometa veppuku, porque é roso e o seu medo é um mau cheiro infeccioso.

O homem choramingou e saiu aos tropeções. O pavor nava-os a todos agora. Toranaga observava. E esperava.

O ar tornou-se opressivo, o leve crepitar das chamas archotes parecia estranhamente alto. Então, sabendo que dever e responsabilidade, Sudara voltou-se e curvou-se.

favor, senhor, posso respeitosamente fazer uma - Que declaração?

- Senhor, acredito que não haja e que não haverá mais trai ...

- Não compartilho a sua opinião. - Por favor, com licença, senhor, mais... mais traição aqui, sabe que lhe obedecerei. Todos obedeceremos. Visamos apenas ao melhor para o senhor... - O melhor é a minha decisão. O que eu decido é melhor. Desamparado, Sudara curvou-se em aquiescência e ficou em silêncio. Toranaga não desviou os olhos dele. O olhar era impiedoso. - Você não é mais o meu herdeiro.

Sudara empalideceu. Então Toranaga esfacelou a sala: - Eu sou o suserano aqui.

Esperou um momento, depois, luto, levantou-se e arrogantemente A porta fechou-se atrás dele. Um grande suspiro percorreu a sala. Mãos buscaram punhos de espadas impotentemente. Mas ninguém deixou o seu lugar.

ouvi do nosso comandante

Chefe - começou Sudara finalmente - que o Senhor Hiro-matsu estará aqui dentro de poucos dias. Eu ... conversarei com ele. Fiquem em silêncio, tenham paciência, sejam leais ao nosso suserano. Vamos agora, e prestemos nossos respeitos ao General Serata Kiyoshio...

Toranaga estava subindo as escadas, uma grande solidão sobre ele, seus passos ecoando no vazio da torre. Perto do topo, parou e se apoiou momentaneamente na parede, a respiração pesada. A dor estava agarrando-lhe o peito de novo e ele tentou abrandá-la esfregando. - É só falta de exercício - murmurou. - É só isso, falta de exercício.

Continuou. Sabia que estava em grande perigo. Traição e medo eram coisas perigosas, e ambas tinham que ser cauterizadas sem piedade no momento em que aparecessem. Ainda assim,

nunca se podia ter certeza de que estavam erradicadas. O combate em que estava empenhado não era um jogo de criança. O fraco tinha que ser alimento do forte, o forte títere do muito forte. Se Sudara publicamente lhe reivindicasse o lugar, ele estaria impotente para impedir. Até que Zataki respondesse, tinha que esperar.

Toranaga fechou e trancou sua porta e caminhou para uma janela. Embaixo, podia ver seus generais e conselheiros silenciosamente escoando para suas casas, fora dos muros do torreão.

Além dos muros do castelo, a cidade numa escuridão quase total. Acima, a lua estava pálida e enevoada. Fazia uma noite tristonha, sombria. E, parecia-lhe, a desgraça corria os céus.

 

                                                                               CONTINUA  

 

                      

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