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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SO O VENTO SABE RESPOSTA / J. M. Simmel
SO O VENTO SABE RESPOSTA / J. M. Simmel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Constitui-se como palco das ações deste romance, principalmente, a localidade de Cannes e seus arredores. Tais ações desenrolam-se nos hotéis, iates, cassinos, casas comerciais, restaurantes, bem como em diversos outros locais daquele ambiente. Um círculo de amáveis pessoas que ali habita e trabalha toma parte nas principais cenas do romance. Tais pessoas deram-me expressa autorização para tal fim, per-mitindo-me citá-las nominalmente. Neste meu romance, além do citado círculo, apresenta-se paralelamente um outro, de pessoas criadas no plano da ficção. Fictícias são todas as circunstâncias e situações abarcadas pelo enredo da obra. Aliás, não passa de mera coincidência qualquer semelhança com acontecimentos ou instituições que realmente existam, bem como, em particular, com situações e circunstâncias surgidas durante a crise monetária, envolvendo organizações financeiras multinacionais ou pessoas figurantes no mencionado segundo círculo, vivas ou mortas.

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O jovem brandiu um pedaço comprido da grossa corda que servia de cabo, fazendo-o girar por cima da cabeça a fim de arremessá-lo em seguida para o velho que, com destreza e habilidade, o pegou, começando a puxar com força. O barco a motor, dirigido por um rapaz que nos transportara, a mim e Angela, do iate até o cais, oscilava suavemente com o movimento das ondas e deslizava, agora, para perto da escada construída na borda de um rochoso penhasco, na extremidade sudoeste de Cap d'Antibes. O velho permanecia de pé num dos degraus da escada, já atingido pela água. O mar, nesse ponto, tinha uma tonalidade azul-escura e a água era tão clara que eu podia distinguir perfeitamente, nas profundezas, os fragmentos de rochedo e os amontoados de plantas submarinas. Eu via cardumes de diminutos peixinhos que, aos poucos, iam se dispersando.
O velho já tinha puxado o barco para bem perto da escada. Trajava uma calça de linho de cor já desbotada, cuja barra, bem como seus pés descalços, ficava dentro da água. Também sua camisa estava esmaecida. Um chapéu de abas largas cobria-lhe o crânio macilento.
Na verdade, esse pobre velho tinha um aspecto cada-vérico e parecia já desiludido da vida. A pele dos pés, dos braços, das mãos e do rosto tinha a aparência de um frágil pergaminho. Ele devia ter adquirido, desde a infância, o hábito de lidar na água, quer suportando o sol abrasador, quer enfrentando a fúria dos ventos. Seu semblante irradiava bondade e tinha um aspecto amável. Com as maçãs do rosto bem salientes, ele sorria para nós, apenas com os olhos e não com a boca. Seus olhos eram da mesma cor azul-escura do mar. Ele não podia nos sorrir com a boca, pois, tendo de empregar um esforço enorme para puxar a corda e manter o barco imóvel, tinha de conservá-la fechada.
Tratava-se certamente de um homem muito idoso, mas que ainda tinha ânimo para continuar trabalhando.
Com desembaraço e rapidez, o rapaz pulou sobre um dos degraus. Chamava-se Pierre e era o segundo-piloto do iate que ficara ancorado longe do cais. Pierre, como todos nós, também estava descalço. Teria, quando muito, vinte e um anos de idade. O capitão chamava-se Max e tinha vinte e oito anos. Pierre conhecia o velho que puxava o barco, pois, nas suas conversas, se tratavam intimamente pelo primeiro nome. Entreguei a Pierre os meus sapatos e os de Angela. Levantei-me, Pierre deu-me a mão e, então, pulei do barco para a escada. De maneira idêntica, estendi a mão a Angela e ela também pulou. O velho nos saudou:
- Bonjour, madamel Bonjour, monsieur! Que belíssimo dia hoje, não é verdade?
- Sim, muito lindo - respondi.
- Mas também muito quente.
- É verdade. Está fazendo um calor brabo.
Falávamos em francês. Angela, tendo notado um sotaque característico na pronúncia do velho, perguntou-lhe:
- O senhor é de Marselha, não é?
- De Marselha, madame, evidentemente - respondeu o velho enquanto Pierre lhe tirava da mão a ponta da corda e pulava novamente para o barco. Agora o velho já nos podia sorrir não somente com os olhos mas também com a boca, deixando à mostra sua magnífica dentadura postiça, com os dentes todos do mesmo tamanho. Procurei no bolso da minha calça uma nota de dez francos para dar-lhe de gorjeta. Tendo notado meu movimento, o velho foi logo dizendo :
- Não se preocupe, monsieur. Naturalmente os senhores virão de novo a passeio noutra ocasião... então, se é que o senhor quer mesmo fazer esta gentileza... mas não é preciso. Absolutamente, não há necessidade de nenhuma gorjeta.
Angela retrucou:
- E evidente que há necessidade. Nós todos precisamos viver. Por quanto tempo o senhor fica trabalhando aqui durante o dia?
- Desde cedo até meia-noite, madame. E, com muita freqüência, fico até mais tarde, pois quase sempre há pessoas que só regressam dos seus passeios depois da meia-noite. Durmo lá naquela cabana verde.
No local para onde o velho apontou existiam muitos chalés de madeira, pequenos e de aspecto miserável, localizados entre moitas de arbustos espinhentos e de mato bem crescido. Eu sempre ouvia dizer que esses chalés eram alugados a casais que quisessem fazer amor... E sempre aparecia um grande número desses casais, tanto assim que se tornava muito difícil encontrar vago um chalé. Contudo, o velho, pelo que deu a entender, tinha um deles.
- Durante o dia, quando o sol está muito quente, durmo aqui mesmo.
Depois de uma pausa, piscando brejeiramente um olho, prosseguiu:
- Com esse calor a gente não deve beber... mas há momentos em que não me sinto muito bem, os senhores sabem, e tenho que tomar um ou dois goles. Depois fico dormindo até que alguém me chame.
- Que é que o senhor bebe? - perguntou Angela.
- Cerveja, madame. É uma bebida muito boa.
- Oh, sim - concordou Angela, dando-lhe também uma piscadinha e sorrindo-lhe.
Pierre já havia feito arrancar o barco, que ao partir descreveu na água uma grande curva. Dessa vez fora buscar os Trabaud e o cachorro deles, que estavam no iate. O barco não possuía espaço suficiente para transportar todos nós. O iate pertencia aos Trabaud e tinha o nome de Shalimar.
Angela caminhava quase escorregando, com os seus sapatos. Também calcei os meus e dei uma olhadela no relógio de pulso: faltavam vinte minutos para as duas da tarde e... a partir deste momento eu só teria uma hora e onze minutos de vida. Pergunta Angela ao velho:
- Que fazia o senhor em Marselha?
- Vivia com minha mulher. Mas tinha que ficar continuamente fora de casa, por causa das minhas viagens. Às vezes, durante meses a fio. Eu era o capitão de um navio cargueiro. Teresa não era originária de Marselha. Era da região norte, de Limoges. Contudo, sentia-se muito bem em Marselha... pelo menos, no início.
O velho - como todos os velhos - era tagarela e continuou narrando a sua vida:
- Minha mulher era muito bonita. Lamentavelmente era muito mais jovem do que eu. De certa feita, quando regressei de uma viagem, ela não estava mais em casa. Deixou-me apenas uma carta.
O velho, a essa altura, puxando por um barbante bem comprido, tirou do mar uma garrafa de cerveja. Abriu-a e limpou o gargalo com o dorso da mão, oferecendo-a para Angela.
- Não, agradeço-lhe a gentileza. Com este calor não posso beber.
- E o senhor?
- Também não, obrigado.
O velho levou o gargalo aos lábios e tomou um gole bem grande. Depois continuou:
- O sujeito que fugiu com minha mulher era um granjeiro da região de Grasse, sabem? Eu o conhecia. Ele tinha ótima aparência... e era da mesma idade de Teresa. Na carta ela me explicou que amava o tal indivíduo e que ele também a amava. No fim, pedia que eu a perdoasse.
- E o senhor a perdoou? - interroga Angela.
- Eu era muito mais velho do que ela - respondeu, enquanto escondia novamente a garrafa no mar.
Angela encarou-o.
- O que a senhora acha? Deveria tê-la perdoado? Angela, sem responder, continuou fitando-o fixamente.
- Bem... eu não a perdoei. E jamais a perdoarei. Eu a odeio.
- Oh, não! - retrucou Angela, dando certa ênfase às suas palavras. - Se a odiasse, de fato, o senhor a teria perdoado e esquecido há muito tempo.
- Madame, até hoje ninguém me falou assim! - exclamou o velho demonstrando admiração pelas palavras de Angela. - Na verdade, o qúe a senhora afirma está em consonância com o meu sentimento íntimo: nunca pude odiar Teresa. Sempre a amei e continuo a amá-la, mesmo hoje, embora já não saiba se ela está viva ou se já morreu. Mas isso não tem nenhuma importância, a senhora não acha?
- Realmente, não tem nenhuma importância. Depois, dirigindo-se a mim, o velho diz:
- Monsieur, dou-lhe meus parabéns! Esta dama tem um grande coração. Que magnífica mulher! ("Une chie fetnme!", disse ele.)
Angela fitou-me sem parar de sorrir e segurou minha mão.
- Foi depois que ela me abandonou que comecei a beber. Durante um longo tempo tudo correu bem.
Depois veio a infelicidade. Perdi minha patente. Deixei de ser capitão da marinha mercante, não mais podendo trabalhar em nenhum navio.
- É horrível! - comenta Angela.
- Menos horrível do que a primeira desgraça. Muito menos horrível, creia-me, madame. Existem muitos outros tipos de trabalho. Tenho trabalhado por toda esta costa marítima, desde Marselha até Menton. Quando eu não podia dar conta de algum trabalho pesado, procurava um outro mais fácil, como, por exemplo, este aqui. Sinto-me muito feliz nesta localidade. Em Cap d'Antibes tenho muitos amigos... Só que quando começo a pensar em Teresa...
- Sim... - emendou Angela.
- ... Mas já não penso em Teresa. Nunca mais vou pensar nela. Nunca mais! Já faz muito tempo que ela saiu da minha mente.
O pobre velho, agora, senta-se sobre um degrau da escada e começa a olhar fixamente para a mão descarnada, como que absorto em profunda meditação.
Angela puxou-me, dizendo:
- Venha! Ele nem sequer está notando a nossa presença. Em pensamento, agora, ele está junto de Teresa.
Vindas de longe, ouvi as batidas do relógio da torre de uma igreja. Faltavam, agora, quinze para as duas.
- Temos que nos apressar - disse Angela.
Um ao lado do outro, fomos subindo os degraus da escada, que se estendia até o começo do caminho que ligava o local de atracação ao Restaurant Éden Roc, também pertencente ao Hotel du Cap. O restaurante estava situado a apenas algumas centenas de metros do ponto de atracação. Passei a ver, então, muitas pessoas que tomavam banho de sol sobre o terraço do rochedo, abaixo do restaurante.
Inopinadamente, vieram-me à lembrança Liz Taylor, Richard Burton, Juan Carlos, o pretendente do trono espanhol, o exilado rei da Grécia com sua mulher, muitos príncipes, princesas, condes e barões. Minha memória começava a evocar, também, a mesa em que, sentados naquele terraço, tomavam seus aperitivos os milionários americanos do aço, bem como Curd Jurgens, Henry Kissinger, a Begun, isto é, todas aquelas pessoas com as quais eu me havia encontrado no Éden Roc. Bruscamente, tive a impressão de que deveria estar ficando louco por ter exigido que o meu encontro com aquele homem se efetuasse no Éden Roc, sem nenhuma razão plausível a não ser o fato de eu já haver estado ali gozando do convívio de toda aquela gente rica e famosa.
Se Angela não estivesse ao meu lado, eu teria, ante o inesperado medo que repentinamente me invadiu, retrocedido logo ou até mesmo fugido nem sei para onde, pois, na verdade, para mim não mais haveria nenhuma possibilidade de fuga, depois de tudo o que aconteceu, depois de tudo o que eu havia feito. E esse medo surgiu precisamente quando comecei a refletir sobre o meu plano.
Mas Angela, felizmente, estava ao meu lado, segurando minha mão. Desse modo, fomos seguindo por aquele caminho, passando entre laranjeiras, plantas cítricas, eucaliptos, pinheiros europeus, palmeiras, roseiras, canteiros de cravos e moitas de arbustos com as folhas amarelecidas. Eu caminhava ligeiro. Em seguida, com grande admiração, comecei a notar que meu pé esquerdo não estava doendo absolutamente nada. Por que será que ele não dói agora, se a bordo do Shalimar eu sentia uma dor quase insuportável? Teria a dor desaparecido por causa do meu nervosismo, ou teria havido algum erro no diagnóstico, de modo que eu talvez ainda pudesse escapar dessa?
"Não!", disse comigo mesmo. "Não houve erro algum. Precisa acreditar no que lhe disse o Dr. Joubert, do Hôpital des Broussailles. Ele é um insigne e destacado médico. Você mesmo quis ouvir toda a verdade. Agora a conhece. Portanto, deve suportá-la. Bem sabe, meu velho, que essa verdade é muito dura de agüentar, mas precisa decidir-se a suportá-la."
De que eu estava decidido a isso não havia dúvida. Não era com outro intuito que eu me encontrava nesse local. Eu disse a Angela:
- Lá está Marcel.
- É mesmo - respondeu-me ela.
Falávamos em alemão, muito embora Angela Delpierre fosse francesa e eu dominasse muito bem o idioma francês. Surpreendia-se, contudo, na sua pronúncia, aquele inconfundível sotaque estrangeiro, mas ela falava fluentemente.
- Seu pé está doendo?
- Não - respondi-lhe com firmeza. Mas menti, pois, naquele momento, já havia começado, embora menos forte, aquela dorzinha importuna que eu bem conhecia.
- Não, já não estou sentindo dor alguma, Angela. Mais tarde, sem falta, terei que dar os dez francos de gorjeta àquele velho.
Ela parou bruscamente e me abraçou. Comprimiu fortemente o corpo contra o meu e beijou minha boca, cheia de ternura. Então, notei que lágrimas começavam a brotar dos seus grandes olhos castanhos.
- Que é que você tem, Angela?
- Nada. Absolutamente nada, Robert.
- Contudo... Acho que você não está bem.
Ela encostou a face na minha e murmurou com voz meiga: "Eu vos agradeço, meu Deus. Agradeço-vos por ter podido viver momentos como estes... Momentos tão maravilhosos! Suplico-vos, meu Deus: protegei-nos a ambos. Farei o que vós mandardes, mas não deixeis de proteger-nos, eu vos imploro!"
Comecei a pensar em tudo o que havia acontecido, em tudo o que eu havia feito, bem como no que ainda iria fazer e no que estava na iminência de suceder. Mas senti satisfação pelo fato de Angela nesse momento não ter observado o meu semblante. À nossa frente agora, do lado direito, surge a estrada toda coberta de saibro e pedregulho. Nos lados, viam-se cedros e palmeiras. As bordas dessa estrada achavam-se demarcadas por uma cerca de espessas sebes bem tosadas e podadas. Divisava-se, lá no fundo, com a aparência de um castelo de frontíspício amarelo, o Hotel du Cap, circundado de jardins floridos. Angela comprimia-se cada vez mais contra mim e eu passei a sentir o perfume da sua pele tão suave e cheia de frescor. E, então, comecei a imaginar que eu poderia justificar com o nosso amor tudo, tudo o que eu havia feito (até mesmo as ações mais terríveis) perante Deus, ao qual Angela havia dirigido a sua súplica, e que Ele me perdoaria, pois é inerente à sua ação divina compreender as justificativas e perdoar tudo. Eu sentia as pal-pitações do coração de Angela.
Capítulo 2
- Bonjour, Marcel - disse o papagaio. Era um papagaio que se chamava a si mesmo de Marcel.
Ficamos parados em frente da sua gaiola bem ampla que se encontrava à beira dessa estrada coberta de saibro e de pedregulho por onde se tinha que passar para ir ao Res-taurant Éden Roc. A dor, no meu pé esquerdo, se tornara um pouco mais forte. Fazia muito calor, um calor insuportável nessa tarde do dia 6 de julho de 1972, uma quinta-reira. Havia anos que eu quase não podia suportar o calor. O suor escorria pelo meu corpo embora eu estivesse usando uma camisa azul bem leve e uma calça branca.
Comecei a me sentir fraco, como que combalido e tonto, mas sabia perfeitamente que todo esse mal-estar provinha do calor. E não tinha outra alternativa senão esperar até que aparecesse o homem com o qual eu havia marcado encontro.
Lancei os olhos para o mar, lá embaixo, e vi dezenas de iates ancorados, alguns deles bem grandes. Ao lado de iates que ostentavam a bandeira francesa, viam-se outros com bandeiras alemãs, inglesas, italianas, suíças, belgas, etc.
Claude e Pasquale Trabaud pulavam nesse momento do seu iate para o barco a motor. Um marinheiro os auxiliava. O cachorro deles ainda se encontrava no convés, correndo, irrequieto, de um lado para o outro. Não soprava nenhuma brisa. Virei-me para a direita e passei a contemplar, bem ao longe, o porto pintado de várias cores e as casas de Juan-les-Pins. Através de uma esfu-maçada e vaporosa atmosfera, como que vitrificada pela intensa radiação solar, consegui divisar, embora sem muita nitidez, a grande enseada, tão adentrada para o mar que parecia atingir os limites do horizonte. Vislumbrei, também, o antigo e o novo local de Port Canto, de Cannes, bem como as palmeiras que margeiam a Croisette, atrás da qual, todo pintado de branco, ficava o hotel. Porém, tudo o que eu via parecia-me fantástico e sem contornos definidos: a cidade com seus edifícios, as villas e casas residenciais espalhadas entre enormes jardins, numa encosta íngreme que se estendia até a Super-Cannes. À direita, a leste de Cannes, achava-se o bairro La Californie, onde Angela morava. Podia reconhecer cada uma daquelas casas e edificações; entretanto, preocupava-me apenas em observar minha casa, meu lar, que estava bem à minha frente. Pois Angela e sua casa eram tudo o que eu podia citar como sendo de minha propriedade... eram tudo o que eu possuía neste mundo. Tudo isso e mais quinze milhões de marcos alemães. O resto do que eu precisava viria agora.
- Beautiful lady - disse Marcel, fitando Angela com seus olhos brilhantes que pareciam dois botõezinhos. Eu também olhei para Angela. Ela não era somente bonita: era a mais bela mulher que vi em minha vida! Angela Delpierre, trinta e quatro anos, tinha uma estatura quase igual à minha. Eu tinha quarenta e oito anos e essa circunstância, no princípio, ocasionou-me preocupação e martírio. Mas, agora, para mim essa diferença de idade não tinha a mínima importância.
Angela possuía um corpo maravilhoso. Aliás, em Angela tudo era perfeito. Sempre que tivesse algumas horas de folga, ela procurava apanhar sol e ar, a fim de embelezar a sua pele, que já havia adquirido um tom amorenado. Estava completamente sem pintura e não se notava nem vestígio de perfume no seu corpo. Estava exatamente da maneira que mais me agradava: sem nenhuma maquiagem. No anular da mão esquerda, usava um anel incrustado de pedrinhas, as quais, refletindo ao sol, luziam com as cores do arco-íris. Disse-me ela:
- Já passam três minutos das duas. O tal homem está atrasado.
- Mas ele virá. Dentro de pouco tempo, com toda a certeza, ele estará aqui. Não se preocupe, ele terá que vir. O próprio Brandenburg foi quem me anunciou a vinda dele. Além disso, Brandenburg codificou pessoalmente, em termos cifrados, as instruções que me deverão ser transmitidas e entregou a esse homem o dinheiro destinado a pagar aos meus informantes.
- Mas por que você tem que se encontrar com esse homem precisamente aqui, neste local?
- Eu já lhe expliquei isso, Angela. Depois do que sucedeu, queremos evitar todo e qualquer risco. Neste local, em pleno dia, com tantas pessoas andando por aí, exclui-se a possibilidade de algum crime. Brandenburg quer sempre agir com segurança. E eu também. Não quero que me aconteça algo, como já aconteceu a outros.
- Oh, meu Deus! - exclamou Angela. - Se algo acontecer a você. .. Se você morrer, eu também terminarei com a minha vida. Parece que as minhas palavras soam de maneira muito patética, não é verdade? Mas você bem sabe que elas são sinceras.
- Sim, eu sei, Angela.
- Sem você eu não poderei mais viver.
- E eu também não poderei mais viver sem você - respondi-lhe e, muito preocupado, comecei a refletir sobre as últimas palavras de Angela, imaginando como seria para ela a vida sem a minha presença. E se ela fizer realmente o que disse? Espero que não. Já preparei tudo para que ela possa viver folgadamente caso eu venha a faltar.
- Esse homem vai trazer-lhe muito dinheiro?
- Sim, muito dinheiro. Quando a gente sabe de algo importante, exige muito dinheiro.
Dizendo isso, eu estava lhe mentindo novamente. Mas não me restava outra alternativa. A verdade sobre esse encontro diante da gaiola de Marcel, Angela jamais poderia saber. Eu havia realmente combinado o encontro com um homem, porém não com um mensageiro enviado pelo meu chefe oh, não! Ele deveria trazer dinheiro... sim, muito dinheiro... Mas, por enquanto, tudo está apenas no começo... Muitas coisas mais virão depois.
Fui eu mesmo que exigi assim. Eu já não era o mesmo homem que havia sido até dois meses atrás. Sempre lidando com patifes, tornei-me eu próprio um grande patife. Mas Angela não fazia a mínima idéia dessa minha transformação. Pouco me importava que eu me tornasse semelhante àqueles outros. Só uma pessoa tinha significação para mim neste mundo sujo: Angela! Jamais amei outra mulher como a ela. Por sua vez, ela nunca na vida amou tanto outro homem como a mim. Esse relato deve caracterizar-se como uma garantia de vida para a mulher que eu amo. Por isso também peço a Deus a graça de ser bem sucedido em registrar tudo o que tenho sentido, percebido e notado. Não há que duvidar da habilidade do perito. E, para o bem de Angela, eu posso fazer tudo. Trata-se apenas de uma questão de tempo.
Revelando já um certo quê de impaciência, Angela pergunta-me:
- Será que não aconteceu algo a esse homem?
Nada lhe aconteceu. Ele virá. Terá que vir, de qualquer maneira.
Entretanto, dominado pelo medo de perder o meu au-tocontrole, com um movimento indeciso tirei do bolsinho da minha camisa um maço de cigarros. Eu não devia fumar, mas que poderia significar para mim, nessas circunstâncias, o cumprimento de tal prescrição? Agora, conhecendo já a última verdade, poderia fazer tudo o que quisesse. Contudo, a fumaça, ao ser tragada, sufocou-me, fazendo-me tossir.
- Smoke too much - disse Marcel.
- Ele tem razão - concluiu Angela.
- Este é o primeiro cigarro que fumo hoje - respondi, embora pouco me importasse que eu tivesse fumado centenas deles.
- Mas você prometeu que não iria mais fumar. Atirei fora o cigarro sobre o pedregulho do caminho, pisando-o.
- Obrigada! - disse Angela.
Em seguida colocou o braço sobre meus ombros.
Só o nosso contato me dava ainda algum resquício de felicidade, fazendo com que eu esquecesse tudo: o passado, o presente e até mesmo o futuro que me esperava.
- Os Trabaud já vêm chegando - disse Angela. Realmente, o barco, descrevendo um grande círculo, ia
se aproximando do ponto de atracação. Nesse instante cheguei até a considerar uma felicidade ter marcado encontro com um mensageiro impontual, pois havia pedido a Claude Trabaud que, despistando da maneira mais disfarçada possível, tirasse algumas fotos minhas e do mensageiro. Claude possuía uma ótima máquina fotográfica e eu queria obter um retrato do sujeito junto comigo, focando especialmente o momento da entrega do dinheiro. "Tudo sairá bem", pensei com meus botões.
Lá embaixo parou um barco a motor que transportava três monges usando hábitos religiosos brancos. Eu os conhecia. Eles moravam no convento da ordem cisterciense, localizado na ilha Saint-Honorat. Existe por lá, também, uma outra ilha pequena: a ilha de Sainte-Margueritte. Ambas distam do continente não mais do que um quilômetro. Angela também conhecia esses monges, pois já havíamos estado na ilha onde eles habitavam. Ela, cumprimentando-os, fez um respeitoso aceno, a que eles corresponderam. No convento eles fabricavam uma espécie de licor a que davam o nome de Lerina.
- Esses monges estão trazendo Lerina para o Éden Roc. Eles já são fornecedores habituais da casa - comentou Angela. Depois, notando que eu estava absorto, lançando meu olhar para longe, disse-me:
- Quando sairmos daqui vamos diretamente para casa, não é?
- Oh, sim, Angela! Imediatamente.
- Você tem um grande desejo de chegar a casa, não é verdade, querido?
- Sem dúvida!
- Mas o seu desejo não é maior do que o meu. Para rmm foi tão maravilhoso, tão encantador, hoje de manhã, sentir a sua presença, ter você perto de mim. Você também não achou maravilhoso?
- Encantadoramente maravilhoso!
- Quero que para você tudo seja sempre maravilhoso, Robert.
- Desejo-lhe o mesmo.
- Ah, pudesse eu agora, neste momento, sentir o contato do seu corpo... bem juntinho ao meu... Mas deixe estar, logo depois de chegarmos a casa, vamos ficar novamente como loucos... fazendo aquelas nossas loucuras.
- É verdade. Depois ficaremos conversando, ouvindo as nossas músicas prediletas e escutando as últimas notícias transmitidas pela televisão... mas tudo isso sem parar de conversar. Conversando ininterruptamente, entraremos noite adentro, até o despontar da aurora... até o dia ficar bem claro de novo.
- E se um de nós, cansado de tanto conversar, adormecer, o outro deverá despertá-lo imediatamente. Eu a você e você a mim. Vamos assumir desde já este compromisso, pense bem.
- Eu desperto você, Angela. Já tenho feito isso tantas vezes.
- Eu também não deixarei de despertá-lo. Não devemos dormir muito. Enquanto estivermos dormindo, não poderemos nos ouvir, não poderemos nos ver e não poderemos sentir reciprocamente nossos corpos. O sono se parece com a morte. Geralmente as pessoas tratam do tempo de que dispõem como se tivessem uma vida eterna. Mas ninguém neste mundo sabe realmente quanto tempo de vida ainda lhe resta: um ano, cinco anos, um minuto...
- É o que eu sempre digo a você.
- Possa eu envelhecer permanecendo sempre junto de você, Robert. E nunca, na nossa vida, deveremos pegar no sono sem antes nos reconciliarmos por qualquer discussão que porventura tenhamos tido. Se alguma vez tivermos qualquer rusga ou discussão...
- Nunca teremos uma discussão!
- Mesmo assim... talvez não por grandes motivos, mas por uma coisinha de nada. Quero dizer que, se algum dia tivermos de discutir por banalidades, nunca deixaremos de nos reconciliar imediatamente.
- Imediatamente!
- Ah, Robert, cada dia que passa é para mim um dia cheio de maravilhas. Como me sinto feliz com os seus abraços, com a sua conversa, com o meu despertar a cada manhã vendo você deitado ao meu lado!
- E continuará a ser sempre assim. Para você e para mim. Enquanto existirmos. Até exalarmos o último suspiro.
- Sim, sim, Robert!
- It's paradise - disse Marcel.
- Ele tem razão. A vida assim é um verdadeiro paraiso - exclamou Angela, beijando minha face.
- Lucky gentletnan - continuou falando Marcel.
E eu me achava feliz, realmente. Mais uma vez o papagaio tinha razão. Fazia oito semanas que eu era o homem mais feliz deste mundo. Apesar de tudo. Dirigi-me a Angela que, agora, observava os Trabaud descendo do barco no ponto de atracação.
- Eu adoro você. Se eu, neste instante, tivesse que morrer, seria o mais feliz...
Não pude terminar a frase. Algo, com uma violência terrível, bateu nas minhas costas, um pouco abaixo do ombro esquerdo. Precipitei-me para a frente, caindo no chão de terra vermelha. Foi um tiro, pensei logo. Mas eu não tinha ouvido nenhuma detonação de arma de fogo.
A única coisa de que tenho noção foi ter ouvido Angela gritar desesperadamente, mas não pude entender absolutamente nada do que ela dizia. Parecia-me bastante estranho o fato de não estar sentindo a mínima dor. Eu não podia mover-me nem dizer uma palavra sequer. Passei a ouvir, então, juntamente com a voz de Angela, muitas outras vozes de pessoas apavoradas que falavam alto.
Repentinamente, tudo ficou escuro ao meu redor. Eu tinha a sensação de estar me precipitando rapidamente, cada vez com maior velocidade, num imenso turbilhão, num verdadeiro redemoinho. Antes de ter perdido completamente a consciência ainda raciocinei: É a morte!
Era o começo da morte.
Capítulo 3
Depois, por diversas vezes recobrei a consciência, embora sem ficar completamente lúcido. Na primeira vez, o que eu vi foram os olhos castanhos de Angela, os quais, pelo seu encanto, eu jamais poderia esquecer. Angela falava coligo. Sua face estava bem junto da minha. Mesmo assim, eu não podia entender nada do que ela dizia, pois algo estava fazendo um barulho muito forte. Levou tempo até que eu pudesse compreender que esse estrondoso ruído provinha do rotor de um helicóptero. Estávamos voando. O aparelho vibrava. Encontrava-me deitado numa maça. Ao meu lado, um homem de branco segurava, bem levantada, uma garrafa da qual pendia um tubo de borracha. Aproximou-se de mim e fincou a agulha no meu braço esquerdo.
As lágrimas começaram a escorrer pela face desesperada de Angela. Seus cabelos ruivos caíam-lhe sobre a testa. Eu queria dizer algo, mas não conseguia falar. Ela se curvou .para o meu lado e encostou sua boca bem no meu ouvido. Só então pude entender o que ela dizia. Com a voz entrecortada de soluços ela exclamava:
- Robert, eu lhe peço, eu lhe suplico, não morra! Por favor, não morra! Não deixe desaparecer o seu espírito! Sou sua mulher e amo imensamente você, Robert. Pense em tudo o que ainda pretendemos fazer. Pense na nossa vida que apenas está começando. Você vai pensar em nossa vida, não é?
Eu queria responder afirmativamente com um meneio de cabeça, mas sentia a maior dificuldade até para movê-la só um pouquinho. Em seguida, completamente exausto e combalido, tive que fechar os olhos. Então comecei a perceber, como num caleidoscópio, surgindo em verdadeiro frenesi, uma avalancha de cores em profusão, de vozes e de vultos. Inicialmente tudo ficou vermelho, um vermelho fla-mante. Percebo a minha mulher Karin, com seu lindo rosto torcido, ameaçando-me com uma voz estridente: "Você, miserável covarde! Crápula! Animal ordinário! Pensa que vai escapar desta, mas está enganado! Deus vai castigá-lo, oh, sim, ele o castigará! Sádico! Sádico da alma! Demônio! Você me passou para trás, repelindo-me como um repugnante vômito, não é?"
O vermelho flamante passa a misturar-se com as tonalidades prateadas e douradas. E como que fluindo, imersa nesse mar de radiantes cores, passa por mim a visão daquela italiana deitada no chão, com um punhal cravado no seio. Vejo o meu chefe Gustav Brandenburg, com seus olhos de porco cheios de astúcia e de esperteza, queixo bem largo, em mangas de camisa, vociferando com sua voz troante: "Já é muito difícil para você, Robert! Você já está enjoado do trabalho! Você não quer mais ou já não pode mais trabalhar?" Porco! Grande porco! Ouro! Só o ouro é que significa tudo para ele. Daqui a dois anos eu completarei cinqüenta anos de idade. Até agora tenho trabalhado sem descanso. Cabe-me, portanto, o direito de gozar também um pouco de felicidade como qualquer outra pessoa. Sim, cabe-me este direito: mas será que tem de ser à custa de uma outra pessoa? O azul, aquele azul intenso das profundezas do mar, penetra, como que por um fenômeno de absorção, o próprio ouro.
O ouro, o mais ordinário dos assassinos que existem neste mundo, pois de forma alguma ele pode ser castigado! Setenta bilhões de dólares, Herr Lucas. Estamos caminhando inexoravelmente para uma catástrofe de âmbito mundial. E nada há que possamos fazer para evitá-la. Quem fala, agora, é Daniel Friese, que parece estar flutuando, todo banhado de azul. Friese, do Ministério Federal das Finanças. Os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres. Quem está afirmando isso? - É aquela velha lá na farmácia. O rotor continua fazendo ruídos estrondosos. Lentamente, aos poucos, esses ruídos se transformam em sons musicais. Eu e Angela estamos dançando no tablado do terraço do Restaurante Palm Beach. Todos os pares recuam: é que se apresenta a bandeira francesa ao lado da americana. A tonalidade laranja se torna mais intensa. Bruscamente, todas as cores explodem, transformando-se em estrelinhas e círculos que giram vertiginosamente. Verdadeira exibição pirotécnica. No brilho de todas essas luzes vejo aquele homem enforcado no banheiro. Agora, as cores começam a latejar, batendo, todas ao mesmo tempo, contra as minhas pálpebras fechadas. Quem está aí? Ah, sou eu mesmo! Bêbado, ao lado de uma mulher de cabelos pretos, com uma boca que parecia uma ferida aberta. Ela está nua e nós estamos rolando sobre sua cama. Mas quem será ela?... Quem?... Oh, Jessy, a prostituta! Em seguida tudo ficou verde. Surgem, de supetão, todas as nuanças do verde. Dois sujeitos me derrubam.
Um deles me segura enquanto o outro não pára de dar socos no meu abdômen. Estou me precipitando: Segure-me, Angela! Segure-me, por favor! Entretanto, já não vejo mais nenhuma Angela. Só percebo em redor de mim um imenso pretume. Estou perdendo de novo a consciência. E devo ter ainda só trinta e dois minutos de vida.
Depois, ao ter recobrado mais uma vez os sentidos, encontrei-me inopinadamente lançado num mar de flores: jasmins brancos e vermelhos, violetas, margaridas. O mar de rosas de Angela está na minha frente. Todo o seu jardim que se encontra sobre o telhado. Pequenas rosas de todas as cores. Ela as denomina Surprise. E cravos. Não, cravos, não! Os cravos trazem infelicidade. Eis ali o banquinho na cozinha de Angela! Ela prepara uma refeição enquanto eu, sentado no banquinho, fico a observá-la. Estamos ambos completamente nus, pois faz um calor sufocante. O suor escorre Pela minha testa. Tenho que enxugá-la constantemente com um lencinho.
O barulho do rotor. Surge agora o amarelo. Tudo está ficando cada vez mais caro. Mas o que será que está acontecendo com o dinheiro? Eu não posso compreender, meu senhor. É a velha lá na farmácia quem fala. O que ela diz faz sentido, sim: existem milhões que não podem compreender essa situação, mas há outros, uns poucos na verdade, que conhecem perfeitamente a causa. Semblantes continuam a fluir, passando por mim, completamente imersos naquele mar de cores. Um John Kilwood, bêbado, banhado de violeta. Um Malcolm Thorwell, jogador de golfe, numa espiral vermelho-rosa que gira com uma rapidez incrível. Um inexpressivo Giacomo Fabiani na mesa de roleta, totalmente inundado de uma tonalidade creme. Uma Hilde Hellmann, imóvel numa enorme cama estilo rococó, flutuando na cor de ouro que surge novamente. Por que existe a infelicidade? Por quê, meu senhor? Ah, a infelicidade não vem como a chuva, mas é provocada por aqueles que podem tirar dela algum proveito. Isso escreveu Brecht. Comunista. Maoísta. Willy Brandt é culpado de tudo. Ele também é um comunista. Todos os social-democratas são comunistas. Der Spie gel é um jornal comunista. O senhor também é comunista, Monsieur Lucas?
Confusão de vozes que se interpenetram como as cores. Tudo, nesse instante, passa a girar com mais rapidez. O nosso ambiente no L'Âge d'Or, a filial da joalheria Van Cleef e Arpeis, na Croisette. Jean Quémard e sua mulher. Algo está brilhando intensamente: o anel! Mas não é só o anel. Bruscamente, tudo começa a luzir. Eu e Angela estamos no terraço da sua casa, na parte alta de Cannes. Nós nos amamos. Mas quem está gemendo aí? - Sou eu. Castanho e amarelo. Corrida policial em La Bocca! Tiroteio com metralhadoras. O nosso cantinho, sobre o terraço do Hotel Majestic. Passo a ouvir o ruído do rotor. Cinzento. Tudo ficou banhado de cinzento. Os guindastes puxam um Chevrolet da água do velho porto. Ao volante encontra-se Alain Danon, morto, com um pequeno orifício na testa e outro, bem grande, na região occipital. Azul. Maravilhosa tonalidade azul. Aparece "nossa" igrejinha, tão pequena, no meio de um jardim silvestre. Muitas imagens. Eu e Angela acendendo velas diante de uma Madona escura. Angela rezando silenciosamente, apenas movendo os lábios. O jovem sacerdote aprestando-se para ir embora, depois de ter colocado um cestinho de verduras no bagageiro da sua motocicleta.
Reaparece o vermelho. O palácio de Hellmann. O anteparo do radar com formato de guarda-chuva. Gigantesco computador eletrônico, com as luzinhas brilhando no painel. Trapaças nos negócios. Vendas efetuadas com um lucro irrisório. Quem está rindo ali? O bar do Club Port Canto. Angela cantando para mim Blowin' in the wind. Ela canta a letra em alemão.
"Quantos caminhos existem neste mundo que são caminhos de lágrimas e de sofrimento..."
Três aparelhos de televisão acham-se ligados. Nos três vídeos aparece o vulto do locutor narrando as notícias mais recentes. A Inglaterra liberou a libra esterlina. Uma desvalorização de cerca de oito por cento. Greve geral. Bancos fechados. Um avião particular chega a Nice. Oh, sim, eu sei a quem ele pertence!
"... Quantos mares neste mundo são mares de tristeza...", prossegue Angela cantando para mim.
Um saxofone. Um punhal. Um elefante. A mancha branca no dorso da mão de Angela. Nunca amei tanto uma pessoa como estou amando você. Jamais poderei amar outra pessoa. Eu também, Angela, jamais poderei amar outra pessoa. Ei-la na cama da sua casa de Cannes. Eu, no quarto do Hotel Intercontinental, em Düsseldorf. Um avião que parte, sobrevoando minha cabeça. Quatro horas da manhã. Você é tudo o que possuo neste mundo. Faça algo! A cor branca está inundando tudo. Faça algo! Isso é pior do que um assassinato. Mas como posso impedir isso, meus senhores? Eu estou só e não tenho nenhum poder. Nós também não temos nenhum poder. Vocês mandaram embora seu perseguidor! Ei-lo ali inundado por um verde radiante. Kessler. Hager, quase se aproximando da aposentadoria. Uma das melhores pessoas...
Angela continua cantando: "Quanta desgraça terá ainda que acontecer antes que a humanidade se dê conta de todos esses males?..."
Assassinos! Assassinos é o que somos todos nós!
John Kilwood, bêbado, só consegue falar balbuciando.
Sim. Todos nós somos assassinos. Tom prateado e preto ao mesmo tempo. Meu advogado em Düsseldorf. Nesse instante, como que vislumbrado através de um meio vaporoso que turva a visão, percebo o Dr. Joubert, do Hôpital des Broussailles. Suportará a verdade, monsieur? A verdade toda? Sim? Pois então...
Continuo ouvindo a voz de Angela, cantando: "A resposta, meu amigo, só o vento sabe. Somente o vento sabe a resposta..."
Treze rosas vermelhas no quarto do meu hotel. Um envelope. Uma carta dentro dele com as palavras: "Je t'aime avec tout mon coeur et pour toute Ia vie...'" Por toda a vida!
Esta é a verdade, monsieur, que o senhor quis ouvir... Fico-lhe muito grato, Dr. Joubert...
"...Quantas crianças existem que à noite vão para a cama e não conseguem adormecer por causa da fome? A resposta, meu amigo, só o vento sabe. Somente o vento sabe a resposta", canta Angela.
"Jamais, jamais, enquanto vivermos, um abandonará o outro", dizia eu e comecei novamente a me precipitar naquele imenso turbilhão. Era horrível. Oh, é tão enorme essa patifaria que eu...
Caí fora do mundo real. Tudo acabado! Eis que finalmente chegou o fim!
Não! Vou voltar à vida mais uma vez.
Do helicóptero fui transportado de maça. Muitas pessoas de branco encontravam-se numa espécie de teto, que era o local de aterrissagem do helicóptero. Médicos. Irmãs-en-fermeiras. Angela. Abrem-se as portas do elevador. Colocam a maça no elevador. Descemos. Muitas pessoas em torno de mim. Lá estava Angela. Amada. Tão querida! As lágrimas escorriam incessantemente pela sua face. Outra vez ouço-a exclamar: "Não morra, por favor! Eu lhe peço. Não deixe fugir o seu espírito! Você não deve..."
Começo novamente a cair fora do mundo real. Passo a perceber apenas o movimento dos lábios de Angela, como se ela fosse muda. E tudo começou a rodar, cada vez mais ligeiro, chegando a adquirir uma velocidade vertiginosa. Um calafrio atravessou meu corpo.' Eu fazia então uma viagem. Viagem marítima durante a noite. Será que, finalmente, está chegando a morte? É apenas um novo desmaio. Eu ainda tenho sete minutos de vida.
Logo que recobrei os sentidos, transportaram-me rapidamente através de um corredor comprido que se assemelhava a um túnel. Uma infinidade de lâmpadas estavam acesas. Eu não via mais Angela. Vozes feriam os meus ouvidos. Fechei os olhos. Então, com nitidez, soou a voz de Angela lendo, para mim, um poema. Completamente nua, estava sentada na sua cama sobre a qual eu, também completamente nu, me achava deitado. Através da janela penetrava a claridade da luz matinal. Angela lia para mim a tradução alemã de um poema de certo poeta americano, cujo nome, então, eu desconhecia: "Completamente livre de selvagem apego à vida, de temores e de esperanças..."
Fui transladado para uma cama. Algo se rasga, parecendo ringir, era a minha camisa. Homens de máscaras e gorros brancos. Punção, com a agulha, no meu braço direito.
"...Agradece à divindade, seja lá qual for o teu deus, por dar ele um fim a cada vida e não permitir a nenhum morto que volte novamente a este mundo", declamava Angela, sua voz se tornando gradativamente mais fraca.
As cores. Aquela profusão de cores. Todas elas se transformaram numa verdadeira fantasmagoria de indescritível beleza. Com a voz bem fraca, continua Angela: "...Até o mais vagaroso rio encontra o seu caminho para o mar..."
Uns sibilos vão se tornando cada vez mais fortes. Repentinamente, percebo do que se trata: é ele, o mais vagaroso e cansado de todos os rios que corre serpenteando através de um prado florido. Senti um dedo deslizando pelo meu corpo. Algo frio e áspero toca meu peito do lado esquerdo. Inopinadamente, num lampejo da mente, fiquei sabendo que espécie de rio era aquele: era o rio Letes. Rio do mundo subterrâneo, rio do inferno que separa o reino dos vivos do reino dos mortos. O rio Letes, no qual as almas dos mortos bebem o esquecimento. Admirado, observei que as margens do Letes são também margens ensolaradas.
Em seguida, com grande suavidade, meu coração começou a parar. Depois, lenta e cautelosamente, foram desaparecendo as imagens do prado florido, do rio Letes e as rutilantes cores. Pela última vez, então, fui lançado naquele imenso turbilhão de pretume. Resignei-me. Minha respiração começou a parar. Meu sangue paralisou-se nas veias e artérias. Tudo se tornou pretume, calor e paz. Eu estava morto.
Capítulo 1
- No fim da semana a Inglaterra liberará a libra esterlina - disse Gustav Brandenburg. - Até agora vinha se operando dentro do limite da taxa oficial. Mas esse limite há muito tempo não mais corresponde à realidade para expressar o valor da moeda. Agora é quase iminente a entrada da Inglaterra no M C E (Mercado Comum Europeu). Sabiamente Londres liberou a libra numa hora oportuna, a fim de, observando a sua flutuação, inferir qual seria a posição mais vantajosa a ser tomada inicialmente com a entrada no M C E.
- Mas isso não significa que a libra vai ser desvalorizada?
- Claro. Teremos, sem dúvida, uma desvalorização de cerca de oito por cento, segundo fui informado.
- Informado por quem?
- Ora, eu tenho o meu pessoal!
- O que eu quero mesmo saber é quem lhe passou as informações sobre a resolução de se liberar a libra. Medidas dessa natureza, de caráter estritamente sigiloso, são tomadas só nos fins de semana e hoje ainda é sexta-feira - retruquei.
Estávamos efetivamente numa sexta-feira, dia 12 de maio de 1972. Passava um pouquinho das nove horas da manhã. Chovia em Düsseldorf e soprava uma forte ventania. Era um dia nublado e escuro. O tempo estava bem fresco.
- Se a libra vai ser liberada no fim da semana, como você pôde ficar sabendo ainda hoje dessa deliberação? - interroguei. - Ninguém pode ficar sabendo antecipadamente dessas resoluções.
- Mas eu já fiquei sabendo, ora! Acabei de lhe explicar que tenho o meu pessoal em Londres.
- E sem dúvida deve ser um tipo de agente especial...
- E é mesmo. Essa gente me custa um montão de dinheiro.
Mas eu tinha que saber tudo. Sempre tenho que saber tudo antes dos outros. A companhia terá que me ficar agradecida até o dia do Juízo Final por esta minha atitude. Você nem imagina o que a nossa filial em Londres poderá lazer aii(da hoje! E nem faz idéia da enorme soma que iríamos perder se eu não tivesse procedido assim! Poderia pagar até três vezes mais por essas informações. Até mesmo dez vezes mais! Pouco importa. Os membros da administração da Companhia estão satisfeitos e felizes.
Você é um sujeito louco e extravagante - disse eu. - Eu bem sei - retrucou Brandenburg, sem parar de mascar a ponta de um grosso havana, com aquela sua maneira pouco graciosa e sempre desprovida de elegância. Ele era do tipo baixote e possuía um crânio bem grande, completamente calvo. A cabeça, pela conformação angulosa e pelo formato, acomodava-se sobre os seus ombros tal qual um cubo, devidamente ajustado. A bem dizer, ele não tinha pescoço. Possuía, isso sim, possantes maxilares e um nariz carnudo Seus olhos eram pequenos, mas cheios de esperteza e de astúcia. Olhos de porco. No seu gabinete trabalhava habitualmente sem casaco e com as mangas da camisa arregaçadas. Dava preferência às camisas com listras coloridas, principalmente lilás e verde. Nunca usou uma camisa branca. Suas gravatas estavam sempre fora da moda e amarrotadas, muitas vezes até mesmo com o tecido puído. Não ligava a menor importância à sua aparência. Trabalhava durante uma semana inteira usando sempre a mesma roupa de confecção, quase esmagada. Também os sapatos, com muita freqüência, se encontravam cambaios. Quando comia, parecia um porco. Cauisava mal-estar observá-lo comer. Resíduos de comida caiam da boca quando mastigava. Limpava-se continuamente com a ponta da toalha e o guardanapo. Suas unhas es-avam sempre compridas e sujas. Era o homem mais desleixado no trajar e o mais inteligente que conheci na minha vida.
Tinha sessenta e um anos de idade e permanecia solteirão.
Para a nossa companhia tratava-se de um elemento que só poderia ser avaliado a peso de ouro.
Brandenburg era o chefe do Departamento de Danos. Seu gabinete ficava no sétimo andar do gigantesco edifício da Companhia de Seguros Global, na Berliner Alle. A Global podia não ser a maior organização seguradora do mundo, mas era sem dúvida uma das maiores.
Nós segurávamos, a bem dizer, tudo em todas as partes do mundo: vida, carros, aviões, navios, produções cinematográficas, propriedades imobiliárias, jóias, partes do corpo de pessoas, seios, pernas de artistas femininas. Nada havia que nossa organização não segurasse... Aliás, devo retificar: havia algo que ela excluía das suas operações de seguro. Com assombro e estupefação, tentei sondar os motivos dessa exclusão. A companhia não segurava absolutamente nenhum órgão genital masculino. Os órgãos genitais femininos há muito vinham sendo segurados. Entretanto, nenhum pênis podia ser objeto das nossas operações securitárias. Contra a impotência não há dúvida de que podíamos efetuar seguros. Porém nunca contra o estrago ou perda de um pênis. Tratava-se realmente de um fato muito esquisito. Por mais que eu indagasse os motivos de tal resolução, nenhuma pessoa pôde me prestar qualquer esclarecimento. A Global, com sua matriz em Düsseldorf, onde foi fundada, possuía filiais na Bélgica, Holanda, Áustria, Portugal, Suíça e Espanha. Tinha representações nas Bahamas, Brasil, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Japão, Colômbia, México, Nova Zelândia, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Estados Unidos e Venezuela. O último balanço da companhia evidenciava um montante de trezentos milhões de marcos alemães sob a rubrica "Capital" e "Reservas". Suas aplicações atingiam a elevada cifra de doze bilhões de marcos. Na matriz de Düsseldorf trabalhavam cerca de dois mil e quinhentos funcionários. Em todo o mundo, o número de funcionários era de, aproximadamente, trinta mil pessoas. Fazia dezenove anos que eu exercia minhas atividades no Departamento de Danos - V.
Danos - V era indiscutivelmente um dos mais importantes departamentos, e o desengonçado Gustav Brandenburg, advogado como eu, era um dos elementos mais importantes da companhia.
Quando aparecia algum caso de danos ou estragos em que se notasse qualquer resquício de obscuridade, por mínimo que fosse, Brandenburg ligava imediatamente suas antenas. Era um homem dotado de um faro fantástico. A centenas de metros, mesmo contra o vento, farejava a existência de ações dolosas ou criminosas. Era o indivíduo mais desconfiado e cético da Global. Nunca confiava em ninguém. Para ele, todos os clientes eram suspeitos até o momento em que ele se certificasse do contrário. Para averiguar as possíveis responsabilidades, trabalhavam sob suas ordens cerca de quarenta homens, entre os quais diversos advogados e alguns antigos funcionários da polícia.
E se lhe desse alguma coceira no nariz ou se farejasse alguma sujeira, não vacilaria em mandar logo um de nós investigar o caso. Ele tinha o apelido de "Cão Sanguinário" e, na verdade, parecia sentir um imenso orgulho dessa alcunha, não a considerando de forma alguma um epíteto depreciativo. Com sua habitual desconfiança, havia evitado, no decurso dos anos, que a companhia despendesse somas fabulosas. Embora tivesse um salário enorme, o pobre solteirão levava uma vida de vagabundo, morando sempre num pequeno hotel. Sempre viveu em hotéis. Odiava a idéia de possuir uma casa própria. Tinha um insaciável apetite por pop com, isto é, pipocas. Continuamente levava nos bolsos saquinhos cheios de pipocas, os quais, no seu gabinete, colocava sobre a mesa de trabalho. Brandenburg quase nunca parava de comer pipocas. Onde ele estivesse, sentado ou de pé, em volta dele o chão ficava cheio de farelinhos. Fumava de dez a quinze havanas por dia. Recusava sempre toda e qualquer espécie de esforço físico. Para deslocar-se a uma distância de mais de duas quadras exigia o carro. Não tinha nenhuma amigui-nha e nenhum hobby. Dedicava-se exclusivamente à sua profissão. Dia e noite. Inúmeras vezes me obrigou a sair da cama bem cedo, chamando-me ao seu gabinete a fim de tratar de algum caso. Era um sujeito que parecia não ter necessidade de dormir. Antes de o relógio bater as oito horas da manhã, ele já se encontrava no seu gabinete, sentado à mesa de trabalho, toda suja de resíduos de pipoca e coberta de papéis, sobre a qual se notavam quase sempre cinza caída do cinzeiro e chá derramado.
Nunca deixava o seu gabinete antes de meia-noite. Só excepcionalmente saía à meia-noite em ponto. Assim era Gustav Brandenburg.
- Se alguém dispusesse, agora, de bastante dinheiro, poderia fazer furor com esse negócio das libras - comentou o homem-porco, enquanto a cinza do seu charuto caía-lhe sobre a gravata sem que ele notasse absolutamente nada. No seu queixo estava ainda grudado um pedacinho de ge-léia da refeição matinal.
- Mas você dispõe de muito dinheiro - respondi-lhe.
- Qual nada! Sou um homem pobre. - Dizia sempre isso, embora eu soubesse que ele recebia um ordenado mensal de dezoito mil marcos. Nunca consegui descobrir de que maneira empregava seu dinheiro. - Além disso, um homem correto e decente não procederia assim - concluiu enquanto palitava os dentes.
- Mas a companhia pode fazer esse tipo de transações.
- É evidente!
Em seguida ficou calado, revelando uma certa dose de mau humor, e começou a mascar novamente a ponta do havana. Ficou assim uns dois minutos.
- Escute bem - disse-lhe eu -, você mandou me chamar para um assunto de urgência, conforme você mesmo afirmou. Agora que estou aqui, não fique me embrulhando. Talvez você tenha que dizer muita coisa sobre esse assunto urgente. Por isso comece logo e procure explicar tudo sucintamente.
Fazendo um movimento com os dedos como se estivesse jogando bola de gude, arremessou para o chão algo que estava segurando. Depois examinou-me dos pés à cabeça e começou a falar, conservando o charuto na boca:
- Herbert Hellmann está morto.
- Não diga! - exclamei, estupefato.
- É a pura verdade.
- Mas ele era um indivíduo de boa saúde.
- E morreu tendo boa saúde. Só que a morte dele foi muito brusca.
- Acidente?
- Talvez. Mas também pode ser que não.
- Gustav, fale claramente! Não procure me deixar doido, homem! - Acendi um cigarro.
- Talvez tenha sido suicídio - disse ele enquanto atirava para dentro da boca um punhado de pipocas. Falava com a boca cheia e algumas delas saltavam para fora, indo cair no assoalho. - Seria muito bom se fosse suicídio. Seria até o melhor que poderíamos esperar porque, nessa hipótese, não teríamos que pagar nada.
- Que espécie de seguro tinha ele?
- Contra danos ou estragos para o Moonglow.
- Que é Moonglow?
- Era o iate dele segurado por nós.
- Qual é o valor do seguro?
- Quinze milhões.
- Lindo! Que maravilha!
- O seguro foi efetuado contra incêndio, naufrágio Por efeito de tempestade, qualquer espécie de estragos, inclusive explosões, pirataria, encalhe nos recifes, colisões, qualquer forma de sabotagem de responsabilidade de outras pessoas.
Mas não para danos ou estragos provocados voluntariamente pelo proprietário. Quero dizer: esse seguro não foi feito para cobrir riscos decorrentes do fato de o próprio Herr Hellmann ter resolvido voar para os ares juntamente com o seu Moonglow.
- Essa é boa! - exclamei.
- É exatamente como estou lhe dizendo. Despejou mais um punhado de pipocas na cova da mão.
- Você não quer provar algumas pipoquinhas?
- Não, obrigado. Então o iate ficou danificado?
- Completamente destroçado.
Gustav engoliu as pipocas. Depois começou a chupar de novo o charuto, dizendo:
- Havia também outras pessoas no iate quando ele saiu de Cannes. Treze pessoas ao todo: sete homens da tripulação, Hellmann, dois casais e mais outra pessoa. Foi na viagem de regresso da Córsega que se deu o desastre. Um pouco antes da meia-noite de ontem. Entre Cannes e Córsega. Explosão. Telefonei para a organização em Cannes incumbida de agir em casos como esse. Quando a comunicação do acidente foi dada àquela organização, não passava de uma hora da manhã. Ontem foi o dia comemorativo da Ascensão de Cristo. Hellmann escolheu um dia bem apropriado para fazer a sua viagem. Deve ter sido bem intenso, nesse dia, o tráfego lá para cima.
Na Central de Notícias, um andar mais abaixo, havia um telex da agência noticiosa alemã Presseagentur e um da United Press International. Na nossa qualidade de assinantes, podíamos nos servir dos serviços de ambas.
- A tal organização da polícia marítima de Cannes tem uma designação muito comprida - disse Brandenburg exibindo um pedacinho de papel todo lambuzado e sujo. -
"DlRECTION DES AFFAIRES MARITIMES, MARINE MEDITERRANÉE, SOUS-QUARTIER CANNES". Está localizada no antigo porto. A sede do seu quartel-general é em Nice. Mas esse citado Sous-Quartier é que está incumbido de investigar o caso. Você fala correntemente o francês, não é verdade?
- Sim. Falo fluentemente também o inglês, o italiano e o espanhol.
- Eu falo um francês miseravelmente estropiado. Mas, pelo que pude entender, eles me explicaram o seguinte: o chefe da administração (administrateur-chef, dizem eles) está fazendo uma viagem de estudos pela América. O seu substituto já foi para o local do acidente, acompanhado de muitas pessoas. Ele se chama Louis Lacrosse.
Telefonei de novo. Deve ter sido uma explosão pavorosa. Alguns destroços voaram até uma distância de mais de cem metros. Das pessoas, encontraram-se somente algumas cabeças, pernas, braços e dedos. Os pescadores estão tirando esses destroços da água. É verdade! Ascensão de Cristo!
- Hellmann não possuía o maior banco privado da República Federal Alemã? - perguntei-lhe.
- Um dos maiores, seguramente. Era um homem que talvez tivesse uma posição respeitável. Talvez não...
- Que quer dizer com isso?
- A liberação da libra esterlina, Robert! Por isso comecei a fazer as minhas sondagens, examinando o caso preliminarmente por esse aspecto. Tenho feito algumas indagações também em Frankfurt, nos círculos bancários. Mandei sondar. Mas esses bancos de merda são mais fechados do que aquele tipo de ostras que se cria na imundície. Mesmo assim consegui arrancar de um deles informações preciosas: ultimamente, Hellmann andava muito nervoso. Até parecia um fantasma. Inopinadamente, na quarta-feira da semana passada, tomou o avião e foi para Cannes. Deve ter acontecido algo de muito importante para que ele fosse compelido a fazer essa viagem.
- Que poderia ter acontecido? Você acha que ele também ficou sabendo da liberação da libra?
- Talvez não. Contudo, depois de tantas greves que duram eternamente e de tudo o que vem sucedendo, é bem provável que ele tenha chegado à conclusão de que a libra não poderia manter o seu valor. Mas também pode ter-se dado o caso de ter feito previsões erradas. Tampouco deve ser excluída das nossas cogitações a hipótese de que tenha ficado em pânico ante o temor de dar com o focinho no chão, numa tremenda queda, se a libra fosse desvalorizada.
- Um Hellmann não dá com o focinho no chão assim tão facilmente!
- Isso é o que você pensa. Na verdade, para nós ele sempre foi o cavalo favorito em todas as corridas. Sempre o consideramos uma espécie de banqueiro de colete branco e imaculado da República Federal. Um vulto pomposo e intocável.
E era mesmo. Herbert Hellmann gozava de uma grande reputação internacional, sendo apontado como verdadeiro paradigma de banqueiro.
Depois de uma certa pausa, Brandenburg prossegue:
- Pense bem: e se ele fez alguma sujeira com esse negócio das libras? Não me olhe com essa cara de idiota, homem! Essa gente é capaz de fazer qualquer tipo de sujeira. A maioria deles, como o próprio Hellmann, nunca se deixa apanhar em flagrante. Mas agora talvez ele tenha sido pego... E ficou com o seu colete branco e imaculado bem sujo...
Gustav também se sujava e se lambuzava com as pipocas que expelia da boca enquanto falava. Ele emporcalhava a horrível camisa listrada.
- E não há dúvida de que uma situação dessas seria para ele o fim, não é verdade?
- Humm!
- Não me faça: humm! Seria o fim dele, sim! Ultimamente o homem estava uma verdadeira pilha de nervos. Já nem conseguia falar sem gaguejar. Constantemente sofria de desmaios e tonturas. Antes de tomar o avião para Cannes achava-se num terrível estado de aflição e nervosismo.
- Como é que você ficou sabendo disso?
- Você pensa que dormi a noite passada? Você nem faz idéia do que revelaram os empregados dele, mesmo os de baixa categoria. E nem é preciso uma grande soma de dinheiro sujo e sebento para que falem!
- Mas, com tudo isso, que pretendia ele fazer em Cannes?
- Também não sei. Ele possui uma casa lá, como você bem sabe. Sua irmã, a Hilde dos Brilhantes, passa a maior parte do tempo em Cannes.
Gustav enfiou um dedo na boca para retirar algum resíduo de pipoca. Acendi um novo cigarro na ponta do que havia acabado de fumar e retomei o fio da conversa:
- Ele não deve ter procurado sua irmã só para desabafar as mágoas! Mas esses seus dentes causam repugnância!
- Ora, e daí? Deixe de olhar para os meus dentes, bolas! Mas, continuando o nosso assunto, é claro que ele não foi para lá só para se desabafar com a irmã.
- Para quê, então?
- Não sei. Apenas posso garantir a você que esse caso está me cheirando mal. Eu sinto o fedor.
- Quer dizer, então, que para se suicidar foi preciso tomar um iate a fim de viajar para a Córsega fazendo-se acompanhar de convidados que, igualmente, o acompanharam na morte?
- Precisamente dessa maneira é que se tornaria difícil caracterizar a atitude dele como suicídio.
- Uma atitude muito linda e inescrupulosa!
- O quê?
- Doze pessoas são convidadas a partir para a melhor só porque um homem resolve dar cabo da própria existência!
- Qual é o banqueiro que, com escrúpulo, consegue fazer negócio? Além disso, não foram doze as pessoas que morreram, mas somente onze.
- Mas você disse há pouco que havia treze pessoas a bordo.
- Eu disse que havia treze pessoas na viagem de ida. Na de volta, só havia doze.
- Quem era esse décimo terceiro passageiro?
- Décima terceira. Uma mulher.
- Onde estava essa mulher?
- Ela havia ficado na Córsega. - Gustav remexeu nos seus papéis. - Delpierre é o sobrenome dela. Ela se chama Angela Delpierre.
- Mas por que essa tal Delpierre teve que ficar na Córsega?
- Não sei. Já providenciei tudo para você. Passagem aérea. Hotel. Você vai se hospedar no Majestic. Terá que partir às catorze e trinta pelo avião da Lufthansa que faz escala em Paris. Às dezessete e quarenta e cinco já estará em Nice.
- Eu devo...
- ... Fale logo! Será que você me julga um idiota? Para que perdi tanto tempo em explicar-lhe tudo? É claro que você deve ir. Por duas vezes você já tratou de casos com navios. E, além de tudo, um descanso de catorze dias não deixa de ser uma coisa muito boa! Ou será que prefere ficar para sempre junto da sua doce mulherzinha?
Com um movimento brusco, empurrou para o meu lado o envelope contendo a passagem, que estava sobre a mesa. A passagem e as acomodações no hotel haviam sido requeridas por intermédio de uma agência de viagens. A Global não aparecia em nada. Ninguém deveria ficar sabendo de nada. Ponderei:
- Você sabe tão bem quanto eu que, sozinho, não me acho em condições de investigar esse caso.
Era evidente que ele sabia disso. Em casos dessa natureza a polícia nomeia imediatamente um perito com a incumbência de proceder às necessárias averiguações. Paralelamente à ação desse perito, a companhia seguradora pode, obviamente, indicar um agente para acompanhar as investigações.
- Os franceses já nomearam um perito. Trata-se de um antigo oficial da marinha. Você deve procurar conhecê-lo. Mas por que fica me encarando desse jeito?
Bruscamente o semblante do porco pançudo tomou aquele aspecto malicioso e traiçoeiro. Seus olhos começaram a estreitar-se. Eu sabia muito bem o que significava isso.
- Você não quer ou não pode ir, Robert? Acha que é muito trabalho para você? Será que não se encontra em condições de desempenhar esse encargo? Quem sabe eu não devo transferi-lo para os serviços internos? Já faz dezenove anos que você trabalha nesse setor. É muito tempo. É compreensível que se leve em consideração essa circunstância, caso você julgue ser-lhe muito incômodo esse tipo de serviço.
Evidentemente eu não podia, de forma alguma, suportar esse tipo de argumentação. Parti, portanto, para uma pequena encenação, dramatizando minhas palavras, a fim de exprimir, com mais ênfase, a minha perplexidade:
- Sim, sim! Parece que o trabalho que mandei fazer produziu o seu efeito!
- O quê?... Que é que você está rosnando aí? - perguntou, irritado.
- Paguei uma enorme quantia a um velho feiticeiro para que ele transformasse você num sapo selvagem. E não é que ele conseguiu realmente fazer isso?!
- Ah-ah!... Não se preocupe... e tome cuidado para não se extenuar demasiadamente...
Ele evitava, então, manifestar aquela intimidade simulada, infame e falsa. Só procurava vingar-se de mim a todo o transe. Por isso, continuou falando com uma voz profunda, quase cavernosa:
- Você está muito pálido. Diga-me uma coisa, Robert: você não está doente?
No meu cérebro soou o alarme.
Porco! Porco dos porcos! Você me tem seguro pelo cabresto. E bem sabe de que maneira pode me embrulhar. Tenho quarenta e oito anos de idade. Há muito que sou o mais idoso dos seus funcionários.
Já resolvi muitos casos para você, a fim de impedir que a Global pagasse o pato, desembolsando vultosas quantias. Mas tudo isso nada significa. Para isso é que sou pago. Bem pago. Muito bem pago. Mas, especialmente nos últimos tempos, tenho prejudicado e anulado a solução favorável de alguns casos. Quem diz essas coisas é você, porco! Nesses casos que você menciona nada havia para prejudicar... A companhia simplesmente tinha que arcar com a responsabilidade do pagamento. Mas quando acontece um caso assim, o único responsável é sempre o funcionário designado por você, cachorro de merda!
- Evidentemente terei que contemporizar na hipótese de que você, de fato, não se sinta bem. Serei forçado então a mandar Bertrand ou Holger. Você é melhor do que os dois juntos. Por isso escolhi você. Mas seja franco, por favor: se você não puder...
- Eu posso!
O medo decorrente da necessidade de lutar pela vida atacou-me com ímpeto. Bertrand. Holger. Ou qualquer um. Todos mais jovens do que eu. Confrontado com eles, eu pareço um velho.
O que não aconteceria se eu realmente declarasse estar me sentindo mal e pedisse que o caso fosse entregue a outro funcionário? Gustav era meu amigo, como ele mesmo sempre dizia. Meu melhor amigo, jurava ele. Melhor amigo, uma merda! Meu melhor amigo Gustav Brandenburg seria capaz de, friamente e sem sofrer nenhum impacto emocional na sua consciência empedernida, fazer um relatório à administração geral a fim de pedir minha demissão.
E o médico de confiança da companhia?!
Depois dessa conversa eu teria ainda que ir ao médico. Era o dia do exame anual de rotina. Eu vinha há muito tempo aguardando esse exame completamente apavorado. Sem dúvida, o médico constataria o meu estado.
E então? E daí?
Fazia muito tempo que eu vinha matutando sobre isso. Havia uma única saída para mim: mentir, negar tudo. Tenho muita saúde. O médico simplesmente interpretou mal os sintomas. Não sinto dor alguma. Absolutamente nada!
Era a única saída que eu tinha. Agindo habilmente, eu não me deixaria apanhar por eles. Era o que eu esperava, Santo Deus!
E se o médico insistisse em dizer que eu me encontrava doente? E se eles acreditassem nele e não em mim?
Isso arrebentaria o coração de Gustav. Não pude deixar de ter esse pensamento, ironizando a minha própria situação. Que sentimento de compaixão poderia ter esse cachorro que espremia o seu pessoal como quem espreme limão, mandando embora depois os que se sentissem alquebrados e exaustos?
- Eu não estou doente! - respondi-lhe com firmeza.
- Alegro-me em saber disso. Realmente, Robert, fico muito satisfeito. Certamente é você mesmo que procura aparentar esse aspecto horrível! Que é que há com você? Nervosismo?
Permaneci calado.
- Algo de errado em sua casa?
- Humm.
- Karin?
- Humm.
- Que é que está havendo com Karin?
- Nada de importante. As mesmas coisas de sempre.
Capítulo 2
- Essa noite você gritou de novo - disse minha mulher.
- Bem, a verdade é que grito todas as noites.
- Mas nunca tão alto como a noite passada. Foram tão horríveis os seus gritos, que os Hartwig devem ter ouvido. Talvez até os Thaler e os Nottbach tenham ouvido você gritar.
Eram os nossos vizinhos: o do apartamento ao lado, o do andar superior e o do andar de baixo.
- Seus gritos me apavoram. Será que você não compreende isso?
Estávamos sentados à mesa. Karin passava manteiga no pão enquanto falava. De manhã ela sempre comia bastante e tomava o café bem forte. Eu habitualmente não comia quase nada e só tomava chá.
- É uma situação muito constrangedora para mim porque a Sra. Hartwig sempre me adverte dos seus gritos. Ela não pára de indagar se você, por acaso, não anda doente. Ninguém mais acredita nessa conversa de pesadelos. Todos julgam que você anda doente de fato. E doente da cabeça. A Sra. Hartwig disse-me ontem que você deveria consultar um psiquiatra. Você não imagina como fico constrangida!
- Realmente deve ter sido ruim para você - respondi-lhe e terminei de beber o meu chá.
Falando com a boca cheia, Karin prosseguiu:
- Eu também acho que você deve consultar um psiquiatra. Não é normal que um homem, noite após noite, solte gritos apavorantes enquanto dorme... e isso há dois anos. A própria Sra. Hartwig disse que seu estado não pode ser normal. Você grita também nos hotéis quando está viajando?
- Não sei - respondi-lhe enquanto acendia um cigarro. - Mas acho que não.
- Então quer dizer que você faz isso só quando está em casa?
Não lhe respondi. Ela continuou:
- Só quando está em casa comigo é que meu maridi-nho solta esses gritos horripilantes de noite. Se está fora, viajando, quando leva para a cama alguma puta fedorenta, não há perigo: ele nunca grita! Então, eu devo ser a culpada. A única culpada de tudo. Você não passa de um pobre coitado, inocentinho! Eu é que sou a causa de você, qualquer dia desses, ir parar num manicômio. A vida junto comigo é horrível, não é? Já estou sendo passada para trás como um repugnante vômito, não é? Diga, diga logo que eu não passo de uma coisa repelente!
Continuei calado.
- E, além de tudo, meu marido é também um covarde. E tem uma profissão bem apropriada para um crápula do quilate dele: anda sempre viajando por esse mundo afora, deixando sua mulher sozinha em casa durante meses. E quando está em casa, não procura de modo algum ficar perto dela para conversar ou dar-lhe alguma atenção. Está me ouvindo?
Não dei nenhuma resposta.
- Seu porco, você me possui há mais de dez anos, não e? Mas que significa para você todo esse tempo? Faz quase dois anos que não dorme mais comigo. Você nunca me abraça quando sai para alguma viagem ou quando chega de volta. Quando tento beijá-lo você vira a cara. Certamente meus beijos lhe causam asco. Diga, tenha a coragem de dizer que eu lhe sou repugnante!
Continuei calado.
- Diga de uma vez, miserável covarde! - Falava agora com uma voz estridente, quase gritando, numa atitude ameaçadora.
Nada lhe respondi e ela prosseguiu com o mesmo tom de voz e a mesma atitude ameaçadora:
- Você pensa que vai escapar desta... mas está muito enganado! Deus vai castigar você... Sim, ele terá que castigar você.
Principiou agora a falar com mais calma novamente:
- Animal. Você não passa de um animal ordinário! Sim, um animal ordinário é o que você é quando está em casa. Mas depois que sai, quando está fora de casa, se torna o gostosão cheio de charme. - Karin falava agora batendo a casca de um ovo cozido. - Lá fora você é o queridi-nho das mulheres. Elas ficam encantadas com você. Como é atraente o seu marido, Sra. Lucas! Santo Deus, que encanto de marido a senhora tem, Frau Lucas! Um homem com uma profissão tão importante! E o que acha que eu respondo? Oh, sim, sou muito feliz! Meu marido é realmente muito simpático, atraente e encantador. E como é charmoso! Ah, se essas mulheres do diabo soubessem! Se elas conhecessem você como eu. Sem máscara. Se elas observassem direitinho quem é Robert Lucas. O sádico. O sádico da alma. O homem que trai e magoa a sua mulher. Se elas pudessem compreender que espécie de demônio anda metido no seu corpo. Você está me ouvindo, Robert?
- Sim.
- E ele só diz: sim... Sim! É só isso que sabe dizer. Mas, quando está junto de alguma daquelas dengosas de rabo sujo, ele se torna certamente um grande tagarela. Há dois anos que ele não faz nada comigo, nada, nada! Nenhum carinho, nenhuma palavra de conforto, nenhum contato. Você, logo que nos casamos, quando ainda não ganhava um bom ordenado, era bem diferente. Quase conseguiu me virar a cabeça e me deixar louca com aquelas suas porcas sacanagens na cama, com aquela sua selvagem perversão. Nesses momentos, você sabia falar. E como falava! Meu amor! Santo Deus, como você me amava!
Santo Deus, como você me amava!
Enquanto falava ia comendo o ovo com a colherinha. Eu já estava com o meu traje de saída. Ela vestia um roupão cor-de-rosa, tendo uma espécie de turbante sobre os cabelos louros. Fazia muito tempo que, em casa, ela só andava de roupão. Antes, tinha hábitos muito diferentes. Possuía um lindo rosto e um corpo sedutor, que outrora me causavam enorme excitação. Seus olhos eram cinzentos, meio puxados.
Seu semblante deixava transparecer algo de gatinha. Seu nariz era pequeno como pequena era a boca de lábios vermelhos. As pestanas de Karin eram bem longas e ela se orgulhava disso. Usava os cabelos curtos e bem penteados. Tinha trinta e oito anos, mas não se notava no seu rosto nenhuma ruga. Nem no rosto, nem na testa, nem nas pálpebras. Nem mesmo quando sorria. Na verdade, nos últimos tempos raramente ela sorria. Na minha presença, aliás, fazia muito tempo que ela não esboçava um sorriso. As pessoas não escondiam sua admiração pelo fato de não haver o mínimo sinal de ruga na linda face de Karin, que parecia a de uma boneca. Uma boneca também não tem ruga alguma. Karin, dez anos mais jovem do que eu, levava horas e horas diante do espelho pintando-se e passando creme no rosto a fim de torná-lo mais liso ainda. Sentia-se muito orgulhosa pelo fato de seu corpo ter se mantido jovem. Com muita freqüência, fazia sauna, e uma massagista vinha duas vezes por semana ao nosso apartamento.
Nossa casa era muito linda e bem sossegada, num belo edifício. Só dois apartamentos por andar. Na verdade, era muito grande para duas pessoas. Havia ali muitas coisas a que meu coração tinha um grande apego. Coisas pelas quais eu tinha verdadeira adoração. Minha grande coleção de elefantes, por exemplo. Os caríssimos móveis antigos. Os tapetes bem grandes. Os vasos chineses. O espelho veneziano no nosso quarto. A lareira. A cristaleira com muitos objetos estranhos trazidos quando eu regressava das minhas viagens. A minha coleção de discos e o meu aparelho estereofônico. A minha biblioteca cheia de livros até o teto. A minha escrivaninha estilo Renascença. A minha cadeira, também Renascença, de lindo talhe, com o espal-dar bem alto. Coisas sobre a escrivaninha: um inseto enclausurado numa pedra transparente, encontrado em Corfu. Deuses da felicidade esculpidos em marfim, provenientes de Cingapura. Sim, tantas, tantas coisas de que eu gostava imensamente outrora. Os grandes candelabros prateados. Nosso finíssimo aparelho de jantar fabricado na Inglaterra. Minha grande coleção de cachimbos, das marcas Dunhill e Savinelli. (Eu já não fumava cachimbos, mas cigarros.) O magnífico bar num armário embutido na parede. Os cavalinhos sicilianos colocados sobre a mesinha do telefone.
Até por essa sala onde estávamos tomando o café da manhã eu tinha outrora uma grande adoração. Agora já não gosto de mais nada.
Exceto os elefantes e os cavalinhos sicilianos. São as únicas coisas às quais ainda tenho um certo apego. Mas, mesmo que os tivessem retirado dali, eu não teria ficado triste. O motivo da minha tristeza era bem diverso. E ninguém poderia tirar-me essa tristeza. Lamentavelmente.
O roupão de Karin estava aberto na frente. Ela possuía um lindo busto e não estava usando sutiã. Fazia catorze dias que eu havia regressado de Hong Kong, depois de uma ausência de dois meses. Certamente Karin, apesar de tudo, esperava algum carinho meu, algum presentinho ou, pelo menos, que eu lhe falasse sobre a viagem e sobre o meu trabalho em Hong Kong. Era muito natural. E teria sido também muito natural que eu lhe fizesse carinho, que lhe trouxesse algum presente ou lhe fizesse um relato bem amplo da viagem. Entretanto, não havia feito nada disso. A culpa não era dela: era exclusivamente minha. Eu simplesmente não podia fazer nada do que ela, com razão, esperava de mim. Eu me achava extremamente exausto e apático. De mês para mês meu estado ia piorando sensivelmente. Cansava-me até de falar. Sempre chegava a casa exausto e extenuado depois do desempenho das missões que me eram confiadas. O único culpado era eu. Refletia: tenho pena de Karin. Realmente tenho pena dela. E ela tem razão quando diz que sou um crápula, um covarde, um indivíduo sem força de vontade, um porco. Mas eu só podia fazer o que minhas forças permitissem. E essa possibilidade não ia muito além de realizar ordenadamente os trabalhos inerentes aos meus encargos funcionais. E mesmo para conseguir isso, eu tinha que me valer de todas as minhas forças, do meu talento, da minha esperteza, dà minha coragem e da minha inteligência. Quase nada sobrava para a pobre Karin quando eu regressava.
Eu havia pensado muitas vezes em nossa situação, tendo até resolvido explicar tudo a Karin. Entretanto, sempre fui adiando minha explicação e nunca lhe disse nada. Até para isso sempre me sentia excessivamente cansado. Não podia dizer-lhe o motivo do meu estado, pois, de forma alguma, queria inspirar compaixão. Nunca! Compaixão de ninguém. Muito menos de Karin.
Bruscamente passei a notar só o movimento dos lábios dela sem ouvir a sua voz. Precisamente nesse instante veio-me à mente a lembrança daquela noite em Hong Kong, quando, pela primeira vez, me aconteceu, de maneira tão assustadora, um caso idêntico. Foi muito depois da meia-noite no meu apartamento do Hong Kong Hilton.
Capítulo 3
- Ai!... Ai!... Ui!... Você me mata! Você vai liquidar comigo! Ai! Meta mais. Mais! Ligeiro! Já! Oh, que loucura de bom! Vou enlouquecer! Não resisto mais! Acabe! Acabe... acabe, queridinho... Estou sentindo que você também quer acabar. Como está rijo, agora! Sim, sim, sim... Agora, agora, já!
A chinesinha, na minha cama, com sua voz de timbre agudo, movia freneticamente a cabeça de um lado para o outro no travesseiro, mexia todo o corpo e cravava as unhas nas minhas costas. Larguei todo o meu peso sobre a fogosa mulher. Fazia quatro meses que eu não tinha relações sexuais e por isso andava muito irritado, precisando urgentemente de mulher.
Naquela tarde eu havia estado num dos restaurantes flutuantes, em Aberdeen, um recanto da parte ilhada da cidade. Esses restaurantes têm muita semelhança com os antigos showboats americanos, os quais, nos portos, vão de um costado de navio a outro. O transporte até o restaurante flutuante fazia-se de barco, cujos remos eram empunhados só por mulheres. O restaurante que eu visitei denominava-se Sea Food. Era todo cercado por uma espécie de bacia na qual se movia um verdadeiro cardume de peixes. Qualquer freguês podia apontar ao garçom o peixe da sua preferência, o qual era tirado da água e preparado imediatamente. Eu também havia escolhido o meu peixe.
Enquanto eu o estava comendo, aproximou-se da minha mesa uma linda jovem e perguntou-me se podia me fazer companhia. Convidei-a para comer e depois para beber. Havia um montão de gente no Sea Food. Achava-se presente, também, um grande número de prostitutas bem jovens. A minha companheira de mesa disse-me que seu nome era Han-yuan, cuja tradução significa "Jardim Magnânimo". Ela falava um inglês bem razoável, se bem que com forte sotaque estrangeiro. Tudo nela era gracioso. Tinha os cabelos pretos como alcatrão. Jardim Magnânimo fizera uma operação plástica nos olhos a fim de - como já haviam feito muitas outras moças dali - adquirir aquele aspecto peculiar às mulheres européias.
Eu havia bebido muito no Sea Food.
A mulher de um rico comerciante alemão morrera em circunstâncias misteriosas. O comerciante havia efetuado um seguro de vida na nossa organização. Ele receberia dois milhões de marcos pela morte da esposa, mesmo no caso de suicídio. Todavia, não se tratava de suicídio, mas de assassinato. Tanto eu quanto a polícia dispúnhamos de ponderáveis argumentos que apoiavam a hipótese de assassinato. E não era só isso. Em Hong Kong estava muito quente nesse dia. Fazia mais de um ano que eu quase não podia suportar o calor.
Entretanto, eis-me agora - algum tempinho depois de termos saído do Sea Food - completamente nu e todo banhado de suor, ao lado de Han-yuan.
Minha respiração ia se tornando gradativamente mais difícil e comecei a sentir uma dor importuna, embora não muito forte, uma espécie de puxão que me obrigava a esticar o pé esquerdo. No meu carro alugado eu havia trazido Han-yuan para o Hilton, que se achava localizado na ampla Queensway Central. Disse ao porteiro noturno, um japonês, que ela era minha secretária e que eu tinha uma correspondência urgente para ditar-lhe. Eu já o conhecia. Chamava-se Kimura e usava uns óculos com lentes bem grossas. Com o olho direito ele não enxergava praticamente nada. Só trabalhava nesse serviço noturno.
- Naturalmente, senhor - respondeu-me Kimura desmanchando-se em sorrisos. - O senhor trabalha excessivamente. Aqui todos comentam que o senhor, nesses últimos dias, tem trabalhado demais.
Não foi, como se vê, muito difícil introduzir Han-yuan no meu apartamento. Havíamos combinado o preço e eu lhe fizera o pagamento antecipado. E ela, que tão magnificamen-te soube representar na cama toda aquela encenação, bruscamente deixou de sentir-se louca de "tanto desejo erótico". Não escondia a sua satisfação e demonstrava estar apressada. Correu logo para o banheiro e, debaixo do chuveiro, começou a cantar. Fiquei deitado, fumando. Sentia-me completamente vazio e desiludido. Isso sempre acontecia comigo depois de ter estado com alguma mulher.
Jardim Magnânimo saiu do banheiro. Ela se vestira com muita rapidez. Talvez tivesse ainda um outro freguês para a mesma noite. Fiquei até muito satisfeito com sua di sposição de ir embora logo. Depois de ter aliviado a minha tensão e a minha excitação, eu mal podia olhar para ela e prestar atenção à sua conversa.
Também fui para baixo do chuveiro e depois me vesti. Eu já estava acendendo o terceiro cigarro. Fumava muito. Às vezes até sessenta cigarros por dia.
- Você pode me acompanhar até lá embaixo, por favor?
- Vou descer com você.
- Oh, que doçura que você é! - exclamou Jardim Magnânimo. - Eu amo você.
- Eu também a amo - respondi-lhe.
Como é baixa e imunda a palavra "amor", pensei comigo. Mas baixa e imunda por quê? Ela não é mais baixa nem mais imunda do que outras palavras. Pode ser, isto sim, uma palavra absurda e desprovida de sentido. Quantas vezes durante o dia não a pronuncia Han-yuan?
- Quando verei você de novo, meu querido?
- Eu terei que tomar o avião brevemente.
- Mas eu quero ver você de novo. Eu preciso. Estou sempre lá no Sea Food. Antes da sua partida você irá até lá para buscar-me, não é?
- Sim.
Seguramente, nunca mais iria buscá-la. Deixamos o apartamento, tomamos o elevador e descemos até o saguão do hotel. Kimura, com aquele seu eterno sorriso nos lábios, inclinou-se para nós. Na Queensway Central ainda estavam cintilando os letreiros a neon. Muitas pessoas e carros estavam transitando. A cidade parecia não dormir nunca.
- Será que posso tomar um táxi? - perguntou-me Han -yuan. - Tenho que ir para casa com a máxima urgência. Minha mãe está doente, sabe?
Fiz sinal para um táxi que ia passando. Paguei ao motorista o dinheiro suficiente, recomendando-lhe que levasse a dama para onde ela indicasse.
Han -yuan levantou-se na ponta dos pés e me beijou.
- Não deixe de ir buscar-me novamente lá no Sea Food, sim? Você é maravilhoso! O mais maravilhoso dos homens. Você terá que ir buscar-me. Estou louca por você.
- Sim, sim - respondi-lhe.
- Quando irá buscar-me? Vá amanhã mesmo! Amanhã, sim?
- Amanhã, sim - confirmei enquanto a ajudava a sentar-se no assento traseiro do carro.
Não conseguiria suportar mais a tagarelice dela. Fechei a porta e o táxi arrancou. Han-yuan atirou-me, ainda, uns beijinhos com a mão.
Em seguida, comecei a sentir falta de ar. Minha respiração tornou-se pesada. Por isso, resolvi dar um pequeno passeio. A noite estava muito quente e o ar muito úmido. Desci pela Queensway Central, passando em frente das esplêndidas vitrines feericamente iluminadas das luxuosas e imponentes casas comerciais: joalherias, salões de moda, lojas de artefatos de pele, floristas. Depois, então, surgiu na minha frente a fachada de um grande banco. Como é de praxe em todos os bancos dessa cidade, nos degraus do portal de entrada encontravam-se, de pé, dois gigantescos sikhs dotados de uma força de urso, com os seus turbantes na cabeça. Em Hong Kong esses hindus vigiam os bancos dia e noite. Eles sempre empunham uma enorme espingarda de dois canos, numa atitude ameaçadora que impõe respeito.
Entre os sikhs, num dos degraus da escadaria que vai até o portal do banco, estava deitado um chinês, com a roupa em frangalhos. Não pude ver se estava dormindo ou se estava morto. Os sikhs, segurando suas armas assustadoras, permaneciam impassíveis e não davam a mínima atenção ao pobre infeliz. Eles pareciam estar observando, com os olhos fixos, a cidade iluminada dentro da noite. Havia muitas pessoas deitadas na calçada em Hong Kong. Muitas delas estavam famintas e se achavam tão fracas que não conseguiam se levantar. Ninguém se preocupava com elas. De tempos em tempos, não com muita freqüência, uma ambulância levava embora toda aquela gente.
Curvei-me sobre o chinês. Ele roncava um pouco, quase imperceptivelmente, e respirava com dificuldade. Estava vivo, portanto. Ao levantar o meu corpo para retomar a posição ereta, comecei a sentir uma dor muito forte no lado esquerdo do peito. A dor foi se alastrando rapidamente pelo braço esquerdo, chegando a atingir as pontas dos dedos.
Compreendi logo que iria ter um novo ataque, pois, das outras vezes, havia sentido a mesma dor. Na verdade, não tão forte como agora. Alguma distensão muscular, pensei. Doença do coração não podia ser, pois o eletrocardio-grama feito um ano antes pelo médico de confiança da companhia revelara que o meu coração estava completamente normal.
Talvez meu organismo não estivesse tolerando alguma comida ou talvez me sentisse indisposto por causa do calor. Além disso, eu fumava em demasia.
Procurei voltar rapidamente para o Hilton. Caminhava tão depressa que dei até alguns encontrões nos transeuntes. A dor no pé esquerdo ia recrudescendo. Eu o sentia tão pesado quanto chumbo. Só conseguia avançar metro por metro na Queensway Central, em direção ao hotel. A dor no lado esquerdo do peito também ia se tornando gradativamente mais violenta. Sentia falta de ar. Caminhava quase encostado nas paredes dos edifícios e nas vitrines, procurando sempre algum ponto de apoio, pois tinha medo de cair. O Hilton! O Hilton! Meu Deus, permiti-me chegar até o meu quarto! Eu tropeçava continuamente, mas tinha que fazer todo o esforço possível para me conservar de pé. Ar! Ar! Sentia uma enorme falta de ar. Só conseguia respirar com muita dificuldade, como que em estertores. Ninguém me observava. As luzes policrômicas dos letreiros a neon cintilavam ininterruptamente e, agora, pareciam mover-se com enorme rapidez. Também as pessoas pareciam estar andando com uma rapidez nunca vista. Só eu é que avançava a passos de tartaruga, cada vez com maior lentidão. Agora só podia caminhar arrastando o pé esquerdo. Pensei com meus botões: "Não é nada. Nada de grave. Você já sentiu esta mesma dor muitas vezes. Também, você fuma demais e bebe como um animal. Além do mais, aquela meretriz obrigou-o a fazer um penoso esforço. Idiota! Grande idiota! Devia tê-la despachado logo, e permanecido na cama".
A Queensway Central!
Faltava pouco, talvez menos de cem metros. Mas para mim pareciam cem quilômetros. Cambaleando, consegui entrar no salão do hotel. Kimura levou um tremendo susto e parou de sorrir.
- Que tem o senhor, Mr. Lucas?
- Nada. Apenas uma indisposição passageira. Mas estou bem.
- O senhor não está bem. Seus lábios estão completamente roxos. O senhor está doente. Vou chamar um médico...
- Não! - gritei. Nesse instante consegui gritar. - Nada de médico. Proíbo-lhe de fazer isso!
Eu não podia me valer de nenhum médico. Devia convencer-me de que não tinha nada... E se algo de anormal existisse em mim, ninguém deveria ficar sabendo... Se alguém soubesse da minha doença, era evidente que também a companhia, mais cedo ou mais tarde, viria a tomar conhecimento do meu estado de saúde... Então, que poderia acon tecer-me?
- Nada de médico, compreendeu bem? - bradei mais uma vez, quase vociferando.
- Certamente, sir. Se o senhor não quer nenhum médico... se o senhor tem certeza de que está bem... Eu... eu... vou ajudá-lo a ir até o quarto.
Subiu comigo no elevador. Eu tinha que me encostar nele para não cair. Se pelo menos tivesse trazido no bolso o meu remédio! Levo-o habitualmente comigo. Infelizmente, dessa vez deixei-o no apartamento do hotel. Quando atingimos o décimo primeiro andar julguei que não podia mais respirar nem caminhar. O soalho do corredor parecia estar oscilando sob meus pés. Kimura começou a me arrastar, levando-me a reboque. Tenho uma boa estatura e pesava setenta e seis quilos. O pequeno chinês teve que fazer muita força. Finalmente conseguimos chegar à porta do meu apartamento, que ele abriu logo. Levou-me até o quarto. Caí na cama, que estava toda desarrumada, recendendo ainda o perfume barato de Han-yuan. Kimura, apavorado, permanecia de pé ao lado da cama, observando como eu puxava a gravata para desfazer o nó e como desabotoava desajeitadamente o colarinho da camisa.
- Mas um médico...
- Não! - berrei.
Ele se assustou com o meu berro. Procurei acalmar-me o quanto pude e fui logo dizendo:
- Desculpe-me! Pegue-me, por favor, aquela caixinha de papelão que está ali em cima.
Ele me passou a caixinha contendo comprimidos de Nitrosteron. Fazia um ano que eu, èm tais circunstâncias, tomava esse medicamento. Um vendedor de carros de Quebec, que eu conhecera numa festa e que se queixava de sintomas idênticos aos meus, foi quem me indicou esse medicamento, afirmando-me que tinha um efeito rápido e seguro. Desde então comecei a usá-lo também. Meus dedos tremiam fortemente enquanto eu abria a caixinha. Deixei cair na palma da mão dois comprimidos, que logo atirei para dentro da boca, e comecei a mastigar. Que gosto horrível!
- Agora o senhor pode ir - disse eu a Kimura. - Vou ficar bom imediatamente. Dentro de alguns minutos. Eu sei.
- E se não...
- O senhor pode ir!
- Sim, sir. Certamente, sir. Daqui a cinco minutos telefonarei para saber como o senhor está passando. Sempre faço isso em casos semelhantes. É o meu dever.
- Saia imediatamente! - bradei-lhe, arquejando. - Desapareça daqui!
Com o semblante sério e demonstrando grande apreensão, ele se retirou depois de ter feito muitas inclinações e mesuras.
Logo em seguida veio aquilo que eu estava esperando durante todo esse tempo: a sensação de um grande aperto. Era como se meu peito estivesse submetido à pressão de um desses tornos empregados para fixar peças bem grandes. Um torno que apertava cada vez mais... mais... mais.
- Aaaai... Aaaai... Aaaai...
Meus gemidos pareciam os de um supliciado. E o torno não parava de apertar meu peito. O suor me escorria abundantemente pela testa. Rasguei a camisa. Meu corpo en-curvou-se, completamente arcado como uma ponte, caindo para trás na cama. O suor parecia brotar da minha nuca, molhando os cabelos.
- Errr... Errr... Errr...
Destruição. Destruição total. Foi essa a primeira impressão que tive. Eu devia ser destruído, aniquilado para sempre... e agora mesmo, sem mais demora. O medo invadiu-me completamente. Um medo louco. Uma espécie de medo angustiante que não posso descrever. Medo que eu já conhecia tão bem e que há um ano vinha destruindo a minha existência. Medo que constantemente ameaçava ocasionar a minha morte. Entretanto nunca, nunca esse medo foi tão grande e pavoroso como nesse momento.
- Aaai...
Eu continuava gemendo e apertava fortemente o peito, do lado do coração, com as mãos... Coisa esquisita: minhas mãos geladas e mesmo assim banhadas de suor comprimiam a minha pele também gelada e banhada de suor. Depois a minha mão esquerda começou a arder como se estivesse em fogo. E assim continuou: eu estava sendo triturado, esmagado, sufocado, asfixiado, destruído... Sim, sim, destruído por algum anjo da Suprema Justiça por causa do Mal que eu havia cometido na minha vida. Por causa do mal praticado por todos os homens do mundo. Que situação insuportável e apavorante! Eu tinha a impressão de que meus olhos estavam saltando das órbitas. Aquele infame torno continuava me apertando inexoravelmente. Minha cabeçacaiu de lado. Deixai que eu morra, meu Deus, deixai que eu morra!, exclamei. A morte é a única solução para meu caso. Que eu morra, meu Deus, que eu morra de uma vez!
Mas não morri. Repentinamente senti-me livre daquele medo. Desapareceu aquela impressão de destruição... e o próprio torno pareceu ter-se aberto, descomprimindo meu peito. Eu já podia respirar de novo... inicialmente só um pouquinho, depois mais... mais... até que finalmente minha respiração voltou ao normal. Escapei mais uma vez! Mais uma vez!
Tremendo, sentei-me na beira da cama. A fase aguda do ataque já havia passado. Sim, eu bem sabia que ela teria que passar, como havia passado das outras vezes. A única coisa que teria que fazer agora era simplesmente fumar um pouco menos. Maldito cigarro! A dor ia gradativamente sumindo do peito. Igualmente a dor no braço, na mão e no pé. Sentado na cama comecei a refletir, imaginando quantos indivíduos com profissão igual à minha não teriam passado por situação idêntica. É a assim denominada doença empresarial, e com acerto. Não foram só os cigarros que me deixaram nesse terrível estado. Foi também o stress provocado pelo trabalho excessivo. Além disso eu devia levar em conta as contrariedades decorrentes de uma vida desgraçada no meu lar. Nada adiantaria tirar algumas férias ou licença. Nenhum médico poderia ajudar. Tratava-se de um caso de natureza essencialmente vegetativa e estava convencido disso. Eu não tinha alternativa a não ser simplesmente modificar tudo. Mas como? Já me propusera tantas vezes fazer essa modificação e nunca conseguira mudar nada. E não conseguira porque começara a encarar tudo com a máxima indiferença. Fazia anos que não sentia prazer com coisa alguma e com ninguém. E certamente tampouco causava prazer a alguém.
O telefone ao lado da cama tocou.
- Aqui é o porteiro, Mr. Lucas. Como está passando o senhor?
- Muito bem! - respondi-lhe, já podendo respirar normalmente e falar com desembaraço. - Excelente!
- Realmente? Tem certeza?
- Com certeza! Bem que lhe disse, Mr. Kimura, que em poucos minutos ficaria bem.
- Alegro-me imensamente, sir. Eu estava muito apreensivo com o seu estado. Desejo-lhe uma boa noite!
- Obrigado! - respondi-lhe e coloquei o fone no gancho. Dois minutos depois estava dormindo profundamente, sem sonhos nem pesadelos. A luz ficou acesa e nem tirei a roupa para dormir. Passei para o estado de inconsciência. Foi só lá pelas dez horas da manhã que acordei. As cortinas estavam fechadas. Notei que a lâmpada estava acesa e observei que minha roupa se achava amarrotada e a camisa rasgada. Ao meu lado estava a caixinha de Nitrosteron. Que remédio danado de bom! Sempre faz efeito e com rapidez. Peguei o fone e pedi a minha refeição matinal: somente dois bules de chá. Logo que coloquei o fone no gancho a primeira coisa que fiz foi acender um cigarro.
Capítulo 4
- Robert!
Assustei-me. Por um momento fiquei sem saber onde me encontrava, pois eu tinha voado para muito longe em pensamento. Oh, sim, naturalmente estou agora em Düsseldorf. É Karin que está aqui presente. Eu estava revivendo aqueles acontecimentos de Hong Kong. Talvez eu não tivesse estado a evocá-los por mais de dois segundos. Minha mulher contornou a mesa e sentou-se em meu joelho. Tenho a impressão de que ela nada notou. Começou a alisar minha cabeça e beijou minha face. Depois deu um suspiro.
- Sinto muito. Sinto muito pelo que eu disse. Você é um homem bom... E você tem amor por mim. E bem sei que você me ama, apesar de tudo. Sim, sim, você me ama.
O roupão dela estava completamente aberto e eu podia ver sua pele branca e seus lindos seios. Ela me apertava e, agora, me beijava na boca, esfregando os seios no meu peito. Eu permanecia sentado, com os braços pendentes, e o meu joelho começou a tremer em virtude do corpo de -Karin, embora ela pesasse apenas sessenta e um quilos. Ela começou a falar com muita rapidez:
- Você não está bem. Tenho absoluta certeza de que sua saúde não está boa. Precisa procurar um médico sem falta. Você me promete? Por favor, Robert, você tem que tte prometer isso!
- Prometo-lhe.
- E você tem que me prometer que vai ainda hoje.
- Ainda hoje.
Precisamente hoje era o dia em que eu devia me apresentar ao médico da companhia para o exame anual de rotina. O que será de mim se ele declarar que eu, de fato, estou doente? Naturalmente não em perigo de vida, mas mesmo assim doente. Tão doente que talvez não possa mais desempenhar minhas funções. Ou talvez tenha que parar de trabalhar durante um ano ou dois. E daí, então? Por mais indiferente que fosse a tudo neste mundo, era evidente que, para viver, eu precisaria de dinheiro. E onde iria eu conseguir dinheiro sem trabalhar? Onde? Até mesmo quando se recusa tudo e não se tem nenhum prazer na vida, não se pode dispensar o dinheiro necessário para a comida, para o pagamento do aluguel e dos impostos.
Karin não percebia nada do que se passava pelo meu cérebro nesse momento. Ela não notava absolutamente nada e por isso continuava falando agitadamente.
- Muito bem! Obrigada, Robert! E perdoe-me pelas coisas que falei. O que disse não é o que penso de você. Mas você precisa me compreender. Sou ainda muito jovem para... para viver uma vida assim... Não pense que vou trair você! Nunca! Sou incapaz de fazer isso! Eu não suportaria na minha consciência um ato desses. Já houve alguns sujeitinhos atrevidos que procuraram me tentar, acredite. Mas como poderei me aproximar de um desses tipos - muito embora você permaneça fora de casa durante tanto tempo - se é só a você que eu amo? Ah, Robert, Robert, eu amo imensamente você! Somente você. E hei de amá-lo para sempre. Você acredita em mim?
- Acredito.
Ela parecia tornar-se cada vez mais pesada sobre meu joelho.
- E você me perdoa? Foram palavras que me escaparam da boca impensadamente. Você me perdoa, não é verdade?
- Sim.
Meu pé esquerdo começou a doer novamente. Aquela dorzinha puxada, constante e inoportuna que eu bem conhecia. Mas era bem possível que ela se tornasse cada vez mais forte.
- Apesar de tudo, eu sempre fui para você uma boa esposa e isso você tem que admitir, Robert! Ou será que não estou dizendo a verdade?
- Está.
- Eu sempre tenho mantido a casa em ordem. Cuido da sua roupa íntima, dos seus ternos, dos telefonemas e de todas as obrigações e afazeres quando você não está em casa.
O que ela dizia nesse momento não estava em consonância com a realidade: ela tratava dos assuntos do meu interesse com muita displicência e nunca cuidava dos telefonemas a mim dirigidos. Fazia anos que eu próprio lavava toda a minha roupa. Ela se preocupava só com as coisas do seu interesse. Mas por que lhe retrucar? Que sentido teria a minha resposta? Uma outra coisa bem diferente estava me preocupando no momento: o exame a ser feito pelo médico da companhia. Mentir. Se fosse preciso eu teria que mentir, não há dúvida. Dores? Ataques? Nunca tive nada disso na minha vida! Como foi que o senhor chegou a essa conclusão, doutor?!
- Eu não desperdiço dinheiro. Não sou dessas luxentas que andam sempre exigindo vestidos novos e jóias. Vivo só para você e sempre procuro defendê-lo contra os que falam mal de você. E não são poucos os que tentam fazer isso, você não me acredita?
- Acredito.
- Nunca deixo de pensar em você - continuou Karin, sempre falando apressadamente enquanto passava seus dedos através dos meus cabelos. - Você, para mim, é o melhor homem do mundo. O único que eu amo de verdade. Mas essa sua profissão está liquidando com você. Essa maldita companhia ainda vai levar você para o túmulo. Eu bem sei que você fica assim só porque a sua saúde não anda boa. Mas para tudo existe remédio. Se for a um médico ficaremos sabendo o que está acontecendo e então faremos um tratamento, não é verdade?
- Sim.
- Eles terão que lhe dar umas férias prolongadas. Então poderemos fazer uma viagem pelos mares do Oriente. Era exatamente isso que você, logo no início, queria fazer, levando-me em sua companhia. Iremos para qualquer lugar onde possamos viver um para o outro e você possa se restabelecer, recuperando suas forças. Faremos longas caminhadas e, quando você ficar bem restabelecido, com a saúde perfeita, então... passaremos novamente a dormir na mesma cama, não é?
- Sim.
- E tudo ficará como antes! - exclamou, um tanto eufórica, como que antegozando essa nova situação. - Tudo como antes! Você ainda se lembra direitinho como era antes?
Não se recorda como ficávamos loucos um pelo outro? Como fazíamos cada loucura! Mas eu... eu jamais quero forçar você... Sei que você mesmo me procurará, pois você continua me amando. Foi tão-somente por causa do seu péssimo estado de saúde que você deixou de me procurar, não é verdade?
- Sim.
- Não responda somente sim! Eu lhe imploro: diga, por favor, que você ainda me ama e que tudo o que houve entre nós se deve ao seu péssimo estado de saúde!
- Eu amo você ainda. Tudo o que houve entre nós se deve ao meu péssimo estado de saúde.
Aquela dor que causava uma certa tensão no meu pé esquerdo havia se tornado mais forte. Eu tinha a esquisita sensação de que o pé não mais pertencia ao meu corpo. Parecia que ele estava oco, vazio, tendo adquirido uma insensibilidade cadavérica. E isso me acontecia logo naquele dia, o do meu exame pelo médico da companhia! Olhei para a mesa e notei que meu cigarro havia caído do cinzeiro e feito um buraco na toalha com a sua brasa.
- Diga-me uma vez mais que você me ama, Robert, e que eu sou uma bobalhona!
- Você é uma bobalhona e eu amo você.
Ela me abraçou e comprimiu seu corpo contra o meu. Encostou sua cabeça no meu rosto, ficando com o queixo sobre meu ombro. Olhei para a janela: lá fora estava chovendo e soprava um vento forte.
Essa nova conversa se deu no dia 12 de maio de 1972, uma sexta-feira, mais ou menos às oito horas da manhã, na sala de refeições do nosso apartamento, no terceiro andar do edifício número 213, localizado na Parkstrasse, em Düssel-dorf. Era um dia nublado e escuro. Fazia muito frio para a época do ano em que estávamos. Minha dor no pé esquerdo desapareceu bruscamente. Tudo vai correr bem no médico, pensei comigo mesmo.
Ah, sim, no tocante à cena que Karin acabava de fazer ao conversar comigo, devo dizer que eu andava tão acostumado com isso que não ligava para mais nada. Sabia muito bem como ela procurava extravasar sua cólera impulsiva. Conhecia seus insultos e suas execrações. Conhecia perfeitamente a sua maneira de suplicar para terminarmos com as nossas rixas. Sabia que as nossas reconciliações eram falsas, como falsas eram as minhas promessas.
Já fazia três dias que estava chovendo em Düsseldorf.
Capítulo 5
Evidentemente eu nada disse sobre minha conversa com Karin a Gustav Brandenburg. Quando ele me perguntou o que estava acontecendo com Karin, sacudindo os ombros respondi-lhe simplesmente:
- Nada de importante. A mesma coisa de sempre.
- Caramba! - exclamou ele, que parecia ter-se tornado outro homem e tentava dar às suas palavras um tom paternal. - Essa mulher ainda vai matar você, Robert!
- Ah-ah-ah!
- Ah-ah-ah, nada! Estou sempre lhe dizendo isso. Quanto tempo faz que nos conhecemos? Dezenove anos, sabe? Dezenove anos, criatura! E fui seu padrinho de casamento. Você ainda se lembra? Faz dez anos. Você ainda se recorda daquele maldito dia de novembro? Eu me encontrava postado atrás de você, lá na sala do cartório, e quando aquele sujeito que desempenhava as funções de juiz fez a pergunta de praxe: "O senhor aceita, por sua livre e espontânea vontade, et ccetera e tal", eu disse a você bem alto, de modo que todo mundo pudesse ouvir: "Responda NÃO, Robert. Pelo amor de Deus, responda NÃO!" Disse ou não disse isso?
- Foi exatamente isso que você disse.
- Será que você não se lembra de que houve um grande escândalo por causa disso? Houve ou não houve?
- Agora pare com essa conversa! Houve, sem dúvida, um grande barulho, um grande escândalo.
- Só sei que você deixou de dizer "Não" e disse "Sim". Naquela ocasião fiquei conhecendo perfeitamente sua mulher. Muito linda. Boa para tomar conta de um lar. Não muito inteligente. Ela não compreende você. Nunca compreendeu você. Odeia a sua profissão. Sempre a odiou. Pequeno-burguesa. Como pode um homem estragar sua vida tão facilmente? Acho que você devia estar farto de mulher naquela ocasião. Não há outra explicação.
- E estava mesmo - respondi, julgando conveniente manter essa conversa para que ele conservasse o bom humor. Evidentemente eu não devia recusar a incumbência que ele acabava de me dar. Em todo caso, esse novo encargo me propiciaria a oportunidade de me afastar novamente de Karin e isso, nessas circunstâncias, já significava algo para mim. Eu tinha que ficar grato até por me ser permitido viajar de novo, acreditem.
- Gustav, eu simplesmente sentia pela minha mulher uma irrefreável volúpia, uma forte sensualidade, puro erotismo.
- Ora bolas, mas não era isso que você me dizia quando tomava os seus pileques. Você sempre me afirmou que ela fazia uma terrível encenação cada vez que você procurava fazer com ela, na cama, uma daquelas suas sacanagens bem caprichadas.
- Era precisamente essa atitude dela, com a sua reação inicial, que contribuía para acender o fogo da minha volúpia. Depois ela mesma se tornava completamente bestial e tão fogosa que você nem pode imaginar. Será que você não pode compreender isso?
- Ora, você só queria trepar, trepar e trepar. Você é dez anos mais velho do que ela. Bem, você deveria ter compreendido que um rabo não pode agradar eternamente a um homem. Falando a pura verdade, nenhum homem pode ficar apegado para sempre a um rabo, por mais gostoso que ele seja. Que pensa você de mim? Por que nunca me casei? Quando sinto necessidade, pego o que me agrada e depois me descarto, mando embora, nada de compromisso.
- Claro. Para você, é o ideal.
- Que é que você quer dizer com isso? Escute bem, Robert: você ainda não está muito velho. Você tem que modificar sua vida. Há anos venho lhe dizendo que você tem que abandonar Karin. Noto que ela hoje esbravejou com você fazendo uma daquelas cenas costumeiras. Ora, não sacuda a cabeça desse modo! Não procure me enganar. Ela hoje soltou os cachorros contra você. Sua cara não nega. Conheço você melhor do que você mesmo!
"Sim, você me conhece realmente!", pensei com meus botões.
- Bem... Realmente hoje lá em casa tivemos uma daquelas nossas cenas. Foi apenas uma reação impulsiva de momento que nem chegou a degenerar em briga... Só isso... Você sabe como é, não é, Gustav? Você está me prestando um obséquio mandando-me agora a Cannes. Um grande obséquio, creia-me. Só assim tenho a oportunidade de sair novamente daqui. Fico sempre alegre quando tenho de me ausentar desta cidade.
Ele encarou-me desconfiado e com uma expressão de dúvida no semblante.
- Mas isso não é nenhuma solução! - disse-me, fazendo saltar pipocas da boca enquanto falava. - Muito bem! Você vai, então, se encarregar desse caso. Fico muito satisfeito com isso, realmente. Entretanto, mais dia menos dia, você terá que regressar de Cannes. E que sucederá então? É claro que tudo vai recomeçar novamente.
- Não! - respondi-lhe, resoluto.
- Afinal, que é que você vai fazer? Vai separar-se de Karin?
- Sim. Vou separar-me de Karin.
Pensei comigo: "Sou capaz de fazer o diabo, se preciso for. Não há quem não tenha um baque, um grande transtorno na vida, mais cedo ou mais tarde. Uns, não podendo resistir ao impacto desse baque, morrem. Outros, entretanto, continuam a viver. E pode-se continuar vivendo se a gente souber curar o sulco profundo deixado pela desgraça. Neste mundo, certamente milhões de pessoas vivem assim. A maioria das pessoas, indiscutivelmente. Perderam todas as esperanças. Não sabem sequer o que significa a palavra 'esperança'. E nem querem saber. Vivem satisfeitas desse modo. Fico, também, muito satisfeito com a minha viagem a Cannes. Só assim o médico não poderá propalar os comentários sobre minha doença. Tenho que sair de casa, que já não é mais um lar para mim. Tenho que ir para bem longe da minha mulher, a qual, falando com sinceridade, já faz muito tempo que não é mais a minha mulher. Naturalmente essa minha fuga vem se dando de maneira diferente do que eu esperava. Mas está acontecendo e continuará a acontecer. Eu me conheço bem. Minhas funções eu sempre terei que desempenhar. Terei que manter a minha posição. Não posso deixar de ganhar dinheiro".
Eu ruminava todos esses pensamentos enquanto Gustav, apressado, ia me entregando documentos, papéis, passagem aérea e um catálogo com as palavras-chave para a codificação de telegramas. Ele não parava de falar enquanto me dava instruções, sem deixar de emitir sua opinião. Eu quase não prestava atenção às suas palavras. Já sabia como deveria proceder. Fazia dezenove anos que vinha me desincum-bindo de encargos dessa natureza.
Capítulo 6
-O médico de confiança da Global chamava-se Dr. Wiihelm Betz e tinha o seu consultório num dos novos edifícios da Grafenberger Allee.
Era um cidadão de, no máximo, quarenta anos de idade. Seus cabelos, brancos como a neve e duros como fios de arame, estavam bem penteados. Tinha a pele amorenada pelo efeito dos raios solares, pois exatamente nesse dia reiniciava suas atividades após um bom período de férias. Notava-se logo que o Dr. Betz desfrutava de ótima situação: médico de confiança de três pujantes companhias de seguros e, além disso, possuidor de uma boa clientela, composta na sua quase totalidade de gente rica.
O exame terminara. Encontrava-me, então, sentado na frente da sua mesinha preta de ébano, numa sala bem ampla, que parecia destinada a conferências especiais. Nessa sala havia uma grande quantidade de esculturas e máscaras trazidas da África. As máscaras pendiam das paredes caiadas e as esculturas, todas talhadas em ébano, estavam colocadas sobre móveis pretos.
Sobre o soalho via-se um monstro bem grande, de cerca de um metro e meio de altura. Representava o deus da fecundidade, tendo um falo de certamente meio metro de comprimento. Esse pênis era, contudo, superado por outro que - limitando-me a falar da coisa em si -, munido de testículos, se achava sobre a mesinha. O Dr. Wilhelm Betz não parava de esfregar e alisar continuamente esse membro viril feito de ébano. Parecia tratar-se de um hábito que ele adquirira. Não conseguia concentrar-se para um raciocínio profundo sem estar alisando aquele pênis.
Nesse momento, ele tinha diante de si as duas fitas do eletrocardiograma: a do ano anterior e a última, daquele dia. Durante o exame, na décima quinta dobrada do joelho, quase senti falta de ar, mas mesmo assim consegui fazer a prova. Até que me sentia muito bem. A essa hora, um pouco antes das doze, a chuva batia fortemente na vidraça. O tempo ia piorando cada vez mais.
Estando ainda no escritório da companhia, telefonei a Karin comunicando-lhe que eu deveria viajar urgentemente a Cannes e pedindo-lhe que me preparasse, como fazia habitualmente, as duas maletas e a mala grande com minhas roupas. Nada de roupas leves, pois em Cannes, como em Düsseldorf, fazia frio ainda. Disso me havia advertido a secretária de Gustav. Karin, de tanta raiva, nada respondeu ao telefone, tendo simplesmente colocado o fone no gancho. E dizer que eu lhe havia prometido tirar umas férias...
- Por favor!
Fui bruscamente arrancado dos meus pensamentos e devaneios. O Dr. Betz estava se dirigindo a mim. Fitava-me com o semblante sério. Com uma das mãos ajeitava seus modernos óculos de armação preta e com a outra continuava alisando aquele monstruoso pênis colocado sobre a mesinha. Perguntou-me:
- O senhor não tem sentido alguma dor bem forte?
- Dor? Dor bem forte? Eu?!
Minhas sobrancelhas se levantaram. Estava claro que ele havia encontrado algo. Eu não tinha outra alternativa senão fazer uma encenação bem grande, procurando despistar tudo. Continuei:
- Nunca senti nada. Por quê, doutor? Algo não está em ordem?
- Trata-se do diagnóstico feito através do exame de urina: açúcar, colesterina e outras coisas mais que não posso citar agora. Devo antes verificar o resultado do exame a ser fornecido pelo laboratório. E o seu eletro não me agrada. Absolutamente, não me agrada.
Ele não parava de esfregar o membro colocado sobre a mesinha.
- Como assim? O eletro tirado na última vez...
- ... era completamente normal.
- Ainda bem!
- Mas isso foi há um ano.
O Dr. Betz levantou-se e começou a caminhar na sala de um lado para o outro. Em frente ao deus da fecundidade, no lado oposto, encontrava-se também uma escultura da deusa da fecundidade com uma barriga rotunda, de forma quase esférica e grandes seios pendentes. O Dr. Betz, caminhando, passou no meio desses dois tesouros.
- Por favor, preste atenção, Sr. Lucas: o senhor já completou quarenta e oito anos, não é verdade?
- Sim, senhor.
- Essa é a idade mais perigosa.
E era logo a mim que ele vinha dizer isso!
- O senhor fuma demais, não é verdade?
- Um pouco demais.
- Quanto? Quarenta cigarros por dia? Cinqüenta?
- Talvez uns sessenta.
- Pois então pare de fumar!
Veio postar-se na minha frente, falando bem na minha cara. Senti o cheiro de hortelã-pimenta, bem como o perfume de uma caríssima água-de-colônia.
- O senhor terá que deixar de fumar imediatamente. Não deve mais fumar nem mesmo de vez em quando. Sei que não é muito fácil fazer isso, mas eu o exijo do senhor. Caso contrário...
Nesse ponto interrompeu a frase com o visível intuito de dar maior efeito às suas palavras.
- Caso contrário, que acontecerá, doutor?
- ...o senhor dentro de um ano terá que tratar da sua pensão... Se tiver a felicidade de viver ainda um ano.
Levantei-me em sobressalto, chegando quase a dar um encontrão com ele.
- Que significa isso? Estará tão ruim assim o meu eletro que o senhor...
- Sente-se, por favor. Seu eletro está bem ruim. Não direi catastroficamente ruim, mas muito pior do que o de 1971.
Passou, então, a formular-me perguntas que eu, em sã consciência, deveria ter respondido firmativamente. Ele era um bom médico. A Global, como é óbvio, não iria escolher qualquer imbecil para seu médico de confiança.
- O senhor já teve algum ataque?
- Ataque?!
- Quero dizer: ataque do coração. Ou, melhor explicando, algum acesso doloroso, com suores em abundância, respiração deficiente e uma forte sensação de angústia...
A essa altura começou novamente a esfregar e alisar o enorme pênis colocado em cima da mesinha.
- Ora, que pergunta me faz o senhor, doutor! Nunca senti nada disso. E é tão verdade o que lhe afirmo como é verdade que estou aqui sentado na sua frente. Nunca senti nada!
- Nunca realmente?
- Por que teria que lhe mentir?
- Trata-se apenas de uma pergunta.
- Escute-me, doutor: eu tenho um ótimo contrato. Na hipótese de eu requerer a minha aposentadoria, passarei a perceber quatro quintos dos meus proventos atuais. Isso significa que continuarei tendo ainda um bom ordenado. Por que devo, pois, mentir ao senhor?
Só me restava torcer para que ele não procurasse obter informações com relação ao meu ordenado: eu acabara de lhe pregar uma grande mentira! Se me aposentasse, passaria a perceber só um terço dos meus proventos. De mais a mais, devia tentar, por todos os meios possíveis, dissuadi-lo da idéia de fazer à Global qualquer comunicação referente ao meu exame.
- Bem... Se o senhor até agora não teve nenhum ataque estenocardíaco, tanto melhor...
- Como foi que o senhor disse?
- Estenocardíaco. Isso significa péssima irrigação sangüínea através do coração. Entretanto, se o senhor continuar fumando, mais cedo ou mais tarde vai sofrer um ataque dessa espécie, posso garantir-lhe. - "E esses ataques são muito desagradáveis, creia-me, doutor", disse eu em pensamento,
- O senhor consegue andar sem dificuldades?
- Não estou compreendendo sua pergunta, doutor.
- O senhor não sente nada nos pés quando anda? Nenhuma dor?
- Absolutamente nada!
- Nem quando anda depressa?
- Nada. Nunca.
- Principalmente no pé esquerdo o senhor nada sente? Com um dedo passou, agora, a bater maquinalmente
na cabeça do pênis.
- Nada disso, que esperança, doutor!
Esbocei um sorriso. Nunca na minha vida me senti tão indisposto para sorrir. E ele continuava insistindo:
- Uma dor assim que parece ocasionada por uma certa distensão na perna esquerda, o senhor nunca teve?
Nesse instante, com o dedo, começou a tamborilar rit-madamente sobre a cabeça do pênis.
- Também não.
- O senhor nunca teve a sensação de que o seu pé esquerdo estivesse pesado? Pesado como chumbo?
- Isso eu lhe teria declarado imediatamente, doutor!
- Teria declarado mesmo?
Encarou-me fixamente durante um bom tempo, depois foi até a janela, de onde passou a observar a chuva que caía lá fora.
- Uma dor, uma espécie de distensão muscular, no Jado esquerdo do peito, o senhor nunca sentiu?
- Nunca.
- Uma espécie de dor que começa no lado esquerdo do peito e vai se alastrando até o braço ou, às vezes, até a mão?
- Nunca senti isso na minha vida!
Oh, Hikon de Hong Kong! Oh, Han-yuan! Oh, Jardim Magnânimo!
- Diga com sinceridade, Sr. Lucas: o senhor nunca teve a sensação de ter envelhecido bruscamente?
Resmunguei.
- Envelhecido?! Nunca me senti com tanta disposição como ultimamente! Hoje à tarde vou tomar o avião para Cannes. Catorze dias atrás eu me encontrava em Hong Kong. Envelhecido?! Ridículo!
- Não, nada há de ridículo na minha pergunta - respondeu-me, em voz baixa.
Inopinadamente notei que a vidraça da janela refletia meu vulto tal qual um espelho. Como estivesse muito escuro lá fora, com o céu nublado, achava-se acesa sobre a mesinha uma lâmpada que projetava sua luz sobre mim. Desse modo, o Dr. Betz podia ficar observando perfeitamente meu semblante mesmo estando com as costas voltadas para mim.
- O senhor se encontra num estado de fraqueza? Isso se podia notar facilmente, mas respondi:
- Não.
- Sente tonturas?
- Não.
Oh, meu Deus, ele não parava de citar, um por um, todos os sintomas da minha doença!
- Dores de cabeça?
- Nunca tive na minha vida.
- Esgotamento? Estafa? Incapacidade para o trabalho?
- Pergunte ao meu chefe! Nunca trabalhei tanto e com tanta disposição como nestes últimos tempos.
- Bem. O senhor é muito sensível ao calor?
- Nunca fui.
Eu ia ficando cada vez mais indisposto, mas não parei de sorrir, pois ele me observava através da vidraça.
- O senhor tem dificuldade em se concentrar?
- Nem a mínima dificuldade.
Virou-se para mim. Deu alguns passos entre as esculturas. Endireitou uma das máscaras que estava mal pendurada na parede. Depois veio sentar-se novamente à sua mesinha.
- Parece que está tudo bem, Sr. Lucas. Talvez o senhor esteja me dizendo a verdade. ..
- Com a sua licença, então...
- Não. Não se apresse ainda. - Encarou-me sério, fazendo mesmo uma certa carranca. - Mas também pode ser que o senhor esteja mentindo. Não sei. Não posso ler se!S pensamentos. Só tenho que me basear neste eletro. O sennhor vai viajar para Cannes!
- Tenho que ir a Cannes!
- Ninguém, levando-se em conta determinadas circunstâncias, é obrigado a ter que fazer algo.
- Trata-se de um caso urgente.
- Tudo deixará de ser urgente quando o senhor estiver morto.
- Doutor, peço-lhe, não fale assim! Sei que estou com boa saúde. Sinto uma disposição para o trabalho como nunca tive na vida. Tenho até a impressão de estar mais remoçado. Absolutamente, não sei o que é estafa.
Que mentiras deslavadas! Por que motivo só lhe disse mentiras? Por que não me dei por vencido ante o seu insistente interrogatório, confessando-lhe a verdade? Simplesmente porque, em tal hipótese, eu perderia meu empregoe seria forçado a tratar da minha aposentadoria. E, como aposentado, teria que viver com um ordenado insignificante. E, além disso, teria que ficar ao lado de Karin. Sempre ao lado de Karin.
- Então está bem. Não prosseguiremos. Tome seu avião para Cannes. Pare imediatamente com os cigarros senão o senhor estará em constante perigo de vida e passará a sentir todos esses sintomas que, conforme o senhor mesmo afirma, não sentiu até agora. Seria até melhor que o senhor tivesse logo todos esses incômodos.
- Por quê, doutor?
- Porque o senhor procuraria cuidar melhor da sua saúde, decidindo-se a acabar de vez com o vício dos cigarro. Mas já que o senhor quer viajar, seja feita a sua vontade. Se lá em Cannes, por qualquer circunstância... mudança de clima, esgotamento, etc.... o senhor perceber um desses sintomas ou até mesmo for acometido de um ataque, deverá regressar imediatamente. Com a máxima urgência.
- Isso eu lhe prometo, doutor - respondi, mas pensando com os meus botões: "Uma merda que eu vou fazer isso!"
- A mim o senhor nada tem que prometer. Sou obrigado a informar à companhia os resultados deste exame. Não sei se ela vai permitir que o senhor continue em Cainnes.
Era o pior que poderia me acontecer!
- Geralmente uma companhia desse porte leva em conta as minhas recomendações exclusivamente quando dizem respeito a elementos que integram sua alta administração ou a funcionários categorizados cuja substituição rápida se torna difícil.
Para mim estas últimas palavras soaram melhor.
- O senhor, pelo que declarou, não faz parte da alta administração da empresa. E creio, também, que, em caso de necessidade, não será difícil fazer sua substituição, não é verdade?
- Claro. Minha substituição pode ser feita imediatamente. Em caso de necessidade, não há homem que não possa ser substituído. Mas permita que eu lhe pergunte: que é que o meu eletro revela, doutor? Que acha o senhor que eu deveria ter sentido no pé e no coração?
- Já lhe expliquei claramente: distúrbio circulatório causado por irrigação sangüínea deficiente. Claudicatio intermitens é como se designa essa doença. Claudicare significa coxear ou mancar.
- Nada se pode fazer contra essa doença?
- Bem, antes de mais nada, o senhor terá que deixar de fumar. Será imprescindível, também, uma medicação adequada.
- Que medicação?
- Visto que o senhor afirma não ter sentido nenhum dos sintomas que mencionei, nada tenho a fazer senão prescrever-lhe uma medicação exclusivamente de caráter profilático.
Em seguida, pegou o bloco de receitas, rabiscou o nome do medicamento e carimbou devidamente o papel. Prescreveu-me Nitrosteron! Vejam só: Nitrosteron, que há mais de um ano eu vinha usando cada vez que era acometido de um acesso de fortes dores no peito e no braço! A situação estava até se tornando cômica. Estupidamente cômica.
- Se o senhor for acometido de algum ataque, deverá tomar um ou dois comprimidos, mastigando-os. Além desses comprimidos vou prescrever-lhe mais um remédio. Como já lhe disse, não sei se o senhor falou a verdade ou não. O exame diz respeito à sua vida e não à minha.
- Escute-me, doutor: o senhor não pode continuar dizendo que lhe menti e que...
Levantou-se abruptamente sem esperar que eu concluísse a frase.
- Desculpe-me. Tenho um importante encontro marcado para as doze horas. Boa viagem!
A mão que ele me estendeu para a despedida estava fria e seca e parecia desprovida de força até mesmo para um aperto de mão. Era só com a outra mão que ele alisava o gigantesco pênis. Não deixava de ser um tipo bem esquisito esse Dr. Betz. Mas este mundo, para ser mundo, deve ter toda espécie de gente.
Capítulo 7
- Mas não pode ter ficado tão caro assim em tão pouco tempo! Esse já é o terceiro aumento este ano. Quando houve a primeira alta o frasco custava ainda cinco marcos e noventa centavos. E agora já está custando sete marcos e setenta e cinco centavos! Como é que pode acontecer uma coisa dessas, Srta. Nanita?
A velha corcunda, com um casaco cinza, tinha o semblante triste, cabelos grisalhos e as mãos totalmente cobertas de sardas. Calçava uns sapatos muito velhos. Sua cabeça tremia ininterruptamente. Tinha um acesso de tosse intermitente. Uma tosse horrível. Essa velha era a única freguesa que se encontrava na farmácia quando entrei. Atrás do balcão, atendendo-a, estava uma linda moça vestida com um avental branco de farmacêutica. Era a farmácia onde habitualmente eu fazia minhas compras por achar-se próxima à minha residência. Em cima do balcão de vidro via-se um frasco de remédio. A velha pareceu não ter notado minha presença. Segurava um guarda-chuva fechado, do qual pingavam gotas de chuva no piso de cerâmica.
- Sinto muito, Sra. Prawos - respondeu a linda jovem que se chamava Nanita. - Realmente tenho pena da senhora. Mas os medicamentos, como todas as coisas, também subiram de preço.
- Eu sempre tenho que tomar algum xarope contra a tosse, Srta. Nanita. A senhorita me conhece há anos e bem sabe disso. O preço é muito alto. Acho que o médico não deveria me receitar um remédio tão caro assim. Mas é o único tipo de xarope que me faz efeito!
Só nesse instante a velha notou a minha presença.
- Desculpe-me, meu senhor!...
E começou a tossir assustadoramente.
- Já passou o acesso de tosse. Está tudo bem agora! -- disse eu sorrindo para a velha e para Nanita.
A moça correspondeu ao meu sorriso. Nós já nos conhecíamos há muito tempo. A velha continuou falando com amargura:
- Ainda se fosse só o xarope! Mas tudo está ficando cada vez mais caro, subindo de preço dia a dia: o leite, a manteiga, o pão, a carne, os selos do correio, o transporte do lixo, seja lá o que for que o senhor disser. Ah, meu Deus, e o apartamentozinho de sala e quarto conjugados lá na Luisenhohe!
- O quê? - perguntei.
- Luisenhohe... Mas eu não estou atrapalhando o senhor com esta minha conversa?
- Não, senhora. Absolutamente! Mas que significa Luisenhohe?
A velha, à medida que falava, ia se tornando cada vez mais agitada. Suas faces tremiam incessantemente. Falar sobre esse apartamentozinho ou saleta e quarto conjugados, a grande aspiração da sua vida que tanto a afligia, deixava-a realmente emocionada.
- Luisenhohe é uma antiga mansão particular. Maravilhosa. Fica num parque. Lugar tão calmo! Eu sempre quis ir morar lá. Faz anos que é o meu sonho. Possuir um quarto lá. Ah, que maravilha!
Nessa altura da conversa comecei a pensar que Brandenburg, depois de receber as informações do médico sobre meu estado de saúde, talvez mandasse me chamar de volta para despachar-me. Se ele realmente fizer isso e se eu, doente como estou, tiver que continuar vivendo junto com Karin, que vai ser de mim? Será que poderei suportar uma situação dessas?
- Eu só queria ter um desses apartamentozinhos e nada mais, entende? Mas entre as criaturas só existe maldade e mais maldade. Veja o senhor, meu marido (Que Deus o tenha no seu Reino de Glória!) trabalhava nos Correios. Agora eu vivo de rendas. Faz doze anos que o meu pobre Otto morreu. Ele só economizava e economizava e depois eu herdei tudo, sabe? Onze mil e seiscentos marcos foi a quantia que ele deixou. Botei esse dinheiro no banco. Eu pensei que se não fizesse assim o dinheiro ia sumir mais ligeiro do que manteiga no focinho de cachorro faminto. Gasta daqui, gasta dali, quando a gente se dá conta já está sem nada. Pelo menos assim o dinheiro está seguro e eu tenho alguma esperança de comprar um apartamentozinho de sala e quarto conjugados lá na Luisenhohe.
- Sra. Prawos - interrompeu Nanita -, não é preciso a senhora ficar repetindo isso, batendo sempre na mesma tecla!
- Eu tenho que falar, ora! - retrucou a velha alteando a voz. - Foi o senhor aqui que me perguntou. Ou não lhe interessa o que estou contando?
- Claro que me interessa! - respondi e fiz um sinal para Nanita indicando que não estava com pressa. A velha continuou tagarelando:
- Então, veja o senhor, eu queria comprar um apar-tamentozinho para mim. Era o meu mais firme desejo. Um quarto meu para morar até o fim da minha vida. E eu tinha que pagar com o meu dinheirinho depois de fazer alguma reserva. Então tinha que economizar a renda para me sobrar dinheiro para o meu sustento e para o meu tratamento. Cheguei mesmo a deixar uma parte dos juros todos os meses lá no banco para aumentar o meu capitalzinho. E o senhor sabe o que aconteceu?
- O quê?
- Eles me pagam de juros a miséria de três e meio por cento. Mas eles emprestam dinheiro para os outros só a oito por cento ou mais. Como pode haver homens tão desgraçados e ordinários assim? Como é que para nós, os miúdos, eles pagam só três e meio por cento, mas emprestam o dinheiro aos outros a oito por cento, ficando cada vez mais ricos a ponto de mandarem construir para eles palácios de mármore?
- É lamentável que isso aconteça! - respondi, e passei a refletir sobre o que pretendia Brandenburg insinuar-me quando me perguntou: "Se a Global, nesta conjuntura, assumisse vultosas obrigações em libras, quanto não iria ela abocanhar liquidando posteriormente tais compromissos com essa moeda desvalorizada?" Depois dessa elucubração retomei o fio da minha conversa com a Sra. Prawos:
- Quem precisa de dinheiro com urgência paga de bom grado oito por cento de juros.
- É verdade. Mas a gente tem que ver que qualquer sujeito só recebe um empréstimo se ele. dá garantias. Eu não tenho nenhuma garantia do banco. Há sete anos eu quase consegui! - Soltou um profundo suspiro, pondo a mão na testa.
- A senhora conseguiu o quê?
- A compra do apartamentozinho na Luisenhohe. Naquela época eles queriam doze mil marcos por um deles.
Com muito sacrifício, apertando bem o cinto, eu podia ter conseguido esse dinheiro. Mas aí então, quando fui lá, eles disseram que no momento não havia nenhum quarto livre para vender e que eu tinha que esperar um pouco. Esperei um ano. Mas depois de um ano eles já queriam catorze mil marcos! E eu sempre continuando com os meus tristes três e meio por cento! Por causa da subida de preços das coisas tenho que deixar cada vez menos dinheiro dos juros na minha conta. E a cada ano que passa tudo vai ficando pior. Sabe o senhor quanto eles estão pedindo por um quarto lá na mansão Luisenhohe hoje em dia? Dezoito mil marcos! No ano que vem, sem dúvida, eles vão pedir vinte mil. Oh, não, nunca na minha vida vou conseguir o meu cantinho!!
- Mas a senhora pode adquirir o seu apartamentozinho num conjunto habitacional. Por exemplo, pode comprar um quarto através do Serviço do Bem-Estar dos Proletários ou de alguma instituição missionária. Creio que a senhora, dessa maneira, poderia contar com o auxílio das organizações sociais.
- Mas eu não quero apartamentos desse tipo. Como já lhe disse, meu falecido marido trabalhava nos Correios e tínhamos uma linda residência. Por isso, agora, eu quero ter um quarto bem bonitinho. Será que estou querendo muito, meu senhor? Por que não posso ter um quarto do meu gosto? Por que será que os apartamentos estão ficando cada vez mais caros na mansão Luisenhohe? Por que será que me pagam só três e meio por cento? Quem é que faz a coisa ficar desse jeito?
- É difícil responder à sua pergunta - disse eu à Sra. Prawos e refleti que, se ela tivesse em depósito no banco algumas centenas de milhares de marcos, poderia, com toda a certeza, conseguir seis ou sete por cento de juros. - Hoje em dia está assim em todo o mundo. Em qualquer lugar os bancos operam da mesma forma. E as coisas aumentam de preço em toda parte.
- É verdade. Isso mesmo disse um estudante que mora num quarto alugado ao lado do meu. E o senhor sabe o que mais ele disse?
- O quê?
- Ele disse que os ricos vão ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres. Mas o pessoal pediu o quarto que ele ocupa e ele tem que ir embora.
- Por quê? - interrogou Nanita.
- Porque ele disse essas coisas. Essas e outras mais. O pessoal que lhe tinha alugado o quarto disse que ele era comunista.
Ele lia muitos livros e depois explicava para a gente o que estava escrito. Um dia, por exemplo, ele leu um livro sobre a infelicidade e deu todas as explicações.
- Que foi que ele explicou a respeito da infelicidade? - perguntei.
Sentia-me extenuado depois do exame do Dr. Betz. Só queria que meu avião levantasse vôo dentro de duas horas e meia levando-me para longe dessa cidade, transportando-me para qualquer lugar distante onde pudesse ficar só. Fazia muito tempo que eu só sentia prazer no isolamento. Mesmo quando ficava doente, não permitia de forma alguma que Karin ficasse perto de mim.
A velha prosseguiu:
- O estudante disse: "A infelicidade não vem como a chuva, mas é provocada por aqueles que tiram algum proveito dela".
- Brecht! - exclamou a linda jovem Nanita. - Foi Brecht quem escreveu isso.
- Sim. O que a senhorita diz está certo. Foi esse nome que o estudante falou. Esse tal de Brecht é comunista?
- Ele já morreu - respondeu Nanita. - Então ele era comunista?
- Sim.
- Ah, então eu também não devo falar mais com esse estudante! - exclamou a velha com tristeza e desandou a tossir. Depois de, com muito esforço, ter expelido o catarro do peito, continuou:
- Era um rapaz tão distinto! Ele não era um desses cabeludos, sabe? Só usava cabelos curtos.-Andava sempre limpo e era muito amável e delicado. Ia com freqüência fazer as compras para mim e me ajudava na limpeza do meu quarto. No inverno era sempre ele que ia me buscar o carvão lá embaixo, no subsolo do edifício. Eu moro num edifício muito velho, que não tem aquecimento central. O carvão também subiu neste último inverno. Mas se o estudante fala essas coisas como um comunista eu não devo mais conversar com ele. Muita gente já me tinha avisado, mas nunca acreditei que ele fosse comunista. Agora tenho que acreditar. E os comunistas são, para nós, o maior perigo!
- Por quê? - perguntei-lhe.
- Eles não reconhecem nenhuma propriedade privada. " Neste ponto a velha falava tossindo quase que ininterruptamente. - Para eles todas as pessoas são iguais. É um absurdo. E eles tiram as casas e os terrenos dos proprietários.
Bem, tenho que pagar sete marcos e setenta e cinco centavos, não é?
A velha tirou da bolsa a única nota que lá se achava, colocando-a sobre o balcão de vidro. Nanita embrulhou o frasco de xarope, entregando-o à velha.
- Ainda hoje de tarde vou receber uma comunicação dizendo-me se há algum quarto à venda na Luisenhohe. Deve existir agora um apartamentozinho, naturalmente muito pequeno, que talvez eu possa comprar.
- Faço votos para que a senhora o consiga! - disse Nanita.
- Obrigada. Mas eles já me disseram tantas vezes que havia um apartamentozinho à venda e quando eu vou lá não existe mais nada. Não, não, nunca mais vou realizar esse meu sonho, tenho certeza!
Pensei comigo: essa pobre velha, com o seu grande sonho de possuir um pequeno apartamento-, uma simples sala, pelo que disse, assusta-se ante a idéia da expropriação de bens. A libra esterlina será liberada amanhã e deverá sofrer, em conseqüência disso, uma desvalorização de cerca de oito por cento. Gustav Brandenburg suspeita que Herbert Hellmann tenha se suicidado. Por causa disso tenho que tomar o avião para Cannes. Devo ir a Cannes a fim de constatar se Gustav está certo nas suas conjeturas. Será que Herbert Hellmann não poderia explicar à velha Prawos de onde surge a infelicidade e quem a provoca?
Capítulo 8
Não parava de chover nesse dia.
Eu me achava sentado, juntamente com Karin, no restaurante do aeroporto. Estávamos tomando chá enquanto aguardávamos que fizessem a chamada dos passageiros. Mas essa chamada havia sido adiada diversas vezes sucessivamente por períodos de um quarto de hora. Os pilotos alegavam estar aguardando instruções de serviço. Exigiam aumento de salário e por causa dessa greve promovida por eles muitos aparelhos estavam em atraso. O restaurante, bem como todas as dependências do aeroporto, achava-se superlotado. Viam-se ali pessoas nervosas, homens e mulheres irritados e um grande número de crianças chorando.
À nossa mesa estava sentado, também, um casal americano. Eles não tinham pedido nada ao garçom, estavam apenas examinando uma grande quantidade de fotografias que o homem trazia numa pasta de couro. A mulher usava uns óculos de lentes espessas. Olhavam as fotografias e conversavam entre si. Eu e Karin estávamos sentados do lado da janela, numa posição que me permitia ver, através da vidraça, a chuva torrencial que caía lá fora, a pista de aterrissagem do aeroporto, os aviões de passageiros e os aparelhos de transporte de cargas. Lá fora, tudo parecia estar envolto num véu vaporoso e a água da chuva ia penetrando no restaurante transportada pelas roupas e sapatos molhados. Muita gente tossia e espirrava.
Uma voz feminina, no alto-falante, passou a anunciar: "A KLM comunica que a partida do seu vôo 451, com destino a Londres, será adiada mais uma vez por cerca de meia hora". A informação foi repetida em inglês.
- Now look at me here, at the Hofbrauhaus -- disse o americano, mostrando uma foto à mulher.
- It's just cute - respondeu ela.
Karin viera comigo ao aeroporto a fim de levar de volta o nosso carro. De tão furiosa, ela ainda não havia pronunciado uma palavra.
Quando cheguei a casa minhas malas já estavam prontas. Ela não fez nenhuma daquelas suas cenas costumeiras. Não havíamos trocado nem mesmo cinco palavras um com o outro. E já fazia mais de uma hora que estávamos ali sentados aguardando a chamada dos passageiros do meu avião. Uma vez ou outra aterrissava ou decolava um aparelho. Muitos carros traziam passageiros ao aeroporto ou levavam os que desembarcavam.
Novamente soa a voz feminina no alto-falante: "Atenção! Atenção! A Lufthansa comunica que a partida do vôo 567, com destino a Nice e escala em Paris, será adiada por mais um quarto de hora".
Logo depois que essa comunicação foi feita, Karin, ino-pinadamente, começou a falar:
- Que tudo corra bem para você em Cannes!
- Obrigado.
Ambos, sem nos fitarmos enquanto falávamos, ficávamos olhando para fora, observando a chuva que caía.
- O mais importante, agora, é que tudo corra bem para você, não é verdade?
Não lhe dei resposta.
- This is Sue and me at Oberammergau.
- Now isn't this just cute!
- Que tudo corra bem para você e para a porcaria da sua empresa. - Nesse momento Karin falava devagar mas em voz alta. - Todas as companhias de seguros são enganadoras. E você ajuda a sua a lograr os clientes. Desejo-lhe bom divertimento!
- Obrigado.
- Francamente, não acredito que o médico tenha dito que você está em perfeito estado de saúde.
- Então pergunte a ele, ora!
- Você bem sabe que a mim ele não prestará nenhuma informação.
Novamente fiquei sem dar-lhe resposta.
- Here we are in the Prater. This is the Riesenrad.
- Now isn't it just cute!
A voz no alto-falante solicitava a um certo Mr. Hopkins, com passagem na Trans World Airlines para Nova York, que se dirigisse ao guichê da companhia.
- Já estou cheia disso aqui! - exclamou minha mulher, com visível manifestação de impaciência. - Não vou esperar mais. O que pode significar para você minha presença aqui?
Continuei calado.
- Entregue-me os documentos do carro e a chave. Entreguei-lhe tudo.
- Telefonarei logo que chegar ao meu destino - disse-lhe eu, com a impressão de ter ficado um tanto acanhado.
- Está bem!
Karin levantou-se. Eu também me levantei e ajudei-a a vestir a capa de chuva.
- Passe bem! - disse Karin.
- Você também.
Ela saiu do restaurante sem me fitar. Fiquei observando-a até que ela desaparecesse. Depois sentei-me novamente e continuei a olhar a chuva que caía lá fora.
"Atenção! Atenção! A Pan American Airways comunica que a partida do seu vôo 875, com destino a Roma e escala em Munique, terá um atraso de cerca de meia hora", anunciou a voz feminina no alto-falante, repetindo, como era de praxe, a mesma comunicação em inglês.
Capítulo 9
Tenho quarenta e oito anos de idade.
Daqui a dois anos completarei cinqüenta. Talvez eu morra no decurso desses dois anos. Talvez possa viver mais tempo. Estou doente e sei que estou doente. Talvez esteja muito doente. Talvez nem tanto. Essa circunstância nada importa. Sempre tenho trabalhado muito durante toda a minha vida. Tenho ganho bastante, é verdade. Possuo um lindo apartamento com coisas bonitas. Mas acontece que estou morando nesse apartamento com uma mulher que não amo. Outrora eu a amei. Não, nunca a amei! Tratava-se simplesmente de uma impulsiva manifestação de voluptuoso desejo erótico. E, na fase em que durou essa minha volúpia, me sentia feliz. Uma felicidade que não durou nem três anos. De outra maneira, isto é, fora desses desejos impulsivos, nunca tive felicidade na minha vida. Ou será que tive? Ah, sim, quando criança. Tive uma infância feliz, com muitos amiguinhos e companheiros de brinquedo. O que mais me agradava era um cachorrinho que possuí. Esse animalzinho certo dia foi atropelado por um caminhão de carga. Não morreu na hora, mas ficou muito machucado. A gente notava que ele iria morrer. As outras crianças, na rua, ficaram em torno de mim e do meu cachorrinho ferido. Elas permaneciam quietas, em profundo silêncio. Apanhei de um monte de materiais de construção um pesado paralelepípedo, abaixei-me junto do animalzinho, alisei pela última vez a cabeça dele e ele lambeu a minha mão. Depois levantei o paralelepípedo e com toda a força fiz saltar os miolos do pobre bicho.
Eu não queria que ele ficasse sofrendo por muito tempo. Entretanto, os outros meninos gritaram comigo, espancaram-me e, depois, fugiram correndo. A partir de então nenhum deles quis mais brincar comigo. Meus pais, por castigo, me prenderam no meu quarto durante uma semana. Eles não permitiram que o cachorrinho fosse enterrado no nosso jardim. O caminhão da limpeza urbana levou embora 0 pequeno cadáver. Eu gostava muito do animal: foi por isso mesmo que o matei. Ninguém, na verdade, pôde compreender o meu sentimento íntimo nem a razão dessa minha atitude. Durante muito tempo ainda rezei pelo meu cachorrinho, para que ele se sentisse sempre feliz onde quer que estivesse, depois disso nunca mais rezei na minha vida. Ou, melhor, so rezava nas ocasiões dos meus ataques, embora não se pudesse chamar de reza, no seu exato sentido, as súplicas que eu então fazia.
Nunca mais possuí um outro cão. Amigos, sim, tive muitos ainda: durante a guerra, após a guerra. Depois que me casei eles foram, aos poucos, se distanciando de mim. Minha mulher não lhes agradava e eles não agradavam a ela. No princípio, eu sempre me dobrava à vontade de Karin e fazia tudo como ela queria, pois era louco pelo corpo dela e não procurava outra coisa senão dormir com ela. Posteriormente deixei de me dobrar à sua vontade e passei a fazer só o que eu queria.
Mas quando modifiquei minha atitude, todos os meus amigos já haviam desaparecido. No desempenho das incumbências peculiares à minha profissão viajei por quase todo o mundo. Por estranho que pareça, em Cannes eu não havia estado ainda. Justifica-se: eu só ia para onde me mandavam e desincumbia-me das minhas obrigações tão bem quanto possível.
Como sempre acontece na vida, tive, com o meu trabalho, sucessos e fracassos. Mas essas viagens me propiciaram o prazer de dormir com muitas mulheres. Talvez não tantas, mas seguramente umas quarenta. Quarenta, no máximo. As prostitutas, com relação a mim, se revelaram sempre gentis. Nunca cheguei a amar qualquer uma dessas mulheres e creio nunca ter sido amado por alguma delas. Tenho absoluta certeza disso. Apesar dos meus quarenta e oito anos, devo confessar que até agora nunca senti realmente o amor em toda a sua plenitude. E é inconcebível que eu, a essa altura da vida, venha a senti-lo ainda. Sempre fiquei satisfeito com as meretrizes que me atenderam. A gente serve-se delas e depois fica completamente livre de qualquer compromisso. Tenho que fazer, pois, todo o possível para permanecer com saúde e poder trabalhar: é a única maneira que tenho de continuar vivendo sozinho, livre, fora de casa.
Com Karin nunca tive um filho, graças a Deus! Que faria eu com um filho, nessas circunstâncias, com todos esses transtornos em minha vida conjugai? Provavelmente a maioria dos casamentos são semelhantes ao meu. As pessoas habitualmente não comentam nada a respeito dos seus matrimônios. Eu e Karin nada comentamos tampouco. Todavia é indubitável que deve haver casamentos felizes. Que coisa bela e comovente é o verdadeiro amor recíproco! Nada posso dizer a esse respeito porque não faço a mínima idéia de como seria a vida num ambiente bafejado pelo verdadeiro amor. Na verdade, eu próprio nunca consegui amar. Que eu possa viver mais uns quinze anos com saúde a fim de conhecer outras regiões deste mundo.
E que eu fique sempre sozinho nos hotéis, nos bares, nos aviões ou nos carros-dormitórios. Depois, então, que eu morra logo, com um passamento rápido e sem sofrimentos. Seria até melhor que um desses meus ataques me levasse de uma vez. Ninguém choraria a minha morte. Nem mesmo Karin. Por que deveria ela chorar? Em hipótese alguma devo ficar doente, dando incômodo aos outros. Nem mesmo a Karin. Ser entregue, doente, aos cuidados de Karin é o pior dos pensamentos que eu poderia ter.
Meus pais morreram de doença do coração. Ambos tiveram que sofrer durante muito tempo. Mas eu, de forma alguma, posso me conformar com um sofrimento prolongado. Tenho que procurar, desde já, conseguir um veneno potente para dar cabo da minha existência na hipótese de me invadir uma enfermidade grave com sofrimentos prolongados. Eis a primeira coisa que devo fazer: adquirir, seja lá por que meio for, um veneno poderoso. Talvez consiga adquiri-lo em Cannes mesmo. Com dinheiro se consegue tudo. Devo conservar desde já esse veneno à minha disposição para fazer uso dele logo que as dores começarem a ficar muito fortes e insuportáveis, ou logo que perceber o desaparecimento dos últimos resquícios de força que me permitam enfrentar o trabalho. Sim, repito, devo adquirir imediatamente um bom veneno, de ação rápida, pois não sei por quanto tempo ainda poderei continuar com essa vida que estou levando.
"Atenção! Atenção! A Lufthansa anuncia o vôo 567 para Nice, com escala em Paris. Pede-se aos senhores passageiros que se dirijam à plataforma 14", informou a voz feminina no alto-falante. Eram exatamente quinze horas e trinta e cinco minutos. Chamei o garçom e paguei a minha conta. Em seguida entrei no pequeno ônibus que transportava os passageiros da plataforma até o avião. A chuva tamborilava fortemente sobre a capota do ônibus. Tivemos que decolar sob forte aguaceiro. Eu estava sentado ao lado de uma jane-Ünha, mas a chuva era tão violenta que não consegui perceber quando o piloto fez o avião subir. A tabuleta com a recomendação "NO SMOKING" estava apagada. Instintivamente levei minha mão para o bolso a fim de tirar o maço de cigarros que trazia comigo, mas retirei-a logo. Não! Nada de cigarros! Quero ver se realmente consigo deixar de fumar, cumprindo, assim, a recomendação do Dr. Betz. No meu pé esquerdo começou a surgir uma dorzinha leve. Mastiguei imediatamente dois comprimidos de Nitrosteron.
Ao meu lado estava sentada uma senhora com um menino, que me observava atentamente. Por fim, ele puxou meu braço levemente.
- Sim? O que é? - perguntei-lhe.
- Por que é que você está chorando?
- Eu não estou chorando.
- Olaf! - bradou a mãe, lançando ao menino um olhar severo de repreensão.
- Mas ele está chorando mesmo, mami!
Então passei a mão pelos olhos e notei que eles estavam úmidos.
Pensei: "Que esquisito!" Eu nunca havia chorado na minha vida. Expliquei ao menino:
- É a chuva, sabe? Eu me molhei lá no aeroporto. Ele continuou a me fitar fixamente com o seu olhar
indiscreto.
- O que é? Você não me acredita?
- Não! - retrucou simplesmente o menino, que se chamava Olaf.
Capítulo 10
Eu observava lá embaixo o mar que estava tão azulado quanto o próprio céu. O sol ainda brilhava, embora quase no ocaso, quando atingimos Nice. O avião descreveu com acentuada curvatura uma trajetória do mar para o aeroporto. Tive duas sensações no momento de desembarcar: senti muito calor e tive a impressão de ter aportado num outro mundo. Uma enorme quantidade de flores parecia estar em brasa sob a intensa radiação da luz do sol. Era uma luz muito diferente de qualquer outra que até então eu tinha visto na minha vida. Uma luz forte mas que parecia dotada do poder de acalmar o espírito e de fazer bem aos olhos. O ar que se respirava era tão ameno e suave como um banho morno.
As pessoas tinham um aspecto muito diferente: eram alegres, amáveis e tranqüilas. De fato, eu tinha a impressão de ter chegado a um mundo bem diferente, e uma sensação de bem-estar me invadiu.
No aeroporto permaneci durante um bom tempo ao lado da minha bagagem. Apesar do calor, aspirava em profundos haustos aquele ar reconfortante, sentindo em cada respiração uma espécie de alívio.
Em seguida tomei o táxi e segui em direção a Cannes. íamos por uma estrada que margeava o mar.
Que belo lugar para se viver! Como seria bom morar aqui até o fim da vida!
Passamos por diversas praias onde se viam muitos banhistas. As pessoas ali me pareciam muito mais lindas do que na Alemanha. Tratava-se evidentemente de uma impressão absurda, pois no meio de toda aquela gente encontravam-se muitos que não eram franceses (entre os quais, sem dúvida, também alemães). Mas a luz viva e o ar puro, num ambiente que irradiava paz e sossego, contribuíam sobremodo para fazer com que as pessoas parecessem mais lindas e vistosas.
Fazendo o nosso percurso, ladeávamos, então, um hipódromo, passando logo em seguida em frente de pequenos pavilhões, na sua maioria feitos de madeira e perfeitamente adaptados para funcionar como restaurante.
O céu estava tão azul quanto o mar, com exceção do lado do poente, que começava a tingir-se de um vermelho vivo. Os enormes paredões de um monte escarpado, tendo como fundo o horizonte avermelhado, pareciam luzir em incandescência e configuravam um quadro de indescritível beleza.
- Que monte é este? - perguntei ao chofer do táxi.
- É o Esterel. Se dispõe de tempo, é um bom lugar para o senhor visitar. O senhor viaja a serviço?
- Sim.
- Contudo, o senhor deveria arranjar um tempo e visitar certos locais desta região, dotada de encantadoras paisagens. Até mesmo seria importante visitar todos os arredores de Cannes: Vallauris, Biot, Antibes, Grasse, Vence, Juan-les-Pins, Saint-Tropez, as aldeias dos pescadores... Tudo, por estas bandas, é maravilhoso, monsieur. E não digo isso por bairrismo, creia-me. Eu só vim para cá depois que De Gaulle entregou a Argélia, onde, até então, eu sempre havia vivido. Lá eu tinha muitas propriedades e dispunha de recursos de vulto. Infelizmente tive que sair de lá. O senhor sabe como esta gente aqui nos chama?
- Sei, sim. "Pieds noirs."
Pieds noirs, que significa "pés pretos", era a designação que os franceses davam aos seus compatriotas que haviam sido compelidos a abandonar a Argélia. Segundo me declarou ele, na França lhe prometeram muita coisa, mas nada cumpriram. E eis que ele, outrora possuidor de grande fortuna, se viu na contingência de ter que trabalhar como chofer de táxi para poder sustentar a família.
No norte da França ele teria maiores chances, mas não pôde ir para lá porque a sua família não se dava bem com o clima. Ela precisava do sol e do calor constante desta região para se conservar com saúde.
Eu via lindas e imponentes mansões localizadas no meio de grandes parques ajardinados, repletos de palmeiras, pinheiros e eucaliptos.
Primeiro, o mar de águas azuladas, depois a rodovia pela qual estávamos transitando e, finalmente, do outro lado, o leito da via férrea.
Mais além da via férrea, em terrenos inclinados como ladeiras, é que se viam essas magníficas mansões pintadas de branco.
Algumas delas já eram muito antigas. Por duas vezes passou por nós a composição de um trem. O tráfego era intenso a essa hora. Levaríamos seguramente mais de uma hora para chegar a Cannes. Foi até sem muita demora que o táxi conseguiu atingir a Croisette, a encantadora e ampla rodovia que em todo o seu percurso ostenta, no seu centro, faixas bem delineadas, com canteiros de flores e grama, no meio das quais se sobressaem palmeiras de folhas verde-jantes. De um lado da rodovia acham-se magníficos hotéis, mansões e villas; do outro lado estende-se o mar.
Por toda parte os jardins e parques estavam floridos. Como encantava a vista contemplar a policromia das flores!
Eu começava a suar abundantemente. Em comparação com Düsseldorf, fazia muito calor ali. A maioria dos homens que eu via trajava somente calças e camisa esporte, calçando chinelos. As mulheres usavam calças coloridas ou vestidos bem leves.
Observei que também havia entre aquelas pomposas mansões ou villas circundadas de parques e jardins e entre aqueles grandes hotéis de luxo edificações baixas pintadas de branco, nas quais se achavam instalados restaurantes, armazéns e lojas. O chofer me dava explicações acerca de tudo o que eu via.
Ao passarmos em frente ao Carlton, apontou-me para uma pequena extensão de praia onde só se viam homens deitados e explicou-me:
- Esta é a praia dos pederastas. É exclusivamente destinada a eles.
- Existem muitos pederastas em Cannes?
- Oh, sim, é uma praga que se alastra. Mas também o senhor pode estar certo de que em toda a França não existem mulheres tão lindas como aqui, monsieur. O senhor verá.
Finalmente, chegamos ao Majestic. Ele se achava localizado um pouco distante da Croisette. Para atingir o hotel, subia-se por uma rampa bem larga que se estendia entre canteiros de flores. Enquanto tiravam minhas malas e eu pagava ao chofer, não parei de olhar em redor. À esquerda de quem entra pela frente do hotel encontra-se um amplo terraço.
Muitos homens estavam ali sentados tomando seus aperitivos. Em frente do terraço havia uma piscina toda de mármore branco. Algumas pessoas ainda estavam tomando banho. Uma ramificação da rampa conduzia à garagem no subsolo.
Fiquei durante um certo tempo observando a Croisette com suas sempre intermináveis filas de carros avançando em direção ao mar. Bem ao longe, mar adentro, eu via alguns navios e um bom número de barcos a vela. Permaneci contemplando o mar, as palmeiras, aquela gente alegre e aquele céu que de minuto a minuto, em mudanças indescritíveis, adquiria novos matizes, até que um funcionário da recepção do hotel se aproximou de mim, interrogando-me:
- Monsieur Lucas?
- Sim? - respondi-lhe como que despertando de um sonho com os olhos abertos.
- Seja bem-vindo a Cannes! - saudou-me ele sorrindo. - Quer que eu o acompanhe ao seu apartamento?
Concordei. Ele seguia na minha frente. Não pude furtar-me de continuar volvendo os olhos a fim de contemplar as palmeiras, as flores, o mar. Eu via mulheres muito lindas e também homens com ótima aparência.
Capítulo 11
- Foi muito bom o senhor ter vindo imediatamente, Monsieur Lucas! - disse-me Louis Lacrosse, o substituto do administrador-chefe da Direction des Affaires Maritimes, Marine Mediterranée.
Apertou minha mão. Sempre pronunciava meu nome à francesa. Eu lhe havia telefonado do meu apartamento no Majestic. Esse apartamento tinha vista para a Croisette e para mar.
Quando telefonei a Louis Lacrosse, eu já havia tomado banho e já tinha permanecido durante algum tempo sentado nu à beira da cama, contemplando, como que extasiado, a intensa radiação solar que incidia sobre os rochedos do Esterel, parecendo fazê-los luzir incandescentes, com raios dourados, prateados e azuis... um azul que ia se tornando gradativamente escuro. Ainda estava claro em Cannes.
- O seu chefe, Monsieur Brandenburg, já me havia anunciado a sua vinda. O nosso pessoal se encontra ainda no local do acidente. Lá está também o nosso perito em explosões, um certo Capitão-Tenente Viale, que o senhor irá conhecer brevemente.
Lacrosse era um homem esbelto e de pequena estatura, que habitualmente se movimentava com rapidez. Era dotado também de raciocínio rápido.
Depois de ter notado que eu podia acompanhá-lo na conversa, passou a falar depressa. Sua repartição estava localizada no antigo porto. Da janela de seu gabinete eu podia ver uma grande quantidade de barcos a vela ancorados um ao lado do outro. As pontas dos mastros dessas embarcações pareciam fincar-se no céu. Não vi nenhum iate, mas somente barcos a motor deslizando sobre a água.
- Que espécie de barcos são esses? - perguntei a Lacrosse.
- Eles fazem o percurso da Gare Maritime às ilhas. Pequenas ilhas que estão por aí.
Divisava-se um bom pedaço de praia nos fundos da Gare Maritime. Na areia branca estavam muitos barcos de pescadores e enormes redes achavam-se estendidas. Havia ali muitos homens que estavam jogando boule. Lacrosse notou que eu os estava observando.
- Trata-se de um esporte muito agradável. Antes, esses homens tinham o seu boulodrome lá atrás dos plátanos da Allée de Ia Liberté, mas aquele local foi asfaltado e transformado num pátio de estacionamento de carros. Por isso agora eles jogam ali naquele trecho de praia.
- O senhor está em condições de me prestar informações sobre a ocorrência? - perguntei. A essa altura eu já havia tirado o meu casaco. No hotel escolhera a roupa mais leve que encontrei, mas mesmo assim ela não era adequada para o calor de Cannes. Eu suava muito.
- Ainda não disponho de muitos dados, monsieur. Foi uma explosão de incrível violência.
Lacrosse passou a mostrar-me uma série de fotografias. Pude ver, com nitidez, destroços do iate espalhados sobre a água, boiando.
- Pode um iate que explode atingir tantas pessoas assim ao mesmo tempo?
- Tantas assim, não.
Ele tinha um bigodinho que cofiava freqüentemente, puxando as pontinhas, enquanto falava. As extremidades dos seus dedos se achavam manchadas de nicotina. Ele quase não parava de fumar. Aliás, a primeira coisa que me ofereceu foram cigarros, mas recusei. Ainda estava firme no meu propósito de deixar de fumar. Cheguei mesmo a ficar admirado pelo fato de não sentir vontade de acender um cigarro.
- Então o senhor julga que se trata de um crime?
- Sim, Monsieur Lucas. Sua companhia terá que desembolsar uma quantia bem elevada...
- O senhor não tem nenhum indício sobre quem poderia ter perpetrado o crime?
Ele puxou as pontas do seu bigodinho à Adolphe Menjou.
- Não disponho ainda de nenhuma referência, monsieur.
- O senhor supõe que Hellmann tinha inimigos?
- Que acha o senhor com relação a essa particularidade?
- Bem, de positivo nada posso dizer porque nada sei. Hellmann era um banqueiro. Um homem poderoso. E os homens poderosos sempre têm inimigos.
- Foi isso mesmo que disse Madame Hellmann.
- A irmã dele?
- Sim, a irmã dele. Na verdade, conversamos muito pouco com ela. Apenas durante alguns minutinhos. É uma senhora que anda doente há muito tempo. Ela está completamente abatida. Uma irmã-enfermeira a acompanha permanentemente. Ela nos declarou que seu irmão, na quarta-feira passada, parecia ter atingido o limite da resistência dos seus nervos. Fazia onze dias que ele andava muito excitado e nervoso. Algo devia tê-lo abalado profundamente.
- Que poderia ter sido?
- Madame Hellmann nada disse a respeito. Ela também não faz a mínima idéia do que poderia ter sido. Foi o que ela declarou. Seu irmão apenas lhe dissera que deveria viajar à Córsega. É... é até um pouquinho difícil manter uma conversação com Madame Hellmann. O senhor mesmo Poderá certificar-se disso quando a visitar.
- O senhor considera possível que o próprio Hellmann, para suicidar-se, tenha feito voar para os ares numa terrível explosão o seu iate, precisamente porque se encontrava numa situação irremediável?
Lacrosse cofiou o bigodinho revelando uma certa impaciência.
- Não sei o que o senhor quer dizer com a expressão "situação irremediável", monsieur.
- Refiro-me a uma situação irremediável do ponto de vista financeiro.
- Monsieur, não sei se estou certo, mas, pelo que me consta, Hellmann era um dos maiores e mais respeitáveis banqueiros do seu país.
Lacrosse fumava os cigarros até que a brasa quase atingisse a outra extremidade. Era por isso que a ponta dos seus dedos estavam sempre amareladas.
- Realmente ele era um dos maiores banqueiros da Alemanha. Exatamente por isso, uma situação desesperadora, surgida de maneira imprevista, poderia tê-lo compelido a praticar o suicídio.
- Francamente, não posso concordar com essa hipótese. Absolutamente, não! Essa idéia parece-me totalmente improvável.
- O que lhe parece mais provável, então?
- Assassinato.
- Assassinato? Cometido por algum dos seus inimigos?
- Não! - respondeu-me o baixote Louis Lacrosse enquanto soltava uma baforada de fumaça do seu cigarro. - Não por algum dos seus inimigos, mas sim por algum dos seus amigos.
Capítulo 12
- Algum dos seus amigos?
- Sim, monsieur. Esta é também a opinião de Madame Hellmann, a irmã dele. Vá lá que se trate de uma opinião esquisita, mas o que ela me disse deixou-me deveras pensativo.
- Que foi que ela disse?
- Ela supõe que seu irmão havia descoberto que alguém, em quem confiava... algum amigo com o qual ele se envolvia em operações bancárias de vulto... o estava logrando e enganando nos negócios.
Daí a razão do nervosismo de Hellmann e da repentina resolução da sua viagem a Cannes. Madame Hellmann julga que algum indivíduo do círculo de amizades do seu irmão perpetrou o crime a fim de, por esse meio, salvar-se a si próprio.
- Então, por que esse indivíduo não procurou outra maneira para liquidar Hellmann? Por que será que escolheu precisamente essa maneira, matando ao mesmo tempo mais onze pessoas inocentes que nada tinham a ver com o caso?
- Ela acredita que essa seria precisamente a melhor maneira de evitar qualquer suspeita de crime.
Os dedos amarelecidos brincavam, agora, com o bigodinho.
Lá fora, no poente, os matizes continuavam variando ininterruptamente. Surgiam as primeiras sombras. A claridade ia se tornando gradativamente mais fraca. Acendiam-se os postes de iluminação. O antigo porto parecia imerso em azul, ocre, cinzento, violeta e verde-escuro.
- Quais eram as outras pessoas que viajavam no iate além dos elementos da tripulação? - perguntei.
- Dois casais: Franz e Clara Bienert, Paul e Babette Simon. Todos eles possuíam suas villas aqui em Cannes. Bienert, banqueiro como Hellmann, era natural da Suíça. Simon era proprietário de uma grande fábrica em Lyon.
- Que espécie de fábrica possuía ele?
- Fábrica de peças e acessórios para aparelhos eletrônicos.
- Eles tinham parentes?
- Sem dúvida. Mas nenhum deles veio até aqui. Eles apenas acompanham de longe o inquérito a que estamos procedendo. Acho que não existe nenhum parente próximo, como filhos, por exemplo. Os cadáveres não podiam ser recolhidos, não é verdade? Só havia pedaços de cadáveres, os quais, nesse meio tempo, já foram incinerados. Evidentemente, o Instituto Médico-Legal de Nice fez antes os necessários e imprescindíveis exames para constatar a possível existência de quaisquer vestígios. Todos os pedaços examinados indicam somente um vestígio.
- Qual?
- Deve ter sido uma explosão de dinamite muito violenta.
- A hipótese de que um dos amigos de Hellmann tivesse perpetrado o crime impressionou-o bastante, não é verdade?
- Sim, monsieur. Veja o senhor: Madame Hellmann declarou-nos que os amigos do seu irmão (todos eles permanecem aqui em Cannes durante a maior parte do ano) transacionavam com ele em vultosos negócios. Disse-nos ter também absoluta certeza de que constataríamos essa circunstância logo no início do inquérito. Efetivamente, nesse meio tempo comprovamos a veracidade das suas declarações. A sociedade aqui em Cannes é de caráter quase predominantemente internacional. Gente muito rica. Todos integrados na indústria e nas finanças. Entrementes, visitamos todas as pessoas apontadas como amigas de Hellmann e pedimos-lhes com insistência que, por enquanto, não se ausentassem de Cannes. Elas se comprometeram a atender-nos.
- Como se chamam essas pessoas? - perguntei, já pegando a minha caderneta de anotações.
Ele passou às minhas mãos uma folha de papel contendo os seguintes dados:
"John Killwood, EUA - petróleo;
Giacomo e Bianca Fabiani, Itália - indústria pesada;
Malcolm Thorwell, Inglaterra - indústria de armamentos;
Claude e Pasquale Trabaud, França - cadeia de hotéis;
José e Maria Sargantana, Argentina -- carne em conservas;
Athanasios e Melina Tenedos, Grécia - armadores".
- Nenhum alemão! - exclamei, admirado.
- Nenhum alemão, realmente. Até parece estranho, não é verdade? E Hellmann era alemão.
- De fato, parece estranho.
- Todas essas pessoas - prosseguiu Lacrosse cofiando o bigodinho -, sem exceção, são multimilionários. Pertencem ao grupo das pessoas mais ricas do mundo, Monsieur Lucas. É gente que não mora permanentemente aqui. Só Madame Hellmann é que reside em Cannes. Os Trabaud possuem um palácio nas proximidades de Paris. Os outros têm palácios, villas, apartamentos e fazendas em todas as partes do mundo. Eles só vêm aqui a passeio, para fazer visitas. Esta é a cidade dos ricos, monsieur. Todavia, os ricos desta cidade não são do calibre dos elementos relacionados nesta folha de papel. O grupo de pessoas cujos nomes o senhor acabou de ler possui uma fortuna maior do que toda a França, do que toda a Europa.
É um grupo inimaginavelmente rico. Dificilmente se pode conceber quais as idéias e façanhas desse tipo de gente, monsieur.
Lacrosse pegou um livro aberto que estava sobre sua mesa, dizendo-me:
- Estou lendo a mais recente obra literária sobre Hemingway. Neste livro são mencionados muitos diálogos do grande escritor. Um desses diálogos, assim me parece, é muito interessante tanto para mim quanto para o senhor. O escritor Scott Fitzgerald conversava com Hemingway acerca dos super-ricos. Disse Scott (Lacrosse começou a ler em voz alta, conservando o cigarro no canto da boca): "Eles são diferentes de mim e de você. Possuem riquezas que começam a desfrutar desde cedo. Contudo, esse fato traz também uma importante conseqüência: faz com que eles se tornem meigos, ao passo que nós somos ásperos; que eles se tornem cínicos, ao passo que nós, por índole, somos confiantes. É difícil compreender isso, especialmente para quem não nasceu rico. Eles, no íntimo, se julgam melhores do que nós, que, com o nosso próprio esforço, temos que encontrar o remédio para as situações aflitivas da vida. Até quando eles penetram profundamente no nosso mundo, não deixam de julgar-se melhores do que nós. Eles são diferentes".
Lacrosse tirou os olhos do livro e dirigiu-se a mim:
- Que pensa o senhor que teria Hemingway respondido ao seu interlocutor?
- Que respondeu ele?
- Simplesmente isto: "Está certo. Eles têm mais dinheiro".
Tive que rir.
- Foi, na verdade, uma resposta bem espirituosa - concluiu Lacrosse. - Mas Fitzgerald tinha razão: os ricos são diferentes. Só agora é que me coube, por força das circunstâncias, compreender isso. Santo Deus, esse caso tinha de acontecer agora, justamente quando o chefe não se encontra aqui! Estou apenas substituindo-o temporariamente. Entretanto, o peso das responsabilidades está todo sobre meus ombros.
- O senhor deve solicitar a vinda de altos funcionámos de Paris.
- Já solicitei. Mas quem sabe quando eles chegarão? - Depois me pediu, quase suplicando:
- O senhor terá que concordar com minha atitude de tratar deste caso com muita cautela e precaução, não é verdade?
- Certamente, Monsieur Lacrosse.
- Para que o senhor veja como anda a coisa neste mundo basta tomar como exemplo a República Federal Alemã, seu país, e os Estados Unidos. Nos Estados Unidos um punhado de homens dividiu entre si a riqueza do povo. Eles, a seu talante, dirigem a economia e determinam o sistema político. O senhor sabe que "apenas dois e meio por cento da população controlam mais de dois terços da riqueza daquele país? Na sua pátria, monsieur, setenta por cento dos bens de produção se encontram nas mãos de um quarto da população. E essa concentração de riquezas tende a fazer com que esses super-ricos se tornem cada vez mais ricos. O processo inflacionário, como acontece em toda parte, só afeta os que vivem de salários ou de rendas. O valor dos bens de produção dos super-ricos aumenta cada vez mais.
Lembrei-me, neste ponto, da pergunta daquela velha que encontrei na farmácia em Düsseldorf: "Por que será que tudo vai ficando cada vez mais caro?"
- Já fazia muito tempo que Madame Hellmann e os Trabaud se encontravam aqui quando chegou Monsieur Hellmann. Todos os outros vieram, no máximo, dois dias antes ou dois dias depois dele - disse Lacrosse.
- Teria Hellmann convidado essas pessoas para virem a Cannes? Ou será que elas o convidaram?
- Não sei. Ouvimos dizer, em informações de caráter oficial, que elas tinham combinado comemorar o aniversário de Monsieur Hellmann, que iria completar sessenta e cinco anos. Entretanto, se essa informação está em consonância ou não com a realidade dos fatos... - Interrompeu-se dando um profundo suspiro. - Essa gente é infinitamente poderosa e pode fazer tudo o que quer.
- O senhor declararia isso à polícia? Respondeu apenas repetindo as minhas palavras:
- Sim, declararia isso à polícia. - Olhou para os lados e piscou os olhos afetados pela fumaça do cigarro. - Essa gente é tão poderosa que... - interrompeu a frase.
- Que eles podem liquidar qualquer indivíduo ou, pelo menos, estragar sua vida. Não é isso que o senhor queria dizer?
- Monsieur - prosseguiu o substituto do administrador-chefe -, faz muito tempo que eu e minha mulher estamos fazendo uma economia severa em nossos gastos. Exatamente agora é que conseguimos comprar uma casinha.
Naturalmente ainda não pagamos todo o valor da compra. Estamos com dívidas até as orelhas. Mas é uma casinha no campo, nas proximidades dé parques floridos, onde se respira ar puro, e não um apartamento na cidade, onde se sofre sempre o calor sufocante. Tenho um casal de filhos, Monsieur Lucas. O menino vai cursar o ginásio. Ele quer ser físico. A menina tem apenas cinco anos. Para esse tipo de gente com a qual agora, por força das circunstâncias, eu tenho que lidar, não passo de um sujeito de merda. Um bosta qualquer. É até um milagre o fato de essas pessoas se dignarem conversar comigo. Acendeu outro cigarro.
- O senhor tem obrigação de falar com eles. O senhor representa a lei.
- Oh, a lei! - exclamou Lacrosse com tristeza no semblante. - Que lei? A minha ou a sua?
- Existe somente uma lei. É a que se acha consubstanciada no código.
- Bonito! Falar assim é muito fácil, Monsieur Lucas. Se na realidade fosse assim mesmo... Essa gente está habituada a dirigir-se aos presidentes, aos reis, às rainhas, conseguindo tudo deles. Peço que me compreenda bem, Monsieur Lucas: a riqueza deles não me seduz absolutamente. Mas compreendo perfeitamente que, se eu não agir com cautela, tomando nesse caso as devidas precauções, terei que sofrer as conseqüências. Basta que eu pegue um desses superpodero-sos pelo pé, para receber imediatamente um telegrama de Paris... Nada de mal me acontecerá, não. Serei simplesmente substituído e em meu lugar virá um outro homem que dará continuidade ao inquérito. Será naturalmente um homem amável e delicado. Muitas vezes é difícil ser policial aqui em Cannes. As pessoas mais poderosas do mundo se encontram aqui. E contamos com um número insuficiente de funcionários públicos e policiais. Os funcionários das repartições, por causa das suas grandes responsabilidades, ao atingirem a idade de cinqüenta e cinco anos, pedem aposentadoria. Por estranho que pareça, essa é a verdade. É que eles não podem mais suportar o serviço, Monsieur Lucas. Eu já completei cinqüenta e seis. Ainda posso agüentar. Mas eu...
- ... mas o senhor teme que daqui a um ou dois anos nao possa mais suportar uma situação dessas - concluí, falando-lhe baixinho.
Ele começou a torcer as pontas do bigodinho, passando a observar a enorme quantidade de barcos que, lá no mar, deslizavam sobre a água.
Nesse momento, fiz algo de estranho! Confessei a esse homem, que mal acabara de conhecer, o seguinte:
- Eu também tenho um medo idêntico, monsieur. Fitou-me calado. Aliás, permanecemos ambos calados
durante um certo tempo. Finalmente ele reiniciou o diálogo:
- Em todo caso já pedi a cooperação da Polícia Técnica de Nice e solicitei que Paris mande para cá elementos da polícia do setor de economia a fim de observar essa gente. Eu, sozinho, não me acho em condições de fazer isso. Da mesma forma o senhor, representando a sua companhia, nada pode fazer sozinho, apesar de ser ela uma portentosa empresa. Nós aqui nos vemos na contingência de ter que enfrentar os bilhões, de ter que agir contra o reino que domina o mundo. O crime de que estamos tratando não é desses muito simples e corriqueiros, creia-me.
- Mas se o senhor já comunicou a Paris todas as ocorrências, é de esperar que o órgão competente ponha em ação "as grandes feras", os ministérios e os políticos para secundar o seu trabalho e prestar-lhe os necessários auxílios - disse eu simplesmente por dizer.
- Tomara, Monsieur Lucas, tomara que seja assim!
Nesse momento ele me pareceu até mais baixinho e mais franzino. Calado, ficou olhando fixamente para as mãos. Vinda de fora, ouvimos a risada desinibida de uma jovem. Depois tudo ficou em silêncio, um profundo silêncio naquele quente gabinete de Louis Lacrosse. Só agora, ao soprar a fumaça que invadia minhas narinas, foi que notei não ter acendido nenhum cigarro durante todo o tempo da nossa conversa.
Capítulo 13
- A única pessoa que não é multimilionária nesse affaire chama-se Angela Delpierre - disse Lacrosse, cofian-do o bigode.
- A mulher que também havia saído de Cannes a bordo do iate e que escapou da terrível desgraça, não é verdade?
- Exatamente.
- Por que teria ela ficado na Córsega?
- A bordo do iate ela ficou mal do estômago. Na hora em que iam iniciar a viagem de regresso, ainda se achava bem mal e estava muito fraca para acompanhar as outras pessoas. Entrementes, um dos nossos barcos a trouxe de volta a Cannes.
- Angela Delpierre. Quem é essa mulher? Que é que lhe pertence neste mundo?
- Ah, nada lhe pertence, Monsieur Lucas. Na minha opinião, ela tem bastante dinheiro, sem dúvida. Dinheiro adquirido mediante um trabalho árduo. Tudo o que ela possui foi ganho com o trabalho das suas próprias mãos. Ela é uma das figuras mais conhecidas de Cannes.
- Como assim?
- É uma pintora da elite de fama internacional. Admiro-me de que o senhor nunca tivesse ouvido esse nome antes.
- Realmente, nunca ouvi antes o nome dessa mulher.
- É estranho. Ela pinta a nata da nata da sociedade, principalmente as maiores celebridades que nos visitam. Com razão ela cobra muito por um retrato. Hoje em dia ser retratado por Angela Delpierre significa um grande requinte social, saiba o senhor.
- É casada?
- Não. Ela tem trinta e quatro anos de idade. Completamente livre e independente. É uma pessoa inteligente. Conversei demoradamente com ela hoje de manhã. Ela conhece todos os novos-ricos, todos os antigos-ricos e todos os esnobes desta cidade. Os eternamente enojados e os eternamente empanturrados... Seria até importante que o senhor procurasse imediatamente ter uma entrevista com ela. Ela possui uma bem sadia compreensão humana. Fala também o alemão.
- Onde mora ela?
Ele me deu o endereço e o número do telefone, que anotei na minha caderneta, já com um cigarro aceso no canto da boca.
Disse a Lacrosse que na manhã seguinte iria telefonar a Angela Delpierre. Pedi que ele me telefonasse imediatamente na hipótese de obter qualquer notícia importante. Despedimo-nos. Apertei a sua mão com os dedos amareleci-dos pela nicotina. Antes de sair pela porta afora virei-me e notei que ele estava sentado à mesa, com a cabeça entre as mãos, exatamente como um homem velho cansado da vida. Sem dúvida, ele estava pensando na sua mulher, no seu casal e filhos, na sua casinha que ainda não estava totalmente paga, nos super-ricos, na sua aposentadoria. Inopinadamente também comecei a pensar na minha aposentadoria.
Talvez dentro de alguns dias, em virtude do diagnóstico do Dr. Betz, seria chamado de volta.
Capítulo 14
Já havia escurecido, mas ainda continuava fazendo muito calor. Dirigindo-me ao meu hotel, vim caminhando lá do antigo porto, pela Croisette, fazendo meu percurso habitual ao longo do mar. Comecei a suar novamente, embora tivesse tirado o paletó. Meu pé parecia estar ardendo em brasa, mas era só por causa do sapato apertado.
Uma infinidade de lâmpadas luzia ao longo da Croisette, com postes de iluminação enfileirados por toda aquela via traçada no sopé do monte Esterel. No mar, milhares de lâmpadas também luziam sobre as embarcações. Três navios resplandeciam feericamente, encimados por colares de lâmpadas que se refletiam na água.
A praia estava completamente vazia. Parei um pouco para observar o movimento das ondas que rolavam sobre a areia branca. Um velho se aproximou para falar comigo. Pedia esmola. Demonstrava estar muito envergonhado e com medo da polícia, pois em Cannes é proibido esmolar publicamente. Dei-lhe dez francos e ele me prometeu que rezaria por mim. Uma reza até que não me causaria dano algum. Dez francos eqüivaliam a aproximadamente sete marcos. Realmente um câmbio bem vantajoso. Na faixa externa da Croisette passavam centenas de carros por mim. Seguiam em três filas, um ao lado do outro. Eram os carros maiores, mais caros e mais lindos do mundo. Os pneus deslizando sobre o asfalto zuniam quase imperceptivelmente. Segui caminhando e comecei a imaginar o que não significaria ser infinitamente rico como aquelas pessoas relacionadas na lista que Lacrosse me mostrara. Entretanto, por mais que me esforçasse, não consegui fazer uma idéia nítida do que seria a vida em tais condições. Outro homem se aproximou para falar comigo. Trajava roupa branca, camisa azul e gravata branca. Só queria me pedir fogo para acender o cigarro.
Acendi um fósforo e com a claridade produzida pela chama consegui ver seu rosto. Observado assim de relance, seu semblante dava a impressão de ser afável, ao passo que a conformação do rosto e o porte esbelto davam logo a certeza de tratar-se de um indivíduo bonito.
A partir desse instante comecei a ter a impressão de que estava sendo seguido e vigiado. Virei-me bruscamente diversas vezes, mas não vi ninguém. A bem da verdade, deve-se dizer que na minha profissão são muito comuns as impressões dessa natureza. Alguém devia estar me seguindo; talvez caminhando do outro lado da Croisette, mas estava me seguindo. Este foi o meu pensamento; e agora?
Finalmente cheguei à frente do meu hotel. Atravessei logo a rua.
No pátio do hotel, em redor do grande canteiro de flores, achavam-se estacionadas várias limusines. Homens de smokings brancos e damas ostentando fantásticos vestidos para a noite, cheias de jóias, iam entrando. Perguntei a um dos empregados:
- Que é que há aqui?
- É uma recepção, meu senhor.
Até então essa palavra me era completamente desconhecida. Em Cannes, durante a temporada de verão, começando às vezes um pouco antes e terminando até mesmo depois, realizam-se constantemente festas de gala, coquetéis e imponentes reuniões sociais, na maioria das vezes promovidas por um dos dois grandes cassinos, abertos para a temporada. Mas também nos pomposos hotéis da Croisette organizavam-se habitualmente festas desse tipo.
Só com dificuldade consegui atravessar o saguão do hotel, pois muitas pessoas, com seus trajes a rigor, se achavam ali comprimidas.
O chofer de táxi que viera da Argélia, bem como o pobre Louis Lacrosse, tinham razão: havia mulheres bonitas em Cannes e homens ricos, que, com jóias finíssimas, ornavam as suas esposas e amantes de maneira por mim nunca vista antes.
No amplo salão de refeições soou a música lenta de uma orquestra. Tomei o elevador para subir ao meu apartamento, no quinto andar. Logo que abri a porta ouvi o tilintar do telefone. Peguei o fone, equipado com um fio comprido, levando-o para a sala, cujas paredes estavam totalmente revestidas de brocados dourados. Sentei-me numa cadeira pintada com as cores branca e dourada, que fazia parte do conjunto de móveis de finíssimo estilo colocado naquela sala. No quarto de dormir o mobiliário era todo vermelho e branco. O banheiro era totalmente revestido de azulejos pretos.
- Lucas! - apresentei-me, segurando o fone no ouvido com uma das mãos enquanto com a outra desfazia o nó da gravata e descalçava um dos sapatos.
- Preste bem atenção, sujeitinho de merda! - disse uma voz de homem falando alemão sem sotaque. - Não venha se meter a besta aqui, entendeu? Caia fora desta caçada, ouviu? Se amanhã ao meio-dia ainda estiver aí, vamos virá-lo do avesso. Não vamos dar mais nenhum aviso.
- Quem... - comecei, mas a ligação foi bruscamente interrompida.
O indivíduo que me telefonou devia ter colocado um lenço sobre o fone, pois sua voz soava com um timbre fora do natural, parecendo completamente deformada. Mas, mesmo assim, falava sem sotaque.
Então não havia dúvida de que alguém estava me seguindo e me vigiando, pensei comigo mesmo, enquanto descalçava o outro sapato. Do contrário, o telefonema não teria sido dado tão prontamente, no exato instante em que entrei no apartamento. Ameaças dessa espécie não constituíam novidade para mim. Por isso não fiquei nervoso nem assustado.
Fatos semelhantes tinham se passado comigo no Rio, em Ancara e em Beverly Hills. Até mesmo em Hong Kong. A teoria do meu chefe, segundo a qual o banqueiro Hellmann havia cometido suicídio, começou a me impressionar.
Dirigindo-me ao banheiro, abri a torneira da banheira. Despi-me, ficando completamente nu, pois estava sentindo muito calor e o suor escorria pelo meu corpo. Como precaução, mastiguei dois comprimidos de Nitrosteron. Depois, peguei o fone e dei à central telefônica do hotel o número dessa tal Angela Delpierre, que eu havia anotado na minha caderneta juntamente com o endereço. Na residência dela o telefone não chegou a tocar duas vezes.
- Alô! - disse uma voz bem calma.
- Madame Delpierre?
- Sim. Quem está falando?
- Eu me chamo Robert Lucas. Vim da Alemanha. A senhora me permite expor o meu assunto agora? Espero não a estar importunando.
- Exatamente neste momento eu estava ouvindo as notícias pela televisão.
- Neste caso, telefonarei mais tarde...
- Não. As notícias principais já foram dadas. De que se trata?
Expliquei-lhe preliminarmente a minha profissão e os encargos de que estava incumbido, perguntando-lhe se ela me concederia alguns minutos a fim de tratar do assunto pessoalmente.
- Certamente, Monsieur Lucas. Se isso facilita o seu trabalho.
- Monsieur Lacrosse disse-me que a senhora fala também o alemão.
Seguiu-se um pequeno silêncio.
- Madame...
- Sim.
- Eu disse...
- Entendi perfeitamente o que o senhor disse. Sim, eu falo também o alemão. Mas não... não com muito prazer. Por favor, não fique aborrecido por causa disso. Eu tenho as minhas razões...
- Compreendo.
- O senhor fala excelente francês, Monsieur Lucas. Continuaremos falando em francês, não?
- Com muito prazer. Quando poderei me encontrar com a senhora?
- Espere um momentinho... Amanhã às dez horas estará aqui uma pessoa cujo retrato estou pintando...
- Enquanto conversávamos eu ouvia uma voz masculina falando baixinho. Devia ser a voz do comentarista de televisão transmitindo as notícias.
- Pode ser amanhã às nove horas?
- Naturalmente. Se não for muito cedo para a senhora...
- Oh, nao... Eu sempre me levanto muito cedo. Então está combinado: às nove. O meu endereço é...
- Résidence Cléopâtre. Avenue de Montrouge. Bloco A, quarto andar.
- É exatamente, monsieur. Às nove horas estarei esperando o senhor. Desejo-lhe uma boa noite! .
Esta última frase me surpreendeu e me fez bem.
- Desejo-lhe o mesmo, madame! - disse eu, mas ela Já havia desligado.
Continuei sentado, examinando os dedos dos pés, enquanto fazia um tremendo esforço de memória para lembrar quem, pela última vez, me havia desejado uma boa noite.
Não consegui. Devia ter sido há muito tempo. Por aí se vê que vida eu estava levando!
Nesse instante, lembrei-me de que havia deixado a torneira aberta, e a banheira estava quase transbordando. Tomei um banho com água fria e quente, esfregando-me com força. Depois tirei das malas as minhas roupas, guardando-as no amplo guarda-roupa de portas corrediças embutido na parede do quarto. Deixei de lado o código telegráfico bem como os documentos importantes, para entregá-lo na tesouraria do hotel a fim de serem guardados em cofres especiais.
Pedi que me servissem o jantar no apartamento, pois o restaurante do hotel se encontrava repleto de convidados para a festa de gala, e eu preferia ficar sozinho. Comi como um príncipe. Depois que o garçom levou os talheres, estendi-me completamente nu sobre a cama bem larga, ficando com os braços dobrados debaixo da cabeça, e comecei a pensar no pobre Louis Lacrosse e no medo que o dominava. Ele certamente não era nenhum covarde: demonstrava apenas já ter percebido com que espécie de gente estava lidando, e isso o apavorava. Para dizer a verdade, eu também andava assustado pelo mesmo motivo.
Novamente soam as campainhas dos dois aparelhos telefônicos: o que estava sobre a mesinha do meu quarto e o que se encontrava na sala. Peguei o fone do que se achava perto da cama.
- Sim!
- Boa noite, Monsieur Lucas! - disse uma voz feminina. No primeiro instante julguei estar ouvindo a voz de Angela Delpierre, mas logo em seguida percebi tratar-se de outra mulher. Ela falava baixinho:
- O senhor não me conhece, monsieur. Acho que tenho algo muito importante para contar-lhe.
- Quem é a senhora?
- Tenho algo importantíssimo para vender-lhe.
- O que é?
- A verdade!
- A verdade a respeito de quê?
- O senhor bem sabe, monsieur.
- Não faço a mínima idéia.
- Com que finalidade o senhor se encontra aqui? A verdade que está procurando, monsieur, é a que tenho para vender-lhe.
- De onde a senhora está falando?
- De uma das cabinas do saguão do hotel. O senhor vai descer até aqui?
- Vou. Onde devo encontrar a senhora?
- No bar. Sentada junto ao balcão. Tenho cabelos pretos, estou usando um vestido preto bem decotado nas costas e estarei brincando com uma rosa vermelha.
Capítulo 15
Vesti imediatamente uma roupa azul-escura com camisa branca e gravata azul. Peguei o código telegráfico, bem como os documentos importantes e tomei o elevador. Antes de mais nada, dirigi-me ao balcão de recepção e pedi um cofre para a guarda de documentos e valores. Encaminharam-me a uma sala bem espaçosa, onde havia uma infinidade de cofres fechados a chave, pequenos e grandes, em forma de gavetas. Aluguei um dos cofres pequenos, coloquei dentro dele os documentos e assinei a declaração de ter recebido a respectiva chave.
Em dois amplos salões pelos quais tive que passar, pessoas dançavam animadamente.
Lá fora, ao ar livre, ficavam conversando os choferes dos convidados.
O bar estava muito cheio. Um trio musical animava o ambiente. A iluminação era muito fraca.
Depois de ter acomodado os olhos à pouca claridade do ambiente, consegui ver, sentada junto ao balcão, uma mulher com vestido preto, próprio para a noite, bem decotado nas costas. Ela estava brincando com uma rosa vermelha. Achava-se sentada a uma das extremidades do balcão.
No desempenho dos encargos, como os inerentes à minha profissão, aprende-se, com o tempo, a formar logo um conceito sobre as pessoas e avaliar o seu nível social, mesmo quando elas estão simulando ou procurando disfarçar sua verdadeira condição. A mulher que estava ali sentada era uma meretriz. Uma ninfa elegante e vistosa, sem dúvida, mas não passava de uma meretriz. Quando entrei, o sujeito com o qual estava conversando beijou-lhe a mão e desapareceu no meio dos pares que estavam dançando dentro do bar.
Aproximei-me da mulher com a rosa na mão. Nesse momento a orquestra executava Tea for two. - Olá! - exclamei.
- Olá! - respondeu ela.
Teria mais ou menos trinta anos e sua aparência não era das melhores. Enquanto ela não sorrisse seu aspecto poderia enganar. Mas, quando ela distendia os lábios para um sorriso, os dentes estragados ficavam à mostra. Tinha até desenvolvido uma técnica toda especial para sorrir: esboçava no contorno dos lábios apenas os traços de um sorriso. Mas mesmo assim, às vezes, seus dentes estragados apareciam.
Sentei-me no banco que estava ao seu lado. Perguntei-lhe o que queria beber. Ela aceitou um uísque on the rocks. Pedi a mesma coisa. Depois que o uísque nos foi servido, levantamos nossos copos num brinde.
- À saúde da verdade! - disse a mulher que segurava a rosa e tinha os dentes estragados.
- Se você assim o deseja! - respondi.
Bebemos. Um homem que estava sentado ao meu lado levantou-se e seu lugar foi logo ocupado por um indivíduo que, sem mais delongas, pediu ao barman meia garrafa de champanha. Era um sujeito alto, magro, de cabelos ralos e bem louros, tendo uma cicatriz na testa. Teria aproximadamente cinqüenta e cinco anos. Trajava um smoking elegante.
- Bem... como você se chama? - perguntei à mulher.
- Nicole Monnier.
- Como foi que você ficou sabendo que eu estava hospedado neste hotel?
- Um amigo me disse.
- Ah, sim...
- Que significa: ah, sim?
- Significa: está bem.
Eu já estava me tornando impaciente, achando não ter valido a pena o trabalho de me vestir e descer ao bar.
Whenever we kiss, I worry and wonder - era a melodia executada pela orquestra nesse instante. Sem mais preâmbulos fui logo perguntando à mulher:
- Então você quer vender a verdade?
- Sim - respondeu-me simplesmente Nicole.
- E qual é o preço dessa verdade?
- Oh, o preço é relativamente elevado... Trata-se de uma verdade preciosa.
- Quanto é? - insisti, já com desconfiança e convencido de que ela nada tinha para vender. Minha desconfiança dissipou-se imediatamente.
- É uma quantia vultosa... se bem que não atinja os quinze milhões de marcos que a sua companhia seguradora teria que desembolsar...
Algumas vezes a gente se engana mesmo depois de tantos anos de experiência.
- Como foi que você ficou sabendo...
- Psst! - fez ela e acenou para o lado com a cabeça. Virei-me para o outro lado, chegando quase a esbarrar
no sujeito magricela que havia pedido champanha.
- Estamos falando tão alto assim a ponto de importunar você? - perguntei-lhe numa atitude grosseira.
- Só peço o favor de me deixar sossegado - respondeu ele delicadamente.
Virei-me novamente para Nicole.
- Como você bem pode ver, aqui não dá para tratar desse assunto - disse-me ela falando baixinho. - É melhor você ir ao meu apartamento. Lá poderemos conversar sos-segadamente.
- Quando?
- Eu sairei primeiro. Você deve permanecer aqui mais uma hora e depois tome um táxi. Estou colocando agora meu cartãozinho de visita debaixo da minha mão. Você coloca sua mão sobre a minha. Eu retiro minha mão e saio imediatamente.
Alguns segundos após, o cartãozinho estava em meu poder. Nicole se levantou. Inclinei-me para ela. Enquanto ela se dirigia à porta de saída, o sujeito magro a observava atentamente.
Sentei-me e pedi mais um uísque. Olhei a hora no meu relógio de pulso: faltava um quarto para as onze. Acendi, sem me dar conta, um outro cigarro. Virei-me, no meu banco, a fim de observar os pares que estavam dançando. Havia namorados bem agarradinhos e pareciam inebriados com aquelas melodias antigas. Um quarto de hora depois, se tanto, o sujeito magro com a cicatriz na testa levantou-se e saiu. Ali quase todos os homens estavam de smoking. Só alguns trajavam roupa escura como eu. Karin deixara de colocar o meu smoking na mala. Eu estava calmo e tomava meu uísque devagarinho. Ainda fumei dois cigarros ouvindo música terna e observando os amorosos pares que dançavam.
Estava me sentindo muito bem. Aliás, em todas as partes do mundo por onde tenho andado sempre me senti muito bem nos bares, pois os barmen, na sua maioria, são muito gentis e o ambiente se apresenta quase sempre agradável e convidativo. No bar em que eu me encontrava agora, por exemplo, os garçons e os barmen se desmanchavam em gentilezas. Naturalmente há também bares que não valem nada e barmen que são verdadeiros espantalhos de freguesia. Mas isso constitui uma exceção. Pedi outro uísque e, enquanto bebia, comecei a imaginar como seria bom ser jovem e ter saúde, apesar de que a falta que sentia dessas duas coisas não me era motivo de dissabores e tormentos. A orquestra executava, agora, Moonglow, do filme Picnic. Lembrei-me logo do iate de Hellmann, denominado Moonglow, que voou pelos ares numa violenta explosão. Pareceu-me até esse instante que a canção tinha algo de triste, bem adequado para evocar as pessoas desaparecidas no fatal acidente, pessoas a respeito das quais ninguém sabia dizer se eram criminosas ou inocentes. Todavia, com relação aos sete homens da tripulação, pode-se, com certa segurança, dizer que eram respeitáveis. Sete respeitáveis e cinco assassinos será a conclusão na hipótese de ficar comprovado que Hellmann e seus convidados agiram como assassinos. E essa proporção de sete por cinco não é das piores. Logo me dei conta de que meu cérebro estava ruminando uns pensamentos absurdos e pedi mais um uísque. Passei, então, a pensar só no uísque. Que bebida agradável! Como ela é extraordinariamente saborosa!
Capítulo 16
Expliquei ao chofer do táxi:
- Avenue du Bernard - Résidence de Paris - Bloco C.
- Certo, monsieur - respondeu ele e fez o carro arrancar. Era um gigantesco Chevrolet. Faltava um quarto para a meia-noite. O endereço constava do cartãozinho que Nicole me havia entregue, no qual figurava também o bairro: Le Petit Juas.
Seguimos um bom pedaço pela Croisette. Na esquina da Rue des Serbes o chofer, com destreza e golpe de vista, dobrou para entrar na Rue dAntibes, conforme pude notar, pois, na ânsia de ficar conhecendo toda a cidade no menor tempo possível (como, aliás, era do meu hábito fazer em todas as localidades para onde era mandado), eu não desviava a atenção das placas e tabuletas colocadas em todas as ruas de Cannes.
Atravessamos a Rue d'Antibes, na qual se via uma infinidade de casas comerciais, dispostas uma ao lado da outra. Passamos pela pequena e feia estação ferroviária de Cannes e atingimos o poderoso Boulevard Carnot, através do qual avançamos em direção ao norte da cidade. Sobre uma prancheta adaptada horizontalmente ao painel do carro, encontrava-se uma pequena bússola de agulha fosforescente que me permitia verificar a direção pela qual estávamos seguindo.
Passamos em frente ao edifício do Corpo de Bombeiros, onde dobramos para a esquerda, penetrando, primeiro, na Avenue St. Jean e depois na Avenue du Bernard. Encontrávamo-nos numa zona em que as residências ostentavam um luxo pomposo: era a célebre Résidence de Paris, um dos muitos lugares de Cannes em que existem colossais castelos (que são imponentes palacetes residenciais) construídos com graciosas e destacadas linhas arquitetônicas realçadas pela disposição das arcadas. Quase todos se achavam construídos em pontos bem salientes, sobre as encostas ou ladeiras. São tais edificações que, por assim dizer, caracterizam e definem a própria imagem panorâmica de Cannes. Nesses palacetes residiam, sem dúvida, muitas centenas de pessoas gozando o maior conforto imaginável. Nos terrenos que circundavam tais residências a grama crescia com viço. Muitas delas se encontravam no meio de encantadores parques floridos. Assim era a Résidence de Paris.
O chofer pediu-me para saltar um pouquinho antes de atingirmos o Bloco C, a fim de poder dar a volta com o carro contornando um parque de estacionamento que havia ali.
Em poucos instantes eu estava no local designado. Via-se ali uma construção enorme, localizada no meio de um parque onde cresciam palmeiras, cedros e ciprestes. A lua brilhava no céu. Procurei contemplar dali a cidade com sua bela iluminação, o mar, o porto. O ar já se tornara mais fresco e agradável e eu respirava profundamente.
Caminhando pela borda de uma piscina, dirigi-me à entrada do Bloco C, que estava bem iluminada. Ia quase chegando a esse bloco residencial quando notei que dois sujeitos avançavam para o meu lado. Estavam postados entre duas palmeiras e se atiraram contra mim. Um deles torceu meus braços para trás, apertando-os com uma força incrível, enquanto o outro fechava o meu nariz para forçar-me a abrir bem a boca a fim de que pudesse colocar dentro dela um pedaço de pano umedecido.
Reconheci logo esse sujeito: era o mesmo que me havia pedido fogo na Croisette. Era o indivíduo que, como eu disse, observado de relance, dava a impressão de possuir um semblante afável, ao passo que a conformação do rosto e o porte esbelto não deixavam dúvidas de tratar-se de um indivíduo bonito. E, na verdade, bonito ele podia ser, mas afável... nem para a avó dele!
Com aquele pano dentro da minha boca, não conseguia emitir nenhum som. Então, ele começou a dar pancadas no meu estômago, na barriga e até mesmo mais abaixo, atingindo sem o mínimo respeito minhas partes pudendas. O desgraçado parecia mesmo querer estraçalhar meu corpo, pois me batia com toda a força, levantando bem o braço para dar maior impulso aos socos que me aplicava. E por ali, em redor, a esta hora da noite não se via vivalma que pudesse presenciar o fato. Os dois indivíduos fizeram o serviço com rapidez. O tal que era bonitinho chegou a ficar todo banhado de suor. Eu também. Tinha a sensação de que meu corpo iria explodir e de que as minhas tripas, de um momento para outro, poderiam saltar para fora. Para fazer esse "trabalhinho" não levaram mais de três minutos, mas quase me deixaram em pandarecos. Perdi os sentidos.
Capítulo 17
Quando recobrei a consciência, achava-me deitado de costas na grama e logo notei que, ao respirar, me doía por dentro. Tirei o pano da boca e comecei a vomitar com violência. Depois tentei ficar de pé, mas as pernas não me sustentavam. Fui me arrastando como pude, de quatro mesmo, em direção à enorme piscina, onde havia uma torneira com água escorrendo. Lavei a boca e coloquei a cabeça debaixo da torneira, conservando-a nessa posição até que ela ficasse bem fresca. Depois passei a respirar lentamente e tive medo de perder os sentidos outra vez.
Sentia, por todo o corpo, uma dor infernal. Tive que me sentar porque estava me sentindo muito mal. Todos os meus bolsos haviam sido esvaziados. Em alguns deles até o forro estava pendente do lado de fora. Deixaram-me só um lencinho e quatro notas de dez francos. Enxuguei o rosto e me pus de pé. Entretanto, logo em seguida caí no chão novamente. Tentei mais uma vez ficar de pé. Não deu. Só consegui na terceira tentativa, embora oscilando.
Cambaleando como um bêbado e apertando o abdômen com ambas as mãos, saí caminhando em direção ao Bloco C.
Tinha a impressão de que, a qualquer momento, poderia perder o equilíbrio. Por isso caminhava bem devagarinho, apoiando-me na parede branca do edifício. A porta de vidro da entrada estava aberta. Havia ali uma iluminação muito forte. Vi um elevador que tomei logo, apertando o botão para o sexto andar. Havia me lembrado de que no cartãozinho de visita de Nicole estava anotado sexto andar. O elevador parou. Caí ainda uma vez depois que saí dele. Um corredor... três portas. Apartamento 612... Era o que estava anotado no cartãozinho. Ei-lo ali na minha frente. Na porta não havia nenhuma placa com nomes. Toquei a campainha. Nada. Toquei de novo. Nada. Fiquei com o dedo apertando o botão da campainha durante um bom tempo. Só então ecoou lá dentro a voz furiosa de um homem. Falava esbravejando cada vez mais alto. Puxou a porta. Como eu estava com a mão apoiada nela, ao ser aberta com certo ímpeto, recebi um impulso que me fez cambalear para a frente, indo quase cair nos braços de um sujeito esbel-to e forte. Era um indivíduo de cerca de quarenta anos, com aspecto burguês. Quase careca. Usava um pijama com listras vermelhas e azuis. Na mão direita segurava um revólver cujo cano apontava para o meu peito.
- Sujeito de merda! - bradou, dando-me um empurrão.
Ele tinha muita força. O empurrão me fez ir de encontro à parede. O homem, parecendo não acreditar no que via, passou a observar como eu cambaleava e como me agarrava com os dedos na parede, procurando um ponto de apoio para não cair.
- Tire esse troço da minha frente! - disse-lhe eu, pois ele ia aproximando o cano do revólver cada vez mais perto do meu peito.
- Nesse local todas as noites há arrombamentos - disse o homem de pijama. - Por isso devemos, nós mesmos, os moradores, nos ajudar mutuamente tomando todas as precauções. Eu tenho a devida licença para porte de armas. Posso dar um tiro no seu peito e um outro na parede. Então direi à polícia que antes, para assustá-lo, dei um tiro na parede e que você continuou avançando em minha direção, obrigando-me a dar-lhe um tiro mortal para me defender.
- Deixe de dizer bobagem! - retruquei. - Não sou nenhum arrombador.
- Isso é o que você diz.
- Um arrombador toca a campainha?
- Talvez você tenha outros cúmplices que nesse meio tempo podem descer do telhado para a sacada... - Deu uns passos por ali e observou atentamente a ampla sala que se achava bem iluminada. Depois ficou imóvel e passou a me examinar novamente.
- Diga-me, então, como foi que consegui arrombar a porta?
- Está bem. Você não é nenhum arrombador. Você está bêbado?
- Não.
- Alto?
- Não.
- Por que está com essa aparência? Molhado e sujo. Que é que aconteceu com você?
- Fui espancado. Ali, um pouco antes da entrada para esse bloco residencial.
- Quando?
Olhei as horas no meu relógio de pulso. Passavam cinco minutos de uma hora.
- Talvez há um quarto de hora... não... meia hora... Espere... - Deslizando lentamente ao longo da parede fui caindo no chão. Sentia-me novamente entontecido.
- Vou telefonar para a polícia.
- Não!
- Como não? Tenho que telefonar. A polícia tem que vir aqui!
- Vai demorar quase uma hora até que a polícia chegue e ela nada encontrará de anormal.
Eu não podia de forma alguma me valer da polícia nem fazer espalhafato com relação a esse caso. Pelo menos por enquanto.
- Por favor, pode me dar algo para beber?
- Conhaque?
- Serve.
Saiu e voltou logo trazendo um copo com conhaque até a metade. Tomei um gole e comecei a sentir uma espécie de mal-estar. Bebi então de uma só vez todo o conteúdo do copo. Finalmente, passei a me sentir bem melhor, podendo ficar de pé.
- Que é que você deseja de mim? Chamo-me Danon. Alain Danon.
Fitou-me, mas eu não lhe disse meu nome.
- Posso falar com a Srta. Monnier? Nicole Monnier?
- Quem?!
- Srta. Nicole Monnier. Ela mora aqui.
- Ora bolas, aqui moro eu! Como se chama mesmo essa moça? Monnier?! Nunca ouvi esse nome.
- Ela deve morar aqui. É o endereço que consta do seu cartão de visita. Bloco, andar, apartamento 612. Ela está me esperando. E este é o apartamento 612.
- Sim, este é o apartamento 612, mas ninguém está esperando você.
- Eu tinha o cartão dela com o endereço.
- Mostre-me logo esse cartão!
- Já não está mais comigo. Os sujeitos que me espancaram esvaziaram todos os meus bolsos.
- Escute bem...
- Não! Dou-lhe a minha palavra de honra. Eles levaram também o cartão de visita.
- Você é estrangeiro? Alemão?
- Sim.
- Que desejava então essa... essa...
- Monnier.
- ...essa Monnier?
- Ela queria me vender algo.
- O quê?
- A verdade.
- Que diabo de verdade é essa?
- Não sei.
Ele então passou a me examinar com mais desconfiança ainda.
- Escute bem: eu não acredito em você e você não acredita em mim. Vou lhe mostrar todo o apartamento. Então você mesmo poderá verificar se a sua Nicole Monnier está aqui.
Mostrou-me todo o apartamento. Era uma habitação ampla e de valor elevado. Haviam sido instalados ali finos móveis de estilo antigo e magníficos tapetes. Dois quartos. Num deles, as paredes e o teto achavam-se adornados com espelhos. Por meio de um cordão, podiam-se deslocar e graduar os espelhos do teto. Uma das camas estava com a coberta revolvida. Mostrou-me, também, os dois banheiros e a cozinha.
- Então? Está satisfeito agora? Posso ir novamente para a cama? Tenho que sair cedo esta manhã.
- Francamente não compreendo...
- A coisa não lhe correu bem. Essa mulher não existe. Foi uma cilada que lhe armaram. E eles conseguiram baixar o sarrafo no seu corpo sem dó nem piedade, despojando você de tudo, não é?
- Huummm.
- Acho tudo muito claro, agora. Você também não acha?
- Huuummm.
- Você precisa ter muita cautela nesta cidade.
- Pode me chamar um táxi, por favor? Ele telefonou imediatamente.
- Em cinco minutos o táxi estará aqui.
Em seguida abriu as pesadas cortinas, fazendo correr metade para um lado e metade para o outro. Viam-se lá embaixo as luzes da cidade e das embarcações no mar.
- Vista maravilhosa, não é? Faz oito anos que eu moro aqui e nunca me canso de contemplá-la. Esplêndida cidade! Mas também um pouco perigosa. Você mesmo acaba de comprová-lo.
- Huuumm.
- É o dinheiro! É o dinheiro que ocasiona todos esses males! - exclamou Danon. - Você nem imagina quantos bilhões ou trilhões possuem os super-ricaços que vivem aqui. Não é de admirar, portanto, que o índice de criminalidade seja elevado.
Mostrou-me um jornal. Li o cabeçalho: "NICE-MATIN".
- Veja. Diariamente aparecem colunas abrangendo páginas inteiras com notícias de crimes: arrombamentos durante a noite, roubos de carros, assaltos, furtos de motores dos barcos. As páginas do jornal estão sempre cheias. Mas mesmo assim, Cannes não deixa de ser a mais bela cidade do mundo. Acho até que o paraíso é aqui mesmo. Você pode compreender uma coisa dessas?
- Sim, sem dúvida. Perdoe-me o incômodo que lhe causei. Já vou descer e esperar o táxi lá embaixo.
- Como você quiser. Mas não fique zangado comigo... Aqui a gente deve ser realmente muito precavido. Esse meu apartamento já foi arrombado duas vezes. Depois, então, requisitei licença para o porte de arma. Você também tem licença para porte de arma?
- Não.
Realmente eu não tinha. Na verdade eu não possuía nenhuma arma.
- Mais um conhaque?
- Não, obrigado - respondi, dirigindo-me à porta para sair. Eu já podia caminhar melhor. Desculpamo-nos reciprocamente. Danon fez menção de descer comigo pelo elevador, mas recusei, agradecendo-lhe a gentileza. Lá embaixo o táxi já estava esperando.
- Ao Majestic - disse ao chofer enquanto me atirava sobre o assento traseiro.
- Entendido, chefe!
Quando chegamos ao hotel, o baile de gala ainda continuava com muita animação. Dirigi-me ao porteiro a fim de pedir a chave do meu apartamento.
- Quando vai terminar esse baile?
- Oh, lá pelas três, quatro horas da madrugada. A gente nunca sabe ao certo a que horas termina, Monsieur Lucas. O senhor quer agora a chave do seu cofre?
- Não. Deixe-a onde está.
- Como quiser, Monsieur Lucas.
Antes de ter saído do hotel, felizmente eu havia colocado no cofre o meu passaporte, os documentos importantes e quase todo o dinheiro que tinha no bolso. A chave do cofre eu entregara ao porteiro com a recomendação de guardá-la na caixa-forte da portaria. Quem se dedica muitos anos a essa profissão sempre aprende muita coisa. E se não aprender, mais cedo ou mais tarde dá com os burros n'água. Dei ao porteiro uma nota de vinte francos e tomei o elevador para meu apartamento. Meu corpo já apresentava manchas de diversas cores. Amanhã, essas manchas vão ficar mais bonitas ainda, pensei. Logo em seguida me dei conta de que havia passado da meia-noite e de que, portanto, já estávamos no dia seguinte.
Depois de ter tomado um banho fui direto ao meu quarto, abri as cortinas e atirei-me na cama. Mesmo deitado, podia perceber o brilho das luzes no mar, bem como ao longo do monte Esterel. Os navios iluminados projetavam raios vermelhos, verdes e azuis.
Penetrava no meu quarto a música suave da orquestra que tocava num dos salões do hotel. Deitado de costas, comecei a pensar na rosa vermelha com a qual Nicole Monnier estivera brincando lá no bar, e em Alain Danon, que me atirrnou categoricamente nunca ter ouvido o nome dela. Contudo, em seu apartamento eu vi uma rosa vermelha. Foi naquele quarto cheio de espelhos nas paredes e no teto. A rosa estava num canto, um tanto encoberta por um pequeno armário. Naturalmente devia ser uma outra rosa vermelha.
Capítulo 18
Fazia muito calor desde cedo. Lá fora o dia estava radiante.
Tomei o café na sala do meu apartamento e depois acendi o primeiro cigarro do dia. Eu ia sempre renovando "meu firme propósito" de deixar de fumar, mas nessas últimas horas me achava sob forte tensão nervosa. Tomei apenas a decisão de, pelo menos, não fumar em excesso. Estava tomando regularmente os comprimidos prescritos pelo médico. Meu corpo apresentava manchas de diversas cores: violeta, verde, amarela... Era até engraçado. Sentia uma dor infame. Vesti a roupa mais leve que trouxera, mas, mesmo assim, às nove horas, quando toquei a campainha na porta da residência de Angela Delpierre, minha camisa, de tão molhada de suor, chegava a grudar ao corpo. Além das dores que me atormentavam, tinha que suportar também o efeito de uma brusca mudança de clima. Sentia-me extenuado, tonto e envelhecido. Sim, muito envelhecido!
A porta se abriu.
- Monsieur Lucas? - perguntou-me uma mulher de aspecto jovem que surgiu na minha frente. A estatura dela era mais ou menos igual à minha. Tinha os cabelos louros e os olhos castanhos, bem grandes, com pestanas sedosas. Seu rosto era pequeno, realçado por uma linda boquinha. Estava usando apenas shorts e uma blusa verde bem leve, com um único botão fechado, um pouco abaixo dos seios. Tinha pernas compridas e um corpo atraente, de talhe elegante. Sua pele tinha um belo tom moreno. Quando sorria mostrava os dentes impecavelmente lindos. Notava-se nos olhos alguma sombra de tristeza, mesmo quando sorria. Aliás, essa expressão de tristeza foi a primeira coisa que me sensibilizou logo que vi Angela.
- Não vou interrompê-la por muito tempo - disse eu, logo que pus os pés na entrada de um pequeno saguão. - Desejo apenas fazer-lhe algumas perguntas, se me permitir.
- O senhor tem uma hora para fazer as perguntas que quiser, Monsieur Lucas. Posso lhe assegurar que o cliente para o qual estou pintando o retrato não virá antes das dez. Mas, meu Deus, como o senhor está suado! Desse jeito nem pode andar por aqui e é até capaz de sofrer um ataque. Tire imediatamente o paletó e a gravata!
- Eu só trouxe roupas não muito apropriadas para o calor que está fazendo - disse, enquanto tirava o paletó e desfazia o nó da gravata.
Ela os colocou num cabide que estava pendurado num gancho.
- Descalce também os sapatos - disse Angela Del-pierre. Falava com tranqüilidade, com muita objetividade e desembaraço.
Hesitei um pouco.
- Descalce os sapatos e venha! Descalcei-os.
- Vamos ao terraço. Lá sempre há alguma brisa - disse Angela. Ela ia na frente. Passamos diante de um estúdio cuja porta estava aberta. Vi lá dentro quadros e cavale-tes. Depois passamos através de uma ampla sala pintada de cores vivas em estilo moderno. Uma estante encobria a parede desde o chão até o teto e estava repleta de livros. No lado oposto ficavam algumas prateleiras sobre as quais se encontravam, no mínimo, uns cinqüenta elefantes de diversos tamanhos, feitos com os mais variados tipos de materiais. Havia elefantes pequenos, médios e grandes. Todos eles estavam com a tromba voltada para cima. Parei um pouquinho para examiná-los. O que eu achei mais bonito foi um elefante bem pequenino feito de ébano. Era gordo e muito engraçadinho. Então comecei a pensar nos meus elefantes em Düsseldorf, mas só durante alguns segundos, pois Angela caminhava ligeiro e meu corpo doía quando me movimentava. No seu quarto havia um aparelho de televisão relativamente grande. Passamos pelo jardim de inverno onde floresciam muitas plantinhas colocadas em vasos. Também ali havia um outro aparelho de televisão. Angela percebeu logo minha surpresa e explicou:
- Existe ainda um terceiro aparelho. Está na cozinha. Sou maluca por televisão. Especialmente pelos noticiários. Não posso deixar de ouvi-los. Télé-Midi. Télé-Soir. Télé-Vutt. 24 Heures. Information Première. Information Derniètere. Simplesmente todos os noticiários. Canal 1, Canal 2 e também Monte Carlo. Durante a transmissão do noticiário, posso me deslocar de uma sala para outra sem interromper a audição. - Ela sorriu. - No meu estúdio encontra-se o quarto aparelho. É uma loucura, não é?
- Talvez um pouquinho.
Subimos ao terraço. Lá em cima respirei profundamente. Tratava-se de um terraço enorme, que se estendia por dois lados do amplo apartamento. Seguramente tinha uma área que correspondia a dois terços da área total do apartamento. Na minha vida nunca tinha visto um terraço tão grande. Nem tampouco tantas flores cuidadas com tanto carinho. Devo mesmo dizer que o terraço, pela sua arrumação, tinha o aspecto de uma ampla sala residencial moderna. Havia ali espreguiçadeiras, cadeiras de palha trançada e mesas. As visitas sentavam-se geralmente num canto localizado sob uma grande clarabóia. Perto havia um balanço bem convidativo. O chão era de cerâmica branca e azul. O apartamento de Angela Delpierre estava localizado no último andar. O terraço era completamente indevassável. Apesar de haver, num dos lados, ao invés de parede, um revestimento bem alto, feito de treliça pintada de branco, mesmo assim quase não se podiam ver as ripas, pois nelas se enroscavam as heras, os jasmins floridos com as folhas verdes e as buganvílias, aquelas plantas trepadeiras espinhentas dotadas de folhas ovais formando verticilos, cujas flores mostram todas as nuances das tonalidades vermelha, violeta e laranja. Essas plantinhas fincavam suas raízes dentro de pequenas caixas de madeira dispostas no pé desse tabique de treliça. Viam-se ali, também, certas talhas de bom tamanho, feitas de cerâmica, com formato de botijas. Parece-me que são denominadas talhas Ali-Babá. Dentro delas cresciam viçosas petúnias, brancas e violeta, bem como gerânios vermelhos, brancos e azuis. Essas talhas Ali-Babá possuíam aberturas laterais semelhantes a pequenas bolsas, das quais despontavam raminhos floridos com minúsculas rosas das mais variadas cores.
Mais uma vez Angela percebeu minha surpresa.
- Esta espécie de rosas tão pequeninas é denominada Surprise. Como o senhor vê, também sou maluca por flores.
- Como eu! - respondi, contemplando grandes vasos colocados sobre uma das mesas, contendo gladíolos alaran-jados e vermelhos. Eu olhava, como que extasiado, as tou-ceiras de margaridas que despontavam, em franca floração, dos seus vasos, os pinheirinhos bem verdes e uma infinidade de plantas ornamentais de outros tipos. Podia-se dizer que esse terraço era um verdadeiro mercado de flores.
Notei que sobre uma pequena mesa se encontravam tesouras especiais para podar os raminhos, latas com inseticidas e pulverizadores. Não faltavam também mangueiras e regadores para a irrigação da folhagem.
Próximo ao tabique, entre os jasmins e as buganvílias, estavam espalhados bichinhos coloridos feitos de louça enver-nizada, tipo fantasia: um marreco, um pombo e diversas borboletas.
- Esses bichinhos eu comprei em Vallauris - explicou-me Angela.
Ela não parava de me observar com olhos perscrutado-res. Aliás, a faculdade de observar era, de fato, própria da sua profissão.
- Vallauris não fica muito longe daqui. Lá se fabricam louças de barro, com as características da mais antiga tradição, desde 1950. Foi seguramente pela influência de Picasso, Pignon e Prinner que Vallauris se tornou um dos maiores centros da arte da cerâmica no mundo.
Ela falava com tanta naturalidade e com a despreocupação de uma alma tão pura, sem nenhum peso na consciência, que cheguei a esquecer minhas dores e passei a respirar profundamente o ar puro da brisa fresca que realmente perpassava pelo terraço.
Angela, apontando para o pombo de louça, conta-me:
- Foi Picasso que me presenteou este pombinho. Evidentemente, fiquei muito feliz e orgulhosa por ter recebido esse presente. O que o senhor quer beber? Algum suco de fruta? Laranjada? Água tônica? Ou prefere bitter lemon?
- Bitter lemon.
- Um momentinho, por favor.
Correndo descalça, desceu ao barzinho do apartamento. Avancei até o parapeito para contemplar o mar. Tenho visto, em minha vida, tantas cidades lindas e dotadas de magníficos panoramas, mas como essa, nunca!
Sob meus olhos se estendia Cannes com seus palacetes residenciais, ruas, edificações e igrejas antigas. Dali podia divisar, com um campo de visão praticamente ilimitado, todo o mar. Olhando para a esquerda, minha vista alcançava até Cap d'Antibes, e, para a direita, descortinava perfeitamente, nos seus mínimos detalhes, os contornos do monte Jisterel. Eu via a gigantesca baía ao longo da qual se espraiaa cidade de Cannes. Observava parques ensombreados por rondosas palmeiras e jardins de flores entre os palacetes.
De um lado, surgia o antigo porto e, um pouquinho à esquerda, um outro que seguramente deveria ser o novo porto. Por ali estavam ancorados muitos iates, alguns deles bem grandes. Os edifícios pareciam luzir sob a intensa radiação solar. O mar era azulado. Notei que um destróier americano, postado na fileira dos navios chegados na véspera, levantava âncora. Via barcos a vela, barcos a motor e iates que deslizavam sobre a água deixando rastros de branca espuma. O céu tinha a mesma cor do mar e ambos pareciam projetar-se até o infinito. Bem ao longe um avião cortava o céu. De tão distante, não se ouvia o ruído dos motores. Era um enorme aparelho, que procurava aterrissar em Nice.
Atrás de mim soou a voz de Angela, explicando-me:
- O porto que se vê no lado esquerdo chama-se Port Canto. É lá que ancoram todos os iates. Um pouquinho mais atrás o senhor pode vislumbrar o Cassino Palm-Beach.
Virei-me para ela, que foi logo me entregando o copo com a bebida preparada.
- O seu bttter lemon. Com gelo e algumas rodelas de limão. Está bem assim?
- Ótimo.
Ela bebia suco de fruta.
- Que maravilhoso lugar, este terraço! - exclamei.
- Realmente - respondeu-me sem afetação. - É sempre lindo aqui, quer seja dia, quer noite. Com tempo bom e com tempo ruim. Sempre que posso, corro para cá a fim de respirar este arzinho puro.
- Não é preciso dizer. Nota-se logo que a senhora gosta de ficar aqui em cima.
Ela sorriu.
- Se não tivesse que trabalhar, eu passaria o dia inteiro aqui. Não sairia deste terraço.
Ela estava perto de mim e, então, pela primeira vez senti o odor de sua pele cheia de frescor. Angela não usava nenhum perfume.
- Sente-se. Procure ficar debaixo do telhado. O senhor está sem nada na cabeça e é muito perigoso.
Colocou na cabeça um gorro de tecido de linho e, para sentar-se, escolheu uma cadeira que estava ao sol.
- A mim o sol não faz mal porque já estou acostumada. Mesmo assim, nunca deixo de cobrir a cabeça. Hoje vai fazer um calor sufocante. Que é que o senhor deseja saber, Monsieur Lucas?
- Tudo o que a senhora puder me informar com relação a Herbert Hellmann.
- Não sei muita coisa - respondeu-me, esboçando um gracioso sorriso. Nos cantos de seus olhos notava-se a formação de pequenas rugas. - Eu o conheci por intermédio da irmã dele. Pintei o retrato de ambos. Primeiro concluí o dela. Já fazia muito tempo que o retrato de Monsieur Hellmann estava aqui. Quando ele chegou na semana passada sua irmã lhe disse que esse retrato, ainda não totalmente concluído, se achava no meu estúdio. Então ele veio aqui. Três vezes, ao todo. Em cada vez, permanecia no meu estúdio de uma a duas horas. Agora o retrato já está pronto, mas Monsieur Hellmann está morto. Terei que telefonar para a irmã dele.
- A senhora permite que eu veja esse retrato?
- Evidentemente, Monsieur Lucas.
Pôs-se logo de pé e seguiu na minha frente para conduzir-me ao seu estúdio, embaixo. Caminhava ligeiro, demonstrando muita leveza e fazendo sempre movimentos graciosos. Eu estava de meias, sem sapatos. Comecei a sentir novamente dores no corpo. Seu estúdio era bem amplo. Notei que havia cerca de uma dúzia de retratos ainda não concluídos. Vi um avental todo manchado de tinta, que estava pendurado num cabide. Palhetas, bisnagas com tintas, pincéis, garrafas de essência de terebintina, telas e molduras eram coisas que ali denotavam uma atividade artística bem intensa. Angela apontou para um retrato ainda sem moldura que se encontrava num canto da sala:
- Aqui está.
Examinei detidamente o retrato. Na minha opinião - e suponho entender um pouco de pintura -, Angela manejava o pincel como abalizada retratista. O quadro mostrava só a cabeça de Hellmann. Se a pintura não tivesse sido retocada (os retratos retocados não conservam nunca o aspecto verdadeiro das pessoas), o banqueiro Hellmann poderia felicitar-se pelo seu lindo rosto. O quadro apresentava uma cabeça de conformação graciosa. Olhos cinzentos. Um sorriso amável aflorando dos lábios. Fronte bem saliente. Cabelos grisalhos abundantes, cortados à escovinha. O semblante dava a impressão convincente de tratar-se de homem absolutamente íntegro.
- Neste retrato ele tem um aspecto encantador - comentei.
- Mas ele realmente tinha um aspecto encantador, Monsieur Lucas. E era um cavalheiro... ("Sim?", pensei comigo mesmo.) Ele era um verdadeiro gentleman.
Angela pareceu ter refletido um pouco e continuou:
- Trata-se apenas de uma impressão minha, Monsieur Lucas... simplesmente uma impressão pessoal que não deve ser tomada em outro sentido...
- Como assim?
- Hellmann andava muito nervoso e irritado quando o atendi nas últimas sessões para concluir o retrato. Algo o martirizava terrivelmente.
- Será que ele não estava com medo de alguma coisa?
- É bem provável. Eu... eu... É apenas impressão pessoal, note bem... eu tinha a impressão de que ele vinha ao meu estúdio principalmente porque aqui encontrava paz de espírito. Aliás, foi o que ele próprio me disse. Gostava muito de mim. Eu também gostava dele. Daí a razão por que ele seguidamente me convidava para passear no seu iate, como... como o fez também dessa vez...
- Dessa vez em que um problema de estômago salvou a sua vida - concluí.
- É verdade. Foi uma grande felicidade essa perturbação no estômago e os enjôos. Do contrário, eu também estaria morta a esta hora. E quem sabe se não... - Interrompeu bruscamente a frase. Aquela expressão sombria dos seus olhos tornou-se mais acentuada.
- Que é que a senhora queria dizer?
- Nada.
- Mas percebi claramente que a senhora queria dizer algo e interrompeu a frase.
- Oh, não, Monsieur Lucas. Vamos voltar ao terraço? Nem esperou a minha resposta. Saiu na minha frente,
passando diante da cozinha, cuja porta estava aberta.
Sobre o terraço ainda corria aquela maravilhosa brisa fresquinha, que me dava uma sensação de bem-estar.
- Entretanto, da última vez nem mesmo aqui ele encontrou paz de espírito - disse Angela, sentando-se na sua cadeira.
- Por que não?
- Chamavam-no constantemente ao telefone.
- Quem?
- Oh, os amigos com os quais ele efetuava negócios. Tirei do bolso da calça minha carteira com a folha de papel, onde havia anotado os nomes dos super-ricaços, fornecidos pelo pobre Louis Lacrosse, entregando-a a Angela.
- Não teriam sido telefonemas de algumas dessas pessoas? A senhora conhece todos os que estão relacionados nesta folha de papel?
- Um momentinho, por favor - disse-me ela e foi apressadamente ao quarto de dormir. Esse quarto tinha umas janelas enormes, que se abriam para os lados. Angela voltou em seguida trazendo um par de óculos munido de lentes finas.
- Nestes últimos anos comecei a ficar com a vista cansada. Já não consigo mais ler sem óculos. Dirigir carros e fazer meus trabalhos caseiros, eu ainda posso muito bem. Mas ler, não. Nem pintar.
Examinou detidamente a folha de papel. Seu semblante revelou um estado de profunda concentração, como, aliás, era do seu hábito ao ter que dar uma resposta concisa e exata às perguntas que lhe eram formuladas. Depois de um certo tempo, disse ela:
- Com exceção do casal Sargantana, conheço todas as pessoas aqui mencionadas. De John Kilwood, dos Fabiani e dos Tenedos já pintei os retratos. Mas, de todos eles, os Trabaud são os que melhor conheço. Com eles tenho relações de amizade. Especialmente com Pasquale.
Tirou os óculos.
- O senhor está admirado, não é verdade? Antes que eu respondesse, ela prosseguiu:
- Sou um exemplar único nesta cidade: conheço todo mundo. Mas isso se deve simplesmente à natureza da minha profissão. O pessoal sempre me convida para as reuniões sociais, para as festas de gala...
- Que pessoal é esse de que a senhora fala?
- Ah, sim, a diretoria do Cassino Palm-Beach e a diretoria do Municipal, em todas as temporadas. Convidam-me para os festivais de cinema e para todas as exposições organizadas aqui. O principal organizador dessas festividades é o Syndicat dTnitiative. Trata-se, explicando-lhe melhor, de uma espécie de departamento destinado a prestar informações aos turistas estrangeiros em toda a orla marítima. Eu... - ela ficou visivelmente encabulada - eu tenho fama mundial, adquirida através das minhas pinturas. Especialmente nesse círculo de pessoas, creio eu. O Syndicat d'Initiative me considera abertamente uma das atrações de Cannes.
- E a senhora o é, sem dúvida.
- Obrigada. Mas não por ter muitos méritos. Fui arremessada, por assim dizer, para dentro desse círculo nos últimos anos. Evidentemente fiquei muito feliz com isso, pois o número de clientes aumentou consideravelmente.
Por outro lado, devo dizer que a coisa é deveras dispendiosa: tenho sempre que comprar vestidos e sapatos novos para essas pomposas festas. A gente precisa andar finamente vestida. Mas tenho sorte, acredite-me. Por duzentos francos consigo um vestido, e as outras mulheres são capazes de jurar que me custou dois mil e que é da alta costura de Pucci. Tenho também, é claro, alguns vestidos bem caros, casacos de peles e finas jóias... Emprego tudo o que ganho na compra de jóias. Se a gente algum dia tem que fugir, as jóias são as coisas mais fáceis... - Novamente interrompeu a frase.
- A senhora já teve que fugir alguma vez?
- Como lhe disse, conheço todas as pessoas aqui relacionadas, com exceção do casal Sargantana. - Ela procurava desviar o assunto para não responder à minha pergunta. - Todos os anos eles passam alguns meses aqui, pois possuem casas ou apartamentos. Os Trabaud vivem três quartos do ano em Cannes e o resto em Paris. Mas, com relação à sua pergunta, posso lhe afirmar que não era nenhuma dessas pessoas que telefonava a Monsieur Hellmann, quando ele se encontrava aqui, embora isso o decepcione, monsieur. Eram vozes que eu não conhecia.
- Naturalmente alguém fazia a ligação e perguntava por Monsieur Hellmann. A senhora passava-lhe o fone e não podia, portanto, ficar sabendo com quem ele falava depois.
- É evidente que eu não podia saber se ele estava falando com outra pessoa. Agora compreendo o que o senhor quer dizer: alguém, antes, se apresentava no aparelho solicitando a presença de Monsieur Hellmann e, depois que este pegava o fone, as pessoas mencionadas no papel que o senhor me mostrou passavam a falar diretamente com ele.
- Ou somente uma delas falava com ele. E o que eu penso. A senhora considera isso impossível?
- Acho até bem plausível essa hipótese - respondeu-me com o semblante sério. - Engraçado, eu não havia pensado nisso antes!
- E a senhora acha que era por causa desses telefonemas que ele não tinha sossego, nenhuma paz de espírito?
- Cada vez que lhe telefonavam ele ficava muito irritado. Chegava a tornar-se violento. Depois passava a demonstrar nervosismo e apatia. Nunca me disse o que se passava com ele. Naturalmente, por discrição, nunca lhe perguntei nada.
- Quando ele fez as visitas ao seu estúdio?
- Durante três dias seguidos. Ainda na semana passada. Foi na última visita que ele me convidou para ir à Córsega no seu iate, juntamente com os casais Simon e Bienert. Esses casais eu também conhecia.
- Que pretendia ele fazer na Córsega?
- Tencionava encontrar-se com amigos em Ajaccio para tratar de negócios.
- Em que idioma eram dados os telefonemas?
- Em inglês.
Enquanto conversávamos, nas proximidades de Nice constantemente aterrissavam ou decolavam gigantescos aviões. Eu os via voando sempre a baixa altura, mas quase não ouvia nenhum ruído dos motores.
- A senhora também fala inglês?
- Como alemão.
- Posso perguntar-lhe o que dizia Monsieur Hellmann nessas conversas telefônicas? Ou a senhora não ficava presente?
- Meu aparelho é munido de um fio muito comprido. Do meu quarto posso transportá-lo por todo o apartamento. Quando estou trabalhando, o aparelho fica no estúdio. Era lá que ele sempre estava quando Monsieur Hellmann se encontrava aqui. Eu sempre fazia menção de me retirar, mas ele me pedia para permanecer ali. Eu não prestava muita atenção ao diálogo. A conversa girava principalmente em torno de prazos ou algo semelhante. Monsieur Hellmann teplicava com firmeza e energia, mantendo-se irredutível no seu ponto de vista. De que assunto se tratava, lamentavelmente não sei. Só posso dizer que era muito constante a repetição de uma palavra: "cover". Não! Eram duas as palavras repetidas com muita freqüência: "cover" e "coverage".
- Cover, coverage - repeti maquinalmente.
- Espere um momentinho que vou buscar um dicionário.
Dirigiu-se apressadamente à sua biblioteca e voltou de a trazendo um dicionário inglês-frances. Depois de ter ajeitado os óculos e puxado o gorro de linho que estava quase caindo da cabeça, começou a folhear o dicionário.
Encontrado o verbete, passou a ler: "Cover - primeira acepção: Teto, forro, tampa, capa (de livro), estojo, invólucro, cobertura, garantia, fundos, proteção..." - Levantou os olhos do livro, perguntando-me:
- Serve esta última palavra?
- Talvez... Ainda não posso formar um conceito preciso. Continue, por favor.
- "...casaco, talheres... Segunda acepção: cobrir, tapar, encobrir, embrulhar, enrolar, ocultar..." Esta última, que lhe parece?
Fiz apenas um movimento com os ombros.
- "...tapar, esconder..." Nenhuma dessas serve?
- Oh, bem que eu desejaria saber qual dessas palavras melhor se adapta ao exato sentido do diálogo mantido por Monsieur Hellmann!
O pequeno gorro já estava quase caindo novamente da sua cabeça. Ela o puxou com força. Uma loura madeixa caiu-lhe pela testa saliente, de pele amorenada.
- "...dar segurança ou cobertura, com armas de proteção; abranger uma região ou um terreno com proteção pelas armas; abarcar, conter, incluir, abranger (os jornais) um assunto, uma entrevista, uma reportagem... covered button, covered court, covered wire... Coverage: reportagem, informação; cover girl..."
- Não, não me parece que alguma dessas palavras possa servir.
- Mas que pretenderia ele dizer, então? Posso lhe afirmar com toda a segurança que esses dois vocábulos - cover e coverage - pareciam estar sempre aflorando dos lábios de Monsieur Hellmann quando ele atendia ao telefone. O diálogo girava praticamente só em torno dessas duas palavras.
- Madame, a senhora acha que essa explosão foi um acidente ou um crime?
- Um crime! - respondeu Angela sem hesitar.
- Por que pensa desse modo?
- Monsieur Lacrosse disse-me que houve uma explosão de dinamite muito violenta.
- Ah, é por isso então que a senhora acredita ter sido um crime?
- Não só por isso. Também por causa do estado em que Monsieur Hellmann se encontrava. Principalmente por causa desse seu estado.
- Qual era o estado dele? Não era só o medo que o dominava?
- Era também o medo.
- Ele manifestava raiva, irritação, amargura?
- Tudo isso junto.
A voz dela soava melodiosa e agradável. Nunca alterava a voz por irritação. Conservava sempre o autodomínio.
- Teriam esses telefonemas alguma relação com o crime?
- Acho que eles deviam ter forçosamente alguma ligação com o caso. Mas em que condições, realmente não sei. Além disso, não está absolutamente provado que os telefonemas eram dessas pessoas. - Aponta o dedo para o papel contendo os nomes. - Ou de alguma delas.
- Ele demonstrava desespero?
- Sim, o estado dele poderia definir-se como sendo de desespero...
- Poder-se-ía, portanto, até mesmo supor que ele estivesse propenso a cometer suicídio, não é verdade?
- Dessa maneira e nessas circunstâncias, arrastando para a morte também outras pessoas?! Nunca! O senhor não conheceu Monsieur Hellmann. Essa é uma hipótese que deve ser excluída sem comentários. Se ele tivesse que dar cabo da existência, estou certa de que o faria sem impelir para a morte outras pessoas. Afirmo isso apostando até a minha própria vida. - Encarou-me pensativa. - Como vê, não lhe posso ser muito útil nesse caso, não é verdade?
- A senhora está sendo extraordinariamente útil.
Ela sorriu. Eu também sorri maquinalmente, dizendo-lhe: - Cover.
- Coverage - respondeu-me ela.
- Ainda uma pergunta: não lhe parece estranho que todas essas pessoas tenham vindo a Cannes mais ou menos na mesma época, ou faziam isso habitualmente?
- Não. Elas sempre vinham em épocas diferentes. Só que dessa vez tinham combinado festejar o aniversário de Monsieur Hellmann, que completaria sessenta e cinco anos.
- Ah, sim.
- Foi a irmã dele que me disse isso por telefone. Naquele dia, entre onze horas e meio-dia, foi grande o movimento nos telefones. Um telefonava para o outro. Madame Hellmann me telefonou diversas vezes. Para me convidar e para conversar comigo. Ela não anda bem de saúde...
- Eu sei. Como foi que a senhora conseguiu pintar o retrato dela?
- Eu ia à sua residência. Raramente ela sai de casa. Sente grande dificuldade para caminhar. O retrato pintado se encontra na casa dela.
- Quando Monsieur Hellmann iria completar sessenta e cinco anos?
- Hoje. Hoje seria o seu aniversário. Dia 13 de maio.
- Muito bem - disse eu, já guardando a folha de papel com os nomes daquelas pessoas. - Fico-lhe sumamente grato por ter me concedido todo esse tempo, madame. Realmente, a senhora me prestou um grande auxílio com as suas informações.
- Receio que não.
- Pode ter certeza de que seus informes são preciosos para mim.
Ela sorriu mais uma vez quando me levantei encurvado, como que enrijecido. Não consegui sorrir. Passamos pelo apartamento e penetramos no pequeno saguão. Fiz o nó da gravata rapidamente, calcei os sapatos e enfiei o paletó. Enquanto me aprontava, Angela não tirava os olhos de mim, examinando-me com muita atenção.
- Bem... Então até a vista... Estendi-lhe a mão, mas ela não quis apertá-la.
- Monsieur... - Angela falava agora com uma voz branda, quase melíflua.
- Sim? - Repentinamente fiquei encabulado.
- Monsieur Lucas, poderia fazer-lhe uma pergunta? Mas peço que o senhor não fique melindrado nem ofendido. O senhor me promete? Creia-me, é uma pergunta que lhe faço com a melhor das intenções.
- Prometo-lhe, Que é que a senhora deseja perguntar, madame?
- O senhor às vezes ri? O senhor consegue rir, monsieur?
- Eu... Francamente, não compreendo...
- Ria! - ordenou-me a estranha mulher. Dei uma risada forçada e artificial.
- Isso não é nenhum riso.
- Mas consegui rir.
- Não, o senhor não riu.
- Bem, é evidente que, sob comando, não posso rir com espontaneidade.
- Claro que não. Foi, na verdade, uma falta de tato da minha parte pedir-lhe que risse.
- Absolutamente não! É que acentua muito o aspecto de severidade do alemão, não é?
- Não vejo nada de severidade nem nada de alemão.
- Que é então que a senhora nota em mim?
- Escute, Monsieur Lucas: o senhor poderá negar ou não admitir o que vou lhe dizer, poderá até considerar-me atrevida, insolente e mal-educada, contudo... contudo acho que devo dizer-lhe... Veja o senhor, é tão...
- Continue, por favor.
- É tão... Eu me permitiria dizer que é tão estranho o fato de o senhor ter vindo aqui com uma roupa que não é apropriada para o calor. Da mesma forma seus sapatos também não são adequados. Depois do meio-dia terei que ir à cidade para comprar tintas e buscar uns vestidos que mandei reformar numa casa de modas da Rue d'Antibes. O senhor é simpático, monsieur. Muito simpático, mesmo.
- Ninguém me disse isso antes.
- Sim, eu sei.
- Como é que a senhora sabe?
- Simplesmente porque sei. Monsieur Lucas, o senhor me permite acompanhá-lo quando for comprar as coisas de que precisa? Pelo que parece, terá que permanecer nesta cidade por muito tempo, não é?
- Sim.
- E uma mulher sabe melhor o que serve para um homem. Ela sempre tem um golpe de vista mais adestrado para essas coisas.
- A senhora quer me acompanhar quando eu for comprar as coisas de que preciso? Acha minha roupa esquisita?
- Esquisita, não! O senhor exagera no uso desse tipo de roupa. Roupa que nada tem de prático, monsieur. Então?
- Alegro-me sinceramente com a sua resposta. Nesse momento percebi que meu coração batia aceleradamente. Continuei:
- Fico muito alegre e satisfeito, madame, creia-me. Mas antes a senhora terá que permitir que eu a convide para um almoço.
- Com muito prazer. Mas previno-o desde já que tenho um apetite enorme.
- Quando posso vir buscá-la então? Está bem à uma hora?
- Ótimo. Está combinado: à uma hora. Vou reservar nossa mesa no Majestic. Deixe que eu mesma escolherei o local. Em qualquer outra parte.
- Está bem. Então até a uma hora! Fico muito alegre e satisfeito, creia-me.
- E eu também me alegro, monsieur. Vou chamar um táxi. O ponto de táxi é bem próximo daqui. O carro não demora muito a chegar.
Deu-me um forte aperto de mão. Antes de sair, lancei mais uma vez um olhar pelo apartamento. Falando como um verdadeiro idiota, disse:
- Imagine a senhora: eu também gosto de colecionar elefantes. Esses bichinhos me agradam muito. Principalmente os bem pequenos, feitos de ébano. São muito engraçadinhos!
- O senhor é supersticioso?
- Muito supersticioso.
- Eu também.
Ela abriu a porta. Dirigi-me ao elevador, apertei o botão e, enquanto esperava que ele chegasse, virei-me ainda uma vez: Angela permanecia na porta, sorrindo com uma expressão de alegria. Também procurei sorrir, mas não consegui. Estava me sentindo muito indisposto, tendo dificuldade até para falar. A porta do elevador se abriu. Quando entrei, Angela ainda se encontrava na porta do apartamento e continuava sorrindo. Levantou a mão em sinal de despedida e eu correspondi levantando a minha. A porta se fechou e apertei o botão para o térreo. O elevador começou a descer sem trepidação. Estava muito quente dentro dele. Na parede, mais ou menos à altura da cabeça, encontrava-se um espelho. Olhei meu rosto e tentei sorrir, mas só fazia caretas. Inopinadamente meu corpo começou a doer nas partes onde fora espancado na noite anterior. Eu até havia esquecido essas bordoadas. Mas também de um momento para outro essas dores desapareceram completamente. Então comecei a sentir uma outra espécie de dor muito diferente, que invadiu todo o meu corpo. Uma dor que eu não poderia descrever. E o que havia de mais absurdo em tudo isso era precisamente o fato de tratar-se de uma dor suave, como que repassada de doçura. Uma dor que percorria todo o meu corpo, dando-me uma sensação agradável. Eu nunca havia tido antes uma sensação dessa espécie.
Capítulo 19
- Crime. - Rouca, murmurante e num tom de súplica, soou a voz de Hilde Hellmann. - É claro que se trata de um crime. Um crime hediondo, perfidamente concebido! Ela estava sentada ereta numa enorme cama estilo ro-cocó, num quarto espaçoso com pouca claridade. Agora compreendi por que meu chefe Brandenburg, bem como todas as companhias internacionais, a chamavam de Hilde dos Brilhantes. Mesmo estando na cama, tinha no dedo um anel contendo, no mínimo, vinte pedrinhas de brilhantes e estava usando uma esmeralda também cravejada de brilhantes. Trazia, no pulso esquerdo, uma pulseira de esmeraldas bem larga, cuja única pedra achava-se, da mesma forma, cravejada de brilhantes. E não faltava em torno do pescoço o correspondente colar. Na minha vida eu nunca tinha visto uma coisa assim. O colar se dividia em oito partes. Cada parte possuía, no meio, uma grande esmeralda oblonga. Nas suas bordas laterais viam-se desenhos artísticos de fino lavor imitando folhagem, com incrustações de brilhantes polidos. Na frente pendiam dois brilhantes com o formato de meia-lua, ligados por uma pedra polida, bem como mais uma esmeralda em forma de um grande pingo d'água. E, como é óbvio, nas orelhas de Hilde Hellmann estavam pendurados brincos formados igualmente por esmeraldas, cravejados de brilhantes. O valor total dessas jóias devia atingir muitos milhões. E dizer que Hilde usava tudo isso na cama, em completo desalinho e sem pintura, mostrando a pele branca e os olhos albinos, com os contornos rosados! Cobria-lhe a cabeça uma peruca preta, que escorregava continuamente, deixando ver que ela não tinha mais um fio de cabelo. Vestia uma camisola de rendas própria para a noite e um casaqui-nho verde. Para ela o tempo estava fresco, pois tanto no seu quarto como em toda a casa havia ar-condicionado. Por isso, ali, eu podia respirar com conforto e sentia o perfume das flores.
- E que crime horrível! - exclamou Hilde dos Brilhantes.
Depois que saí do apartamento de Angela Delpierre, localizado no bairro La Californie, dirigi-me imediatamente ao gabinete de Louis Lacrosse, no antigo porto. Em seguida rui ao Majestic. Só depois de ter feito todo esse percurso roí que mandei que o carro se dirigisse ao bairro grã-fino, Les Vallergues, na parte oeste da cidade. É ali que os Hellmann possuem uma villa. Bastou citar o nome dos proprietários para que o motorista ficasse sabendo o meu destino. Ele conhecia perfeitamente aquela villa. Explicou-me que outrora ela pertencera a um príncipe russo.
Conforme verifiquei depois, estava localizada no meio de um enorme parque, todo circundado por um muro muito alto, encimado por pontas de ferro e por uma cerca de arame farpado. Havia também em cima do muro dispositivos elétricos de alarma.
Um porteiro grandalhão, usando uniforme branco com botões de metal amarelo e galões, saiu de uma guarita. O motorista fez sinal para que ele abrisse o portão. Ele não atendeu. Depois de um certo tempo, passando por um portãozinho de acesso à sua guarita, veio até o portão grande, que abriu. Advertiu-nos de que o carro não podia entrar no parque e de que eu devia saltar ali mesmo.
Faltavam dez para as onze. Do gabinete de Louis Lacrosse marquei uma entrevista com Hilde Hellmann para as onze horas. Detenho-me agora a descrever o que se passou naquele gabinete. Na sala do pobre homem estavam girando três ventiladores, pois ele se sentia quase sufocado. De manhã bem cedo eu havia comunicado a Lacrosse, por telefone, o assalto de que fora vítima, bem como as ocorrências com Nicole Monnier e Alain Danon. Ele me prometeu mandar investigar o caso.
- Que há de novo? - perguntei a Lacrosse.
Além dele, encontrava-se também no seu gabinete um homem que usava calça de linho e camisa do mesmo tecido, de cabelos pretos e pele queimada pelo sol. Era o Capitão-Tenente Laurent Viale, o perito francês em explosões que a Polícia Marítima havia designado para investigar o caso.
Viale era um homem de aproximadamente trinta e cinco anos. Fez-me um pequeno relato do que constatou. De acordo com o resultado de seu exame pericial, patenteava-se de modo inequívoco a existência de um crime. Pedaços côncavos de um mecanismo foram pescados da água. A quantidade de dinamite empregada daria para fazer voar pelos ares a própria França, disse-me o Capitão-Tenente Viale.
Esse engenho infernal devia ter sido colocado no compartimento das máquinas. Viale julgava poder provar, mediante o exame dos destroços ou dos fragmentos colhidos, a espécie de dinamite utilizada. Essa circunstância seria evidentemente de grande utilidade para as nossas investigações. Entretanto, aconteceu um imprevisto: Viale, que morava em Nice, ficou aguardando que lhe fosse remetido de Paris por avião um espectômetro, instrumento imprescindível para a realização das pesquisas, pois o seu encontrava-se totalmente quebrado.
Eu e Viale simpatizamos imediatamente um com o outro. Tive a impressão de que, em nosso trabalho, iríamos nos entender muito bem.
- Assim que souber que tipo de material explosivo foi utilizado, poderei esclarecer também a sua origem - disse-me o Capitão-Tenente Viale. - Já faz dezesseis anos que estou nesse serviço e, aos poucos, fui adquirindo tais conhecimentos.
Os fragmentos e destroços de materiais que ele trouxera ao regressar do local do acidente estavam num compar-timento ao lado, onde se achava localizado o laboratório da Direction des Affaires Maritimes. Fomos até esse comparti-mento. Mostrou-me uma prateleira cheia de destroços de todos os tamanhos.
- E quanto às investigações do meu caso? - perguntei a Lacrosse exatamente quando saímos do laboratório, cujas janelas tinham grades, conforme verifiquei.
- Nada de positivo - respondeu-me, oprimido como sempre. - Danon desapareceu.
- Que significa "desapareceu"?
- Significa o que significa. Enviei alguns funcionários do Comissariado Central à Résidence de Paris. Ninguém atendeu quando tocaram a campainha e o zelador não soube informar onde Danon se havia metido. Desse modo eles não tiveram outra alternativa senão arrombar a porta, já que se achavam munidos da competente autorização judicial para efetuar buscas no apartamento.
- E então?
- Danon tinha ido embora. O apartamento estava vazio. Ele havia levado suas roupas e suas malas. O carro dele tampouco se encontrava na garagem. Ninguém viu quando ele saiu. Deve ter fugido de noite mesmo. Como é natural, já fornecemos a descrição de Danon a todos os postos da policia e da gendarmerie. Mas se ele possui dez centavos de inteligência que seja, não deixará de sumir por um longo tempo, é claro. - Lacrosse acendeu um outro cigarro na pontinha do que estava acabando de fumar.
- Por que teria fugido?
- Por que razão teria ele afirmado que Nicole Mon-mer não morava naquele apartamento? - interrogou Viale.
- E ela morava mesmo ali? - perguntei.
- Os guarda-roupas estão cheios de vestidos e de roupas íntimas de mulher.
Então quer dizer que o apartamento também perece a ela, não é verdade?
- Sem dúvida. Foi o que declarou o próprio zelador. Aliás, era ela que figurava como locatária e que pagava tudo. Era um apartamento alugado.
- E Danon?
- Provavelmente era seu cafetão ou alcoviteiro.
- Como provavelmente?
- Bem... Ele poderia também ser um freguês ou um simples cliente dela.
- Um freguês ou um simples cliente que tem suas roupas e malas no mesmo apartamento e que ocupa a garagem correspondente com seu carro?!
- Por que não? - retrucou o Capitão-Tenente Viale. - Ele pode muito bem morar lá por quanto tempo quiser e possuir também uma outra residência... talvez até mesmo sob um nome falso. Quem sabe se não existem ainda outras mulheres que estão a seu serviço?
- Além disso, a rosa de que o senhor me falou também desapareceu - disse Lacrosse já segurando entre os dedos um outro cigarro para acender.
- E Nicole Monnier também levou todas as suas roupas?
- Não. Os guarda-roupas destinados aos vestidos e roupas íntimas de mulher estão cheios. Não falta nada. Talvez ela também tenha roupas em outro apartamento... Ou em muitos outros apartamentos. Se eles forem um pouco habilidosos, não se deixarão agarrar facilmente.
- Algum deles já foi preso antes ou possui antecedentes criminais?
- Não - respondeu Lacrosse. - Que foi que você ficou sabendo através de Delpierre?
Contei-lhe tudo o que Angela Delpierre me havia declarado.
- Se é assim, ela não revelou nada de novo. Eu só queria, sem nenhum intuito de insinuar-lhe o que deve fazer, que o senhor tivesse essa entrevista com ela.
- Que poderiam significar as palavras "cover" e "coverage"?
- Não faço a mínima idéia.
- Garantia, fundos, cobertura, hummm! Não teriam sido essas palavras empregadas com relação a cheques, letras de câmbio, saques bancários? Nessa hipótese comumente se diz que os emitentes de tais documentos dispõem ou não dispõem de fundos. Que acha você? - perguntou-me Viale.
- É verdade - respondi, já um tanto impressionado com a sua explicação. - Você tem razão. Existe discagem direta de Cannes a Düsseldorf?
- Não - respondeu-me Lacrosse. - Por enquanto só existe da Alemanha para a França. Para conseguir uma ligação daqui para a Alemanha o senhor terá que esperar algumas horas. Nossa rede telefônica anda um pouco...
- Posso telefonar a essa tal Hilde Hellmann a fim de marcar a minha visita à sua residência?
- Sem dúvida! - respondeu-me Lacrosse. Quando me despedi grunhiu com a boca um pouco torcida:
- Desejo-lhe uma prazerosa e alegre entrevista com Hilde dos Brilhantes!
Tomei um táxi e fui direto ao Majestic. Lá tirei do cofre-forte que havia alugado um pouco de dinheiro e o livro do código secreto a fim de redigir um telegrama cifrado a ser transmitido a Gustav Brandenburg.
O texto integral desse telegrama era o seguinte:
"DEPARO-ME CONSTANTEMENTE COM EXPRESSÕES EM INGLÊS: COVER E COVERAGE PT TÊM ELAS ALGUMA SIGNIFICAÇÃO ESPECIAL?"
Nosso código havia sido elaborado de maneira extraordinariamente hábil e fornecia, para cada dia da semana, um novo criptograma que permitia cifrar facilmente qualquer texto. O telegrama foi passado com a anotação URGENTE.
Em seguida, dirigi-me à villa de Hilde Hellmann, onde fomos recebidos por aquele empregado de uniforme branco que não permitiu a entrada do carro no parque...
Paguei ao motorista, desci do carro e fui seguindo esse empregado, que me levou até a portaria de entrada. Ali tive que esperar um pouquinho para que ele telefonasse anunciando a minha chegada.
- O senhor vai ser recebido agora - disse-me ele. Alguns segundos após, apareceu um jipe transformado em um tipo de carro especial, coberto por uma capota que parecia um baldaquino. Esse carro tinha dois assentos atrás e mais um na frente, ao lado do volante. O chofer usava um uniforme azul com botões metálicos luzidios e galões dourados. Subi no carro, que saiu rodando através do parque, levando exatamente cinco minutos e meio até chegar ao palacete residencial.
Durante o percurso havia momentos em que passávamos através de um bosque... Sim, bosque era como bem se poderia chamar aquele parque imenso, com suas palmeiras, ciprestes, cedros e oliveiras. Era tão denso, que o carro tinha que rodar, às vezes, sob um verdadeiro túnel de folhagem formado pelos galhos dessas árvores frondosas que atravessavam o caminho de um lado ao outro. Nas proximidades da residência viam-se bancos de pedra e estátuas também de pedra, que apresentavam algumas rachaduras. Havia ali uma gigantesca piscina sem água. O sol chegava a ofuscar a vista de tão brilhante. A villa fora construída no estilo colonial espanhol. Encantavam a vista os bem-cuidados canteiros cheios de flores. Nos chafarizes os raios do sol formavam lindos arco-íris. O caminho para a entrada do palacete passava por um enorme alpendre bem saliente, apoiado sobre colunas, e por uma espécie de terraço com muitas flores. O homem que me trouxera saiu logo, levando de volta o estranho carro.
Um outro empregado, de uniforme branco, abriu-me a porta.
- Queira ter a bondade de me seguir, monsieur.
Segui-o passando por um amplo saguão com piso de mármore, todo coberto de finos tapetes. Das paredes, revestidas de custosos gobelinos, pendiam quadros de Rubens, Botticelli, El Greco, Vermeer van Delft. Tenho certeza de que esses quadros eram realmente os originais. A casa tinha o aspecto de uma gigantesca loja de antigüidades com móveis caríssimos nos estilos das mais variadas épocas: barroco, renascentista e rococó. Viam-se ali móveis muito lindos, mas que pareciam não produzir nenhum efeito para o realce estético do ambiente. Várias espécies de flores cresciam em grandes vasos colocados no chão. Toda a casa estava inundada pelo perfume delas. Colocada-s em nichos bem-iluminados viam-se estatuetas de marfim representando homens e animais. Os quadros e as estatuetas não combinavam de maneira adequada com a variedade de estilos dos móveis. Apesar do fausto e da ostentação, ressentia-se o ambiente daquela característica indispensável a um ambiente culto. Respirava-se ali uma atmosfera essencialmente feminina. No meu parecer isso demonstrava com toda a evidência que era só Hilde Hellmann quem morava permanentemente naquele palacete e que seu irmão a visitava apenas esporadicamente. Era evidente que essa arrumação devia ter sido feita exclusivamente de acordo com o gosto dela.
Por uma escada de mármore subimos ao primeiro andar, onde uma larga balaustrada de pedra encobria a entrada de acesso a um corredor, ao longo do qual se enfileiravam muitos quartos. Nesse local também havia quadros e estatuetas e as paredes estavam recobertas por tapeçarias. Era sem dúvida um gigantesco palacete.
Ao percorrer o corredor deparamo-nos duas vezes com escadinhas de três degraus, primeiro subindo para um outro plano e depois descendo. Finalmente o criado estacou diante de uma porta e bateu. Uma camareira abriu a porta e eu entrei numa sala ampla toda decorada de azul. Vi novamente vasos com flores colocados nessa sala. Na verdade, todo o palacete estava cheio de vasos de flores. Devo dizer, todavia, que as flores no palacete de Hilde Hellmann não produziam absolutamente a mesma sensação de jovialidade e de prazer que no terraço de Angela. Na residência de Madame Hellmann as flores eram sufocantes e recendiam um odor nar-cotizante.
Acendi um cigarro. Estava nervoso e molhado de suor. Fumava ininterruptamente, dando fortes tragadas. O que o Dr. Betz me disse entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Percebi logo que me seria impossível cumprir sua recomendação. Mastiguei como doido dois comprimidos de Nitrosteron e comecei a folhear uma série de grossos volumes com capas de couro guarnecidas de metal que se encontravam sobre a mesa. Eram livros escritos em latim, que tratavam de assuntos referentes a plantas. Esperei. Acendi outro cigarro. Já passavam vinte minutos das onze. Faltando um quarto para as doze abriu-se uma porta e surgiu à minha frente um homem com uma roupa bege. Tinha uma ótima aparência. Apenas seus olhos revelavam uma certa expressão de frieza.
- Seeberg - disse-me ele, falando em alemão, enquanto me dava um caloroso aperto de mão. - Paul Seeberg. E um prazer cumprimentá-lo, Sr. Lucas. A distinta senhora vai recebê-lo dentro de alguns momentos. Ela apenas está se refazendo e se reconfortando um pouco. O choque emocional... O senhor me compreende... Um acontecimento pavoroso!
- Realmente pavoroso! - respondi.
- Eu sou o procurador-geral do banco de Hellmann, munido de todos os poderes - explicou-me Seeberg. - Sou um amigo da família, se é permitido expressar-me desse modo. Sim, essa é a melhor expressão que encontro. Logo que recebi a notícia da terrível catástrofe, tomei imediata-ente o avião para esta cidade.
A Sra. Hellmann está completamente abatida, sob forte tensão emocional. Ela e seu finado irmão se queriam muito bem, creia-me. Agora, com a ajuda de um insigne e abalizado médico, ela está tentando superar essa fase tão dolorosa. Por isso tomo a liberdade de lhe pedir que não prolongue muito sua conversa com ela. Em hipótese alguma ela poderá ficar nervosa ou excitada.
- Por minha causa ela não ficará nervosa, garanto-lhe.
- Contudo - retrucou com amabilidade -, é evidente que sua conversa é suscetível de deixá-la nervosa, embora o senhor não queira, pois forçosamente terá que cumprir seu dever. Entretanto, confio em que o senhor prudentemente e com habilidade evitará tocar na sua dolorosa ferida...
Sacudi os ombros. O palacete era um verdadeiro ambiente de aromas e perfumes. O próprio Seeberg recendia ao perfume de uma certa marca de água-de-colônia.
- Que tipo de água-de-colônia o senhor usa?
- Grès pour homme - respondeu, sem poder ocultar uma certa expressão de orgulho íntimo. - Só neste país é que se pode adquiri-la. Perfume excelente, não é verdade? Já faz anos que uso essa marca.
- Terá o senhor, por gentileza, uma caneta? Por favor, escreva-me a marca dessa colônia, bem como o nome do fabricante.
- Grès, Paris.
- Também quero comprá-la.
- Com muito prazer.
Tirou do bolso um cartão de visita e escreveu, no verso, com uma caneta dourada, os dados por mim pedidos.
- Obrigado! - disse-lhe eu. - O senhor é muito gentil.
- Por favor, não há o que agradecer.
A porta se abriu novamente. Aparece, agora, uma irmã-enfermeira, forte e robusta mas de aspecto maternal, usando o característico traje branco.
- Madame já está pronta para recebê-lo.
- A senhora é italiana? - perguntei-lhe.
- Sim, monsieur, sou de Milão. Nunca perdi o sotaque, apesar de já estar trabalhando aqui na França para madame há seis anos.
Ela segurou a porta para mim. Penetrei no dormitório semi-escurecido de Hilde dos Brilhantes. A freira se encarregou de fazer-lhe minha apresentação.
- Muito prazer! - Hilde falava com a língua pesada, como se tivesse ingerido forte dose de tranqüilizante. - Agora deixe-nos a sós, Ana. Ninguém deve entrar aqui enquanto estivermos conversando. Entendeu bem?
- Sim, madame. A porta fechou-se.
- Aproxime-se mais, Sr. Lucas. Pegue uma cadeira e sente-se aqui bem perto de mim a fim de que eu possa vê-lo melhor e não precisar falar muito alto.
Examinou-me atentamente com seus olhos albinos. Seus dedos deslizavam calmamente sobre o cobertor. Apesar do ar-condicionado, eu sentia calor naquele quarto. Ela, pelo contrário, parecia estar sentindo frio.
- Naturalmente... a companhia de seguros... Compreendo perfeitamente. O senhor apenas terá que me desculpar se eu... - Agarrou um lencinho todo bordado de rendas e virou a cabeça para o lado, permanecendo nessa posição, a soluçar, durante algum tempo.
Esperei até que ela se decidisse a falar. Enquanto isso fiquei respirando o perfume das flores.
Depois, bruscamente Hilde virou-se para mim. Seu rosto estava liso e branco. Ela falava baixinho como se estivesse cochichando, mas em tom enérgico e insistente.
- Foi crime. É claro que foi crime. Um crime hediondo, perfidamente concebido.
Deu um suspiro e depois repetiu.
- E que crime!
- Que significa essa sua expressão: "E que crime!"? - perguntei-lhe.
Meu pé esquerdo estava doendo e a dor no lado esquerdo do peito também começava a aparecer. Mas não eram insuportáveis.
- Não lhe agrada este enfeite com meu jogo de esmeraldas? - perguntou-me inopinadamente, como se naquele instante seu espírito tivesse se reanimado.
- Excelente! Mas que significa essa sua expressão: "E que crime!"?
- Oito das dez esmeraldas engastadas neste colar e neste anel procedem, consoante documento fidedigno em meu poder - inclusive, é claro, esta grande esmeralda em forma de pêra -, de um colar que outrora pertenceu ao Czar Alexandre II.
- Minha senhora, qual é sua opinião sobre esse crime?
- Isso o senhor já sabe - respondeu Hilde dando uma gargalhada. Uma gargalhada de pessoa louca. Assustei-me um pouco. Mas ainda iria me assustar depois, - Isso o senhor já sabe. O senhor já deve saber tudo direitinho.
- Eu não sei nada! Só sei que a senhora declarou a Monsieur Lacrosse que seu irmão, na sua opinião, foi morto por um dos seus amigos com o qual ele fazia negócios vultosos e que se achava numa situação desesperadora e irremediável.
- Oh, esse Monsieur Lacrosse! - Começou de novo a casquinar, soltando uma gargalhada assustadora e abafada. - O pobre baixinho Monsieur Lacrosse! Tão pequeno e com tanto medo! Tão cheio de responsabilidades! Percebi logo que para mim ele não teria nenhuma serventia. Quando falei com ele, disse apenas algumas coisas que ele achou até razoáveis.
- Então é mentira o que ele me disse?
- Esta esmeralda com formato de pingo d'água foi cortada de uma outra esmeralda consideravelmente maior. Tinha setenta e cinco quilates.
Insisti na pergunta:
- Minha senhora, então é mentira o que ele me disse?
- E as oito esmeraldas pesam juntas oitenta e três quilates. São bem valiosas, não é verdade? Sim, o que ele disse é mentira, evidentemente.
Hilde começou novamente a falar como se estivesse cochichando. Prosseguiu:
- É um homem muito cauteloso esse tal Lacrosse. Ele tem medo de se enredar em alguma confusão. To get involved. O senhor me compreende, não é verdade?
- Sim, compreendo.
Ocorreu-me logo a idéia, de perguntar-lhe como traduziria ela as palavras "cover" e "coverage". Entretanto, julguei melhor omitir essa pergunta.
- Qual a razão que induz a senhora a acreditar que seu irmão foi assassinado?
- Ora, havia gente interessada em destruí-lo.
- Quem?
Respondeu-me com um sorriso de pessoa louca:
- Todos! Todos, Sr. Lucas!
- Todos?!
- Todos, evidentemente. Eles vieram da Alemanha. São nossos conterrâneos. Conhecem muito bem a situação da Alemanha. Meu irmão era um grande homem. Grande e poderoso demais para eles. - Soltou uma gargalhada. - Mas, por favor, não me olhe com essa cara. Não procure simular. O senhor sabe perfeitamente que foram todos eles juntos que mataram meu irmão.
Nesse ponto da conversa lembrei-me dos votos "de um feliz e prazeroso encontro" que Lacrosse ironicamente me formulara quando eu lhe disse que iria visitar Hilde dos Brilhantes. Pela sua maneira de portar-se, essa mulher sem dúvida deveria estar sofrendo de alguma perturbação mental.
- Todos os seus amigos - repetiu mais uma vez casquinando como doida. - Todos eles juntos. Eles tinham que dar-lhe sumiço... Para que ele deixasse de existir.
Convenci-me do seu desequilíbrio mental.
- A senhora se refere naturalmente a todas aquelas pessoas que vieram a esta cidade para comemorar o aniversário dele, não é verdade?
- O aniversário! - Começou a desmanchar-se em lágrimas e a soluçar fortemente. - Hoje ele estaria...
Não pôde mais prosseguir. Levantei-me sobressaltado, pois ela, num ímpeto, pulou da cama. Correndo, fui postar-me à porta do quarto.
- Para onde a senhora quer ir?
- Chamar a irmã-enfermeira.
- Não!
Bruscamente sua voz pareceu ter adquirido um timbre agudo. Fiquei de pé, movimentando-me em torno dela. Sentou-se na borda da cama, mantendo o busto bem ereto. Não chorava mais, embora continuasse com os olhos lacrimosos.
- A irmã-enfermeira está lá fora. Ninguém vai chamá-la. Saia imediatamente!
- Não!
- Por que não?
- Não fale assim comigo, minha senhora! Não posso tolerar essa sua atitude.
- Desculpe-me. - Começou a rir novamente, dando umas risadinhas de louca. - Meus nervos... Há momentos em que penso que vou perder a razão. Por favor, sente-se.
Sentei-me.
- Então a senhora considera esses seus amigos e sócios culpados da morte do seu irmão?
Com essa pergunta ela quase se rebentou de tanto rir.
- Que idéia é essa, meu Deus! Os bons amigos dele, que são também os meus mais caros amigos, que tanto prezo. Sr. Lucas, não é hora para fazer gracejos.
- Não é nenhum gracejo que estou fazendo. A senhora mesma se referiu a todos indistintamente. Quem são eles, então?
- O senhor sabe tão bem quanto eu - retrucou, incomodada.
Pegou minha mão. A dela estava fria e a minha se achava molhada de suor.
- Sr. Lucas, pagar-lhe-ei a quantia que o senhor quiser!
- A companhia para a qual eu trabalho provavelmente terá que pagar-lhe o valor do seguro...
Numa atitude expressiva ela acenou negativamente, como que dando a entender que pouco lhe interessava esse pagamento, e disse-me com altivez, falando num tom autoritário:
- Companhia de seguros, qual nada! Pagar-lhe-ei para que prove a culpabilidade de todas essas pessoas perante o tribunal, fazendo o possível para que elas sejam liquidadas, apagadas... Essas pessoas devem ser eliminadas. Do contrário, minha vida também correrá perigo.
- Como assim?
- Sou a herdeira do meu irmão. A sua única herdeira. Agora tudo o que era dele me pertence. Sou a única parenta viva do meu pobre irmão.
- Isso significa, então, que também o banco agora lhe pertence, não é verdade?
- Evidentemente.
- Mas a senhora, nesse estado... Desculpe-me...
- O senhor tem razão. Nesse meu estado não poderei ir à Alemanha. Além do mais, não sei lidar com dinheiro. Por felicidade, Seeberg está tomando conta dos negócios.
- Quem?
- Paul Seeberg, o nosso procurador-geral. É o homem que o senhor conheceu há pouco.
- Ah, sim.
- Nele eu posso confiar. Mas ele não tem nenhuma experiência com relação ao ramo de atividade do senhor. Portanto, em que condições vamos fazer esse negócio? Qual é a importância que o senhor exige? O senhor receberá o dinheiro que quiser desde que me ajude a eliminar esses monstros. Mas não me venha dizer de novo que o senhor não sabe a que pessoas estou me referindo!
Essa mulher estava louca. Não havia nenhuma vantagem em continuar falando com ela. Respondi-lhe simplesmente:
- Não quero dinheiro algum. É minha obrigação esclarecer o caso. Tão logo tenha conhecimento de algo a respeito do assunto, comunicar-lhe-ei os informes obtidos, Sra. Hellmann. Quer que lhe faça essa comunicação?
- Imediatamente, meu caro! Levantei-me.
- Faça o favor de olhar! - disse Hilde. Apertou o botão de um interruptor que se achava ao lado da sua cama. Atrás de mim resplandeceu uma luz forte.
Colocado entre dois guarda-roupas de modo a receber em cheio a projeção da luz focada por baixo, pendia um retrato de Hilde que a mostrava como ela realmente era. Dava a impressão de uma figura fantasmagórica.
Assim iluminado por intenso jato de luz, o retrato provocava um efeito quase aterrador. Angela reproduzira fielmente toda a loucura que se estampava nos olhos daquela mulher. Predominavam no retrato as tonalidades espalhafatosamente vivas das tintas branca, amarela e laranja.
- Maravilhoso, não é verdade? Naturalmente o senhor conhece Angela Delpierre.
- Apenas de nome - respondi-lhe, mentindo.
- O senhor não a conhece pessoalmente?
- Não.
- O senhor deve procurar conhecê-la.
- Será para mim um grande prazer - disse-lhe eu enquanto tirava do bolso o meu caderninho de anotações e a minha caneta-tinteiro. - Poderia anotar-me, neste caderninho, o nome e o endereço dela? Tenho a vista cansada e esqueci meus óculos.
Ela pegou a caneta e a caderneta, anotando o nome de Angela, seu endereço e o número do telefone. Para escrever, colocara a caderneta sobre os joelhos. Nessa posição, sua caligrafia talvez se modificasse um pouco. Esperava que essa alteração pelo menos não fosse muito acentuada. Agora ja possuía uma segunda prova da sua caligrafia.
- É uma grande artista! O senhor acredita que muitas vezes deixo acesa durante toda a noite essa luz que incide sobre o retrato? Ando dormindo muito pouco. Apenas em curtos intervalos interminentes. Cada vez que desperto, fico contemplando o quadro. Essa contemplação me traz tanta paz de espírito...
A porta se abriu. Apareceu Seeberg.
- Sinto muito, Sr. Lucas, mas considero-me responsável pela senhora. O senhor já permaneceu no quarto conversando com ela por muito tempo. A senhora anda muito fraca.
- Já estou me retirando - retruquei-lhe.
Hilde estendeu-me novamente a mão fria. Quando me inclinei para seu lado, ela cochichou ao meu ouvido:
- Um milhão? Não lhe serve essa quantia? Dois milhões? Telefone dizendo se aceita ou não. Está combinado? O senhor agora já sabe o que terá que fazer.
Meneei a cabeça afirmativamente. Quando já me encontrava na porta, Hilde disse-me em voz alta:
- Todas essas jóias e adornos foram arrematados num leilão da Sotheby, em Zurique.
Seeberg desceu a escada comigo e conduziu-me até a porta de saída. O criado, com aquele carro que parecia um jipe, já estava esperando.
- Um táxi já se encontra no portão aguardando a sua chegada - comunicou-me Seeberg.
- Agradeço-lhe muito a gentileza. A Sra. Hellmann está realmente sob os cuidados de um bom médico?
- O melhor. O melhor que existe aqui. Um médico interno e um psiquiatra.
- Hum...
- Bem... Agora o senhor mesmo viu em que condições ela ficou depois da catástrofe, não é verdade?
Concordei com um meneio de cabeça.
- Desejo-lhe felicidades e sucesso nas suas investigações - disse-me Seeberg ao despedir-se de mim. - Certamente nos veremos d novo em breve.
- Certamente, Sr. Seeberg.
Entrei naquele jipe coberto por uma espécie de baldaquino, que arrancou logo. Seeberg já havia desaparecido quando me virei para observar o palacete. O carro, nesse instante, estava contornando a rampa. Entretanto consegui notar que dois rostos se achavam quase colados à vidraça de uma janela do primeiro andar. Eram Hilde Hellmann e a irmã-enfermeira Ana. Elas me observavam atentamente com os olhos fixos. Esses dois rostos revelavam uma indescritível expressão de terror. Jamais havia visto tanto medo concentrado em dois semblantes humanos. Perceberam logo que eu também estava olhando para elas. Com a rapidez de um raio fecharam a cortina.
Capítulo 20
Angela Delpierre estava sentada ao volante do seu Mercedes branco. Eu estava sentado ao lado dela. O próprio ar, a essa hora, achava-se impregnado de calor. O asfalto parecia cintilar. Angela usava uma calça branca e uma blusinha de gola alta, fechada, estilo Mao Tsé-tung.
Estava levemente maquilada. Estávamos rodando pela Avenue du Roi Albert I, que, às vezes, se estendia, serpean-do, ao longo do leito da via férrea e atravessava becos estreitos nos quais se viam velhas casas abandonadas, cujos muros estavam cobertos por uma enorme quantidade de cartazes de propaganda totalmente rasgados e estraçalhados. Cruzamos a Rue dAntibes atingindo, logo em seguida, a Croisette. Avançávamos em direção ao oeste. Era sempre Angela que se sentava ao volante quando saíamos no seu carro. Eu ficava ao seu lado, inclinando-me continuamente a fim de observá-la. Seus cabelos loiros estavam reluzentes. Dirigia o carro com muito cuidado e prudência. Eu observava suas mãos no volante. Em dado momento notei que no dorso de sua mão direita havia uma mancha bem branca formando um forte contraste com a pele amorenada.
- A senhora já sofreu ferimento em acidente alguma vez?
- Ferimento onde?
- No dorso de sua mão direita. A mancha branca... Pela primeira vez desde que a conheci Angela hesitou em responder-me, parecendo ter ficado um pouco irritada.
- Engraçado o que acontece com essa manchinha. Não há jeito de a pele ficar morena nessa parte da mão. Nunca. Já tentei tudo.
- Mas por que será? Sacudindo os ombros, respondeu-me:
- Não faço a mínima idéia. Há alguns anos consultei uma cartomante. Saiba o senhor que nesta cidade existe um grande número delas. A que consultei morava em Saint-Raphael e era muito afamada. Vinha a Cannes duas vezes Por semana e ficava num hotel, onde atendia aos clientes. Foi um amigo que me sugeriu essa consulta. Disse-me uma porção de absurdos... Não! É até injusto dizer isso... Muitas das previsões que essa mulher fez se realizaram de fato. Ela também observou atentamente essa mancha branca. Disse-me que eu, na infância, deveria ter sofrido um choque emocional muito forte. Então apareceu essa mancha que vai ficar por toda a vida.
- Mas a senhora sofreu realmente algum choque emocional?
A essa pergunta ela não deu nenhuma resposta.
Continuei falando como se só nesse instante me tivesse dado conta da sua declaração acerca do prognóstico da cartomante:
- Não acredito que essa mancha permanecerá por toda a vida. Um dia ela terá que desaparecer!
- Por que ela terá que desaparecer algum dia?
- Não sei por quê. Apenas tenho um firme pressentimento de que terá que desaparecer. Um pressentimento deveras muito forte. Eu...
- Sim? O senhor acha?
- Não - respondi. - Estou dizendo absurdos.
- Não! - retrucou Angela. Ela ligou o rádio do carro. Soou a voz de Bob Dylan:
"How many roads must a man walk down, before you can call him a man?"
- Blowin' in the wind - disse eu.
Em seguida dissemos ambos ao mesmo tempo: - Minha canção preferida.
Angela permaneceu fitando-me durante algum tempo. Tinha grandes olhos castanhos.
- Realmente - repeti -, é a minha canção preferida. "...Yes, and how many times must a cannon-ball fly, before they are all of them banned?", continuou cantando Bob Dylan.
- Também é a minha canção preferida - confirmou Angela.
Em seguida voltou a olhar atentamente para a frente. Subíamos, agora, a Croisette. O mar reluzia como chumbo líquido. As palmeiras mostravam suas talas pendentes. Surgem agora, à nossa frente, os palacetes brancos e os colossais hotéis. Por todos os lados viam-se flores com tonalidades reais e irreais no colorido das suas pétalas. Passavam por nós os mais caros automóveis do mundo. Estávamos circundados pelo luxo, pela abundância e pela imponência de um poderoso reino de riquezas.
"...The answer, my friend, is blowin' in the wind...", - cantava Bob Dylan.
Angela desligou o rádio. Apesar do grande número de carros que existia por ali, conseguiu uma vaga para estacionar. Com muita habilidade e destreza deu marcha à ré, colocando o carro bem próximo do meio-fio. O vento produzido com o movimento do carro, penetrando pelo quebra-vento, amenizava o calor. Mas ao sair senti-o intensamente, parecendo-me quase insuportável.
- Temos que andar um pedacinho a pé - disse Angela.
Seguimos pela Croisette em direção ao oeste, passando em frente de diversas lojas luxuosíssimas, as quais, ao meio-dia, fechavam as portas. Numa dessas edificações não muito altas nas quais se instalavam as lojas, no fim da quadra, estava localizada uma filial da joalheria parisiense Van Cleef & Arpeis. Essa loja, visto encontrar-se numa esquina, possuía também uma entrada lateral. Vi nas vitrinas caríssimas jóias crivadas de brilhantes e de turquesas, colares, pulseiras, etc. Parei um pouquinho para observá-las. Angela encontrava-se perto de mim. Repentinamente percebi que ela fixava seus olhos numa determinada peça exposta num canto da vitrina. Tratava-se de uns brincos bem compridos, de extraordinária beleza, contendo nos pontos em que se prendiam à orelha uma espécie de nó ou laço do qual pendiam brilhantes, dispostos um ao lado do outro. Mal acabara de observar esses brincos, senti a mão de Angela que tocava no meu cotovelo, convidando-me para prosseguirmos. Meu pé esquerdo começou a doer de novo.
Nesse instante, como que por associação de idéias, comecei a pensar que Hilde Hellmann, se quisesse, poderia adquirir não só as jóias que Van Cleef & Arpeis mantinham expostas nas vitrinas, mas também as que se encontravam nos seus cofres-fortes, bastando, para tanto, telefonar e assinar um cheque. A louca Hilde na sua casa de fantasmas! Ou será que ela se faz de louca? Um Rolls-Royce passou por nós devagarinho. Ao lado do chofer, um chinês de uniforme, estava sentado um criado, também chinês, de libré. Um cidadão que parecia estar exausto e com a vista cansada ocupava o banco traseiro. Trajava só calça e camisa. Segundos antes ele se encontrava numa cabina telefonando.
Capítulo 21
O Felix era um desses edifícios brancos não muito altos. As lojas localizavam-se numa parte bem recuada da rua. No espaço livre da frente havia palmeiras e muitas flores. Debaixo da marquise via-se um bom número de mesinhas. O restaurante era provido de ar condicionado e por isso estava muito cheio. No bar, nos fundos do salão, muitas pessoas estavam esperando que se desocupassem as mesas. O proprietário do restaurante, tendo notado a presença de Angela, aproximou-se dela radiante e cumprimentou-a efusivamente. Ao que me pareceu, eles já se conheciam muito bem. Angela nos apresentou. A nossa mesa, que já havia sido reservada com a devida antecedência, situava-se na extremidade dianteira do salão. Apenas o vidro nos separava da Croisette. Sentamo-nos um ao lado do outro, conforme é de praxe em todas as cidades da França, e principiamos a tomar, como aperitivo, dois Ricards. Depois pedi um coquetel acompanhado de caranguejos fritos e um Châteaubriand. No salão o ar estava agradavelmente fresco. Na parede à nossa frente, que se achava bem iluminada, viam-se figuras planas, artisticamente desenhadas sobre a alvenaria recoberta de verniz. O revestimento das paredes era todo de madeira preta. O garçom trouxe-nos manteiga e torradas de pão branco fresco cortadas em fatias, que saboreávamos enquanto esperávamos o coquetel.
Olhei para fora a fim de observar o sol abrasador dessa hora. O garçom abriu uma garrafa de Don Pérignon que, a meu pedido, trouxera dentro de um pequeno balde prateado cheio de gelo e colocara ao lado da nossa mesa. Despejou um pouco de champanha no meu copo. Provei-o. Já estava gelado e tinha um sabor excelente. Mandei servir-nos. Ele encheu nossos copos e depois colocou a garrafa novamente dentro do balde, retirando-se em seguida. Ficamos ambos bebendo champanha.
Lá do outro lado, sobre o passeio na beira da praia, um pintor fazia a exposição dos seus quadros, pendurados entre duas palmeiras. Eram pinturas bem alegres e coloridas que reproduziam vistas da Croisette, do antigo porto, bem como de outros lugares pitorescos da região. O pintor, um jovem, ficava sentado no chão.
As pessoas passavam por ele quase sem ligar a mínima importância aos quadros expostos.
- Ele fica ali quase todos os dias - disse-me Angela. - Tem muito talento, mas nunca teve sorte.
- A senhora, pelo contrário, sempre teve talento e sorte - comentei.
- Oh, sim! - exclamou, começando logo a tamborilar com os dedos sobre a mesa. - Certamente sempre tive sorte. E o senhor, Monsieur Lucas?
Respondi-lhe com palavras que, fazia muitos anos, não pronunciava:
- Eu sinto uma grande felicidade: conheci a senhora, madame! A senhora está aqui sentada ao meu lado. Posso contemplar a sua face. Por minha causa a senhora veio ao centro da cidade.
- Absurdo! De qualquer forma, eu teria que fazer as minhas compras hoje.
- Oh, sim, falo a pura verdade!
Ela fitou-me e sorriu com aquela sua maneira especial de sorrir. Nos seus olhos brilharam dois minúsculos pontos dourados. As ruguinhas que se formavam nas extremidades das suas pálpebras produziam um belíssimo contraste com a cor da sua pele amorenada pelo sol. Mas aquela tristeza! Não posso estar enganado! Seus olhos tão alegres revelavam uma inconfundível sombra de melancolia...
- O senhor não anda assustado com tantas coisas que estão surgindo, monsieur? - perguntou-me.
- Como assim?
- Bem sei que o senhor me compreendeu. Assustado com as pessoas e com os acontecimentos. Não sente medo?
- Não - respondi-lhe, mentindo.
- Eu, pelo contrário, sinto-me dominada pelo medo. Constantemente invade-me um forte temor... Temor de não poder mais pintar ou de que os fregueses deixem de me procurar, o que me impediria de ganhar dinheiro...
- E da solidão, sem dúvida.
- Não. Não tenho medo algum da solidão - retrucou-me com um sorriso que, naquele momento, me pareceu forçado. - Eu sempre gostei de ficar sozinha.
- Então a senhora tem medo de ser forçada a fugir novamente.
- O senhor ainda não esqueceu isso? - interrogou-me, já sorrindo com mais naturalidade.
- Não. Por quê?
- Olhe ali! - disse-me ela interrompendo a nossa conversa e falando mais depressa. - Está entrando um velho amigo meu.
Apontou-me com o queixo a pessoa que vinha entrando no salão. Era um homem corretamente vestido e trazia uma pasta debaixo do braço. Dava a nítida impressão de ser um indivíduo que vivia absorto nos seus pensamentos, alheio ao mundo que o cercava.
- É Fernando. Não sei o sobrenome dele. Fernando estudava arquitetura. Era muito talentoso. Na época em que freqüentava a universidade, sua mãe, infelizmente, ficou com a metade do corpo imobilizada por uma paralisia. Doença incurável. Já faz seguramente vinte ou vinte e cinco anos que isso aconteceu, portanto muito tempo antes de eu vir a Cannes. Fernando teve que abandonar os estudos. Ele amava a mãe. Teve que começar a trabalhar desde cedo para ganhar dinheiro a fim de colocá-la num sanatório relativamente confortável. Desde então vende bilhetes.
- Que espécie de bilhetes?
- Aqui na França existem todos os tipos possíveis e imagináveis de jogos. As grandes e pequenas corridas de cavalos, jogos de loteria, os prêmios nacionais...
O garçom serviu-nos o coquetel acompanhado de caranguejos bem preparados, que tinham um sabor excelente.
- Estão bons?
- Ótimos.
- Alegro-me com isso. Causa-me uma grande satisfação ver que o senhor gosta da comida e que se sente bem aqui.
Respondi-lhe como que maquinalmente:
- Nunca me senti tão bem como agora em sua companhia.
- Monsieur Lucas! - exclamou Angela, parecendo um tanto constrangida.
- É a expressão da pura verdade o que estou lhe dizendo!
- Não acredito! - Encarou-me séria. - Algumas vezes as mulheres não lhe disseram que o senhor é muito charmant?
- Sim. Mas a senhora bem sabe por que elas dizem isso.
- Não, não sei. Por quê?
- Dizem isso simplesmente por delicadeza ou porque desejam algo em retribuição. Como trato todas elas com amabilidade, algumas falam do meu charme apenas para corresponder-me com um pouco de delicadeza. Todavia, o que elas dizem não importa e não tem nenhum significado.
- Ah, então é assim?
- E assim mesmo.
- Mas comigo não se dá o mesmo. Nada quero do senhor, creia-me. Desejo apenas a sua amizade, E posso lhe assegurar que minhas palavras têm significado porque estão repassadas de sinceridade. Quero que o senhor acredite nelas, levando-as realmente a sério, porque são a expressão da verdade: o senhor é chartnant. Muito charmant!
Ela levantou a sua taça de champanha e eu a acompanhei.
- Le chaim! - disse Angela à guisa de saudação.
- Que significa isso?
- Para uma vida feliz! Para o bem! É uma saudação hebraica. Tenho muitos amigos judeus. Compreendeu agora?
- Le chaim! - exclamei também.
Nesse meio tempo já estava no centro do salão o homem esbelto e pálido com a pasta debaixo do braço. Ao notar a presença de Angela, que o cumprimentou com um aceno, dissipou-se da sua face aquela expressão de alheamento às coisas circunstantes e ele mostrou os dentes num sorriso amável. Dirigiu-se imediatamente à nossa mesa. Notei que o suor escorria pela sua testa.
Compramos dele bilhetes de uma grande corrida a ser realizada no hipódromo de Paris no dia seguinte e algumas frações de bilhetes de loteria. Angela fez questão de pagar os seus bilhetes.
- Alguma vez já saíram premiados bilhetes que o senhor vendeu? - perguntei a Fernando.
- Sim. Três vezes, monsieur. Na primeira vez, trezentos milhões de francos: na segunda, quatrocentos e cinqüenta milhões, e na terceira, cem milhões.
- O quê?!
- Ele está se referindo a francos antigos - explicou-me Angela. - Não há jeito de essa gente se habituar com o novo padrão monetário. Mesmo depois de tantos anos, quase todos continuam fazendo os seus cálculos e se expressando na base do franco antigo.
- Ah, agora entendi! Há quanto tempo o senhor se dedica à venda de bilhetes?
- Desde que comecei a trabalhar.
- E o senhor trabalha há quanto tempo?
- Há vinte e três anos. Mas, apesar de fazer tanto tempo, madame nunca deixa de comprar um bilhete cada vez que me encontra.
Eu sou muito gananciosa - disse Angela sorrindo e, nesse momento, surgiram de novo aqueles pontinhos dourados que pareciam bailar nos seus olhos. - Eu sou louca por dinheiro. Um dia hei de ganhar milhões de francos novos e então vamos tomar uma bebedeira, não é, Fernando?
- Sim, madame.
- É um absurdo! - exclamou Angela, depois de um certo tempo.
- O quê?
- É um absurdo tomarmos um pileque por causa disso.
- Evidentemente, madame. Um grande absurdo - concordou Fernando.
- Mas com esse calor o senhor deve estar morrendo de sede, monsieur. Que deseja beber? - perguntei.
- Mas, monsieur...
- Pode aceitar sem nenhum constrangimento - diz-lhe Angela. - Aqui somos todos amigos. Quem sabe alguma bebida ali no bar? Aceita?
- Bem... Fico-lhes muito agradecido, meus senhores. Fernando dirigiu-se imediatamente ao bar nos fundos do salão, onde um grande número de pessoas - entre elas americanos, ingleses e alemães - ainda estavam esperando que vagasse alguma mesa.
Fernando olhou para nós segurando uma grande taça de champanha.
Levantou a taça saudando-nos com uma voz bem alta, que ecoou por todo o salão:
- À felicidade dos senhores!
Ninguém levantou os olhos para observar. Angela correspondeu-lhe com o copo levantado: - Le chaim!
- Le chaim! - bradou Fernando.
- É também um deles? - perguntei.
- Sim, é um deles. Sua família outrora era muito rica. Depois que o pai morreu, Fernando e sua mãe ficaram muito pobres, quase na miséria. O senhor já foi pobre alguma vez, Monsieur Lucas?
- Sim. Já fui extremamente pobre.
O garçom retira o prato de caranguejos e começa a servir o Châteaubriand.
- Eu também já fui muito pobre - prosseguiu Angela logo que começamos a comer. - Isso foi no princípio, naturalmente, quando eu ainda estudava pintura em Paris.
- E seus pais...
- Já estavam mortos - respondeu-me rapidamente, cortando minha frase. - Como lhe dizia, nessa época eu era muito pobre. Mas não demorou muito e comecei a receber muitos pedidos e encomendas.
Os meus trabalhos artísticos adquiriram boa reputação. Desde então passei a ganhar muito dinheiro. A carne está do seu gosto? Não está bem-passada. O senhor gosta assim mesmo?
- Está ótima.
- Mas cometi um grande erro: confiei num indivíduo que pretendeu fazer especulações na Bolsa com meu dinheiro.
- A senhora depositava confiança nesse homem?
- Eu o amava. O senhor bem compreende como a gente se sugestiona facilmente em tais circunstâncias. Ele pegou o dinheiro e fugiu. Fiquei praticamente sem um centavo. Hoje em dia a coisa está novamente correndo bem para mim. Mas também me tornei muito cautelosa e prudente. Como eu já lhe disse, aplico todo o dinheiro que me sobra na compra de jóias. Sou muito econômica e desconfiada. Nunca mais entregarei meu dinheiro a um homem, seja ele quem for.
Eu sentia um imenso prazer em observá-la a comer com tanto apetite e com toda a naturalidade. Prossegui:
- Se lhe aparecer um outro homem de quem se enamore a senhora vai novamente confiar-lhe seu dinheiro.
- Do amor pouco posso esperar... Sempre tive pouca sorte. Afinal, que é o amor? Simplesmente uma expressão sem conteúdo. O que se vê hoje em dia são maridos abandonando as esposas e esposas abandonando os maridos. É evidente que de tempos em tempos um precisa do outro para a satisfação dos seus instintos, caso sejam normais. Mas o senhor considera isso amor?
- Não.
- Pois então estamos de acordo! Le chaim!
- Le chaim! - respondi.
Capítulo 22
Na nossa mesa o garçom preparava, agora, os crêpes-suzette. Quando acendeu o álcool, levantou-se uma forte labareda. Angela começou a rir como uma criança.
- As chamas sempre me causam urna estranha sensação - explicou.
A senhora gosta de ver chamas?
Muito! - respondeu com toda a naturalidade. - Faz muitos anos que estou tentando pintá-las, mas nunca fui bem sucedida.
Nesse momento entrou no salão uma moça com os pés descalços e a roupa toda esfarrapada. Segurava um cestinho de fibras trançadas contendo cinco ou seis bichinhos de pano. A pobre moça era pálida e magra, tendo os olhos lacrimosos. Ia de mesa em mesa, mas era sempre repelida. Finalmente aproximou-se da nossa mesa.
- Você ainda não vendeu nada hoje? - perguntou-lhe Angela.
Ela sacudiu a cabeça negativamente, demonstrando muita preocupação. Seus pés estavam imundos e cobertos de poeira.
- Qual é o preço de cada um desses bichinhos?
- Dez francos, madame.
- Quero ficar com um burrinho - disse Angela, e deu à moça uma nota de dez francos.
- E eu quero ficar com um ursinho - disse.
A moça recebeu o dinheiro e, sem mesmo agradecer, foi se retirando com o cestinho. A porta de saída encontrou-se com Fernando, o vendedor de bilhetes, que, por causa do calor, havia parado um pouco ali e se preparava para ir embora. Notei que ele conversou com a mocinha. Saíram ambos, um ao lado do outro, em direção ao Carlton.
Nesse meio tempo Angela apalpou e examinou os dois animaizinhos de pano.
- O burrinho está todo arrebentado - disse ela. - A serragem do enchimento já está saindo e uma orelha está quase caindo. Além disso, está muito sujo.
- E o ursinho também está sujo. Sujo demais. A pele do bichinho está raspada. Vamos deixá-los aqui.
- Oh, não! - retrucou Angela. - Oh, não! Vou lhe dar de presente o meu burrinho e o senhor me dará o seu ursinho. Desse modo somos obrigados a guardar os dois bichos.
- Guardar para quê?
- Bem... Simplesmente por superstição... Pendurarei o seu ursinho no meu carro, debaixo do espelho retrovisor. O senhor também vai conservar meu burrinho?
- Evidentemente! Como lembrança deste dia.
- Não! O senhor o conservará como lembrança daquela época em que éramos muito pobres, mas bem jovens e muito felizes.
Capítulo 23
Já tínhamos comido o queijo e tomado um bom moca. Encontrávamo-nos precisamente ativando a digestão com um Armagnac quando o Capitão-Tenente Viale entrou, trajando calça e camisa de linho, os cabelos pretos e a pele queimada pelo sol. Procurou atentamente alguma mesa desocupada, mas não achou nenhuma. Quando nos viu, apressou-se em vir à nossa mesa.
- Angela!
Ele beijou a mão dela e cumprimentou-me fazendo uma inclinação.
- Posso sentar-me?
- Mas é claro! - respondi-lhe e chamei logo o garçom, ordenando-lhe:
- Traga mais um copo e um vinho fino para monsieur.
- Já se conhecem? - perguntei a Viale.
- Há muitos anos! - Ele fitou-a com uma expressão amorosa no semblante. - Vai tudo bem com você, Angela?
- Às mil maravilhas! E com você?
- Eu já lhe disse que estou fazendo pesquisas e averiguações sobre a explosão do iate. Até há poucos momentos estive trabalhando no laboratório. Ainda não terminei meu trabalho. Contudo, no mais tardar até amanhã de manhã, estarei em condições de dizer que tipo de dinamite foi utilizado e qual a procedência do explosivo. - O garçom se aproximou trazendo o Armagnac para Viale. - Estou executando meu trabalho pela ordem inversa: começo pelo fim. Oh, este é o Trois-Clefs-Armagnac, minha marca predileta! Bem... quando tivermos resolvido este caso, vocês terão que permitir que os convide para um almoço neste restaurante. Viremos somente nós três, está bem? O senhor me é muito simpático, Monsieur Lucas, e Angela é minha amiga há muito tempo. Uma ótima amiga. Vocês aceitam?
- Com muito prazer! - respondeu-lhe Angela, colocando a mão em cima da de Viale, atitude essa que provocou em mim uma súbita manifestação de ciúme. - Infelizmente nós agora vamos nos retirar. Temos tanta coisa a fazer!
- Amanhã cedo telefonarei para o senhor no Majestic - disse Viale dirigindo-se a mim. - Deseje-me boa sorte!
- É claro que lhe desejo boa sorte!
Laurent beijou Angela na face quando se despediu.
Ficaram conversando enquanto eu pagava as despesas. Olhei em volta. Angela continuava falando com ele. Ambos sorriam. Então Angela aproximou-se de mim e pendurou-se no meu braço. Saímos do Félix e dirigimo-nos ao seu carro.
- Que tem o senhor? - perguntou-me ela.
- Nada.
- Mas percebo que o senhor tem algo.
- Não. Realmente nada, Madame Delpierre.
- Passe a chamar-me simplesmente de Angela. Eu também daqui por diante o chamarei simplesmente de Robert. Então, diga-me agora, o que é que você tem?
- É um sujeito afável esse Viale - disse, como que procurando desviar o assunto.
- Oh, sim, muito afável. Um dos mais afáveis que conheço.
- Sim.
- Você quer saber se já dormi com ele?
- Realmente... isto é... Não, madame...
- Angela - retificou ela.
- Não, Angela, realmente não quero saber... Você já dormiu com ele?
- Algumas vezes. Já faz anos - respondeu-me Angela, com a maior naturalidade deste mundo, no momento em que passávamos em frente da filial de Van Cleef, que ainda não tinha aberto suas portas. - Mas nós... Meu Deus!... Nunca nos adaptamos um ao outro nem combinamos perfeitamente. Por isso resolvemos separar-nos ficando sempre amigos. Realmente temos sido e permaneceremos amigos. Está mais calmo agora?
- Eu não tenho o direito de, com relação a esse assunto, acalmar-me ou irritar-me!
- Está certo. Mas mesmo assim queria saber o que havia com você.
- Perdoe-me. Foi uma atitude inconveniente da minha parte.
Chegamos ao local em que ela estacionara o carro, cujo interior parecia um inferno de tão quente. Abri a janela do meu lado. Angela tirou do porta-luvas um pedacinho de barbante e começou a amarrar o desprezado ursinho sob o espelho retrovisor. Imponentes carros de luxo passavam por nós ininterruptamente.
Fiquei observando Angela enquanto ela amarrava o ursinho e disse-lhe:
- Monsieur Lacrosse contou-me uma série de casos...
- Que casos?
- Acerca dos ricos desta cidade com os quais de e eu teremos de lidar. Ele me disse, por exemplo, que nos Estados Unidos, dois e meio por cento da população cartrolam dois terços de todo o potencial econômico da ação. Tudo, tudo, até mesmo a inflação irrefreável, contribui para que eles se tornem mais ricos enquanto as outras pessoas vão ficando cada vez mais pobres.
- Foi exatamente isso o que ele me disse. Bem, agora o ursinho está preso.
- Esse assunto não lhe interessa...
- Interessa-me demais, Monsieur Lucas. Sou socialista e suponho que o senhor também seja.
- Naturalmente! Na época atual, que outra coisa rode ser uma pessoa que não seja idiota?
- Mas ambos somos uns socialistas um tanto esquisofrênicos, meu caro. Eu, por exemplo, vivo do ganho que esses ricaços me proporcionam. O senhor está num hotel de ricaços. Acabamos de almoçar num ambiente em que os pobres não têm permissão nem para sentar-se à mesa. um ambiente que ambos, nas condições dos primeiros anos de nossa vida, jamais poderíamos freqüentar. Acho que as imensas riquezas que você verificou existirem aqui deixaram-no demasiadamente impressionado.
- Absolutamente não, sua socialista de salão - retruquei-lhe.
- Sim, sim. Essas riquezas deixaram você imprssionado, seu socialista de salão! Será que podemos harmonizar coerentemente nossos pontos de vista levando uma vida cheia de prazer e pretendendo permanecer socialistas?
- Podemos.
- E, então, não é uma atitude esquizofrênica viver desse modo e contemplar essa multidão de miseráveis?
- Claro que é - respondi, começando a sentir aquela dor no lado esquerdo do peito. Com muita rapidez e furtivamente, atirei para dentro da boca dois comprimidos de Nitrosteron, que comecei a mastigar.
- Que está fazendo? - perguntou-me Angela.
- É um remédio que tenho de tomar depois das refeições.
Já estávamos subindo a Croisette. Não soprava nenhuma brisa.
Capítulo 24
O carro rodou até o Majestic. Em frente ao hotel encontrava-se um indivíduo corpulento trajando um uniforme azul-escuro. Eu e Angela saímos do carro. Esse homem, que era um dos chefes de garagem, chamava-se Serge. Ele apertou a mão de Angela. Depreendi da conversa deles que Angela sempre deixava o carro na garagem localizada no subsolo quando tinha que permanecer na cidade por muito tempo. Ambos começaram a conversar sobre a última corrida de cavalos realizada em Cagnes-sur-Mer. Dirigi-me imediatamente ao saguão a fim de indagar se não havia chegado correspondência para mim. Brandenburg até esse momento não havia feito nenhuma comunicação.
Saí de novo. Entreguei ao porteiro o imundo burrinho de pano para que ele o colocasse no escaninho da minha correspondência.
Serge levou o carro para o subsolo.
- Tudo pronto agora, Robert! - disse Angela. - Vamos, portanto, às nossas compras!
Saímos caminhando em direção ao pomposo edifício do Festival de Cinema, que estava sendo remodelado internamente em virtude da aproximação da época do festival. Dobramos em frente desse edifício, penetrando na rua onde se encontravam as principais lojas: a Rue d'Antibes.
Nas três horas que se seguiram, Angela dirigiu meus passos e minhas ações. Levou-me a uma loja especializada em roupas e artigos para homens, onde escolheu tudo de que eu precisava: calças bem leves, nas cores branca, azul-clara e azul-escura; camisas leves, tipo esporte, que combinavam com as calças; lenços de pescoço, que a gente podia enfiar na camisa aberta. Naturalmente, eu tinha que provar todas as roupas. Na cabine da loja estava muito quente, embora um ventilador estivesse ligado.
Depois que vestia a roupa eu sempre saía da cabine e Angela me examinava atentamente e dava sua opinião. Ela nunca estava contente: ora o padrão do tecido não servia, ora a cor não lhe agradava. Assim levamos um tempão. Mas para mim pouco importava essa demora. Invadiu-me uma sensação de prazer e de felicidade, que aumentava gradativamente.
Angela permanecia sentada ao lado da cabine, fumando. E eu, cada vez que vestia uma roupa, tinha que sair e colocar-me à sua frente tal qual um manequim.
As calças que Angela escolheu eram tão apertadas que eu tinha a impressão de não caber nelas. Os bolsos eram muito pequenos.
A calça branca me serviu bem. As outras tiveram que ser um pouco ajustadas. Com as camisas não houve problemas: pareciam ter sido confeccionadas sob medida. Por fim, Angela escolheu também um conjunto de calça e camisa azul-escuro, pespontado de branco. Depois de feita a prova, vesti esse conjunto e saí da loja. Em torno do meu pescoço Angela enrolou um lenço de seda cor de mel, todo salpicado de manchinhas azuis. Observando-me ao espelho da cabine tive a impressão de que a imagem refletida era a de um outro homem. Pareceu-me que me tornara mais jovem, mais esbelto e mais cheio de ânimo. Bruscamente deixei de sentir aquele calor insuportável. Agora, só sentia calor nos pés. Paguei a conta e a vendedora me declarou que as outras roupas e artigos seriam enviados ao Majestic.
Angela puxou-me pelo braço e seguimos em frente. Numa segunda loja ela escolheu um traje bege, quase branco, com as correspondentes gravatas de Cardin. Nessa loja vendiam, também, smokings. O vendedor era um jovem homossexual muito amável e delicado, com o qual Angela se entendia magnificamente. Trazia, pacientemente, modelos e mais modelos de smokings para mostrar, até que por fim Angela encontrou um que lhe agradou. Era um finíssimo smoking confeccionado com um tecido leve. Os frisos da calça eram permanentes. Comprei a calça preta e a casaca branca, além de uma série de gravatas-borboletas, bem largas, precisamente do tipo que, então, estava na moda. Não deixei de comprar, também, uma camisa que combinava com esse traje de gala. (É claro que foi Angela que a escolheu.) O smoking e a camisa deveriam ser entregues no meu hotel.
- Agora vamos diretamente ao Loup - disse Angela logo que saímos da loja.
Os carros na Rue d'Antibes, uma via de mão única, rodavam em marcha muito reduzida.
- Estamos nos dirigindo, agora, à melhor loja de calçados que existe em Cannes - disse-me Angela. Ela caminhava ligeiro e percebeu que eu tinha dificuldade em acompanhá-la. Demonstrava imensa satisfação em poder me vestir direito e por isso não sossegaria enquanto não encontrasse tudo aquilo que, consoante a sua opinião, deveria me assentar perfeitamente.
Usando a calça e a camisa compradas pouco antes, eu me sentia completamente outro: o calor já não me parecia tão insuportável.
No Loup, Angela escolheu para mim uns sapatos bem macios e confortáveis - brancos, marrons e pretos. Compramos, também, um par de sapatos de verniz apropriado para o traje de gala. Em cada compra eu tinha que calçar os sapatos e caminhar um pouco para experimentá-los, a fim de verificar se me assentavam bem e se eram cômodos. Embora sempre tivesse verdadeira ojeriza em fazer isso, ali eu sentia imenso prazer em repetir continuamente a mesma cena. Nessa loja Angela também ficou sentada fumando. Examinava-me atentamente e dava sua opinião. Ela fumava em demasia, como eu. Calcei logo um par de sapatos - os brancos -, que ficaram nos meus pés. Os outros sapatos comprados, bem como os que eu calçava ao entrar na loja e minhas meias, seriam enviados ao Majestic.
Quando saímos do Loup, parei um pouco, encostando-me à parede do edifício.
- Que é que há? - perguntou Angela, assustada. - Você não está se sentindo bem?
- Não há nada - respondi. - Estou maravilhosamente bem. Sinto-me tão feliz como nunca me senti na minha vida até este momento. Tenho a impressão de ter sido transformado... Transformado exatamente como num conto de fadas. Tenho a impressão de ter ficado mais jovem, Angela! Muito mais jovem! Mais leve, mais cheio de vivacidade e com mais entusiasmo para viver. ..
- Sim, Robert! Oh, como você ficou bonito! Era exatamente isso que eu queria ver!
- O quê?!
- Você acabou de rir! - respondeu-me Angela, passando a ficar subitamente séria. - Pela primeira vez você riu de verdade na minha presença.
- Por sua causa. Exclusivamente por sua causa. Foi você quem me proporcionou essa alegria.
- Bobagem! - retrucou, demonstrando estar apressada. - Vamos! Agora é a vez das minhas compras.
Segui-a. Em nenhum lugar do mundo, nem em Hong Kong, nem em Cingapura, ou em Sydney, senti tanta felicidade como aqui em Cannes, nesta Rue d'Antibes, ao lado de Angela, no meio de uma verdadeira multidão. Só me dei conta de estar caminhando mais depressa quando Angela, já um tanto ofegante, me chamou a atenção:
- Mais devagar! Ande um pouco mais devagar, Robert! Estou quase perdendo o fôlego.
Então ambos paramos e ficamos rindo alto durante algum tempo.
Inopinadamente comecei a refletir: "É uma grande felicidade que estou vivendo! Acho até que nunca soube o que era felicidade ou, então, havia esquecido completamente os momentos felizes da minha vida. Apenas durante um curto período da minha infância fui feliz com meu cachorrinho. Depois daquela fase áurea da minha existência, só agora, já por volta dos cinqüenta, venho a encontrar de novo a felicidade! E eu a encontrei simplesmente porque essa mulher, que me era estranha, interessou-se por mim, demonstrando compreensão humana e amizade".
O sol da tarde já incidia obliquamente sobre a Rue d'Antibes. Homens caminhavam apressadamente. Os carros rodavam com lentidão, como que rastejando. Avançavam um pouco e paravam devido ao congestionamento do tráfego. E eu não parava de pensar nas coisas estranhas que me haviam acontecido nesse dia!
Capítulo 25
Angela se movimentou para fazer a compra de tintas, pincéis e outros materiais para seu estúdio. Eu a acompanhava. Entramos num supermercado onde ela fez compras de vulto para serem entregues na sua residência, na manhã do dia seguinte. Durante toda a minha vida sempre me causava grande irritação ter que sair para fazer compras, especialmente de roupas. E ficava muito mais irritado ainda se estivesse acompanhado de uma mulher. Mas agora estava achando isso sumamente agradável e maravilhoso. Encantava-me observar como Angela, sempre decidida e enérgica, sem deixar de ser afável, conseguia exatamente aquilo que queria, não permitindo que lhe impingissem qualquer coisa. Ela sabia perfeitamente o que lhe convinha. Escolhia tudo com discernimento e bom gosto, fosse lá uma bisnaga de tinta para pintura, um artigo de uso pessoal ou até mesmo os arenques à Bismarck que, para meu espanto, ela saboreava com grande prazer.
Nesse sábado as casas comerciais ficavam abertas até as oito horas da noite. Era grande o número de pessoas que estavam fazendo compras. Todavia, pouco me importava o grande movimento que havia e não me preocupava com ninguém a não ser com Angela. Tudo o que Angela comprou, com exceção dos comestíveis, devia ser entregue no Majestic diretamente a Serge. Esse tal Serge era sempre mencionado como um tipo, por assim dizer, quase legendário: todo mundo o conhecia nos meios comerciais da Rue d'Antibes.
Depois de feitas as compras no supermercado, Angela teve ainda que ir a uma casa de modas femininas. Eu não devia acompanhá-la, pois não podia ficar com ela enquanto experimentasse os vestidos. Por isso Angela deixou-me na esquina da pequena Rue Chabaud. Disse-lhe que ficaria por ali olhando as vitrinas das lojas. Foi exatamente o que fiz. Fui andando pela Rue Chabaud até chegar à Place Gambetta. Nessa praça havia uma casa especializada em flores, que se denominava Floreal. Entrei e pedi que enviassem a Madame Angela Delpierre trinta rosas vermelhas.
- Ela reside... - ia dar seu endereço, mas o homem que me atendia interrompeu-me, dizendo:
- Conhecemos Madame Delpierre. Todas as flores que ela possui foram adquiridas aqui. Estamos praticamente localizados nas proximidades da Rue d'Antibes e mesmo assim vendemos mais barato. Mas, por favor, monsieur, que espécie de rosas deve ser enviada?
- Baccara.
- De forma alguma quero passar por intrometido, monsieur (chamo-me Pierre, para o senhor simplesmente Pierre), mas sei perfeitamente que Madame Delpierre aprecia mais as rosas vermelhas da espécie Sonja do que as da espécie Baccara. As rosas Sonja são mais encorpadas e se conservam por mais tempo. Além disso, a tonalidade vermelha é mais viva nas suas pétalas. Veja o senhor mesmo! - disse-me, apontando para um buquê que se encontrava num vaso.
- Está bem. Então envie Sonja mesmo.
- Com muito prazer, monsieur. Deve acompanhar um cartãozinho?
- Sim... Mas espere um momento... Haveria a possibilidade de todos os sábados, a esta mesma hora - isto é, na parte da tarde -, enviar trinta rosas Sonja a Madame Delpierre? Quero deixar pago antecipadamente o montante relativo às quatro primeiras semanas.
- Será para nós um motivo de grande satisfação, monsieur.
- Então dê-me, agora, um cartãozinho, por favor. Entregou-me um lindo cartão apropriado e eu escrevi:
"Obrigado por tudo". Enfiei o cartão num envelope e prendi-o ao buquê. Recomendei a Pierre:
- Se ninguém estiver em casa, essas rosas podem ser deixadas diante da porta.
- Pode confiar nos nossos serviços, monsieur.
Em seguida comecei a fazer o percurso inverso, partindo da pequena Place Gambetta em direção à Rue d'Antibes. Como eram confortáveis aqueles sapatos macios! Aliás, todo o meu corpo estava bem e eu tinha até a sensação de estar respirando melhor usando aquela camisa leve. Parei diante de uma vitrina e comecei a observar minha figura refletida num espelho. Na verdade, eu mal podia reconhecer-me de tão diferente que estava. Talvez tivesse sido assim uns vinte ou vinte e cinco anos atrás, precisamente na época em que vivia cheio de esperança, tinha coragem e autoconfiança, estando sempre disposto a tomar atitudes arrojadas...
- Que é que você está observando com tanta atenção? Era a voz de Angela. Pelo espelho da vitrina pude
notar que ela estava ao meu lado, bem pertinho de mim, sorrindo. Seus cabelos louros brilhavam. Respondi-lhe, expressando-me com toda a sinceridade:
- Estava observando a modificação que sofri. Você me transformou numa outra pessoa. Tenho até a impressão de que minha idade não passa dos trinta. Sinto-me cheio. .. - Dessa vez eu próprio interrompi a frase.
- Sim, cheio de tantas coisas importantíssimas para um homem - concluiu Angela e se pendurou no meu braço, puxando-me para sairmos da frente da vitrina. Depois ela prosseguiu:
- Você ainda continua possuindo todas essas coisas, Robert.
- Oh, não!
- Afirmo-lhe que sim! E, se viver durante algum tempo aqui, você mesmo adquirirá consciência de que elas realmente continuam existindo em você...
- Para onde vamos agora?
- Bem, já fizemos tudo o que tínhamos que fazer, não é? Os vestidos que comprei também serão entregues aos cuidados de Serge. Dentro de três minutos estaremos lá. Não! Espere... Falta ainda comprar cigarros!
Ela se dirigiu imediatamente a uma tabacaria.
- Você anda fumando muito - disse-lhe eu.
- E você também.
Ao sairmos da tabacaria, eu levava os pacotes de cigarros que Angela havia comprado, e segurava também uma bolsinha de plástico contendo meu dinheiro, minha chave, o passaporte e os demais pertences que eu havia tirado, na loja, dos bolsos da roupa que trajava. Os bolsos da roupa nova eram muito pequenos para conter tanta coisa.
Finalmente chegamos ao Majestic. Seriam, quando muito, cinco horas da tarde. Na piscina do amplo terraço do hotel, muitas pessoas ocupavam as mesinhas brancas para tomar seus aperitivos, sentadas em cadeiras também brancas com almofadas vermelhas.
- Meus pés estão doendo - disse Angela. - Vamos nos sentar um pouco também. Veja, ali, no canto direito, quase ao lado do portão de entrada, há uma mesa vazia.
Sentamo-nos. Apareceu um garçom. Angela quis beber champanha. Então pedi novamente uma garrafa de Don Pérignon. O garçom, sem muita demora, trouxe a garrafa dentro de um pequeno balde com gelo e serviu-nos, também, um prato grande com azeitonas e outro com nozes.
- Espere um momentinho! - disse-me Angela, levantando-se bruscamente. - Volto logo.
Consegui erguer-me da cadeira ainda a tempo de vê-la sair apressada pela outra extremidade do terraço, que confinava com aquelas casas não muito altas onde se instalavam as lojas de luxo. Ela desapareceu da minha vista quando entrou numa dessas lojas localizadas no grande Barclay.
Voltou logo, ofegante.
- Isto é para você! - disse-me ela sentando-se.
Entregou-me um pacote bem-feito, embrulhado caprichosamente. Rasguei o papel e eis que surge à minha frente uma espécie de pasta de viagem, confeccionada em couro preto bem macio, com um zíper. No seu interior havia diversas bolsinhas e divisões.
- Agora você pode colocar aí todas as suas coisas: seu passaporte, o dinheiro, as chaves - disse-me Angela demonstrando zelo para comigo. - Quase todos os homens carregam esse tipo de pasta quando saem só de calça e camisa. Espere um instantinho que eu coloco tudo agora mesmo dentro dela!
Enquanto ela colocava todos os meus pertences dentro da pasta, passei a observar atentamente seu semblante, mas ela não percebeu nada.
Que bela mulher! É a mulher mais bela que já vi em minha vida. E, sem dúvida, jamais encontrarei outra que a supere em beleza, pensei comigo mesmo. Qualquer pessoa que se detiver observando-a compreenderá logo que ela é uma mulher boa, generosa, intrépida, sempre sensível aos sofrimentos e às aflições dos seus semelhantes. E quem poderá resistir à expressão de sinceridade que se irradia dos seus olhos? Não há quem não sinta aquela atmosfera de amizade, de gentileza, de calor humano e de abnegação que a envolve continuamente. Mas... aquela enigmática e misteriosa expressão de tristeza, que torna sombrios os seus olhos, nunca, se dissipa! Ela é uma criatura que se habituou a viver sua própria vida e a cuidar de si mesma. Ela, tanto quanto eu, já teve uma existência miserável, mas agora a felicidade lhe sorri. Trata-se de alguém a quem poderia confiar todos os segredos da minha vida porque ela os saberia compreender com elevação de espírito. Possui a discrição e o retraimento peculiares às mulheres orientais, que, conforme percebi, estão sempre decididas a fazer até mesmo o impossível para o bem dos homens que elas de fato amam. Certamente, Angela também tem suas preocupações, suas horas amargas na vida, seu cafard - uma espécie de secreta e indefinível melancolia cravada no mais íntimo recesso da alma. Contudo, ela nunca, nunca faz menção a essa mágoa que a dilacera. Apenas os seus olhos a revelam...
- Pronto! Não ficou tudo direitinho agora?
Angela acabara de colocar todos os meus pertences dentro das bolsinhas e divisões da pasta de couro. E caberiam muitas coisas ainda.
- Estou encantado. Agradeço-lhe imensamente, Angela. Devo agradecer-lhe...
- São coisas que sempre faço com muito prazer.
O garçom aproximou-se novamente da nossa mesa. A garrafa de champanha que ficara no balde com gelo já estava bem fresca. Despejou um pouco no meu copo para que eu provasse. Depois encheu nossos copos e saiu.
- Ao sucesso da sua missão! - saudou-me Angela, levantando seu copo.
- Não! - retruquei. - Bebamos saudando este nosso encontro, neste dia maravilhoso, que é o dia mais feliz da nunha vida. Salve este 13 de maio!
- Você está dizendo absurdos. Excelente este champanha, não acha?
- Não estou dizendo nenhum absurdo! - respondi-lhe.
Perto da nossa mesa eu ouvia as pessoas conversando em diversos idiomas. Lançando meus olhos por cima dos ombros de Angela, via a Croisette com aquela infinidade de carros, seus canteiros de flores e suas frondosas palmeiras. Um pouco mais ao fundo, divisava o mar.
- Você, Angela, transformou-me num outro homem. - Não é com roupas novas que um homem se transforma!
- Mas quando essas roupas são escolhidas por uma criatura antes desconhecida e que assim age exclusivamente por amizade, sem nenhum interesse, o homem forçosamente tem que se transformar...
- Bem... devo realmente dizer-lhe - prosseguiu Angela, um tanto constrangida, enquanto agitava com um palito uma pedra de gelo dentro do seu copo. - Você... você tinha grande necessidade de adquirir essas roupas modernas, Robert. Desculpe-me, mas as roupas que você usava eram horríveis. Feias demais. Dentro delas você parecia estar sempre mancando. O fundilho da calça ficava pendente...
- E dizer que elas foram confeccionadas por um renomado alfaiate de Düsseldorf!. ..
- Absolutamente... Ele não deve ser um bom alfaiate. De forma alguma! Você mesmo deve ter notado como as roupas de confecção que compramos lhe assentam bem. E os sapatos?! Como eram monstruosos os seus sapatos! Você, agora, sente-se mais jovem, é claro. Também não há dúvida de que você agora caminha com mais facilidade e com mais conforto. Não fique zangado comigo, mas devo dizer-lhe que, quando você esteve hoje de manhã no meu apartamento, caminhava como um indivíduo muito doente, como um pobre ancião desamparado. O fundilho da calça ficava caído como o de um desajeitado vovô. Eu quase nem podia contemplar uma coisa dessas. Não gosto de observar isso em ninguém. É por isso que acho que minha profissão está errada. Você é um homem dotado de ótima aparência...
- Qual nada!
- Afirmo-lhe com toda a segurança. Você andava de qualquer jeito, pouco se importando com o tipo de roupa que trajava. Talvez tivesse um pouco de vergonha de usar roupas modernas e, por isso, eu quis...
- Angela!
- Sim? - Ela tomou um gole de champanha e me encarou fixamente. Mais uma vez luziram aqueles pontinhos dourados nos seus olhos castanhos.
- Eu amo você! - disse-lhe, sem mais rodeios.
- Você me ama... Escute bem, Robert: você está louco?
-. Estou! - respondi sem titubear, parecendo ser um um outro Robert Lucas que falava, o verdadeiro Robert Lucas que permaneceu calado durante uns vinte ou trinta anos. Continuei falando em tom incisivo:
- Estou louco, louco de amor por você, Angela!
- Pare com isso, Robert! Acalme-se. Bebamos mais um copo de champanha.
Enchi novamente os nossos copos e bebemos. Com o cair da tarde começou a soprar uma brisa fresquinha.
- Tenho quarenta e oito anos. Sou mais velho do que você. Muito mais velho. Catorze anos mais velho. Daqui a dois anos completarei cinqüenta. Mas uma pessoa como você, Angela, nunca, nunca vi na minha vida. Perdoe-me por lhe dizer isso e não fique zangada comigo!
- Por que deveria ficar zangada?
- Por ter dito isso. Mas é realmente o que penso.
- Você julga que pensa assim.
- Não. Tenho absoluta certeza do que digo. E sei o que estou dizendo. Sinto que minha força agora é tão impetuosa como esse amor que brotou no meu coração, esse amor por você, Angela. Você também terá que me amar um dia! - Cheguei a ficar assustado com as minhas próprias palavras e tomei um gole de champanha apressadamente. - Como você mesma pode perceber, fiquei louco de amor por você, Angela!
Ela não me respondeu. Ficou me fitando com um esboço de sorriso nos lábios. Vi dentro dos seus olhos a minha imagem refletida em ponto menor. Prossegui:
- Seus olhos são maravilhosos... Jamais, enquanto eu viver...
- Você, sim... você, sim, tem lindos olhos. Olhos afáveis, brandos e, sobretudo, azuis! Como eu gostaria de ter seus olhos! Os seus olhos azuis.
- Se pudéssemos trocá-los eu não hesitaria em entregar-lhe os meus. Mas seria uma troca infeliz para você. Nesta minha vida as mulheres já me disseram tanta coisa... mas
enhuma delas disse que meus olhos eram bonitos...
- Então você só conheceu mulheres muito estúpidas.
Ou, então, elas se esquivaram propositadamente de lhe dizer isso. Seus olhos são magníficos, Robert, creia-me!
- Você é que é magnífica! - respondi.
- Não! - retrucou ela enquanto sorvia demorada-mente o champanha, parecendo querer ocultar a face atrás do copo. - Não é como você diz. Mas, por favor, pare com essa conversa, Robert! Não falemos mais nesse assunto.
Um garoto apareceu por ali chamando meu nome em voz alta.
- Sim! - Levantei-me bruscamente.
- Telefone para o senhor, monsieur.
- Voltarei já, já - disse a Angela.
Depois de ter dado alguns passos, virei-me e voltei para perto de Angela. Inclinei-me um pouco e cochichei-lhe ao ouvido:
- Preste bem atenção a minhas palavras: um dia você também terá amor por mim.
Capítulo 26
- É você, Robert?
- Sim, Karin.
Era minha mulher que estava ao aparelho. Falava com uma voz que não ocultava sua irritação.
- Você me prometeu telefonar logo que desembarcasse do avião.
- Esqueci-me. Peço desculpas. Sinto muito.
- Você não sente coisa alguma... Nada mesmo! Você pouco se importa se fico preocupada com você ou não.
- Mas se estava tão preocupada, por que não telefonou duma vez?
- Bem, não quero andar sempre procurando você... para não dar a impressão de estar espionando ou de querer saber que vida está levando. Mas hoje não pude mais agüentar. Como está passando? Sente-se bem aí nesse hotel? Acho que você vai ter muito trabalho.
- Agora mesmo estou trabalhando. Precisamente neste momento estamos tendo uma conferência importante, aqui no terraço do hotel.
- Conferência com alguma puta?
- Não diga essa palavra, por favor! É repugnante.
- Mas eu tenho razão e por isso posso dizê-la. Lá fora, no terraço do hotel, está o meu maridinho sentado com uma puta. E ele não quer que eu fale. Mas ele está com uma puta!... Puta. .. puta!
- Adeus! - disse subitamente. - Adeus, Karin!
- Que você se divirta bastante com essa sua profissão de merda! Isso que você chama de profissão. Sempre cercado de lindas prostitutas. Aqui continua chovendo. Tenho a impressão de que aí o sol está sempre brilhando. Mas não quero mais roubar seu tempo. A puta, sem dúvida, está esperando por você.
"Clic", fez o aparelho. Ela havia desligado.
Saí da cabine e entrei no saguão. Indaguei do porteiro se havia chegado alguma correspondência para mim. Não havia nada. Melhor assim. Caminhei, então, até a porta giratória, ao lado da qual havia também uma saída para o terraço, com portais de vidro. Era precisamente no ângulo formado por esse portal com a parede do edifício que se encontrava a nossa mesa. Notei que Angela estava contemplando a Croisette. Permaneci ali de pé seguramente uns dois minutos observando-a, mas ela não notou minha presença. Então, comecei a sentir de novo aquela estranha dor por todo o corpo... Um tipo de dor indefinível que, na verdade, nem se poderia chamar de dor. Era uma dor como que adocicada. Era sempre assim que ela se manifestava. Eu diria até que era uma dor agradável...
Dirigi-me à nossa mesa. Angela levantou os olhos, fitando-me.
- Más notícias?
- Nada disso! - respondi, procurando mostrar-me incisivo nas minhas palavras. Ela me observou com o semblante pensativo, revelando preocupação.
- Realmente, nada de mau.
Enchi novamente nossos copos. Sobrou um pouco de champanha na garrafa. Derramei esse resto de bebida sobre o chão branco de mármore, dizendo:
- Isso é para...
- Para os deuses que habitam debaixo da terra. Eu ja sabia. Aqui na França também costumam fazer isso, pois os deuses que se encontram debaixo do solo francês andam sempre sedentos.
- E exatamente para esses deuses. Eles sempre protegem as pessoas que mitigam a sede deles.
- Mas devíamos ter feito isso com as últimas gotas os nossos copos. Deveríamos ter deixado um restinho para derramar no chão.
- Angela, preciso pedir-lhe um grande favor. Eu bem sei que você conhece todas aquelas pessoas relacionadas na lista que lhe mostrei...
- Todas elas, com exceção dos Sargantana.
- Com exceção dos Sargantana, evidentemente. Eu também preciso conhecer toda essa gente. O ideal mesmo seria que eu entrasse em contato com essas pessoas num ambiente completamente neutro, em que predominasse, antes de mais nada, uma atmosfera de franca cordialidade, todas reunidas ao mesmo tempo. Inclusive um tal Paul Seeberg. Ele é o procurador-geral do banco de Hellmann. Poderia propiciar-me esse encontro?
- Fazendo um party. Não é isso que você quer dizer?
- Exatamente, se possível.
Ela começou a refletir e pouco depois disse-me:
- No meu apartamento acho que não dá. Não disponho do pessoal necessário e nem o local é apropriado. Mas no palacete dos Trabaud dá muito bem. É um local bem amplo. Eu já lhe disse que Pasquale Trabaud é uma das minhas grandes amigas. Mas é bem provável que ela e o marido, com esse calor que está fazendo, estejam passeando de iate. Só mais tarde é que poderei entrar em contato com ela.
- Então... mais tarde... você fará isso por mim?
- Naturalmente, com muito prazer! O que você vai fazer agora? A arrumadeira do meu apartamento deve estar esperando por mim, pois hoje é dia de pagamento.
- Eu. .. eu hoje não tenho nada de especial para fazer...
- Pois então venha comigo! - disse Angela numa atitude resoluta, e suas palavras soaram com toda a naturalidade. Eu nunca tinha ouvido mulher alguma falar desse modo.
- Cozinharei alguma coisa para nós. Você vai se admirar de ver como cozinho bem. Garanto que você não imaginava que eu soubesse cozinhar, não é verdade?
- Aliás, acho que você sabe fazer tudo. E depois do jantar, mais tarde, você vai telefonar aos seus amigos, não é?
- Muito bem!
Paguei a despesa ao garçom. Em seguida Serge trouxe o carro de Angela, dentro do qual havia colocado os pacotes com suas compras. Ela sentou-se ao volante e eu, como antes, ao lado dela. O carro arrancou e fomos descendo a Croisette. As sombras, a essa hora, já se projetavam longe...
Capítulo 27
Alphonsine Petit era uma mulher baixinha, com os cabelos grisalhos e muito vagarosa no caminhar. No Edifício Résidence Cléopâtre ela se incumbia da limpeza de diversos apartamentos. No de Angela trabalhava às terças, quintas e sábados, a partir do meio-dia. Não tinha maneira melhor de dividir seu tempo. Era muito trabalhadora e assídua. Provinha da região da Bretagne.
Angela apresentou-nos. Seus olhos inteligentes revelavam certa timidez, como os de um animal desconfiado. Alphonsine não parava de me olhar enquanto nos dirigíamos à sala. Ali se encontravam, dentro de um vaso colocado no chão, as trinta rosas que eu havia encomendado no Floreal.
- Quando foi que entregaram essas rosas?
- Faz mais ou menos duas horas, madame. Veio também um cartãozinho.
Angela rasgou o envelope e leu em voz alta o que eu havia escrito: "Obrigado por "tudo". Fitou-me com o olhar fixo:
- Você é amável. Muito amável, realmente. Sonja é a minha espécie de rosas preferida.
- Eu sei. Daqui por diante, aos sábados, você receberá Sonja, como lembrança deste 13 de maio, o dia mais importante da minha vida. O primeiro dia da minha nova vida. A nova data do meu aniversário. Seria muito belo se eu pudesse dizer: "Do nosso aniversário!"
Alphonsine havia se retirado da sala.
- Era mesmo necessário e importante que você nascesse de novo, Robert.
- Como assim?
- Quando veio aqui hoje, você estava... Como poderei dizer? ... Você estava exausto, desiludido, alquebrado, abatido.
Ela se pôs de joelhos e começou a ajeitar as rosas no vaso, no qual verteu água com uma certa substância para conservá-las frescas. Depois colocou dentro do vaso um pedacinho de cobre. Ela já havia perguntado insistentemente a Alphonsine se as rosas tinham sido cortadas.
- Abatido, eu?! - interroguei, já um tanto preocupado.
- Sim - respondeu, levantando os olhos. - Mas agora você não tem nenhum sinal de abatimento. Está bem disposto e alegre. Agradeço-lhe imensamente estas rosas, Robert.
- Eu sei que você gosta de flores.
Levantou-se. Leu mais uma vez o cartão e depois colocou-o sobre a escrivaninha. As rosas ficaram em frente ao aparelho grande de televisão. Alphonsine voltou de novo. Ambas deixaram de me dar atenção. Sentaram-se num sofá, à beira da mesa, uma ao lado da outra, e Alphonsine, manuseando um caderno, começou a explicar à patroa o que havia comprado e a quantidade de dinheiro gasta. Demonstrou-lhe o número de horas que havia trabalhado durante a semana, bem como o montante que deveria receber. As importâncias avulsas ainda não haviam sido incluídas. Angela ajeitou os óculos e ambas começaram a fazer os cálculos em voz alta. Pareciam duas alunas de colégio. Elas iniciavam uma soma, erravam e depois recomeçavam tudo...
Dirigi-me à estante de livros e passei a ler o título das obras, bem como os nomes dos respectivos autores. Camus, Sartre, Hemingway, Greene, Mailer, Giono, Malraux, Priestley, Huxley, Bertrand Russell, Mary McCarthy, Silone, Pavese, Irwing Shaw, Irving Wallace, todos livros de autores famosos, que eu, para minha satisfação, também possuía na minha biblioteca, não em francês evidentemente, mas em alemão. Nas prateleiras viam-se também várias obras de arte. Na superior estavam colocadas, uma sobreposta à outra, duas Bíblias que serviam de pedestal a uma estatueta de um antigo Buda de bronze.
Finalmente as duas mulheres concluíram seus cálculos e Alphonsine recebeu o dinheiro que lhe cabia. Na despedida ela me apertou novamente a mão. Depois, percebi que ela, no pequeno saguão, ficou cochichando um pouco com Angela, que após a saída de Alphonsine voltou à sala.
- Você acaba de fazer uma grande conquista, Robert: Alphonsine! Ela disse que você é um homem extremamente simpático.
- Veja só! Já está produzindo efeito esta minha transformação, não é verdade? Eu não sabia disso até agora, mas o efeito que produzo sobre as mulheres só pode ser comparado aos provocados por um tremor de terra!...
- É exatamente essa a minha opinião! - retrucou
Angela, aproximando-se de mim. - Monsieur, o senhor é um verdadeiro furacão! Que é que o senhor quer comer, agora, monsieur? Como eu não supunha que iria ser convidada para almoçar fora, deixei preparada uma boa quantidade de salada, que ficou na geladeira. Assim ela se conserva bem fresquinha. Salada faz muito bem à saúde - disse, falando como uma professora. - Habitualmente como muita salada, e você?
- Eu também - respondi-lhe, mas, na verdade, nem me lembrava mais da última vez em que provara salada.
Concordamos, então, em comer salada e bife. Para acompanhar essa refeição, teríamos também bâtard, o pão torradinho. Alphonsine havia levado algumas fatias desse pão, entregues por Angela.
Angela vestiu um avental colorido. Sentei-me num banquinho que havia na cozinha e fiquei observando como ela fritava os bifes e preparava a salada.
Subitamente ela soltou um gritinho:
- Notícias!
Ligou imediatamente o pequeno aparelho de televisão que se achava na cozinha e saiu correndo para ligar os que se encontravam no jardim de inverno e na sala. Este último, que era o maior deles, ela empurrou para perto da porta de vidro que dava para o terraço, a qual se encontrava aberta.
- Não posso deixar de ouvir as notícias! - disse ao entrar novamente na cozinha.
Então passamos a escutar o noticiário. Inicialmente foram dadas as notícias que eu já esperava: "A Inglaterra liberou a cotação da libra esterlina. Pânico em todo o mundo, principalmente na Itália e no Japão. Em decorrência desse fato, as Bolsas de Valores da Inglaterra e de Frankfurt não funcionarão na segunda-feira".
Enquanto ouvia o noticiário, Angela trabalhava no fogão e na mesa da cozinha. Constantemente lançava o olhar para o pequeno aparelho Sony japonês. Não abria a boca para fazer um comentário sequer: absorvia as notícias tal qual a esponja absorve a água.
Nunca tinha visto uma mulher preparar uma refeição com tanta rapidez. Angela fez sinal para que eu a acompanhasse. Dirigimo-nos ao jardim de inverno, onde, de um armário, ela tirou pratos, travessas e talheres de prata. Em seguida fomos para o terraço. Ali pôs a toalha na mesa que ficava sob a clarabóia e ajeitou os talheres. No terraço soprava uma brisa agradável e suave, que servia para compensar o calorão sofrido durante o dia no centro da cidade.
O céu, agora, tinha a cor verde-garrafa. Mal se podiam divisar as silhuetas dos gigantescos aviões que aterrissavam em Nice ou decolavam do aeroporto daquela cidade e se distanciavam voando sobre o mar. Ainda no terraço continuamos ouvindo e vendo o comentarista da televisão. Parecia até que não tinham mais fim os informes acerca da greve portuária na Inglaterra. A greve geral dos ferroviários italianos estava anunciada para a terça-feira seguinte. E seguiam-se mais notícias: a catástrofe sofrida por um navio diante de Tenerife; o mais forte ataque, nos últimos meses, dos bombardeiros norte-americanos B-52 de longo alcance, sobre o Vietnam do Norte.
Voltamos de novo à cozinha, onde os bifes estavam chiando na frigideira. Ela os examinou bem, cravou o garfo neles e virou-os. Depois entregou-me uma garrafa de vinho rose e dois copos, pedindo-me que os colocasse sobre a mesa no terraço. Ela só tinha olhos e ouvidos para as notícias. O jantar estava pronto. Levamos tudo para aquele terraço cheio de flores.
Eu contemplava aquela infinidade de lâmpadas acesas na cidade que ficava lá embaixo, contornando o mar. Encantavam-me as luzes vermelhas e verdes, azuis e brancas das embarcações. Três navios achavam-se feericamente iluminados. Os globos luminosos, nas ruas que se espalhavam ao longo do monte Esterel, ofereciam à vista um quadro maravilhoso. No céu límpido não se via uma nuvem. As flores pareciam adquirir um mágico esplendor ao serem inundadas pela luz da lâmpada do terraço. Em algum lugar distante estavam executando música suave. E as notícias continuavam: seqüestro de um avião no Chile; sangrentas lutas entre católicos e soldados britânicos na Irlanda do Norte...
Os aviões que nesse momento cortavam os céus procuravam orientar as suas posições emitindo ininterruptamente sinais luminosos.
O bife estava malpassado, conforme eu havia pedido. Além de alface, a salada continha rodelas de pepino, cebola e outros ingredientes que eu desconhecia. O rose tinha um sabor adstringente e puro. O noticiário terminou. Angela ficou tagarela de novo.
- Você sabe quanto custa uma garrafa de vinho rose? Três francos e cinqüenta centavos! Não é incrível?
Ela se levantou e desligou o televisor. Então, só a luz da sala se projetava sobre o terraço.
Depois que terminamos o jantar ajudei Angela a levar todas as coisas para a cozinha, onde o aparelho de televisão ainda continuava ligado. Ela o desligou e correu até o jardim de inverno, onde fez o mesmo com o televisor que lá se encontrava.
- Às vinte e três horas será transmitido o próximo noticiário. É o tempo que vai levar até que eu consiga me comunicar com a minha amiga Pasquale Trabaud. Depois que os Trabaud chegam a Port Canto, após um passeio pelo mar, permanecem ainda a bordo um bom tempo conversando e bebendo com os amigos. Mas e nós... que vamos beber agora? Champanha, você não acha bom?
Ela possuía uma geladeira bem grande, da qual tirou uma garrafa. Li o rótulo: Henriot, 1961.
- Ali estão os copos. Pode abrir a garrafa, por favor? Vou trocar de roupa e volto logo.
Antes de nos termos sentado à mesa para o jantar, ela tirara o avental. Abri a garrafa. Peguei também dois copos e levei tudo para o terraço, colocando sobre a mesinha, com cadeiras de balanço ao redor. Desse lugar podiam-se ver o mar e a cidade através dos balaústres da sacada, que era desprovida de treliça. A altura da balaustrada era de mais ou menos um metro e meio.
Depois de alguns minutos Angela também veio ao terraço. Vestia um roupão marrom, próprio para usar em casa, com as mangas em forma de sino e gola de veludo, bem alta, fechada. Eu já tinha enchido os nossos copos. Ela sentou-se ao meu lado. Não mais se ouvia aquela melodia suave que vinha de longe. Estava tudo tão calmo e silencioso em torno de nós, que parecia sermos as únicas criaturas existentes no mundo. Angela trouxera cigarros e um cinzeiro.
- Realmente você está fumando muito... - comecei a frase, mas não a concluí. Dei-lhe fogo para acender o cigarro e acendi um para mim também. Sentados à mesa, ficamos fumando e bebendo, sem trocar palavra, durante um bom tempo. Contemplávamos o mar, com as embarcações iluminadas, e as luzes da cidade. Depois de termos fumado alguns cigarros e quando já estávamos na segunda garrafa de champanha, Angela começou a falar... bem baixinho:
- Eu ofendi você.
- A mim?! Nunca!
- Ofendi, sim. Foi quando tivemos nossa primeira conversa. Pelo telefone. Eu lhe disse que sabia falar alemão, mas que não gostava de conversar nesse idioma...
- Ah, agora estou me lembrando! - respondi-lhe sentindo o suave odor da pele da sua face amorenada pelo sol.
- Mas posso explicar a razão...
- Para quê? Posso imaginar quais foram os motivos que a impeliram a tomar tal atitude. E isso, para mim, não tem importância alguma.
- Você não pode absolutamente fazer idéia dos motivos. E esse assunto tem importância, sim - prosseguiu ela, falando baixinho e devagar, expressando-se num francês bem claro. - Que era você durante a guerra?
- Soldado.
- Naturalmente. Mas não tinha nenhum posto?
- Cabo. Nunca fui além desse posto!
- Você também esteve aqui na França?
- Sim. Só que foi mais tarde. Quando a guerra começou, não havia ainda completado dezesseis anos. Depois fui mandado para a Rússia, onde fui preso em 1945. Fiquei na prisão durante três anos. Até que tive sorte...
- Muitos tiveram sorte! - respondeu Angela com uma voz tão baixa que parecia vir de enorme distância. - Mas a minha gente não teve sorte alguma. Nenhum deles. Meus pais, meus parentes... Faziam parte dos assim chamados Grupos de Resistência, desde o início. Todos foram presos e deportados. Eu vim ao mundo em 1938. Amigos esconderam-me até o ano de 1945. Foi assim que consegui escapar. Sou a única pessoa da minha família que se salvou. Não havia mesmo outra maneira de escapar...
- A manchinha branca nas costas da sua mão! - exclamei, pronunciando as palavras alto demais, pois essa idéia me surgira repentinamente. -- Você presenciou a prisão de seus pais e era capaz de discernir conscientemente a gravidade da situação?
- Não muito conscientemente... Todavia, depois, durante muitos anos, eu revivia freqüentemente em sonhos as dolorosas cenas daquela noite em que os alemães vieram à nossa casa e levaram presos meu pai e minha mãe. Seguidamente sonhava com as batidas compassadas daquelas pesadas botas em cadência marcial. Então eu gritava como que atormentada por um terrível pesadelo. Tinha esses sonhos quando era criança.
"Então ela gritava como que atormentada por um terrível pesadelo!"
- Não teria sido esse o choque emocional que alterou a pigmentação da sua pele e que foi mencionado pela cartomante?
- Sim... E bem possível. Por estranho que pareça, eu nunca havia pensado nisso antes!
- Se um dia você se tornar feliz, essa mancha desaparecerá. Trate de observar com atenção.
- Eu sou feliz!
- Não! - respondi-lhe em tom incisivo. - Não acredito! Você não é feliz!
- Sou! - Ela bebeu até esvaziar o copo. - Encha outra vez meu copo. E o seu também. De qualquer forma, teremos que esperar até as onze, no mínimo.
- Você não é feliz! - repeti, já entregando-lhe o copo cheio. - Você faz de conta que é feliz ou age como se o fosse.
Ela examinou-me demoradamente e, não podendo ocultar sua admiração, prosseguiu:
- Você tem razão. É a primeira pessoa que me fala assim. Está certo... sim. Não lhe parece que estou me portando como uma pessoa que está um pouco bêbada?
- Absolutamente! Pelo contrário, você até me parece uma pessoa que não bebeu nada ainda.
- Sim, essa é a impressão que eu mesma tenho. Contudo, naquela vez... naquela vez eu estava bêbada... sim... Meu Deus, como eu tinha bebido!
- Quando?
- Quando descobri... Quando Jean me disse... - Passou a me fitar com os olhos fixos novamente. - Você para mim é uma pessoa estranha, Robert. Nem sei por que razão devo lhe contar esse fato que, a não ser eu própria, só um sacerdote conhece... Um fato sobre o qual nunca falo nem faço comentários.
- Então não me conte nada!
- Mas... a você quero contar! Não lhe parece estranha esta minha atitude? Sim, sim, tenho que lhe contar tudo o que aconteceu. Não sei explicar por que motivo escolhi precisamente você para ouvir esse segredo. E você terá de ouvi-lo... E esta noite, ainda! Hoje à tarde você teve ciúmes de Laurent.
- De quem?
- De Laurent Viale, o oficial da marinha.
Ah, já sei de quem você está falando. Bem... está certo respondi, sabendo que não podia encontrar nenhum subterfúgio.
- Mas esse seu ciúme não tinha nenhuma razão de ser. Eu nunca amei Laurent. Foi outro o homem que amei de fato, com toda a força do meu coração. Já faz três anos que isso aconteceu.
Sua voz parecia estar se distanciando cada vez mais.
- Nunca antes eu havia dedicado tanto amor a um homem como dediquei a ele... Cheguei quase a esquecer de mim mesma para preocupar-me somente com ele. Quando se ama de fato, não se pensa mais em si mesma, mas só na pessoa amada, não é verdade?
Não lhe respondi. Minha cadeira balançava lentamente. Eu fumava e bebia devagarinho, sem deixar de contemplar o lindo rosto de Angela, que, nesse instante, estava de perfil.
- Eu vivia exclusivamente para esse homem... Ele praticamente morava aqui... neste apartamento. Pretendíamos nos casar. Ele viajava muito, mas quando vinha a Cannes só ficava aqui, comigo. Eu havia preparado tudo para o nosso casamento, compreende? Pretendíamos realizar um casamento íntimo, fazendo depois as devidas comunicações. Mas mesmo um casamento assim exige sempre grandes preparativos, especialmente da parte da mulher, não é verdade?
- Seguramente.
Ela já não prestava mais atenção às minhas palavras, tão absorta estava em seu relato.
- Finalmente chegou o tão esperado dia. Então... - Ela interrompeu a frase. Houve um silêncio bem prolongado. - Então ele me declarou que não podia casar-se comigo. Disse-me que sentia muito... mas que já era casado e tinha dois filhos. Residia em Amiens. Eu nunca havia desconfiado dele. No momento em que me confessou isso, cheguei até a pensar que não tivesse ouvido direito... Mas era a triste realidade o que ele dizia. Foi... foi um momento terrível para mim, creia-me. Mandei-o embora. Ele fez as malas rapidamente e sumiu. Depois que ele saiu, eu, que estava chorando, parei de chorar e comecei a beber. Eu tomava uísque. Naquele dia só tomei uísque. Puro, com gelo. Mas bebi muito. Uma enorme quantidade. Então fiquei realmente embriagada. E não parava de beber. Eu...
Capítulo 28
Ela prosseguiu bebendo noite adentro. Os quatro aparelhos de televisão ficaram ligados, incluindo-se o do estúdio, pois ela, antes da discussão com seu amado, estivera andando por todo o apartamento exatamente na hora do noticiário. Depois de bêbada esqueceu-se de desligar os aparelhos. Postou-se de cócoras sobre o divã, tendo na frente a garrafa de uísque e o gelo. Dos seus olhos não brotava uma lágrima sequer. Ela apenas sentia na cabeça uma zoada infernal e a sala parecia estar rodando. Um único pensamento não saía do seu cérebro: "Nada mais posso fazer. Fui enganada. Fui iludida. O meu amor foi embora. Agora estou sozinha no mundo. Completamente abandonada. Não tenho mais ninguém. Ninguém!"
De repente levou um grande susto.
Alguém berrava, vociferando numa fúria incontida.
Levou ainda um bom tempo até que ela se desse conta de que, na televisão, estava passando um filme. Isso aconteceu a 10 de junho. E foi exatamente no dia 10 de junho de 1944 que uma unidade militar das Waffen-SS, em represália pela morte de um general alemão levada a efeito pelos maquis, incendiara e reduzira a cinzas a pequena localidade de Oradour-sur-Glane, no sul da França. Morreram praticamente todos os seus habitantes. Os homens foram fuzilados. As mulheres e as crianças haviam sido antes conduzidas a uma igreja. A maioria delas tinha a esperança de salvar-se. Entretanto, os soldados das Waffen-SS puseram fogo também na igreja, e as mulheres e as crianças receberam as chamas nos seus corpos ainda vivos. As ruínas daquele sítio permanecem até hoje. O povoado foi reconstituído num outro lugar. Oradour - da mesma maneira que tantas outras localidades - constitui, para os frajiceses, um símbolo de perene advertência.
Em dias como esse, as televisões, a título de exibição comemorativa, transmitiam filmes antifascistas contendo farta documentação sobre os crimes horrorosos perpetrados pelos nazistas. Era exatamente um documentário desse tipo que estava sendo passado naquele instante. Tratava-se de uma filmagern elaborada com base em relatos de testemunhas oculares que incluíam, também, algumas cenas filma-as as ocultas, além de um grande número de fotografias uadas secretamente. A película mostrava cenas tétricas e horripilantes, capazes de deixar qualquer pessoa transida de pavor, como num verdadeiro pesadelo.
Eis, portanto, diante dos olhos de Angela a seqüência das cenas do fuzilamento dos homens, feita de acordo com o fidedigno relato de pessoas idosas que presenciaram o fato e chorando descreveram a tremenda carnificina. Eis ali a igreja, e os soldados das Waffen-SS levando as mulheres e as crianças para dentro. Angela vê quando fecham a porta de entrada. As chamas começam a se alastrar. Que chamas assustadoras! Depois aparecem as miseráveis casinhas dos agricultores de Oradour incendiando-se, dinamitadas. E por todos os lados só se viam os homens das Waffen-SS, com suas pesadas botas e suas mortíferas metralhadoras.
Angela sentou-se ereta no diva e esvaziou o copo. O uísque escorria pelos cantos da boca, mas ela não notava. Tinha os olhos fixos nas imagens que apareciam no vídeo, reproduzindo aquelas terrificantes cenas. E um turbilhão de pensamentos começou a invadir-lhe a mente, compelindo-a a evocar seus entes queridos: "Meu pai, minha mãe, tio Fred, tio Maurice, primo André, tio Richard, tia Henriette, tia Marlene. Mortos. Mortos. Todos eles estão mortos..."
De um momento para outro percebeu que não poderia mais suportar aquilo. Levantou-se bruscamente e, já cam-baleante, dirigiu-se à sacada cheia de flores. Era uma noite chuvosa. Uma idéia macabra apossou-se do cérebro de Angela naquele momento: dar cabo da existência! Pôr um fim em tudo duma vez. E imediatamente...
"Você não pode mais suportar esta vida."
- Esta vida... Não, não... não quero mais...
Quando se dirigia ao parapeito da sacada, com os chinelos de salto alto, resvalou e.caiu no chão molhado pela chuva que penetrava através dos balaústres. Levantou-se em seguida e, arrastando uma perna, sempre vacilante, foi debruçar-se no parapeito. Não sentia nenhum medo ao contemplar lá embaixo, na frente da garagem localizada nos fundos do edifício, o chão de cimento iluminado. Tinha que pular imediatamente. Sem demora.
"Num instante meu corpo também estará estendido lá embaixo e todos os meus sofrimentos terminarão."
Primeiro colocou a perna direita. Depois, a esquerda. Ficou de joelhos sobre a balaustrada. O pé direito já se encontrava bem na beirada. Quase agachada, apoiava-se com as mãos. Em seguida, tentou pôr-se de pé, erguendo-se lentamente, centímetro por centímetro... Foi se erguendo... se erguendo devagarinho.
A outra perna também ia se esticando ao mesmo tempo. A chuva molhava-lhe os cabelos, o rosto, a roupa, mas ela não percebia nada disso. "Vem, morte! Vem, doce morte!" Ei-la, agora, de pé, ali, a quatro andares do chão, sob um céu escuro e nublado, tendo à sua frente o panorama de uma cidade onde se vislumbravam luzes em profusão. Uma forte rajada de vento bateu em cheio contra seu corpo. Demonstrou mais uma vez a firmeza da sua idéia: "Eu quero!..." E precipitou-se.
Capítulo 29
Precipitou-se para trás, vindo a cair no próprio chão do terraço, impelida pela rajada do vento. Só conseguiu perceber isso quando, depois de momentânea perda dos sentidos, recobrou a consciência. Achava-se deitada numa poça d'água. Estava com a boca aberta e quase cheia de água. Por pouco não chegou a sufocar-se. Cuspiu a água. Sentia-se tão fraca, que não podia mexer os membros.
Tinha se precipitado sobre o terraço e não sobre o chão lá embaixo.
"Não, não, não quero assim... O que quero é morrer... A balaustrada..."
Levantou-se, mas caiu logo em seguida. Tentou levantar-se mais uma vez. Caiu de novo. Procurou então, empregando todas as forças, manter-se de pé. Seus joelhos tremiam. Cambaleando, aproximou-se do parapeito. Mas não conseguiu trepar. Debruçada ali, passou a olhar para baixo. Um carro estava saindo da garagem. Agora, ela já não se sentia mais com coragem. Mas de um jeito ou de outro tinha que dar cabo da vida. Esse era o seu firme propósito...
Soluçando e sempre vacilante, voltou para a sala. Bebeu uísque diretamente da garrafa. Havia deixado os chinelos na sacada.
Sentou-se numa cadeira, perto da mesinha do telefone.
O telefone!
Ela devia falar com alguém. Mas com quem? Ora, possuía tantos amigos. Mas seriam mesmo seus amigos? Com quem poderia falar numa situação dessas? Com quem?
"A quem você poderá dizer, Angela, o que pretendia fazer? A quem?"
Sentindo um arrepio perpassar-lhe o corpo, reconheceu que realmente não tinha nenhum amigo ao qual pudesse confiar o que se passara com ela. Entretanto, à sua frente estava a lista telefônica. Começou a folheá-la ao acaso. Naquela época, isto é, três anos antes, ela ainda não precisava de óculos para ler. Suas mãos tremiam. O catálogo caiu no chão. Apanhou-o. Não sabia exatamente que número deveria procurar. Tinha que ser o número do telefone de alguma pessoa... Alguma pessoa com a qual pudesse conversar... Conversar! Ah, mas existem pessoas para isso!... Sim... Existe um serviço de orientação espiritual que atende pelo telefone. Lá talvez alguém pudesse... Entretanto, por mais que forçasse a memória, não conseguia se lembrar do nome dessa instituição.
Igreja!
Passou a procurar na lista sob a designação Igreja. Discou um número. Ninguém atendia. Discou outro número. Nada. Deu um profundo suspiro. Discou um terceiro número. O telefone tocou uma vez... duas vezes... Então, subitamente ecoou uma voz... Voz de homem, tranqüila, compassada e amável.
Angela não compreendia o que o homem falava. Com o alívio que sentiu ao ouvir a voz de um homem não conseguiu pronunciar uma palavra. Atirou-se para a frente, ficando com o corpo caído sobre a mesa. O fone escorregou da mão. Ela começou a chorar e a suspirar. Estava chorando e soluçando de novo.
O homem, com sua voz tranqüila, disse:
- Estou ouvindo. Estou ao aparelho. E continuarei ao aparelho. Não tenha pressa. Tenho tempo. Disponho do tempo que a senhora quiser...
- Eu... eu... padre... O senhor é um padre?
- Sim. Pode chorar com toda a calma. Não tenha pressa. Eu tenho tempo...
Angela continuava chorando e suspirando. A voz do homem fazia-se ouvir de intervalo em intervalo:
- Estou aqui. Estou ao aparelho...
E assim passou mais ou menos um quarto de hora. Finalmente Angela fez um esforço e decidiu falar:
- Matar... Poucos momentos antes. .. O padre não compreendeu direito.
- A senhora matou alguém?
- Não. Eu... eu queria me matar... Suicidar-me... Compreendeu, padre? Eu tentei atirar-me da sacada para baixo... Mas caí para trás. E agora... agora...
Começou novamente a chorar e a soluçar.
__ Estou escutando. Não tenha pressa... Não tenha pressa.
Essa voz masculina e jovem soava forte, mas ao mesmo tempo tão repassada de suavidade que fez com que Angela, aos pouquinhos, recobrasse as forças. Passou então a falar com mais clareza:
__ Eu quero acabar com a minha vida... Não agüento mais...
__ Compreendo... A senhora não agüenta mais...
Esse diálogo era constantemente interrompido pelo choro de Angela ou pelo silêncio. Então, depois de um certo intervalo, sempre surgia a voz do padre:
- Estou ouvindo... Não vou desligar.
- Fui abandonada... O homem que eu amava... me traiu... me iludiu... Agora estou sozinha neste mundo... Não posso mais suportar! Tenho que dar cabo da minha vida!
Aquela voz calma não esboçou o mínimo sinal de protesto contra essa intenção de Angela. Nada retrucou. Não fez nenhum juízo de valor com relação a essa atitude. Disse, apenas, o que ela em tais circunstâncias poderia ouvir.
- A senhora naturalmente está vivendo momentos difíceis.
- É verdade...
- Esse homem entrou na sua vida... A senhora dedicou-lhe todo o seu amor. Ele a decepcionou... Agora a senhora sente um vazio na sua existência... Um profundo e pavoroso vazio...
- É isso mesmo... sim, sim!
Angela endireitou-se na cadeira. Agora apenas soluçava bem baixinho. Já podia falar com mais facilidade.
- Era só a ele que eu tinha... Conheço muitas pessoas... uma infinidade de pessoas. Com minha profissão, tenho forçosamente que lidar com muitos homens e mulheres... Sempre participo das festas de gala, dos parties... Sou obrigada a participar dessas reuniões, o senhor me compreende, padre?
- Sim, compreendo muito bem.
- Mas, em última análise, em que é que se resume a vida? Parties! Festas de gala! O luxo que predomina aqui... Ji esse vazio... Esse profundo vazio da minha alma. Então, nao é uma vida estúpida que estou levando? - Passou, agora, a falar bem alto. - Não lhe digo quem sou nem onde moro. O senhor poderia chamar a polícia.
- Juro que não faria isso. Na verdade, nem mesmo seu nome eu quero saber... Realmente não preciso saber de nada com relação à sua vida... A senhora está vivendo momentos de grande aflição e sente-se muito só... Aliás, a tendência ao suicídio já é uma característica bem expressiva da solidão... Mas a senhora não está assim tão sozinha como pensa...
- Por quê, padre?
- Não estou aqui ouvindo-a? Estou falando com a senhora. E'a compreendo muito bem. Compreendo a sua situação. A senhora tem que acreditar em mim. Pode estar certa de que a compreendo muito bem...
- Realmente, padre?
- A senhora pode ter a mais absoluta certeza! A senhora lida sempre com muitas pessoas. Sua profissão exige que a senhora mantenha contato com todas essas pessoas. Mas a elas a senhora não pode dizer o que se passa no seu íntimo. Não lhes pode falar sobre seus problemas nem sobre suas aflições. No meio dessas pessoas a senhora deve desempenhar um papel... Eu diria, até, a senhora deve usar uma máscara: mostrar-se alegre... Sempre alegre e sorridente. Não é assim?
- É assim mesmo, padre! - respondeu Angela, admirada. - Eu não posso nunca... nunca... Eu não posso nunca me apresentar no meio delas como realmente sou. Elas me têm na conta da mulher mais alegre e feliz de Cannes. Na presença dessa gente, de forma alguma devo me queixar de qualquer coisa. Tenho que trabalhar. Muitas encomendas e pedidos... Na verdade, quem poderá ter algum interesse pela minha vida?
- Eu! - respondeu o padre, sempre falando com calma. - Eu me interesso pela sua vida. Como pode ver, a senhora não está sozinha nem abandonada.
- Não... Sozinha, não...
- Muitas pessoas, às vezes, se abandonam e se entregam à solidão... Mas é sempre muito perigoso ter que usar uma máscara e simular... No caso desse seu amor, a senhora não podia, com o tal homem...
- Não, padre... Com ele eu podia falar abertamente. Ele... esse homem sabia tudo a meu respeito... E agora...
- E agora sou eu quem sabe tudo!
- Mas o senhor ainda não sabe nem mesmo quem sou eu! - retrucou Angela, alteando a voz.
- Mas isso não vem ao caso. Estamos falando um com o outro. Estamos apenas no começo do nosso diálogo. E seria muito bom que continuássemos a conversar. Por que a senhora não vem até aqui? Sou o padre da pequena igreja ortodoxa russa, no Boulevard Alexandre III. Esperarei a senhora amanhã de manhã... Conversaremos sobre todos os assuntos...
- Mas eu sou protestante.
- Também isso não vem ao caso. Esperarei a senhora.
- Não irei, padre. Tenho vergonha. Muita vergonha mesmo!
- Então, talvez a senhora queira vir depois de amanhã. Ou talvez pretenda telefonar novamente. Encontro-me sempre aqui. A essa hora estou sempre neste mesmo lugar. Também antes do meio-dia. Não se esqueça de que estou aqui para a senhora. Agradeça a Deus pelo fato de eu poder compreendê-la. Compreendo muito bem sua situação...
- Pode ser!... Mas continuo tendo minhas dúvidas ... Não posso acreditar.
- Acredite, por favor!
- Mesmo assim, ainda quero acabar com minha triste existência... Vou me precipitar lá embaixo...
- Até mesmo essa sua atitude compreendo perfeitamente. Quem sabe se na sua situação eu também não seria compelido a praticar o mesmo ato?
- Mas isso não é um pecado?... O suicídio? O que o senhor pensa disso, considerando os mandamentos da lei de Deus?
- Não quero falar com a senhora acerca de pecados. Não existe pecado num caso como o seu. Temos que falar acerca da sua pessoa. Exclusivamente com relação à senhora, cuja situação estou compreendendo muito bem. Devagarinho. Não tenha pressa. Disponho de todo o tempo que a senhora quiser. ..
Ele conversou durante quase duas horas com Angela. Fazia muito tempo que a programação da televisão havia terminado. O vídeo do seu aparelho estava escuro, emitindo cintilações. A estação transmissora não estava mais no ar. O padre, com sua voz bondosa e amável, continuava falando. Agora ele já conhecia perfeitamente a situação. Angela a essa altura já podia falar com maior fluência.
Parara de chorar e suas idéias iam se tornando gradativamente mais claras. Também o efeito do uísque ia diminuindo.
- A senhora deve vir aqui - disse o jovem sacerdote.
- Não sei...
- Talvez amanhã... Ou qualquer outro dia... E lembre-se de que estou aqui para atendê-la. Sou uma pessoa que a senhora não conhece. Uma pessoa diante da qual a senhora não precisa usar máscara nem fingir. Uma pessoa à qual a senhora pode contar tudo. Estou sempre aqui para atendê-la. Sempre. E eu a compreendo. Compreendo perfeitamente sua situação.
- Muito obrigada, padre! - disse Angela, que, de um momento para outro, começou a sentir um grande cansaço. Em seguida desligou. Não levou muito tempo e caiu num sono profundo. Dormiu recostada na espreguiçadeira, sem mesmo trocar de roupa. A lâmpada ficou acesa e o televisor também continuou ligado, com o vídeo cintilando. A chuva caía sobre o terraço.
Capítulo 30
Alternando as luzes branca e vermelha, o avião emitia sinais e, descrevendo uma curva, se aprestava nesse momento para aterrissar em Nice. Depois de Angela ter chegado a esse ponto do seu relato, ficamos em silêncio durante um longo tempo. Finalmente ela prosseguiu:
- Quando despertei eram nove horas da manhã. Doíam-me todos os ossos do corpo. Eu estava numa bruta ressaca.
- E você foi à casa desse padre?
Ela me fitou. Seus olhos cintilavam refletindo a luz que vinha da sala.
- Nunca.
- Por que não?
- Eu tinha muita vergonha... E mesmo porque, depois desse dia, nunca mais tive vontade de me suicidar.
- Esse padre salvou-lhe a vida - comentei.
- É verdade!
Angela tomou mais um gole de champanha e acendeu outro cigarro. Eu também.
- Mesmo tendo ele...
- Mesmo tendo ele feito um convite tão amável assim, nunca mais o procurei nem lhe telefonei. Qualquer dia desses irei a essa igreja. Não fica muito longe daqui - disse Angela lançando rapidamente seu olhar sobre mim. - E tenho certeza de que poderei reconhecer esse jovem sacerdote pela voz.
Era uma voz tão agradável. Então, quando eu for visitá-lo, dar-me-ei a conhecer. Já me propus visitá-lo, mas só irei quando... - Interrompi bruscamente a frase.
- Quando irá visitá-lo?
Ela fitou-me como se estivesse despertando de um sonho.
- Por favor, que foi que você perguntou?
- Você estava dizendo que iria visitar esse padre só quando... Quando irá visitá-lo, Angela?
Passou a examinar-me atentamente como se nunca me tivesse visto antes.
- Não, nada. Vamos parar com essa conversa. Eu mesma não me compreendo. Ninguém conhecia esse fato. Por que será que me dispus a contar-lhe essa passagem da minha vida, Robert? Por quê?
Levantei-me e fui até a balaustrada. Olhei o chão lá embaixo. Realmente era uma grande altura. De repente percebi que Angela estava perto de mim.
- Era ali embaixo que você queria se atirar?
- Sim.
Tentei colocar um braço sobre seus ombros, mas ela esquivou-se, desviando-se rapidamente para o lado.
- Não! Por favor, não!
- Perdoe-me!
- Já são dez horas da noite. Às onze teremos novamente o noticiário. Depois, então, telefonarei a Pasquale. A essa hora certamente ela já...
O telefone tocou na sala. Ela correu para lá e pegou o fone.
Mais uma vez examinei a altura de onde Angela quisera precipitar-se.
A visão noturna daquele chão de cimento com seus canteiros de palmeiras ficara gravada indelevelmente no meu cérebro por toda a minha vida. Angela voltou ao terraço.
- E para você. Lacrosse.
Sua voz, então, soou com um acentuado timbre de preocupação e tristeza. Enquanto eu atendia, ela ficou ali na sala sem poder ocultar sua aflição.
Procuramos você no hotel e em toda parte. Finalmente NE ocorreu que você poderia estar aí no apartamento de Madame Delpierre.
- Aconteceu algo?
- Sim.
- O quê?
- Pelo telefone não posso explicar. Será que você não poderia dar uma chegadinha aqui imediatamente?
- Eu. .. Sim, é claro. Você está aí no seu gabinete?
- Sim.
- Vou logo! - disse, e coloquei o fone no gancho.
- O que há? - perguntou Angela, aproximando-se de mim.
- Ainda não sei. Devo ir agora ao antigo porto. Está disposta a fazer-me essa grande gentileza de organizar o party com sua amiga?
- Sim, Robert - respondeu-me, sorrindo alegremente.
- Coloque de novo a máscara na sua face.
- Sim, a máscara. O meu semblante asiático. Se for um assunto muito importante, telefone-me ainda hoje. Colocarei o telefone ao lado da minha cama.
- Mas eu acho que não devo... Minha conversa com Lacrosse poderá levar horas...
- Não importa. Você tem que me telefonar!
- Mas por quê?
- Porque se trata de um caso que diz respeito a você. Trata-se de algo com que você tem a ver. E por isso que você se encontra nesta cidade. E quero ficar a par de tudo o que se passa com você.
Dirigiu-se imediatamente ao telefone e começou a discar um número.
- Vou chamar um táxi.
Depois que telefonou ela me acompanhou até a porta. A partir desse instante tornou-se novamente impenetrável, reservada e inacessível como nas primeiras horas em que conversei com ela. Naturalmente, ela não desceu comigo pelo elevador. Despediu-se de mim na porta do seu apartamento. Retirou rapidamente a mão que eu quis beijar. Dessa vez não ficou esperando que o elevador chegasse. Fechou a porta imediatamente.
Quando saí do edifício, o táxi ainda não se encontrava ali. Tive que esperar. Do bolsinho da camisa tirei o maço de cigarros. Então notei que ali estava também um cartãozinho. Era o que eu havia mandado a Angela, contendo os dizeres: "OBRIGADO POR TUDO". Riscou a última palavra do texto, colocando outra em seu lugar.
Fiquei parado debaixo da lâmpada na entrada do edifício e acendi um cigarro. Enquanto soltava baforadas de fumaça, examinei detidamente o cartão.
Eu havia escrito: "Obrigado por TUDO". Com a alteração que Angela fez ficou: "Obrigado por NADA". Só podia ter sido no momento em que eu telefonava que ela colocou o cartão no meu bolso.
Capítulo 31
Ele estava caído no chão do laboratório, numa enorme poça de sangue. Seu rosto estava todo arrebentado e espatifado. Encontrava-se estendido de lado. O que faltava do seu rosto achava-se atirado pela sala em forma de fragmentos de ossos, pele, músculos e sangue. O sangue, então, escorrera em grande quantidade e manchava sua camisa, a calça, os cabelos, braços e mãos.
Fiquei parado ali observando horrorizado aquilo que antes fora um homem. O pobre Louis Lacrosse, de semblante triste, permanecia ao meu lado. Foi ele quem me introduziu naquela sala em que se viam muitas prateleiras, mesas cheias de aparelhos, bicos de Bunsen, produtos químicos e microscópios.
Diversos homens usando só calça e camisa se movimentavam de um lado para outro fotografando o cadáver e cobrindo com pó de grafite mesas, prateleiras e aparelhos, a fim de colherem impressões digitais.
Estavam ali seis homens fazendo esse serviço. Fazia muito calor naquela sala com janelas de grade. Não reconheci o morto e perguntei:
- Quem é ele?
- Isso que você está vendo era Laurent Viale! - respondeu-me Lacrosse.
- Deus todo-poderoso! - exclamei.
O que via era o elegante Laurent Viale, sempre de boa aparência, e que outrora, durante algum tempo, fora o amante de Angela, tendo permanecido depois seu amigo, fiquei, em seguida, com meu pensamento concentrado em Angela, imaginando como ela receberia a notícia.
- Encontrei-me com Viale pouco depois do meio-dia lá no Félix - disse eu a Lacrosse.
- E eu, três horas antes, estive jantando com ele!
Estava pálido e tão nervoso que conservava um cigarro no canto da boca sem acendê-lo.
- Quem teria cometido esse assassinato e de que maneira?
- Com uma pistola de grande calibre equipada com silenciador. Foi um tiro à queima-roupa, bem na nuca.
- Então só pode ter sido alguém que trabalha nesta casa e que conhecia Viale, pois as janelas estão guarnecidas com grade e nos encontramos no primeiro andar.
- É verdade - respondeu Lacrosse, com ar triste e desesperançado. - E isso torna a coisa ainda muito pior. O assassino só pode ser alguém que talvez um pouco antes estivesse conversando com Viale. Mas, em qualquer hipótese, deve tratar-se de um conhecido.
- Como teria entrado no edifício?
- O edifício permanece aberto durante toda a noite. Enquanto Lacrosse falava, seu cigarro subia e descia no canto da boca.
- E os vigias? - interroguei.
- O que está pensando? Já lhe disse que dispomos de pouca gente. Os que não se acham escalados para os serviços de prontidão dormem fora. Alguns trabalham no meu gabinete. Seria muito fácil para qualquer pessoa que conhecesse Viale penetrar nesta sala. Eu próprio entrei aqui há uns três quartos de hora porque queria saber em que pé estavam as investigações de Viale. Fui eu que o encontrei morto. Telefonei imediatamente à Polícia Técnica de Nice, pois um caso dessa natureza ultrapassa o âmbito das minhas atribuições. A coisa está se tornando cada vez mais complicada. O Comissário Jacques Roussel já se encontra aqui e está inquirindo algumas pessoas, bem como procurando testemunhas. Graças a Deus, veio acompanhado de alguns elementos da polícia.
Um dos homens virou o cadáver de costas a fim de examiná-lo. Era um homem de cabelos grisalhos e usava óculos.
- Dr. Vernon, médico-legista aqui em Cannes - disse-me Lacrosse apresentando o homem.
O Dr. Vernon inclinou-se para mim alegre e aparentando boa disposição de espírito. Imediatamente começou a cravar pinças naquela massa pastosa de carne e pele estraçalhada que fora antes o rosto de Laurent Viale, talvez até mesmo sua boca, que Angela tantas vezes beijara.
Nesse instante uma enorme mosca pousou sobre aquela massa empapada de sangue. O Dr. Vernon deixou-me afugentá-la. Começou a mexer naquilo que sobrara da cabeça de Viale, pondo a mão na nuca espatifada e empapada de sangue.
- Aqui está, criança! - disse ele dirigindo-se a Lacrosse. - Foi aqui o ponto do impacto da bala. Orifício de entrada pequeno. O rosto é que ficou espatifado. Não há dúvida de que foi uma bala dun-dum.
- Viale provavelmente estava sentado lidando com algum aparelho de pesquisa - comentou Lacrosse. - O assassino devia estar postado de pé atrás dele. Viale teve uma bela morte! Antes mesmo de dar-se conta de algo, já estava no outro mundo. Que eu também possa morrer assim quando chegar minha vez!
- Eu pensava que balas dun-dum existissem somente para espingardas ou fuzis.
- Existem também para pistolas, meu filho.
Sem dúvida fazia muito tempo que o Dr. Vernon era médico-legista em Cannes. Ele não se surpreendia com coisa alguma nem se deixava enganar. Tratava-se de um homem difícil de ser ludibriado pelas aparências, pois se tornara, por assim dizer, imune ao sentimento de espanto e de terror ante a contemplação de cenas como essa. Já estava afeito a examinar casos assim com a maior naturalidade. Parecia até um tipo esquisitão. Ou será que esse seu comportamento alegre e despreocupado, com espírito de criança, não passava de uma simulada encenação para proteger-se contra algo capaz de afetá-lo e de abalar a sua posição? Algo que ele sentia andar rondando por perto?
- Aproxime-se com a caderneta de anotações, criança! - grasnou o Dr. Vernon, e, sempre conservando o espírito divertido, começou a ditar com rapidez os resultados do exame ao seu assistente, que estenografava as suas palavras.
- Mas por que foi cometido este crime? - interroguei. - Deve ter havido algum motivo.
- É claro! - respondeu Lacrosse. - Lamentavelmente um motivo bem ponderável que se pode verificar aqui mesmo!
- Poderia dizer-me qual?
- Observe bem essas prateleiras!
Lancei os olhos para a prateleira que, na manhã desse mesmo dia, conforme eu verificara, se encontrava cheia de fragmentos, destroços, pedacinhos de fios e peças côncavas de ferro que pertenciam àquele engenho infernal e que haviam sido colhidos no local da catástrofe. Agora a prateleira estava completamente vazia.
- Quem esteve aqui levou embora todo esse material - prosseguiu Lacrosse. - E não foram só os fragmentos e destroços que foram retirados, mas também as anotações e apontamentos que Viale havia tomado. Hoje, depois do meio-dia, observei que essas anotações, inclusive croquis, se encontravam sobre a mesa. Agora não se vê mais nada aqui!
- Mas é preciso considerar que havia aqui um montão de coisas - observei. - O indivíduo teria que transportar um grande peso...
- O assassino deve ter levado tudo dividido em três partes. Provavelmente colocando cada parte dentro de malas e transportando uma de cada vez. Talvez tenha agido só, mas também pode ter tido cúmplices.
- Foi um trabalho arriscado.
- Certamente. Nós aqui estamos lidando com uma espécie de gente que não se apavora diante de nada. Lembra-se do que lhe disse quando conversamos pela primeira vez?
Nesse instante entrou um homem corpulento que, por causa do seu tamanho, caminhava um tanto encurvado. Trajava uma roupa tropical e não usava gravata. Tinha as sobrancelhas espessas e cabelos brancos ondulados. Seus olhos pareciam fincados num rosto estreito e dotado de expressão enérgica.
- Este é o Comissário Jacques Roussel da Polícia Técnica de Nice - disse Lacrosse, fazendo nossa apresentação.
Roussel era o oposto de Lacrosse: enérgico, inflexível e corajoso.
- Bela porcaria, não é verdade?
- Sim - respondi.
- Hei de agarrar o assassino, de qualquer maneira! - bradou Roussel. - Seja lá quem for esse cachorro de merda, esse amaldiçoado, ele cairá nas minhas unhas. Para mim pouco importa que estejam envolvidos nesse caso sujeitos ricos. Podem até ser os donos do mundo! Eles não têm o direito de se julgar melhores do que qualquer miserável vagabundo que anda aí pelas ruas.
- Mas eles se julgam melhores! - retrucou Lacrosse.
- E são poderosos! Você nem imagina como eles têm poder.
- Poder uma merda! Já me comuniquei por telefone com a polícia política e com a polícia de controle da economia. Já consegui pôr essas duas organizações em ação. Alguns funcionários delas estão vindo para cá.
- Então teremos também um grande barulho, um grande escândalo - disse Lacrosse.
- E daí? Não aconteceu um crime aqui? E, se não me engano, pouco tempo antes houve outro crime hediondo em que perderam a vida doze pessoas. Pois bem, se minha memória não anda muito fraca e estragada, parece-me que existe uma conexão direta entre os dois crimes. Aqueles po-bres-diabos que estavam no Moonglow, fazendo parte da tripulação do iate, não eram milionários, Louis. Eles eram uns coitados que tinham suas famílias, como eu e você. E, agora, suas famílias não têm mais quem as sustente. Quero ser amaldiçoado se calar o bico de medo de tornar-me malquisto pela minha atitude! Que diz, monsieur?
- Eu também quero ser amaldiçoado se tiver medo de prosseguir minhas investigações - respondi.
- Você! Você não vive aqui em Cannes - concluiu Lacrosse, falando baixinho.
Roussel pôs a mão nos ombros dele.
- Viale deixou neste mundo sua mãe - prosseguiu Roussel. - Ela vai receber uma pensão. Você bem sabe que quantia miserável ela receberá mensalmente. Pense na mãe de Viale, Louis. Suponha que ela fosse sua própria mãe.
O homenzinho de semblante triste repentinamente sofreu uma transformação. Começou a falar com desenvoltura e então todo o seu ódio recalcado pelas repreensões, submissamente engolidas a seco durante dezenas de anos, explodiu naquele instante como que numa impulsiva exaltação de ânimo.
- Você tem razão, Jacques! Tenho sido até agora um porco covarde. Mas de agora em diante não o serei mais! Quem cometeu esse crime terá que pagar. E bem caro. (Lacrosse encarou Roussel.) Agradeço-lhe por suas palavras.
- Muito bem! Estou gostando - retrucou Roussel. Nesse instante entrou um funcionário perguntando:
- Monsieur Lucas está aqui?
- Sou eu! - respondi. - Que é que há?
- Um telefonema do Majestic. Chegaram dois telegramas urgentes para o senhor.
- De momento não estamos precisando de você aqui - disse Roussel. - Se quiser ir até o hotel...
- Preciso ir. Devem ser telegramas do meu chefe.
- Sem dúvida. É agora que a coisa vai pegar fogo! - comentou Roussel.
Naquele momento nada podíamos prever ainda, mas ele estava fazendo um prognóstico acertado.
Capítulo 32
Os dois telegramas eram de Gustav Brandenburg. Pedi ao porteiro que me entregasse a chave do meu cofre, que se encontrava na caixa-forte da portaria. Retirei o código secreto de telegramas e, sentando-me ali mesmo no saguão, a uma pequena mesa, comecei a decifrar as duas mensagens.
Na primeira, ordenavam-me que tomasse o primeiro avião que deveria partir para Düsseldorf domingo de manhã e que me apresentasse imediatamente no gabinete de Brandenburg para receber instruções. A segunda mensagem dizia textualmente:
"PROTEJA POR TODOS OS MEIOS O PERITO E O MATERIAL DESTINADO AO EXAME".
Este último telegrama havia sido entregue às dezenove e quarenta e cinco. Se me encontrasse no hotel a essa hora e tivesse lido essas instruções, provavelmente Viale não teria sido assassinado. Esse foi o primeiro pensamento que me ocorreu, mas depois de refletir um pouco cheguei à conclusão de que não dispúnhamos de meios para protegê-lo. Poderíamos, todavia, ter salvo o material destinado ao exame pericial.
Como pôde Brandenburg saber tanta coisa a respeito do caso?
Queimei os dois telegramas e coloquei as cinzas num cinzeiro. Guardei de novo o código secreto de telegramas no cofre alugado, onde eu colocara, também, o meu passaporte e todo o meu dinheiro. Depois comuniquei ao porteiro que eu deveria viajar a Düsseldorf na manhã seguinte, mas que continuaria com o quarto.
- Já está tudo resolvido, monsieur. O senhor continuará com o quarto, pois em breve estará de volta.
- Como é que você sabe?
- Nós também recebemos um telegrama. Entregou-me um envelope dizendo:
- Aqui está sua passagem. Mandamos reservar-lhe um lugar no avião da Air-France que partirá de Nice às nove e quinze. O aparelho fará escala em Paris e deverá chegar a Düsseldorf às doze e vinte e cinco. Debitaremos todas essas despesas na sua conta.
Agradeci-lhe, entreguei-lhe a chave do cofre e fiquei observando-o até que ele a guardasse novamente na caixa-forte da portaria. Em seguida, tomei o elevador e subi ao meu apartamento. Tirei a roupa e tomei um banho com água fria e quente. Na sala encontravam-se os pacotes com as roupas que havia comprado. Completamente nu, abri os pacotes e fiz as malas, guardando tudo direitinho. Deixei fora da mala, para usar no avião, aquela roupa leve de cor bege e uma das gravatas escolhidas por Angela.
Atirei-me na cama. O sono não vinha. Liguei o rádio que estava na mesinha-de-cabeceira. Uma voz feminina cantava: "Elle est finie Ia comédie..." Desliguei logo. Olhei o relógio: eram duas e vinte da manhã. E eu não tinha dormido nada ainda, só ficara me virando de um lado para o outro na cama.
A campainha do telefone tocou. Era Angela.
- Eu já havia telefonado antes mas você não estava. Que... que foi que aconteceu, Robert? Algo ruim?
- Sim. Algo terrível.
- O quê? Contei-lhe tudo.
Seguiu-se um prolongado silêncio. Eu estava curioso para verificar sua reação ante o impacto da notícia. Finalmente, ela começou a falar em voz baixa:
- Ele era uma boa pessoa. Depois de termos vivido juntos por pouco tempo, muito pouco mesmo, nos separamos, ficando amigos, mas amigos verdadeiros, sem nenhum ressentimento recíproco. Estou muito triste com a morte dele. Como ele gostava da mãe! Irei amanhã cedo à casa dele para cuidar da pobre velhinha. Agora ela está completamente só neste mundo.
- Por que você me telefonou antes?
- Porque... Bem, a vida terá que continuar, por espantoso que pareça, não é verdade? Telefonei para comunicar-lhe que minha amiga Pasquale terá imenso prazer em convidar todas aquelas pessoas para um jantar. Depois de amanhã. Às oito horas da noite. Está bem?
- Muito bem! Mas... espere um pouco! Eu amanhã, isto é, hoje, terei que viajar a Düsseldorf.
- Por quanto tempo?
Santo Deus! Não havia pensado na possibilidade de uma permanência prolongada em Düsseldorf e meu coração começou a bater aceleradamente.
- Não sei ainda. Mas não deve ser por muito tempo. Caso eu não possa regressar até depois de amanhã, telefonarei ainda a tempo de adiar esse jantar. Mas espero estar de volta logo.
- Você vai a Düsseldorf por causa da morte de Viale?
- Também por causa disso.
- A que horas sai o avião?
- Às nove e quinze. De Nice.
- Então às oito em ponto estarei em frente ao hotel para levá-lo ao aeroporto.
- Não é preciso! Tomarei um táxi.
- Você não tomará táxi algum. Às oito horas estarei aí. Boa noite, Robert!
- Boa noite, Angela. E muito obrigado!
Mas a noite não foi nada boa para mim. Vesti o roupão e fui postar-me à sacada do quarto. Fiquei sentado fumando um cigarro após outro. Eu estava muito nervoso e não conseguia dormir. Às quatro e meia da madrugada, sobre o mar, o céu já começava a ser inundado pela claridade e de minuto a minuto se tingia de novos matizes. O movimento na Croisette estava bem calmo e no hotel tudo era silêncio. Às quatro e cinqüenta e cinco o telefone tocou novamente. Era Angela outra vez.
- Você não está conseguindo dormir, não é verdade, Robert?
- É verdade!
- Eu também não consigo.
- O pobre Viale não me sai da cabeça.
- Mas o pobre Viale não será a única vítima! - disse-me ela. - E você sabe muito bem disso.
- Sim, sei.
- O que você estava fazendo no momento em que o telefone tocou?
- Estava sentado na sacada do quarto contemplando o céu, que, com a aproximação do dia, vai se tingindo de novos matizes a cada instante.
- Engraçado!... Eu estava fazendo a mesma coisa. Estava sentada no terraço contemplando o céu. Seu telefone tem um fio bem comprido?
- Sim. O fio é relativamente comprido.
- Então pegue o aparelho e volte de novo à sacada. Ficaremos contemplando o céu.
- Você já está sentada?
- Sim.
__ Agora estamos olhando o céu.
- É mesmo!
Ficamos em silêncio. No aparelho ouvia-se um ruído semelhante ao farfalhar da folhagem seca. O céu, que no início estava cinzento, passou a tomar a cor da areia da praia. Depois de um certo tempo adquiriu a tonalidade ocre, que se transmutou num verde-maçã. Não levou muito tempo e surgiu um tom dourado, que foi ficando cada vez mais intenso. Os edifícios brancos, na Croisette, cintilavam imersos nessa dourada claridade matinal.
Durante o tempo em que fiquei sentado na sacada, com o fone encostado ao ouvido, Angela permaneceu também no terraço do seu apartamento. Não pronunciamos uma palavra sequer. Eis que o sol, agora, parecendo emergir do mar, começou a tingir o horizonte de um vermelho sangüíneo bem vivo.
- Então, até as oito! - disse Angela e desligou o aparelho.
Capítulo 33
Ela foi pontual. Eu estava trajando a roupa bege e usando os sapatos marrons. Levei somente a mala de viagem de couro macro.
A essa hora da manhã não havia ainda grande movimento nas ruas. O carro podia rodar bem ligeiro. Fazíamos nosso percurso seguindo pelo lado do mar. Observávamos a areia da praia e os rochedos. Víamos as inúmeras casas onde se preparavam saborosíssimas refeições. Pouca gente transitava por ali quando passamos. Durante todo o percurso não dissemos senão algumas palavras.
Angela usava uma calça branca e estava sem maquila-gem. Estacionou o carro na frente do edifício do aeroporto e depois acompanhou-me até o guichê. Não tirava os olhos de cima de mim, mas não falou uma palavra. Só no momento da despedida foi que abriu a boca para dizer-me:
- Estarei lá em cima, na segunda sacada - e saiu imediatamente.
Dirigi-me então ao setor de controle alfandegário. Depois tive que me submeter ao exame radioscópico, pois os seqüestras de avião estavam muito em moda. Finalmente, atravessando a pista de aterrissagem, chegou o veículo que deveria conduzir os passageiros até o avião, cuja saída já havia sido anunciada, Virei-me e vi Angela na sacada do segundo andar. Ela se encontrava ali quase sozinha e acenou-me sorrindo. Nesse instante comecei a pensar nas palavras que o padre lhe dissera naquela noite e na máscara que, conforme ela própria afirmava, via-se forçada a usar constantemente. Eu também correspondia aos seus acenos e sorria para ela, forçando o sorriso com a boca torcida. Ela não parava de sorrir e de acenar-me. Meu pé esquerdo começou a doer. Fui o último a entrar no veículo, que arrancou logo, avançando na direção do avião. Ao descer do carro, consegui ainda uma vez avistar Angela com sua roupa branca. Eu lhe fazia acenos a que ela correspondia com os dois braços levantados. Ficamos acenando um para o outro até que a aeromoça pediu que eu entrasse no avião.
O aparelho decolou e, com acentuada inclinação, atingiu as alturas, começando a sobrevoar o mar. O aviso "NO SMOKING" já se havia apagado. Enfiei a mão no bolso para tirar os comprimidos. Senti na ponta dos dedos um objeto duro. Puxei-o para fora. Era um daqueles elefantinhos engraçados feitos de ébano que eu havia admirado quando vi a coleção de Angela. Ela, ocultamente, o colocara no meu bolso naquela manhã.
Angela...
Pareceu-me vê-la na minha frente. Seus olhos! Aqueles seus olhos maravilhosos! O sol forte começou a bater na janelinha do avião, ofuscando-me a vista. Fui forçado a cerrar as pálpebras. E, então, pareceu-me ver, com mais nitidez nos seus contornos, os olhos de Angela. Eu segurava bem apertado na mão o pequeno elefante.
O avião, nesse momento, descrevia uma curva tomando a direção norte. Meu pé esquerdo continuava doendo.
Capítulo 34
Chovia em Paris. Em Düsseldoif também chovia.
O tempo estava ruim. Eu sentia frio. Mais uma vez estava trajando roupa inadequada.
Em Paris a escala foi muito curta, mas em Düsseldorf telefonei para Angela do aeroporto Lohausen, onde o avião aterrissara.
Através do sistema de discagem direta, foi rápida a ligação Ela atendeu logo. Sua voz parecia sufocada.
- Alô!
- É Robert que está falando.
- Você chegou? Graças a Deus!
- Eu... eu quero agradecer-lhe o elefantinho, Angela. Você nem imagina qual foi minha alegria com esse presente... Uma alegria bem grande, creia-me. Estou segurando-o neste momento.
- Esse elefantinho vai trazer-lhe muita sorte - respondeu Angela, e só então me dei conta de que, embora estivesse falando em francês, ela me respondia em alemão. Exclamei admirado:
- Você está falando alemão!
Angela, parecendo ter ficado um tanto constrangida, respondeu-me:
- Sim. E peço-lhe perdão, Robert.
- A mim? Perdão? Por quê?
- Por... por ter me comportado como uma verdadeira estúpida. Tenho refletido bastante sobre minha atitude. Certamente nem todos os alemães foram soldados por prazer. E não creio que todos os alemães tenham sido nazistas.
- Mas em grande parte foram.
- Contudo, não creio que todos tenham sido nazistas - prosseguiu com voz amável. - Você, Robert, por exemplo... Tenho certeza de que você nunca foi nazista.
- Nunca fui.
- E nem serviu como soldado por puro prazer, não é verdade?
- Realmente, por prazer eu nunca teria entrado no exército.
- Foi o que pensei. Portanto eu estava sendo muito injusta com você. Perdoe-me, sim?
- Está bem, Angela! Sinto-me extremamente feliz por te-la encontrado em casa a essa hora e poder ouvir sua voz!
- Eu sabia que você iria telefonar-me logo depois do desembarque. Estava aguardando ansiosamente seu chamado. Eu também queria ouvir sua voz.
- Mas como poderia saber que eu lhe telefonaria?
- Simplesmente porque eu sabia. Por isso quis permanecer em casa. O pobre Laurent Viale será sepultado amanhã cedo. Eles não podem esperar mais tempo por causa do calor, você compreende. Irei daqui a pouquinho à casa da mãe dele.
- Posso telefonar-lhe ainda? Hoje à noite, por exemplo.
- Claro! Telefone, por favor!
Capítulo 35
- Cover... coverage - dizia Gustav Brandenburg, cocando com força a cabeça completamente calva, com o formato de um cubo. - Foi principalmente por isso que mandamos chamar você, Robert.
Meu chefe estava usando uma camisa horrível, dessa vez com listras brancas e laranja. Mascava continuamente a ponta de um grosso havana e comia pipocas que tirava de um saquinho, ao lado do qual, sobre a mesa, se encontravam mais três saquinhos cheios. Ele já estava com a roupa toda suja de migalhas e restos de pipocas. Sua mesa de trabalho tinha um aspecto imundo. Ao seu lado, confortavelmente sentado numa cadeira, encontrava-se um homem de cerca de cinqüenta anos, vestido com elegância, calmo, circunspecto, tendo as maçãs do rosto bem salientes e um semblante que revelava desconfiança. Brandenburg apresentou-me esse homem como sendo o Dr. Daniel Friese, do Ministério Federal das Finanças.
Eu não fazia a mínima idéia dos motivos que o haviam trazido ao gabinete de Gustav Brandenburg. E continuei, mesmo depois da apresentação, sem atinar com a razão da sua presença ali. No gigantesco edifício da Global, nessa tarde de domingo, reinava um silêncio sufocante. Como sempre, era só Brandenburg que estava trabalhando.
Fiz um amplo relato das minhas atividades em Cannes. Os dois homens escutaram-me atentamente sem revelar nenhuma surpresa nos seus semblantes. Davam-me a impressão de já estarem a par de tudo o que se passara em Cannes e de que não esperavam mais nenhuma revelação sensacional além dos fatos por mim relatados. A intervalos, Brandenburg me olhava com atenção - preocupado ou raivoso, não consegui saber ao certo.
- Que foi que lhe sugeriram as palavras "cover" e "coverage"... - comecei falando, mas Gustav Brandenburg interrompeu-me logo, dizendo:
- Espere um pouco, agora! O Sr. Friese veio de Bonn especialmente para presenciar esta nossa conversa.
- Mesmo sendo domingo? Será um assunto tão urgente assim?
- Não há nada mais urgente! - respondeu Friese. Sua voz era agradável.
- O Sr. Friese também está interessado neste nosso caso - disse Brandenburg.
- E muito interessado, creia-me - concluiu Friese. Brandenburg prosseguiu:
- Ele está muito interessado no crime que você está investigando em Cannes, ou seja, no caso da explosão do iate, da morte de doze pessoas ou, melhor dizendo, agora, de treze pessoas, com o assassinato do perito judicial, esse tal... Como era mesmo o nome dele?
- Viale. Laurent Viale.
- ...esse tal Viale. Tudo isso está me cheirando a crime engendrado por questões de ordem financeira. Um crime de natureza essencialmente econômica. Existe aí um imaculado colarinho branco já bem manchado de porcaria. E a porcaria é de tal envergadura que realmente ninguém (nem mesmo eu, por mais trato que dê à bola) pode compreender. O Sr. Friese (e dizer que eu não sabia disso antes!) já há muito tempo vem se interessando em investigar a vida de Hellmann e seus negócios. Agora resolvemos trabalhar juntos. Para que você compreenda com clareza o assunto, bem como as intrincadas circunstâncias que o envolvem, o Sr. Friese vai lhe esclarecer os principais pontos de todo esse enredo. É muito complicado...
- Mas procurarei ser o mais claro e sucinto possível - concluiu o homem que integrava o quadro de categorizados funcionários do Ministério das Finanças em Bonn.
Seu traje elegante e finíssimo denotava o elevado cargo de que estava investido.
- Veja o senhor, Sr. Lucas, não há mistério algum: temos hoje em dia uma inflação de amplitude mundial. Se não formos bem sucedidos em debelá-la, o mundo sofrerá uma verdadeira catástrofe econômica de conseqüências tão terríveis, que só poderão ser comparadas às da Segunda Guerra Mundial.
Ele falava compassadamente, mantendo-se sempre cal-jno e objetivo. Apenas pela observação atenta do seu semblante concentrado era que se podia perceber o estado de agitação que o dominava ao abordar esse assunto.
- Gostaria de declarar-lhe preliminarmente que considero a própria inflação como o mais infame dos roubos que possa haver neste mundo. E a considero o mais infame dos roubos precisamente pelo fato de não se poder tomar medida alguma de caráter legal contra os indivíduos inescrupulosos
- como os envolvidos no caso que o senhor investiga -, os quais consciente, brutal e egoisticamente a utilizam em proveito próprio.
- Você agora tem que lidar com porcos - disse Bran-denburg, levando para a boca a mão cheia de pipocas. - Ou, melhor dizendo, nós, agora, temos de lidar com porcos.
- Mas como surgiu essa inflação com todo o seu cortejo de males de que o senhor acaba de falar, Sr. Friese?
- perguntei enquanto, não sei por que cargas-d'água, comecei a me lembrar do banquinho lá na cozinha de Angela, onde ficara sentado observando-a preparar a salada.
- Veja o senhor - prosseguiu Friese -, em todo o mundo circula atualmente um montante de cerca de setenta bilhões de dólares. Setenta bilhões! Pode imaginar o que significa uma soma tão vultosa assim?
- Na verdade, não.
- É difícil compreender, mas é essa a quantia aproximada que anda em giro pelo mundo. E são esses setenta bilhões de dólares que ocasionam uma grande parte das desgraças da humanidade.
- Antes de prosseguir, poderia o senhor explicar-me a causa dessa inflação? - perguntei.
- Ela é provocada pelos grandes trustes internacionais, pelos banqueiros privados e pelos mais poderosos especuladores que há no mundo. O surto inflacionário resulta, principalmente, dos assim chamados déficit spending dos Estados Unidos.
- Que significa isso?
- Os Estados Unidos estão adquirindo no estrangeiro mercadorias por um valor muito superior ao das suas exportações. Em decorrência desse fato, no exterior vão se espalhando cada vez mais dólares. O dólar ainda é a principal moeda do mundo, mas já faz muito tempo que se acha su-pervalorízada. Os americanos, todavia, só muito contra a vontade a desvalorizam. Qualquer desvalorização do dólar implica evidentemente a elevação do preço do ouro. Esse fenômeno tende a beneficiar a Rússia, que dispõe de imensas reservas em ouro para lançar no mercado quando bem lhe aprouver.
Por isso os cidadãos americanos estão proibidos de adquirir ouro do já reduzido estoque dos Estados Unidos. A nós, alemães, é permitida a compra desse precioso metal. Aos suíços também. Aos americanos, não! E devo frisar de passagem que estou convencido de que, muito breve, teremos uma nova crise do dólar de conseqüências calamitosas. Em tal hipótese, o dólar, com seu lastro desfalcado, simplesmente deverá ser desvalorizado, talvez até mesmo em dez por cento. Mas isso ainda não será o fim da desgraça. A tramóia continuará porque os trustes americanos ou as poderosas empresas multinacionais poderão adquirir aqui na Alemanha, a qualquer momento, a quantidade de ações nacionais que desejarem, mediante operações sobre as quais não incidem despesas apreciáveis. Entretanto, o cidadão americano comum só pode comprar ações alemãs pagando doze por cento de imposto sobre o valor da compra.
- Mas isso é uma grande safadeza! - exclamei.
- Uma safadeza absolutamente legal - emendou Friese.
- Que são empresas multinacionais? - perguntei.
- São organizações que mantêm filiais em todos os países industrializados, não sendo, conseqüentemente, tratadas como empresas estrangeiras. Por outro lado, em hipótese alguma elas podem ser forçadas ao cumprimento de certas normas impostas por esses países. Como já lhe disse, a atividade delas é perfeitamente legal. Legal... enquanto essas nações não procurarem se defender, enquanto nada fizerem para livrar-se dos seus tentáculos. Eu diria até que os governos dessas nações se deixam extorquir pelas empresas multinacionais e fecham os olhos ante a atitude delas. Mas, com relação às atividades privadas de qualquer cidadão estrangeiro, eles estão sempre de olhos arregalados...
- Mas que droga de leis, então, existem nesses países? - interroguei, perplexo.
- Todos os homens são iguais perante a lei - rosnou Brandenburg -, mas acontece que alguns homens são mais iguais do que outros.
- Que fazem, portanto, esses setenta bilhões de dólares que andam circulando pelo mundo? - prosseguiu Friese com uma conversa já bem afetada de laivos de retórica. - Eles se acham depositados nos bancos para serem aplicados no estrangeiro em grandes empreendimentos, tais como obras públicas, usinas, fábricas, renovação de parques industriais, etc, ou até mesmo no açambarcamento de tais obras.
E esses dólares sempre se deslocam com a máxima facilidade para os países onde as possibilidades de lucro são maiores, como, por exemplo, a República Federal da Alemanha, cuja moeda se encontra estabilizada e oferece um elevado índice de segurança.
"A República Federal da Alemanha goza da fama (injustamente, consoante a minha opinião, mas esse é um outro assunto) de possuir o meio circulante menos suscetível de ser afetado pelas crises, sendo o marco a moeda mais sólida e melhor do mundo. Melhor mesmo do que o franco suíço ou o florim holandês. Assim sendo, quando em algum país se começa a vislumbrar uma situação alarmante - greves, desemprego, elevação do índice salarial, etc. -, os dólares que se encontram ali aplicados são imediatamente transferidos, pelos elementos que dirigem os trustes e os bancos, para outro país onde as perspectivas de segurança e garantia sejam maiores. Trata-se de uma transferência absolutamente legal. Por força de disposição expressa em convênio monetário internacional... revestido, apenas, de uma validade simplesmente formal, já que, na prática, há muito tempo tais normas vêm sendo relegadas ou feridas frontalmente... o Banco Central da República Federal da Alemanha se obriga a acatar a transferência de qualquer montante em moeda estrangeira. Desse modo, vão entrando continuamente bilhões de dólares em nosso país. Estou lhe fazendo uma exposição muito sucinta sobre o assunto, mas creio que o senhor me compreendeu, não é verdade?"
- Compreendi perfeitamente.
- Evidentemente o Banco Central deve efetuar a conversão desses dólares em marcos. Para tanto, ele apenas exige que o National Bank americano troque a importância equivalente a esses dólares, caso seja solicitada, por ouro. Contudo, essa prática, hoje em dia, se torna impossível, pois já faz muito tempo que os americanos não trocam papel por ouro.
- Tudo legal. Absolutamente legal! - gaguejou Brandenburg e começou a rolar o charuto na boca, de um canto para o outro. Sob suas axilas já se haviam formado duas manchas de suor, embora o tempo estivesse bem fresco em Düsseldorf. Nada afeta a saúde desse sujeito, pensei comigo mesmo. Por que será que a mim tudo faz mal?
- Sim, absolutamente legal. Mas notem bem: essas constantes trocas implicam inevitavelmente o aumento da quantidade de marcos postos em circulação.
Explicando de maneira grosseira, podemos dizer que o Banco Central se vê forçado a fabricar cada vez mais dinheiro. Eis aí, portanto, o começo do processo inflacionário. Se fosse suspensa essa fabricação de dinheiro, como se fez há tempos, por ocasião da assim chamada agitação de julho, evitaríamos a inflação. Entretanto, o governo, ao invés de refrear essa emissão descontrolada, continua pondo mais dinheiro em circulação. É claro que, para evitar esse surto inflacionário, seria preciso incrementar a produção de mercadorias, de modo a fazer prevalecer a oferta. Contudo, um incremento de produção de tal vulto não pode processar-se assim da noite para o dia. Conseqüência:, destrói-se o equilíbrio entre a procura de mercadorias e a oferta de dinheiro, fenômeno esse que implica obviamente uma redução do poder aquisitivo da moeda. Por isso o custo de vida sobe constantemente. Acho oportuno esclarecer, neste ponto da nossa conversa, que tanto os operários como os empresários, na sua qualidade de principais elementos da sociedade em que vivemos, são impelidos a girar nessa curva inflacionária.
Comecei a pensar naquela velha que encontrara na farmácia:
"Tudo está ficando cada vez mais caro. Simplesmente tudo. O leite, a manteiga, o pão, a carne, os selos do correio, o transporte do lixo, seja lá o que for que o senhor disser. Ah, meu Deus, e a Luisenhohe! E só existe maldade e mais maldade entre os homens..."
- Mas esse crescente desequilíbrio entre salário e custo de vida não deixa de ser um grande absurdo - argumentei.
- Sem dúvida - respondeu-me Friese delicadamente. - Mas também deve-se dizer que estamos vivendo sob o influxo de um domínio econômico estruturado num mundo que se tornou louco. Temos que enfrentar quase permanentemente crises pavorosas, as quais, em última análise, só vêm em detrimento dos indivíduos da classe média, que procuram economizar seus parcos recursos, ao passo que os grandes capitalistas e os super-ricos se beneficiam com tal situação. E tudo o que ficou dito até aqui constitui apenas a primeira parte da desgraça.
"Oh, a infelicidade não vem como a chuva..."
Capítulo 36
- Qual é a segunda parte dessa desgraça? - perguntei.
- Já lhe falei dos setenta bilhões de dólares. Enquanto não são utilizados pelas grandes indústrias financiadas, encontram-se nas mãos de especuladores. Tais especuladores, que existem em toda parte, têm nas suas mãos o controle monetário de todos os países, o que lhes possibilita fazer toda e qualquer espécie de manobra. Dispondo de grandes somas em determinada moeda fraca, digamos, para exemplificar, em libras esterlinas ou em liras, eles procuram, a todo o transe, fazer com que tais moedas se desvalorizem a ponto de valerem menos do que batatas podres. Desse modo, elas são recusadas no mercado internacional. Mas sabe o que significa isso para os especuladores? Eles ofertam vultosas quantias em dinheiro dos países que dispõem de moeda fraca aos bancos nacionais dos países que desfrutam de estabilidade econômica, os quais são obrigados, de antemão, em virtude da disposição da convenção monetária internacional, a adquiri-las, muitas vezes, até por preços mais elevados do que o normal. Com tal manobra, os especuladores adquirem moedas fortes - seja o iene japonês, seja o marco alemão - e se põem ao abrigo de qualquer possível perda decorrente da desvalorização do padrão monetário naqueles países. Mas a ação deles não fica só nisso. Esses indivíduos mandam as empresas filiadas e vinculadas aos trustes por eles dirigidos contraírem dívidas vultosíssimas - num montante que ultrapassa mesmo o limite do concebível - nos países com moeda fraca. Isso provoca inevitavelmente a supressão do crédito na base dessas moedas, que passam a sofrer progressivas desvalorizações. Todas as importações feitas por esses países terão que ser liquidadas, então, exclusivamente com moedas fortes. As empresas multinacionais são dotadas de uma sólida estrutura e dispõem de bilhões de dólares. Elas representam realmente um importante fator de potência, capaz de compelir os governos e os bancos emissores a transacionar com elas, mesmo efetuando negócios prejudiciais e nocivos.
- Prejudiciais e nocivos para os seus queridinhos da gente do povo! - rosnou Brandenburg.
- A desvalorização da moeda e a inflação nunca afetam os grandes - prosseguiu Friese -, mas exclusivamente os pequenos. Eles é que têm que suportar as conseqüências das medidas de proteção que o governo se vê obrigado a pôr em prática através do Banco Central. Mas os atos que esses especuladores praticam de forma alguma podem ser combatidos por medidas de natureza jurídica, pois trata-se de atos legais, absolutamente legais na sua configuração. Que adianta sabermos que são atos criminosos, amorais e indecentes? Em nada eles se contrapõem a normas legais expressas. E são exatamente esses atos que mais cedo ou mais tarde nos levarão à ruína, a uma verdadeira derrocada. O caso em que o senhor está trabalhando, Sr. Lucas, é bem típico. Por isso é que o Sr. Kessler também está aqui.
- Quem?
- O Sr. Otto Kessler. É o funcionário do ministério que há mais tempo vem se dedicando à perseguição dos indivíduos que operam ilegalmente em câmbio e sonegam impostos. Ele está esperando na sala ao lado. Quis prestar-lhe preliminarmente esses pequenos esclarecimentos a fim de que o senhor possa compreender melhor o que ele vai lhe dizer.
Brandenburg comprimiu o botão de um alto-falante. Sua secretária, sempre digna de lástima pelo chefe que tinha, acompanhava-o nesses trabalhos especiais fora de horário.
- Às suas ordens, Sr. Brandenburg!
- O Sr. Kessler pode entrar - gaguejou Brandenburg. As cinzas do charuto caíram sobre sua camisa, mas ele nada notou.
A porta se abriu. Surgiu um homem com os cabelos bem ralos, de um louro vivo, e uma cicatriz no lado esquerdo da testa. Era o mesmo homem que naquele baile de gala realizado no Majestic estivera sentado ao meu lado, no bar do1 hotel, espreitando minha conversa com Nicole Monnier, que depois desapareceu.
Exatamente o mesmo homem era quem agora se encontrava na minha frente!
Encarei-o. Otto Kessler acenou-me ligeiramente.
Capítulo 37
A voz de Kessler soava com um timbre muito diferente do da voz de Friese. Ele falava depressa. Revelava-se frio e enérgico. Notava-se logo que era um indivíduo autoritário e habituado a ter êxito nos seus atos. Já estava beirando os cinqüenta, mas aparentava ter menos idade.
- Então? Estamos nos revendo, não é verdade?
- Estive em Cannes durante algumas semanas, com algumas interrupções - explicou-me Kessler, o perseguidor dos sonegadores de impostos, um verdadeiro ás do Ministério das Finanças. - Estava hospedado no Carlton. Evidentemente não podia me dar a conhecer.
- Claro que não! Aquela moça que estava sentada comigo lá no bar...
- Desapareceu. Com o seu cáften. Eu sei. Já sei tudo o que lhe aconteceu, Sr. Lucas.
- Mas o que o senhor estava fazendo em Cannes?
- Estávamos investigando os negócios do banco de Hellmann, um dos mais conceituados e mais conhecidos bancos particulares da República Federal Alemã. Naturalmente temos trabalhado junto com funcionários do serviço de repressão de outros países. Trocávamos informações. Já faz muitos meses, talvez mesmo anos, que vimos nos ocupando com Hellmann, procurando investigar suas transações com um tal John Kilwood, um americano.
- John Kilwood... Não é um dos que foram a Cannes para, segundo consta, comemorar o aniversário de Hellmann, que iria completar sessenta e cinco anos?
- É ele mesmo. Esse indivíduo, no nosso caso, é o mais perigoso - disse Kessler batendo com as falanges dos dedos na mesa, coisa que ele fazia maquinalmente com muita freqüência e que já se tornara um hábito desagradável.
Tirou do bolso uma caderneta de anotações e começou a ler: "John Kilwood. Divorciado pela terceira vez. Sessenta e dois anos de idade. Filhos vivos: cinco. Instrução: Yale University. Atividade comercial: Kilwood Oil Company, com diversas empresas subsidiárias. Estimativa do seu patrimônio: de setecentos milhões a um bilhão de dólares".
- Que Deus o abençoe! - exclamou Brandenburg.
- Deus já o abençoou - retrucou Kessler, sem tirar os olhos de cima da caderneta de anotações, que continuou a ler: - "Kilwood possui casas, terrenos e apartamentos em Beverly Hills, na Flórida, nas Bahamas, na França, na Suíça, em Mônaco, em Liechtenstein e na Inglaterra. Neste último país ele é proprietário de um verdadeiro castelo. Possui dois aviões, ambos Boeing 702. É dono de um luxuosíssimo apartamento em Nova York, localizado no Edifício United Nations Plaza".
Depois de lidas essas anotações, Friese prosseguiu:
- A Kood-Oil, uma das empresas de Kilwood, opera na Europa, especialmente aqui na Alemanha, sem render muito lucro.
- Onde fica, então, o lucro dessa empresa? - perguntei.
- Lá onde John Kilwood quer que ele fique. Nos países onde a incidência de impostos é baixa.
Kessler virou a página da sua caderneta e perguntou-me:
- A Kood lhe é bem conhecida, não é verdade?
- E quem não a conhece?
Com uma fábrica de montagens em Schwarzwald, com fábricas espalhadas por toda a República Federal Alemã, com pujantes empresas fornecedoras no exterior, a Kood é indiscutivelmente uma das maiores fabricantes de aparelhos eletrônicos do mundo. Ela faz instalações de radar e fabrica aparelhos de televisão, bem como peças e acessórios para os dispositivos de transmissão via satélite. Fornece ao governo americano aparelhos a serem utilizados no seu programa espacial. Nada há no campo da eletrônica que a Kood não possa produzir.
Depois de uma certa pausa, Kessler prosseguiu, demonstrando, pelas suas palavras, ser dotado de aptidão e inteligência:
- Essa Kood, ou seja, essa fábrica instalada em Schwarzwald desde 1948, era uma organização industrial na qual trabalhavam, no máximo, duzentos operários. Hoje em dia, em todo o mundo, a Kood ocupa cerca de três quartas partes de um milhão de pessoas, sem contar suas empresas fornecedoras. Depois de tudo isso que lhe expus, não sei se lhe causarei espanto afirmando-lhe que, na sua maior parte, a Kood pertence a John Kilwood.
- Não. Realmente essa afirmativa já não me surpreende.
- Em 1948 pagávamos pelo dólar, com base numa taxa de câmbio não muito justificada, quatro marcos e vinte Pfennige. Atualmente o dólar pode ser adquirido por três marcos e dezenove Pfennige. Deve-se dizer que essa taxa ainda é muito elevada. Naquela época, entretanto, lá por 1948, os capitalistas americanos, como é óbvio, compravam ou até mesmo açambarcavam tudo o que podiam aqui na Alemanha. Foi aí que Kilwood adquiriu a pequena fábrica de Schwarzwald, a qual, com o correr dos anos, se transformou na poderosa Kood. Suponho que o Sr. Diretor Ministerial Friese lhe tenha esclarecido a maneira pela qual essa gente opera, que é sempre legal, absolutamente legal.
- Sim, o Sr. Friese já me esclareceu esse aspecto.
- Muito bem. Quanto calcula o senhor que a Kood, essa empresa industrial monstro, obtém anualmente de lucros aqui na Alemanha?
- Muitos bilhões! - respondi.
- Esta é a nossa estimativa - respondeu Kessler com um sorriso amarelo. - E o senhor sabe quanto ela paga de impostos? O senhor vai rir: nada! Na Alemanha, absolutamente nada!
Capítulo 38
- Mas como é possível? - perguntei, tendo a impressão de que eu era um verdadeiro idiota.
- Não há dificuldade alguma para que organizações desse tipo procedam assim - respondeu Friese, intervindo na conversa. - A Kood efetua suas vendas através de um comitente em Liechtenstein, o paraíso das facilidades fiscais, onde os impostos são diminutos. Grandes firmas canalizam diretamente seus lucros para aquele ducado. As faturas e notas são remetidas, via Liechtenstein, às Bahamas, onde também não incide nenhum imposto excedente. Desse modo os lucros de bilhões, que o senhor supõe, com razão, que a empresa aufira aqui na Alemanha, são embolsados pela Kood - quero dizer por Kilwood - ao se processar o acerto de contas entre Liechtenstein e as Bahamas, mediante cálculos feitos, dessa vez com exatidão, para efeito contábil.
- Creio que é possível, aqui na Alemanha, impedir que uma organização que nunca paga impostos prossiga nas suas atividades - disse eu.
- Essa medida não pode ser posta em prática - respondeu-me Friese -, porque no âmbito das atividades comerciais dessa espécie pode-se dizer que tudo é permitido. Nada se pode fazer contra tais empresas. Entretanto... - Agora Friese, pela primeira vez, alteou a voz. - Entretanto, temos um único meio que nos permite agir corn êxito: se pudermos provar, contra a Kood, qualquer sonegação de imposto ou qualquer irregularidade; então, sim, estaremos em condições de forçá-la a levantar vôo. E é exatamente por tal motivo que Kessler, há muito tempo, se acha empenhado em investigar as transações efetuaias entre a Kood e o banco de Hellmann.
- Mas onde entra Hellmarui nessa história?
- Ah, o senhor não sabe, rão? Hellmann era o banqueiro de Kilwood aqui na Alenanha.
- Lindo, Robert! Esplêncído! Você não acha? - exclamou Brandenburg, estalando a ponta da língua. O charuto dele estava com a extremidaie completamente molhada de saliva, mascada e roíds. Ele: se acomodou na cadeira, apoiando-se nos espaldares JunOT as mãos em frente da sua volumosa pança, numa postua de quem está rezando, e fitou-nos com seu olhar. Com seis olhos de porco, astutos e ladinos.
Capítulo 39
Kessler prosseguiu:
- O que descobri não foi sem muita dificuldade, como o senhor bem pode imaginar. Indaga daqui, indaga dali, sempre aparecem alguns elementos indiscretos que revelam certas particularidades ou que falam até por vingança.
Ele encarou-me. Nos seus olhos azuis não se percebia nenhum vislumbre de sentimento humano. Pela frieza que revelavam, podia-se dizer que seus olhos estavam vitrificados. Assim era Kessler, o ás dos caçadores de sonegadores de impostos. Demonstrava ser dado pelas suas funções no Ministério das Finanças e não as trocaria por nenhuma outra neste mundo.
Kessler retoma o fio da conversa:
- Todas as transferências de fundos em moedas estrangeiras, de que o Sr. Friese lhe falou, eram efetuadas por Kilwood através do banco de Helmann. Fazia mais de vinte anos que Hellmann era seu banqueiro aqui na Alemanha. Kilwood procurara um banco corceituado e de renome. Ele tinha que dar às suas transações uma aparência de total legalidade e de perfeita lisura. E, ia verdade, de acordo com as nossas leis, tratava-se de operações legalmente processadas e impecáveis. Por ocasião de qualquer crise em algum País, Kilwood tratava de transferir imediatamente seu dinheiro para a Alemanha, a fim ce convertê-lo em marcos e fazer investimentos na Kood, conforme ficamos sabendo. Foi assim que a Kood se transformou numa pujante organização Mundial.
Kilwood inescrupulosarnente se valia das perturbações da ordem, das revoluções, dos golpes de Estado, tais como, para exemplificar, a revolução húngara de 1956, a guerra civil em Cuba, o muro de Berlim (não se excluindo, evidentemente, o Vietnam), além de outras centenas de situações análogas, para manobrar com seus dólares e tornar-se cada vez mais rico, com a cooperação do banco de Hellmann. Dessa forma ele também contribuía para aumentar em nosso país o perigo da inflação. E note-se que Kilwood é apenas um dos muitos que adotam tais modalidades de transferência de fundos, sempre perniciosas à nação. Ele sempre fez o que quis, nesse sentido. Hellmann, por seu turno, devia estar sempre com a consciência tranqüila, pois as operações bancárias que ele efetuava eram legais, absolutamente legais. E de maneira absolutamente legal Hellmann veio operando até que se deu o caso com as libras esterlinas.
- Que é que houve com as libras? - perguntei.
- Kilwood previu naturalmente o que iria acontecer na Inglaterra. Ele não só presenciou as greves, o desemprego, o gradativo enfraquecimento da libra, mas também pôde inferir que a Inglaterra, a fim de poder participar de maneira decisiva do Mercado Comum Europeu, forçosamente teria que, mais cedo ou mais tarde, livrar a sua moeda da tenaz que a comprimia e que lhe outorgava um valor já não mais em consonância com a realidade. Mas aqui é que começa a loucura, a gritante loucura de toda essa história!
- Como assim? - interroguei.
- Preste bem atenção! - disse-me Kessler. - Para que o senhor possa compreender esse assunto, devo explicar-lhe preliminarmente como Kilwood deve ter procedido, baseando-me no que ele, em situações análogas, sempre fez. O senhor concorda?
- Claro!
- Pois bem. Kilwood teria que transferir para a Alemanha o saldo do seu depósito em libras, proveniente da venda de dólares que efetuara na Inglaterra. Então ele fez essa transferência para Hellmann, exigindo a respectiva conversão em marcos alemães pela taxa mais elevada que vigorava na época. E, na verdade, não havia nenhum embaraço para a efetivação dessa transferência, pois Hellmann teria a possibilidade de fazer o repasse das libras ao Banco Central Alemão, ainda antes da sua desvalorização. Desse modo ele não sofreria nenhum prejuízo, mas sim o Banco Central, ou, melhor dizendo, todos nós, alemães.
Mais ainda: Kilwood conseguiu do banco de Hellmann um empréstimo em libras antes da desvalorização da moeda. E não foi lá um empréstimo pequeno!
- Mas como poderia ele ter conseguido esse empréstimo? - perguntei.
- Qualquer pessoa merecedora de crédito pode conseguir junto aos bancos alemães empréstimos em libras, em liras, em dólares ou em qualquer outra moeda. Kilwood indubitavelmente já estava contando com a desvalorização da libra.
- Mas agora a taxa da libra já está liberada! - grasnou Brandenburg, com ar de indivíduo corrupto, e começou a limpar os farelinhos de pipoca da calça e da camisa, atirando-os no chão. - A libra, portanto já foi desvalorizada. Uma desvalorização de oito por cento, consoante informações recebidas.
- Isso mesmo, oito por cento _ confirmou Friese.
- E o senhor sabe o que significará isso? - perguntou-me Kessler. Respondi:
- Isso só pode significar que Kilwood, mediante essa troca de libras efetuada em tempo oporuno, não só evitou prejuízos, mas também... ao contrário dos pequenos e médios industriais... obteve lucros maciços é evidente que, agora, ele comprará na Inglaterra com marcos alemães...
- Compraria na Inglaterra - atalhou-me Kessler.
- Como assim?
- Eu já lhe disse que acontece algo de incompreensível, algo que parece loucura! Mas, por favor, repita em linhas gerais as principais seqüências do fato, a fim de que possamos verificar se o senhor realmente compreendeu toda essa manobra.
- Pois não! - respondi em tom, resoluto. - Quando Kilwood, já tendo vendido as libras, efetuasse compras na Inglaterra utilizando os marcos alemães adquiridos, por exemplo, em negócios com a firma inglesa fornecedora da Kood, ele teria que pagar oito por cento menos do que antes.
- Correto!
- E o empréstimo em libras esterlinas que lhe fora concedido pelo banco de Hellmann render-lhe-ia, da mesma forma, um lucro de oito por cento, já que a perspectiva liquidação se processaria após a desvalorização dessa moeda.
- Mais uma vez correto o seu raciocínio! - exclamou o louro e pálido Kessler. - Sr. Lucas preste bem atenção: agora é que vem o fantástico, o inconcebível em toda essa história. O mistério que nenhum de nós conseguiu decifrar. Kilwood, conforme apuramos, processou, por intermédio do banco de Hellmann, a transferência das suas libras, as quais foram convertidas em marcos alemães à taxa em vigência antes da desvalorização. Entretanto, o banco não acolheu ou não obteve nenhum crédito em libras. Muito pelo contrário, em operação quase simultânea, foi o banco de Hellmann que concedeu empréstimo em libras a Kilwood.
- O quê?! - perguntei, perplexo.
- Exatamente o que o senhor ouviu. Hellmann concedeu empréstimo em libras ao invés de obtê-lo!
- Mas isso significa - disse eu, já falando com certo entusiasmo - que Hellmann, quando for liquidado esse empréstimo em libras, terá que receber, pela mesma razão aduzida antes, oito por cento a menos! Mas, nessas condições, ele fez um negócio prejudicial e não lucrativo!
- Sua conclusão está certa! - respondeu-me Friese.
- Realmente, não posso compreender! - disse eu.
- Ninguém pode compreender! - emendou Kessler. - Mas isso não é tudo! O mais fantástico e surpreendente vem agora.
- O quê?
- O banco de Hellmann não repassou imediatamente ao Banco Central as libras compradas, mas reteve-as!
- Reteve as libras?!
- Sim, reteve-as! - repetiu Kessler, dando ênfase às suas palavras.
- Ora, mas isso significa também que Hellmann forçosamente terá um prejuízo de oito por cento sobre o montante das libras transferidas por Kilwood, já que elas não foram entregues ao Banco Central em tempo hábil antes da desvalorização.
- É exatamente como o senhor diz! - exclamou Friese.
- Lindo, não acha? - resmungou Gustav. Kessler prosseguiu:
- O senhor sabe qual é o montante total em marcos dessas operações, abrangendo a transferência feita por Kilwood, bem como o empréstimo que lhe fora concedido?
- Quanto?
- Quinhentos milhões de marcos alemães!! Seguiu-se, então, um prolongado silêncio no gabinete de Brandenburg.
A chuva tamborilava nas vidraças. Como eu gostaria de estar, a essa hora, perto de Angela! Entretanto, despertou em mim nesse instante, como que por efeito de um incontrolável impulso emocional, aquela energia própria de um perseguidor de embusteiros e velhacos, que, com o contínuo exercício das minhas atividades durante quase duas décadas, eu de fato me tornara. Percebi que meu coração batia aceleradamente. Esse era o maior caso de que me incumbira em toda a minha vida.
Quinhentos milhões de marcos alemães, Santo Deus!
Capítulo 40
- O resto da trama é previsível - prosseguiu Kessler, enquanto examinava seus lindos dedos com que tinha o hábito horrível de bater sobre a mesa. - A firma inglesa fornecedora da Kood requeria falência sob a alegação de que Kilwood esvaziara sua reserva em libras de tal modo que ela não mais podia cumprir as obrigações assumidas.
- E o senhor acredita seriamente que Kilwood seria capaz de levar à ruína a sua própria firma?
- Não acredito, simplesmente porque nada sei de positivo ainda. Não posso acreditar no que não sei, Sr. Lucas. Deve-se dizer, todavia, que a firma inglesa só parcialmente pertencia a Kilwood. Ele apenas operava com ela. Em condições idênticas ele já ocasionou a derrocada de dezenas de firmas importantes, esse nosso amigo Kilwood. Depois ele próprio as adquiria dos respectivos donos falidos. E isso ele fazia com o máximo prazer.
Havia momentos em que eu achava muito difícil suportar esse tal Kessler no seu papel de espião desconfiado.
- E se Hellmann e Kilwood tivessem um plano pré estabelecido? - interroguei.
- Que espécie de plano? - retrucou-me Kessler.
- Não sei... Um plano qualquer...
- Nós também nada sabemos sobre isso - emendou Friese.
- E então? - insisti perguntando.
- Assim sendo, nada se pode dizer a respeito - concluiu Kessler. - Existe em toda essa tramóia algo que nunca aconteceu antes, algo que nenhum de nós pode compreender. Hellmann concede empréstimo efetuando uma operação na qual ele forçosamente tem que perder dinheiro. Ele retém as libras esterlinas adquiridas de Kilwood, não as transferindo em tempo hábil ao Banco Central, falha essa que também lhe trará prejuízos de monta.
- Só um estúpido faria uma coisa dessas! - exclamei.
- Não sou lá muito entendido nos assuntos que envolvem a complexidade de profundas teorias no plano do comércio internacional e dos sistemas monetários, mas não acho nada difícil compreender que o banco de Hellmann, nas condições em que se processaram os negócios, terá que suportar um duplo prejuízo, em conseqüência da desvalorização da libra.
- E deve-se dizer que Hellmann não era nenhum estúpido. Louco também não era - concluiu Kessler batendo fortemente com as falanges dos dedos na mesa. - E depois de tudo isso, ele próprio procura eliminar-se numa terrível catástrofe!
- Essa é uma afirmação monstruosa e inconcebível! - exclamei. - Uma atitude dessas por parte de Hellmann, francamente não posso entender!
- Nenhum de nós pôde ainda entender direito. É aí que está o grande mistério! - disse Friese. - Depois que descobrirmos esse mistério, será fácil esclarecer todo o affaire. Mas será que conseguiremos a revelação desse mistério?
- Temos que tentar por todos os meios - respondeu Kessler. - E nossa ação nesse sentido deve ser conduzida com muita firmeza. Devemos nos manter imperturbáveis. O diabo é que Hellmann é quem perde oito por cento sobre esses quinhentos milhões de marcos e não o Banco Central, ou seja, em última análise, nós, o povo alemão. Oito por cento sobre quinhentos milhões correspondem a quarenta milhões de marcos alemães.
- Deus Todo-Poderoso! - exclamei.
- Deus Todo-Poderoso nada! - rosnou Brandenburg.
- Nem mesmo essa quantia de quarenta milhões de marcos seria capaz de ocasionar a ruína de uma organização do porte do banco de Hellmann.
- Isso é verdade! - concordou Kessler. - Contudo, a coisa bem que poderia ter sido planejada com objetivos escusos. O importante agora é descobrir quais teriam sido as razões que impediram Hellmann de garantir-se mediante o repasse imediato das libras negociadas ao Banco Central e de ele ter concedido a Kilwood um empréstimo em libras, quando o lógico seria que ele fosse o favorecido por um empréstimo dessa natureza.
Não há dúvida de que ele deve ter tido razões ponderáveis para assim proceder. Razões muito misteriosas! E digo mais: sejam lá quais forem os objetivos de Hellmann, seu prestígio estava envolvido nessa trama. O prestígio não só de um homem sempre coroado de êxito nos seus negócios, mas também de um homem que era tido como um banqueiro super-honrado. Em todo caso, um fato está comprovado e não deixa sombra de dúvida: Hellmann andava desesperado. Numerosas testemunhas declararam isso. Ele tomou um avião para Cannes a fim de pedir auxílio a Kilwood. Encontrar-nos-emos de novo hoje à tarde e, então, esclarecer-lhe-ei outros pontos importantes, pois, de acordo com o desejo de nossos chefes, teremos que trabalhar juntos nesse caso, daqui para diante.
- Sim, Robert - confirmou Brandenburg. - A di-reção-geral assim o exige.
Como se estivesse rememorando os fatos acontecidos, passei a comentar:
- Era muito constante na conversa de Hellmann o emprego das palavras "cover" e "coverage"... isto é, cobertura. Ele empregava expressões de uso corrente nos meios bancários. Devia estar exigindo cobertura desse prejuízo de oito por cento. Ele pedia, suplicava essa cobertura, mas em vão. Não houve nenhuma coverage.
- O senhor compreende agora por que seu telegrama produziu aqui tão enorme sensação? - perguntou-me Friese.
Respondi-lhe, com certo acanhamento:
- Desse modo conclui-se que foi Kilwood o causador da morte de Hellmann...
- Não foi isso que afirmei! - interrompeu-me Kessler batendo com as falanges na mesa. - Nós nem sequer sabemos se Hellmann deixou de apelar para o Banco Central por estar de fato mal intencionado. Em qualquer hipótese, não há dúvida de que Kilwood lhe negou a coverage. Talvez o próprio Kilwood não tivesse disponibilidade para tanto. Essa suposição, por absurda que pareça, não deve ser rejeitada, pois ele bem que poderia estar, na ocasião em que Hellmann lhe fez o pedido, com seu dinheiro todo aplicado. Talvez ele simplesmente não quisesse ajudar Hellmann. É claro que Hellmann estava envolvido em toda essa trama misteriosa. Pense nessa inconcebível concessão de empréstimo. Tal atitude de Hellmann nos leva a supor que ele talvez tivesse... note bem que eu disse talvez, não estou, portanto, fazendo nenhuma afirmação categórica... maquinado com Kilwood um golpe absurdo e extravagante.
Seja lá como for, o tiro lhe saiu pela culatra.. E sejam lá quais forem as circunstâncias que envolveram o caso, Kilwood negou coverage a Hellmann. Aliás, o senhor mesmo fez essa suposição. Nossa conclusão não pode ser outra senão a de que Hellmann tivera boas razões para assim proceder nos seus negócios com Kilwood, mesmo que não levemos em conta possíveis motivações de ordem humana, ou imposições de amizade. Só sabemos realmente que não houve coverage. Por esse motivo Hellmann perdeu a cabeça. Pensou no seu iate. Para que fosse excluída a idéia de suicídio, levou a bordo também alguns convidados. Ele gozava da fama de ser um ótimo banqueiro e não deixou de pensar nisso. Por enquanto, a tragédia tem a aparência de um assassinato. Mas a reação do público será muito diferente quando souber que o banco de Hellmann se encontrava em sérias dificuldades. Se o público não ficar sabendo de nada, Kilwood entrará com o dinheiro no mais breve tempo possível, e as atividades do banco prosseguirão, tendo oficialmente à testa Hilde dos Brilhantes, herdeira universal do seu falecido irmão, mas na realidade com Kilwood como verdadeiro dono. É assim que imagino o epílogo desse caso, pois estou convencido de que Kilwood sempre desejou possuir o seu próprio banco aqui na Alemanha.
- Eu também estou convencido disso - concordou Friese.
- Eu também - grunhiu Brandenburg, fungando como um porco, pois se engasgara com as pipocas. Cuspiu tudo na concha da mão e depois atirou aquela porcaria na cesta de papéis.
- Pelo que se vê, apenas Kilwood está envolvido! - disse eu.
- Que é que o senhor quer dizer com essas palavras? - interrogou Kessler.
- Quero dizer que, pelo que se vê, nada têm a ver com esse caso aquelas outras pessoas, todas multimilionárias, que foram a Cannes para, segundo consta, festejar o aniversário de Hellmann.
- Eu não consegui obter delas qualquer referência capaz de me fornecer alguma pista - prosseguiu Kessler - e estou certo de que, se elas soubessem algo, não teriam deixado de me declarar, ainda que fosse só para se livrarem de suspeitas. Visitei todas. Não deixei de visitar também Kilwood, aquele velho beberrão.
- Ele bebe?
- Como uma esponja. E, logo que fica bêbado, se torna sentimental e se porta corretamente. No seu estado normal age com brutalidade. Quando se embriaga, fica choroso. Lembra-se daquele filme com Charles Chaplin e o milionário?
Brandenburg toma a palavra:
- Eu tenho um bom nariz para farejar, não é verdade, Robert? Eu não disse a você que se tratava de suicídio e não de assassinato? Agora, por minha causa, já se fala no suicídio de Hellmann e no assassinato de Viale. Nessas condições, nossa companhia não terá que pagar nada!
- Ainda não dispomos de provas suficientes para afirmar isso - retruquei. - Não temos ainda todos os fatos concretos, conforme exige o Sr. Kessler. Precisamos averiguá-los.
- Mas, ora bolas, para que foi que enviei você a Cannes? - berrou ele furioso, com uma voz tão retumbante que os outros dois chegaram a se assustar. - Que diabo o impede de fazer essas averiguações? Encontre de uma vez esses fatos positivos, ora bolas!
Os dois homens do Ministério das Finanças se olharam penalizados.
- Eu faço o que posso, Gustav - respondi. - Ouvi atentamente o relato feito pelo Sr. Kessler. São muito importantes para mim as suas declarações. Entretanto, há alguns aspectos que me parecem destoantes da realidade.
- Aponte-me, para exemplificar, alguns desses aspectos - disse-me Kessler, que inesperadamente se tornou um pouco áspero.
- Eis um exemplo: Hilde Hellmann declarou-me que o assassinato do seu irmão fora perpetrado por toda uma coletividade. Todos eles contribuíram para esse crime.
- Escute-me, Sr. Lucas - retrucou-me Kessler. - O senhor bem pôde observar que tipo de pessoa é Hilde dos Brilhantes. Ela não é lá muito certa da cabeça.
- O senhor diz isso com absoluta segurança? - perguntei.
- Não entendo a razão de sua pergunta.
- Pois preste bem atenção: ao francês M. Lacrasse, por exemplo, ela deu uma versão dos fatos muito diferente. - Proferi, então, uma série de relatos sobre as minhas sindicâncias em Cannes. - Ainda não consegui falar com Kilwood, nem com as outras pessoas. Admito que minha incumbência é diferente da sua, Sr. Kessler. Mas, exatamente como o senhor, não acredito em nada antes da comprovação dos fatos.
- É um direito que lhe assiste.
- Será sempre com grande satisfação que acataremos os resultados das suas sindicâncias - atalhou Friese, numa atitude aparentemente conciliatória. - Queremos apenas trabalhar entrosados com o senhor, coordenando nossos esforços. Só isso.
- Não é outra a minha vontade - retruquei. - Em todo caso, permito-me ponderar-lhe que a eliminação de Viale antes que ele pudesse concluir as suas pesquisas, bem como o roubo dos destroços e fragmentos colhidos no local da catástrofe, indicam claramente que houve um assassinato e não um suicídio.
- Evidentemente Hellmann não agiu sozinho - comentou Brandenburg, sempre teimoso e obstinado. - É claro que ele deve ter tido um auxiliar. O que você acha, Robert?
- Além do mais, Kilwood tem interesse em que a verdade não seja descoberta - disse Friese.
- Na verdade, um grande interesse! - confirmou Kessler enfaticamente.
- Realmente esse caso não vai ser assim tão fácil - emendou Brandenburg, numa falsa atitude de reconciliação. - Já são duas horas da tarde. Se acham que devemos comer alguma coisa, é bom nos apressarmos em sair. Prosseguiremos nossa conversa à tarde.
Ele levantou-se, espirrando como um bode.
Capítulo 41
No gabinete de Gustav, ficamos trabalhando nesse domingo até as nove horas da noite. Por fim, o ar ambiente se tornara quase irrespirável por causa da fumaça dos cigarros. Viam-se garrafas de cerveja por todos os cantos. Trabalhávamos todos em mangas de camisa. Examinamos detalhadamente inúmeras fichas técnico-financeiras. Não quero me deter na explicação desse serviço. Falando com sinceridade, depois de tanto ouvir falar em sistemas monetários e processos relativos às manipulações financeiras, eu tinha a impressão de não compreender mais nada. Ficou combinado que logo na manhã seguinte eu tomaria o avião para Cannes a fim de entrevistar, a meu modo, o tal John Kilwood. E também as outras pessoas suspeitas, é claro. Talvez comigo elas viessem a proceder de maneira diferente, de modo a me permitir depreender algo que tivesse passado despercebido a Kessler.
Nesse mesmo domingo, Kessler viajaria à noite. Oficialmente, em Cannes, deveríamos permanecer estranhos um ao outro. Na hipótese de termos que falar sobre o assunto, nos telefonaríamos marcando encontro.
-. Alegro-me por termos que trabalhar juntos! - disse-me Kessler no momento da despedida e apertou-me calorosamente a mão.
- Eu também tenho imensa satisfação em trabalhar com o senhor - respondi, sentindo realmente prazer, mas ao mesmo tempo um enorme cansaço.
Os dois homens de Bonn saíram. Gustav e eu continuamos naquele seu gabinete enfumaçado. Ele já havia dispensado a secretária. No edifício, a essa hora, estávamos só nós dois, além do pessoal da limpeza.
Gustav Brandenburg começou a falar:
- Assim é o mundo em que estamos vivendo, Robert, meu amigo! Falsos, mentirosos e ladrões são todos: os ricos, os super-ricos, os políticos que se deixam subornar, os padres com os seus falsos confortos espirituais, aparecendo no fundo das suas atividades o Banco do Vaticano, os imperadores, os reis, os banqueiros e os Estados, os quais deixam de castigar os criminosos porque eles próprios tiram proveito com o crime, como a nossa querida Global, que certamente também vai meter a mão para conseguir as suas vantagens, graças às minhas oportunas informações, prestadas em tempo hábil, e como fariam igualmente todos os pobrezinhos se eles tivessem poder para tanto, ou se lhes fosse dada oportunidade para agirem. A única coisa que todos temos em comum é que todos nós somos impostores e trapaceiros.
- Nós?!
- Sim, nós! - confirmou Brandenburg, virando-se na cadeira de um lado para outro e gemendo como um cachorro sarnento. - Eu, porque protejo você, e você, porque bem sabe que eu teria que proteger você!
- Especificamente, de que é que você está falando, Gustav?
- Um trapaceiro dá a mão a outro trapaceiro. Evitei o pior que poderia acontecer. Impedi que tirassem você deste serviço, que era exatamente o que eles queriam fazer. Também menti para eles dizendo que o médico havia exagerado, levando ao extremo os resultados co diagnóstico.
- Explique-se com mais clareza! - disse eu impaciente, já sentindo que minha resistência ia diminuindo cada vez mais.
Gustar prosseguiu:
- Está aqui comigo uma ordem escrira da direção-geral mandando excluí-lo da sindicância desse caso e licenciá-lo a fira de que você possa se submeter a um tratamento geral. O Dr. Betz encaminhou seu relatório à diretoria. Você anda muito doente, Robert.
- Eu não estou doente!
- Caudicatio intermitens - disse ele lendo numa folha de papel. - É o que está escrito aqui O Dr. Betz é um bom médico e não erra.
- Mas eu lhe asseguro que dessa vez ele errou! - respondi-lhe alteando a voz, e lago comecei a pensar em Angela... Só em Angela... Angela não saía da minha mente. De repente comecei a sentir aquela dorzinha puxada, semelhante à dor ocasionada pela torção de um músculo, no meu pé esquerdo. Angela! Eu teria que voltar para junto dela de qualquer forma, ainda que tivesse de sair correndo a pé para Cannes. Ninguém conseguiria deter-me!
- Não aceito essa ordem da diretoria! - disse eu em tom incisivo. - E bem sei que você, da mesma forma, não a aceita, Gustav. Se você pretendesse de fato acatá-la, não me teria segurado aqui o dia todo, a fim de me pôr a par dos acontecimentos relacionados com o caso que estou investigando. É claro que você já teria trazido o meu substituto para tomar parte nessa reunião com Friese e Kessler.
Seus nlhos começaram a cintilar. Que porco engraçado!
- Bem... Está certo! Eu não lhe disse que somos todos trapaceiros? Você continua sendo para mim o predileto. É você mesmo, por sua livre e espontânea vontade, que está procurando esticar as canelas. Sei que você não quer outra coisa. Eu só precisava ouvir, pela sua própria boca, essa declaração. Você deve ter lá suas razões para proceder assim. Para mim está tudo direito. Está exatamente como gosto. Contudo, se você quiser prosseguir nas suas atividades, terá que satisfazer um pequeno requisito, uma ninharia.
- Que bobagem é essa?
Ele fitou-me e percebi que seu semblante revelava compaixão. Depois disse, sorrindo sem nenhuma graça:
- Você terá que assinar uma pequena declaração afirmando que quer, por livre e espontânea vontade, continuar trabalhando. Essa declaração, devidamente redigida, se encontra aqui comigo. Dela consta, em termos expressos, que você deseja prosseguir no trabalho embora sua retirada tenha sido exigida, de acordo com ordens da nossa direção-geral, etc, etc. Você doravante passará a trabalhar sob sua exclusiva responsabilidade. Além do mais, a Global se reserva o direito de mandar chamá-lo em qualquer época que julgar conveniente, na hipótese de que seu estado de saúde venha a piorar ou você não esteja em condições de desincurmbir-se do encargo. Aí você terá que vir, não existe outra alternativa. Afora essa hipótese, você continuará trabalhando, mas não conte com algum auxílio ou subvenção adicional se levar uma estrepada por trabalhar nessas condições. Não espere a concessão de empréstimo nem de bonificação. Foi o máximo que pude conseguir para você, seu trapaceiro !
Fitou-me durante um certo tempo, como se estivesse procurando verificar minha reação, depois prosseguiu:
- Tudo isso consta desta declaração. E então?
- Então o quê?!
Ainda posso ir muito longe com esse meu pé, antes de ser acometido por um infarto do coração, pensei eu. Não estou acreditando muito nas conseqüências dessa dorzinha no pé. E se for verdade mesmo... pouco importa. Será o fim dos sofrimentos. Tenho que voltar a Cannes. Tenho que ir para junto de Angela. Só penso nela.
- Se você morrer, sua mulher passará a receber normalmente sua pensão, como viúva de um antigo funcionário da companhia. Você bem sabe qual é o montante dessa pensão. Se lhe acontecer algo e continuar vivendo por algum tempo, você terá sua aposentadoria. - Que mentalidade de gênio! - Será que você quer mesmo assinar esta declaração?
- Passe para cá esse papel! - disse eu.
Assinei o documento sem mesmo ter lido uma palavra do texto. Eu tinha medo de encontrar certos vocábulos ou expressões. A palavra "morte", por exemplo.
- Nesse negócio está metido um rabo-de-saia. Que diz você, hein? - Gustav torceu os beiços num sorriso amarelo.
- Como foi que lhe veio essa idéia?
- Kessler, antes da sua chegada, fez algumas insinuações... Nada tenho a ver com suas conquistas. Alegro-me com isso. Alegro-me de todo o coração, creia-me. Robert, você não passa de um pobre cão. - Deu um estalo com a língua, ao ver minha assinatura no papel da declaração. - Agora está tudo em ordem. Trata-se de uma coisinha de nada, não é? O bom tio Gustav de nariz farejador sempre arranja tudo. Vamos beber alguma coisa?
- Ainda não estive em casa.
- Desejo de ir para a cama com Karin, não é? - Soltou uma gargalhada semelhante ao relincho de um cavalo.
- Desejo de um banho - respondi-lhe.
- Há quanto tempo você não toma um banho?
- Ah, se tem alguma dúvida, pode me cheirar e me lamber.
- Um banho é sempre bom. Mas procure não fazer nenhuma daquelas encenações com Karin. Volte bem sossegado e tranqüilo a Cannes.
Em seguida entregou-me um envelope, explicando-me:
- Aqui está sua passagem de avião. Pela Lufthansa. Partida às dez horas da manhã, no Aeroporto Lohausen. Dessa vez com escala em Frankfurt. Às dez para as duas, você chegará a Nice. Dentro do envelope encontram-se, também, os traveler checks. Trinta mil marcos. É o que você vai levar por ora. Para obtenção de informações, bem como para outros gastos. Depois, evidentemente, você terá que me dar uma relação detalhada de todas as despesas, exibindo os respectivos comprovantes para acerto de contas. Trabalhe direitinho.
Estendeu-me, despedindo-se, a mão flácida e vermelha, em que se notavam as unhas sujas.
- E você não vai para casa ainda, Gustav?
- Eu sairia agora se fôssemos tomar alguma bebida. Como você não pode me acompanhar, vou concluir um trabalho já começado. Estou cheio de serviço. Ando praticamente dormindo aqui.
- Eu sempre gosto de sair para espairecer e respirar um pouco de ar puro.
- É muito bom. Também faço isso habitualmente. E note bem: quando seus dedos começarem a ficar arro-xeados, prenunciando o ataque fatal, telefone-me imediatamente.
Assim falou meu chefe, Gustav Brandenburg.
Capítulo 42
Fui a pé para casa. Já não estava chovendo, mas soprava um vento forte. Eu havia deixado a mala de viagem no aeroporto. Depois de muitas horas, estava felizmente respirando ar puro de novo. Ao passar em frente a um bar, entrei e pedi um copo de conhaque. Depois pedi permissão para usar o telefone. Pelo sistema de discagem direta, liguei para Angela, que atendeu imediatamente.
- Faz muitas horas que estou aguardando sua chamada - disse ela. - Graças a Deus, você telefonou! Aconteceu algo?
- Que é que poderia ter acontecido? - perguntei-lhe procurando demonstrar otimismo, mas logo em seguida comecei a ficar deveras oprimido e preocupado, lembrando-me de que a coisa não devia andar nada bem para o meu lado, pois do contrário a companhia não teria exigido aquela declaração que eu deixara assinada no gabinete de Brandenburg. O Dr. Betz devia ter enviado um relatório assustador.
- Não sei - respondeu-me ela. - Mas sempre pode acontecer algo imprevisível. Quando é que você vai voltar?
- Amanhã. Às dez para as duas, estarei chegando a Nice. Viajarei num avião da Lufthansa. Ficarei imensamente feliz em revê-la, Angela.
- Eu também, Robert! Irei buscá-lo no aeroporto.
- Ótimo!
Ela me fez ainda algumas perguntinhas, às quais respondi rapidamente.
- Durma bem, Robert! Eu... eu fiquei tão alegre que você nem imagina!...
- E eu, Angela... Eu também estou muito contente.
- Que o bom Deus proteja você!
Por que teria dito isso, justamente no momento em que eu andava com o meu espírito atribulado? Retribuí-lhe:
- E que ele proteja você também, Angela! Boa noite! Coloquei o fone no gancho, paguei o telefonema e bebi de um só gole o resto do conhaque. Depois segui meu caminho passando por aquelas ruas escuras e enfrentando o forte vento que soprava. Ao passar em frente à farmácia de que eu era freguês, notei que ela estava iluminada. Um homem se encontrava diante da porta de vidro. Nanita entregou-lhe, através de uma abertura destinada ao atendimento noturno dos fregueses, um vidro de remédio. Era noite de plantão dela. Nanita reconheceu-me e me fez um aceno. Dirigi-me a ela enquanto o homem ia embora com seu remédio.
- Pensei que o senhor estivesse viajando - disse-me ela através da abertura na porta.
- E estava mesmo. Faz pouco que cheguei. E viajarei de avião novamente amanhã cedo.
- Então o senhor não sabe ainda?
- O quê?
- A Sra. Prawos morreu!
- Quem morreu?
- A Sra. Prawos. Acho que o senhor deve se lembrar dela: aquela senhora idosa que queria tanto comprar um apartamentozinho...
- Ah, lembrei-me agora! Ela morreu?
- A morte dela foi noticiada hoje pelo Bild am Sontag.
- De que foi que ela morreu?
- Ela cortou os pulsos.
- O quê?!
- Sim, isso mesmo. Ela cortou os pulsos. Deixou um pequeno bilhete de despedida. Bem sucinto. Dizia: "Neste mundo não há mais lugar para gente velha, pobre e doente". Esses dizeres figuram no jornal como manchete.
Um quarto na Luisenhohe!
E a velha Prawos se suicidou!
Quarenta milhões de marcos!
E o banqueiro Hellmann também se suicidou.
Mas teria ele realmente se suicidado? Essa era a opinião de todos. E eu deveria comprovar se fora ou não suicídio.
- É muito triste! - exclamou Nanita.
Capítulo 43
- Esperei você durante quatro horas com o jantar preparado - disse minha mulher Karin.
Ela estava usando o roupão cinzento. Em casa ela sempre usava roupões. Estava despenteada e sem pintura.
- Esperei... esperei... depois jantei sozinha mesmo. Se você está com fome, vou esquentar qualquer coisa para comer.
- Não tenho um pingo de fome!
- Mas bem que você poderia ter me telefonado para avisar que não viria jantar.
- Tive muito trabalho.
Logo em seguida me dirigi à sala e passei a examinar meus livros, os cavalinhos sicilianos, os elefantes e a cristaleira com uma boa quantidade de esculturas talhadas em madeira, que eu havia trazido de todas as partes do mundo. Nesse instante toquei no elefante de Angela, que estava no meu bolso.
Eu tinha a impressão de que não vinha para casa há anos. Tudo me parecia tão estranho como se eu nada tivesse a ver com aquele ambiente. Fui até o barzinho e preparei uma dose bem grande de uísque.
- Você também quer tomar um uísque?
- Não - respondeu-me Karin. - Você está com roupa nova... E sapatos novos... E uma gravata nova.
- Fazia muito calor em Cannes. Tive que comprar todas essas coisas.
- Naturalmente. Muito linda essa gravata! Ela combina muito bem com a roupa. Foi você mesmo que a escolheu?
- Sim.
- Evidentemente! Que pergunta estúpida! Quando vai partir de novo?
- Amanhã. Chamarei um táxi. Você pode ficar dormindo sossegada. Terei que sair bem cedo. Eu mesmo prepararei meu chá. Vou me despedir de você ainda hoje para não a despertar cedo.
- De mim você nem precisa se despedir, ora bolas! Como se chama ela?
- Ela quem?!
- Ora... Quem? Quem? - repetiu, remedando-me, com a boca bem torcida. - Também não sou uma mulher tão idiota e tapada assim! Não foi você que escolheu essa gravata. Nem a roupa. E tampouco os sapatos. Conheço muito bem seu péssimo gosto.
- Fui eu mesmo que escolhi todas essas coisas e ninguém mais.
E passei logo a falar comigo mesmo: "Isso é uma baixeza, meu velho! Sabe o que significa uma baixeza? Daqui a dois anos você entrará na casa dos cinqüenta. E com péssima saúde! Péssima! Claudicatio intermitens. Foi o diagnóstico! É uma situação bem amarga. As palavras que definem sua doença significam: mancar descontinuamente ou com intermitência. Quanto tempo levará ainda até que seu pé seja amputado? Até você ficar definitivamente aleijado? E além disso sofre do coração também. Karin terá que cuidar de você. Sobra pouco tempo, meu amigo. Muito pouco tempo! So little time, my friend! Sempre trabalhou sem descanso. E eis que agora, repentinamente, pela primeira vez na sua vida, surge algo de inesperado: o amor! Você bem sabe disso. Só agora está amando realmente. E pela primeira vez em toda a sua vida está se sentindo feliz. Qualquer homem tem o direito de ser feliz. Sim, desse direito ninguém duvida. Mas feliz com o sacrifício de outra pessoa? Com o sacrifício de Karin?"
- Não vamos discutir nem fazer cenas durante essas poucas horas em que estou em casa.
- Mas na realidade você não está aqui. Você está perto dela. Perto dessa outra mulher.
- Afirmo-lhe que não existe nenhuma outra mulher.
- Você pode afirmar o que quiser. Vou dormir. E, por favor, tome cuidado para não me despertar amanhã cedo. Ando dormindo muito mal. Sempre tenho que tomar algum calmante.
Sem mesmo me fitar, dirigiu-se ao banheiro.
Sentei-me diante da televisão e me lembrei dos quatro aparelhos de Angela. Estava passando uma comédia, mas eu não prestava atenção em nada do que via. Mais ou menos às onze horas fui tomar meu banho. Karin já havia apagado a luz do seu quarto. Eu não ouvia nenhum ruído. Ou ela estava dormindo profundamente ou ainda não havia pegado no sono. Demorei-me no banho, um banho com água quente. Examinei detidamente os dedos dos pés. No pé esquerdo não havia o mínimo vestígio de pele arroxeada. Não me enxuguei. Fui para a cama molhado e nu. Acertei o despertador para as sete horas e deitei-me.
Logo depois de ter desligado a luz, comecei a dormir.
Despertei-me já refeito e bem descansado quando o despertador soou.
Preparei meu chá e comecei a ler o jornal matutino, que trazia notícias sobre a misteriosa catástrofe do iate de Hellmann e sua morte. No fim da página via-se uma coluna inteira ocupada com necrológios e notícias de falecimento. O maior deles fora encomendado por Hilde, que deplorava a morte do seu querido e sempre lembrado irmão. Os demais provinham dos funcionários do banco de Hellmann, da Câmara de Indústria e Comércio e de algumas companhias das quais Hellmann havia sido diretor.
A liberação da libra, provocando a sua desvalorização, continuava a ser a notícia mais sensacional.
Vesti-me e chamei um táxi. Antes de sair, fiquei espreitando um pouco na porta do quarto de Karin. Ela ressonava baixinho e regularmente. Deixei o apartamento fechando cuidadosamente a porta. Desci pelo elevador. A forte ventania da véspera dispersara as nuvens. Estava um dia fresco, de sol radiante.
Chegou o táxi.
- Para o aeroporto!
- Finalmente um lindo dia, não é verdade? - disse-me o chofer.
Ele dirigia o carro a grande velocidade. Em pouco tempo íamos deixando para trás Düsseldorf, a cidade que eu conhecia tão bem e que, de um momento para outro, se tornara tão estranha para mim como se nunca tivesse morado ali. Meu coração encheu-se de júbilo só em pensar que, dentro de algumas horas, iria rever Angela.
Que vida repleta de fadigas, a minha! Daqui a dois anos completarei meio século de existência. Um homem que já não tinha mais esperanças. Entretanto agora... agora! Parecia que eu estava me dirigindo às portas do paraíso.
Mas, apesar de toda essa verdadeira euforia a invadir-me a alma, houve um momento em que me senti apreensivo e triste: foi quando pensei na última frase que eu dissera a Angela na noite anterior, quando conversamos pelo telefone. Uma frase de poucas palavras, mas que, depois, começou a me impressionar demasiadamente. Decidira mesmo não pensar mais no que lhe havia dito. Angela me perguntara: "Você é casado, Robert?"
Respondi-lhe sem demonstrar nenhuma hesitação: "Não, não sou casado". Angela, então, exclamou: "Que bom!" E eu lhe disse mais uma vez: "Que bom mesmo, não é verdade?"

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                                        CONTINUA
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Capítulo 1
Dessa vez havia muita gente na sacada do aeroporto. Reconheci Angela imediatamente. Seus cabelos louros pareciam luzir. Ela também deve ter me reconhecido logo, pois levantou ambos os braços fazendo acenos.
Permaneci algum tempo ao lado do avião, diante da camioneta destinada ao transporte dos passageiros da pista ao terminal. Fiquei ali correspondendo aos acenos de Angela também com ambos os braços levantados. Pensei comigo mesmo: "Naturalmente lhe direi a verdade. Devo confessar-lhe tudo. Mas não imediatamente. Só mais tarde, quando estivermos tão ligados um ao outro que Angela não mais possa fazer alguma tentativa para terminar com este nosso amor que, na verdade, ainda nem bem começou. Só mais tarde... quando eu tiver a certeza de que Angela está decidida a me ajudar na procura de uma solução para nosso caso. Portanto, devo continuar a mentir-lhe durante algum tempo, pois temo que ela me abandone se eu lhe contar tudo agora. E isso, para mim, seria a pior coisa que poderia acontecer. E, daqui para o futuro, não vou mais fumar, para que meu coração não fique pior. Contudo, você já lhe mentiu!", foi o pensamento que me invadiu logo que pus os pés na camioneta. "E agora já existe essa mentira pairando entre nós... Bem... Que posso fazer agora?" Eu não ousava, de forma alguma, falar a Angela a respeito de minha mulher, sabendo da dolorosa experiência que ela já tivera antes... "Terei que lhe revelar tudo aos pouquinhos. E ela, sem dúvida, me compreenderá... Ela me perdoará." Tais foram os pensamentos que invadiram o meu cérebro enquanto a camioneta rodava velozmente sobre a pista.

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Eis-me agora inundado por aquela luz diferente! Estou sentindo novamente o calor de Cannes. Vejo o mar azulado refletindo os raios do sol.
Mais uma vez surgem ante meus olhos, como que por encanto, as flores, as palmeiras, as pessoas alegres.
Encontro-me novamente junto de Angela. É como se estivesse voltando para casa. Sim... Agora é que estou voltando para casa!
Logo que transpus o limiar do saguão, sairmos correndo um ao encontro do outro. Andava com tanta pressa que dava encontrões nas pessoas. Finalmente... aqui estou, de braços abertos para apertar o corpo de Angela. Ela também se aproximou de mim com os braços estendidos... Então, aconteceu algo de estranho e inesperado: uma espécie de constrangimento dominou nossa mente nesse instante, deixando-nos a olhar, perplexos, um para o outrro. Nem sequer conseguimos nos abraçar. Nossos braços caíram.
- Angela! - exclamei. - Angela!
- Sim, Robert, sim! Você nem imagina como estou contente por você estar de volta!
- E eu, Angela, que alegria estou sentindo!... Eu vinha contando as horas, os minutos, os segundos...
Colocando sua mão cheia de frescor nos meus lábios, ela disse:
- Não fale nada!... As palavras podem destruir toda a sublimidade deste momento!
Beijei a palma da sua mão, que ela retirou logo.
Ali está ela ao volante do carro, tendo-me ao seu lado. Seu Mercedes tinha uma capota conversível, baixada nesse momento.
Nossos cabelos voavam, impelidos pelo vento. Angela trajava uma calça azul e usava sapatos também azuis. Parecia-me muito mais linda do que antes. Permanecia sentado ao seu lado sem deixar de contemplá-la por um segundo sequer. O carro rodava em direção a Cannes, margeando o mar. Sob o espelho retrovisor pendia bamboleante o ursinho sujo e corroído que eu havia comprado daquela pobre mocinha no Félix. O burrinho de Angela, eu havia deixado no hotel.
Ela dirigia com boa velocidade e muita segurança. Nem mesmo falávamos um com o outro. Apenas por um instante Angela tirou a mão do volante para apertar a minha, numa atitude de inconfundível afeto.
Notei que ela não estava me levando ao Majestic.
- Para onde estamos indo?
- O jantar na casa dos Trabaud está marcado para as oito horas. Ainda temos tempo.
- Sim. .. Mas para onde...
- Pssst!!
Quando atingimos o bairro La Californie, ela fez uma volta bem longa penetrando em diversos becos tortuosos e feios, onde predominavam edificações com paredes de madeira repletas de cartazes, em grande parte já estragados e corroídos. Viam-se ali pequenos bares com cadeiras e mesinhas do lado de fora, e os cortinados das portas de entrada tinham pedrinhas imitando pérolas. À medida que avançávamos no sentido da periferia, notávamos que as casas eram cada vez menores e mais feias. Então surge à nossa frente um campo cheio de flores vermelhas, as quais, impulsionadas pela brisa, ondulavam como um verdadeiro mar.
Não eram papoulas...

 

 

                                                                  

 

 

                                                   

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