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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SO O VENTO SABE RESPOSTA - P.2 / J. M. Simmel
SO O VENTO SABE RESPOSTA - P.2 / J. M. Simmel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Segundo livro
Capítulo 1
Dessa vez havia muita gente na sacada do aeroporto. Reconheci Angela imediatamente. Seus cabelos louros pareciam luzir. Ela também deve ter me reconhecido logo, pois levantou ambos os braços fazendo acenos.
Permaneci algum tempo ao lado do avião, diante da camioneta destinada ao transporte dos passageiros da pista ao terminal. Fiquei ali correspondendo aos acenos de Angela também com ambos os braços levantados. Pensei comigo mesmo: "Naturalmente lhe direi a verdade. Devo confessar-lhe tudo. Mas não imediatamente. Só mais tarde, quando estivermos tão ligados um ao outro que Angela não mais possa fazer alguma tentativa para terminar com este nosso amor que, na verdade, ainda nem bem começou. Só mais tarde... quando eu tiver a certeza de que Angela está decidida a me ajudar na procura de uma solução para nosso caso. Portanto, devo continuar a mentir-lhe durante algum tempo, pois temo que ela me abandone se eu lhe contar tudo agora. E isso, para mim, seria a pior coisa que poderia acontecer. E, daqui para o futuro, não vou mais fumar, para que meu coração não fique pior. Contudo, você já lhe mentiu!", foi o pensamento que me invadiu logo que pus os pés na camioneta. "E agora já existe essa mentira pairando entre nós... Bem... Que posso fazer agora?" Eu não ousava, de forma alguma, falar a Angela a respeito de minha mulher, sabendo da dolorosa experiência que ela já tivera antes... "Terei que lhe revelar tudo aos pouquinhos. E ela, sem dúvida, me compreenderá... Ela me perdoará." Tais foram os pensamentos que invadiram o meu cérebro enquanto a camioneta rodava velozmente sobre a pista.

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Eis-me agora inundado por aquela luz diferente! Estou sentindo novamente o calor de Cannes. Vejo o mar azulado refletindo os raios do sol.
Mais uma vez surgem ante meus olhos, como que por encanto, as flores, as palmeiras, as pessoas alegres.
Encontro-me novamente junto de Angela. É como se estivesse voltando para casa. Sim... Agora é que estou voltando para casa!
Logo que transpus o limiar do saguão, sairmos correndo um ao encontro do outro. Andava com tanta pressa que dava encontrões nas pessoas. Finalmente... aqui estou, de braços abertos para apertar o corpo de Angela. Ela também se aproximou de mim com os braços estendidos... Então, aconteceu algo de estranho e inesperado: uma espécie de constrangimento dominou nossa mente nesse instante, deixando-nos a olhar, perplexos, um para o outrro. Nem sequer conseguimos nos abraçar. Nossos braços caíram.
- Angela! - exclamei. - Angela!
- Sim, Robert, sim! Você nem imagina como estou contente por você estar de volta!
- E eu, Angela, que alegria estou sentindo!... Eu vinha contando as horas, os minutos, os segundos...
Colocando sua mão cheia de frescor nos meus lábios, ela disse:
- Não fale nada!... As palavras podem destruir toda a sublimidade deste momento!
Beijei a palma da sua mão, que ela retirou logo.
Ali está ela ao volante do carro, tendo-me ao seu lado. Seu Mercedes tinha uma capota conversível, baixada nesse momento.
Nossos cabelos voavam, impelidos pelo vento. Angela trajava uma calça azul e usava sapatos também azuis. Parecia-me muito mais linda do que antes. Permanecia sentado ao seu lado sem deixar de contemplá-la por um segundo sequer. O carro rodava em direção a Cannes, margeando o mar. Sob o espelho retrovisor pendia bamboleante o ursinho sujo e corroído que eu havia comprado daquela pobre mocinha no Félix. O burrinho de Angela, eu havia deixado no hotel.
Ela dirigia com boa velocidade e muita segurança. Nem mesmo falávamos um com o outro. Apenas por um instante Angela tirou a mão do volante para apertar a minha, numa atitude de inconfundível afeto.
Notei que ela não estava me levando ao Majestic.
- Para onde estamos indo?
- O jantar na casa dos Trabaud está marcado para as oito horas. Ainda temos tempo.
- Sim. .. Mas para onde...
- Pssst!!
Quando atingimos o bairro La Californie, ela fez uma volta bem longa penetrando em diversos becos tortuosos e feios, onde predominavam edificações com paredes de madeira repletas de cartazes, em grande parte já estragados e corroídos. Viam-se ali pequenos bares com cadeiras e mesinhas do lado de fora, e os cortinados das portas de entrada tinham pedrinhas imitando pérolas. À medida que avançávamos no sentido da periferia, notávamos que as casas eram cada vez menores e mais feias. Então surge à nossa frente um campo cheio de flores vermelhas, as quais, impulsionadas pela brisa, ondulavam como um verdadeiro mar.
Não eram papoulas.
Bruscamente Angela desviou-se co caminho que íamos seguindo e fez o carro penetrar num enorme jardim de aspecto rude e selvagem. O portão, todo enferrujado, achava-se com os gonzos levantados e tortos. O chão era pedregoso. As ervas daninhas haviam atingido quase um metro de altura e no meio delas cresciam também anêmonas e margaridas. Logo que entramos, vi alguns canteiros de hortaliças mal-cuidados.
Angela estacionou o carro debaixo de umas árvores velhas, que, dispostas em fileiras, contornavam uma parte arenosa do terreno, quase formando um círculo. As raízes dessas árvores estavam parcialmente fora do chão, fazendo com que o carro, ao rodar sobre elas, desse solavancos.
Depois de descer do Mercedes, consegui finalmente saber onde estávamos. Uma igrejinha de diminutas proporções surgiu à minha frente. Estava pintada de amarelo e apresentava um estilo arquitetônico que me era completamente estranho. Atraía a atenção, sobretudo a armação aberta do campanário, permitindo ver o sino no seu interior. A extremidade superior da torre terminava numa espécie de globo todo pontilhado de estrelinhas branca. Encimando esse globo, sobressaía-se uma cruz, com três vigas transversais. A viga superior era mais curta e a inferior estava enviesada.
Angela disse:
- Aqui está a minha igrejinha! Eu não lhe disse que queria visitar aquele padre que me confortou naquela noite de desespero? Disse que viria aqui somente quando... - interrompeu a frase.
- Quando? - perguntei com minha curiosidade aguçada.
- Venha, Robert!
Sem mais demora ela foi avançando em direção à porta de madeira castanha, na qual se via um "P" branco, com a linha vertical muito comprida, atravessada por outras duas linhas oblíquas, que se cruzavam num ponto sobre a vertical. Era a porta de entrada. Estava fechada, e ali por perto não se via ninguém. Gritei, mas não veio nenhuma resposta. Permanecemos ali, indecisos, por algum tempo. Ao lado da porta, num lugar em que a relva e o capim já haviam crescido bastante, encontrava-se uma tabuleta de avisos apoiada sobre duas ripas de madeira, contendo diversas comunicações. Não pudemos compreender nada porque tais avisos estavam escritos no alfabeto russo.
- Mais ao fundo existe uma casinha. Talvez dentro dela se encontre alguma pessoa que nos possa informar onde está o padre - disse Angela.
A casinha estava localizada no meio de um verdadeiro matagal de ervas daninhas. Tivemos que seguir com muita dificuldade, abrindo caminho através do capim alto. A casa estava quase em ruínas. Em algumas janelas, já carcomidas pelas intempéries, haviam sido pregadas tábuas. Ali também a porta estava fechada. Batemos. Nada.
Então Angela olhou para dentro, através de uma das janelas que não ficava muito alta. Até as janelas estavam imundas.
- Ali dentro há alguém... Uma mulher - disse Angela.
Angela acenou para que ela se aproximasse de nós. Nesse instante também vi a mulher, que se achava numa pequena cozinha. Levou um bom tempo antes que ela viesse ter conosco. Parecia sofrer de alguma perturbação mental. Era baixinha. Usava um avental escuro todo esfarrapado e os cabelos em tranças. A loucura espelhava-se nos seus olhos e ela parecia estar dominada pelo terror. Suas mãos tremiam ininterruptamente. Ela nos fitou. Fiquei encabulado por termos assustado desse modo a pobre mulher. Mas talvez essa fosse a sua maneira normal de portar-se.
- Desejamos falar com o padre - disse Angela.
- Hein?!
A mulher não tinha um só dente na boca.
- Queremos...
- Não entendo francês - respondeu a mulher com uma voz fraca, quase sumida, e rouca. - A senhora fala russo? Alemão?
- Queremos falar com o padre - disse Angela em alemão.
- Onde está ele? - perguntei.
- Lá! - respondeu a velha, apontando.
Nesse exato momento, por uma espécie de picada aberta através dos arbustos, ia saindo, rumo à estrada, um homem jovem, vestindo um hábito religioso bem comprido, com os cabelos caindo até a altura dos ombros. Estava montado numa motocicleta, que transportava no bagageiro um cesto cheio de hortaliças.
- O reverendo vende verduras e hortaliças - explicou a velhinha. - A nossa comunidade é muito pequena e pobre.
O jovem sacerdote, dirigindo a motocicleta, fez com habilidade uma curva sinuosa para atingir a estrada e, então, partiu dali impetuosamente.
Angela, com um movimento das sobrancelhas, fez sinal para que eu olhasse o antebraço descoberto da pobre mulher, pois o seu esfarrapado avental tinha mangas curtas. Na parte interna do antebraço via-se uma letra seguida de um número bem grande, que a ação do tempo não conseguira apagar completamente.
- A igreja está fechada - disse Angela.
- Teremos missa às oito horas da noite. Os senhores virão para assistir a ela?
- Às oito horas não podemos - respondeu Angela. - Não temos tempo.
- Ninguém tem tempo - emendou a velha, que tinha a marca do campo de concentração no braço. - Sempre vem tão pouca gente...
- Será que a senhora pode abrir a igreja para darmos uma olhada no seu interior?
- Com muito prazer!
Ela saiu e voltou logo em seguida, trazendo um chaveiro. Depois, dirigiu-se conosco à porta da igreja.
Ela caminhava com dificuldade, manquejando. Notei que usava sapatos ortopédicos. A porta abriu-se silenciosamente. Disse-nos a velhinha:
- Fico esperando para fechar a porta. Além disso, arribem tenho que fazer as minhas orações. Hoje ainda não rezei. Deixar de rezar é uma grande injustiça que me pesa na alma.
Comecei logo a refletir que espécie de grande injustiça poderia atormentar a alma de uma pobre velha assim. Ela passou à nossa frente, dirigindo-se ao interior da igreja.
Que ambiente de profunda calma, completamente imerso numa espécie de penumbra crepuscular!
Não havia nenhum banco, mas somente, cadeiras pouco firmes e vacilantes, dos mais variados tipos, dispostas num pequeno número de fileiras. As paredes achavam-se praticamente encobertas por maravilhosas imagens, grandes e pequenas, coloridas e escuras. Podia-se dizer que um verdadeiro tesouro de arte achava-se oculto naquela igrejinha.
As imagens da Virgem pareciam contemplar-nos do alto dos seus nichos. Não só havia imagens talhadas em metal, mas também pinturas artísticas da Virgem, postas em lindas molduras, umas com vidro, outras, sem. A velha ajoelhou-se no chão mesmo, em frente a uma imagem pregada na parede, mantendo a perna com o pé disforme numa posição horrível. Absorta nas suas orações, ela se esquecera de nós.
Eu e Angela permanecíamos de pé diante de uma grande imagem escura que representava a Virgem Maria inclinada sobre o menino Jesus, deitado no seu regaço. Diante dessa imagem estava um pedestal com muitas pontas salientes em forma de castiçal. Depois, fomos até uma ante-sala, uma espécie de sacristia, onde havia uma caixa de papelão contendo muitas velas. Sobre a caixa encontrava-se uma caixinha de dimensões menores, com uma fita colada, na qual se liam os seguintes dizeres escritos em francês: "Para a nossa igrejinha".
Coloquei dentro dessa caixinha uma nota de cinqüenta francos. Pegamos duas velas compridas, mas não muito grossas, e voltamos para a frente da imagem da madona.
Eu era desajeitado e não tinha experiência alguma com relação a tais práticas, mas Angela colocou sozinha as velas nos castiçais, acendendo-as com meu isqueiro.
Em seguida Angela sentou-se numa daquelas cadeiras velhas e duras, e eu me sentei em outra cadeira ao seu lado, ficando a observá-la. Ela, olhando fixamente a imagem, com as mãos sobre os joelhos, movia silenciosamente os lábios, tal qual uma criancinha fazendo suas orações.
Achei que também deveria rezar nesse instante. Tentei, mas não consegui. Simplesmente continuei sentado ali observando Angela e olhando aquela madona escura, que brilhava inundada pela luz das velas.
Nesse momento passou por nós a velha, caminhando em direção à porta da igreja. Angela pareceu não ter notado isso: continuava com os olhos fixos nas chamas das velas, movendo silenciosamente os lábios. Depois, levantou-se bruscamente e me encarou, parecendo ter desviado os olhos da contemplação do próprio infinito.
Então, de mãos dadas, dirigimo-nos à porta onde a velha só estava esperando que saíssemos para fechá-la.
Quis dar-lhe dinheiro, mas ela recusou terminantemente. Não tinha o hábito de receber coisa alguma.
- Se o senhor quer dar algum dinheiro, coloque-o na caixinha de esmolas que existe na igreja.
- Já coloquei - disse-lhe.
- Então está bem - concluiu a velhinha fitando-nos novamente.
Aquela expressão de medo - medo de tudo e de todos, proveniente, sem dúvida, das pavorosas experiências que tivera na vida - nunca se dissipava dos seus olhos.
- Os senhores são muito amáveis. Deus gosta das pessoas amáveis. Que os senhores, sempre cheios de felicidade, venham muitas vezes visitar esta igrejinha, mas não deixem de visitá-la principalmente quando estiverem aflitos. Deus sempre os ajudará. À sua maneira, naturalmente. Talvez os senhores nem percebam a ajuda que ele na sua infinita misericórdia, lhes dá, ou só mais tarde venham a percebê-la. Mas ele ajuda sempre. Se ele não tivesse continuamente manifestado sobre nós a sua infinita bondade, este mundo já não mais existiria. Desejo-lhes um bom dia, meu senhor e minha senhora!
- Muito obrigada - disse Angela.
Passando novamente através daquele capim crescido, voltamos ao local onde se achava estacionado o carro. O Mercedes havia ficado na sombra, mas agora estava cheio de flores carregadas de pólen, que caíram dentro dele. Olhamos para trás. A velhinha já tinha fechado a porta.
- Agora esta não é só a minha igrejinha: é a nossa igrejinha, Robert.
- Sim! Gostei imensamente daquela imagem escura.
- Viremos aqui muitas outras vezes para ver essa imagem.
Dentro da igreja estava fresquinho, mas no carro comecei a sentir muito calor.
Capítulo 2
Subindo a Croisette, dirigimo-nos ao Majestic. Enquanto eu, no meu apartamento, tomava um banho rápido e vestia uma calça de linho e uma camisa nova, Angela ficou me esperando no "nosso" cantinho, lá no terraço do hotel. Antes de subir, eu havia encomendado champanha. Exatamente no momento em que cheguei, o garçom se aproximava da nossa mesinha trazendo a garrafa. Abriu-a e encheu nossos copos. Começamos a beber. No terraço já predominava aquele aspecto todo peculiar de um ambiente expansivo, como sempre acontecera à hora do aperitivo. Pela Croisette passavam intermináveis filas de carros. Angela fumava, mas eu, não! Havia tomado a resolução de não fumar. Agora, não tinha outro desejo senão viver por muito tempo ao lado de Angela. De forma alguma queria ficar doente ou morrer. Tirei do bolso o elefantinho que havia escolhido entre os que figuravam na minha coleção em Düsseldorf e coloquei-o em frente de Angela.
- Robert!
- Nada de surpresa! Ora, você também me presenteou com um elefantinho.
Ela examinou o elefante durante um bom tempo.
- É lindo! Agradeço-lhe imensamente.
- Agora, sim, cada um de nós possui uma coisa do outro - disse eu.
- Bem... Tenho também o seu ursinho, e você tem o meu burrinho.
- Você tem a mim, Angela - exclamei. - Você já me possui inteiramente, se quiser.
A bola com que uma criança brincava caiu rolando sobre os nossos sapatos. Abaixei-me, peguei a bola e arremessei-a de volta ao garoto, um japonês.
- Angela... quero... quero contar-lhe tudo...
- Pois então conte logo... com todas as minúcias!
- Sim, com todas as minúcias. E tem que ser agora. Você deve tomar conhecimento disso imediatamente. Quando vim a esta cidade e ainda não a conhecia, eu me encontrava tão aborrecido que tive a idéia de adquirir um veneno potente para, a qualquer momento que eu julgasse oportuno, dar cabo da minha existência.
Ela simplesmente balançou a cabeça.
- Que quer dizer com esse movimento de cabeça?
- Robert, logo no primeiro instante que vi você, foi essa a idéia que tive!
- Que idéia?
- Pensei comigo mesma: tenho diante de mim um homem que se encontra no fim da sua existência, completamente acabado e desiludido da vida. Na verdade, tive... tive pena de você. Parecia um homem realmente liquidado...
- Foi por isso que você resolveu sair comigo para fazer compras?
- Sim - respondeu-me simplesmente, sem nenhum circunlóquio. - Supus que talvez desse modo eu pudesse auxiliá-lo.
- E você realmente me auxiliou muito! Você bem sabe disso.
- E acho que você, agora, não quer mais comprar veneno algum...
- Agora?! Você sabe perfeitamente o que quero agora, Angela!
Ela bebeu um gole de champanha e, pensativa, ficou olhando para o copo.
- Você me havia perguntado antes quando eu pretendia visitar aquela igreja... a nossa igrejinha... não é verdade?
- Sim, sim. Então, quando você tencionava visitá-la?
- Eu havia tomado a resolução de só me dirigir àquele local quando me sentisse completamente feliz.
A essa altura da conversa meu coração começou a bater com tanta força que tive medo de ser acometido por um ataque... Mas devo dizer que se tratava de uma outra espécie de taquicardia. Dei-me logo conta do que se passava no meu íntimo.
- E, agora, você está feliz, Angela?
Ela fitou-me com aqueles olhos que expressavam sempre uma estranha e misteriosa tristeza e balançou a cabeça afirmativamente.
- Por que você se sente feliz?
- Simplesmente porque consegui libertar-me da cadeia das minhas tristezas e recordações dolorosas.
Grande quantidade de automóveis rodava pela Croisette, os pneus zumbindo sobre o asfalto. Alguém, numa das mesinhas ali no terraço, soltou uma gargalhada. No mar ao longe estavam ancorados dois destróieres americanos.
- Agora você não sente mais ódio nem tristeza, não é verdade?
- Realmente não odeio mais pessoa alguma e a melancolia dissipou-se da minha alma. Foi você quem conseguiu isso, Robert. Agradeço-lhe imensamente.
Ficamos nos olhando durante alguns segundos e depois passamos a contemplar o mar, que estava calmo e quase sem ondulações. Os destróieres americanos tinham uma cor cinzenta desmaiada de gosto duvidoso. Na proa traziam uns números bem grandes, os quais, entretanto, não podiam ser lidos a olho nu.
Capítulo 3
- Vivemos praticamente sob um contínuo temor de sermos mortos a qualquer momento - declarava Melina Tenedos.
A mulher do armador grego era de porte pequeno e linda como uma boneca. E, na verdade, ela, como habitualmente fazem as bonecas que ornam a sociedade, também tagarelava muito. Melina trajava um vestido de brocado vermelho com decote bem acentuado. Seu marido era baixote, corpulento, de cabelos pretos e pele morena. Usava óculos de lentes grossas, com armação de osso de tartaruga. Melina continuou:
- Nosso verdugo chama-se Vittorio. Ele é de Elba. É maoísta.
- E um maoísta muito perigoso - emendou o marido, enquanto mergulhava uma alcachofra no molho de vinagre e depois chupava as folhas uma por uma. Fazia isso demonstrando uma falta de apetite como nunca vi. Comia com muito menos sofreguidão do que meu chefe Gustav Brandenburg. - Esse tal Vittorio nunca se assusta nem recua diante de qualquer perigo - concluiu Tenedos, babando-se.
Sua boneca, então, retomou o fio da conversa e prosseguiu tagarelando:
- Ele instiga continuamente o nosso pessoal. Já o peguei várias vezes em flagrante fazendo aqueles discursos incendiários de um verdadeiro comunista. Como a senhora bem sabe, Madame Trabaud, nossa casa aqui em Cannes é tão espaçosa quanto esta. E a senhora também sabe por que motivo não estamos mais dando recepções em casa.
- Sim, sei perfeitamente, Madame Tenedos - respondeu a esbelta Pasquale Trabaud.
- Mas eu não sei - disse eu. - Qual é o motivo?
- Ora, como o senhor bem pode imaginar, é para que o nosso pessoal não venha a dizer que o estamos provocando com uma afronta, Monsieur Lucas! Não sei se nossos criados... constantemente instigados por Vittorio... não se rebelariam se tivessem que preparar e servir um jantar em nossa casa, pois lamentavelmente aqui em Cannes só temos talheres e bandejas de ouro. Athanasios sempre dorme com um revólver engatilhado sobre a mesinha-de-cabeceira.
- Sou obrigado a fazer isso - rosnou ele, passando a língua nos cantos da boca e limpando com o dorso da mão o molho envinagrado, que lhe escorria pelo queixo. Em seguida mergulhou no molho mais uma folha de alcachofra. - Na Grécia não é preciso fazer isso. Lá, reinam sempre a calma e a ordem. Mas aqui, na Cote, predomina essa cambada de criminosos, os empregados, cada vez mais contaminados pelos maoístas. - Senti que Angela tocava meu pé com a ponta do seu. Ela conservava a face voltada para o grego, demonstrando um grande interesse na sua conversa. - Como sempre digo, estamos como que presos numa ilha. Os senhores acreditam que, aqui em Cannes, as jóias da minha mulher só podem ser guardadas num cofre-forte e que ela só as usa quando estamos fora da cidade? Temos que fazer isso para que a criadagem não as veja.
- O senhor nem pode fazer idéia de como é má essa gente que, apesar de tudo, recebe de nós tantos benefícios, Monsieur Lucas! - emendou Melina, que, quando tagarelava, ficava muito engraçadinha com seus cílios postiços.
Ela estava carregada de jóias. O chofer devia ter rodado mais da metade de Cannes, antes que ela houvesse colocado e ajeitado todas aquelas peças no corpo, já que, em casa, ela evitava exibi-las aos empregados.
- Mas por que a senhora não substitui sua criadagem? - interroguei.
- O senhor não conhece este ambiente, Monsieur Lucas - respondeu-me Athanasios Tenedos. - Aqui são todos iguais. São todos vermelhos. Em casa, nós sempre usamos as roupas mais comuns e mandamos preparar as comidas mais simples, só para que Vittorio não tenha motivos para incitar os outros à rebelião. Mas, mesmo assim, ele procura subleva-los. Estou convencido de que, quando estamos em Atenas, ele só fica tentando descobrir o segredo da combinação do nosso cofre-forte. Mas vai levar a vida inteira tentando!
O cofre está munido de um dispositivo especial... muito apropriado para Cannes.
Tenedos fungou e, ao distender os lábios para esboçar um sorriso inexpressivo, deixou cair da boca um pedacinho de alcachofra. Ele comia muito encurvado sobre o prato.
- Fizemos o possível para manter Vittorio e os outros empregados sempre em boa disposição de espírito - continuou a mulher. - Chegamos a convidar Vittorio para que ele passasse a fazer as refeições conosco. E sabem os senhores o que ele respondeu?
- O quê? - interrogou Pasquale Trabaud. Notei que ela ficou com o semblante muito sério, mas não consegui saber ao certo se os Trabaud e os Sargantana não estariam achando muito grotesca toda essa história.
- Ele, com seu orgulho ilimitado, recusou nosso convite! - declarou Melina Tenedos, alteando a voz e mostrando-se indignada.
- Recusou friamente - ajuntou o marido. A mulher prosseguiu:
- Por isso, quando temos vontade de comer e beber algo melhor, nós o fazemos às escondidas. Mas, por favor, desculpem-me por eu lhes declarar isso! Quando, por exemplo, queremos comer caviar ou beber champanha, temos que, a horas tardias da noite, empurrar para o lado o piano que se encontra na sala.
- Mas por que empurrar o piano? - interroguei, estupefato.
- Na parte traseira do piano há uma tampa que se abre facilmente. Oculta por essa tampa encontra-se uma geladeira, onde colocamos caviar; champanha e outras coisas assim - explicou Melina. - Mandamos preparar essa geladeira secretamente quando os criados estavam em férias.
Pensei comigo mesmo: "Os criados naturalmente ainda não descobriram essa geladeira".
- A geladeira da cozinha não podemos usar: eles notariam logo. E, mesmo assim, temos que esperar até que todos estejam dormindo. Não parece incrível?
- Na minha opinião, não devíamos fazer juízos categóricos sobre as pessoas, com base em fatos superficialmente observados. Não é preciso considerar boas todas as pessoas, mas também não se deve tê-las logo por extremamente más.
Falando bem alto, Melina concluiu:
- Vittorio sabe alemão. Ele sempre lê jornais alemães. E os senhores sabem o que mais ele faz? Está sempre lendo Der Spiegel!
- Que é isso? - interrogou Maria Sargantana, que, ao contrário do marido, dotado de um porte esguio, era corpulenta, quase obesa, e tinha a pele bem branca. Mostrava-se alegre e estava sentada à mesa com uma pose de rainha-mãe num trono. Usava um elegante vestido de seda cor de champanha, com a gola fechada, todo bordado na parte superior.
- É uma revista alemã - expliquei.
- Uma revista de tendência maoísta, não é verdade? - interrogou Melina Tenedos.
- Oh, não! - respondi.
- Ah, é claro que se trata de uma revista maoísta! - revidou Athanasios Tenedos, que nesse momento já havia acabado de comer a alcachofra e lavava os dedos recobertos de grossos pêlos pretos e ornados de anéis finíssimos numa salva prateada. - Não venha nos dizer, Monsieur Lucas, que essa revista não segue a linha de Mao Tsé-tung. Na Grécia, todo mundo sabe que ela é comunista. Além do mais, Der Spiegel é a favor de Brandt, não é verdade?
- Nem sempre - retruquei. - Não se pode dizer que ela se propõe defender sempre à risca a política de Brandt.
- Ora, pare com isso! - Tenedos começou a exaltar-se. - Eu também leio Der Spiegel. Como já lhe afirmei, nós bem sabemos que se trata de uma revista maoísta. E, em última análise, quem é o Sr. Brandt? Explique-me, por favor!
- É um social-democrata - respondi sem titubear.
- Portanto também um comunista - emendou sua mulherzinha, falando ligeiro com uma voz de timbre infantil.
- Todos os social-democratas são comunistas e Deus sabe que nós os conhecemos muito bem através das dolorosas experiências que tivemos na nossa pátria. Todos eles são comunistas e maoístas. Como Vittorio.
Tenedos foi o último a acabar de comer alcachofras. Os criados, todos de branco, calados e silenciosos, retiraram os talheres usados e colocaram novos, começando a servir o jantar. Éramos treze à mesa. Havia mais homens do que mulheres.
- O senhor também é maoísta, Monsieur Lucas? - perguntou-me a mulher de Tenedos, fitando-me toda faceira e catita.
- Não, madame.
- Que é o senhor?
Não cheguei a responder-lhe, pois nesse exato momento John Kilwood, que estava sentado no lado oposto, numa posição quase em diagonal com a minha, irrompeu num choro. Ele chorava bastante e soluçava, com a cabeça apoiada entre as mãos. As lágrimas começaram a pingar em seu smoking. Pasquale Trabaud levantou-se sobressaltada e, aproximando-se dele, colocou os braços nos ombros do americano que, consoante sindicâncias de Kessler, o caçador de sonegadores de impostos, possuía uma fortuna de setecentos milhões a um bilhão de dólares e que, segundo aquele funcionário do Ministério das Finanças de Bonn, havia compelido o banqueiro Herbert Hellmann a cometer suicídio.
Nossa animada conversa interrompeu-se. Todos os presentes, embaraçados e constrangidos, passaram a observar Kilwood, que, agora, soluçando e gemendo, chorava como criança, enquanto Pasquale Trabaud lhe falava baixinho ao ouvido. Ele só ficava balançando a cabeça, sem parar de soluçar.
- Freqüentemente lhe dá isso - explicou-me Bianca Fabiani, a mulher de exuberante beleza que estava sentada ao meu lado.
- É a bebedeira que provoca isso! - disse em voz alta o inglês Malcolm Thorwell, que estava sentado um pouco distante de mim. - John quase nunca se encontra no seu estado normal. Ele começa a beber desde manhã cedo. Mas que diabo, John! Contenha-se! Pare com isso! - gritou Thorwell, por fim.
Mas Kilwood não parava de chorar.
- Culpado... culpado... Eu sou culpado... - dizia ele choramingando.
- Cale a boca! - tornou a gritar Thorwell.
- É realmente grave o estado dele - disse Paul Seeberg, o procurador-geral do banco de Hellmann, que revelava ótima aparência, exceto pelos olhos. Estes expressavam uma certa frieza e obstinação, como aliás os olhos de todos os homens ali presentes, com exceção de Claude Trabaud. - Seria bom se ele fizesse um tratamento para abster-se de bebida.
- Mas ele está sempre fazendo esse tipo de tratamento - explicou Melina Tenedos.
- Contudo, esses tratamentos não adiantam nada. Eu disse a John diversas vezes que ele deveria ir a Viena. Lá existe um instituto que é o único na Europa capaz de tratar uma pessoa nessas condições com ótimos resultados, tornando-a até mesmo abstêmia. Mas ele nunca me atendeu.
- A culpa que pesa na minha consciência... - dizia Kilwood com a voz entrecortada de suspiros, ocultando a face com ambas as mãos.
- Se você está muito embriagado, permita que o levem para casa, mas não estrague nossa reunião desta noite - disse-lhe Giacomo Fabiani, expressando-se com veemência. Notava-se logo que Fabiani era um indivíduo forte e tinha um rosto brutal, com uma boca estranhamente flácida.
- Não agüentamos mais sua atitude, John!
- Perdoem-me, amigos, perdoem-me! - gaguejou Kilwood, começando a conter-se um pouco.
Os criados serviam quase sem virar os rostos.
Sobre a mesa, muitas velas colocadas em grandes candelabros difundiam pela sala uma luz suave. Todos os homens trajavam smoking. Angela, sentada ao meu lado, usava um vestido branco de musselina, sulcado de nervuras transversais e com um grande decote nas costas. Os braços nus revelavam sua pele morena. Na extremidade inferior do decote, havia uma faixa bordada, toda pontilhada de pérolas. Mais abaixo ela ajustara uma peça, também de musselina branca, que, exatamente como o vestido, chegava a roçar o chão de tão comprida. Essa peça tinha a configuração de uma vela de barco, ondulante, que, quando ela se punha a caminhar, desfazia-se em seguida, como que se desinflando. Calçava sapatos prateados. Trazia apenas uma bolsinha, também prateada. Estava usando exclusivamente jóias brancas
- um colar de brilhantes com o anel apropriado, pulseira e brincos. Sobre as pálpebras, de longos cílios, notava-se um leve sombreado turquesa. Os lábios estavam pintados levemente.
E eis que agora, às nove e meia da noite, estava em franco andamento o jantar na casa dos Trabaud. Todos os que ali estavam sentados pesavam - considerado o cômputo total dos seus patrimônios - certamente de três a cinco bilhões de dólares. Observei que todos os homens tinham mulheres muito jovens e que Angela estava bela como nunca. Notei, também, através das suas conversas, que nessa roda de velhos amigos ali reunidos predominavam recíprocas desconfianças. Cada qual temia o outro e ficava observando atentamente seus gestos, bem como a expressão do seu semblante. Digo mais: tive a nítida impressão de que ali, nesse círculo de gente ilustre, cada qual parecia estar convencido de que fora o outro quem havia mandado assassinar o banqueiro Herbert Hellmann.
Como última iguaria da noite foi servido um prato de lagostas bem fritas.
Capítulo 4
Angela e eu havíamos chegado meia hora antes, a pedido de Pasquale. (Para podermos dizer algumas bobagens e tagarelar um pouquinho, antes da chegada do bando.) Os Trabaud habitavam uma casa bem ampla, no bairro Cannes-Eden, na região leste da cidade. Com sua imponente fachada branca, ela se achava bem recuada no terreno, vendo-se, na frente, um imenso jardim. A casa possuía um enorme terraço, de onde se podia ver o mar, e dispunha de amplos quartos e salas com ar refrigerado. Deveria ter sido construída uns quinze anos antes. A construção era do tipo moderno. Custosos gobelinos revestiam completamente as paredes. Notava-se logo que os móveis eram finíssimos e caros. Pelo soalho estendiam-se vistosos tapetes. O ambiente revelava aquele inconfundível aspecto de um lar, e a gente se sentia bem logo que transpunha os seus umbrais. Naturalmente não havia ali nenhuma desordem nem falta de limpeza. Mas mesmo assim, viam-se, por exemplo, num canto uma folha de jornal, no outro, um livro esquecido, mais adiante, um cachimbo. Um terrier corria pela casa.
Pasquale Trabaud e Angela se abraçaram efusivamente e se beijaram no rosto logo após termos entrado. Pasquale era uma linda mulher, de porte elegante. Seu semblante revelava sensibilidade e sensualidade. Ela ria muito e com prazer.
- Eu e Angela somos realmente amigas, Monsieur Lucas. Muita gente pensa até que somos irmãs.
Pasquale também tinha cabelos louros. Seu marido, já beirando os sessenta (ela, quando muito, deveria ter uns quarenta anos), conservava o aspecto de um atleta, parecia estar cheio de energia e aparentava ser muito mais jovem. Era alto, corpulento e forte. Seu rosto se amorenara por efeito do sol. Conservava os cabelos constantemente penteados para trás.
Tomamos um drinque sentados no terraço. Todos fumavam, menos eu. Na verdade eu, agora, não tinha outro desejo senão permanecer com saúde por muito tempo - sempre tão sadio quanto possível - por causa de Angela, que realmente me cativara, transformando-me completamente. Ela se apresentava sempre diante de mim com muita naturalidade, sem nenhuma afetação. Revelava-se de uma discrição a toda a prova. Conservava sempre sua modéstia sem, contudo, deixar de ser altiva e briosa. Enfim, imprimia invariavelmente às suas ações um sentido nobilitante. Minha mulher jamais conseguiria ser assim. Tais foram os pensamentos que me invadiram naquele instante. Eu queria desviar minha mente desses pensamentos, o que, aliás, não foi difícil, pois Pasquale estava me chamando a atenção:
- O senhor não está me ouvindo, Monsieur Lucas?
- Desculpe-me...
- Eu disse que o senhor é simpático. Muito simpático mesmo. O senhor e Angela formam um par ideal. O senhor está apaixonado. A gente percebe logo.
- É verdade! - respondi. - Estou apaixonado por ela, realmente.
- Bem... acho que o senhor deve esperar um pouco. Tenha paciência. Angela também ficará apaixonada pelo senhor... Mas, para dizer a verdade, tenho a impressão de que ela já está.
- Realmente, Pasquale... eu não pensava que você... - começou Angela, como que reagindo às palavras indiscretas da amiga.
- Ora, meu tesouro, a gente nota essa paixão tanto em você como nele. Oh, como me alegro com isso!... Você não pode continuar sempre sozinha neste mundo!
- Madame - disse eu - agradeço muito. Se a senhora quer de fato ser minha aliada neste caso, procurarei satisfazer, no limite do que me for possível, todos os seus desejos.
- O senhor está louco! - exclamou Pasquale. - Satisfazer meus desejos! Nunca recebi de nenhum convidado tantas flores como do senhor.
Eu havia pedido a Pierre, da Floreal, que enviasse um buquê bem grande ao Majestic. Do hotel, levei comigo as flores, entregando-as diretamente a Madame Trabaud. Elas, agora, se encontravam expostas ali na sala, ao lado da lareira. Da parede que ficava sobre a lareira pendia um retrato de Pasquale pintado por Angela. O quadro só mostrava o rosto de Pasquale, coberto por um fino véu. Inegavelmente, Angela tivera êxito ao executar esse trabalho, que bem poderia ser classificado como uma expressiva criação no plano da arte pictórica.
- Como é bonito o seu smoking! - exclamou Pasquale.
- Foi Angela quem o escolheu para mim - disse eu com orgulho.
Eu me sentia muito satisfeito com o smoking, que era leve e permeável ao ar e que me assentava tão bem. Monsieur Trabaud usava um smoking escuro.
- Nota-se logo que ela o escolheu com muito amor - disse Pasquale.
- Pare com isso, Pasquale! - ordenou seu marido. - A pobre Angela já nem sabe para que canto olhar, de tão encabulada.
- Certamente - retrucou Pasquale. - É porque ela também está apaixonada. Fique sossegada, Angela: eu também sou mulher e compreendo o que lhe passa pela mente. Meus sinceros votos de felicidade, Monsieur Lucas!
Fique quieto, Naftali! O terrier estava latindo. Ele queria ser alisado. Pasquale inclinou-se sobre o animalzinho e começou a agradá-lo. Notava-se logo que ela era muito afeiçoada ao cachorrinho.
- Como é que a senhora o chama?
- Naftali. Naftali, o filho de Israel. Os israelenses, na sua pátria, são chamados de sabra. Sabra é a fruta do cacto. A casca dessa fruta, por fora, é áspera e espinhenta, mas, por dentro, a carnosidade é tenra e doce. Os jovens sabra são assim também: ásperos, grosseiros e, até mesmo, espinhemos por fora, mas no íntimo são dotados de uma alma facilmente impressionável, quase sentimental. Naftali se assemelha a eles: rabugento, de pêlos ásperos, aspecto muitas vezes selvagem, mas sempre fiel e afetuoso. Ele é realmente um animalzinho meigo. Não é verdade, meu bichinho? Você é a melhor coisinha...
- Sei que o senhor está investigando as causas da morte de Hellmann - disse Trabaud, levando-me a um canto do terraço, para uma conversa mais reservada enquanto esvaziávamos nossos copos.
- Sim. Essa é a minha incumbência.
- E não é lá uma incumbência muito fácil...
- Qual o senhor acha que poderia ter sido a causa da morte dele? Acidente? Suicídio? Assassinato?
- Não foi suicídio - respondeu Trabaud calmamente. - Hellmann absolutamente não era um homem com propensão ao suicídio. E declarei isso até a esse caçador de sonegadores de impostos... como se chama ele? ... ah, sim, Kessler.
Achei bem estranho o fato de Kessler não haver mencionado essa afirmação de Trabaud. Por quê?
- A hipótese de acidente deve ser excluída logo. Então trata-se de assassinato, não é verdade? - interroguei.
- Evidentemente só pode ter sido assassinato - confirmou Trabaud, sempre falando com calma. - E antes que o senhor formule outras perguntas, vou lhe dar alguns informes. Esse crime poderia perfeitamente ter sido cometido por qualquer um de nós, ou seja, qualquer uma das pessoas que o senhor vai conhecer logo mais. Quero dizer, é claro, que qualquer uma delas poderia ter mandado matar Hellmann, contratando algum sicário.
"Até mesmo os Bienert e os Simon, que se encontravam no iate e foram vítimas da catástrofe, teoricamente não podem ser excluídos. Eles também mantinham vultosas transações com Hellmann. Admitida a hipótese de terem sido eles os mandantes, deve-se concluir que o assassino contratado teve má sorte na execução do serviço. O sicário certamente recebera ordens de fazer voar pelos ares somente Hellmann."
- Hellmann e os elementos da tripulação, naturalmente.
- Sem dúvida. Aqueles pobres-diabos também. Essa suposição envolvendo os Bienert e os Simon, na verdade, não passa de uma simples brincadeira. Mas os outros, isto é, nós, não podemos absolutamente ficar fora de cogitação, oh, não!
- Ah! - exclamei e tirei do bolso um cartão de visita e uma caneta, dizendo a Trabaud:
- O senhor poderia me fazer a gentileza de escrever os nomes de todos os seus convidados? Eu não conheço a grafia desses nomes e não seria muito aconselhável perguntar isso diretamente a cada um deles.
- Com muito prazer!
Colocando o papel no parapeito do terraço, ele escreveu todos os nomes. Guardei, então, o cartãozinho com os nomes e a caneta.
- Toda essa gente - prosseguiu Trabaud - mantinha transações comerciais com Hellmann. - Para mim, essa afirmativa constituía uma novidade. Será que Kessler não ficara sabendo disso? Claro que não! - Eles efetuavam operações bancárias muito camufladas ou dissimuladas com o banco de Hellmann, naturalmente por causa dos impostos e das restrições criadas pela lei vigente, no tocante à transferência de divisas. E deve-se dizer que todos só faziam seus negócios através do banco de Hellmann. E eu também, Mon-sieur Lucas. Por que devo mentir-lhe? Portanto, eu também teria uma razão para liquidar Hellmann. Como todos os outros. Esse vai ser indubitavelmente um caso difícil para o senhor resolver. E o que vai acontecer daqui por diante já se sabe: Hilde dos Brilhantes, logo que melhorar, recuperando o necessário equilíbrio mental, continuará dirigindo os negócios do banco. Só Deus sabe o que poderá acontecer então. É de esperar que ela nomeie o atual procurador-geral do banco, esse jovem Seeberg, para dirigir os negócios. Seeberg é um indivíduo com o qual se pode tratar. Bem, voltemos para junto das senhoras...
Pasquale disse:
-- Agora me dei conta de que ainda não mostrei a casa a Monsieur Lucas. Aqui vivemos muito felizes. A casa foi edificada de acordo com nosso projeto. Da mesma forma, nosso iate foi construído rigorosamente de acordo com o projeto de Claude... Angela, chérie, agora vou raptar Monsieur Lucas de você. Você me permite? Poderá ficar longe dele durante alguns minutinhos?
- Pasquale, por favor! - exclamou o marido. Ela riu.
- Portanto, Angela, não deixe de nos observar! Cada vez que vejo um par enamorado...
Ela me conduziu por toda a casa. Também ali patenteava-se o poder da riqueza, porém de modo muito diferente do que se via no palacete de Hilde Hellmann. Finalmente fomos parar num espaçoso porão, onde havia máquinas de lavar roupa e diversas tábuas de passar.
- Quase sempre sou eu mesma que lavo e passo as camisas e roupas brancas do meu marido - explicou-me Pasquale. - Aqui ao lado há um quarto de costura. Eu mesma faço os pequenos trabalhos de costura nos meus vestidos.
Ela usava nessa noite um vestido de Pucci nas cores azul, verde e laranja, O vestido dispunha de uma peça especial na altura dos seios, com alças presas em volta do pescoço. Ela estava ornada de valiosíssimas esmeraldas. As jóias de Angela, em menor número, eram igualmente bonitas e muito valiosas. Angela, na verdade, só possuía as que pudera comprar, empregando suas economias.
- A senhora costura?
- A costura foi, de fato, a única profissão que aprendi na minha vida. - Pasquale encostou-se na máquina de lavar roupa. - Monsieur Lucas, eu gostaria muito que o senhor ficasse sabendo de tudo a nosso respeito. Realmente hoje somos muito ricos. Mas nem sempre o fomos, e Deus bem sabe que é verdade o que estou lhe dizendo. Hoje em dia meu marido possui cadeias de hotéis na Espanha, em Mallorca, na Grécia, na Itália e na Alemanha. Na época em que nos conhecemos, logo após a guerra, ele possuía apenas um pequeno hotel em Toulouse, herdado de um tio seu. Não conheço ninguém que tenha trabalhado tanto na vida como ele. Logo no início, a coisa não corria muito bem e eu fui forçada a trabalhar na minha antiga profissão de manequim para ajudar a ganhar qualquer coisa. Tudo o que Claude possui hoje foi ganho com muito trabalho e muito esforço. E ele sempre teve minha ajuda. Quero que o senhor saiba disso.
- Agradeço-lhe pela confiança. que a senhora deposita em mim, madame.
- E há mais - prosseguiu Pasquale -, eu e Angela somos realmente amigas. Ela é independente, pode fazer o que quer e possui dinheiro suficiente. Mas é meu ardente desejo que ela encontre um grande amor. Se existe amor entre o senhor e ela... realmente um grande amor... o senhor não deve decepcioná-la. Ela já sofreu uma grande desilusão e não creio que possa suportar uma segunda tão grande assim. - Ouvimos, nesse instante, o ranger dos pneus de um carro rodando sobre o saibro. - Os primeiros convidados estão chegando. Sei que o senhor é muito gentil e afável. O senhor ama Angela e eu gosto muito dela. Passe a chamar-me simplesmente de Pasquale. Posso também chamá-lo de... Como é mesmo seu nome?
- Robert.
- Posso chamá-lo simplesmente de Robert?
- Naturalmente, Pasquale!
- Você, Robert, não deverá jamais fazer Angela infeliz.
- Claro que não!
- E espero que nunca a engane com mentiras.
- Nunca! - respondi, embora sabendo que já lhe havia mentido.
Capítulo 5
Os convidados começaram a chegar, um após outro. Carros e mais carros iam entrando. Os criados serviam champanha no terraço. Ninguém, a não ser eu, havia trazido flores a Pasquale, conforme pude observar.
Os convidados riam, conversavam animadamente, bebiam, fumavam e caminhavam de um lado para outro, movimentando-se entre aqueles vasos de plantas floridas, colocados sobre o chão. Pasquale se encarregou de fazer a minha apresentação a todos esses multimilionários. Percebi que eles me observavam com desconfiança. E deve-se dizer que a atitude deles não era de estranhar, pois certamente não contavam com a presença de um agente da companhia de seguros naquela recepção.
Ao chegar, John Kilwood já estava bêbado. O seu chofer teve de trazê-lo para dentro. Estava magro e parecia infeliz. Notavam-se sulcos profundos em torno de seus olhos. Seu rosto estava inchado, com os poros salientes. As mãos lhe tremiam quando segurava o copo. Seu smoking achava-se um tanto amarrotado, e na camisa viam-se manchas de uísque derramado. Segurava com tanta firmeza o copo, como se este fosse seu único ponto de apoio. Bebia desregradamente. Só uísque. Nada de champanha.
- Boa noite, espião desconfiado! - disse ele dirigindo-se a mim."
- Boa noite, Mr. Kilwood!
- Vou ser preso agora? Você veio me buscar, não é?
- Que diabo entrou no seu corpo agora, John? Deixe de dizer besteiras! - ordenou-lhe, ralhando, o inglês Malcolm Thorwell, que nunca se separava de Kilwood. Thorwell era corpulento e esbelto. Estava elegantemente vestido. Tinha um timbre de voz ligeiramente cantante e ostentava uma pose de super-homem. Tive a impressão de que ele sentia alguma dificuldade respiratória.
- Não é nenhuma besteira o que estou dizendo. Fui eu que matei Hellmann! Está certo ou não está certo? Claro que está certo! Você é que não quer responder nada. Você nada tem para retrucar. E dizer que Hellmann era meu amigo! Um grande amigo! Na época da minha convocação para o serviço militar, ao submeter-me ao exame médico, um psiquiatra cretino perguntou-me: "O senhor, Mr. Kilwood, seria capaz de matar alguém?" Lembro-me de que lhe respondi: "Um estranho, talvez não, mas um amigo certamente eu seria capaz de matar".
Todos os presentes ficaram calados.
- Bem... isso que contei é apenas uma anedota __ emendou Kilwood maliciosamente. - Eu queria fazer vocês rirem. Portanto, avante, Mr. Lucas! Onde estão as algemas? Eu me confesso culpado.
- Por que o senhor matou Hellmann, Mr. Kilwood? - perguntei- lhe.
- Escute aqui, Monsieur Lucas: o senhor evidentemente não está levando a sério... - começou Thorwell.
- Mas ele tem que levar a sério esta minha confissão.
- Kilwood já andava quase cambaleando. - Vou dizer-lhe por que o matei.
- Por quê?
- Porque eu pedia a ele que me comprasse uma chácara para cultivar buganvílias e ele me enganou, dando-me um calote. Você naturalmente conhece a buganvília, aquela planta que dá umas florzinhas tão lindas... Umas florzinhas minúsculas e coloridas. É a planta que mais adoro neste mundo. Você conhece a buganvília, não é?
- O senhor poderia fazer a gentileza de me escrever o nome dessa planta e onde deveria ser esta chácara?
- Em Vence.
- O senhor poderia fazer a gentileza de me escrever o nome dessa planta? - pedi, já lhe entregando a minha caneta e um dos meus cartõezinhos.
Com espantosa rapidez ele rabiscou algumas palavras no verso do cartão.
- Antes que o culpado seja conduzido para sofrer a merecida punição, ele tem o direito de tomar o último uísque, não é verdade? Ei, garçom!...
A partir desse momento ele só cambaleava.
- O que ele diz não passa de asneiras de um bêbado. O senhor não está levando a sério esse falatório dele, não é verdade? - perguntou-me Thorwell.
- Claro que não!
- Mas por que, então, o senhor pediu que ele escrevesse o nome da planta naquele cartão?
- Eu queria simplesmente saber como se escreve buganvília.
- Não acredito. Desculpe-me, mas essa não é uma razão muito plausível!
- Na verdade não é.
- O senhor coleciona autógrafos?
Não lhe respondi. Agora eu já tinha as caligrafias de Hilde Hellmann, Seeberg, Trabaud e Kilwood.
- Por que o senhor coleciona autógrafos?
- Por prazer - respondi-lhe simplesmente.
- Ah, sim! Quem sabe o senhor quer ter também um autógrafo meu?
- Com muito prazer!
Todas as lâmpadas no terraço se achavam ocultas entre os arbustos e por isso projetavam sombras bizarras sobre nós.
- Que devo escrever? - perguntou-me, enquanto pegava o meu cartãozinho e minha caneta.
- Escreva: "Eu não assassinei Hellmann".
- Realmente não fui eu quem assassinou Hellmann.
- Se tivesse sido o senhor, não seria a mim que confessaria o crime.
- Sim. Está certo. - Sorriu e, numa atitude de indivíduo mulherengo, perguntou-me:
- Que doçura de mulher a Pasquale dentro daquele vestido Pucci, não é verdade?
- Realmente uma verdadeira doçura.
- Sempre dou sugestões às mulheres que conheço, para a escolha dos seus vestidos. O senhor nem imagina como quase todas elas se sentem inseguras com relação ao tipo de vestido mais adequado para realçar-lhes o porte. E elas quase nunca têm bom gosto. Por exemplo, aqui nesta reunião, Angela tem bom gosto; Pasquale também. Mas observe bem Bianca, que está ali! Que descalabro!
- Observar quem?
- Bianca Fabiani. Ela está ali do outro lado, de pé junto ao marido, aquele pobre imbecil. Todo mundo sabe que ela o trai constantemente. Ela foi outrora revue-girl, no Lido, em Paris. Observe só aquele seu vestido de brocado de seda! Dá até vontade de derrubá-la a tiros! Só porque tem uns seios lindos e vistosos ela acha que nas reuniões sociais deve mostrar tudo. O senhor não está vendo as tetas dela?
- Não. O senhor está exagerando - respondi.
- Não estou exagerando coisa nenhuma! Estou vendo ambas as tetas. Pequenas e rosadas! Olhe agora, que ela está se inclinando um pouco para a frente! Bem... mas voltemos ao assunto do crime.
Evidentemente o senhor quer encontrar o assassino. Posso garantir-lhe que não é Kilwood, esse pobre beberrão, que merece a compaixão de Deus. O senhor sabia que Fabiani transferira para a Alemanha um montante absurdo em liras, que ficou depositado no banco de Hellmann, só porque ele supunha que em breve essa moeda iria sofrer uma queda brusca na Itália?
- Não, eu não sabia nada disso.
- Ele achava que a lira iria sofrer brevemente uma estrondosa queda, mas o fato é que até agora ela continua mantendo o seu valor. E Fabiani está precisando que seu dinheiro volte para a Itália com a máxima urgência. Ouvi dizer que Hellmann se encontrava em sérias dificuldades financeiras, provocadas pelo caso das libras esterlinas, e que não podia, portanto, efetuar esse pagamento para reconversão em liras. Segundo os comentários que se espalharam por aí afora, o vultoso negócio que Hellmann e Fabiani estavam efetuando era ilegal.
- Que tipo de negócio?
- Uma fraudulenta e delicada negociata com divisas. Ora! Mas o senhor não se surpreende em saber que o maravilhoso Hellmann, o corcel favorito da sua pátria, o banqueiro made in Germany, não se achava em condições de devolver a Fabiani o dinheiro que este havia transferido da Itália e depositado no seu banco? É bem provável que, ante a insistência de Fabiani, Hellmann lhe tenha feito a ameaça de tornar pública essa negociata. Neste ponto, para que nos entendamos melhor, é bom que se explique: esse negócio deles era ilegal, na Itália, mas na Alemanha, não. Que poderia acontecer a Fabiani se Hellmann realmente cumprisse a ameaça? Naturalmente, o que estou lhe dizendo não passa de simples hipótese, de mera suposição. Mas... quem é aquele homem de aspecto jovem e de boa aparência que está ali do outro lado?
- É Paul Seeberg, o procurador-geral do banco de Hellmann - expliquei-lhe.
- Realmente ele sabe como um homem deve vestir-se. Tem bom gosto. Desculpe-me, Monsieur Lucas, preciso agora apresentar-me a esse Seeberg. Indiscutivelmente ele é um jovem de ótima aparência.
Capítulo 6
Os Fabiani e os Tenedos estavam juntos quando me aproximei deles. Interromperam bruscamente a conversa. Depois começaram a falar todos ao mesmo tempo. Realmente notavam-se as glândulas mamárias de Bianca Fabiani. Thorwell até que não havia exagerado muito. Ela se achava vestida de maneira pouco apropriada para realçar seu porte, muito embora seu vestido talvez tivesse custado uma pequena fortuna. Não havia ainda perdido totalmente aqueles modos peculiares à sua antiga profissão de revue-girl, revelando uma espécie de faceirice bem coquete.
- É o senhor que anda procurando o assassino do pobre Monsieur Hellmann? - interrogou-me Bianca, sorrindo sem motivação aparente.
- Sim - respondi.
- Qualquer um de nós poderia ter sido o assassino - continuou o grego, cuja cabeça, em virtude do pescoço curto, parecia ter sido simplesmente colocada sobre os ombros. Enquanto ele falava, não parava de acariciar o braço da sua boneca. - Todos nós tínhamos motivos para liquidar Hellmann. Se ele quisesse, teria podido me arruinar ou, pelo menos, destruir minha boa reputação. Eu teria tido, portanto, minhas razões. Fabiani também devia ter as suas, não é verdade?
- Sim - respondeu este, conservando-se sempre sério, - Nem é preciso dizer-lhe quais as razões que eu teria para cometer esse crime, pois Thorwell acabou de explicar-lhe tudo.
- Quem foi que lhe disse isso?
- Ele lhe contou tudo, quando o senhor conversava com ele, antes de vir para a nossa roda.
- Ele me contou tudo?!
- Não procure dissimular fazendo essa encenação, Monsieur Lucas! Notamos como ele nos olhava, a mim e a minha mulher.
- Esse pacote de carne que anda sempre fungando com falta de ar - disse a antiga bailarina do Lido, hoje Signora Fabiani, uma das mulheres mais ricas do seu país.
- Corromper jovens como um verdadeiro depravado é só o que ele sabe fazer. Já devia estar trancafiado na cadeia por causa disso. Por isso e também por causa do assassinato. Quem poderia ter melhor razão do que ele para cometer esse crime?
- Como assim? - interroguei. Tomando a palavra, Tenedos responde:
- A filial inglesa da Kood pertence quase exclusivamente a Thorwell. E essa filial, por causa da negociata de divisas entre Hellmann e Kilwood, foi forçada a requerer falência. Então, não é uma razão ponderável?
- Sem dúvida - respondi. - Esse fato poderia perfeitamente ter sido uma das razões. Eu julgava que todos os senhores fossem bons amigos.
- E somos, de fato, bons amigos! - retrucou Melina Tenedos. - Mas nada nos impede de brincar de cometer crime, não é verdade?
Ela riu. Todos riram, Eu também.
- É claro. Todos nós podemos brincar de crime - obtemperei.
Um criado encheu novamente os copos com champanha. De um momento para outro, meu trabalho tornara-se mais fácil: Melina Tenedos, a boneca baby face, propôs que todos juntos escrevessem uma carta à pobre Hilde Hellmann, que andava tão doente. Pasquale foi buscar o papel. Deixei Tenedos escrever em primeiro lugar. Ele rabiscou duas linhas. Depois Fabiani. Seguiu-se, então, Sargantana, que parecia ter estado a domar potros chucros poucas horas antes. Escreveu apenas algumas palavras. Em seguida as mulheres assinaram, inclusive Pasquale.
Desse modo, como portador da carta, fiquei com a caligrafia de todos.
- Despacharei esta carta lá do meu hotel - disse enquanto a enfiava no bolso interno do smoking.
Capítulo 7
- Então venha visitar-me amanhã sem falta - disse-me José Sargantana, que fora o último a falar comigo. - Acho que tenho algo muito importante para dizer-lhe.
Todos nós conversávamos em francês. Alguns dos presentes não podiam evitar um sotaque terrível. Sargantana deu-me seu cartão, dizendo-me:
- Aqui nada direi sobre esse assunto. Não posso fazer isso em casa de amigos.
- Mas de que se trata?
- O senhor está procurando um assassino, não é verdade?
- Sim.
- Pois bem... - Fez uma reverência inclinando-se profundamente para beijar a mão de Pasquale, que, nesse instante, se aproximava de nós.
- Minha queridinha, como você está maravilhosa! - exclamou. Em seguida, voltando-se de novo para mim, disse:
- Amanhã às nove horas o senhor poderá dirigir-se ao endereço indicado. Estarei esperando.
- É muita gentileza da sua parte - disse-lhe.
Angela encontrava-se sozinha na escada que, do terraço, dava acesso ao jardim escuro. Segurava o copo de champanha e fumava.
Fui para perto dela.
Capítulo 8
- Então, como é? A reunião está sendo proveitosa para você? Fez alguns progressos nas suas investigações? - perguntou-me Angela.
- Está tudo confuso e atrapalhado, mas vou prosseguir com meu trabalho.
- Muito bem!
- Que é que você tem? - perguntei-lhe. Com aquele vestido branco quase tocando o chão e aqueles cabelos louros, ela parecia uma encantadora mulher artisticamente pintada num quadro, tendo como fundo, em magnífico contraste, o jardim escuro.
- Não tenho nada. Por quê?
- De um momento para outro você ficou diferente, Angela.
- Eu fiquei diferente?!
- Sim. Por quê? Será que fiz algo?...
- Não, Robert, você absolutamente não fez nada.
- Então por que você está assim?
- Por causa de Pasquale. - Ela fumava continuamente, sem poder ocultar seu nervosismo. - Sei que ela não fez por mal. Contudo, o. que ela disse foi muito desagradável para mim. Estou me referindo ao que ela disse com relação a nós. Não nego que ela seja uma boa amiga. Só quer me ver feliz. E ela gostou muito de você. Mas, mesmo assim, não havia nenhuma razão para nos apontar logo como namorados e apaixonados.
- Não - obtemperei. - Lamentavelmente ainda não há razão para que ela nos considere namorados. E você é de opinião que isso jamais acontecerá?
- Robert, você me havia pedido que eu providenciasse esta recepção. Minha intenção não foi outra senão ajudá-lo.
- Você me ajuda sempre. Responda à minha pergunta, Angela!
- Pasquale nos convidou para um passeio amanhã no seu iate. Às onze e meia, devemos estar em Port Canto. Ela é uma verdadeira cafetina.
- Portanto, sou apenas eu que a amo. Pelo que vejo, você não quer admitir a existência do meu amor, não é verdade?
- Sim, Robert. É exatamente assim. Com relação ao amor, já tive as minhas experiências na vida, como você bem sabe. E não foram experiências muito boas. Por isso hoje em dia prefiro ter um novo amigo muito bom, a um novo amor que poderá terminar mal.
- Mas essa sua suposição é falsa! - exclamei. - Como é que Pasquale ficou sabendo tantas coisas a meu respeito? Quem foi que lhe disse que eu a amo imensamente?
- Fui eu - respondeu-me Angela, demonstrando um certo abatimento. - Eu lhe havia explicado tudo pelo telefone. Conversamos durante mais de uma hora depois que você viajou para Düsseldorf. Parece-me que... - Angela voltou o rosto para mim e sorriu. Então surgiram de novo nos seus olhos lindos aqueles dois pontinhos dourados que luziam como duas diminutas fagulhas. - Parece que sem me dar conta eu disse a ela uma porção de coisas a seu respeito.
- Ah... Agora compreendo - respondi, já sentindo que uma nova onda de felicidade me invadia. - Bem... sendo assim, de amor não se fala mais, nunca mais!
- Nunca mais! - repetiu Angela, fitando-me com um sorriso nos lábios, que me pareceu um tanto brejeiro.
Ela continuou me fitando. Passei, então, a refletir que, para conceber perfeitamente a magnitude da felicidade, a gente deve imaginar tê-la perdido completamente, para recuperá-la depois. Como é óbvio, uma reflexão desse tipo permitir-nos-ia formar uma idéia mais significativa das experiências vividas e sentidas, especialmente nas dolorosas rases em que nos sentimos infelizes.
- Que pena! - exclamei.
- É mesmo uma pena, não é verdade?
- Então amanhã iremos passear de iate?
- Foi o que prometi a Pasquale. Tem algum outro compromisso para amanhã?
- Posso distribuir melhor o meu tempo...
- Você é gentil, Robert. Muito gentil.
- Eu amo você. E quando a gente ama de fato a prática da gentileza não passa de um brinquedo de criança.
Nesse momento, o louro Seeberg se aproximou de nós. Com uma das mãos segurava o copo de champanha e com a outra o cigarro. Também ele trajava um smoking branco.
- Não venho perturbá-los?
- Oh, absolutamente não! - respondeu Angela.
- Mas é claro que o senhor vem nos atrapalhar - retruquei.
Então rimos os três.
- Quero apenas cumprimentá-los da parte da Sra. Hellmann - disse Seeberg, fitando-me com os olhos cheios de frieza, enquanto falava com um sorriso nos lábios. - Ela pediu-me para transmitir-lhe os mais cordiais cumprimentos, Sr. Lucas. E à senhora também, Madame Delpierre. A Sra. Hellmann sentiu muito por não ter podido vir a esta reunião devido ao seu estado de saúde... Ao que me parece, os distintos senhores aqui presentes estão desempenhando um estranho papel... e falam do assunto em voz alta.
- É verdade - respondi. - Trata-se do papel de assassino. Quem cometeu o crime? Cada um aqui presente é de opinião que foi o outro.
- Não será algum deles de opinião que o criminoso seja eu?
- Não. Ninguém suspeita do senhor - retruquei.
- É bastante estranho! Então ninguém suspeita de mim?
- Foi realmente o senhor quem cometeu esse crime? - interroguei.
- Eu teria confessado imediatamente minha culpabilidade ao senhor se tivesse sido o criminoso. Seria uma atitude decente... Mas posso lhe assegurar que eu seria incapaz de cometer um crime dessa natureza.
- E de quem, na sua opinião, se deve suspeitar? - indagou Angela.
- Madame, uma pergunta tão direta merece indubitavelmente uma resposta idêntica. Que acha a senhora do seu amigo Claude Trabaud? Será que desconhece suas transações com o banco de Hellmann?
- Como poderei saber? É de praxe, no banco dos senhores, revelar publicamente assuntos que, pela sua natureza, devem ter um caráter sigiloso? - inquiriu Angela.
- Ouvi quando alguns dos cidadãos aqui reunidos comentavam esse fato, invocando até o meu testemunho.
- Bem... Se é assim...
- É como estou lhe dizendo. Sr. Lucas, que acha dessa suspeita que estou levantando?
- Há uma porção de suspeitos. A confusão está se tornando cada vez maior - respondi-lhe. - E fico mais confuso ainda porque foi o próprio Trabaud quem me falou dessas transações com o banco de Hellmann, um pouquinho antes da sua chegada.
- Então deve ter resolvido fazer apenas alguns comentários superficiais sobre esses negócios. Bem, deixando de lado esse assunto... tirou algum proveito da minha caligrafia?
- Não compreendo a que o senhor está se referindo. O cãozinho Naftali, com suas perninhas tortas, passa por nós bem devagarinho.
- O senhor me mandou escrever o nome da água-de-colônia que uso. Grès pour Homme.
- Ah, sim, agora me lembro. Realmente, Sr. Seeberg, logo se nota que o senhor lê romances policiais.
Capítulo 9
"Você não permite que ninguém lhe fale. Você é inexorável. Não tem pena de ninguém. Por isso, ninguém tampouco terá compaixão de você. Pessoa alguma, por estúpida que seja, deixa arruinar-se na vida sem reagir e defender-se. Você devia saber que não havia nenhum bobo ao seu lado, Herbert. E sabia muito bem."
Essas frases, em francês, achavam-se escritas a mão numa folha de papel branco, lisa, que o baixinho Louis Lacrosse me havia mostrado na primeira vez em que estive no seu gabinete.
- Revistamos e vasculhamos todo o palacete de Hellmann, especialmente seu quarto. Hilde dos Brilhantes não se opôs a isso. Então, na gaveta de uma das mesas, encontramos este papel. Sem dúvida é um bilhete simulado, mas mesmo assim não podíamos desprezá-lo.
- E não foram encontradas impressões digitais?
- Nem o mínimo vestígio. Apanhamos esta folha de papel sem dizer nada a ninguém. Será muito mais difícil para nós obter as assinaturas, ou, melhor ainda, algumas frases escritas, de todas as pessoas suspeitas de cumplicidade, a fim de serem examinadas por um perito. Você pode encarregar-se disso?
Aceitei a incumbência. Já possuía a caligrafia de todos os homens e mulheres apontados como suspeitos. Não! De todos, não. Faltava a de Herbert Hellmann, bem como as dos casais Bienert e Simon, precisamente as vítimas da catástrofe. Seria absurdo querer conseguir a caligrafia deles, pensei.
Mas seria mesmo um absurdo?
Capítulo 10
- Ora, eu pergunto: por que devem ser sempre os vestidos de Pucci? Ele cria sempre os mesmos tipos. Pois eu, pelo mesmo preço, posso adquirir dois magníficos vestidos de Nina Ricci.
- E, agora, a Conferência do Plano Salt! Que foi que aconteceu realmente? Você sabe tão bem quanto eu que os americanos e os russos continuam fazendo pesquisas subterrâneas em série, com o emprego de foguetes atômicos.
- Eu garanto, meu amor, que ela tem um casinho com o chofer dele... Isso é mais do que certo.
Conversinha de mesa...
Com a maior cortesia, os três criados serviam carne, verduras, arroz e salada.
- Os Trabaud é que são felizes - disse Melina Tenedos, dirigindo-se a mim. - Estes sim é que são criados verdadeiros! Num pessoal assim a gente pode ter confiança. Mas nós... Que coisa horrível! Lá em casa... só com uma geladeira dentro do piano e um revólver engatilhado sobre a mesinha-de-cabeceira... para evitar que essa corja mate algum de nós!
- Sim, uma situação dessas é realmente horrível - disse eu.
Ela meneou a cabeça, como que a confirmar minhas palavras.
Senti novamente que a ponta do pé de Angela batia no meu sapato. Nunca, antes, mulher alguma fizera uma coisa dessas comigo. E essa atitude me deixava um pouco atrapalhado. Angela conversava com Paul Seeberg, que estava à sua direita.
- Prestem atenção todos, por favor! - disse Angela, quase gritando. - É muito interessante o que o Sr. Seeberg está contando aqui.
Houve então um profundo silêncio em torno da mesa. O próprio John Kilwood, que não comera quase nada, bebendo uísque sem parar, levantou os olhos demonstrando atenção. Parecia até que ainda não havia começado a beber.
- As Nações Unidas estão realizando em Santiago do Chile uma conferência sobre desenvolvimento e comércio - explicou Seeberg. - Eu estive lá. A conferência estava em franco andamento, quando se deu a catástrofe, obrigando-me a tomar o avião direto do Chile para cá, a fim de prestar minha assistência à Sra. Hellmann. Mesmo assim, antes de embarcar, tive a oportunidade de ouvir uma porção de discursos, inclusive o pronunciado pelo presidente da União Internacional dos Sindicatos Livres. Acho que devemos nos ocupar mais dessa gente. É imprescindível que nos inteiremos imediatamente das suas atividades.
- Preocuparmo-nos com o sindicato?! - perguntou Melina Tenedos, apavorada.
- Fique quieta! - ordenou-lhe o marido.
- Que é que desejam, pois, os sindicatos? - indagou John Kilwood, falando, para surpresa de todos, com a voz clara.
- Prestem bem atenção no que vou dizer - prosseguiu o elegante Paul Seeberg, expressando-se num francês quase sem sotaque: - O tal presidente declarou enfaticamente: "Os sindicatos consideram uma perigosa ameaça ao pleno exercício dos seus direitos as atividades que as empresas multinacionais vêm desenvolvendo no plano internacional, com o processamento da transferência de fundos".
- E de que outra maneira poderiam elas desenvolver suas atividades? - resmungou Sargantana.
- Ele não se referia especificamente às operações de transferência de capital - explicou Seeberg. - O orador declarou de modo explícito que o perigo reside principalmente no fato de tais empresas se julgarem isentas da obrigação de se submeterem fielmente às leis de qualquer país, como também o fato de se esquivarem, seja lá de que maneira for, a um controle democrático das suas operações, a rim de se eximirem de toda e qualquer responsabilidade de caráter social.
- Mas esse tem sido o assunto martelado pelos sindicatos em todos os países - argumentou Fabiani, ao mesmo tempo que, com um sorriso nos lábios, dizia ao criado que se encontrava atrás dele com uma bandeja nas mãos:
- Não, muito obrigado. Já estou satisfeito. Seeberg prosseguiu:
- Estou evidentemente acima de qualquer suspeita de ser um mediador que intercede a favor dos sindicatos...
- Por que o senhor se julga, então, acima de qualquer suspeita? - interrogou Bianca Fabiani, alteando a voz.
- Fique calada! - rosnou, ralhando, seu marido. Fitei Bianca nesse instante. Seu vestido estava realmente muito decotado.
- Perdão, madame! Eu disse isso a título de simples informação - explicou Seeberg com uma voz calma. - Não estamos mais vivendo sob o capitalismo do século XVIII. O mundo se encontra numa fase de profundas transformações. Os sindicatos estão se unindo e formando um potente bloco. E eu sinceramente temo que eles saiam vitoriosos, se não formos bem sucedidos ao tratar com eles.
- A menos que os dirigentes dos sindicatos sejam uns corruptos - retrucou Bianca Fabiani com um sorriso aparvalhado -, não será difícil tratar com eles. Mas não vamos também ao cassino depois do jantar?
Os criados encheram os copos com champanha. Kilwood agarrou outro copo de uísque. As chamas das velas nos candelabros bruxuleavam levemente.
- Sim, ainda vamos ao cassino, Bianca - respondeu Tenedos. - Mas os sindicatos não são corruptos. Absolutamente. Seeberg tem razão: a gente deveria tratar com eles.
- Tratem vocês com Satanás, se quiserem! - rosnou John Kilwood.
- John! - bradou Thorwell, enfurecido. - Você não passa de um bêbado bobalhão. Você é um grande tolo sanguinário. Então acha que devemos esperar de braços cruzados, até que surjam os acontecimentos que os sindicatos predizem com muita razão?
- Na verdade, é o que me pergunto também, considerando a situação - prosseguiu Seeberg. - Foi por isso que citei aqui a conferência de Santiago. Peço desculpas às distintas senhoras aqui presentes pelos aborrecimentos que causei.
- No jogo, sempre a mesma repetição: o zero e os dois números próximos, o da esquerda e o da direita. O número 29 também. - Era Bianca Fabiani quem falava. Ela já se achava um pouco bêbada.
- Amanhã, no iate! - lembrou-me Pasquale. - Vocês dois têm uma aparência maravilhosa!
- Por favor, Pasquale, pare com isso! - exclamou Angela.
Pasquale riu.
- Angela ficou vermelha. Bem vermelha mesmo. Ela ainda fica vermelha. Como eu gostaria também de poder ficar assim! Oh, Santo Deus do céu, qual foi mesmo a última vez em que fiquei?
Novamente senti a ponta do sapato de Angela batendo no meu.
Capítulo 11
Cerca das onze horas, a reunião terminou. Angela explicou-me:
- Daqui vamos ao Municipal. Fica na extremidade oeste da Croisette, lá no antigo porto. É o local do assim chamado cassino de inverno. No verão, a partir de junho, começa a funcionar o Palm Beach, o cassino de verão, que fica além de Port Canto, na outra extremidade da Croisette.
- No Municipal, o ambiente é muito agradável. E a gente pode comer muito bem no Ambassadeur. Monsieur Mario, o maítre do restaurante, é simplesmente fantástico - disse Bianca Fabiani.
Encontrávamo-nos no saguão. As senhoras vestiam seus casacos de peles e colocavam as estolas. Angela havia trazido uma estola branca de pele de marta. Os convidados começaram a se dirigir aos respectivos carros. Já à saída, virei-me com uma nota de cem francos na mão.
- O que é que o senhor está procurando?
- Eu teria imenso prazer em deixar esta nota para o pessoal.
- Coloque-a naquele prato - disse-me Claude Trabaud, fitando-me de maneira estranha.
No prato que estava sobre uma velha cômoda, já havia algumas notas. Pus ali a minha também.
- O senhor é o único! - declarou-me Trabaud.
- Repita, por favor. Acho que não entendi bem.
- Eu disse que o senhor é o único que deixa gorjeta para os empregados. As outras notas que estão no prato foram colocadas por mim mesmo, a fim de salvar as aparências diante do meu pessoal.
- Então o senhor já previa que nenhum desses mul-timilionários daria...
- Nenhum deles. É por isso mesmo que eles se tornaram multimilionários. Um desses cidadãos... que se encontrava aqui conosco... cujo nome não quero declarar, compareceu muitas vezes às nossas recepções, convidado por nós, sem nunca deixar nem mesmo um centavo de gorjeta para os empregados. Numa de nossas recepções, Pasquale lhe disse: "Os empregados já andam comentando que você nunca lhes deixa gorjeta. Por isso dei-lhes cinqüenta francos e disse que você me havia entregue esse dinheiro para tal fim". Esse cidadão quase teve um acesso de raiva e gritou: "Cinqüenta francos?! Você devia ter dado cem francos, Pasquale! Agora eles vão dizer que sou pão-duro e miserável!" - Rimos ambos. - Ela devia ter dado cem francos, como o senhor. O senhor jamais se tornará um homem rico.
- O senhor tem razão. Temo que nunca me tornarei rico.
- Mas sem dúvida será sempre feliz... assim lhe desejo.
Em seguida fui ter com Angela, e ambos saímos. Alguns choferes particulares seguravam abertas as portas de Rolls-Royces, de um Jaguar de seis cilindros e de um Mercedes. Os convidados dos Trabaud iam entrando nos seus carros. O pátio de estacionamento e o caminho que conduzia à porta de entrada se achavam fortemente iluminados, com as lâmpadas colocadas sob os ramos das plantas.
Angela me disse:
- Aqui em Cannes praticamente o único lugar a que se pode ir são os cassinos. É verdade que existem os night clubs, mas são locais mais apropriados para os jovens.
- Mas como isso é possível numa cidade como Cannes?
- Os cassinos, em todas as partes do mundo, têm um poder enorme. Praticamente, eles podem conseguir tudo o que querem e impedir o que não querem. Impedir a concorrência, por exemplo. Aqui também não é diferente de outros lugares. Mas o que se pode fazer? - Angela fez o carro arrancar, rodando através daquele caminho de saibro, seguindo atrás do Rolls-Royce dos Fabiani. - Essas lâmpadas ocultas na folhagem dão um aspecto romântico ao ambiente, não é verdade?
- Muito romântico, realmente.
- E como são gentis os Trabaud!
- São de uma gentileza cativante. Então você perdeu Pasquale?
- Oh, Robert! - exclamou Angela e depois ficou calada até atingirmos a estrada.
- Então, conseguiu fazer alguns progressos nas suas sindicâncias? - perguntou-me em seguida.
- Creio que sim... e pretendo, muito breve, obter melhores resultados.
- Que bom! - Ela tocou minha mão. - Robert?
- Sim?
- Sabe o que também é muito bom?
- O quê?
- Nossa vida, pelo fato de termos sido pobres outrora.
Capítulo 12
- Le 4, pair, noir et manque!
- Le 31, impair, rouge et manque!
- Le 7, impair, rouge et manque!
O crupiê cantava em voz alta os números que iam saindo. Faziam-se jogos em diversas mesas. O amplo salão, em estilo aparatoso, dotado de todos os requisitos de conforto, estava apinhado de gente. Um italiano baixote gritou o mais alto possível em sua língua: "Felicidade e bênção!" Ele havia ganho. Vi quando lhe pagaram uma quantia bem grande.
- Mas ele grita também quando perde - explicou-me Angela. - Ele vem aqui todas as noites, e isso meses a fio. Com a mulher e os amigos. São eles que fazem os jogos para ele. Ele só joga o máximo.
- Hoje à tarde ele perdeu seiscentos mil francos, jogando até há pouco - informou-nos um atencioso cavalheiro, que se aproximara sem que se notasse. Inclinou-se respeitosamente diante de Angela, dizendo: - Boa noite, Madame Delpierre.
Angela nos apresentou. Esse homem cortês e delicado era um dos muitos comissários que ali, como é de praxe em todos os cassinos, estava de serviço, prestando atenção nos jogadores. Angela conhecia a maior parte deles.
- Esse homem - disse-me Angela, apontando com os olhos o tal cavalheiro que andava por ali disfarçado com uma aparência modesta - tem uma filhinha que parece um anjo de Botticelli. Certa vez ele a trouxe a Cannes e eu pintei o retrato dela. Retratei-a grituitamente, por prazer. Em retribuição, ele plantou as flores que cobrem a parede de treliças lá no meu terraço. É um ótimo jardineiro e sempre cuida das minhas flores.
As pessoas em companhia das quais havíamos entrado no cassino se dispersaram logo en seguida. Cada qual jogava isoladamente. Até mesmo os casais estavam jogando separados. Observei que Bianca Fabiani, em dado momento, investiu furiosa contra o marido, que estava sentado à beira de uma das mesas verdes, só porque ele não lhe quis dar alguns jetons. Depois ela se aproxinou de nós com a face desfigurada de tanta raiva.
- Observem aquele miserável pão-duro, o meu marido, puuuh! - disse ela. - Ele me deu só duzentos francos. Estou dura e quero jogar. Mas ele perde milhares de francos. A gente devia fazer como Maria. ..
- Como é que ela faz? - perguntei.
- Maria usa sempre aquele tipo de vestido de sarau que tem no corpete uma saliência ou dobra caída para a frente, como vocês viram, não é? Fois bem, eu posso dizer isso porque sei. Certa vez ela me mostrou como faz. Atrás, oculta por um pano, está uma bainha cheia de dobras formando bolsinhos. Maria enfia tudo o que ganha dentro desses bolsinhos. É assim que ela esconde tudo do marido. Depois, de vez em quando, ela se senta perto dele fazendo uma boquinha de quem vai começar a chorar. Ele não pode vê-la chorando. Então lhe dá mais dinheiro. Vocês nem imaginam quanto dinheiro Maria já surrupiou desse jeito. O homem é mesmo um bicho bobo!
Em seguida, saiu correndo em lireção a uma das mesas e se enfiou no meio das filas de jogadores.
- Você está vendo aquela coisa ali em cima? - perguntou-me Angela, apontando para o teto. - E uma câmera de televisão. Em toda parte existem aparelhos de vigilância desse tipo. Os freqüentadores estão sendo constantemente observados por uma central localizada lá fora. Eventualmente, quando é preciso, os freqüentadores são até filmados.
- E eu penetrei aqui sem nenhum cartão de entrada...
- Sim, mas você entrou porque está em minha companhia - disse-me ela com um sorriso astuto nos lábios. - Eu já não lhe disse que sou um; descoberta do Syndicat d'Initiative?
O edifício cor-de-rosa do cassino de inverno, com seus salões de jogo, seu teatro e o Restaurante Ambassadeur, achava-se localizado no limite inferior do Quai Albert-Édouard, bem nas proximidades do antigo porto, onde Lacrosse tinha seu gabinete e onde se encontrava a Gate Maritime, ponto de partida das vedettes para as diversas ilhas.
- Le 10, pair, noir et manque.
O italiano baixote, praguejando, soltou um berro raivoso.
- Você não quer jogar? - perguntou-me Angela.
- Não gosto muito de jogo. Mas naturalmente, às vezes, também jogo um pouquinho.
Acompanhei-a, então, até a sala de controle das ligações eletrônicas, nos fundos da qual havia um espaçoso compartimento com muitos armários de aço. Angela tirou da sua bolsinha uma chave.
- Volto logo. Só vou buscar um pouco de dinheiro.
- Onde?
- No meu cofre. Meu cofre está aqui mesmo. - Ela sorriu. - Eu guardo nele meus documentos, minhas jóias, meu dinheiro, enfim, tudo! Ontem à tarde estive aqui para buscar estas jóias que estou usando. Para que gastar dinheiro alugando um cofre-forte num banco, se aqui não pago nada?
Ela saiu.
Troquei cem francos por dois jetons de cinqüenta. Sinceramente nunca tive prazer em jogos. A roleta, especialmente, me aborrecia logo. Trata-se de um tipo de jogo em que a sorte provém exclusivamente... exclusivamente do acaso, nada adiantando a inteligência e o raciocínio para orientá-lo. Fui passando através do grande salão. Entre as mesas de jogo e o comprido bar, estavam colocadas as mesas de um pequeno restaurante, onde algumas pessoas ainda estavam comendo. No bar, sozinho, John Kilwood, sentado a uma das mesas, continuava tomando uísque. Mesmo bêbado, me reconheceu e acenou. Correspondi ao seu aceno. Alguns segundos depois, divisei o vulto de Maria Sargantana. Surpreendi-a exatamente no momento em que enfiava uma série de jetons nas bolsinhas formadas pelas dobras do vestido. Fiquei, então, imaginando como os ricaços são realmente criaturas esquisitas e, quem sabe, até mesmo criminosos excêntricos.
Aproximei-me de uma das mesas de jogo e notei que Angela se encontrava do outro lado. Ela estava fumando, sentada, e anunciava ao crupiê os lances..que iria jogar. Concentrei-me na contemplação do semblante de Angela, chegando quase a me esquecer do lugar onde estava.
Em seguida, ocorreu-me que eu havia encontrado Angela num dia 13, e que precisamente nesse dia começara para mim uma nova vida. Resolvi, portanto, experimentar a vontade de Deus, a fim de comprovar se minha suposição correspondia de fato aos seus desígnios. Se tivesse sorte, ele estaria me protegendo.
Curvei um pouco meu corpo por cima de uma das senhoras que estavam sentadas- e coloquei os dois jetons de cinqüenta francos sobre o 13. Em qualquer hipótese, ganhando ou perdendo, eu não queria ficar gastando meu tempo jogando.
Fitei mais uma vez o rosto de Angela, e ela deve ter percebido, pois levantou a cabeça. Nossos olhares se cruzaram. Tive a súbita impressão de ter sido inundado pela luz do sol ao despontar no horizonte. Permanecemos nos fitando durante algum tempo, parecendo até que nenhum de nós poderia desviar o olhar para outro ponto. Cheguei a ficar um pouco tonto, tendo que me apoiar no espaldar de uma cadeira. Além disso, a algazarra de toda aquela gente - americanos, holandeses, ingleses, italianos, franceses, alemães - deixava-me com a mente embaralhada.
- Monsieur!
Assustei-me.
O crupiê, que estava de pé ao meu lado, tinha se voltado para mim. Ele batia com a sua pazinha nos dois jetons que se encontravam no 13.
- São seus, estes lances?
- Sim.
- O 13 com cem francos é aqui para monsieur que está ao meu lado - disse ele.
Outro crupiê, postado no centro da mesa, com a vasilha de fichas, e que fazia os pagamentos, empurrou na minha direção duas pilhas de fichas. Eu havia ganho três mil e quinhentos francos.
- Cem francos para os empregados - disse eu. "Eu quis experimentar a tua vontade, Deus, e tu me
compreendeste. Acabas de me dizer: Sim! Permite agora que eu verifique, Deus, se de fato compreendi bem os teus desígnios."
Em seguida anunciei meu novo lance. Arrisquei ainda no 13, fazendo o lance máximo de mil e quinhentos francos.
"Mostra-me, agora, Deus, se eu te compreendi!"
A esfera começou a rodar. Eu não a olhei. Permaneci com os olhos fechados até o momento de ouvir a voz do crupiê anunciando:
- Le 13, impair, noir et manque! O 13 saiu pela segunda vez.
Produziu-se um certo alvoroço entre os jogadores.
Desta vez o monte de fichas que recebi foi maior; eu havia ganho cinqüenta e dois mil e quinhentos francos.
Dei quinhentos francos aos empregados e passei a jogar, agora, os três chevaux, os dois carrês, ambas as transversais e, naturalmente, o número 13, fazendo em tudo o lance máximo. Coloquei fichas até sobre colunas, cores e dúzias. Outros jogadores também tentaram o mesmo número.
E não é que deu o 13 pela terceira vez!
O italiano baixote, que nessa rodada não havia jogado, ficou como louco. Aproximou-se de mim e esfregou as costas das mãos no meu casaco, a fim de captar - conforme dizia ele - um pouco da minha sorte. O chefe da mesa aproximou-se do crupiê que efetuou os pagamentos e ambos ficaram, então, durante um bom tempo, fazendo os cálculos necessários. Em seguida o crupiê tirou de um compartimento fechado da mesa fichas bem grandes - as chamadas plaques - para entregar-me. Antes explicou-me detalhadamente quanto eu havia ganho em cada jogada, bem como o montante global atingido. Esse montante era de duzentos e trinta e cinco mil e quinhentos francos. Distribuí cinco mil francos entre os empregados e agarrei todas as fichas. Eu tinha ganho bastante. Não conseguia levar todas aquelas fichas. Um empregado, trazendo uma caixinha, veio em meu auxílio. Quando nos dirigíamos ao caixa pagador, vi Angela. Ela também estava acompanhada de um outro empregado, que transportava a caixa com suas fichas.
- Você também jogou no 13? - perguntei.
- É claro! - Ela estava radiante de alegria. - Joguei exatamente no número do seu palpite. Você não notou?
- Não.
- Eu joguei...
- Eu joguei...
Estávamos falando ambos ao mesmo tempo.
- Por favor, fale, Robert!
- Não. Fale você primeiro, Angela!
- Então falemos juntos. Tenho o pressentimento de que vamos dizer a mesma coisa.
Falamos em coro:
- Joguei no 13 porque foi num dia 13 que nos vimos pela primeira vez.
Os olhos de Angela se tornaram cintilantes.
- E afirmo também que vai surgir um grande amor entre nós - disse eu.
Ela não respondeu.
Num dos guichês, o crupiê repassou os cálculos da quantia que ela ganhara, perguntando-lhe se queria trocar logo todas as fichas.
- Sim, todas - confirmou Angela.
Enquanto ela, levando muitos maços de notas, se dirigia à sala onde estava o seu cofre, o caixa ficou contando o dinheiro para me pagar. A ele também dei uma boa gorjeta e pedi-lhe que fizesse um pacote bem amarrado, pois o dinheiro era muito e eu não podia enfiá-lo no bolso.
Angela voltou, sem parar de sorrir de tão contente.
- Vamos até o bar. Estou com sede. Você não me convida para um drinque?
- Com muito prazer, madame! Estou só esperando que meu dinheiro seja empacotado.
O italiano chegou em disparada, suando, para perto de Angela e colocou uma ficha grande - uma dessas tais plaques - sob o seu nariz.
- Que é que ele quer? - perguntou-me Angela.
- Ele quer que você cuspa sobre a ficha para dar-lhe sorte. Eu também devo cuspir nela - expliquei-lhe, traduzindo as palavras do homem.
Então ambos cuspimos simbolicamente na ficha. O homem inclinou-se para nós fazendo mesuras:
- Grazie, signora, grazie, signore, grazie molto tante...
E voltou suarento e ofegante para uma daquelas mesas de jogo.
- Esse italiano - explicou-me Angela - constrói possantes locomotivas na Itália. Um dos meus amigos que se encontrava entre os comissários foi quem me revelou isso há pouco. Talvez o efeito dos nossos cuspes dure tanto tempo quanto se leva para vir de Ventimiglia a Cannes.
O caixa já havia terminado de fazer meu pacote.
- Já vou indo para o bar - disse Angela.
Fiquei observando o jeito como ela caminhava através do salão de jogo. Pude admirar, assim, os movimentos elegantes dos seus quadris e a pele das costas amorenadas pelo sol que o decote do vestido branco deixava expostas. Também me encantavam seus lindos cabelos louros. Muitas mulheres não apresentam um aspecto elegante quando caminham, especialmente para quem as observa pelas costas. Mas Angela era realmente magnífica. Conservava o torso ereto, com uma postura elegante, caminhando sem afetação. Eu me comprazia em observá-la.
Notei que no bar Angela se dirigiu à senhora idosa que estava sentada atrás da caixa registradora. Muitos garçons atendiam os fregueses naquele local. Angela conversou um pouco com aquela senhora, que a ouviu com a máxima atenção. Depois marcou dois lugares no balcão e saiu para sentar-se bem no meio do bar.
Finalmente, concluído o empacotamento do meu dinheiro, apressei-me em ir para junto de Angela. Empurrei um banco para sentar-me ao seu lado no balcão. Quando ela chegou para postar-se ao meu lado, falei:
- O 13 nos deu felicidade! Angela levantou o seu copo dizendo:
- Com este brinde proclamo o 13 o número da nossa felicidade!
- De pleno acordo!
- E também proclamo o dia 13 como o nosso dia natalício. Vamos comemorá-lo todos os meses daqui por diante!
Ela reparou a expressão do meu semblante e emendou:
- Talvez... no próximo mês você ainda esteja em Cannes no dia 13. Naturalmente você estava pensando quanta coisa pode acontecer-lhe no decurso de um mês, não é verdade?'
- Eu estava imaginando o que poderá acontecer em cada mês da minha existência a partir de agora, Angela.
- Não! Por favor, Robert, não pense em coisas desagradáveis. Nós estávamos tão alegres até há pouco...
- Bem... então quer dizer que tudo ficou novamente em ordem conosco agora?
- Em ordem?! Absolutamente não! - retrucou, tornando-se subitamente triste.
- Bebamos, então, à saúde daquilo que nós mais desejamos na vida. Não há necessidade de dizer o que é. Simplesmente bebamos à sua saúde. Não está bem assim?
- Sim, Robert, está bem! Você é tão gentil...
- E você é tão bela! Tão querida! Tão amável!
- Nada disso, por favor. Bebamos!
Bebemos.
Depois Angela disse ao chefe dos barmen, que se encontrava à sua frente:
- Aceita uma taça, Paul?
- Beberei, então, à saúde dos senhores.
Costumo dizer que os garçons e dirigentes de bares, com raras exceções, se mostram sempre gentis e amáveis. Paul era um dos mais gentis que conheci.
- À saúde dos senhores! Que todos os seus desejos se realizem plenamente!
- Paul - perguntei-lhe -, qual é sua marca de champanha preferida?
- Comtes de Champagne, de Taitinger.
- Permita-me, pois, que eu lhe presenteie uma garrafa dessa marca. Nós precisamos do seu augúrio de felicidades.
A senhora idosa que estava à caixa registradora subitamente começou a chorar. Paul dirigiu-se a ela apressadamente.
- Que foi que houve? - perguntei a Angela.
- Oh, nada... nada... Venha comigo, agora. Vamos dar uma espiada nos que estão jogando.
- Não! Quero saber por que essa senhora está chorando.
Paul voltou, postando-se novamente no lugar em que estava, e fitou Angela com um certo acanhamento.
- Paul, que há com a senhora da caixa registradora?
- Não lhe diga nada! - ordenou Angela.
- Diga, sim, Paul - insisti.
- Então vou sair daqui de perto! - disse Angela.
- Eu também sairei sem demora. Ela, de fato, se retirou. .
- Então, Paul... Que foi que houve?
- Monsieur - começou o chefe dos barmen, falando baixinho, como se ninguém mais a não ser eu devesse escutar as suas palavras -, Madame Lorand, nossa caixa, já é uma senhora muito idosa. Quantos anos o senhor calcula que ela tenha?
Lancei um olhar para Madame Lorand, que, sentada no seu banquinho junto à registradora, continuava chorando. Entretanto, mesmo com lágrimas nos olhos, ela me fez um aceno e sorriu.
- Ela deve ter um pouco mais de sessenta anos.
- Ela já anda beirando a casa dos oitenta!
- Não! Não pode ser! - exclamei, admirado.
- É como estou lhe dizendo, monsieur. E ela também trabalha aqui enquanto o cassino funciona durante o inverno. Depois que o cassino fecha e o Palm Beach, que é o cassino de verão, inicia suas atividades... o que se dará no próximo mês... então vamos todos, toda a equipe, para Deauville. Todos os anos é assim. Evidentemente Madame Lorand nos acompanha sempre. Apesar dos seus oitenta anos, ela fica sentada atrás da caixa registradora diariamente até quase as três horas da madrugada. A direção do cassino permite que ela continue trabalhando. Neste ponto o cassino não lhe tira o amparo social. Se ela trabalhar mais um ano conseguirá as maiores vantagens que um funcionário da sua categoria pode obter. Ela possui uma casinha aqui em Cannes. Mas é uma casinha miserável, que não dispõe de calefação, como bem sei. E aqui o inverno é quase sempre muito rigoroso. Madame Lorand sofre muito com o frio. Mas agora Madame Delpierre deu-lhe o dinheiro necessário para instalar o aquecimento na sua casa. Mas, por favor, monsieur, não comente com ninguém o que lhe contei.
- Pode ficar tranqüilo! Não direi nada a ninguém. Ofereça também a Madame Lorand uma taça de champanha.
- Ela prefere tomar cerveja.
- Ofereça-lhe cerveja, então.
Lancei meu olhar para Angela. Ela ficara me observando de longe. Quando percebeu que eu estava olhando, bateu enraivecida com o sapato sobre o tapete e virou-se para o outro lado.
Apressei-me em ir para junto dela.
- Angela...
Mais uma vez ela virou-me as costas, dizendo-me:
- Eu lhe pedi insistentemente que não perguntasse nada a Paul. ..
- Você é maravilhosa, Angela!
- Não sou maravilhosa nada!... E você também não é gentil... Você não é nada gentil... Eu me havia enganado com você.
- Então ambos nos enganamos.
Ela virou-se para mim e sorriu. Mais uma vez senti meu coração palpitar aceleradamente, quando nossos olhares se cruzaram. Ficamos nos fitando durante alguns segundos, parecendo que nenhum de nós se dispunha a despregar o olhar...
Agarrei a mão dela e beijei.
- Embora eu também tenha ganho tanto assim...
Ela interrompeu logo a frase. Com uma voz que soava como se tivesse levado um susto inesperado, perguntou-me apontando para o chão:
- Mas que significa isso, Santo Deus?!
Diante de Angela estava ajoelhado Kilwood, exemplarmente embriagado, tentando morder o seu vestido. Como que balbuciando, ele dizia:
- Oh, mulher! A mais maravilhosa entre todas, minha princesa, deixe-me beijar a bainha do seu vestido... Só a bainha... Um beijo, pelo menos... Eu sou um beberrão, um criminoso... E você é tão formosa, minha princesa...
- Trate de retirar-se daqui, e deixe-a em paz! - disse-lhe eu.
- Distinto senhor, tenha compaixão de um cachorro sarnento...
Ele não parava de comprimir o pano do vestido contra seus lábios. Dei-lhe, bem de leve, um pontapé. Perdeu o equilíbrio, caindo para trás, e me fitou, demonstrando perfídia nos olhos umedecidos.
- Desapareça daqui! - ordenei-lhe alteando a voz. - E imediatamente! Solte esse vestido! Solte! Solte logo, senão vai se arrepender!
Ele se levantou, vacilando.
- Que gentleman! - grunhiu ele. - Que intrépido cavalheiro!
Dali, sempre cambaleando, dirigiu-se a uma das mesas de jogo.
- Ele perdeu o juízo - disse Angela, tomada de pasmo.
- Venha comigo! - disse eu. - Agora quero ver e ouvir tudo o que esse sujeito diz e faz.
Fomos então para perto de Kilwood, eu sempre segurando o meu pacote de dinheiro.
Capítulo 13
Kilwood se postara atrás de Thorwell, cujos ombros ele alisava. Ouvi-o dizer ao seu amigo:
- Aceite as minhas reverências, Alteza Real! Ó grande senhor, Vossa Alteza é um amigo dos homens. Sempre tão generoso. .. Sempre tão modesto. .. Sinto-me deveras feliz por ter Vossa Alteza como amigo...
- Deixe de dizer besteiras e desapareça daqui imediatamente! - rosnou Thorwell, enfurecido.
Kilwood então, caminhando quase aos trambolbões, foi para perto de Trabaud, que, não muito longe dali, permanecia de pé, atrás dos jogadores que estavam sentados.
Ele disse a Trabaud:
- Você também é um gentleman, um cidadão fino, o meu melhor amigo...
Tentou beijar a face de Trabaud, que, com rapidez, se retirou daquele lugar.
Sempre cambaleando, Kilwood foi parar perto da mesa em que estava sentada Bianca Fabiani, abraçando-a e dando-lhe um beijo no pescoço. Ela não se conteve e soltou um grito histérico... Kilwood passava a mão pelo seu decote, enquanto dizia com uma voz surpreendentemente clara:
- Oh, a mais bela de todas as mulheres do mundo! Maravilhosa criaturinha! Como me sinto feliz em poder dizer que sou seu amigo!
- Retire-se daqui imediatamente! - gritou Bianca, indignada.
Depois, gritando mais forte ainda, chamou o marido, que veio logo em seguida, deixando a mesa do outro lado, onde estava jogando.
Giacomo Fabiani agarrou Kilwood pela gola do smoking. Entre os jogadores surgiu um verdadeiro alvoroço.
- Que é que esse sujeito estava fazendo?
- Oh, nada, nada, meu soberano!
A voz de Kilwood, de um momento para outro, tornou-se cínica e seus olhos relampejaram cheios de malícia. Ele tinha a boca torcida num sorriso diabólico.
- Não estou fazendo nada... Eu respeito todas essas magníficas criaturas... E você está zangado comigo por causa disso? Vocês todos são criaturas magníficas. Vocês são a nata da sociedade, la crème de la crème...
Ele engoliu a saliva. Vendo que se aproximavam Athanasios e Melina Tenedos, dirigiu-se a eles, sempre cheio de malícia:
- Distintíssimos senhores! Vocês também são meus amigos... Os meus amigos mais queridos... Realmente vocês são umas criaturas maravilhosas!
Dando umas palmadinhas, ele acariciou a face de Tenedos e inclinou-se tão profundamente diante de Melina que quase caiu no chão.
- Oh, meus distintos senhores, como me sinto feliz por encontrar-me no meio de vocês!
Inesperadamente avançou em direção a Melina e deu-lhe um beijo bem na boca.
- Eu tinha que fazer isso, ó magnífica dama, a mais brilhante e valiosa peça da nossa coleção!
A essa altura havia parado completamente o movimento daquela mesa de jogo, perto da qual se encontrava Kilwood. Todos os jogadores presenciavam a cena em silêncio.
Nisso notei que alguns homens vinham se aproximando rapidamente do local. Certamente eram os comissários de polícia. Kilwood aparentemente não observava nada. Bruscamente irrompeu em choro e começou a dizer:
- Vocês todos são maravilhosos. Vocês todos são dignos e sem mácula. Eu... eu sou um verdadeiro idiota, um velho imbecil... um porco bêbado...
Senti que Angela agarrava minha mão.
- Eu sou um criminoso!
- Contenha-se, maluco bobalhão! - disse-lhe Tenedos, falando baixo, mas com um olhar ameaçador.
- Conter-me?! Como posso conter-me neste círculo de distintíssimos cidadãos que podem andar de cabeça erguida e que de noite conseguem dormir um sono tranqüilo? Eu... eu sou a imundície das imundícies, o tipo mais ordinário e mais baixo... Eu...
Prendeu um pouco a respiração e bruscamente gritou como um louco:
- Eu sou um assassino!
Nas diversas mesas os jogadores se levantaram. O movimento paralisou-se por completo. Todo mundo observava John Kilwood. Os círculos formados sob os olhos, através dos quais escorriam suas lágrimas de bêbado, escureceram. Sua face inchada começou a adquirir a tonalidade violeta. Ele oscilava constantemente, mas suas pernas ainda o sustinham de pé.
Suas palavras, pronunciadas em francês, ecoaram pela sala:
- Assassino! Sim, assassino!
Com o semblante denotando agora falsidade e malícia, prosseguiu:
- Não somente eu! As divertidas princesas, os honrados cidadãos, a nossa distintíssima sociedade, todos nós somos assassinos! Todos! Assassinos!
Notei que também Trabaud e Seeberg se dirigiram para perto dele. O comissário já estava postado à sua frente. Ele empurrou todos para os lados e depois encarou-me gritando:
- Esses nobres senhores que me cercam, bem como eu próprio, o bêbado imbecil, que nos encontramos aqui na sua presença, Monsieur Lucas, somos todos assassinos... Sim, assassinos!. .
- Santo Deus! Que será que houve com ele? - perguntou Angela, profundamente chocada.
- Bem que eu gostaria de saber - respondi-lhe.
Observei, também, que todos os indivíduos do seu círculo o cercavam, com exceção de José Sargantana, que permanecia afastado, sentado numa cadeira de espaldar, fumando e observando tudo calmamente. Não fez sequer menção de se aproximar de Kilwood. Os outros faziam tentativas para acalmá-lo, falando um após outro:
- Cale a boca, John!
- Bêbado idiota!
- Não há nenhum motivo para alvoroço, meus senhores. Este homem está simplesmente embriagado.
- Sim, estou embriagado, está certo! Exatamente como está certo que todos nós somos assassinos. Nós todos, todos, todos. - Kilwood já estava gritando.
Sentia-me estarrecido. Muito embora aquele salão estivesse quente, perpassou-me pelo corpo um verdadeiro calafrio. Parecia-me estar vendo e ouvindo Hilde Hellmann, em sua cama, naquele palacete semelhante a um castelo de fantasmas, toda ornada de jóias, completamente doida. Doida? Eu tinha a impressão de estar ouvindo a sua voz: "Não faça essa cara de inocente! Não procure dissimular! O senhor bem sabe que foram todos eles juntos que o mataram..."
Até que ponto se poderia afirmar que Hilde Hellmann estivesse louca e que John Kilwood estivesse embriagado?
Tentei infiltrar-me no meio dos homens que seguravam Kilwood, puxando-o para retirá-lo dali. Comecei a dizer-lhe:
- Um momento, Mr. Kilwood, preste atenção... Entretanto, Tenedos, com brutalidade, empurrou-me
para o lado, exclamando:
- Retire-se daqui, homem!
Vacilei e dei um encontrão num dos comissários, batendo-lhe no braço.
Nada de escândalo, por favor, monsieur - disse-me ele em voz baixa. - O homem está embriagado e deve ser retirado do salão imediatamente.
Tenedos e Thorwell agarraram Kilwood pelas axilas.
- Vamos embora... Depressa... Venha conosco, John...
- Você está bêbado!
- E daí? Estou bêbado, mas estou dizendo a verdade! Tudo começou com aquele argelino de La Bocca...
Os homens puxavam e empurravam Kilwood, que já estava perdendo o equilíbrio. As lágrimas escorriam pelo seu rosto e caíam sobre o tapete.
Tenedos e Thorwell, levando-o a reboque, arrastaram Kilwood através do salão, passando no meio dos jogadores espantados e dos crupiês aborrecidos.
Será que a câmera de televisão instalada no teto não teria focado essas cenas?, pensei comigo mesmo. Não seria importante que eu anotasse tudo o que presenciei e ouvi?
Os comissários, dando-se as mãos, passaram a formar, agora, um cinturão em torno de Kilwood.
Os crupiês voltaram para suas mesas e fizeram soar suas vozes:
- Faites vos jeux, mesdames et messieurs!
- Faites vos jeux!
Na porta de saída o grupo dissolveu-se. O italiano baixote, com aparência de maluco, que fabricava locomotivas, parou à minha frente, dizendo-me umas palavras em voz alta.
- Que foi que ele disse? - perguntou-me Angela.
- Ele me disse que agora vai apostar no número 23.
- Por quê?
- Porque houve lágrimas. Quando brotam lágrimas, 23 é o número que deve ser jogado.
Interroguei Angela:
- Que você acha de todas essas cenas? Que significa a expressão: "Nós todos somos assassinos"?
- Os homens são realmente esquisitos - respondeu-me Angela. Observando de longe, vi Trabaud falando com um dos comissários. - É bem provável que um terrível sentimento de culpa esteja martirizando Kilwood. E ele, por isso, expressa seu tormento dessa maneira pavorosa. Meu açougueiro em La Californie é um indivíduo muito religioso. Você sabe o que ele faz? Ele costuma brandir o machado sobre a cabeça do animal que ele quer abater, cantando sempre um hino sacro. Tive a oportunidade de presenciar isso certa vez. Ele rebentou a cabeça de um cordeiro enquanto cantava: "Bendito seja o cordeiro". Neste mundo há de tudo.
- Que é La Bocca, Angela?
- É um pequeno bairro de Cannes. Fica pelas bandas do porto antigo, na direção oeste.
- Há muitos argelinos lá?
- Oh, sim. Trata-se de uma região com casas um tanto rústicas e grosseiras. Ali moram pequenos funcionários dos Correios, pessoas que vivem de parcos rendimentos, argelinos ...
- Kilwood disse: "Tudo começou com esse argelino que mora em La Bocca..."
Inopinadamente, o italiano começou a berrar e a dançar, parecendo ter ficado mais doido do que nunca. Ele havia jogado no número 23 porque, quando brotam lágrimas, o 23 é que deve ser jogado. E não é que na sua mesa deu o 23!
Capítulo 14
Estávamos nos dirigindo para casa.
Eram duas horas da madrugada.
Como sempre, era Angela que dirigia.
Para seguir até sua residência, era preciso subir um determinado caminho estreito. Em poucos minutos, aproximamo-nos dos trilhos da via férrea. A cancela, na passagem, estava baixada. Angela buzinou. Em seguida, numa guarita que ficava ao lado da estrada, um homem girou uma roda. A cancela levantou-se.
- Essa cancela fica sempre fechada à noite. A gente tem que buzinar - explicou-me Angela. - Só assim não há perigo de acontecer algum desastre, mesmo que o vigia esteja dormindo.
Depois de termos subido aquela encosta íngreme, à luz dos faróis do carro, passei a ver muitas palmeiras e ciprestes nos jardins daquelas villas localizadas nos contornos da estrada. A própria claridade do luar as iluminava. Eu segurava, apoiado sobre os joelhos, o pacote com duzentos e trinta e cinco mil francos.
Angela conduziu o carro para a garagem, onde o deixou. Nessa zona de maior altitude, o ar estava mais fresco. Surpreendeu-me o fato de não me sentir cansado.
Subi com Angela pelo elevador até o quarto andar.
No pequeno elevador, nossos corpos se tocaram mais uma vez. Ficamos nos olhando como que extáticos. Diante da porta do seu apartamento, Angela levou um bom tempo para encontrar a chave da porta na sua bolsinha. Depois que entramos, fiquei indeciso por alguns momentos: Angela pegou minha cabeça com ambas as mãos e beijou-me na face. Eu também a agarrei e, apertando-a fortemente contra meu corpo, comecei a beijá-la na boca. Ao agarrá-la, notei, através do vestido, todos os contornos das linhas do seu corpo... e ela deve ter percebido o meu estado de excitação. Inicialmente ela conservava os lábios comprimidos, mas subitamente abriu a boca, que estava macia e maravilhosa como nunca. Ela começou a gemer baixinho. Mas nesse momento, num impulso brusco, empurrou-me para trás.
- Não! - exclamou ela. - Não, Robert, meu querido Robert. Por favor, acabe com isso. Eu não gostaria...
- Você não gostaria que acontecesse tão cedo o que fatalmente terá que acontecer, não é verdade?
Ela só me fitou, sem dizer nenhuma palavra.
- Então está bem - disse eu. - Amanhã antes do meio-dia terei alguns trabalhos para fazer. Irei de táxi a Port Canto. Encontrar-nos-emos depois no iate dos Trabaud.
- E será que você poderá localizar o iate? .
- Qual é o nome?
- Shalimar.
- Sabendo o nome será fácil localizá-lo.
- Você tem calção de banho?
- Não.
- Vou comprar-lhe um. Levarei toalhas de banho e óleo para pele. Também vou levar um boné para você. O sol, no mar, é sempre muito forte.
- Nem sei - ponderei - se devo tirar a roupa para vestir o calção de banho... Vocês todos têm a pele morena, queimada pelo sol... E o meu corpo é completamente branco...
- E você sente vergonha por isso?! Nós todos tínhamos a pele bem branca antes. Não seja ridículo!
- Sou ridículo, não é verdade?
- Absolutamente não!
- Todo homem que começa a amar intensamente torna-se ridículo.
- Mas não você!... Pelo contrário, sempre se porta com muita seriedade. Você me fez lembrar agora de um compositor que residiu aqui em Cannes há alguns anos. Ele era muito conhecido em toda a França. Vivia constantemente atormentado por escrúpulos e receios como você. Sempre dizia que se encontrava num dilema. Qualquer bagatela, para ele, fazia surgir um dilema. E sabe com que alcunha o povo o batizou?
- Qual? - perguntei, sentindo o suave odor da sua pele fresca.
- Dilema-Joe.
- Por que ele saiu de Cannes?
- Aqui ele encontrou o grande amor de sua vida: uma mulher! Ela curou a sua mania de dilema. Casaram-se e foram morar num país longínquo, nem sei bem onde... Ouvi dizer que eles vivem muito felizes.
- Boa noite, Angela! - disse.
Ela me beijou mais uma vez na boca com muita ternura.
- Boa noite, Dilema-Joe! Vou telefonar para pedir-lhe um táxi. Tome cuidado para não se deixar enganar: daqui até o Majestic o motorista não pode cobrar mais do que doze francos pela corrida. Mesmo que ele exiba qualquer tabela, reaja e não pague mais do que essa quantia.
- Está bem, madame!
- Encontrar-nos-emos amanhã no Shalimar. Não se esqueça.
Feita essa recomendação, ela fechou a porta. Tomei o elevador e desci. O pacote de dinheiro balançava na minha mão de um lado para outro.
Dilema-Joe. Cômico, não é? Muito cômico, mesmo. Mas o fato é que eu me encontrava realmente num dilema: tinha uma esposa, andava doente, mas, para ser justo com Angela, devo dizer que ela não sabia nada disso. E, na minha obstinação, decidi que ela de forma alguma deveria tomar conhecimento desses fatos. Nunca?! De que modo poderia ocultar-lhe eternamente a verdade? Dilema-Joe. Realmente, uma situação muito cômica.
O táxi chegou. Ao atingirmos o leito da ferrovia, o carro teve que parar porque o portão da passagem estava fechado. Felizmente o vigia nos atendeu sem demora. O motorista, notando que eu era estrangeiro, depois que freou o carro em frente ao Majestic, começou a puxar do bolso uma tabela para calcular o preço da corrida, mas eu, tomando uma atitude até meio grosseira, disse-lhe que a corrida não custava mais de doze francos. Ouvi-o dizer qualquer coisa com relação a estrangeiros sujos logo que o carro começou a arrancar.
No hotel tomei um banho e atirei-me na cama ainda nu. Deitado, pareceu-me estar vendo Angela ao meu lado, também nua. Não demorou muito e minha imaginação voou para a contemplação da figura da minha mulher... Eu tinha a impressão de a estar vendo completamente nua também. Com isso fiquei tão nervoso que me levantei da cama e fui procurar minha carteira de cigarros. Não havia fumado durante todo o dia. Entretanto, ali no quarto, a essa hora, fumei três cigarros, um atrás do outro. Como um verdadeiro idiota passei a examinar atentamente os dedos do pé esquerdo.
Enfiei um roupão e fui sentar-me na sacada, onde fiquei contemplando a vista noturna da Croisette e o mar. Comecei, então, a meditar sobre meu futuro com Angela. Carros-pipas munidos de mangueiras lavavam as ruas, lançando água em fortes jatos. Fui ficando cada vez mais apreensivo e nervoso. Lá pelas quatro horas da madrugada não pude mais conter-me e resolvi telefonar para Angela. O telefone dela deu sinal de ocupado. Tentei outra vez: ocupado ainda. Depois de alguns segundos, disquei mais uma vez: continuava ocupado. Então desisti. Acendi outro cigarro e continuei sentado na sacada. De repente o telefone toca.
- Aqui é Lucas.
- Robert!
Era Angela. Ela falava como se estivesse esbaforida.
- Com quem você estava falando durante tanto tempo, Robert?
- Com ninguém.
- Mas o seu telefone nas vezes em que disquei estava sempre ocupado.
- Ora, era porque eu estava tentando ligar para você. Seu telefone também só dava sinal de ocupado.
Ouvi a risada dela.
- E dizer que eu insistia em ligar para você!
- Por quê?
- Porque eu... eu... tinha algo para dizer-lhe, Robert.
- O que é? - perguntei-lhe, ansioso.
- Muito obrigada! - Obrigada por quê?
- Você já me enviou um cartãozinho...
- No qual está escrito: "Muito obrigado por nada"!
- Sim, isso mesmo. Deve fazer uns três dias... milhares de anos... uma eternidade que isso aconteceu... Mas agora quero realmente agradecer-lhe...
- Agradecer por quê? - insisti perguntando.
- Por você ter se comportado muito bem hoje quando nos despedimos... na hora de você sair daqui de casa.
- Que outra coisa me restava fazer senão ter um bom comportamento?
- Oh, não fale assim! Não é bem como você está dizendo... E sei que você me compreendeu perfeitamente... Se tivesse insistido comigo... eu teria permitido que você passasse a noite aqui. E isso não teria sido nada bom...
- Realmente não teria sido nada bom - confirmei, já sentindo voltarem ao meu espírito a paz e o sossego. - Você tem razão. Foi melhor assim.
- Claro! A coisa não deve pegar fogo muito ligeiro. Não há tanta pressa... Tem sido tão bela a nossa vida nesses poucos dias decorridos desde que nos conhecemos... Deixemos a coisa prosseguir devagar para que tudo saia certo. Não é assim que você também quer, Robert?
- É exatamente assim que eu quero.
- Você é inteligente. Você não é nenhum Dilema-Joe. Refleti bastante depois que você saiu. Certamente você também tem os seus problemas.
- E quem não os tem?
- Mas você os resolverá satisfatoriamente, Robert...
- Assim espero.
- Aproveito agora a mesma frase que você escreveu naquele cartãozinho e lhe digo: Muito obrigada por tudo! Você já jogou fora aquele cartão?
- Eu o trago sempre comigo na minha pasta de couro.
- Conserve-o sempre na sua pasta. Qualquer dia, mais tarde, nós o leremos novamente e então teremos oportunidade de rememorar como foi que tudo começou...
- É verdade.
- Boa noite, Robert! Durma bem!
- E você também. Boa noite, Angela!
Coloquei o fone no gancho e desliguei a luz. Deixei aberta a porta de acesso à sacada. Os carros-pipas continuavam a lavar as pistas da Croisette. Eu ouvia o chiado característico dos jatos de água que eles lançavam.
Capítulo 15
O pequeno Louis Lacrosse e o corpulento Comissário Roussel da Polícia Técnica de Nice, com as espessas sobrancelhas pretas e os ondulados cabelos brancos, ouviam calados o relato que eu fazia. Explicava-lhes tudo o que ficara sabendo em Düsseldorf, através das informações que me foram prestadas pelo Diretor Ministerial Friese e pelo caçador de sonegadores de impostos, Kessler.
Enquanto eu falava, não parava de contemplar através da janela a Gare Maritime, onde as vedettes deslizavam sobre a água num vaivém contínuo. Eu observava, também, os pescadores que regressavam dos seus trabalhos da noite anterior, com os barcos bem limpos e as redes estendidas. Ao longe, alguns velhos, na sombra, estavam jogando boule. Seriam quando muito oito horas da manhã e a essa hora ainda não fazia muito calor em Cannes.
- Essa atitude de Kessler - comenta por fim Roussel - é, para mim, muito obscura. Ele nos deu uma versão dos fatos que está em flagrante contradição com o que você acabou de nos relatar.
- Talvez se trate de uma versão que ele deu com o intuito de despistar - ponderei. - A propósito, devo dizer-lhe que fui convidado por Trabaud para dar com ele, hoje, um passeio de iate pelo mar. Acompanhar-nos-ão, também, a senhora dele e Madame Delpierre. Talvez Trabaud me revele algo de importante que poderá servir para a elucidação desses pontos obscuros. Trabaud é um homem que me causou uma boa impressão. E Kessler encontra-se realmente aqui em Cannes?
- Sim, ele está de novo aqui. Já nos telefonou. Mas até o momento ainda não compareceu neste gabinete. Agora estamos aguardando a chegada do perito em finanças que deverá vir de Paris. Kessler, ao que parece, deseja trabalhar entrosado com ele. Você não foi informado disso?
- Não. Mas essa informação, no nosso caso, não teria nenhuma importância. Conforme o combinado, eu e Kessler só procuraremos nos pôr em contato quando for terminantemente necessário. Do contrário, teremos que fingir que não nos conhecemos.
Tirei do bolso um envelope, entregando-o a Lacrosse.
- Que é isso? - perguntou ele.
- São as caligrafias que você me havia pedido.
- Oh, você já conseguiu todas? Que bom! Vou entregá-las imediatamente ao nosso grafólogo. Talvez. .. - Sua voz nesse ponto pareceu ter sumido por completo.
- O que você tem?
- O meu filhinho está com sarampo - respondeu-me Lacrosse.
- Normalmente todas as crianças têm sarampo - disse-lhe.
- Mas é uma doença que não deixa de ser perigosa.
- Ele tem um grande amor pela família - disse Roussel. - Não é verdade, Louis?
Calado, ele confirmou com um meneio de cabeça.
- E você não ama sua família? - perguntei ao comissário.
- Eu não tenho família. Vivo só. É a melhor coisa que um homem pode fazer. Não amando ninguém, não corro o perigo de passar por sofrimentos...
- Mas também não terá felicidade em sua vida - disse, interrompendo-o.
- Apenas alguns diminutos períodos de felicidade é tudo quanto se pode conseguir na vida - prosseguiu o comissário. - E mesmo assim nem sempre. Quando preciso de alguns momentos de felicidade, procuro meter na cabeça, sugestionando-me, a idéia de que estou feliz com alguma coisa... Mas sei perfeitamente que tudo não passa de mera suposição. Portanto, não tenho motivos para ficar aborrecido depois que esses momentos de suposta felicidade passam. Mas, voltando ao nosso assunto, devo dizer-lhe que eu e meu pessoal teremos que permanecer aqui em Cannes até que se esclareça o assassinato de Viale. Nosso alojamento aqui, por enquanto, é o Comissariado Central.
As redes úmidas dos pescadores luziam, refletindo a luz daquele sol matinal.
Capítulo 16
Eu vestia, nesse dia, uma camisa esporte branca e uma calça igualmente branca. Brancos eram, também, os meus sapatos. Trazia comigo a pasta de couro que Angela me presenteara. Vindo do antigo porto, eu descia a passos lentos a Croisette. Passei em frente ao meu hotel e fui direto à filial da Joalheria Van Cleef & Arpeis.
Desde o momento em que ganhara aquela enorme quantia no cassino, já sabia o que devia fazer com o dinheiro.
A loja de Van Cleef não era muito ampla, mas tinha ar-condicionado e estava arrumada com ótimo gosto. Um homem muito mais jovem do que eu, trajando calça branca com camisa azul e usando um cinto de couro de crocodilo e sapatos azuis, apressou-se em vir me atender. Ele tinha uma ótima aparência. Quando sorria, a gente também tinha que sorrir. Até então eu nunca tinha visto um indivíduo assim.
Expliquei-lhe que estava interessado na compra de um par de brincos de brilhantes que se encontrava exposto na vitrina. Ele saiu da loja comigo e, em frente à vitrina, mostrei-lhe os tais brincos, os quais, naquele dia em que fomos almoçar no Félix, Angela contemplara como que embevecida. Sem dar demonstração alguma, eu havia observado o seu enlevo ao admirar a preciosa jóia.
- Ali estão os brincos! - disse, apontando para dentro da vitrina.
Então entramos novamente na loja e ele tirou os brincos do lugar em que estavam expostos.
Eu lhe disse meu nome e ele me disse o seu. Ele era o gerente dessa filial da Van Cleef & Arpeis e chamava-se Jean Quémard. Vinda do escritório, que se encontrava nos fundos, apareceu no salão da loja uma mulher loura, que Jean Quémard me apresentou.
Madame Quémard era tão simpática e amável como seu marido. Seu nome era Monique.
- Escute, Monsieur Quémard, eu gostaria de saber se uma determinada dama já esteve aqui indagando sobre esta jóia e demonstrando desejo de adquiri-la.
- Isso talvez eu não deva e não possa declarar-lhe - ponderou-me ele sorrindo.
- O senhor pode declarar-me, sim. Trata-se de Madame Delpierre.
- Oh, Madame Delpierre!
Ela era muito conhecida também nessa joalheria. Evidentemente era o que eu supunha ao mencionar seu nome. Com toda a probabilidade ela havia adquirido ali as suas jóias ou, pelo menos, grande parte delas. Quémard prosseguiu:
- Sim, monsieur, Madame Delpierre entrou certa vez nesta joalheria e pediu-me que lhe mostrasse esses brincos. Ela gostou imensamente deles.
- Eu sei - respondi-lhe.
- Esses brincos são os mesmos... quero dizer, são do mesmo tipo de confecção daqueles que usava Martine Carol, a saudosa artista cinematográfica - disse Madame Quémard.
Quémard consultou um catálogo.
- Cento e quinze mil francos, Monsieur Lucas. E Madame Quémard emendou:
- O senhor é estrangeiro. Caso pretenda exportar essa jóia, declarando seu valor no posto alfandegário da fronteira, o senhor fica isento do imposto incidente. Em tal hipótese, o custo dela será vinte por cento mais barato.
- Não quero levá-la para fora do país - disse, sentindo-me um pouco tonto ao refletir sobre a enorme quantia que devia desembolsar. Mas não era o dinheiro da roleta? Eu não o havia ganho apostando no 13, o nosso número da felicidade?
- Evidentemente o senhor deseja um certificado de qualidade, com a fotografia da jóia e contendo a sua fiel e minuciosa descrição. Tal documento servirá para segurá-la em qualquer companhia. Para onde devemos remeter isso?
- Para o Majestic. Os brincos, eu gostaria de levá-los comigo imediatamente.
Madame Quémard saiu a fim de providenciar um finíssimo estojo e fazer o pacotinho. Abri a pasta de couro e paguei os cento e quinze mil francos a Quémard, gastando, assim, parte do dinheiro que ganhara na roleta. Sobraram-me ainda cento e dezenove mil francos. Quémard contou as notas de quinhentos francos que se achavam atadas em macinhos de dez notas cada um. Madame Quémard entregou-me o estojo num lindo pacote feito com papel azul-escuro, todo salpicado de estrelinhas douradas e devidamente lacrado. Enfiei-o na minha pasta de couro.
- Agora será muito difícil explicar a Madame Delpier-re que esses brincos já foram vendidos... - disse Quémard.
- Mas eu os comprei precisamente para presenteá-los a Madame Delpierre - disse, e logo em seguida me dei conta (mas já tarde demais) de que tal declaração poderia ser comprometedora.
- Evidentemente... Eu já havia percebido, Monsieur Lucas... Perdoe-me essa brincadeira tola - disse Quémard.
- O senhor vai fazer Madame Delpierre muito feliz com esse presente - emendou Madame Quémard.
- Será uma grande satisfação para mim - respondi-lhe.
- Agradecemos pela preferência que o senhor nos deu, monsieur - disse-me Quémard, que, com sua mulher, me acompanhou até a porta.
- O senhor deve agradecer ao cassino - retruquei-lhe.
Depois que saí da loja, tudo o que via lá fora me parecia completamente irreal. Em frente ao Félix, no lado oposto da rua, encontrava-se um jovem pintor, que exibia os seus quadros pendurados entre os ramos de palmeiras. Era exatamente o mesmo artista que havíamos observado quando almoçamos no Félix e que, consoante afirmação de Angela, nunca era bafejado pela sorte. Aproximei-me dele e dei-lhe quinhentos francos. Ele julgou que eu tivesse cometido um engano e recusou-se a pegar o dinheiro, pois não havia comprado nenhum dos seus quadros.
- Não importa, pegue o dinheiro - insisti. - Você já almoçou hoje?
Constrangido, ele meneou a cabeça negativamente.
- Então vá depressa almoçar. Você precisa comer. Agora, durante alguns dias, faça regularmente as suas refeições. Ninguém pode sentir-se feliz com o estômago vazio.
- Agradeço-lhe muito, monsieur. Um caso desses nunca me aconteceu.
- A mim também nunca aconteceu - respondi-lhe. Lançando meus olhos para o mar, notei que os destróieres americanos haviam levantado âncora durante a noite.
Capítulo 17
José Sargantana recitava um trecho, expressando-se no deficiente alemão que havia aprendido no colégio:
- "Quando o rinoceronte, tão malvado na sua sanha assassina, quer te comer, procura salvar-te a tempo trepando na árvore mais próxima. Do contrário, terás muitos dissabores." Eu aprendi o trecho todo. Aliás, ainda o sei de cor. Wilhelm Busch. É um autor que sempre me causou admiração.
- E o senhor, agora, quer trepar em alguma árvore próxima? - perguntei.
- É claro - respondeu-me ele, voltando a falar em francês. - É o que tenho a fazer. Odeio dissabores.
Faltavam quinze minutos para as dez e eu já me encontrava no portentoso gabinete de trabalho do magnata argentino de carnes em conserva, na Résidence Bellevue, localizada na Avenue du Prince de Galles, no bairro La Peyrière.
Tratava-se de uma das mais belas e caras mansões de Cannes. A Résidence Bellevue era cercada por um magnífico parque coberto de palmeiras, ciprestes e pinheiros europeus. Viam-se ali diversas piscinas gigantescas. Era sem dúvida a maior mansão da cidade.
Esse homem, com um aspecto que facilmente se podia classificar de rude e que me fazia evocar a figura típica do gaúcho, esse homem, que outrora (assim se podia imaginar) conduzira, trabalhando como peão de estância, enormes rebanhos de bois através das vastas planícies da sua terra natal, já fazia muito tempo que havia começado o seu trabalho, quando ali cheguei.
Fui recebido por um criado, que me conduziu ao seu secretário particular. Este levou-me para uma espécie de sala de espera contígua ao escritório do homem, onde me fez sentar. Não demorou muito e Sargantana surgiu à minha frente.
Observei atentamente e vi cinco moças sentadas às suas mesas, todas muito ocupadas - datilografando correspondência, telefonando ou lidando com a máquina de telex.
- O senhor tem um amplo escritório aqui - disse-lhe, perplexo.
- São dois salões. Nos fundos deste ainda se encontra outro, com sete secretárias. Em toda parte, tenho meu escritório próprio. Sou obrigado a trabalhar em toda parte e devo, portanto, propiciar meios para facilitar qualquer comunicação comigo. Mas acompanhe-me, quero mostrar-lhe os aposentos. Não todos, pois minha senhora ainda está dormindo. Ela precisa dormir bastante.
Então esse homem de rosto moreno queimado pelo sol, de olhos aguçados que piscavam com muita freqüência, conduziu-me através da sua mansão.
Sargantana, vestindo só calça e camisa, estava descalço. Explicou-me que, propriamente falando, eram três residências de dois andares o que ele estava me mostrando. Ele comprara as três, fundindo-as numa única.
- Cada residência dispunha de nove quartos. Custaram-me cerca de cento e setenta mil dólares. Minhas transações se efetuam preferentemente em dólares. E foi em dólares que paguei. - Era de se imaginar, pensei com meus botões. - E esta quantia corresponde apenas a parte dos gastos, pois, sendo os apartamentos de dois andares, tive de mandar construir escadas e elevadores próprios para cada um deles. Também mandei demolir as paredes e retirar as colunas e escoras existentes, a fim de conseguir maior espaço para os aposentos sociais, que ficaram bem amplos.
Conduziu-me através de todos os aposentos. A biblioteca e a sala de recepção (onde se podiam servir refeições) eram certamente de dez a quinze vezes maiores do que as salas desse tipo que existem normalmente em todos os apartamentos. Podia-se dizer que a sala de estar de qualquer burguês abastado correspondia, na mansão de Sargantana, a uma simples sala de vestir, com armários embutidos e espelhos.
Sargantana explicou-me, orgulhoso, que todos os pisos eram de mármore de Carrara, bem como os azulejos e as banheiras dos banheiros. Mostrou-me um deles. As torneiras e as guarnições de ferro haviam sido substituídas por outras de ouro puro. De resto, tudo ali se encontrava bem arrumado e com muito bom gosto. Predominavam os móveis de estilo antigo, e pelos soalhos estendiam-se valio-síssimos tapetes. As janelas tinham as mesmas dimensões das paredes exteriores: três metros de altura por até quinze metros de comprimento. E evidentemente não faltavam ali as instalações adequadas para refrigeração e calefação do ambiente. Todas as salas de recepção e de trabalho se encontravam no pavimento térreo, e era no primeiro andar que ficavam os quartos privativos da família de Sargantana, precisamente onde Maria continuava dormindo. Das janelas podia-se contemplar o mar.
- Quantas peças tem essa mansão? - perguntei-lhe.
- Vinte e duas! - respondeu-me com a satisfação própria de uma criança à qual se dá um presentinho bonito. - Eu preciso de muito espaço. Em Buenos Aires possuímos uma villa com trinta e dois quartos. Bem... voltemos, agora, ao meu gabinete.
Seu gabinete achava-se localizado entre os dois escritórios onde trabalhavam suas secretárias e era pintado de verde-escuro, em contraste com o castanho-escuro dos móveis. A imponente escrivaninha estava completamente vazia. Sobre ela encontrava-se apenas um aparelho de telefone, certamente com extensões para as diversas salas.
Logo que entrei, levantou-se um homem, que, sentado numa cadeira em frente à escrivaninha, aguardava a chegada de Sargantana. Era um indivíduo de boa estatura, com cabelos louros bem ralos e que tinha uma cicatriz no lado esquerdo da testa. Esse homem era Otto Kessler, o caçador de sonegadores de impostos, de Bonn.
Capítulo 18
- Que surpresa agradável! - exclamei.
- Também me alegro. - Kessler era um homem sem inclinação para a ironia. - Pretendia telefonar-lhe para saber se você fez algum progresso nas suas sindicâncias. Teríamos, então, que marcar um encontro em qualquer lugar.
- Espero que os senhores não discutam aqui as suas sindicâncias - disse Sargantana, que estava sentado atrás da escrivaninha, sob um quadro de Monet, que eu conhecia através de um livro de arte. - Pedi ao Sr. Kessler que também comparecesse aqui esta manhã porque tenho um assunto a tratar com ele e porque tudo o que vou declarar é interessante para ambos.
- Hoje estou convidado para dar um passeio de iate com Monsieur Trabaud - disse dirigindo-me a Kessler. - Mas já estive conversando com Lacrosse e lhe comuniquei tudo o que fiquei sabendo.
- Então irei até lá depois - disse-me Kessler, que me dava a estranha impressão de estar completamente distraído, com a mente bem longe. - Obtive do Senor Sargantana a maior parte das informações relacionadas com a Kood, da Floresta Negra, e com as transações em libras esterlinas efetuadas por Mr. Kilwood e o Sr. Hellmann, conforme o relato que lhe fiz em Düsseldorf. Como é óbvio, examinei cuidadosamente uma por uma todas essas informações a fim de comprovar sua autenticidade. Fiz isso não por desconfiar da sua pessoa, Senor Sargantana, mas simplesmente porque era do meu dever proceder assim.
- Evidentemente. Eu mesmo não me esquivei de dar-lhe todas as referências necessárias - disse o argentino.
- De resto, Kilwood ontem à noite tomou mais um daqueles seus terríveis pileques - disse Kessler.
- Sim, foi lá no cassino - disse eu, com o simples intuito de corroborar suas palavras.
- Foi o que ouvi dizer. Um dos comissários que trabalham naquele local é meu amigo. Conforme ele contou, Kilwood fez uma cena desagradável. Quem foi que o levou para casa?
- Fabiani e Tenedos - disse o argentino. - Mas se os senhores pensam que foi só lá que ele fez uma cena desagradável, enganam-se redondamente. Antes de sairmos para a recepção dos Trabaud, Maria e eu, Kilwood esteve aqui, já completamente embriagado. Não parava de dizer que ele tinha necessidade de me contar tudo o quanto antes, que era a mim que ele conhecia melhor e que já não mais podia suportar. ..
- Suportar o quê? - interroguei.
- A culpa. A terrível culpa que o atormentava.
- Mas que culpa?
- Pela morte de Hellmann - respondeu-me José Sargantana.
Foi depois dessa conversa que ele começou a recitar o trecho do poema do rinoceronte.
Capítulo 19
- E o senhor agora quer trepar na árvore mais próxima para salvar-se? - perguntei.
- É claro - respondeu-me José Sargantana. - É o que tenho que fazer. Odeio os dissabores.
Depois, voltando-se para Kessler, prosseguiu:
- Já lhe disse tudo o que suspeitava. O senhor mesmo comprovou o acerto da; minhas suspeitas. Contei-lhe também que Kilwood é um beberrão perigoso. Pela maneira como vem se comportando nos últimos dias, não se pode mais dizer que ele bebe simplesmente por prazer. É muito mais do que isso o que ele faz O senhor mesmo presenciou o comportamento dele ontem à noite - disse Sargantana dirigindo-se a mim com um movimento de cabeça. - Se os senhores acenderem um fósforo nas suas ventas, ele é capaz de explodir. - Sargantana freqüentemente esfregava o queixo enquanto falava. - E, agora, não é muito fácil alcançar alguma árvore para trepar. Cono estão as coisas, poderá surgir a qualquer momento um veríadeiro escândalo, seja lá qual for a minha atitude. Não somei te eu era amigo de Kilwood, como também mantinha com ele, como aliás ainda mantenho, negócios em comum. Contudo, em qualquer hipótese, a verdade será descoberta. Kilwood se encontra dominado pela incontrolável ânsia de querer onfessar tudo. Eu diria mesmo que ele se acha impelido por um furioso e incontido desejo de fazer sua confissão. Ontem mesmo, quando esteve aqui, não falava de outra coisa. Primeiro, manifestou o desejo de se dirigir diretamente à polícia. Mas eu lhe tirei essa idéia da cabeça.
- Por quê?
- Como lhe disse, gostaria de estar trepado numa árvore. Sinceramente, só assim poderia me sentir seguro quando o rinoceronte, isto é, a lei, a justiça ou seja lá o que for, se aproximar de mim para me comer. Pensei então comigo mesmo: Vou vomitar, vou entregar aos senhores o que consegui captar de Kilwood através das suas próprias palavras. Julguei que de forma alguma deveria me pôr em contato direto com a polícia. Isso é só para... - Ele demonstrou neste ponto da conversa um visível constrangimento, e, pela primeira vez desde que o conheci, pareceu-me uma figura simpática. - Quando um homem da minha posição se vê envolvido numa tramóia dessas, forçosamente tem que se valer de amigos, de homens que lhe possam servir de intermediário, de modo a ficar sempre relegado a segundo plano. E tanto quanto me for possível, envidarei todos os esforços para ficar em segundo plano. Os senhores poderão se comunicar com a polícia francesa, prevenindo-a de antemão sobre o que poderá acontecer. Poderão tranqüilamente declarar à polícia que telefonei para os senhores a fim de comunicar-lhes tais ocorrências. Os superiores hierárquicos desse Monsieur Lacrosse seguramente compreenderão. Entre minhas organizações industriais e o governo francês, atualmente estão em curso negociações de vulto. A França vai fazer investimentos na Argentina. Preciso dar maiores explicações?
Kessler e eu meneamos negativamente a cabeça. Pensei: "Só assim se poderá começar a fazer algo, mexendo desde logo no círculo social dessa gente". Kessler não demonstrou o mínimo resquício de surpresa. Parecia até que já havia sido inteirado previamente dessas informações de Sargantana.
- E então? - interrogou Kessler.
- Como já lhes disse, Kilwood esteve aqui. Não parava de chorar. Eu o trouxe exatamente a este gabinete. Ele só tinha uma idéia fixa: fazer o quanto antes sua confissão! Ele teve mesmo uma idéia, que julgou formidável: convocar a imprensa internacional! Fazer isso seria a última coisa que me passaria pela mente. E creio mesmo que uma idéia dessas não brotaria da cachola de ninguém. Funcionário algum lá do seu ministério, Sr. Kessler, seria capaz de imaginar isso.
Kessler, calado, balançou a cabeça. Ele trajava uma roupa tropical e calçava sandálias.
- Mas, afinal, que foi mesmo que disse Kilwood? - perguntei.
Sargantana comprimiu, na sua imponente escrivaninha, um botão, e imediatamente um compartimento com o formato de uma prateleira, comendo um gravador de som, saltou para cima. De uma das gavetas tirou uns papéis - o original acompanhado de diversa cópias, que passou às nossas mãos.
- Inicialmente, para acalmar Kilwood, eu lhe disse que ele devia falar gravado sua voz na fita magnética. Depois, então, transcrevi tudo o que ele havia declarado. Eu mesmo datilografei - e os senhores terão que me desculpar os erros de datilografia, pois de forma alguma eu poderia me valer do serviço de uma secretária para tal fim. Depois que lhe prometi entregar tudo à polícia (os papéis e a fita gravada), ele assinou o original, bem como as respectivas cópias.
- Por que não se dirigiu ele próprio à polícia? - interroguei.
- Sentia-se muito acovardado. Ele queria fazer essa confissão e depois suicidar-se. O homem, na verdade, se acha quase à beira do delirium tremens. Em todo caso, já falou ontem à noite aqui mesmo neste gabinete, e os senhores podem acompanhar suas lavras confrontando-as com o que se acha transcrito nesses papéis.
Sargantana ligou o gravador para reproduzir a voz de Kilwood.
Capítulo 20
"Aqui é John Kilwood que... que... está falando... E o que eu digo é... é ... é uma confissão... Eu declaro sob juramento solene que fui eu quem... quem... forçou José Sargantana... (besteira minha)... quem forçou Herbert Hellmann a praticar o suicídio..."
O gravador rodava. A voz de Kilwood, bêbado, soava através do gabinete. Eu Kessler, lendo, acompanhávamos suas palavras. Lá fora, o verdejante parque parecia luzir com a policromia das mais variadas flores e o sol brilhava lançando seus raios através de um lindo céu sobre o mar de águas azuladas.
"Eu tra... tra... trabalhei durante muitos anos com Hellmann... Sim... ele era, era o meu banqueiro... Nós tínhamos na... na Alemanha... a Kood. E durante anos fizemos nossas negociatas e tram... tram... trambiques... correndo tudo muito bem... "
Passou, então, a enumerar detalhadamente as negociatas que efetuara com o banco de Hellmann, sobre as quais Kessler já me havia dado, amplos informes em Düsseldorf.
Essa declaração levou um tempo relativamente longo e ocupou bastante espaço no papel datilografado. A voz de Kilwood concluiu assim o relato dessas transações ilícitas:
"...então... então veio a história das libras inglesas... Eu... eu transferi libras por intermédio do... do banco de Hellmann e o incumbi de... de conceder empréstimos também... em libras esterlinas... num montante de... num montante de...".
Nesse ponto começou a pronunciar as palavras em balbucios ininteligíveis. A voz de Sargantana fez-se ouvir bem nítida:
"Faça um esforço, John! Diga de uma vez tudo com clareza!"
Passando, então, a falar com a voz mais clara, Kilwood prossegue:
"...no montante de quinhentos milhões de marcos alemães... Eu... eu tinha um plano... muito... muito bem engendrado... Teria dado bom resultado... mesmo sem essa atitude louca de... de Hellmann... Mas ele se assustou e correu para cá e... e exigiu que eu fizesse a coverage... Ele tinha... tinha perdido quarenta milhões de marcos no... no negócio... Tudo por culpa dele mesmo..."
- Essa foi uma das minhas conjeturas, conforme lhe declarei - disse Sargantana, dirigindo-se rapidamente a Kessler, que concordou com um meneio de cabeça.
"Ele... ele... queria coverage... cobertura do... do... prejuízo de oito por cento... com que ele tinha... tinha que arcar... Eu... eu... não podia ajudá-lo. Eu não... não... tinha o dinheiro... em disponibilidade... Meu dinheiro estava todo aplicado no momento... Não... não é... não é verdade. .."
Durante cerca de um minuto só se ouviram suspiros. O gravador continuava rodando. O sol brilhava intensamente lá fora. Os pássaros cantavam pelo parque florido.
"É... é... é mentira... A verdade é... é... que eu queria... arruinar Hellmann! Eu queria... rebentá-lo... Eu... eu... queria possuir o banco dele... Sim, isso mesmo! O banco dele era o que eu queria... Por isso não lhe dei nem sequer um dólar. Aí ele... ele me disse que... que ia se matar... Suicidar-se... Eu lhe respondi... respondi que era uma brilhante idéia... e o aconselhei a provocar a... a explosão... do... do seu iate... para dar a impressão de ter havido um acidente... Dessa maneira ele... ele conservaria a... a... imaculada candura do... do... seu colete branco...
Ele me respondeu que... que... iria refletir seriamente nisso... E eu lhe disse... disse... disse que esperava que ele estivesse falando sério mesmo... E de fato ele tinha falado sério... pois deu cabo da sua vida e... e de outros também. Se ele, pelo menos, tivesse acabado só... só com a sua vida... sem levar à morte outras pessoas inocentes... É isso que está me deixando louco!"
Neste ponto começou a gritar.
"Isso me faz perder completamente a razão! A culpa! Eu poderia perfeitamente tê-lo ajudado!... Todos nós poderíamos tê-lo ajudado! Toda a nossa súcia! Tínhamos bastante dinheiro! Ele... ele... Eu não tenho muita certeza se ele procurou também os outros para ajudá-lo. Sargantana me disse não ter sido procurado por Hellmann... Não me leve a mal, José, mas eu não... não acredito em você... Um homem na... na situação de Hellmann se agarra a qualquer pedaço de pau. Com toda a certeza posso dizer isso! Mas ninguém... ninguém quis ajudá-lo... E por isso não sou eu propriamente o seu assassino... Todos nós somos assassinos... Todos nós... Mas eu... eu sou quem tem realmente esse peso na consciência... Esta... esta é a minha confissão... Hoje é segunda-feira, 15 de maio de 1972. São dezoito horas e vinte e cinco minutos. Eu me chamo John Kilwood. Juro que... que... eu declarei a verdade... a pura verdade... e que Deus me ajude..." Ele parou de falar e a fita continuou rodando sem nenhuma voz gravada.
Li mais uma vez na folha datilografada a sua última frase: "E que Deus me ajude..." Embaixo estava a assinatura de Kilwood, em rabiscos quase ilegíveis. Sargantana desligou o gravador.
- Tudo isso deve ser encaminhado imediatamente à polícia - disse Kessler.
- É exatamente com essa finalidade que estou passando tudo às mãos dos senhores.
Sargantana deixou a fita magnética rodar até o fim e entregou o cassete a Kessler, dizendo:
- Pegue, por favor. Os superiores hierárquicos de Lacrasse saberão o que devem fazer e como. Acho que agora consegui trepar numa árvore.
- Ontem lá no cassino, em pleno salão de jogos, ele não parava de gritar que todos os senhores são assassinos - disse eu lentamente.
- Bem... agora na fita gravada ele explica perfeitamente o que queria dizer e como pensava...
- Mas as suas palavras na gravação soam de maneira muito diferente - ponderei, não ocultando minha falta de convicção e meu desagrado.
- O senhor acha?! -perguntou-me Sargantana, numa atitude rompante, cheia de soberba.
- Sinceramente, é o que acho. E isso declararei se me for perguntado. Ou melhor: terei que declarar esta circunstância, mesmo que ninguém me faça qualquer pergunta. Em ambas as hipóteses. E devo acrescentar ainda que, lá no cassino, Kilwood, antes de ser levado embora, fez referências a um certo argelino que mora em La Bocca, com o qual tudo começou. Que será que ele queria dizer com isso?
- Não faço nenhuma idéia.
- Realmente nenhuma idéia? - interrogou Kessler. Sargantana sacudiu os ombros.
- A mim, particularmente, Kilwood declarou primeiro que havia cinicamente recomendado a Hellmann contratar um especialista americano em náutica, que lhe prepararia devidamente o seu iate para tal fim, porque ele próprio, Hellmann, não saberia fazê-lo. Uns dez minutos depois, passou a afirmar que sugerira a Hellmann mandar vir um indivíduo qualquer do submundo de Paris. Já ontem à noite, ele deu uma nova versão ao fato, mencionando um argelino que mora em La Bocca. Que posso dizer-lhes, portanto? O homem está atacado de uma terrível psicose. Já nem sabe o que diz.
"Oh", pensei, "foi-se o tempo em que eu acreditava em tudo o que ouvia!"
- Mas estaria ele sabendo o que dizia quando fez essa gravação?
- Apesar de tudo o que o senhor possa supor, eu acho que sim - respondeu-me Sargantana, revelando frieza no olhar. - Mas, afinal, que é que o senhor quer insinuar com essa pergunta, Monsieur Lucas?
- Trata-se simplesmente de uma pergunta.
- O senhor formula umas perguntas esquisitas, Monsieur Lucas!
- E o senhor também apresenta histórias esquisitas, Senor Sargantana!
- Quer dizer então que não acredita em mim?
- No senhor, eu acredito. Entretanto, não sei se devo acreditar em Kilwood.
- Mas eu não duvido das palavras de Kilwood - interveio Kessler. - E tudo isso será entregue imediatamente a Lacrosse e a Roussel. Que belo escândalo vai haver! Além do mais, suas declarações ficarão encobertas, pode ficar tranqüilo, Senor Sargantana. O senhor já está a salvo em sua árvore. Rápido, Lucas, venha! Você está de carro?
- Não.
- Então mande chamar um táxi. Dentro de um quarto de hora estaremos novamente no gabinete de Lacrosse. Cada um de nós leva uma cópia da confissão. Leve você, Lucas, o cassete com a fita gravada. Senor Sargantana, o senhor não deverá sair da Europa antes do esclarecimento desse caso.
- É claro que não! - respondeu o argentino. - Eu ficarei no alto de minha árvore.
Capítulo 21
Fazia muito calor nesse dia.
No gabinete de Lacrosse estavam girando três ventiladores. Os velhos, que de manhã estavam jogando boule, já tinham ido embora. Também os pescadores haviam desaparecido. Deixaram seus barcos na praia, e as redes, já completamente enxutas, estavam brancas como cal.
Eu e Kessler entramos e nos sentamos no gabinete de Lacrosse. Nesse momento ele e Roussel estavam telefonando para Paris. Exigiam a presença de representantes do Ministério da Justiça e do Ministério das Finanças, munidos de amplos poderes, bem como solicitavam informes junto à embaixada americana.
Depreendi dessa conversa telefônica que eles encontravam uma tenaz resistência por parte das autoridades de Paris. Roussel tornava-se cada vez mais irredutível nos seus propósitos. Ameaçava, caso não fosse atendido, agir por conta própria, provocando um enorme escândalo, que poderia facilmente ser evitado.
Kessler perguntou-me:
- Situação delicada, a desses homens, não acha?
- E você pensa que a nossa é muito diferente?
Ele não me deu nenhuma resposta e começou a bater fortemente com os dedos sobre a mesa, como era do seu hábito.
Policiais daquela repartição entravam e saíam. Era Lacrosse quem falava com eles, transmitindo ordens. O baixinho, agora, estava mais enérgico, e aquela expressão de tristeza se dissipara do seu semblante. Ao que parece, tratava-se de policiais que vigiavam a casa onde residia Kilwood.
A residência dele achava-se localizada em Mougin, que distava dali cerca de oito quilômetros. Consoante informações prestadas por esses policiais, Kilwood estava cozinhando o seu porre como um morto. Sua governanta informou que ainda bem cedo pela manhã ele ingerira forte dose de soporífero. A sua villa estava sendo rigorosamente vigiada, declararam os homens. Kilwood não tinha nenhuma possibilidade de sair dela sem ser visto. Na hipótese de tentar a fuga, podia ser impedido a qualquer momento mediante uma citação judicial que, para tal efeito, já se encontrava devidamente despachada no gabinete de Lacrosse. E ele não se arriscaria a tanto... Mas...
- Eu só espero que esse sujeito fique dormindo até recebermos ajuda de Paris - disse o baixinho, substituto do administrateur-chef.
- E quando chegará tal ajuda? - indaguei.
- Não será antes do anoitecer. Por quê? Mencionei mais uma vez o encontro que eu deveria ter
com Trabaud no seu iate.
- Você pode ir tranqüilamente. Quando regressar desse passeio, indague no Majestic se não existe algum recado para você. Se não houver nada, é porque continuamos no mesmo pé.
- Muito bem! - disse eu. - Mas como vai o seu filho?
- Não está passando bem. Lamentavelmente não. O médico disse que, para as crianças atacadas de sarampo, os primeiros dias são sempre os piores. E o coitadinho tem que ficar na cama com esse calor...
Capítulo 22
- Há três tipos de pessoas com as quais é muito bom travar relações - dizia-me Trabaud. - As que são intrinsecamente fortes, as sinceras e as que aprenderam muito na vida.
Estávamos sentados, um ao lado do outro, num banco colocado na popa do Shalimar, e bebíamos gim-tônica. Atrás de nós balouçava, crepitando pela força do vento, uma bandeira francesa. Na popa, estava preso o barco que servia para o embarque e desembarque dos passageiros. Víamos, também, os dois cabrestantes destinados a movimentar a âncora.
À frente, na proa do iate, Angela e Pasquale, de pé, riam por um motivo qualquer. Ambas tinham os cabelos protegidos contra o vento por uma espécie de turbante.
Pasquale, cujo porte esbelto e elegante traía ainda a sua condição de ex-manequim, usava um biquíni verde de diminutas proporções. Angela vestia um maiô feito em filó bem tênue, quase da cor da pele, no qual estavam pregadas rendas brancas na altura dos seios, do abdome e na parte inferior das costas. Sobre essas rendas, viam-se flores artisticamente recortadas em tecido. Olhando a uma certa distância, tinha-se a impressão de que ela estava usando só aquelas flores sobre a pele.
- Por isso - prosseguiu Claude Trabaud -, foi com imenso prazer que procuramos travar relações com Angela. Ela aprendeu muito na vida, sempre foi sincera e é uma pessoa de firmeza de caráter, isto é, intrinsecamente forte. Compreendo perfeitamente as razões pelas quais o senhor ama Angela, Monsieur Lucas.
Ambas as mulheres, passando entre a saliência da estrutura e o corrimão, vieram até nós, oscilando com o movimento do iate. Eu vestia um calção estampado, preto e branco, que Angela havia comprado para mim. Trabaud usava um calção azul. Todos eles estavam com a pele bem amore-nada pelo sol. Apenas eu tinha a pele branca e por isso me sentia um tanto envergonhado. Tiramos os sapatos antes de entrar a bordo. Tratava-se de um hábito saudável, conforme Angela me explicou. Na popa, diante do banco onde estávamos sentados, havia uma pequena mesa fortemente parafusada e três cadeiras de convés.
- Estamos com calor - disse Pasquale - e queremos tomar alguma coisa.
- Pierre! - gritou Trabaud.
Tinha de gritar para ser ouvido, pois o ruído do vento abafava-lhe a voz, assim como o barulho da hélice, o crepitar da bandeira e o marulhar da espuma branca, que borbu-lhava rastreando o iate.
Um marinheiro descalço apareceu, atendendo ao chamado. Era um jovem de bela aparência, que antes estava postado ao lado do capitão, um homem um pouco mais velho que ele, e que, sentado em sua cadeira alta, manejava o leme e lidava com os aparelhos náuticos.
- Que é que vocês querem beber? - perguntou Trabaud às mulheres.
- O que é que vocês estão bebendo? Gim-tônica? Para nós também. Está de acordo, Angela?
- Ótimo!
- Por favor, Pierre, mais dois gins-tônicas - ordenou Trabaud.
- Imediatamente, monsieur!
Pierre, vestido todo de branco como o capitão, saiu logo. As mulheres sentaram-se nas cadeiras do convés. Todos haviam passado no corpo uma espessa camada de óleo para proteger-se contra o sol. Angela untara-me cuidadosamente para evitar queimaduras. Estendemos toalhas de banho sobre o assento do banco para não manchar de óleo o estofamento. Angela me havia comprado, também, um boné branco.
Naftali, o terrier filho de Israel, aproximou-se de nós todo desengonçado e começou a esfregar-se na perna de Pasquale. Depois, muito satisfeito da vida, colocou-se aos pés da dona, cujas unhas estavam pintadas de vermelho.
- Sobre o que vocês estavam falando? - perguntou Pasquale.
- Sobre Angela - respondeu-lhe o marido.
- Que estavam dizendo sobre ela?
- Eu estava dizendo a Monsieur Lucas por que gostamos dela - disse ele pegando a mão de Angela e beijando-a.
- Oh, por favor! - disse ela, percebendo que eu a fitava. Então ela também me fitou e sorriu. Seus olhos luziram, parecendo lançar chispas douradas. O turbante dela era de um tecido branco.
Pierre chegou com os dois drinques, colocando-os sobre a mesa.
Bebemos. Depois de dar uma grande volta, Max começou a aumentar a velocidade do iate. O vento quase arrancava meu boné da cabeça. A espuma chegava a saltar para a popa onde nos encontrávamos.
Nesse momento eu via apenas sol e mar! Invadiu-me uma sensação de grande calma e de indizível felicidade... Jamais em minha vida tivera sensação igual.
- À nossa frente está Nice - explicou-me Claude Trabaud.
Do gabinete de Lacrosse eu havia ido diretamente ao Majestic, onde redigi e cifrei um telegrama para Gustav Brandenburg. Comuniquei-lhe tudo o que havia sucedido em Cannes. Foi um telegrama muito extenso. Pedi-lhe instruções sobre como deveria proceder na hipótese de tentarem abafar o escândalo ocorrido com Kilwood ou de se esquivarem de tomar qualquer medida contra ele.
Do Majestic segui diretamente para Port Canto. No convés o pessoal aguardava minha chegada para fazer o iate partir. Uma espécie de pinguela ainda se encontrava armada no cais e eu tinha que caminhar sobre ela para subir a bordo.
- Tire os sapatos - gritou-me Angela.
Com os pés descalços, cheguei ao convés. Naftali saudou-me com latidos de alegria. Trabaud, enquanto nos dirigíamos às cabinas para tirarmos nossas roupas e vestirmos os calções, ia me mostrando seu iate, que, deslizando sobre a água, já começava a sair do porto. A embarcação possuía dois motores General Motors, de 283 HP cada um, e um gerador Diesel para fornecimento de corrente elétrica a bordo. O iate tinha dezoito metros de comprimento por cinco de largura. Com suas quarenta e cinco toneladas de peso, podia atingir a velocidade de dezoito nós horários. Uma escada ligava a popa à primeira parte do camarote superior. À direita ficava a cabina do capitão, diante de uma enorme janela de vidro. À esquerda ficava o aparelho de radar. Entre a cabina e o aparelho de radar, uma escada conduzia à sala de recepção embaixo, uma sala em madeira escura com móveis revestidos de azul e guarnecidos por tiras de metal amarelo bem polido. Descendo-se mais alguns degraus, deparava-se com duas cabinas destinadas aos convidados e mobi-liadas com beliches e lavatório. Angela ficou em uma e eu na outra. Foi ali que mudei de roupa. Em frente das cabinas ficava a cozinha com fogão elétrico. Mais à frente encontravam-se os camarotes dos dois jovens, o capitão e o marinheiro. Num bloco da extremidade do iate, sob a popa, havia uma outra cabina mais ampla, com camas duplas, estante de livros, guarda-roupas e um telefone especial para as embarcações desse tipo. Era ali que dormiam os Trabaud quando faziam uma viagem longa. Dentro do iate um cheiro de lona e de piche atacava as narinas. Trabaud tinha orgulho do seu iate. Eu também teria...
- À nossa frente está Nice - disse-me Claude Trabaud. O iate ia descrevendo uma curva bem acentuada e avançava, aproximando-se cada vez mais das praias de Nice. Bem à frente dos meus pés vi um caixão. Explicou-me Trabaud que aquilo era uma espécie de ilha de salvamento. Uma vez atirado ao mar, transformava-se, com o desdobramento de uma possante câmara de ar, num bote dentro do qual poderiam caber até doze pessoas. Nesse bote haviam sido colocadas provisões de alimentos e de água, além de pistolas com cartuchos de explosão luminosa. Não faltavam ali também um transmissor para pedido de socorro urgente e tintas especiais para tingir a água, tornando-a luminosa, a fim de facilitar aos aviões verificar das alturas a posição em que se encontrava.
À esquerda da entrada para a cabina do capitão, estava pendurada uma bóia bem grande, sobre a qual se lia a palavra Shalimar em letras azuis. Os pranchões do iate também estavam pintados de branco. Uma escada ligava a popa ao convés, que ficava acima da cabina do capitão, onde se podia ficar completamente nu.
As praias de Nice já estavam bem próximas. Eu via muitos iates e pessoas na água.
Foi nesse lugar que observei os conjuntos habitacionais mais horríveis que já vi em minha vida - verdadeiras malocas em forma de arranha-céus. Eram dois edifícios enormes, amplos na base e que se estreitavam gradativamente para cima. Tinham um aspecto triste e desumano. E dizer que era o lar de milhares de pessoas! Não consegui contar o número de andares nem a quantidade de janelas. Cada um desses edifícios parecia uma reprodução da Torre de Babel.
- Que acha disso? - perguntou-me Trabaud. Respondi-lhe externando o meu pensamento sem rodeios. Pasquale riu.
- Por que está rindo?
- Porque Claude gastou muito dinheiro com a construção desses dois monstros - respondeu-me.
- Também acho que essas edificações têm um aspecto horrível - disse Trabaud. - Mas tenho de vendê-las com lucro. E isso não é difícil. Por toda essa costa irrompeu um verdadeiro boom no que diz respeito às propriedades imobiliárias. Quem quiser aplicar bem o dinheiro que faça edificações aqui. Não há melhor local.
- Eu... - comecei a falar, mas interrompi a frase porque ouvi uma risadinha de Angela.
- Desculpe-me - disse Trabaud. - Tenho mania de estar sempre pensando em negócios...
- Ah, mas Robert também é um homem rico. Sabem que ontem ele ganhou bastante dinheiro no cassino? - disse Angela.
"E você não sabe o que fiz com a maior parte desse dinheiro. Você nem imagina o que está dentro da minha pasta lá na cabina", pensei comigo mesmo.
Trabaud prosseguiu:
- Aliás, tenho que lhe pedir desculpas, Monsieur Lucas, por não lhe ter dito a verdade ontem à noite. Realmente eu lhe menti.
- Mentiu? Quando?!
- Quando disse que também tinha uma razão muito plausível para assassinar Hellmann, por haver efetuado com ele transações escusas.
- E o senhor não fez nenhuma transação dessa espécie?
- Nunca! - respondeu-me Trabaud, com firmeza e convicção. - Eu jamais seria capaz de fazer negócios desse tipo. Sempre me vali de créditos em conta corrente no banco de Hellmann. Tenho até o momento uma operação vincen-da naquele banco. Nada mais!
- Não compreendo - redargüi - por que o senhor se culpou a si próprio.
- Eu estava fazendo um teste. Veja: eu e Hellmann éramos realmente muito amigos. Sua morte comoveu-me profundamente. O senhor não imagina como eu gostaria de descobrir quem leva na consciência o peso de um crime tão hediondo. Por isso passei a culpar-me perante toda essa gente do meu círculo de amizades. Queria observar se algum deles me retrucaria e qual seria sua reação. Nenhum deles me retrucou. Eles reagiram de maneira muito estranha, o senhor não acha?
- Realmente - confirmei. - Principalmente o Procurador-Geral Seeberg. Ele teve forçosamente conhecimento de toda a trama e sabia, portanto, que o senhor estava se culpando indevidamente. Entretanto, não emitiu uma palavra sequer de protesto.
- Seeberg é um homem muito inteligente. Não quis provavelmente declarar diante dos outros que eu estava mentindo. Ou talvez tenha estranhado minha atitude e por isso procurou sondar tudo a meu respeito, na esperança de descobrir quais eram minhas intenções. Sobravam-lhe razões para assim proceder. Mas não se esqueça de que, quando a catástrofe ocorreu, Seeberg estava no Chile. Portanto, nem por brincadeira se pode dizer que ele tenha mandado liquidar o seu chefe. Seja lá como for, é bom que o senhor saiba que nunca efetuei negócios escusos ou enrolados com Hellmann. Nunca! Eu, o imbecil, ganho meu dinheiro com dificuldade e honradamente.
- Lembra-se do que eu lhe disse ontem com relação à nossa vida? - interrogou-me Pasquale.
- Sim, lembro-me de tudo.
- Então está tudo bem. Agora proponho (inclusive a Claude e Robert) que nos tratemos todos por você. Quem tiver alguma objeção, levante a mão! Ninguém levantou a mão.
- Alô, Robert - disse-me Claude Trabaud, que estava usando um boné de capitão já desbotado.
- Alô, Claude! - respondi.
- Muito bem! Vocês estão com fome?
- Com uma fome danada! - exclamei.
- Então a mamãezinha aqui vai logo para a cozinha. Angela quer mostrar-lhes as ilhas de Lérins ou, pelo menos, Saint-Honorat ou Sainte-Margueritte. Saint-Honorat é mais interessante e mais bela.
- Mas também é a menor - emendou o marido.
- Vamos ancorar nela para almoçar - prosseguiu Pasquale. - Teremos pimentões recheados, que preparei hoje cedo. Só falta esquentá-los. Levante-se, Naftali, filho de Israel!
Coçou delicadamente o cãozinho e depois subiu a escada que conduzia ao camarote do capitão com a esbelteza e a desenvoltura de uma jovem elegante.
- Vou com você para presenciar seu trabalho na cozinha - disse Claude.
- Ótimo! Assim você deixará os felizes jovens um pouquinho a sós. Mandaremos trazer para vocês mais dois gins-tônicas de aperitivo, OK?
- OK, Pasquale! - respondi.
Angela arrastou o banco para meu lado e coloquei meu braço em torno do seu ombro. O iate ia deslizando novamente em pleno mar aberto.
- Não acha que são magníficos? - perguntou-me Angela.
- Sim, eles são realmente maravilhosos.
- E você está feliz, Robert?
- Muito feliz! - respondi, apertando-a contra mim.
- Que bom! - exclamou ela. - Você nem imagina como estou satisfeita por vê-lo feliz.
- Você - disse-lhe, sentindo na boca o gostinho da água salgada -, você é a única criatura que poderia me fazer feliz. Aliás, você já conseguiu isso.
- E vou conseguir muito mais ainda...
Um possante iate passou por nós. As ondas rebentaram de encontro ao Shalimar, que começou a jogar, oscilando fortemente. Eu segurava Angela apertada contra meu peito.
Capítulo 23
Estávamos no barco. Nas minhas mãos encontrava-se a amarra cuja extremidade Pierre segurava. Depois que o barco se aproximou a uma distância razoável do ponto escolhido para desembarque, ele pulou e começou a puxá-lo para bem perto. Em seguida ajudou-nos, a mim e a Angela, a saltar para terra. Disse-nos que permaneceria nadando perto do barco e que não havia necessidade de nos apressarmos.
O Shalimar ficara ancorado no mar. Pasquale, completamente nua, estava deitada no tombadilho, onde não podia ser vista. Claude deitara-se no leito da sua enorme cabina. Ambos faziam a sua sesta habitual, com uma boa soneca. Era um dia muito quente, mas amenizado pela brisa suave.
Angela estava com uma calça azul e sapatos combinando com a roupa. Ela pegou a minha mão e fomos caminhando até chegar diante de um enorme portão antigo, já em ruínas. Essa ilha de Saint-Honorat teria, no máximo, uma área de um quilômetro e meio de comprimento por meio quilômetro de largura. Viam-se ali pinheirinhos, eucaliptos, roseiras, margaridas e gladíolos.
- É sempre com prazer que visito esse lugar. Cada vez que venho aqui, subo até a torre do château - disse-me Angela. - Já pintei muitas telas dali de cima. Você sabe que durante séculos foi Cannes que pertenceu a essa ilha e não ela a Cannes, como atualmente? Com acerto pode-se dizer que foram os habitantes dessa ilha que fundaram Cannes, talvez há uns quinze séculos.
Atravessamos o portão e penetramos numa espécie de alameda cheia de eucaliptos. Sobre o portão, lia-se a inscrição "L'Abbaye". Essa ilha chamava-se Lérins em virtude do templo dedicado a Lero, outrora construído no outro extremo.
- Quem foi Lero?
- Um deus grego, uma espécie de Hércules mitológico. Creio que foi somente por volta de 400 d.C. que se edificou o claustro dedicado a Saint-Honorat, que já estamos avistando à nossa frente.
Prosseguíamos caminhando de mãos dadas e falávamos em alemão. Quando estávamos a sós, falávamos invariavelmente em alemão, mas na presença de outras pessoas nos expressávamos só em francês.
Meu pé esquerdo começou a doer. Mas para mim, no momento, isso pouco importava, pois Angela segurava minha mão e estava caminhando ao meu lado. Sentia uma imensa satisfação em ouvir sua voz.
Atingimos a extremidade da alameda através da qual seguíramos caminhando e fomos dar exatamente em frente ao claustro do mosteiro. Observei que a edificação não fora restaurada com muita felicidade. Apenas o claustro propriamente dito, com suas celas, parecia conservar o esplendor da sua primitiva beleza.
No jardim inçado de plantas daninhas, observei vestígios de diversos monumentos de pedra, bem como a metade de uma coluna romana. Dois monges, com seus hábitos religiosos bem brancos, um deles baixinho e bastante obeso e o outro, alto e magro, estavam jogando peteca. Sorrindo como crianças, eles corriam de um lado para outro, sempre batendo na peteca e atirando-a para o ar. O gordinho suava e arquejava ofegante. Logo que viram Angela, correram ao nosso encontro e nos cumprimentaram delicadamente. Angela estendeu-lhes a mão e fez minha apresentação. Eu também estendi-lhes a mão. Ambos demonstraram uma grande alegria por reverem Angela.
- Madame é uma mulher muito linda - disse o gordinho. - Por causa dela a amendoeira floresceria cada semana.
- Que amendoeira? - interroguei. O magro passou, então, a explicar-me:
- Consoante a lenda, Saint-Honorat tinha uma irmã: Sainte Margueritte. Ela se estabelecera na ilha que fica do outro lado, a ilha de Sainte Margueritte, em companhia de outras virgens cristãs. Ela queria muito bem ao seu irmão. Entretanto Saint-Honorat não permitia de forma alguma que qualquer mulher, fosse ela quem fosse, pusesse os pés na sua ilha. Ele mesmo visitava a irmã somente uma vez por ano. O santo homem prometera à irmã que todos os anos, na época em que a amendoeira estivesse florida, iria visitá-la. E ela, que amava tanto o irmão, suplicou a Deus um milagre e o Todo-Poderoso permitiu, então, que a amendoeira florescesse a cada mês. Desse modo Saint-Honorat podia mensalmente visitar a irmã, sem quebra do juramento feito... Mas se ele tivesse conhecido madame...
- ... não teria se tornado um santo - concluí, cortando-lhe a frase. - Até que os senhores, como religiosos, vão longe em seus admiráveis colóquios...
Ambos riram. O gordinho disse:
- Um momento, por favor!
Saiu correndo até desaparecer no interior do claustro. Olhando-o a certa distância, tinha-se a impressão de que era uma possante bola branca que rolava sobre aquele chão coberto de areia.
- A senhora certamente deseja mostrar o château a monsieur, não é verdade? - perguntou o monge magro e alto a Angela, que com a cabeça respondeu afirmativamente.
- Não posso permitir a entrada no interior do claustro. De resto, com o correr dos séculos o mosteiro ficou muito empobrecido. Nos últimos tempos viviam aqui somente quatro monges. A ilha foi posta à venda em hasta pública. Foi comprada sucessivamente por diversas pessoas: inicialmente, a atriz Sainval, que foi a primeira intérprete da Condessa na opereta cômica Bodas de Fígaro, de Beaumarchais; depois, os bispos de Fréjus, que a venderam aos dominicanos e estes, finalmente, aos cistercienses.
O monge gordo e baixote, que parecia uma bola rolando, vinha de volta. Trazia na mão uma garrafa verde.
- É para madame e monsieur - disse ele. Tratava-se de uma garrafa de licor de lerina, bebida
que os próprios monges fabricavam naquela ilha. Depois ele disse:
- Madame pintou e nos deu de presente alguns quadros com vistas da ilha, do mosteiro e do château. Nós os penduramos nos mais belos lugares do claustro. Por isso lhe daremos a quantidade de lerina que quiser.
- Muito obrigada! - respondeu Angela. - Vamos tomar um gole agorinha mesmo. Mas como conseguiremos arrancar a rolha?
- Também pensei nisso - disse o gordinho. - Trouxe um canivete munido de saca-rolhas.
Ele próprio abriu a garrafa, que imediatamente passou a correr de boca em boca. Angela bebeu em primeiro lugar e eu logo em seguida. O licor tinha um sabor um tanto adstringente, mas muito agradável. O monge alto e magro, quando chegou a sua vez, levantou a garrafa dizendo:
- Faço votos que os senhores possam viver um longo período de paz e de tranqüilidade.
- Muito obrigado! - disse, puxando do bolso uma nota de dinheiro. - Não sei se me é permitido deixar um pequeno óbolo em benefício do claustro...
- É permitido, sim - respondeu o gorducho, muito contente. - O senhor pode dar o que quiser, monsieur.
Nós não somos ricos. Agradecemos-lhe imensamente. E que o senhor passe um dia feliz, com um lindo passeio.
Então, novamente de mãos dadas, eu e Angela fomos seguindo adiante. A dor no meu pé esquerdo ia se tornando cada vez mais forte.
Parei um pouco e virei-me. Os dois monges nos acenaram sorrindo. Correspondi ao aceno deles. Eu segurava numa das mãos a garrafa.
- Aqui está Le Château - disse-me Angela. - Está localizado bem próximo ao claustro. Era neste château que os monges se recolhiam sempre que percebiam a aproximação de qualquer navio suspeito. Essa construção foi erigida lá pelo ano 1100... precisamente como proteção contra as incursões de piratas. O château não é propriamente um castelo. Melhor seria designá-lo como torre de uma fortaleza.
A dor no pé estava se tornando cada vez mais importuna. Eu já fazia um tremendo esforço para suportá-la a fim de que Angela nada percebesse e não ficasse apreensiva.
O andar térreo da torre estava em ruínas. Tinha a forma de um quadrilátero e dispunha de um pátio interno. Seus muros dourados pelo sol pareciam resplandecer sobre o rochedo, entre a borda do mar e os pinheiros.
Aproximadamente a quatro metros do nível do chão, estava a torre. Um plano inclinado conduzia até ela.
- Outrora não existia esse plano inclinado - disse-me Angela, que caminhava ao meu lado. - Os monges se serviam de uma escada móvel. Eles a retiravam logo que pressentiam a aproximação dos sanguinários sarracenos. A primeira coisa que eles faziam era acender um fogo para advertir do perigo os vigias que se encontravam na torre sobre o monte Chevalier.
Passando através da torre, penetramos numa capela totalmente em ruínas.
- Aqui a atriz Sainval tinha a sua sala de recepção - disse-me Angela.
Lancei o olhar, através da janela, para o pátio interno. Via-se ali uma cisterna romana. Sobressaíam também galerias de dois andares, que talvez outrora tenham servido de claustro para os monges. Nos fundos da capela existia um salão de enormes dimensões.
- Todos os habitantes da ilha freqüentemente refu-giavam-se aqui - continuou Angela a explicar-me. - Por isso o salão devia ser bem amplo.
Ouvi o ronco dos monges que dormiam lá em cima.
Uma escada bem larga, em espiral, conduzia ao segundo andar. Caminhando ao longo de celas vazias e com cheiro de mofo, atravessamos o salão da antiga biblioteca. Já estava quase perdendo o fôlego, e meu pé, de tão pesado, parecia de chumbo. Arfava um pouco.
- Você acha que estou andando muito depressa, Robert?
- Não - respondi-lhe.
E assim fomos subindo ao terceiro andar e depois ao quarto. No terceiro andar, disse-me Angela, residia o abade e no quarto se alojava o pessoal encarregado dos serviços do mosteiro, bem como os soldados da vigilância. Subimos até o pavimento de cobertura, provido de ameias.
- Diversos estilos arquitetônicos - prosseguiu Angela - se acham aqui desordenadamente misturados, pois no decurso de tantos séculos o château tem passado por constantes reformas em seu interior.
Finalmente, nos encontrávamos no ponto culminante da ilha, vislumbrando o mar sob um sol radiante, que nos batia em cheio.
- Venho aqui com freqüência - disse-me Angela, enquanto me encostava no parapeito a fim de aliviar a dor do pé. - Observe bem, agora, Robert: lá do outro lado fica Cannes. - Ela apontou com a mão. Divisavam-se perfeitamente os contornos da cidade ao longo do mar, bem como as íngremes colinas crivadas de imponentes villas e résidences. - É exatamente lá em cima que eu moro... lá, bem atrás daquelas palmeiras altas. Adoro aquele recanto. Por minha livre vontade, eu não escolheria nenhum outro lugar para morar. Embora também conheça a face sombria e triste de Cannes, mesmo assim não desejo sair daqui.
- Eu também gostaria de permanecer sempre aqui - disse.
O sol estava deslumbrante. Seus raios se refletiam nas milhares de vidraças das casas e edifícios. Era um dia em que por toda aquela costa se via uma porção de barcos a vela. Provavelmente havia uma regata. A dor no meu pé se tornara tão importuna que eu tratei logo de engolir, ocultamente, dois comprimidos. Mas Angela percebeu que eu havia posto algo na boca.
- Que é que você tem?
- Oh... são os comprimidos que tomo habitualmente depois do almoço.
- Não é verdade, Robert! - retrucou ela num tom incisivo. - Você está sentindo alguma dor, Robert. Eu noto isso em você. Por favor, diga-me o que você tem, Robert! Diga-me, sim?
- Não estou sentindo nada. Absolutamente nada! - disse, mas quase no mesmo instante tive que me sentar por não poder suportar essa dor infame.
- Robert! - Angela, apreensiva, abaixou-se, postando-se ao meu lado com os joelhos no chão.
- Bem... realmente estou sentindo uma dorzinha... mas não é nada de grave. O médico disse que é provocada pelo cigarro.
- Dor no coração?
- Não, no pé. No meu pé esquerdo.
- Descalce logo o sapato, então!
- Não, não quero. Já está passando, Angela. Talvez... Mal acabei de falar, e ela já havia tirado meu sapato.
Examinou atentamente o meu pé e depois, apoiando-o sobre o regaço, começou a fazer massagens com as mãos enxutas e frias. Eu estava sentado com as costas voltadas para as ameias e ela permanecia com os joelhos no chão, na minha frente, alisando e esfregando meu pé.
- Não se assuste! - disse. - Não é nada, absolutamente nada. De vez em quando essa dorzinha me ataca. O médico afirmou que não há perigo nenhum.
Dizendo isso, menti mais uma vez. Disse outra mentira à mulher que eu amava. Angela disse-me:
- Você vai consultar um especialista, Robert. O melhor especialista que temos aqui. Você me promete?
- Sim.
- Você tem que me jurar.
- Juro.
E esse juramento, depois, me deu muito que pensar.
- Isso não devia acontecer a você... E logo agora depois que nos conhecemos. Meu Deus, seria pavoroso!... Seria horrível!...
- Mas não está acontecendo nada! - exclamei.
Era um dia de sol radiante. Ouvi a risada de dois monges que se encontravam a alguma distância daquele ponto.
- Se houver algum sofrimento ou alguma doença, então que recaia tudo sobre mim. Você não deve sofrer nada...
- Angela! - retruquei-lhe. - Pare de dizer absurdos! Ela levantou meu pé e, comprimindo-o contra o peito, prosseguiu fazendo a massagem. Passei a notar que a dor ia diminuindo gradativamente.
- Já passou - exclamei. - Essa dorzinha sempre passa logo.
Angela continuava apertando meu pé contra o seu peito e não parava de esfregá-lo com seus dedos frios. E, de fato, a dor desaparecera completamente.
- Você está se sentindo melhor, agora? Meneei a cabeça afirmativamente e levantei-me.
E ali mesmo, naquela ilha em pleno mar, sob a abóbada de um céu azul infinito que encobria aquela antiqüíssima fortaleza, nos abraçamos e nos beijamos!... Parecia que nosso beijo nunca mais se acabaria... Esqueci, por um momento, tudo o que me acontecera durante minha vida... Jamais enquanto viver, enquanto não exalar meu último suspiro, poderei esquecer aquele beijo naquela tarde de um dia tão esplendoroso, ali no pavimento de cobertura de Le Château, em Saint-Honorat, a menor das duas ilhas de Lérins.
Finalmente, nossos lábios se desgrudaram.
- É um beijo que deve ser sempre lembrado - disse eu.
- É verdade - respondeu-me Angela, com o semblante sério.
- E lembrado durante toda a nossa vida - emendei. Angela abaixou-se e apanhou do chão a garrafa verde.
Depois de ter tirado a rolha, entregou-me a garrafa para que eu bebesse. Depois bebeu com sofreguidão e deixou cair no chão liso a garrafa, que se estilhaçou, derramando o resto da bebida.
- É para os deuses que habitam debaixo da terra. Você também conhece essa simpatia, não é verdade?
- Sim, conheço.
Passei, então, a refletir que uma criatura nunca se aproxima tanto dos deuses como quando torna feliz o seu semblante. Lembrando-me da lenda da amendoeira florida de Saint-Honorat, disse a Angela:
- Para nós a amendoeira florescerá cada dia, cada noite...
- A cada hora, a cada minuto, sempre, continuamente, Robert... Enquanto vivermos...
Nesse instante notei que sobre uma das ameias se encontrava uma lagartixa. O bichinho estava completamente imóvel e parecia fitar-nos com seus olhinhos redondos.
Capítulo 24
- Empresas multinacionais - dizia-me Claude Trabaud. - Que significa tal designação? Trata-se simplesmente de sociedades ou empresas que operam em diversas nações. Seus esquemas de investimentos e de produção variam em cada país de acordo com as vantagens oferecidas...
Claude permanecia sentado, tendo uma das suas pernas nuas apoiada a uma cadeira de bordo. Segurava um copo de uísque. Encontrávamo-nos na popa do iate, que oscilava suavemente. Eu estava sentado na frente dele. Fazia poucos minutos que eu e Angela havíamos regressado do nosso passeio à ilha de Saint-Honorat.
Angela e Pasquale a essa hora estavam deitadas no tombadilho, completamente nuas, apanhando sol. Seriam aproximadamente quatro e meia da tarde, e o mar estava calmo. Max e Pierre se haviam recolhido ao camarote. Eu também tomava uísque, em pequenos goles. A água estava tão clara que se podia enxergar o fundo do mar. Viam-se rochas, algumas plantas marinhas e uma infinidade de peixes, de todos os tamanhos.
- Todas as empresas multinacionais são muito ricas. Algumas têm uma produção que ultrapassa o montante da renda total dos habitantes de uma cidade relativamente grande. Por exemplo, o movimento comercial da General Motors é maior do que o produto nacional bruto dos Países Baixos. A Standard Oil, a Royal Dutch e a Ford, juntas, efetuam um volume de negócios cujo valor é muito superior ao montante do produto nacional bruto de países como a Áustria e a Dinamarca. A General Electric tem um movimento que supera a produção da Noruega. O da Chrysler se sobrepõe à da Grécia. As empresas multinacionais anglo-holandesas Unilever podem muito bem confrontar o volume dos seus negócios com a produção na Nova Zelândia. A estrutura administrativa dessas empresas está arranjada de tal forma que se torna praticamente impossível determinar o lugar exato em que se encontra o seu principal órgão diretivo. Mesmo num país industrializado como a Inglaterra, os trustes internacionais controlam mais de vinte por cento das indústrias-chave. Aproximadamente um terço das cem maiores organizações industriais da Alemanha, em última análise, são dirigidas e controladas por grupos que se encontram fora daquele país. E trata-se de empresas realmente poderosas...
Naftali subiu lentamente para a popa e veio postar-se ao lado de Claude Trabaud. Ouvimos as risadas das duas mulheres que se encontravam lá em cima. Soprava, nesse momento, uma brisa suave. O iate começou a oscilar com maior ímpeto.
- Mas hoje em dia torna-se praticamente impossível, mesmo para os governos, acabar com tais empresas ou neutralizar sua ação. A coisa chegou a tal ponto que, para conseguir isso, seria necessária a implantação de uma nova ordem sócio-econômica, apesar das mais tremendas resistências. E, convenhamos, uma transformação tão radical chega a ser inconcebível. Na verdade, são muitos os aspectos pelos quais se evidencia que as atividades das empresas multinacionais não são nada desejáveis, nem do ponto de vista político de cada nação nem quanto às.suas relações com as classes que lhes prestam serviços. São elas próprias, essas empresas multinacionais, que escolhem, ao seu livre-arbítrio, os lugares onde pretendem operar, desenvolver as suas pesquisas e incrementar a sua produção. São elas próprias que fixam o quantum a ser produzido em cada país. E elas dispõem de força para impedir que inventos inovadores sejam utilizados, se forem suscetíveis de vir em detrimento das suas conveniências. Pode-se afirmar que o portento e a elasticidade de tais organizações tornam praticamente im-profícuas as pressões contra elas exercidas por parte dos governos. O seu poderio financeiro e a firmeza da sua estrutura, considerando-se as peculiaridades do sistema empresarial, lhes asseguram uma solidez inabalável. Além disso, elas podem exercer ponderáveis influências para neutralizar toda e qualquer ação de concorrentes, impondo sua vontade mesmo nas altas esferas governamentais. Bem... acho que nada mais preciso dizer-lhe... Você mesmo pode inferir o resto... Eu e meus sócios, que participamos da cadeia de hotéis, estamos convencidos de que a pressão exercida contra a libra esterlina foi engendrada por empresas desse tipo. Realmente, nós nos encontramos em face de um poder que é capaz até de abalar o próprio mercado monetário internacional. É evidente que, com o enorme poder de deliberação de que elas dispõem, não há possibilidade de submetê-las ao controle legal.
- Quer dizer que nada se pode fazer contra elas? - interroguei.
- Enquanto os governos não estiverem capacitados para se defender, essas empresas monstros continuarão intocáveis e infensas a quaisquer medidas punitivas. Finalmente, elas conduzirão as nações a um caos total. - Trabaud, neste ponto, fitou-me e sorriu. - Talvez você se admire de um homem como eu falar assim. Entretanto, posso ganhar bastante dinheiro sem deixar de ter uma idéia social bem elevada, você não acha?
- É claro.
- Eu não participo de nenhuma organização multinacional. Minha cadeia de hotéis se desenvolve sempre num trabalho conjunto com os países onde nos estabelecemos. Além do mais, entre todas aquelas pessoas que lhe foram apresentadas ontem, sou o único elemento que realmente pode dizer o que estou dizendo porque não participo de nenhuma empresa desse tipo.
Eu estava quase cochilando e tinha que me esforçar para conservar as pálpebras abertas.
- Então, qual é sua opinião com relação a tudo isso?
- Bem... o que eu penso, você já sabe... Ou será que ainda não sabe?
- O quê?
- Pelo que vejo, não sabe nada mesmo. Fabiani, Thorwell, Sargantana, Tenedos e Kilwood formam uma empresa multinacional, com ramificações em todo o mundo, inclusive na sua pátria. A Kood pertence a todos eles. Compreendeu bem, agora?
Eu apenas consegui responder afirmativamente, com um meneio de cabeça. O iate começou a oscilar com mais força.
A Kood pertence a todos eles... Vejam só!... Assim sendo, ela não pertence somente a Kilwood, mas também a Tenedos, Sargantana, Fabiani e Thorwell.
- Com o banco de Hellmann deve ter ocorrido algo de anormal. Não imagino o que possa ter acontecido. Se Hellmann estivesse metido em empreendimentos de vulto, ele teria a cooperação de toda essa gente, que poderia perfeitamente ajudá-lo nas suas dificuldades. É uma gente que dispõe de poderes praticamente ilimitados. Entretanto, o que aconteceu foi o assassinato de Hellmann.
- É verdade - respondi. - E ninguém sabe por que ele foi assassinado.
- Realmente, ninguém sabe.
- Claude, você nem imagina quanto me auxiliou com essas suas declarações.
Capítulo 25
Por volta das sete horas da tarde entramos novamente em Port Canto. Seguindo um velho hábito, Claude queria permanecer no camarote da sua tripulação, para conversar e tomar mais alguns drinques. Entretanto Pasquale o dissuadiu dessa idéia dizendo:
- Pense bem... não podemos abandonar nossos dois convidados. Faça um esforço e tome sozinho o seu pileque...
Meu corpo chegava a arder, queimado pelo sol. Minha pele estava bem vermelha, apesar da enorme quantidade de creme e óleo que havia passado. Também no rosto eu apanhara muito sol. Agradeci imensamente a Pasquale pelo maravilhoso, dia que nos proporcionaram.
- Bobagem! Nada de maravilhoso! Fazemos esses passeios com freqüência. Você é amigo de Angela, portanto é nosso amigo também. Mas o que é que há, Naftali?
O terrier estava latindo. Despedimo-nos de Pierre e de Max, aos quais dei gorjetas. Segurando nossos sapatos, passamos sobre a pinguela e atingimos o cais. Dali nos dirigimos ao local onde Angela estacionara o Mercedes, que estava próximo de um muro do cais, onde se via escrito em letras garrafais o seguinte cartaz de propaganda: "Proletários de todos os países, uni-vos!"
Eu segurava a maleta de Angela, na qual ela havia enfiado as toalhas, o seu maio e o meu calção de banho. Ela se apoiou em mim para calçar os sapatos. Depois também calcei os meus.
- Você não sente mais aquela dorzinha? - perguntou-me Angela.
- Não estou sentindo absolutamente nada!
Os Trabaud, de pé no iate, ficaram nos acenando até que Angela fez o Mercedes arrancar, saindo do estacionamento no porto.
- Estou com sede - disse ela. - Vocês, homens, be-beram bastante, mas eu fiquei lá em cima com Pasquale apanhando sol. Espere, garotão, agora a mamãezinha aqui também vai tomar alguma coisa.
E dizendo isso, ela virou o volante e dirigiu o carro diretamente ao Club House Port Canto.
Atravessamos um saguão bem fresquinho e nos dirigimos a um pequeno bar. Uma orquestra composta de três elementos estava executando músicas suaves numa espécie de terraço sombrio, que ficava do lado de fora.
Sentamo-nos a uma mesa pequena, próxima à parede divisória do terraço, onde se podia ouvir bem a música. Poucas pessoas freqüentavam o bar a essa hora. Pedi champanha de que Angela tomou logo uma taça, numa sofreguidão de pessoa sedenta. Enchi novamente sua taça.
Lá fora, a luz de minuto em minuto ia mudando a sua tonalidade e a brisa parecia acariciante. Através da porta aberta, fui até o terraço e, depois de ter dado uma boa gratificação aos músicos, pedi que eles executassem Blowin' in the wind. Voltei de novo à nossa mesa, de onde Angela ficara me observando.
- Que é que você foi fazer?
- Nada.
Começamos a beber. Nesse momento ecoaram os primeiros acordes de Blowin' in the wind.
- Nossa canção! - exclamou Angela.
Ela se levantou da cadeira e saiu correndo através do bar, indo postar-se perto do alto-falante, no terraço quase vazio. Em seguida começou a cantar ao microfone. Sua voz, impregnada de ternura, soava como um murmúrio suave. E a letra da canção brotava dos seus lábios, ora cantada, ora murmurada, como um sopro ciciante.
"Quantos caminhos, neste mundo, não são caminhos de lágrimas e de sofrimentos? E quantos mares, neste mundo, não são verdadeiros mares de tristeza?"
O piano. A bateria. O saxofone em surdina. A voz de Angela. Apoiei-me no espaldar da cadeira e comecei a beber. E os meus pensamentos começaram a voar para tão longe. .. tão longe...
Eu havia afirmado que não era casado. Mentira a Angela... A minha atitude fora muito baixa.
"Quantas mães não se encontram há já tanto tempo sozinhas, esperando... esperando!..."
Meu corpo ardia. Não era somente por causa do sol nem do champanha.
"Você sabe muito bem por que seu corpo arde. Você mentiu a Angela. Você tem uma esposa em casa. Você não e um homem livre e desimpedido. Não, desimpedido você não é..."
"A resposta, meu amigo, só o vento sabe... Só o vento sabe a resposta", cantava Angela em suaves murmúrios.
De um momento para outro cheguei a perder a noção de culpabilidade e passei a raciocinar como um indivíduo sem consciência. Ora, que deveria eu fazer para enfrentar uma situação dessas? Sou livre e desimpedido! O amor que existia no meu casamento já morreu! Tão-somente num papel é que está escrito que Karin é minha mulher. Mas a mulher que realmente amo, a minha mulher, encontra-se aqui bem perto de mim e ela se chama Angela.
Angela continuava cantando:
"Quantos homens ainda existem hoje em dia que não são livres e que teriam imensa alegria em se verem livres da escravidão? Quantas criancinhas, à noite, não vão para a cama atormentadas pela fome?"
Eu não quero dizer a verdade. Essa verdade eu não revelarei. Vou rezar para que nenhuma outra pessoa lhe revele algo a respeito da minha situação... Só eu mesmo é que devo esclarecer-lhe meu caso. Tenho que trabalhar. Tenho que ganhar dinheiro. Não posso falhar de modo algum.
"...a resposta, meu amigo, só o vento sabe... só o vento sabe a resposta..."
Eu devo... eu devo... eu devo fazer o quê? Será que jamais poderei ter um pouquinho de felicidade na minha vida? Durante toda a minha existência só conheci o peso das minhas responsabilidades.
Meu estado de excitação ia aumentando cada vez mais, precisamente porque, a cada momento que passava, mais consciente me tornava de não ter agido com correção quando me esquivei de dizer toda a verdade a Angela.
Mas eu não podia dizer-lhe a verdade! Se lhe dissesse a verdade, estaria irremediavelmente perdido...
"Que enormes quantidades de dinheiro não gastam os homens com bombas, foguetes e aparelhos mortíferos?" Era a voz de Angela no alto-falante. "Quantos homens não existem por aí que soltam da boca para fora palavras pomposas, mas que não podem suavizar as misérias de ninguém?"
Eu não quero perder Angela! Nunca! Para mim seria o fim, seria o desfecho fatal da minha existência...
"Quantas desgraças ainda acontecerão neste mundo até que a humanidade se resolva a mudar de idéia? A resposta, meu amigo, só o vento sabe. Só o vento sabe a resposta..."
A voz de Angela calou-se. Lentamente, com uma expressão melódica bem triste, o saxofone executou os derradeiros acordes da canção.
Enquanto Angela cantava, eu havia aberto o pacote da jóia comprada na Joalheria Van Cleef. Coloquei os dois magníficos brincos de brilhantes dentro do copo de Angela, que ainda estava com champanha até a metade. Ela voltou radiante para a nossa mesa.
Eu me levantei e disse-lhe:
- Muito obrigado! Muito obrigado, Angela, por esses momentos de enlevo que você me proporcionou!
- Nossa canção! - exclamou ela. - Nossa igrejinha! Nossa canção! O nosso cantinho lá no terraço do Majestic. E ele se tornará cada vez mais nosso. Perdoe-nos, querido cantinho, se hoje fomos desleais para com você, procurando outro lugar! Amanhã visitaremos você de novo!
Sentamo-nos.
- Puxa, como faz calor aqui! Vamos beber um pouco mais de champanha? - perguntou-me Angela.
- Sem dúvida.
Angela soltou um gritinho. Ela estava com os olhos fixamente cravados em sua taça.
- Acho que estou ficando louca! - exclamou. - Estou enxergando brincos de brilhantes dentro do copo! Brincos do mesmo tipo daqueles de Martine Carol. Devo estar bêbada.
- Eu também! - respondi-lhe. - Estou vendo também uns brincos dentro do seu copo. Tire-os, meu amorzinho, senão você é capaz de engoli-los!
Angela, com a pontinha dos dedos, tirou a magnífica jóia de dentro do copo.
- Coloque-os nas orelhas - disse eu.
O semblante de Angela modificou-se bruscamente. Ela ficou séria, parecendo que queria censurar-me.
- Você está realmente bem embriagado. Nunca poderei aceitar isso! Que idéia você faz de mim?
- Só sei dizer que você é a mulher que eu amo.
- Mas isso é uma loucura! Você não deve dispor de tanto dinheiro assim!
- Mas é claro que disponho desse dinheiro. Do contrário, não poderia ter comprado esses brincos. Transmito-lhe, também, as lembranças de Madame e Monsieur Quémard.
- Não, eu não vou aceitá-los! Em hipótese alguma! Eu teria a impressão de estar agindo como uma prostituta.
- Doce e sublime prostituta! Neste caso sinto uma alegria enorme por estar loucamente apaixonado por uma prostituta - exclamei.
- Le chaim, ma poule! - Virei-me, falando com o garçom. - Por favor, mais champanha!
- Imediatamente, monsieur!
Angela não parava de observar os brincos de brilhantes.
- Mas, de onde...
- Ora, do cassino! Você se esqueceu de quanto eu ganhei?
- Quer dizer que você gastou imediatamente tudo o que ganhou nesses brincos?
- Tudo não. Também não gastei imediatamente. Foi só hoje de manhã que fiz isso. Desde aquele dia em que observei você, como que enlevada, contemplando esses brincos, a vontade de adquiri-los para você não me largou mais. Mas eu não podia comprá-los. Então, aconteceu aquele caso com o número 13, que deu três vezes em seguida, como você bem sabe. E não seria isso, porventura, um sinal evidente de que eu deveria comprá-los para presenteá-los a você?
O próprio maitre do bar veio até nossa mesa trazendo a garrafa de champanha e encheu nossos copos.
Angela fez a nossa apresentação. Ele se chamava Jacques.
- Muito prazer, senhor! - disse-me Jacques.
- Igualmente - respondi-lhe. - Por favor, traga-nos mais uma garrafa de champanha, Monsieur Jacques.
Eu me sentia um tanto comovido e alegre. O chefe do bar saiu da nossa mesa.
- Não, não e não! - exclamou Angela. - Não quero esses brincos! Irei com você à Van Cleef para fazer a devolução.
- Eles não receberão a jóia de volta. Joalheria alguma procede desse modo.
- Mas Quémard, sim. Nós somos amigos.
- Eu também sou amigo dele. Ele não receberá os brincos em devolução. Ele me jurou de mãos juntas. Experimente se quiser.
Ela fitou-me com os olhos bem abertos.
- O que você fez não passa de uma loucura! - exclamou ela. - E isso pode acabar mal... - prosseguiu, depois de uma certa pausa.
- Sim, é uma doce e agradável loucura. A única coisa que você tem que fazer, agora, é experimentar os brincos.
Ela sorriu.
- Você é impossível, Robert! Ganha um montão de dinheiro... E que faz?
- Que faz? - repeti a sua própria interrogação.
Fiquei observando todos os seus movimentos, enquanto ela colocava os brincos crivados de brilhantes nas orelhas pequeninas. Depois, mirou-se atentamente no espelhinho do seu porta-pó.
- Mas não são mesmo maravilhosos?!
- Maravilhosa é você! - respondi-lhe.
- Ah, Robert! - Ela pegou minha mão, deixando exposta diante dos meus olhos aquela manchinha branca nas costas da sua. - Robert, eu... eu agradeço a você... Você nem pode imaginar o quanto eu desejava possuir estes brincos!
- Eu sei. Monsieur Quémard e eu... Bem, nem aos irmãos de sangue, nem aos melhores companheiros a gente deve dizer o que fica sabendo através de pessoas amigas. Beba! Vamos abrir a garrafa. Hoje para nós é um dia de festa e temos que comemorá-lo condignamente.
Jacques já havia trazido a garrafa de champanha dentro de um balde prateado cheio de pedrinhas de gelo. Eu mesmo tirei a rolha e enchi nossos copos, que batemos em brinde antes de começarmos a beber. As luzes se acenderam. Uma infinidade de lâmpadas brilhava no mar, em terra, ao longo do sopé do monte Esterel.
- À nossa saúde! - disse.
- À nossa saúde! - repetiu Angela. - Até hoje homem algum me fez presente de qualquer jóia. Você é o primeiro.
- Você está me dando uma informação muito agradável.
- Robert...
- Sim?
- Qualquer mulher pode amar muito você...
- Mas eu não quero qualquer mulher. Eu só quero você!
Sua mão continuava agarrada à minha. Os brincos luziam com um brilho intenso nas suas orelhas pequeninas. Juntamente com Claude Trabaud eu havia bebido bastante lá no iate. Notei que estava ficando bêbado aos poucos e que me tornava mais brando e meigo.
- É só a você que eu quero, Angela - disse, beijando a palma da mão que tinha a manchinha branca.
Um grupo de gente bem expansiva e alegre, fazendo um vozerio danado, apontou no terraço. Ao que parecia, tratava-se de artistas de cinema. Eles se sentaram a uma certa distância da nossa mesa. Falavam italiano. Eram, ao todo, seis homens e uma jovem mulher.
- É Claudia Cardinale - disse-me Angela. - Vire-se para vê-la.
- Não!
- Vire-se, homem, e observe-a! Ela é muito linda. Eu gosto muito de ver os seus filmes. Ela é maravilhosa.
Angela também já estava meio bêbada.
- Não tão maravilhosa quanto você! - exclamei. - Por que você quer que eu vire meu rosto? Será que você não sabe que é somente você que eu quero ver e contemplar? Você e ninguém mais!
As luzes se acenderam também no terraço. O brilho das lâmpadas refletia-se nos brincos de Angela.
Capítulo 26
Dali tomamos o rumo da residência de Angela. Nem é preciso dizer que era ela quem estava ao volante. Ela levava os brincos nas orelhas. O rádio do carro estava ligado na estação de Monte Cario. John Williams cantava Merci, Dieu, merci... Passamos novamente na esquina daquele beco antigo, com as casas desaprumadas, onde se via uma infinidade de cartazes rasgados, colados aos muros. À luz dos faróis do carro, vislumbramos o vulto de um homem que, todo encolhido, estava agachado à beira do meio-fio, com a cabeça entre os joelhos.
Angela freou o carro, parando bruscamente. Ela saiu e eu a segui. Postou-se diante do homem e começou a falar com ele.
- O senhor está se sentindo mal? Está doente?
O miserável ficou um longo tempo sem responder. Finalmente, resolveu levantar a cabeça. Era um velho, e na sua boca via-se uma erupção cutânea, uma espécie de pústula, que parecia ser de caráter maligno.
- Sou jardineiro - disse ele, falando baixinho. - Trabalhei a vida toda num lugar bem perto daqui. Numa dessas villas cujo nome não quero mencionar. O meu nome também não quero dizer. A distinta senhora minha patroa me mandou embora hoje de tarde.
- Por quê?
- Observem bem a minha boca! Como ela está horrível com essa ferida! Não sei como foi que eu peguei isso. Deve ter sido ocasionado provavelmente por alguma espécie de inseticida empregado para proteção das plantas, pois, já faz algumas semanas, uns pingos desse tipo de veneno saltaram para o meu rosto. A patroa sentia repugnância ao ver minha cara. Essa ferida me repugna também, mas que é que eu posso fazer?
- E então? - perguntou-lhe Angela, já acocorando-se perto dele e falando baixinho também.
- Nada mais tenho a dizer. Que posso fazer, agora? Onde um velho da minha idade poderá encontrar trabalho por aqui? E, ainda mais, com esta repelente ferida na boca! Muito melhor teria sido para mim se tivesse sido atropelado. Só assim eu teria esticado as canelas para sempre. Mas nem essa felicidade eu tive.
- Vou até meu carro - disse Angela. - Volto num momento.
Eu entrei no Mercedes, de onde, sentado, observei Angela conversando com o velho e entregando-lhe todo o dinheiro que ela trazia na sua bolsinha. Só depois disso é que voltou para o carro. Vi quando o velho se levantou para ir embora. Angela tomou o seu lugar ao volante. Não trocamos uma palavra até atingirmos o leito da via férrea, com o seu portão sempre fechado à noite. Ali, tivemos que esperar um pouco.
- Eu dei ao velho um endereço - disse-me ela. - O dos Lavais. Eles também moram aqui. Possuem um parque muito grande e estão precisando de um jardineiro com urgência, E expliquei, também, ao homem qual o médico que ele deveria procurar para tratar da sua pústula. Eu já vi certa vez um jardineiro que tinha isso. E esse médico deixou-o em perfeito estado. Tais erupções cutâneas devem ser ocasionadas realmente pelos inseticidas.
O portão se abriu.
Angela fez o carro arrancar, rumando diretamente para casa.
Capítulo 27
Diretamente para casa!
Só agora escrevo, pela primeira vez, essas palavras. Como se fosse também a minha casa! E, naquele momento, pareceu-me de fato que a casa de Angela era também a minha, que o apartamento dela era também o meu e que o lar dela não podia deixar de ser o meu próprio lar, um ambiente onde nada de mau nos poderia acontecer.
Um bilhete havia sido enfiado por baixo da porta. Esse bilhete estava rabiscado numa verdadeira garatuja:
"Rezo todas as manhãs pela felicidade de vocês dois, na igrejinha de Sainte Gertrude. Alphonsine Petit".
- A igrejinha de Sainte Gertrude fica nas proximidades da estação ferroviária - explicou-me Angela. - Alphonsine mora por aqueles lados.
- E é naquela igreja que sua arrumadeira vai rezar?
- Sim. Todas as manhãs.
Permaneci de pé na saleta, segurando o bilhete, e Angela foi ao quarto para trocar de roupa, não sem antes ter ligado os aparelhos de televisão, que se encontravam na cozinha, na sala de estar e no jardim de inverno. Ainda dava tempo para pegar o segundo noticiário da noite.
Angela voltou de novo à saleta, mandando-me entrar. Vestia um roupão curto e chinelos. Estava usando os brincos. Tirei minha camisa, descalcei os sapatos e fiquei sentado no banquinho da cozinha, observando como ela, com desembaraço e rapidez, preparava uma salada de arenques à Bismarck. Sempre se movimentando entre o terraço e a cozinha, não parava de ouvir o noticiário. Ajudei a preparar a mesa e depois passei a contemplar aquele verdadeiro turbilhão de luzes que iluminava a cidade e as embarcações no mar. Eu não podia falar com Angela enquanto ela estivesse ouvindo o noticiário, pois parecia estar engolindo com avidez as palavras do comentarista. Na verdade, eu também estava interessado nas notícias: o assunto predominante era a desvalorização da libra esterlina. Como conseqüência disso, os países industrializados, inclusive os Estados Unidos, exigiam a imediata valorização do marco alemão. A Bolsa de Valores do Japão manifestou uma grande reação. A da Itália também.
Eu havia telefonado de Port Canto para o Majestic. Não havia nenhum recado ou telegrama para mim. Lacrosse não me fizera nenhuma comunicação.
Que teria acontecido? Kilwood estaria ainda curtindo o seu porre? As feras de Paris já teriam chegado?
Angela, sempre caminhando apressada e com desenvoltura, se movimentava de um lado para outro, entre os aparelhos de televisão. Seu roupão curto estava aberto na frente e pude observar suas lindas pernas. Para acompanhar a salada de arenques, ela serviu novamente bâtard, assim como pão branco e cerveja Kronenbourg bem gelada.
Comíamos sentados no terraço do seu apartamento, sempre com os olhos pregados um no outro.
Nesse momento, a televisão começou a transmitir um show. A música característica soou nos três aparelhos.
- Mas não são mesmo bonitos estes brincos? - perguntou-me Angela, movendo a cabeça de um lado para outro, a fim de fazer luzir os brilhantes. - Não são realmente maravilhosos?
- Você é que é maravilhosa!
No show que estava sendo transmitido, executavam um bom número de antigas canções sentimentais. Eu e Angela retiramos a mesa e começamos a dançar no terraço, sob aquela fraca luz da sala, que inundava o ambiente e caía sobre a folhagem.
Dançávamos lentamente, agarradinhos. Ela conservava os dois braços em torno do meu pescoço e, enquanto nos movíamos, acompanhando o ritmo da música suave e terna, não parávamos de nos beijar.
- Foi muito bom termos comido arenques hoje - disse ela.
Ela permanecia de pé. Seus beijos eram ardentes e impetuosos. Percebi logo que nesse dia ela estava disposta. Em seguida apossou-se de mim uma vontade incontrolável de dizer-lhe toda a verdade.
"Não posso continuar mentindo a essa mulher! Não devo esperar nem mais um segundo para esclarecer-lhe minha situação." Então, segurando-a nos meus braços, disse-lhe:
- Eu nunca lhe contei a verdade a meu respeito, Angela! Eu sou casado!
Ela ficou estarrecida, o seu semblante tornando-se bruscamente como que petrificado. Devagarinho, como que maquinalmente, foi se desprendendo de mim e saiu para desligar todos os aparelhos de televisão.
Depois voltou ao terraço e sentou-se numa cadeira de vime. Eu estava sentado na cadeira de balanço. Permanecemos calados.
- Infelizmente sou casado - repeti finalmente.
- Sim - respondeu ela continuando completamente imóvel na sua cadeira. - Todos os homens infelizmente são casados. Casado era também aquele por quem... - Ela interrompeu a frase. - Infelizmente ele também era casado, de maneira...
- Mas eu sou realmente casado!
- Pare com isso! - disse-me ela.
- Por favor, Angela...
- Quero que você pare com essa conversa. Não gosto de tratar de assuntos desta natureza com homens casados. Foi até muita gentileza da sua parte ter-me revelado a verdade ainda a tempo. Agora, portanto, vamos colocar um ponto final em tudo. Eis aqui os brincos! Leve-os de volta!
- Não!
- Mas eu exijo!
- Não!
Ela correu para a saleta onde minha camisa estava pendurada, enfiou os brincos dentro da minha pasta e voltou ao terraço. Eu prossegui:
- Vou falar com minha mulher. Quero me separar dela. Era isso que eu tinha necessidade de dizer a você, ainda hoje, Angela. Vou pedir o divórcio a minha mulher. Ela é mais jovem do que eu. Ela não me ama mais, se é que de fato me amou alguma vez.
- Conversa! - exclamou Angela, deixando o torso cair para trás na cadeira. - Conversa! Palavras ocas e nada mais!
- Estou falando sério, Angela! Nunca na minha vida falei tão sério assim. Tomarei amanhã o avião para Düsseldorf, a fim de tratar da nossa separação. Eu quero você. Somente você e mais ninguém. Eu preciso tanto de você como preciso do ar para respirar.
- Saia! - disse Angela, virando-me as costas. - Vá embora, por favor! - Ela parecia estar contemplando, extática, as luzes lá embaixo.
- Angela, acredite em mim...
- Só quero que você vá embora! - gritou ela, tornando-se repentinamente áspera e com um aspecto selvagem. Depois, como que murmurando suplicante, disse-me:
- Por favor, Robert, eu lhe peço! Deixe-me só, agora! Que situação esquisita!
Eu lhe disse ainda algumas palavras, mas ela não me deu resposta. Não parava de olhar a cidade e o mar, sempre esquivando-se de me fitar diretamente.
- Muito bem! - disse eu por fim. - Vou embora!
Ela não me respondeu nada.
- Mas voltarei novamente quando já estiver divorciado da minha mulher.
Não houve resposta.
- Boa noite! - disse eu.
Ela não correspondeu à minha despedida.
Dirigi-me à saleta e vesti a camisa. Tendo notado que os brincos se encontravam dentro da minha pasta, voltei ao terraço. Angela deu-me as costas. Permanecia tão imóvel que, na sua cadeira, parecia estar sem vida. Então saí do apartamento.
Capítulo 28
Ela usava excesso de pintura. Tinha uns seios possantes e o traseiro era igualmente avantajado. A boca, grande e vermelha, parecia uma ferida exposta.
- De que é que você mais gosta? - perguntou-me a morena de cabelos pretos. - Eu faço de tudo. Basta você pagar. Se você tem um gostinho todo especial, eu posso satisfazer perfeitamente o seu desejo. Mas... deixe-me passar a mão sobre a calça... Barbaridade, como já está esticado, tinindo que nem aço!... Você é um cão de tão sensual e fogoso, queridinho!
Essa cena se passou num bar na Rue du Canada. Mas só fiquei sabendo disso mais tarde, quando foram me buscar. O bar estava localizado num desses hotéis de alta rotatividade. Quando ali entrei, desconhecia também esse pormenor. Pretendia voltar a pé do apartamento de Angela ao Majestic. Entretanto, devido ao meu estado de espírito, perdi completamente a orientação. Notei que nessa Rue du Canada muitas meretrizes estavam fazendo o trottoir e que havia um grande número de bares. Observei, também, a presença de uma porção de turistas americanos.
O fato era que eu queria me embriagar e por isso entrei naquele bar cujo letreiro a neon era mais vistoso. Sentei-me próximo ao balcão e pedi uísque. Foi aí que apareceu a tal morena de seios grandes que se postou junto a mim, quase agarradinha, e começou a me cantar... Ela não parava de alisar as minhas coxas... Nesse bar só se viam prostitutas e a música tocava muito alto. Pessoas entravam e saíam constantemente. Diversos indivíduos já estavam bêbados. Todavia, o ambiente estava calmo e as coisas pareciam estar em ordem. Contrastando com a intensa iluminação da fachada, dentro do bar havia pouca claridade.
De repente, pareceu surgir à minha frente o vulto de Angela, exatamente como eu a deixara no terraço do seu apartamento.
Percebi logo que eu não tinha outro remédio senão começar a beber bastante para afugentar, sem mais tardar, esses pensamentos e esquecer Angela. Nem sempre a gente devota um amor constante e inabalável a uma determinada pessoa: às vezes, pode-se também converter esse amor em ódio. Pude compreender perfeitamente essa idéia paradoxal um pouco mais tarde.
Para começar, pedi logo um uísque duplo. A morena preferiu champanha, pois disse-me que não andava bem do estômago e que o uísque não lhe fazia muito bem.
- Mas não peça uísque escocês! Eu odeio os ingleses. Você não é inglês, não é verdade?
- Não.
- Que é que você é? - insistiu ela enquanto eu enfiava a mão por dentro da sua blusa.
- Alemão! - disse eu e bebi de uma só vez todo o copo, pedindo logo outro, também duplo.
- Eu gosto dos alemães.
- É claro. ...
Senti que o álcool já estava fazendo efeito, mas mesmo assim não parava de pensar em Angela. Só que agora meu sentimento não era mais de compaixão, mas sim de raiva. Ora bolas, eu fui sincero com ela. Se eu continuasse mentindo, não teria havido o que houve. Eu não devia ter lhe revelado nada. "Não!", refleti em seguida. "Foi bom ter dito a verdade!"
Tomei o segundo uísque duplo. Aí então me dei conta de que não devia beber muito para me garantir na cama.
Todavia, meu temor era infundado. A morena me arrastou para o seu quarto no andar superior e tirou a roupa imediatamente. Eu também me despi bem depressa e me atirei sobre o corpo dela. Eu agia como um doido. Eu a puxava e a apertava fortemente contra meu corpo, segurando-a pelos ombros, como se estivesse tentando estuprá-la. A cama, ringindo, chegava a estalar. E, tanto quanto meu estado de embriaguez me permite lembrar, ainda pensei comigo naquele instante: "Angela, desgraçada, estou farto de você! Que o diabo a carregue! Vá para o inferno!"
Eu estava bêbado, de fato.
Em dado momento a morena começou a gritar. Gritava tanto que chegaram a bater na parede do quarto contíguo. Ordenei-lhe que calasse a boca, mas ela me respondeu que eu havia metido com muita força. Explicou-me que havia ingerido qualquer medicação para combater a fadiga e que por isso estava com o corpo muito sensível. Além disso, eu não tinha nenhuma delicadeza ao lidar com ela, procurando fazer tudo com um ímpeto brutal.
Daí, então, procurei fazer a coisa com cuidado, agindo da melhor forma possível. Fizemos tudo o que me deu na cabeça. Ela estava sempre pronta a satisfazer meus desejos, exigindo, apenas, para cada novo tipo de sacanagem uma quantia a título de honorário extra. Ela não era das piores e era jovem ainda. Não devia ter mais de vinte e cinco anos. Tinha a pele bem lisa. Por fim, completamente extenuado, espichei-me na cama, onde fiquei deitado de costas enquanto ela se lavava no bidê.
Depois ela me apontou o lugar onde ficava o water closet. Saltei da cama completamente nu e saí caminhando através de um pequeno corredor.
No water closet vomitei e, logo em seguida, lavei minha boca com fortes jatos de água. Depois voltei para o quarto. Ela se achava estendida na cama lendo o Nice-Matin.
- A libra esterlina foi desvalorizada em oito por cento - disse-me ela. - Acabei de ler isso agorinha mesmo no jornal. E essa desvalorização não é boa para os ingleses, você não acha?
- Não é nada boa mesmo.
- Alegro-me com isso. Merda!
- Merda o quê?
- Foi lá pelo começo do mês de julho, ou seja, um pouco antes do dia comemorativo da independência americana, que os navios de guerra da frota dos Estados Unidos estiveram neste porto pela última vez. Aqui neste hotel os americanos foram muito festejados, sabe? Mas não sei o que está acontecendo agora. Nos anos anteriores, os navios americanos vinham com muita freqüência. Por que será que nos últimos tempos só raramente eles aparecem?
- Deve ser porque há muitos navios russos no Mediterrâneo.
- Ora bolas, mas os russos também sempre nos visitam. Tanto os russos quanto os americanos. Principalmente os jovens. E sabe que os russos avançam logo nas mulheres com uma fúria danada? Naturalmente eles não chegam a ser tão fogosos como você... Bem, os americanos também não ficam muito atrás e gastam todo o soldo deles em bebidas, e na cama com as mulheres. E isso eu posso afirmar porque os marinheiros, depois que desembarcam, vêm sempre aqui. Eu não gostaria de ser um marinheiro. Passar meses e meses sem mulher, tendo que se valer das mãos por não poder trepar... Ora, você não acredita mesmo que os russos também nos visitam?
- Não. Sinceramente não acredito.
- Então onde é que eles vão trepar? Eu acho que não podem só ficar aí rodando pelo Mediterrâneo. Eles também devem desembarcar em terra, não é verdade?
- Você tem razão - respondi-lhe.
- E isso faz parte da boa política, não é?
- É.
- Política de merda! - exclamou a morena. - Política que está fazendo quase ir à breca o nosso negócio.
- Sem dúvida.
Eu não pensava mais em Angela e, de um momento para outro, passei a sentir-me extremamente exausto. Eu só queria dormir.
- Como você se chama?
- Adolf. E você?
- Jessy. Se você está cansado, pode dormir. Vou desligar a luz daqui a pouquinho. Só quero ler ainda a página de esportes do jornal. Especialmente boxe, sabe? Hoje já capinei bastante na minha roça. E você já me pagou por toda a noite. Amanhã cedo prepararei qualquer coisa de bom para comermos.
Nem sequer pude ouvir suas últimas palavras por já ter caído no sono. Ressonei profundamente e não me recordo de ter tido sonho algum. Jessy despertou-me uma só vez, batendo nos meus ombros.
- O quê? O que é que você quer comigo?
- Adolf, meu jovem, você anda doente?
- Por que pergunta? - gaguejei, completamente tonto de sono.
- Você grita dormindo. Será que você não é doido?
- Não. Eu às vezes grito mesmo dormindo. Só não grito quando me deito de lado.
- Então fique quieto agora, porcaria! - ralhou Jessy quase gritando, com o visível intuito de dar satisfação a alguém que havia batido na parede do quarto ao lado, reclamando contra o barulho. Depois, à luz da lâmpada de cabeceira, ela examinou atentamente o meu rosto e perguntou-me impressionada:
- Você a amava muito, não é verdade?
- O quê?!
- Bem, chega de conversa. Continue dormindo. Mas, por favor, deite-se de lado.
Não sei se realmente dormi de lado, mas, em todo caso, não gritei mais. Algum tempo depois, quando tive que falar, já me encontrava bem desperto: alguém, batendo na porta do quarto, me chamava pelo nome.
- Sim, estou aqui! - respondi em voz alta.
Jessy, que estava deitada ao meu lado, acordou e pulou da cama sobressaltada.
- Fique quieta! Calma! - disse-lhe. - É a mim que estão chamando.
- Abra a porta, Monsieur Lucas! A polícia está aqui.
- Que foi que você fez? - interrogou-me Jessy, fitando-me com o semblante assustado. - Por essa janela você pode atingir o telhado e de lá de cima...
- Não! Nada disso! Eu quero abrir a porta. Minha cabeça doía tanto que parecia estar a ponto de
rebentar. Enquanto vestia a cueca e a calça, respondi:
- Um momentinho, por favor! Em seguida dirigi-me à porta e abri.
Dois indivíduos em traje civil entraram no quarto. Ambos tiraram o chapéu.
- Somos da polícia criminal. Roger e Cadrut, do Comissariado Central - disse, apresentando-se, o mais idoso.
Os dois exibiram-me suas credenciais, que examinei cuidadosamente.
- Temos que pedir que o senhor nos acompanhe.
- Para onde? - perguntei estupefato.
- Para Mougins. Não é muito longe daqui. O Comissário Roussel pediu que o senhor fosse para lá imediatamente.
- Sem dúvida. Estou às suas ordens - respondi-lhes, enquanto terminava de me vestir.
Não me lavei nem fiz a barba, mas isso pouco me importava. Jessy permanecia sentada na cama exibindo os seus volumosos seios, sem nada entender do que conversávamos.
- Uma porção de funcionários da polícia está tentando localizar o senhor há muito tempo - disse-me o comissário mais jovem, enquanto eu ajeitava a gravata. - O senhor vinha sendo observado por nós, como bem sabe...
- Sim, sei.
- O nosso homem que o seguia ontem à noite perdeu a sua pista exatamente nas imediações desta quadra. Já estivemos no apartamento de Madame Delpierre, mas ela não soube dizer onde o senhor poderia ser encontrado. Então visitamos todos os hotéis e casas de pernoite. E não são poucos, monsieur.
- Mas que foi que aconteceu? - perguntei pressu-roso.
- Não temos a mínima idéia - respondeu-me o policial que se chamava Roger. - Viemos diretamente do comissariado para cá. Estamos de carro. Vamos levá-lo a Mougins.
A menção do nome de Angela fez brotarem lágrimas dos meus olhos.
- O senhor está sentindo algo?
- Deve ter sido algum cisco que entrou no meu olho - respondi, enxugando-me com um lenço. Mas as lágrimas não paravam de escorrer.
- Adieu, Jessy!
- Adieu, Adolf! - respondeu ela, atirando-me um beijo com a mão.
Descemos a estreita escada do hotel. Não demorou muito e estávamos os três sentados num Peugeot, com Roger ao volante. O sol estava tão ofuscante que meus olhos chegavam a doer. Eu me sentia um tanto indolente. Quando já íamos entrando na Croisette, Roger perguntou-me:
- A coelhinha lá no hotel chamou-o de Adolf?
- Sim.
- Por quê?
- Porque eu havia dito a ela que meu nome era Adolf.
- Ah, sim. Eu estava pensando que tivessem tido alguma rixa...
Capítulo 29
O rosto de John Kilwood, redondo como um balão, achava-se tão intumescido que parecia prestes a rebentar. A língua, com a cor arroxeada, pendia para fora da boca e os olhos davam a impressão de terem saltado das órbitas. Uma corda de náilon estava enrolada no seu pescoço. Essa corda achava-se fortemente presa num gancho bem alto no seu banheiro e era nesse gancho que John Kilwood estava pendurado. Ele vestia somente uma calça de pijama, que se encontrava manchada de fezes.
Tal era a cena que uma das fotografias coloridas tiradas no local reproduziu ante meus olhos. Havia ainda outras fotografias de bom tamanho, igualmente coloridas, tiradas com perfeita nitidez. Eu as observei todas e comecei a me sentir mal. Era o próprio Comissário Roussel quem me mostrava as fotos, passando-as às minhas mãos uma após outra. Nós nos encontrávamos no primeiro andar da residência de John Kilwood em Mougins. íamos ter de novo um dia muito quente. No pavimento em que nos encontrávamos, viam-se muitos homens entrando e saindo continuamente. Os funcionários da polícia postavam-se em torno de Roussel e de mim. John Kilwood, o homem que fizera uma minuciosa confissão declarando ter sido ele próprio o verdadeiro assassino de Herbert Hellmann, já não estava entre os vivos.
- Enforcou-se? - perguntei.
- Não podemos ainda afirmar nada com segurança - respondeu-me Roussel. - Praticamente não sabemos nada. Todavia, de uma coisa estamos certos: não se trata de suicídio! John Kilwood foi assassinado.
A pequena localidade de Mougins tinha cerca de três mil habitantes e estendia-se sobre uma colina de onde se divisavam as paisagens de toda aquela zona situada entre Grasse e o mar. Penetramos na cidadezinha através de um portão. Viam-se ali ruínas de antigas fortalezas. Passamos em frente ao busto de um homem que, consoante a explicação de Roger, era o Comandante Lamy von Vaury, nascido em Mougins, que pelo início do século tombara numa expedição ao Saara. A casa de John Kilwood denominava-se Plein Ciel. Era uma residência relativamente pequena, localizada numa travessa bem estreita, nos fundos de uma pra-cinha cheia de plátanos e palmeiras, que ficava em frente a uma linda igreja antiga. A casa tinha três andares e em todas as janelas, que ficavam bem altas, viam-se cortinas de seda com uma tonalidade vermelho-escura. Aliás, o exterior da edificação também estava pintado de vermelho.
Além de Roussel, Lacrosse, Kessler e dos funcionários da secretaria da polícia criminal e do serviço de reconhecimento do Comissariado Central da Polícia Técnica, encontravam-se, também, no local, mais três homens. Roussel me apresentou a eles. O primeiro chamava-se Maurice Farbre e fora enviado de Paris a Cannes pelo Ministério do Interior. Ele parecia estar investido de funções de elevada categoria, embora permanecesse ali quase completamente calado, observando o andamento das investigações. O segundo homem, também vindo de Paris, fora mandado pelo Ministério das Finanças e chamava-se Michel Ricard. Tinha os cabelos pretos, embaraçados, em completo desalinho. Da mesma forma, ele também quase não falava.
O terceiro homem pertencia ao consulado americano de Nice e se achava no local porque Kilwood era americano. O nome dele era Francis Ridgeway. Encontrava-se entre eles também o médico-legista Dr. Vernon, que eu já conhecia. Só a principal personagem da cena, o próprio John Kilwood, não estava mais ali. Já havia sido transportado dentro de uma banheira ao Instituto Médico-Legal. Os peritos que examinavam os vestígios deixados no local, bem como o pessoal do Serviço de Reconhecimento, andavam incessantemente por toda a casa e espalhavam pó de grafite nas bordas das mesas, copos e garrafas com o fim de constatar se havia impressões digitais ou quaisquer outros vestígios importantes. Foram ainda tiradas muitas outras fotografias.
O pessoal falava francês. O funcionário do consulado americano expressava-se com muita dificuldade nesse idioma e não conseguia compreender quase nada. Nenhum dos presentes prestou atenção à minha aparência. Eles tinham muitas outras coisas com que se preocupar. Um policial se movimentava continuamente pela sala e ia servindo cafezinho aos homens. Só depois de ter bebido três xícaras foi que me senti um pouco melhor.
Lacrosse, ao me cumprimentar, disse-me que estavam à minha procura desde as cinco horas da manhã. Exatamente às cinco horas foi que ele e Roussel resolveram ir à casa de Kilwood, para despertá-lo, pois temiam que o homem pudesse ter ingerido uma dose excessiva de soporífero - dose talvez fatal para um corpo cheio de uísque. E encontraram o beberrão pendurado no gancho ali no seu banheiro.
Indaguei-lhe:
- Vocês haviam estado aqui antes?
- Diversas vezes. Ora vinha eu, ora o comissário - respondeu-me Lacrosse.
- Eu também estive aqui - disse Kessler.
- E que foi que notaram?
- Kilwood continuava dormindo. A governanta saíra às oito horas da noite. Ela chegou hoje de manhã bem cedo para iniciar o seu trabalho diário. Nós a interrogamos, man-dando-a embora depois.
- Ontem, durante o dia, alternadamente um ou outro de nós teve que comparecer à justiça por causa daquela confissão de Kilwood que fora entregue no gabinete de Lacrosse - disse Roussel. - No outro lado está o Hotel de France. Também montamos ali uma espécie de quartel-general. Estávamos aguardando a chegada dos funcionários enviados de Paris. Mas já nos havíamos comunicado anteriormente com o consulado americano. Mr. Ridgeway chegou por volta das vinte e duas horas.
- Eu também já havia estado algumas vezes aqui e observei que Kilwood dormia - disse Ridgeway, expressando-se no seu péssimo francês.
- Como já lhe disse, comparecíamos aqui continuamente - prosseguiu Lacrosse.
- Por que não despertaram Kilwood e não o prenderam?
- Na realidade, ele não podia ainda ser preso. Não havia nenhuma razão juridicamente fundamentada para a sua prisão. Cabia, no caso, ser feita tão-somente uma intimação policial, e esta nos foi trazida apenas agora pelos dois cidadãos que vieram de Paris.
Farbre, do Ministério do Interior, começou a falar:
- Levou muito tempo até que chegássemos a um perfeito acordo com relação à maneira de procedermos. Tínhamos que executar os nossos planos em combinação com o embaixador americano.
Ricard, do Ministério das Finanças, disse por sua vez:
- Foi difícil encontrar um avião para nos transportar. Finalmente um aparelho da Força Aérea se dispôs a trazer-nos a Nice. De lá viemos de carro. É uma lástima que essa viagem não tenha sido tão rápida como deveria ser. Teríamos tido uma grande oportunidade...
- Eu sei - disse eu, interrompendo-o.
- Eu também já conversei com Monsieur Ricard - disse Kessler.
Ambos dispensavam-se reciprocamente as altas considerações devidas a colegas. Roussel prosseguiu:
- De forma alguma Kilwood poderia fugir. Sua casa estava sendo vigiada por policiais. Teoricamente é bem provável que alguém tenha penetrado furtivamente através do jardim e subido pela parede da casa revestida de trepadeiras, fodavia essa hipótese não é muito aceitável. O mais provável mesmo é que alguma pessoa tenha se introduzido ocultamente na casa desde cedo. No momento oportuno, executou o crime e depois sumiu. Não posso imaginar outra explicação mais convincente.
- Eu também não - emendou Lacrosse. - Mas tínhamos tantas tarefas a executar em tão curto lapso de tempo: despertar Kilwood, aguardar a chegada dos funcionários de Paris, atender o expediente de rotina no gabinete...
- De resto eu estava na companhia do pessoal que encontrou o cadáver - declarou Farbre, que apresentava o rosto amarelado, certamente por efeito da bílis.
- Eu também estava junto com os colegas - afirmou Ricard, do Ministério das Finanças, fitando diretamente Kessler.
- Como você chegou à conclusão de que se trata de um crime e não de um suicídio? - perguntei a Roussel, que continuava conversando enquanto me mostrava as novas fotografias, que já haviam sido reveladas e ampliadas.
- Foi o doutor aqui quem declarou isso.
Todos nós convergimos nossos olhares para o médico-legista, mais baixo ainda do que Lacrosse.
O Dr. Vernon levantou os seus pequenos braços:
- O que eu disse, até uma criança pode notar, Monsieur Lucas! Percebi logo que desenganchamos o corpo. Não havia absolutamente nenhuma dúvida. Kilwood já se encontrava morto quando foi pendurado no gancho pela extremidade da corda de náilon que estava enrolada no seu pescoço.
Lacrosse, no intuito de esclarecer melhor a opinião do médico-legista, passou a explicar-me:
- O doutor acha que Kilwood foi sufocado com uma corda de náilon enquanto estava dormindo.
- Ele foi estrangulado, meninos. Estrangulado! - repetiu o baixinho.
- Então o senhor quer dizer que ele foi realmente estrangulado?
- Quem poderá saber com toda a certeza? - Vernon levantou de novo os braços. Segurando a xícara de café, ele caminhava de um lado para outro dentro do banheiro, que era bem amplo e comportava folgadamente todos os que lá estavam. Ele tomava o café em pequenos goles, como se estivesse saboreando a bebida. - Como disse, antes da autópsia não poderei declarar a causa mortis. Assim sendo, só posso dizer que tudo indica que Kilwood foi estrangulado antes de ter sido pendurado no gancho.
- Ah, compreendo - disse eu.
- Entretanto, essa minha suposição nada significa.
Para poder emitir uma opinião concreta, terei que abrir o cadáver. Pois saibam, crianças, que também pode tratar-se de um caso de estrangulamento simulado. Pode ser até que a morte de Kilwood tenha sido ocasionada por envenenamento. Além disso, não está fora de cogitação a hipótese de um colapso cardíaco nem a possibilidade de ele ter morrido de susto ao perceber que ia ser estrangulado.
- Mas de qualquer forma ele foi transportado para este banheiro a fim de ser pendurado no gancho, não é verdade?
- Evidentemente, crianças, evidentemente. - Ver-non segurou o policial que andava pela sala servindo o cafezinho. - Quero mais um, por favor! Muito obrigado! Ah, esse cafezinho chegou em boa hora. Se Kilwood foi efetivamente estrangulado, a autópsia revelará sintomas de asfixia. Digo-lhes mais: o rosto lamentavelmente não permite chegar a nenhuma conclusão positiva. Portanto, praticamente nada se pode afirmar. Nos casos de estrangulamento obstroem-se as veias e artérias do pescoço, mas não as da coluna vertebral. Em conseqüência dessa obstrução, congestiona-se o rosto, que fica inchado e adquire a tonalidade arroxeada ou azulada, bem como...
- Mas o rosto dele se encontra inchado e azulado - argumentei.
- Entretanto mesmo alguns dias antes o rosto dele já estava assim. Era o efeito da bebedeira. Nós todos sabemos que Kilwood bebia demais. Todavia, é importante esclarecer que o rosto dele não estava tão inchado nem tão azulado como normalmente se apresentam os das pessoas mortas por estrangulamento.
- Então quer dizer que ele não foi estrangulado, não é verdade?
- Quem poderá afirmar uma coisa dessas? - O médico-legista baixinho soltou uma risadinha abafada. - Talvez o rosto do homem se tenha arroxeado e intumescido por efeito do álcool. O assassino forçosamente teve que afrouxar o nó da corda de náilon, quando arrastou Kilwood para o banheiro a fim de pendurá-lo pelo pescoço, e essa circunstância pode modificar certos aspectos, fazendo mesmo desaparecer a cor azulada que o estrangulamento provocaria.
- Que Deus me perdoe! - exclamou o homem do consulado americano. - Até parece briga de cachorros! - Por que teria o assassino procurado simular estrangulamento se agiu, ao que tudo indica, como um inexperiente amador?...
- No modo de ver do criminoso, ele não agiu como inexperiente. Supôs ter feito tudo com elevado grau de perícia. Todavia, o trabalho dele não foi tão perfeito assim. Evidentemente, ele não dispunha de conhecimentos de medicina legal. E, na verdade, é um dos ramos mais difíceis da medicina.
- Mas o senhor parece demonstrar absoluta certeza de que Kilwood não praticou o suicídio.
- Estou absolutamente convencido de que ele não se suicidou!
- Mas por que motivo tentaria alguém matar Kilwood? Depois daquela confissão que ele fez, não havia qualquer razão plausível para isso - disse eu.
- Mas teria, de fato, alguma pessoa tomado conhecimento prévio dessa confissão? - Vernon, fazendo uma pose de indivíduo que conseguiu um grande triunfo, lançou o olhar em redor. - Eh, voilà! A criatura que penetrou subrepticiamente nesta casa e se escondeu em algum canto... devo excluir apenas a hipótese de ter sido algum dos senhores aqui presentes quem assassinou Kilwood, eh, eh, eh... seguramente não sabia da existência dessa confissão.
O Dr. Vernon parecia estar se divertindo com o caso. Prosseguiu:
- Se Kilwood foi realmente estrangulado, a autópsia deverá revelar que houve hemorragia nas conjuntivas e no couro cabeludo. Na verdade uma hemorragia muito intensa. Ou, então, nenhuma hemorragia.
- Que significa essa sua expressão: ou, então, nenhuma hemorragia? - interrogou Lacrosse com um meigo sorriso de sofredor nos lábios.
- Esse homem está me deixando louco! - exclamou o alto funcionário do Ministério das Finanças, falando baixinho no meu ouvido enquanto enxugava com o lenço o suor que lhe escorria pela fronte.
- Tudo depende. Tem café aí? Ótimo! Mais uma xícara, por favor! Tudo depende de saber se o objeto usado no estrangulamento, nesse caso a corda de náilon, foi apertada com força e permanentemente mantida apertada ou se ela, a curtos intervalos, foi afrouxada. Muito obrigado pelo café, minha criança.
- Na hipótese de a corda ter sido mantida bem apertada, a autópsia forçosamente deverá revelar uma intensa hemorragia... - disse eu.
Vernon soltou mais uma daquelas suas risadinhas abafadas.
- Muito pelo contrário! Se a corda foi mantida apertada, tendo sido inicialmente puxada com um impulso brusco e seco, não se produzira absolutamente nenhuma hemorragia.
- Huuuummm! - fez o homem do consulado americano.
- Que é que tem esse cidadão?
- Ele está resfriado - respondeu Roussel. - Mas por que não se produz nenhuma hemorragia em tal caso doutor?
- Simplesmente porque os vasos sanguíneos sofrem uma brusca obstrução, o que impede o sangue de subir. Minha explicação não lhes parece clara como a luz do sol, crianças? - Clara como a luz do sol - conformou Roussel. - Desculpe-me. Mas talvez a corda não tenha sido suficientemente apertada. Talvez Kilwood nem tenha sido estrangulado na cama (se é que de fato ele foi estrangulado), mas aqui mesmo neste banheiro. Observem bem essas manchas de fezes ao lado da banheira. Na sua cama não encontramos nenhuma dessas manchas. Essa circunstância comprova que a morte teve lugar neste banheiro, pois foi aqui que ele evacuou pela última vez. O assassino procurou cautelosamente retirar as fezes. Todavia, não foi suficientemente cuidadoso no seu trabalho.
Vernon sorvia o café dando estalidos com a língua.
Depois, com ares de catedrático que pontifica numa faculdade, explicou:
- É bem provável, também, que a sua laringe tenha sotrido alguma lesão.
- Ah, ah - fiz eu.
- Mas isso não é possível! Como se diz habitualmen-te, o estrangulamento é coisa muito séria... se é que houve estrangulamento. Devo admitir que efetivamente existem alguns indícios que corroboram essa suposição, pois encontrei sinais profundos e sensíveis de estrangulamento. Esses sinais estendem-se horizontalmente, tornando-se visíveis com maior nitidez nas proximidades da nuca. A autópsia talvez revele algumas rupturas das cartilagens...
- Ótimo! Ótimo! - exclamou Lacrosse em tom de ironia.
- ...contudo, isso é pouco provável. Na quase generalidade dos casos, tais rupturas não se verificam...
- This guy is driving me nuts1 (Esse cara está me deixando bituta) - disse o homem do consulado americano.
Vernon dirigiu-lhe um sorriso quase infantil.
- Esqueça por um momento a causa mortis, doutor. Que é que o senhor nos diz com relação à hora exata em que ele morreu? - perguntou Roussel.
- Bem... esse já é outro aspecto. Difícil... difícil...
- Difícil por quê? O senhor chegou aqui às cinco e meia. Estava ou não rígido o corpo de Kilwood quando o senhor o examinou?
- Pode me arranjar mais um pouquinho de açúcar?... Obrigado! Ele se encontrava apenas parcialmente rígido. A rigidez havia atingido somente os músculos dos maxilares. O pescoço, os braços, as pernas e os pés ainda não estavam enrijecidos.
- Então não havia decorrido mais de cinco horas que Kilwood estava morto quando o senhor aqui chegou.
- Aí é que está a dúvida!
- Dúvida por quê? - interrogou Roussel com ares de afetação. O baixinho dava a impressão de não possuir nervos. - Depois de cinco horas qualquer cadáver se torna completamente rígido.
- Isso é o que o senhor diz. Outros pensam de maneira diferente. Mas num ponto estou de acordo: numa temperatura normal a rigidez total se manifesta depois de decorridas cinco horas. Apenas acontece que nesta residência a temperatura não estava normal, especialmente aqui no banheiro. E os senhores terão que admitir que aqui dentro está muito quente, não é verdade? Talvez já fizesse cinco horas que Kilwood estava morto quando cheguei, mas a rigidez completa não havia ainda atingido todo o corpo por causa do calor, crianças. Além disso, a rigidez não começa nos maxilares, mas sim no coração. E como posso constatar isso sem fazer a autópsia?
- De qualquer forma, sabemos que Kilwood às cinco horas da manhã já estava morto. Foi exatamente a essa hora que encontramos seu cadáver. O senhor chegou aqui às cinco e meia. Como estavam as manchas do cadáver? - interrogou Lacrosse.
- Não descobri nenhuma.
- Então não fazia ainda três horas que Kilwood...
- Um momento, crianças, um momento! Nos casos de morte rápida, mesmo quando ocasionada por estrangulamento, o sangue se coagula mais depressa. Entretanto, no decurso das primeiras vinte e quatro horas, ele se liqüefaz e por isso as manchas do cadáver só se manifestam mais tarde, muito embora, em compensação...
Ricard, do Ministério das Finanças, soltou um profundo suspiro.
- Não deixa de ser boa a sua explanação - disse Roussel delicadamente. - Contudo, apesar das devidas ressalvas e levando em conta a necessária margem de precisão, diga-nos: entre que horas, aproximadamente, Kilwood já estaria morto?
- Não posso absolutamente determinar-lhes uma hora suficientemente precisa. Ninguém poderia determinar isso!
- Refiro-me à hora aproximada. Vernon rosnou:
- Aproximada? Quer dizer, então, que o senhor me permite uma hora como margem tolerável de erro no meu cálculo ?
- Sim.
- Nesse caso eu diria que Kilwood não morreu antes de meia-noite e meia nem depois de uma e meia da madrugada. Isso significa, portanto...
- Que ele às onze e meia poderia já estar morto, ou mesmo que a sua morte só tivesse ocorrido às duas e meia da madrugada, considerando-se a margem de erro tolerável, conforme ficou combinado, caro doutor - concluiu Roussel.
- Vil he a son of a bitch (Vou ser um filho da puta) - exclamou o americano.
Vernon, que não sabia nada de inglês, fez, com a cabeça, um alegre movimento afirmativo, sorrindo-lhe amavelmente.
Lacrosse disse-me em particular:
- De resto, devo informar a você que já encaminhamos ao nosso perito em grafologia todas as caligrafias que você me entregou.
- E qual foi o resultado?
- Ele formulou a hipótese de que aquela carta de ameaças deve ter sido escrita com uma caligrafia diferente, ou tão bem disfarçada que dificulta a sua identificação.
Virei-me repentinamente e, saindo daquele banheiro, atravessei a sala e dirigi-me a uma sacada. Respirei profundamente o ar puro. Estava com tontura e tive que me apoiar no parapeito. Se tivesse permanecido ainda alguns segundos conversando no banheiro de Kilwood teria desmaiado. Procurei contemplar lá embaixo o vale cheio de verdor que se estendia pelas encostas de Grasse. Naquela atmosfera transparente as próprias flores dos canteiros nas vizinhanças das fábricas de perfume pareciam cintilar, brilhando numa profusão de cores: violeta, vermelho, amarelo, azul, branco e laranja.
Que panorama encantador se descortinava diante dos meus olhos! E, apesar disso, como eu me sentia infeliz!
Capítulo 30
- Karin - disse eu a minha mulher, - você me daria o divórcio?
- Repita mais uma vez o que você disse.
Ela vestia simplesmente um roupão, estava com o penteado em desalinho e não usava pintura. Não fora avisada da minha chegada nesse dia e, por isso, preparara para o jantar apenas uma travessa de queijo, pão e cerveja. Estávamos sentados na sala de jantar, em frente à espaçosa sala de estar. Seriam, quando muito, nove horas da noite. Na sala de estar achavam-se acesos diversos abajures de pé, todos com cúpulas de seda cor de mel.
Repeti-lhe:
- Karin, você pode me dar o divórcio? Sinto muito em fazer-lhe esse pedido, mas não a amo mais e, portanto, não posso mais viver em sua companhia. Tenho que me separar de você.
- Por causa de outra mulher?
- Por causa de outra mulher.
- Você tem um farelinho de queijo bem na bochecha. Retire-o. Eu já previa isso desde a última vez em que você esteve aqui. Você nunca me enganou.
- Eu amo essa mulher realmente, Karin - disse, expressando-me com sinceridade e firmeza.
No mesmo instante tive a impressão de ter-me tornado um indivíduo diabolicamente infame. Sim, minha atitude não deixava de ser muito baixa e infame, mas não podia agir de outra forma. No avião, durante a viagem, eu havia pensado muito no que deveria dizer-lhe. Repeti mais uma vez:
- Sim, eu amo essa mulher realmente!
- Que graciosa porcaria não deve ser ela!... Metendo-se na vida de um homem casado.
- Ela não sabia que eu era casado. Só contei a ela algum tempo depois.
Karin esvaziou de uma só vez o copo de cerveja, enchendo-o de novo. Acendeu um cigarro e ficou me observando com um olhar extremamente desconfiado.
- Então ela disse a você que, se não viesse logo aqui tratar do caso com esta velha tonta, sempre passada para trás, e não pusesse tudo em pratos limpos, mais tarde eu atrapalharia vocês, não é verdade?
- Nada disso, Karin.
- Ah, não me venha com conversa mole, cachorro covarde!
- Não é nada disso. O caso se deu de maneira muito diferente.
- Como? Como? Como poderia ser tão diferente?
- Não importa saber como. Só sei dizer que é diferente do que você pensa.
- Você... você acha tudo muito fácil na vida.
- Não. Não considero nada fácil. Se eu tivesse achado isso muito fácil, já estaria separado de você há muito tempo.
- Mas por quê?
- Porque já faz muitos anos que nada mais existe entre nós. Porque não a amo mais. Por outro lado, também já faz muito tempo que você não me ama. Tenha a dignidade de confessar isso!
- Eu sempre amei você! E hei de amá-lo até o fim da minha vida, embora você seja um porco.
- Não é verdade o que você está dizendo.
- É verdade, sim!
Então ela começou a chorar baixinho. Fumava e bebia continuamente, mas as lágrimas não paravam de escorrer pela sua linda face. Não falávamos muito alto.
- Será que você sabe o que se passa no meu íntimo e será que pode avaliar o quanto eu o amo? E você não se aflige nem um pouquinho com a sua atitude? Ah, mas que boba eu sou fazendo uma pergunta dessas! Você agora só se aflige e se preocupa com aquela porcaria. Você agora só pensa naquela puta lá de Cannes, não é verdade?
- Essa senhora mora realmente em Cannes.
- Mas o que foi que você achou de especial nessa tal puta de Cannes? Ela é fantástica na cama? É muito melhor do que eu?
- Eu ainda não dormi com ela.
- Mentiroso! Você ainda não dormiu nenhuma vez com ela, mas já quer separar-se da sua verdadeira mulher. Essa é boa! Que espécie de feitiço tem ela? Que misteriosos movimentos ela faz com o corpo? Engraçado! Só agora que você já está alquebrado e velho que achou de se meter com um troço desses. Oh, sim, agora é que você está na idade própria para se lançar numa aventura tão louca assim! Pois então desembuche logo ediga que espécie de sacanagem gostosa essa tal puta fez com você. Que diabo de campainha mágica faz tilintar essa desgraçada?
- Ainda não dormi nenhuma vez com ela.
- "Ainda não dormi nenhuma vez com ela!" - repetiu Karin, remedando-me com a boca completamente torcida. - Que anjinho inocente você é! Foi ela mesma que proibiu você de dizer que já dormiram juntos, não é verdade?
- É verdade.
- Verdade! Era o melhor que ela poderia exigir. Que bonito! Você caidinho de amores por uma puta diferente! E como você anda louco por ela! Quando você, nessas suas viagens porcas, andava com as outras putas por aí afora, chegava a casa bem quietinho sem dizer nada. Mas desta vez a coisa mudou!
- Desta vez a coisa mudou! - confirmei. - E essa dama não é nenhuma puta!
- Olhem só!... O fidalgo cavaleiro com a sua reluzente armadura pretendendo lavar a honra de tão nobre dama! - disse Karin, tirando da testa um cachinho de cabelos louros encaracolados e alisando-os para trás. Ela continuava chorando, mas falava calmamete. - Ah, desta vez não é nenhuma puta! Repentinamente, de um momento para o outro, assim sem mais nem menos, as putas desapareceram da sua vida. Até parece que tudo foi bem calculado. Então não existe nenhuma puta, não é?
- Não.
- Ah, é? Nenhuma puta? Mas eu sei que é uma puta que está metida nisso. Puta! Puta! A puta de Cannes!
- Pare com isso! - ordenei-lhe.
- Eu é que tenho que parar?! E se eu não parar? Que é que pode me acontecer? Você vai me bater? Você vai me matar? Uma merda que eu vou parar! Ela é mais bonita do que eu?
Não lhe dei resposta.
- Eu perguntei a você se ela é mais bonita do que eu.
- Sim - respondi simplesmente.
- Ótimo! Ela é mais jovem do que eu?
- Isso não tem nenhuma importância.
- Bem... E sabe o que você é? Você é o maior bosta que Deus botou na face da terra! Não se lembra há quanto tempo estamos casados? Dez anos! - Eu já sabia que Karin não deixaria de dizer isso. - Eu dei a você os melhores anos da minha vida.
- Sim, você me deu os melhores anos da sua vida.
- É isso mesmo! Os melhores anos da minha vida! - repetiu ela, começando bruscamente a gritar como uma louca. - Dei de presente a você os melhores anos da minha existência! Quem é que permanecia aqui cuidando dos seus interesses, zelando pelas suas coisas e aguardando a sua chegada daquelas viagens que quase sempre duravam meses? E agora você quer me largar como se eu fosse um tareco qualquer, não é verdade? Quem foi que sempre respondeu NÃO a uma porção de cavalheiros distintos e gentis só para ficar com você? E você bem sabe que havia muitos homens dignos que me queriam. Eu fiz isso! Eu! Eu conservo a aliança no meu dedo. Foi você mesmo que a enfiou nele. E você jurou viver sempre comigo, nos bons e nos maus momentos, nas fases de sofrimento e de misérias, até...
- Não! Nós não nos casamos pela igreja - retruquei-lhe. - Só nos casamos pelo civil. Karin, por favor!
- Nós nos casamos somente pelo civil porque você não quis se casar pelo religioso. Você nem mesmo quis usar aliança. Agora é que estou compreendendo tudo! Meus pobres pais sempre me advertiram do tipo de homem que você era. Especialmente papai. Agora eles já não existem mais. Ja não tenho mais ninguém. A única pessoa que eu tinha era você. Mas, falando com sinceridade, nem mesmo com você eu podia contar. Você permanecia quase sempre longe de mim, a várias milhas de distância, e isso sempre me atormentou. Em todo caso, de tempos em tempos você vinha para casa e a gente da vizinhança via que você se encontrava aqui e que eu possuía um marido. Um marido que viajava muito, que não tinha saúde e que gritava quando dormia. Agora, sim, compreendo por que você grita dormindo!
- Deixe de dizer bobagens! Faz anos que tenho esse hábito de gritar dormindo! E essa senhora, conheci há pouco tempo, lá em Cannes.
- Como ela se chama? Não respondi.
- Hei de descobrir o nome dela. Não será muito difícil.
- Não, não será muito difícil.
- Hei de descobrir o nome dela! - repetiu Karin. - E eu mesma vou me arranjar com essa puta, posso garantir a você. Eu vou tratar tão direitinho do caso que ela terá que sair de Cannes.
- Como você fará isso?
- A maneira de agir é problema meu. Um matrimônio destruído! Essa grande puta!
- Mas eu já lhe disse e continuo afirmando que ela não sabia que eu era casado e que nunca dormi com ela.
- E eu também vou estragar sua vida. Com Gustav. Lá na companhia! Lá é que vou fazer o diabo! Então quero ver se você continuará nesse seu trabalho, nessa sua atividade porca de só lidar com putas por esse mundo afora.
- Você não pode estragar-me sem estragar-se a si própria. Você quer viver, não é verdade? Mas para vivermos, juntos ou não, precisamos de dinheiro. Ou vai querer passar fome?
- Animal ordinário! Odeio você! Eu o odeio com todas as minhas forças e conservarei esse ódio até a minha morte!
- Deixe-me livre, por favor, Karin! Suplico-lhe! Já não existe uma vida matrimonial entre nós. Pensando bem, o que podemos dizer que ainda existe entre nós capaz de prender-nos um ao outro? Comprometo-me a sempre cuidar de você e eu...
- Oh... você vai cuidar de mim. É muita nobreza de sua parte! Caramba! Essa é de tirar o chapéu! Você ainda pretende cuidar de mim, seu porco? Então quer dizer que você acha a coisa mais fácil deste mundo abandonar-me assim sem mais nem menos e sumir daqui como quem diz: procure achar um lugar para viver, você ainda é jovem, tem saúde e pode trabalhar...
- E você bem que poderia trabalhar, se quisesse - respondi.
- Mas por que devo trabalhar? Eu não cometi nenhuma falta. É você quem quer separar-se de mim. E além do mais existem as leis para isso.
- Eu bem sei que existem as leis.
- Graças a Deus ainda existem leis que protegem as mulheres.
De Mougins, daquela casa que cheirava a morte, tomei um carro e voltei a Cannes. No Majestic encontrei um telegrama de Gustav Brandenburg, ordenando-me que fosse imediatamente a Düsseldorf. Tomei banho, fiz a barba e em seguida arrumei minha mala de viagem. Vesti uma das roupas leves que Angela me havia comprado. O avião seguinte para Düsseldorf, com escala em Paris, só partiria dali a três horas e meia, e por isso, depois de pronto, fiquei sentado no terraço do hotel, que a essa hora se encontrava completamente vazio. No local achavam-se abertos diversos guarda-sóis. Os raios solares batiam em cheio naquele nosso cantinho - o cantinho onde eu e Angela havíamos sentado naquele dia. Bebi uma garrafa de champanha, mas fiquei mais indisposto ainda. Não pude permanecer por muito tempo no nosso cantinho e resolvi dirigir-me ao salão do hotel, com a intenção de telefonar para Angela. Mas não telefonei.
Permaneci sentado no salão durante duas horas sem que a idéia de telefonar para Angela saísse da minha mente. Na verdade, faltou-me coragem. Os brincos de brilhantes estavam enfiados no bolso do meu casaco. Brinquei com eles. Cheguei a ter vontade de jogá-los fora. Sentia-me arrasado. Chamei logo um táxi e dirigi-me ao aeroporto de Nice, onde, enquanto aguardava a hora da partida do avião, fiquei bebendo mais champanha.
Para tomar a camioneta que conduzia os passageiros até o aparelho, saí cambaleando, visivelmente embriagado. Olhava para cima, feito um bobo, a fim de verificar se Angela se encontrava na sacada do aeroporto. Quando desci da camioneta, tropecei, quase caindo. Toda aquela gente notou que eu estava bêbado. Dentro do avião os passageiros continuaram ainda a me olhar, muito embora eu permanecesse sentado bem quieto, sem beber mais nada. Um só pensamento me dominava durante toda a viagem: separar-me de Karin. Mas aquela gente não parava de me olhar. Talvez eu tivesse alguma sujeira no rosto.
Em Düsseldorf tomei um táxi e fui diretamente para casa. Telefonei para Gustav. Ele se encontrava ainda no seu gabinete e ordenou que me apresentasse no dia seguinte às nove horas da manhã. Então eu e Karin comemos pão com queijo e bebemos cerveja. Depois dessa refeição, passei a confessar-lhe que amava outra mulher e que, portanto, queria divorciar-me dela. Foi a partir daí que surgiu a discussão do caso, conforme já relatei. Em Düsseldorf fazia muito calor. Era uma noite abafada e por isso havíamos deixado a janela aberta.
Karin tirou um lencinho do bolso do roupão e começou a enxugar as lágrimas. Depois assoou o nariz e começou a falar, revelando mais objetividade nas suas palavras.
- Como é que você encara essa situação do ponto de vista financeiro?
Vejam os leitores: um estranho pensamento invadiu minha alma. Chegara a casa atormentado por um forte sentimento de culpa, e foi nesse estado de espírito que dei início à nossa conversa. Eu sabia perfeitamente que minha atitude era a de um porco sem-vergonha e descarado que queria abandonar a mulher por causa de outra. Só um tipo muito baixo seria capaz de proceder assim. Mas não tinha outra alternativa. Tão grande era o meu amor por Angela que eu não suportaria mais passar uma noite sequer sob o mesmo teto com Karin. E devo acrescentar que antes dessa nossa conversa eu tinha um medo irreprimível: medo de que pudesse haver um ataque de histerismo, balbucios de palavras amorosas entrecortadas de fortes suspiros, súplicas, choros e juramentos. Parece-me que os homens em geral fazem uma idéia completamente falsa acerca das mulheres com as quais, por infelicidade, estão casados. A primeira coisa que pensam é que suas mulheres, na hipótese de se verem abandonadas por causa de uma rival, tentam cometer suicídio, desmaiam e, dominadas pelo desespero, caem logo na rua da amargura, atirando-se nas sarjetas como qualquer aviltada prostituta. E pensam isso porque supõem que suas esposas continuam a amá-los. Todavia parece-me que nem sempre, na realidade, a coisa se desenrola dessa maneira.
- Como é que você encara essa situação do ponto de vista financeiro? - perguntou-me Karin, revelando mais objetividade nas suas palavras e falando com certa frieza.
Dissipou-se bruscamente do meu espírito aquele sentimento de culpa.
- Evidentemente terei que lhe deixar o apartamento. Vou me mudar.
- Para onde?
- Para qualquer outro lugar. Talvez para um hotel. Não sei ainda. - Eu bem sabia para onde queria ir, mas nada disse porque a essa altura meu comportamento diante dela era bem diverso. - Disponho de três mil marcos que posso entregar imediatamente a você. Continuarei pagando o aluguel, seguro, luz e gás, e você receberá o bastante para levar uma vida boa e folgada, até conseguirmos legalmente o divórcio.
- Que significa conseguir legalmente o divórcio?
- Quero dizer a nossa separação definitiva em sentença proferida pelo juiz.
- Mas quem foi que disse que eu quero me divorciar? Você, sim, é quem está querendo o divórcio, com grande satisfação. Mas perante o juiz eu direi: não! Absolutamente não quero o divórcio. Primeiro devo falar com meu advogado. Antes disso nada posso dizer. Mas quanto é mesmo que você vai me dar?
- Em relação aos meus proventos, eu lhe darei uma quantia razoável.
- Isso não passa de uma fatia de pão com manteiga. Com essa importância não posso concordar. Assim eu ficaria com uma mesada de fome. Sei que com a sua puta de Cannes você bota fora pela janela em dois dias a quantia que pretende me deixar para o mês inteiro.
- Eu só conto com o meu ordenado.
- Você tem uma conta bancária, também.
- Você bem sabe qual é o montante que eu tenho depositado.
- A conta está em seu nome. Eu só tenho autorização para assinar as retiradas que faço. Que faria você se eu sacasse todo o saldo dessa conta?
- Você não faria isso - respondi-lhe. - Você não seria tão boba assim de praticar um ato ilegal em seu detrimento.
Enquanto eu falava, ocorreu-me que no dia seguinte bem cedo a primeira coisa que eu deveria fazer era cancelar a autorização dada a Karin para sacar da minha conta.
- Você também possui ações na Suíça, das quais a metade me pertence - prosseguiu ela. - Eu poderia tomar um avião para Zurique a fim de vender essa metade.
- Claro que você pode fazer isso - concordei.
Para mim pouco importavam essas ações na Suíça. Eu só tinha em mente, naquele instante, procurar meu advogado, que era também meu amigo. Fazia vinte anos que eu me valia dos seus serviços profissionais. Tinha necessidade de consultá-lo. Karin continuou:
- Nada mais posso dizer. Não sou tão boba para deixar que você me atraia para um abismo. Antes de mais nada, terei que falar com meu advogado. Ele é que me dirá como devo proceder. Que é que você pensa de mim? Que eu iria responder sim, amém! facilitando tudo para você se casar com aquela puta de Cannes? Você de mim não arrancará nem uma palavra. Eu tenho que pensar na minha vida. Pelo menos devo conseguir segurança. O dinheiro que nós possuímos é nosso e não apenas seu.
- Está certo. Estamos casados em comunhão de bens. Da mesma forma o seu dinheiro não é só seu. É nosso.
Quando começamos a falar em dinheiro, nosso diálogo passou a tornar-se mais objetivo e calmo. Pronunciávamos as palavras sem nos encararmos.
- E então, seu porco, que é que você pensa fazer agora?
- Vou me mudar agora mesmo.
- Que engraçado! E as suas coisas?
- Vou levar o que é meu. Só as coisas mais necessárias.
- Como?
- No meu carro.
- No nosso carro - gritou Karin.
Levantei-me.
- Que vai fazer?
- Vou preparar minhas malas. Já está bastante tarde.
Ela desandou a chorar novamente. Saiu apressada para o seu quarto e bateu com força a porta. Eu a ouvia soluçar. Ficou chorando e soluçando, trancada no quarto durante todo o tempo em que permaneci em casa.
Capítulo 31
Fui ao quarto onde se encontrava meu guarda-roupa, carregando três malas para colocar o que pretendia levar. Ainda no avião, havia preparado uma relação: elefantes - cavalinhos sicilianos - máquina de escrever - ternos - roupas de baixo - gravatas - abotoaduras - guias telefônicos - talões de cheques - meus documentos e papéis - sapatos - apólice de seguro - despertador - um rádio portátil - capa de chuva.
Era um rol até bem engraçado, mas empacotei tudo. Depois de pronto, ficou um montão de coisas. Cada vez que eu fazia uma pequena pausa, ouvia os soluços de Karin. Fiz com cuidado todos os pacotes e arrumei as malas. Meu carro achava-se estacionado em frente ao edifício. Utilizei-me do elevador e coloquei as malas no porta-malas. A máquina de escrever e uma mala pequena ficaram no assento traseiro. O pacotinho com os elefantes, coloquei no assento dianteiro, ao lado do volante. Para transportar os volumes, tive que subir e descer no elevador uma porção de vezes. Quando, pela segunda vez, eu saía do apartamento, a porta da residência do vizinho que morava em frente se abriu, surgindo o vulto da Sra. Hartwig.
- Boa noite, Sr. Lucas!
- Boa noite - respondi secamente, tentando seguir na direção da porta do elevador, mas ela se aproximou de mim.
- Que é que o senhor está fazendo? Está se mudando?
- Sim, por uns tempos, Sra. Hartwig.
De onde estávamos, ouviam-se perfeitamente os soluços de Karin. Nesse momento ela chorava convulsivamente.
- A coitada da sua mulher...
- Queira me dar licença, Sra. Hartwig. Tenho muito que fazer ainda.
- É uma injustiça o que o senhor está cometendo, Sr. Lucas. O senhor tem uma esposa tão boa...
- Sra. Hartwig?
- Sim, Sr. Lucas.
- Cuide da sua vida e...
- Que sem-vergonha! - exclamou ela, entrando. Notei que ficou me espiando através do olho mágico. Finalmente, acabei de transportar todos os meus pacotes, que eram bem pesados. Minha camisa ficara banhada de suor. Meu pé e minha perna começaram a doer. Tomei imediatamente umas drágeas do meu remédio. Estava tão afobado que nem notei quantas drágeas havia engolido. Eu não podia descansar. Pendurei os cabides com as roupas, no carro. Minha roupa, banhada de suor, grudava-me na pele.
Depois de tudo arrumado no carro, subi mais uma vez ao apartamento e atirei dois mil e oitocentos marcos sobre a cômoda. Karin, deitada na cama, continuava chorando.
- Aqui está a primeira parte do dinheiro. Logo que eu souber, comunicarei a você meu endereço.
Ela não respondeu.
- Passe bem, Karin, e perdoe-me, se você puder. Minhas palavras não tinham nenhum sentido. Tinha
que procurar sair dali o mais depressa possível. Dirigi-me à porta. Aí, então, ouvi Karin gritar bem alto:
- Fique aqui! Não vá embora! Você não pode fazer isso comigo!
- Vou fazer, desculpe-me - retruquei, já saindo.
A porta do apartamento de frente se abriu de novo e mais uma vez apareceu a Sra. Hartwig. Karin percebeu isso e levantou-se da cama, gritando com toda a força dos seus pulmões:
- Sra. Hartwig, meu marido quer me abandonar! Depois, sempre chorando convulsivamente, atirou-se nos braços da sua amiga, que disse:
- A gente nota logo que ele está indo embora. Mas a senhora aqui não está só. A senhora tem amigos. Eu e meu marido somos seus amigos, pobre Sra. Lucas. E seu marido ainda terá o que merece.
Apertei o botão do elevador. Antes que eu entrasse na cabina, Karin voltou-se para mim, dominada por um brusco ímpeto de raiva, e disse-me:
- Assassino! Porco! Miserável cachorro! Você quer me fazer sofrer, não é? Mas vou arrancar até a última camisa que você possui, seu cachorro!
Depois, a Sra. Hartwig também começou a gritar, mas não entendi o que ela disse'. Eu ofegava. O suor escorria pela minha fronte. A dor no meu pé estava se tornando quase insuportável. Essa foi a última vez que estive no meu apartamento.
Capítulo 32
Procurei dirigir com muita cautela, pois estava nervoso e tinha medo de provocar acidentes. Segui na direção do Aeroporto Lohausen, nas proximidades do qual se encontrava o Hotel Intercontinental.
A Global encaminhava sempre para lá seus visitantes e hóspedes. Eu conhecia seus diretores e porteiros.
Logo depois do meu desembarque do avião, havia telefonado dizendo que pretendia separar-me da minha mulher e pedindo um apartamento com sala, quarto e guarda-roupa, por um tempo indeterminado. Havíamos combinado o preço também. Os criados me ajudaram a arrumar todas as coisas no quarto. Havia espaço suficiente para colocar tudo. A gerência mandara colocar sobre a mesa da sala duas garrafas de conhaque. Eu não tinha vontade de beber conhaque, por isso pedi que me trouxessem uma garrafa de uísque, soda e gelo. Fiquei bebendo enquanto desempacotava minhas coisas. Despi-me, ficando nu no quarto. Coloquei os elefantes e os cavalinhos sicilianos numa reentrância de uma parede na sala.
Separei os documentos e papéis mais importantes para guardá-los no cofre do hotel na manhã seguinte. Eu teria que tirar dinheiro do banco e mandar cancelar imediatamente a autorização dada a Karin para sacar da minha conta. Nessa noite bebi bastante. Cheguei a ficar embriagado. Eu só tinha um pensamento: divorciar-me de Karin. Depois, então, telefonei para ela. Atendeu logo ao telefone. Pude ouvir a voz da Sra. Hartwig e do marido, que sem dúvida lá estavam para consolá-la.
- Karin, estou morando no Intercontinental - disse-lhe eu.
- Entendido - respondeu-me, e desligou imediatamente.
Sentei-me na sala perto da janela e fiquei observando a noite lá fora e contemplando o aeroporto. Aviões aterrissavam e decolavam continuamente.
Já fazia muito tempo que os programas de televisão haviam terminado. Liguei então o rádio portátil e a primeira coisa que ouvi foi a voz de Bob Dylan:
"The answer, my friend, is blowin' in the wind..."
Desliguei rapidamente o rádio e continuei a beber uísque. Eu só pensava em Angela. Comecei a sentir tanta saudade dela!
Pelas quatro horas da madrugada estava completamente bêbado. Pedi então uma ligação para Cannes. Quando Angela, depois de um certo tempo, atendeu, comecei a falar com dificuldade, mas surpreendentemente claro. No início ela não manifestou contentamento.
- Não tenho mais nada a tratar com você. Onde você esta? No Majestic? Por que está telefonando a essa hora?
- Estou em Düsseldorf - respondi.
- Onde?!
- Na Alemanha. Em Düsseldorf.
- Você não está em Cannes?
- Não. Tive que voltar para cá.
- Por que não me telefonou antes?
- Não tive coragem para tanto.
- Os funcionários da polícia estiveram aqui. Estavam à sua procura. Disseram-me que você havia desaparecido depois que saiu daqui. Onde estava?
- Num bar. Depois fui dormir com uma prostituta. Kilwood foi assassinado.
- Eu já sei. Você nem faz idéia do rebuliço que está havendo nesta cidade. Só se vêem repórteres e mais repórteres. De todas as partes do mundo. Elementos da polícia americana. Advogados de Kilwood. As investigações estão sendo efetuadas muito em segredo. Os jornais comunicaram apenas o assassinato. Naturalmente estão procurando evitar um escândalo. Oh, Robert, mas por que você me mentiu?
- Eu não menti. Eu disse a verdade.
- Mas só no fim. No princípio você me mentiu.
- Mas de agora em diante não lhe mentirei mais, Angela. Eu já não estou vivendo mais com minha mulher. Eu a abandonei...
- Oh, Santo Deus! - exclamou ela.
- ...e agora estou lhe falando de um hotel. Dei-lhe o número do meu telefone e prossegui:
- Abandonei minha mulher e quero que você compreenda que estou lhe dizendo a verdade. Faz muito tempo que não a amo mais. Ainda hoje vou falar com meu advogado a fim de providenciar o divórcio. Naturalmente deverei ser considerado como culpado no processo.
Angela ficou calada durante tanto tempo que pensei que ela tivesse desligado o aparelho.
- Angela?
- Sim? - Sua voz soou tão abafada que parecia um sussurro.
- Volte, Robert!...
- Sim, Angela... Sim...
- Quando vai voltar?
- Ainda não posso dizer.
- Vai demorar muito?
- Não sei, mas voltarei logo que puder. Telefonarei novamente a você amanhã de noite, pode ser?
- Você pode telefonar-me quando quiser: de manhã, de noite, de madrugada. Estarei ansiosamente aguardando o seu telefonema. Como é que você se sente?
- Num estado horrível, mas ao mesmo tempo muito feliz. As duas coisas ao mesmo tempo.
- Eu também, Robert. O que estamos fazendo não está direito.
- Não está direito por quê? Meu casamento não passava de uma farsa.
- Sim, agora eu acredito. Do contrário eu não quereria de modo algum tratar desse assunto com você. Mas o que estamos fazendo é uma injustiça.
- Não! - respondi-lhe com firmeza.
- Julgue como quiser - retrucou-me ela -, mas Deus nos castigará por isso.
- Só porque nos amamos, Angela?
- Você bem sabe o motivo. Tratar com Deus não é jogar dados.
- Mas não posso agir de maneira diferente do que estou agindo. Desde que a conheci, Angela, essa foi a deliberação que tomei. Sinceramente, não vejo outra maneira de proceder.
Novamente verificou-se uma longa pausa e depois fez-se ouvir a voz de Angela:
- Meu procedimento, também, não pode ser outro, Robert... Só posso agir como estou agindo.
- Mas não tenha dúvida, tudo terminará bem. Ela ficou calada.
- Você não acredita, Angela?
- Não! Mas gostaria de poder acreditar. Você bebeu um pouco, não é verdade?
- Sim, bebi muito.
- Eu também desejaria estar embriagada neste momento. Bem... então até amanhã à noite. Ficarei aguardando sua chamada, Robert. Eu...
A ligação interrompeu-se bruscamente. Fiquei sentado no mesmo lugar com os pés sobre a mesa, observando as luzes do aeroporto que me faziam lembrar a iluminação de Cannes.
Capítulo 33
A campainha do telefone tocou. No meu sono atrapalhado e pesado, passei a sonhar de modo confuso que ouvia um telefone tocar. Nesse exato momento eu estava sonhando com cobras - uma porção de serpentes enormes contra as quais eu lutava, encontrando-me em perigo de vida. As cobras estavam a ponto de me sufocar. Um telefone tocou. Não, não foi no sonho que ele tocou. Bruscamente despertado, sentei-me na cama. Eu não sabia onde me encontrava, nem que dia e mês do ano era. Nem mesmo sabia quem eu era. Se alguém me fizesse alguma pergunta, eu não saberia responder. Um telefone tocou. Eu não conseguia ver o aparelho, pois as cortinas da janela estavam bem fechadas. E continuava dominado pela impressão de que as cobras iriam esmagar meu corpo. Meu rosto e meus cabelos estavam banhados de suor. Quem era eu? Onde estaria esse maldito telefone? Comecei a tatear sobre a me-sinha-de-cabeceira e derrubei um copo cheio de água, molhando a minha mão. Finalmente toquei algo mais duro... o aparelho. Levantei o fone, com as mãos trêmulas.
- Sim?!
- Bom dia, Sr. Lucas! - saudou-me uma jovial voz feminina. - O senhor nos pediu para despertá-lo. São sete horas da manhã.
- Sete horas - repeti como um bobalhão.
Tentei colocar o fone no gancho, mas não acertava. Com ambas as mãos, procurei o interruptor da lâmpada de cabeceira e acendi a luz. Só então recobrei completamente os sentidos e fiquei sabendo onde estava. Sim, era o meu apartamento no Intercontinental. Sabia que, se não levantasse logo em seguida, pegaria no sono de novo. Vi que a água derramada manchara o revestimento do soalho. Respirei profundamente e saltei da cama. Cambaleava e por um triz não caí. Minha cabeça doía. Era o efeito do uísque que eu tomara. E ainda continuava bêbado. Caminhando sem firmeza nos pés, fui até a janela e abri as cortinas. A fulgurante luz do sol, que me bateu em cheio no rosto, por um instante ofuscou-me a visão. Coloquei ambas as mãos sobre a fronte à guisa de anteparo e olhei para fora. Lá estava o aeroporto.
Quinta-feira, 18 de maio. Era o dia em que estávamos. O dia que, para mim, marcaria o início de uma nova vida. Era o que eu esperava ardentemente.
Estava com dor de cabeça. Fiz a barba, tomei banho e molhei a cabeça com água fria. Mas a dor não passava. Pedi um chá e um comprimido de Alka-Seltzer. O chá e o Alka-Seltzer me fizeram bem. A dor passou e comecei a me sentir mais disposto. Tinha que fazer muita coisa nesse dia.
Primeiro telefonei para o Dr. Paolo Fontana. Expliquei-lhe tudo o que havia acontecido e disse que necessitava falar-lhe com urgência.
- Quando? - perguntou-me ele. Sua voz soou calma e amável como a voz de um médico. Aliás, era do seu hábito falar sempre assim.
- Não sei bem ao certo a que horas poderei estar aí, Paolo. Primeiro tenho que ir até a minha companhia. Pode acontecer que Brandenburg me mande a algum lugar. Mas, de qualquer maneira, hoje à noite o mais tardar. Se não puder, telefonarei a você antes.
- Está bem. Entre pela secretaria. Eu terei que ficar aqui despachando alguns documentos. Seguramente estarei aqui até a meia-noite.
- Obrigado, Paolo.
- Farei o possível para auxiliá-lo. Você está passando por uma fase bem difícil.
- Mas essa fase passará depressa...
- É o que você pensa. Teremos que esperar bastante.
- Esperarei até morrer. Pouco me importa. Eu quero me separar definitivamente de Karin. Amo outra mulher e ela me ama.
- Suas palavras são belas e comoventes, mas pouco nos ajudam. Envidarei o máximo dos meus esforços para tornar tudo mais fácil. Mas você, para isso, deverá me ouvir e seguir rigorosamente minhas instruções.
- É exatamente por isso que eu quero falar com você o mais depressa possível.
- Muitos vêm falar comigo e depois não fazem o que mando. Qual é a situação da sua conta bancária?
- Figura no meu nome, mas Karin tem autorização para retirar dinheiro com a sua assinatura.
- Então você deve cancelar imediatamente essa autorização.
- Eu já tinha pensado nisso e é o que vou fazer ainda hoje.
- É claro. Sua mulher fará todas as tentativas para prejudicá-lo e procurará obter todas as vantagens possíveis.
- Ela já me declarou gritando que iria arrancar-me até a última camisa.
- Então tome cuidado! Uma mulher abandonada torna-se capaz de tudo. O sentimento de ódio é mais forte do que o de amor. Karin não tem uma conta bancária também?
- Sim. Noutro banco. Já há alguns anos ela mantém essa conta. Não sei qual é a importância.
- Você também tem autorização para fazer retiradas da conta dela?
- Não.
- Estarei esperando você hoje à noite. Antes de falar comigo, não faça nada, a não ser cancelar a autorização dada a Karin para sacar da sua conta e pedir que toda a sua correspondência seja remetida ao Intercontinental. Você me promete isso?
- Prometo. Transmita meus cumprimentos a Vera.
- Serão transmitidos.
Vera era a mulher com a qual ele estava casado havia dezessete anos. Eles tinham duas filhinhas e eram muito felizes. Um casal ideal. Ora, é claro que devem existir casais ideais neste mundo. E espero que eu e Angela também formemos um par ideal...
Vesti-me e dirigi-me à recepção do hotel, onde aluguei um cofre para a guarda dos meus documentos e papéis. Dentro de um envelope coloquei também cento e dezenove mil francos, o restante do dinheiro que havia ganho na roleta em Cannes. Depois fui até o banco, onde falei com Kresse, o funcionário encarregado do controle das contas de clientes, o qual me conhecia há muito tempo. Disse a ele que eu queria cancelar a autorização dada à minha mulher. Ele me fez preencher um formulário especial, único requisito exigido para tanto. Dei-lhe então meu novo endereço, no Intercontinental, com a recomendação de encaminhar para lá toda a minha correspondência.
Saí do banco sentindo-me um pouco tonto. Verifiquei que o saldo da minha conta era de cento e noventa e dois mil quinhentos e quarenta e dois marcos e cinqüenta Pfennige, dos quais cento e cinqüenta mil provinham de juros. Esse foi o dinheiro que ganhei durante dezenove anos de patifaria para a Global. Não se podia dizer que eu era um milionário, mas também não estava na miséria. Quanto teria que dar a Karin?
Sem mais perda de tempo, fui à repartição dos Correios e comuniquei meu novo endereço.
Capítulo 34
- Robert - disse-me Gustav -, devo dar-lhe um abraço de felicitações!
Assim que me viu entrar, o baixote, com sua careca retangular, saltou da sua mesa de trabalho e veio receber-me de braços abertos, colocando-os em torno dos meus ombros e batendo nas minhas costas. Sua camisa estava banhada de suor, e o cheiro de charuto que saía da sua boca era quase insuportável. Estava com o estômago sensível essa manhã. Tentei afastar-me, mas ele me segurou com força, erguendo bem a cabeça para poder fitar-me, pois era muito mais baixo do que eu. Tinha restos de pipoca nos cantos da boca. Seus astuciosos olhos de porco expremiam comoção. Para espanto meu, notei que eles se achavam um pouco úmidos.
- Você é um bom sujeito, Robert. Finalmente está fazendo o que devia ter feito há muito tempo. Você nem imagina quanto eu me sinto feliz com isso, Robert! Afinal de contas, você para mim é como um filho...
Começou de novo a bater nas minhas costas e eu tinha que suportar o cheiro de charuto e suor. Aí, então, passou a dizer-me que já sabia que eu estava enamorado de uma senhora de Cannes.
- Como é que você ficou sabendo disso?
- Karin me contou tudo. Ela me telefonou hoje cedo. E ela é uma mulher capaz de tudo. Ela pretendia dirigir-se à administração superior da Global com o fim exclusivo de prejudicar você.
- Bonito! - exclamei.
- Seria uma boa merda para você! Mas se ela realmente tivesse feito isso, os diretores já me teriam telefonado. Como você bem sabe, estou sempre do seu lado. Além do mais, você já encontrou o seu grande amor, em Cannes.
- É verdade.
- Alegro-me bastante com isso e felicito-o.
- Obrigado.
Comprimindo um botão na mesa, ordenou à secretária que trouxesse a garrafa.
- Que garrafa? - perguntei.
- De bebida, para comemorarmos. Não podemos deixar passar esse grande evento sem comemorarmos. Eu disse a sua mulher que sou seu amigo. Ela fez toda a sorte de ameaças. Vomitou uma infinidade de queixas contra você e jurou que iria prejudicar sua vida profissional. E, como você bem pode imaginar... não parava de falar da mulher que você conquistou em Cannes. Ela a conhece?
- Não.
- Chamava-a continuamente de "sua puta de Cannes".
A secretária de Brandenburg, uma senhora bem madura, trouxe uma bandeja com uma garrafa de conhaque e dois copos. Bebemos. O conhaque estava quente. Batemos nossos copos em saudação.
Capítulo 35
- Já tomei conhecimento de tudo o que se passou em Cannes - disse Gustav. - Esse tal Kessler telefonou ontem a seu chefe Friese em Bonn. Um telefonema que durou quase uma hora. O aparelho dele tem um dispositivo que isola completamente a ligação, e assim ele pode falar à vontade, sem temer que sua conversa seja interceptada. Uma droga dessas é que eu gostaria de ter no meu aparelho. Será que conseguirei? Uma bosta é que vou conseguir! O único remédio é trabalhar sempre com os nossos códigos secretos. Então, quer dizer que acabaram com a raça desse pau-d'água, esse tal Kilwood, não é verdade? Ele devia ser um tipo de aspecto bastante nojento.
- Muito nojento mesmo.
Não deixava de ser estranho o fato de Brandenburg achar que outra pessoa tivesse um aspecto nojento... O macaco nunca olha para o seu próprio rabo...
- Quem cometeu esse crime?
- Não faço a mínima idéia. Você não sabe se, nesse meio tempo em que viajei para cá, o pessoal em Cannes chegou a alguma conclusão?
- Nada me comunicaram. Cannes está cheia de advogados, de policiais, de repórteres e de nem sei mais o quê. Todos eles estão de acordo num único ponto de vista: que se tratava de um dos homens mais ricos do mundo. Eu não queria estar na pele desse tal Lacrosse ou desse tal Roussel. Pobres cães infelizes! E se eles descobrirem algo, nada vai adiantar. Os jornais franceses- e alguns periódicos alemães de hoje fazem referências à morte de um multimilionário americano num crime misterioso.
A imprensa nada deixou transparecer, tendo dado a notícia como um simples informe sobre crime. Portanto, admitem a hipótese de tratar-se de assassinato. Quem você acha que matou Kilwood?
- Alguém que tinha medo de que Kilwood falasse demais acerca do assassinato de Hellmann... Kilwood devia saber uma porção de coisas...
- É também minha opinião - disse Gustav, fazendo saltar da boca farelinhos de pipoca. - Mas como pôde o assassino de Kilwood penetrar na casa? Kessler informou que a casa vinha sendo rigorosamente vigiada desde o dia anterior.
- A hipótese mais aceitável é a de que o assassino ficara oculto dentro de casa desde o dia anterior. Depois, no auge da confusão com a descoberta do cadáver, ele fugiu.
- Pode ser que sim, mas também pode ser que não.
- Que quer dizer com isso?
- Uma porção de policMs vigiava a residência dele, não é verdade? De tempos em tempos eles entravam na casa para dar uma espiada. Então, só pode ter sido um deles.
- Essa suposição é absurda.
- Não tanto como pode parecer...
- Pensando bem, você tem razão! Não se pode excluir essa hipótese também. Qualquer indivíduo que tivesse recebido bastante dinheiro para isso...
- Exato! Não há dúvida de que alguém deve ter recebido também uma boa grana para liquidar Viale. E muito dinheiro também foi pago para matar aquelas doze pessoas, se é verdade que Hellmann não se suicidou.
- Se é verdade que Hellmann não se suicidou, a Global terá que desembolsar quinze milhões de francos - concluí. - Mas você não me enviou a Cannes a fim de que eu envidasse todos os esforços no sentido de provar que houve suicídio?
Gustav começou a mordiscar seu charuto, encarando-me com um olhar perscrutador.
- Que está acontecendo agora? Não foi para esse fim que você me enviou? - insisti na pergunta.
- Sem dúvida. Mas às vezes a gente pode fazer alguma suposição, você não acha? Tudo é possível nessa atrapalhada de merda. Talvez até não haja só um, mas sim diversos assassinos, sem que isso impeça que Hellmann tenha praticado o suicídio.
- Então você continua admitindo a hipótese de suicídio?
- Eu acredito nessa hipótese. Tenho que acreditar nela. Foi por isso que mandei você a Cannes. Contudo... com um pouquinho de boa vontade, a gente também pode admitir que houve assassinato. Agora, Robert, você terá que viajar para Frankfurt no próximo avião.
- Que aconteceu lá?
- Antes que Friese me telefonasse comunicando o assassinato de Kilwood, eu havia recebido um outro telefonema. De um indivíduo que reside em Frankfurt. Ele queria falar-me com urgência... ou, melhor dizendo, queria falar com você, pessoalmente. Trata-se de assunto muito importante e urgente. Ele só conhece você de nome e sabe tudo acerca das suas atividades. O que ele sabe só declarará pessoalmente a você e a ninguém mais. O nome dele é Fred Molitor...
- Um momento, por favor. De onde esse tal...
- Molitor. Fred Molitor. Aqui está um papel com o nome, endereço e o número do telefone dele. Alexander-strasse. Fica na parte oeste. Nas proximidades da Lorscher-strasse.
- Mas de onde é que ele me conhece?
- Através de Seeberg.
- Mas isso parece absurdo!
- É muito fácil de compreender: enquanto todas essas coisas se passavam em Cannes... assim declarou-me Molitor pelo telefone... ele se comunicou com Seeberg, que se encontrava naquela cidade, perguntando-lhe o que devia fazer.
- Fazer com quê?
- Com a informação que ele tinha para vender. Eu também não sei o que é. E Seeberg disse-lhe que ele deveria contar tudo a você, porque você era o homem que estava lidando com esse caso.
- Mas que resultado se pode esperar da entrevista com esse homem? Tudo isso está me parecendo fantástico. Muito fantástico mesmo.
- Não deve ser muito fantástico... especialmente quando se considera que ele está exigindo muito dinheiro para revelar o que sabe.
- E você acha que Molitor, agora, vai nos esclarecer todo o caso?
- Talvez não todo... mas poderá fornecer-nos uma boa pista, que nos permitirá elucidar certos fatos.
- Que fatos?
- Por exemplo, que Hellmann era um grande porco e que ele teve que se suicidar porque, com as suas transações, meteu-se num beco sem saída...
Capítulo 36
- Oui!
- Angela, aqui é Robert!
- Mas é espantoso! É incrível!
- O quê?
- Faz quase uma hora que estou sentada aqui perto do telefone olhando fixamente para ele e dizendo-lhe em tom de súplica: Robert tem que me telefonar agora!... Eu quero que ele me telefone! Sim, eu quero ouvir a voz dele! Não posso esperar até a noite! Eu preciso saber o que aconteceu com ele. E no exato momento em que acabei de proferir tais palavras tilintou a campainha! Que houve com você, Robert?
Eu lhe telefonava de uma cabina da agência postal localizada no aeroporto de Düsseldorf. Expliquei-lhe que iria tomar o avião para Frankfurt, mas que regressaria nesse mesmo dia para, logo mais à noite, falar com meu advogado.
- E você me telefonará em seguida comunicando-me o que ele disser, não é verdade?
- Claro!
- Quando você estará de volta?
- Ainda não sei.
- Oh, que tormento!
- Talvez possa dizer-lhe logo mais à noite.
- E se você tiver que ficar ainda durante muito tempo aí?
- É o meu trabalho, Angela. Que posso fazer?
- Compreendo, Robert... Eu não consegui dormir a noite passada. O que estamos fazendo é uma loucura.
- Sublime loucura!
- Triste loucura, Robert! Não acredito que possamos contornar a situação, dando ao nosso caso a aparência de uma causa justa. Q que estamos fazendo é proibido.
- Proibido por quem?
- Vamos fazer mal a uma outra pessoa. Deus proíbe isso. E nossa atitude...
- Para mim pouco importa o que Deus...
- Deixe-me continuar, Robert! O que eu tenho a dizer é terrível.
- Que é que você tem a dizer?
- Que para mim também pouco importa. Absolutamente não faz diferença alguma. Será que você compreende quão grande é o amor que dedico a você, uma pessoa que, falando a pura verdade, nem conheço direito ainda?
- Eu...
- Telefone-me logo depois de ter falado com o seu advogado, sim? Estarei aqui esperando sua ligação, ainda que seja às cinco horas da manhã. Você vai me telefonar?
- Sim...
O alto-falante já estava chamando os passageiros que se destinavam a Frankfurt. Coloquei o fone no gancho. Saí correndo até uma casa que vendia flores. Dei o endereço de Angela à jovem florista e pedi que ela telefonasse à Floreal em Cannes, instruindo-a para que enviasse sonjas ao apartamento dela. Paguei duzentos marcos e deixei escritas as palavras que deveriam ser transcritas no cartão. Quando voltei, um steward já estava à minha espera. Mal entrei no aparelho, ele decolou.
Capítulo 37
Gustav dissera-me que era nas proximidades da Lorscherstrasse. Tomei um táxi para lá. Passamos por uma zona em que se viam edificações gigantescas e praças ajardinadas bem amplas. Bruscamente o carro dobrou, penetrando numa zona onde havia uma confusão de becos e ruelas. Parecia um labirinto. Surgiram então à nossa frente umas casas inclinadas, tortas e muito antigas. Tive a impressão de ter retrocedido no tempo e penetrado no longínquo passado.
Numa dessas velhas casas da Alexanderstrasse morava Fred Molitor.
Uma mulher alta e obesa abriu-me a porta. Tinha certamente seis queixos e fedia a chucrute. O cheiro de chucrute, aliás, se espalhava por toda a casa.
- Eu sou a Sra. Molitor - disse-me ela com uma voz de contrabaixo que chegou a me espantar. - Desculpe-me por estar de avental. Estava lavando os pratos. Nós sempre almoçamos muito tarde, sabe? Fred tem que dormir bastante. Por favor, venha sentar-se na sala. Dentro de alguns segundos Fred estará aqui. A esta hora ele sempre tira uma sonequinha, mas me pediu para despertá-lo quando o senhor chegasse.
Então entrei e sentei-me naquela saia de estar, um pequeno cubículo com a parede revestida de papel florido, móveis frouxos e desconjuntados e uma mesinha redonda coberta por uma toalha bordada. Algumas fotografias colocadas em pequenas molduras estavam sobre o aparelho de televisão. A cristaleira estava cheia de bonecas que ostentavam os mais diversos tipos de trajes, dessas que são vendidas nas lojinhas dos aeroportos ou nas casas de souvenirs. Viam-se ali uma espanhola, uma saxônia e uma holandesa, todas ainda embrulhadas nos seus invólucros de celofane. Sentei-me num sofá. As molas estalaram. Na janela estava pendurada uma gaiola com um papagaio. O papel de revestimento das paredes apresentava entalhes e calombos bem salientes. Devia ser uma casa muito úmida.
A porta se abriu. Um homem de cerca de cinqüenta e cinco anos entrou na sala. Era magro, muito pálido e, como a maioria dos indivíduos que trabalham de noite, tinha as faces encovadas e os olhos fundos. Fred Molitor (como um tipo assim poderia ter tal nome?) usava roupão e calçava chinelos. Nos seus olhos notava-se um visível sinal de cansaço. A mão que ele estendeu parecia estar dormente. Quando entrou na sala, fez ranger o soalho com seus passos. Quando lá fora passava um veículo, toda a casa tremia.
- Um traguinho? - ofereceu-me Molitor, que, ao contrário da mulher, falava com uma voz bem aguda. - Um licorzinho, Sr. Lucas?
- Não, obrigado.
- Mas é claro que o senhor vai aceitar um licorzinho. Eu ficaria ofendido se o senhor não aceitasse.
De um pequeno armário colocado ao lado do aparelho de televisão ele tirou uma garrafa e dois copos, que encheu completamente. O licor era muito adocicado. Depois de tomar um gole, Molitor lambeu os beiços.
- E uma delícia, não é verdade? Eu sou doido por esse tipo de bebida.
- Sr. Molitor, o Sr. Seeberg pediu que o senhor me contasse tudo o que sabe, não é verdade?
- Exato. É sobre o Sr. Hellmann, que Deus o tenha na sua santa glória!
Seus olhos cansados adquiriram uma momentânea vivacidade e ele passou a me examinar com uma certa desconfiança.
- O pobre Sr. Hellmann... naquela ocasião ele chegou a me dar dinheiro para que eu guardasse segredo sobre o caso...
- E mesmo assim o senhor deixou de guardar o segredo prometido, falando sobre ele com o Sr. Seeberg.
- Mas essa é outra história. O Sr. Seeberg pertence ao banco. Era do meu dever falar com ele.
- E, agora, falar comigo é também do seu dever?
- Eu acho que não. Também nada quis contar à polícia. E se vou comunicar tudo ao senhor é porque o Sr. Seeberg me disse que eu deveria proceder desse modo. Mas não sei se está direito ou não.
- Mesmo tendo o Sr. Seeberg mandado que o senhor me revelasse tudo o que viu, o senhor ainda tem dúvidas, não é verdade?
- Na companhia encarregada dos serviços de vigilância ganho muito pouco. Ganho um salário de fome. Veja o senhor em que tipo de casa estou morando! Minha mulher sofre dos rins. Eu próprio, por quanto tempo poderei trabalhar ainda? Sou um homem pobre, Sr. Lucas.
O tesoureiro-chefe da Global, por ordem de Brandenburg, havia me dado dinheiro. Atirei sobre a mesa duas notas de mil marcos.
- O Sr. Hellmann deu-me cinco mil marcos - disse-me ele com sua voz de falcete.
- Só posso dar-lhe dois mil marcos. Se o senhor não quiser revelar-me o que sabe, informarei à polícia que o senhor está silenciando algo importante...
- Mas, nesse caso, o senhor está me fazendo uma extorsão!
- É verdade - respondi-lhe simplesmente.
- Então fica por três mil, Sr. Lucas. Um homem pobre também tem direito a viver.
- Dois mil e nada mais. Caso encerrado!
Um caminhão carregado passou por aquela rua estreita fazendo tremer toda a casa.
- Eu pensei que o senhor fosse mais humano, senhor Lucas.
- Mas eu não sou. Que foi que o senhor ficou sabendo? Fale agora!
- Bem... Vá lá que seja, se é só esta pequena importância que agora posso ganhar com toda a minha honestidade...
O roupão de Molitor estava cheio de resíduos de comida e com as mangas remendadas. O par de chinelos que ele usava era velho, estando todo torto e rebentado.
- Tive muitas despesas! E além do mais tive que telefonar para o Sr. Seeberg em Cannes, pois ele não pode sair de lá por enquanto. E como saiu caro o telefonema!
Coloquei sobre a mesa mais uma nota de quinhentos marcos.
A expressão no seu rosto tornou-se mais amável, embora de uma amabilidade um tanto viscosa.
- Eu sabia que o senhor era um homem bom de coração. Mais um licorzinho? Não diga que não, por favor! Faço questão.
Ele trouxe de novo a garrafa e encheu nossos copos. Eu não bebi mais. Ele esvaziou o copo avidamente.
- Ah, isso me faz um bem! Especialmente depois do chucrute. Faz-me arrotar continuamente. Bem... já faz nove anos que fui destacado para os serviços de vigilância no banco do Sr. Hellmann. Com mais três colegas. O nosso serviço começa às seis da tarde e vai até às sete da manhã. Nos fins de semana e feriados há uma outra turma de vigias para substituir-nos. Temos o nosso horário certo e cada um de nós se ocupa de um andar. Durante todo o tempo que dura o nosso serviço, estamos sempre andando de um lugar para o outro dentro do banco. E, como não poderia deixar de ser, lá temos revólveres, bombas de gás lacrimogêneo e outras coisas assim. O senhor conhece o edifício do banco?
- Conheço.
- É um gigantesco caixãp, não é verdade? Andando dentro dele qualquer um se cansa. De manhã, quando chega a hora de largar o serviço, estou mais morto do que vivo de tão cansado... E, numa casa de merda como esta a gente nunca pode dormir direito. Durante todo o santo dia os caminhões de carga fazem um barulho infernal nesta rua. Faz dosi anos que o tráfego foi desviado para cá, tenho uma vida de cachorro e o meu coração...
- Sr. Molitor, não se edesvie do assunto!
- Preste atenção: o fato aconteceu na noite de 25 de abril. Foi bem no meio da noite. Com mais precisão se pode dizer que foi no dia 26, pois o Sr. Hellmann só apareceu no banco à uma e meia da madrugada. Era uma quarta-feira...
- E daí?
- Bem, como já disse, nessa quarta-feira, lá pela uma e meia da madrugada, soou a campainha do corredor lateral.
Nessa noite eu estava encarregado do térreo. Quando ouvi a campainha, fui espiar através do olho mágico da porta de ferro e vi que lá fora estava o Sr. Hellmann, de smoking, sobretudo, chapéu e uma echarpe de seda branca em torno do pescoço. Ele estava muito nervoso e esfregava as mãos. Nenhum de nós deixava de abrir a porta ao Sr. Hellmann quando ele vinha ao banco de noite. E naturalmente eu também abri a porta para ele nessa noite. Eu tinha três chaves especiais, o senhor sabe como é o serviço nos bancos, não é? Ele entrou, mas estava tão nervoso que quase não podia falar. Aí ele disse que queria trabalhar.
- À uma e meia da madrugada?
- Sim. Eu também achei estranho.
- Ele fazia isso freqüentemente?
- O quê?
- Costumava aparecer muitas vezes tarde assim da noite para trabalhar?
- Essa foi a única vez que o vi aparecer lá a essa hora. Pois, como lhe disse, o homem parecia que ia ter um ataque, um infarto. Todo o corpo dele tremia.
- Ele estava bêbado?
- Eu conheço uma pessoa quando bebe e posso lhe garantir que ele não havia tomado absolutamente nada. Ele só estava assustadoramente nervoso. Quase não conseguia falar. Falava baixo, como que resmungando. Logo que chegou perguntou: "Onde estão seus colegas?" Eu respondi que estavam nos outros pavimentos. Aí ele me colocou na mão cinco mil marcos. Eu disse cinco mil marcos, Sr. Lucas!
- Eu ouvi. Prossiga!
- Bem, está certo... Ele me deu os cinco mil marcos e disse que era para que eu não falasse a ninguém que ele tinha vindo trabalhar àquela hora e para que eu vigiasse os meus colegas que trabalhavam nos outros pavimentos. Eles também não deviam ficar sabendo que o Sr. Hellmann tinha estado no banco. E eu nunca devia contar isso a ninguém. O homem parecia que não estava no seu juízo perfeito, Sr. Lucas. Eu conhecia bem o Sr. Hellmann. Ele era uma pessoa calma e ponderada. Mas nessa noite... parecia um louco...
- Continue!
- Então ele se enfiou por um corredorzinho que existe ao lado da entrada lateral e eu subi para falar com meu colega - Ernest Trost, que nessa noite estava trabalhando no segundo andar - e pedi que ele trocasse de lugar comigo.
Como o senhor sabe, no andar térreo existem bancos para sentar por toda parte, e eu disse a Ernest que estava tão cansado que a toda hora tinha que me sentar num daqueles bancos e quase pegava no sono. Mas no segundo andar não dá para fazer isso. Lá a gente sempre tem que ficar de pé e andando. Ernest me respondeu que para ele tanto fazia trabalhar num ou noutro pavimento e desceu para o térreo. Enquanto isso, o Sr. Hellmann subiu por uma escada que fica perto da porta lateral. Ninguém viu o homem. Assim, ele foi para o segundo andar, onde se encontra o seu gabinete, e eu também fiquei por ali fazendo a minha ronda. Mas, que é que tenho para dizer ao senhor agora? O Sr. Hellmann não foi ao seu gabinete. Ele se dirigiu imediatamente ao gabinete do procurador-geral, o Sr. Seeberg, que fica na seção de câmbio. Um banco como aquele é uma empresa gigantesca. Praticamente nenhuma seção fica em contato com a outra. Fiquei com a pulga atrás da orelha quando, ao passar por ali, notei que o gabinete do Sr. Hellmann estava todo escuro e que havia luz no do Sr. Seeberg. A porta do gabinete do Sr. Seeberg não estava completamente fechada. Havia uma pequena abertura. Naturalmente eu não sou curioso, mas vendo isso fiquei assustado. Fui caminhando na ponta dos pés e espiei para dentro. E que vejo eu lá? O Sr. Hellmann na mesa de trabalho do Sr. Seeberg. O homem naturalmente tinha um chaveiro com chaves para todas as fechaduras. A mesa de trabalho do Sr. Seeberg estava aberta e o Sr. Hellmann tirava das gavetas papéis e documentos e tantas coisas mais que eu nem sei explicar. Tinha à frente dele um montão de papéis que folheava e lia. Ele havia tirado o sobretudo e o paletó do smoking. O homem estava tão absorto no trabalho que eu tenho a impressão de que ele diria: "Entre!", se naquele momento ouvisse a explosão de uma bomba atômica. Como estou lhe dizendo, era de assustar, Sr. Lucas. Era pavoroso!
Novamente passa um caminhão de carga fazendo a casa tremer.
- Parece que o senhor não quer mais licor - disse Molitor.
Ele encheu mais uma vez seu copinho e bebeu todo o conteúdo de um só gole. Depois tossiu e limpou a boca com as costas da mão.
- Dali a pouco, quando passei de novo rondando por au, o Sr. Hellmann já tinha aberto o arquivo de documentos do gabinete do Sr. Seeberg e lia atentamente todos os papéis. No meu terceiro giro notei que também o cofre estava aberto. Naturalmente o Sr. Hellmann conhecia a combinação do cofre. E lá estava ele com o suor escorrendo pela testa...
- Sim, sim, continue!
- Quero cair morto aqui se não é verdade o que estou lhe dizendo. Tanto suor assim escorrendo pela fronte de uma criatura eu nunca havia visto antes na minha vida, Sr. Lucas! O homem estava branco que nem cal, juro-lhe. E ele estava lendo os papéis que havia tirado do cofre. E cada vez que eu passava por ali na minha ronda, ele parecia mais abatido, mais apavorado e mais desesperado. Eu logo matutei cá comigo que alguma coisa de horrível estava se passando, mas o quê? Com o banco do Sr. Hellmann? Mas com esse banco nada de mal pode acontecer. Fiquei muito assustado. O senhor me acredita?
- Sim. Onde estava o Sr. Seeberg nessa ocasião, quero dizer, nessa noite?
- Ele tinha ido para um congresso na Argentina. Não, espere um pouco... Era um congresso em... em... Que diabo, não há jeito de me lembrar agora!
- Santiago do Chile.
- Exatamente! Acho que depois disso o congresso ainda durou bastante tempo.
- Até o dia 19 de maio.
- Exatamente. Mas o Sr. Seeberg, logo que soube da morte do Sr. Hellmann, naquela desgraça com o iate, tomou o avião do Chile e foi para Cannes a fim de dar assistência à irmã do Sr. Hellmann. Ela havia telefonado para ele. Estava completamente transtornada. Além do mais, alguém tinha que tomar conta dos negócios do banco, não é verdade?
- E quem foi que ficou dirigindo os negócios?
- O Sr. Seeberg. Não como antes. A polícia não o deixa sair de Cannes. Ele determina tudo por telefone e por telex. Agora é o Sr. Grosser quem está provisoriamente dirigindo os negócios. Ele é o primeiro-procurador, mas não tem os mesmos poderes do Sr. Seeberg. Foi por isso que eu tive que telefonar ao Sr. Seeberg em Cannes e não falei com o Sr. Grosser.
- Por quanto tempo o Sr. Hellmann ficou lá remexendo os papéis?
- Como já lhe disse, ele ficou durante toda a noite. Até as seis e meia da manhã. Então, de repente apareceu o Sr. Hellmann no corredor... parecia um fantasma, garanto-lhe. Ele me pediu que abrisse a porta para sair, mas que eu tivesse o cuidado para que os outros vigias não o vissem. Fiz tudo direitinho como ele mandou. Depois entrei no gabinete do Sr. Seeberg. Lá estava tudo completamente em ordem de novo. Ele tinha colocado novamente os papéis nos seus lugares. Só o cinzeiro é que estava cheio de pontas de cigarros. O Sr. Hellmann não parava de fumar durante o trabalho, se é que se pode chamar de trabalho o que ele estava fazendo. Também encontrei três caixinhas de fósforos vazias. Eram fósforos do Frankfurter-Hof.
- Como é que o senhor ficou sabendo disso?
- Estava escrito nas caixinhas.
Molitor ficou calado durante um certo tempo, como se estivesse fazendo reflexões, depois prosseguiu:
- É tudo o que sei, Sr. Lucas. Nada mais vi. Só ouvi dizer no dia seguinte que o Sr. Hellmann estava completamente abatido e desesperado. Na quarta-feira seguinte ele tomou o avião para Cannes.
- Quem foi que lhe disse?
- Os colegas. Era o que se comentava por lá, nas horas de serviço. Diziam que ele parecia um louco... um homem completamente liquidado.
- E que foi que o senhor concluiu de tudo o que presenciou?
- Deveria eu tirar alguma conclusão?
- Naturalmente o senhor deve ter formado alguma idéia...
- Claro que também fiz minha suposição. Eu achei que alguma coisa devia ter saído errada nos negócios do Sr. Hellmann, mas não compreendo bem como. Alguma coisa importantíssima, sem dúvida. O Sr. Seeberg pensa assim também. Foi por isso que ele mandou que eu contasse tudo para o senhor. Não à polícia, porque poderia prejudicar o banco.
- E o que o Sr. Seeberg pensa que poderia ter deixado o Sr. Hellmann tão abalado?
- Ele não tem a mínima idéia do que possa ter sido. Molitor soltou um enorme arroto.
- Desculpe-me. O chucrute sempre me faz arrotar. Não devo comer chucrute. Para mim é um veneno. Mas é o meu prato predileto. É por isso que a minha Clara, coitadinha, de vez em quando tem que prepará-lo para me regalar. O diabo é que depois ele me faz mal...
Capítulo 38
Dirigi-me ao Hotel Frankfurter-Hof. Molitor havia chamado um táxi. Fazia muitos anos que eu conhecia o Frankfurter-Hof e era bem relacionado com o pessoal da recepção, com os porteiros, com o chefe do restaurante e com os garçons. Eu já me hospedara por diversas vezes nesse hotel e gostava muito dele. Todo o pessoal era muito amável e pres-tativo. Por sorte, o chefe da portaria se encontrava no local. Ficou radiante quando me viu. Eu o chamei de lado para falar-lhe em particular.
- Posso ser-lhe útil em alguma coisa, Sr. Lucas?
- Acho que sim - respondi-lhe. - Você já me tem ajudado tantas vezes. Se eu tiver sorte, desta vez também ser-me-á muito útil a sua ajuda.
- De que se trata? - interrogou-me ele. Estávamos ambos de pé na porta de saída do Lipizzaner-Bar. Ao longo da escrivaninha da sala de recepção e da portaria comprimiam-se os mais variados tipos de hóspedes: brancos, pretos, indianos, japoneses. Ouvia-se ali um burburinho de vozes confusas nos mais diversos idiomas. Ninguém podia nos ouvir, pois falávamos bem baixinho, quase cochichando.
- Preste bem atenção! - disse-lhe eu. - Será que você poderia averiguar se neste hotel não se realizou no dia 25 de abril alguma reunião, alguma conferência especial de banqueiros ou coisa semelhante?
- Dentro de alguns minutos já teremos a resposta - respondeu-me, solícito.
Retirou-se, desaparecendo atrás de um dos balcões da recepção. Não levou dois minutos e já estava de volta.
- Nos dias 24 e 25 de abril tivemos aqui efetivamente uma verdadeira aglomeração de banqueiros, que se achavam reunidos para um congresso. Havia banqueiros da República Federal da Alemanha, da França, da Inglaterra, da Suíça, da Suécia, da Áustria e da Itália.
- De que assunto eles trataram?
- Evidentemente, isso não posso saber. Esses senhores ocuparam o grande salão de conferência, que é de caráter privativo. Só sei dizer que ficaram o tempo todo absorvidos pelos trabalhos da reunião. Na tarde do dia 25, que era uma terça-feira, o Sr. Hellmann fez uma conferência.
- Sobre o quê?
- Isso deve constar de nossos registros. Parece-me que ele se referiu à responsabilidade dos banqueiros com relação às empresas industriais. Em seguida todos eles se reuniram no bufê existente naquele salão. Na quarta-feira foram embora. O Sr. Hellmann, na verdade, não se hospedou aqui.
- Conseguiu averiguar quantos banqueiros tomaram parte nesse congresso?
- Sim, Sr. Lucas.
- Quantos?
- Se o senhor quer mais referências com o nome exato dos elementos que aqui compareceram, será difícil fornecer-lhe tais dados. Incluindo o Sr. Hellmann, estiveram presentes sessenta e três cidadãos. - Ele me fitou apreensivo, - Não foi uma boa informação?
- Ainda não posso julgar. Mas veremos em breve. Era um sujeito muito cortês, esse chefe da portaria. Eu
gostava muito dele. Ele tinha confiança em mim e eu nele. Inopinadamente ocorreu-me perguntar-lhe:
- Você não acha que seria possível, por seu intermédio, conseguir uma lista com o nome e o endereço desses banqueiros?
- Vou sondar junto à administração do hotel. Geralmente é muito difícil a obtenção de informes dessa natureza. Mas o senhor poderá estar certo de que eu lhe encaminharei uma lista detalhada se a administração dispuser desses dados.
- É um grande favor que você me faz. E se a administração resolver atender ao meu pedido, peço a fineza de enviar os dados com a maior rapidez possível... por telefone, por telex... à minha companhia. Você deve chamar o Sr. Gustav Brandenburg. A secretária dele tomará nota de tudo.
- Então, ao fazermos a transmissão desses informes, teremos que nos identificar?
- Sim, evidentemente. A identificação é muito importante.
- Tratando-se de assunto do seu interesse, faremos tudo o que nos for possível, Sr. Lucas - disse-me o chefe da portaria.
- Sessenta e três banqueiros de sete países!
Capítulo 39
- O artigo 48 da Lei do Divórcio reza: "Na hipótese de que, desde três anos antes, se ache suspensa a união matrimonial e desde que se considere impossível, em virtude de irremediável perturbação nas relações conjugais, restabelecer a vida conjugal, que é um requisito essencial para caracterizar o matrimônio, qualquer um dos cônjuges pode requerer o divórcio. Na hipótese de entrar com a petição o cônjuge que total ou preponderantemente é o responsável por tal perturbação, não deve ser concedido o divórcio contra as refutações do outro cônjuge, o que vale dizer, para ser deferida a petição deve-se comprovar que falta ao cônjuge refutante a vinculação ao matrimônio e a necessária disposição de dar continuidade à vida conjugai". É o que está escrito aqui.
Meu amigo, o advogado Paolo Fontana, deixou cair sobre a mesa o livro volumoso que estava lendo. Depois afundou-se na poltrona e passou a fitar-me por cima da sua escrivaninha. Fumava cachimbo. Ele tinha aproximadamente a minha idade. Seu rosto pequeno permanecia sempre impassível, encobrindo os mínimos resquícios de emoção. Seus cabelos castanhos estavam penteados para trás. Era muito cotado entre as mulheres e sempre teve boas oportunidades para fazer estrondosas conquistas, mas nunca as aproveitou. Seu espaçoso escritório achava-se localizado no segundo andar de um edifício na Freiligrath-Strasse. Nas estantes viam-se pilhas de livros jurídicos e de processos. Além disso, sua escrivaninha achava-se atopetada de papéis e documentos. Era uma noite quente e abafada, mas o céu estava estrelado. A lua brilhava com aquela sua luz de um misterioso palor. As moças, caminhando pela calçada, soltavam gostosas e inocentes gargalhadas. Carros trafegavam ininterruptamente. O ruído de uma buzina insistente feria nossos ouvidos. Vindo de algum lugar ali por perto, um suave som de jazz invadiu a sala. Na rua, os homens pareciam divertir-se ao conversarem animadamente... conversas próprias das noites que marcam o começo da época estival...
Foi às vinte e duas horas que entrei no escritório do Dr. Fontana. Ele já tinha dado por encerrados os seus trabalhos desse dia. Trajando só calça e camisa, a gravata completamente desatada e o colarinho desabotoado, com uma pose de fanfarrão, apoiado comodamente na cadeira, ficou me observando calado durante um certo tempo. Eu também trajava só calça e camisa.
Como eu não entrara em maiores detalhes ao formular minha consulta, ele passou a me fazer perguntas sobre certos aspectos relacionados com meu caso, tais como a data da minha mudança do apartamento, em que condições foi feita essa mudança, qual foi a reação de Karin quando lhe declarei que queria divorciar-me dela. Foi só aí, então, que leu o artigo 48 da Lei do Divórcio e, depois de ter acendido o seu cachimbo, disse-me:
- Você mesmo pode ver que, lamentavelmente, a coisa não é tão fácil como você imaginava.
- Mas eu tenho que me separar de Karin! Já faz muitos anos que nossa vida conjugal praticamente não existe e você bem sabe disso. Ficarei completamente arruinado ou morrerei, se tiver que continuar vivendo com Karin, especialmente agora que encontrei outra mulher.
O semblante do advogado não denotou o mínimo movimento ou contração. Com a voz calma e ponderada obtemperou:
- Está certo. Compreendo o seu desejo. Mas nas circunstâncias atuais nada se pode fazer. Então você acha que terá que esperar uma eternidade até que uma nova lei do divórcio, já esboçada num anteprojeto, seja posta em vigor? Consoante as disposições da lei ora vigente, você poderá... se tiver muita sorte... conseguir o seu divórcio na primeira ou na segunda instância - o que acho muito pouco provável -, mas, se não for favorecido pela sorte, terá que se sujeitar a vários julgamentos em diversas instâncias para a regularização dos alimentos, divisão dos móveis, fixação da importância para o aluguel da casa... E não são muito raros os indivíduos que têm percalços dessa natureza...
- Mas isso é um absurdo! - gritei.
- É realmente um absurdo. Os socialistas estão cogitando da promulgação de uma nova lei do divórcio com um so julgamento por um único juiz, que deverá proferir a sentença definitiva depois de inteirar-se de todos os aspectos do caso. Pela nova lei você poderá conseguir o divórcio após a separação de dois anos, e não de três, conforme determina a lei atual. Mas a nova lei não foi ainda promulgada. Ninguém sabe quando ela será posta em vigor. Não quero roubar seu tempo discorrendo sobre as situações trágicas surgidas com a aplicação das normas obsoletas da atual legislação, conforme eu próprio pude verificar no exercício das minhas atividades profissionais...
Sobre a mesa encontrava-se uma garrafa de Rémy Martin e dois copos. O homem encheu nossos copos e eu me apressei em tomar um gole bem grande. E não era para menos. Eu tinha necessidade de beber nesse momento.
- Pobre homem! - exclamou Fontana. - Você está doidamente apaixonado por essa tal Angela, não é verdade?
- Amo-a mais do que você pensa.
- E dizer que milhares de quilômetros separam vocês... e que, como você viu, de nada adianta o amor que vocês dedicam um ao outro...
- Mas não quero mais voltar a viver com Karin! - exclamei num tom incisivo e bebi outro gole bem grande. - Não haverá algo que se possa fazer para contornar a situação? É claro que sempre se poderá dar um jeitinho. E você, rábula do inferno, deve encontrar esse jeitinho, pois essa é a sua profissão!...
Fontana sacudiu os ombros.
O cachimbo estava entupido. Ele bateu-o para retirar os resíduos de fumo e a cinza e depois com seus dedos hábeis encheu-o novamente com fumo dourado, que retirou de uma caxinha de porcelana holandesa.
- Devemos considerar o fato tal qual ele se apresenta diante de nossos olhos, Robert. De acordo com a nova lei, já configurada num anteprojeto, o princípio de culpabilidade (adultério, etc.) não constituirá mais o requisito fundamental para a concessão do divórcio, mas única e exclusivamente a existência efetiva de uma situação de conflito na vida conjugal. Fazendo seu pedido de divórcio agora, você corre o risco de jogar com a sorte: talvez a nova lei seja posta em vigor logo. Mas também pode ser que não. Talvez você consiga o divórcio com brevidade. Mas, se não for assim, você terá que enfrentar diversos julgamentos num processo que poderá arrastar-se durante anos. Terá sua Angela bastante disposição de espírito para suportar essa demora?
- Ela tem. Eu é que não poderei suportar tanto tempo.
- Ela também não poderá suportar a demora - ponderou Fontana, já acendendo o cachimbo e lançando no ar grossas baforadas de fumaça, que recendiam a alcatrão e mel. - Quanto a você, nota-se logo sua impaciência. Você já tem a aparência de um verdadeiro destroço humano. Eu o conheço muito bem. Outros talvez não possam notar seu estado de espírito. Mas notei logo que apertei sua mão. Você se encontra dominado por tão terrível inquietação que, desse jeito, não poderá resistir nem mais um ano sequer.
Um ano? Será que a solução deste caso ainda vai levar um ano?, pensei comigo mesmo. Será que o meu estado de saúde vai piorar? Será que vou ficar mais doente ainda ou será que minha saúde vai permanecer como está? Quem sabe se não morrerei antes mesmo de poder juntar-me a Angela como seu marido? E será que Angela, por seu turno, poderá também suportar uma espera que, conforme prognostica Fontana, se prolongará por muito tempo? Na verdade, já estou reduzido a uma verdadeira pilha de nervos. Fontana tem razão.
- Mas é um ato desumano querer obrigar a viverem juntas, como que acorrentadas, duas criaturas que de fato há muito tempo já se acham separadas.
- Não discordo. Trata-se de uma lei desumana.
Quando Fontana falava, quaisquer que fossem os conceitos que emitisse, sua face não sofria a mínima contração e sua voz permanecia inalterável. Com essa peculiaridade pessoal a reforçar-lhe o talento, ele já havia ganho muitas questões. Falando calmamente, prosseguiu:
- Por isso sou de opinião que você não deve formular agora seu pedido de divórcio. Você não poderá atingir seu objetivo sem ter que tomar uma atitude baixa contra Karin... pois ela não quer o divórcio.
- É, ela me disse que não quer o divórcio.
- É claro que ela não quer o divórcio! E ela nunca vai querê-lo. Ela nunca entregará você como um presente a outra mulher, especialmente depois que você, como um verdadeiro idiota, lhe declarou que está caído de amores pela sua nova predileta. Ela se comprazerá em ver você esticar as canelas por causa desse seu amor. Eu disse: esticar as canelas. Você deve verificar se ela de fato o ama ou se está propensa a ceder-lhe. - Como já disse, o advogado falava com o semblante impassível, expressando-se com naturalidade e sem alterar o tom da voz. - Que idade tem Karin?
- Trinta e oito anos.
- Por que você não contrata algum detetive? O trabalho de um detetive não é muito barato, mas talvez valha a pena. Pode ser que ele a surpreenda em algum flagrante com outro indivíduo. Então teríamos um motivo ponderável para entrar com o pedido de divórcio.
- Karin jamais seria capaz de procurar outro homem. Tenho absoluta certeza disso.
- Contudo... Admitamos que por qualquer razão ela venha a ter algum encontro fortuito...
- Ela jamais faria isso. Ela não é mulher desse tipo.
- Mas tal circunstância nada tem a ver com o tipo de mulher. Trata-se, antes, de uma imposição das próprias condições anormais da vida conjugal. Você mesmo já disse que Karin não é suficientemente esperta para agir com grande discernimento.
- Eu não espero nenhum resultado positivo com a contratação de um detetive.
Angela! Angela! Achei que seria tão fácil a solução de meu caso! Entretanto, como ele parece difícil e intrincado agora!
Na rua lá embaixo, uma moto fazia ruídos estrepitosos, seguida de uma extensa fila de carros.
- Sempre rabos-de-saia! - exclamou Fontana.
- O quê?
- Não, nada! Já que você não consente, não se fala mais na contratação de um detetive. Tenho apenas a obrigação de dizer o que você deve fazer. Se você age ou não, é problema seu. Eu quero ajudar você. Sou seu amigo.
- Foi por isso mesmo que vim aqui.
- Contudo, seja lá qual for sua idéia, não deixe de pensar na possibilidade da contratação de um detetive. Sua mulher tem saúde. Ela ainda é bastante jovem e pode trabalhar para ganhar dinheiro. Você já mandou cancelar a autorização que lhe concedeu para sacar da sua conta?
- Já.
- Você ainda lhe deu dinheiro ontem?
- Sim.
- Quanto?
Hesitei em responder ao advogado.
- Eu perguntei quanto dinheiro deu à sua mulher ontem.
- Dois mil e oitocentos marcos.
- Oh, grande estúpido! - exclamou ele com brandura na voz. - E não esqueça de enviar-lhe amanhã cedo também um buquê de rosas vermelhas. Você pensa que a obtenção do divórcio é coisa tão fácil e rápida?
- Foi, na verdade, um erro da minha parte. Mas me achava dominado por um forte sentimento de culpa e...
- Proíbo-lhe, deste momento em diante, sentir o mínimo resquício de culpa que seja!
- Para você é bem fácil fazer-me essa proibição. Entretanto, não posso dissipar da minha mente a idéia de que tenho culpa.
- Você não deve deixar que essa idéia se apegue à sua mente. Do contrário, você jamais conseguirá tornar-se um homem livre. Pense no inferno que vem atormentando a sua vida nesses últimos anos. Você não deve nunca esquecer como tem sido o comportamento dela e acho mesmo que deve estar farto dos dissabores que ela lhe vem ocasionando incessantemente. Você não deve lhe dar nem mais um centavo.
- Mas isso eu não posso fazer - gaguejei um tanto espantado. - Como poderá ela viver? De que maneira conseguirá pagar o aluguel?
- Qual é o valor do aluguel?
- Mais ou menos setecentos marcos.
- Então pague o aluguel, mas não lhe dê mais nada. Ela também dispõe de uma conta. Trata-se de dinheiro que ela conseguiu de você mesmo, subtraindo das importâncias entregues para as despesas da casa. Fome ela não vai passar. E ela terá que trabalhar também.
- Ela não aprendeu nenhuma profissão...
- Não importa. Existem atividades para as quais não há necessidade de muita aprendizagem. - O advogado, agora, passou a falar com voz mais baixa. - Só assim talvez... eu disse talvez, note bem... você poderá conseguir que, compelida pela raiva, ela própria peça o divórcio. Mas ela só tomará essa atitude quando perceber que não lhe resta nenhuma outra esperança. E sou de opinião que você poderá viver em concubinato com sua Angela até que surja a solução definitiva do seu caso. Ninguém poderá impedir vocês de, livremente, levarem a vida juntos. O máximo que poderá acontecer é que você seja considerado culpado no processo de divórcio. Creio que para sua Angela pouco importa essa circunstância... ou?
- Evidentemente, para ela tanto faz.
- Muito bem. Então fica combinado que daqui por diante você não dará mais dinheiro à sua mulher. Pagará somente o aluguel. É uma imposição minha. Você poderá também pagar o seguro. Só o seguro de vida e por doença.
Batendo com a ponta do cachimbo no meu peito, perguntou-me: - O telefone está em seu nome?
- Está.
- Então você terá que providenciar imediatamente o cancelamento desse registro. Vou relacionar numa lista uma série de coisas que você terá ainda que fazer. Quanto é que você ganha na Global?
- Sete mil e quinhentos marcos. Líquidos.
- Com o divórcio, você pode calcular que deverá dar à sua mulher aproximadamente um terço dos seus proventos e das suas posses, incluindo sua conta bancária. Você poderá arcar com essas responsabilidades sem que seja afetado o seu equilíbrio financeiro?
"Assim sendo, eu terei que me contentar apenas com dois terços dos meus proventos e das minhas posses. Dá para fazer face às principais necessidades da vida."
Eu estava refletindo sobre este ponto quando Fontana me perguntou:
- Angela também ganha com seu trabalho, não é verdade?
- Mas não posso e não devo contar com o dinheiro dela. Pelo contrário, ela é que deverá viver do meu ganho.
- Você poderá arcar com todos esses gastos? A vida em Cannes não é sopa.
- Se lá não der para viver, teremos que nos mudar para outra parte. De qualquer forma, trabalhando na Global, que está sediada aqui em Düsseldorf, não poderei residir em Cannes.
Ao declarar isso, ocorreu-me que Angela me havia dito que de forma alguma pretendia viver em outro lugar a não ser em Cannes.
Fontana pareceu ter penetrado o meu pensamento e disse:
- Angela talvez não queira sair de Cannes. É lá que ela tem mais probabilidade de ganhar dinheiro com suas pinturas. Sinto muito, Robert, mas não posso esquivar-me de focar também esse aspecto: o amor, por intenso que seja, morre quando falta o dinheiro.
- Eu... eu...
- Diga logo! Ande!
- Eu não tenho saúde, Paolo.
Passei, então, a relatar-lhe tudo acerca do meu estado de saúde. Depois que concluí o relato, pedi-lhe que não dissesse nada a ninguém.
- Angela sabe disso?
- Ela acha que estou apenas um pouco doente, com uma dorzinha qualquer no pé e nada mais. Se eu piorar, terei que me aposentar e viver da minha aposentadoria...
- Dando um terço dos seus proventos a Karin?! E note que depois da aposentadoria você passará a ganhar muito menos.
- Está certo. Mas nesse caso poderei ficar vivendo em Cannes mesmo e lá seguramente encontrarei algum trabalho. Tenho certeza! Eu falo bem francês. Com muita facilidade, encontrarei emprego naquela cidade.
Repentinamente tive a impressão de me sentir mais aliviado, como que totalmente livre de temores. "Sim, sim, tomara que essa minha claudicatio intermitens tenda a se agravar. Sim, sim, tomara que eles me concedam de uma vez a aposentadoria!"
Depois dessa divagação declarei ao advogado, pondo um tom de veemência nas minhas palavras:
- Eu não quero martirizar Karin nem fazer chicanas com ela! Seria uma atitude ignóbil da minha parte. Só quero entrar com meu pedido de divórcio agora, sem demora.
- Mas continuo mantendo minha opinião de que ainda não é o momento oportuno para entrar em juízo com a sua petição de divórcio. Com que fundamento ela poderá ser formulada agora? Por enquanto não há nenhuma razão plausível para isso.
- Ora, então não sei que há razão de sobra? Cada vez que chego a casa, até parece que entro num inferno. Minha mulher é hostil e agressiva. Já não se pode mais dizer que estamos levando uma vida de casados. Não pode começar com tais alegações?
Ele, contrariado, sacudiu os ombros.
- Mas tudo isso é muito pouco. Deixe que ela reclame, deixe que ela...
- Não! - interrompi-o e comecei a falar com mais veemência. - Eu quero que meu pedido de divórcio seja encaminhado agora, custe o que custar! Recuso-me terminantemente a causar a Karin qualquer aborrecimento ou humilhação e também não pretendo ofendê-la. Quero separar-me dela, mas agindo, tanto quanto possível, de maneira decente.
- Está bem. Então teremos que redigir um documento no qual você declara expressamente que, contrariando meus conselhos, me forçou a encaminhar agora a petição do seu divórcio. Você deverá assinar essa declaração. Sou seu amigo, mas também sou um advogado e não posso deixar de tomar precauções para salvaguardar minha reputação.
- Assinarei com prazer essa declaração e também a procuração.
Ele preencheu um formulário especial, que passou às minhas mãos. Assinei tudo.
- Portanto, encaminharei logo sua petição, mas, conforme já o adverti, é uma loucura o que você está fazendo. Você de maneira alguma quer ouvir meu conselho?
- Não, não quero ouvir o seu conselho neste ponto. Perdoe-me, Paolo. Quanto tempo levará até que tenhamos alguma notícia sobre o andamento do processo?
- Algumas semanas. O juiz deverá expedir o competente aviso a Karin e ela naturalmente terá que contratar um advogado também. O advogado a orientará sobre como deve proceder e depois se comunicará comigo.
- É verdade. Tem que ser assim mesmo.
De um momento para outro invadiu-me uma sensação de calma e de íntima satisfação. Era como se meu divórcio já tivesse sido determinado sem entrave de espécie alguma.
- Você obstinadamente não quer seguir meu conselho - disse Fontana, ainda contrariado. - E essa sua atitude não é nada boa.
A música que vinha de algum lugar ali perto soava mais forte nesse instante. Era uma melodia de ritmo lento, repassada de melancolia.
Capítulo 40
Meia hora após a meia-noite entrei no meu quarto no Intercontinental. Sobre a mesa havia um vaso com rosas vermelhas - sonjas. Contei-as: eram treze. Um envelope pendia do vaso. Abri-o deixando cair sobre a mesa o cartãozinho que estava dentro. Lia-se nele a seguinte frase escrita com a caligrafia canhestra de algum empregado de qualquer uma dessas floriculturas:
"Je t'aime de tout mon coeur et pour toute la vie - Angela".
Segurando ainda o cartão, caminhei até a janela e descerrei as cortinas. Então passei a contemplar o aeroporto de Lohausen com suas luzes brancas, verdes, vermelhas e azuis girando ininterruptamente.
Depois procurei sentar-me perto do telefone numa posição tal que me permitisse segurar as rosas bem junto de mim e divisar lá fora o aeroporto.
Eu ainda segurava na mão o cartão quando disquei para a central telefônica a fim de pedir uma ligação para Cannes. Não parava de ler aquela frase garatujada: "Eu amo você de todo o meu coração e por toda a minha vida - Angela".
Meu pé esquerdo começou a doer um pouquinho.
A campainha do telefone tilintou.
- Aqui é de Cannes. Para o Sr. Lucas. Queira atender, por favor!
- Angela!!
- Robert!! Finalmente! Faz horas que estou esperando.
- Não me foi possível telefonar antes.
- Mas eu não me incomodaria em esperar mais ainda. Durante toda a noite se fosse preciso. Estou aqui no terraço sentada na cadeira de balanço. Faz muito calor aqui, Robert. Ah, se você estivesse perto de mim! Que noite magnífica! E eu sinto... eu sinto tanta saudade de você!
- Eu também sinto saudade de você, Angela.
Meu pé parecia pesar como chumbo. Nesse instante comecei a sentir o agradável perfume das rosas.
- Muito obrigado pelas sonjas, Angela. E obrigado também pelas lindas palavras escritas no cartãozinho.
- Eu é que agradeço a você pelas suas rosas, pelas suas palavras.
- Você está contemplando as luzes da cidade?
- Além das luzes da cidade, contemplo também as luzes sobre os navios que estão no mar e as que iluminam as estradas que margeiam o sopé do monte Esterel.
- E eu aqui contemplo as luzes do aeroporto. Faço de conta que são as mesmas luzes de Cannes e assim tenho a impressão de estar junto de você.
- Luzes queridas! - exclamou Angela. - Que enorme quantidade de luzes possuímos, não é verdade? Dispostas em fileiras uma após outra. Elas preludiam a nossa felicidade e se encarregarão de unir nossos pensamentos cada noite em que nos comunicarmos por telefone, até que você venha para cá para ficar bem pertinho de mim.
- É mesmo, Angela.
- Quando você regressará?
- Ainda não sei ao certo. Desta vez parece que vai demorar um pouco.
Nenhuma resposta.
- Angela?
- Sim?
- Você está me ouvindo?
- Estou.
- Por que não responde, então?
- Não posso. Eu... eu tive que chorar. Na verdade, Robert, eu gostaria de ter sido mais corajosa para poder sufocar a minha emoção no momento em que você disse que demoraria um pouco para voltar. Sabia que desta vez você não poderia vir tão depressa.
- Sabia como?
- Eu fico sabendo facilmente tudo sobre você. Bem que gostaria de ser forte em tais circunstâncias e mostrar-me alegre para não entristecer você. Mas não consigo, Robert.
Exatamente nesse instante, em frente à minha janela, cruzava os ares, lançando sinais luminosos, um avião que, descrevendo uma trajetória bem inclinada, se projetou nas alturas.
- Neste momento um avião está decolando aqui.
- Aqui também. Exatamente agora. Ele ainda está voando baixinho e se encontra próximo. Será que podemos considerar isso um bom sinal para o nosso amor? E para o nosso futuro? Devemos acreditar que Deus já nos perdoou e que está nos protegendo?
- Temos que acreditar.
- Robert...
- Sim?
- Eu o previno de que você jamais se livrará de mim. Nunca mais. Hei de amar você até o momento de exalar meu último suspiro. Somente você e mais ninguém. Mas que foi que disse o advogado? Conte-me.
- O caso é muito difícil, Angela.
- Eu já previa que não poderia ser tão fácil assim. Qual é a opinião do advogado?
Passei, então, a relatar-lhe tudo o que Fontana me dissera. Terminei perguntando a Angela:
- Você não havia previsto que este caso fosse tão difícil assim, não é verdade?
- Julguei até que pudesse ser mais difícil. Mas onde está a dificuldade, Robert? O advogado, que é seu amigo, disse que ninguém poderá proibir de nos amarmos nem de vivermos juntos. E, para nós, isso não é o mais importante? Não é isso o que mais nos interessa?
- Mas com o meu trabalho não poderei ficar sempre
em Cannes, Angela. Nós ainda não havíamos pensado nesse particular...
- Eu, sim, já havia pensado nisso. Irei com você para
onde você for.
__ Mas você me havia declarado que jamais concordaria em sair de Cannes...
- É que até então não existia você em minha vida. Cannes agora para mim pouco importa. Eu posso trabalhar em qualquer parte. Em qualquer grande cidade onde haja gente rica. Não existem muitos ricos em Düsseldorf?
- Claro que sim.
- Então irei para Düsseldorf. Não tenho medo da sua mulher. Nem me assusta o fato de ela também viver nessa cidade.
- Por enquanto você deve ficar em Cannes. Eu voltarei para junto de você. Aqui procurarei evitar que Karin leve tantas vantagens.
- Não!
- Não o quê?
- Não diga isso! Seu advogado pode ter razão, mas você não deve fazer isso à sua mulher. Não use de chicanas com ela nem deixe de dar-lhe dinheiro. De forma alguma consinto que você proceda com ela conforme recomendou seu advogado. Claro que... concordo... que algumas coisas devem ser tiradas dela como, por exemplo, o telefone, o direito de sacar da sua conta bancária e outras parecidas... Mas sem dinheiro você não deve deixá-la.
"Oh, Angela!", pensei, logo que Fontana acabou de me fazer tais recomendações, "eu próprio, no meu íntimo, tomei a resolução de não proceder de maneira tão rigorosa assim contra Karin. E eis que agora você, a única que teria motivos para ser da mesma opinião de Fontana, manifesta-se exatamente favorável ao meu intento de não desamparar Karin!"
- Você deve pagar-lhe o aluguel, o seguro e mandar creditar na conta dela todo o dinheiro necessário para que ela possa viver bem. Você tem que me prometer que fará isso. Quanto você ganha, Robert?
Disse-lhe o montante do meu ordenado.
- Então, além do pagamento dessas despesas, mais mil e quinhentos marcos.
- Mil e quinhentos marcos? Essa quantia, somada com a do aluguel e a do seguro, ultrapassa o montante de três mil marcos. É muito! Desse modo ela jamais concordará com o divórcio - respondi-lhe com satisfação por também ter pensado bastante na importância que deveria dar a Karin.
- Se você lhe der essa quantia, ela concordará mais facilmente com o divórcio, por ver que você não é nenhum patife que pretende abandoná-la à sua própria sorte. E você vai ficar com dinheiro suficiente para todas as suas necessidades.
- Mas o dinheiro tem que ser suficiente para mim e para você - disse eu alteando a voz.
- Eu tenho dinheiro. Eu trabalho. Eu ganho. Uma situação dessas é muito comum em diversos casais. Juntos, teremos dinheiro suficiente. Mil e quinhentos marcos, Robert! Por favor, prometa-me que você vai dar-lhe essa quantia!
- Prometo! - confirmei, já pensando em ocultar isso a Fontana. Contudo, mais dia menos dia, forçosamente ele viria a descobrir essa minha determinação e ofender-se-ia. Seria bem provável mesmo que a concessão dessa soma de mil e quinhentos francos viesse contribuir para aumentar a minha infelicidade, dificultando tudo. Por outro lado, também não deixei de refletir que, se eu não a concedesse, talvez nunca mais viesse a ter sossego.
- Agradeço a você. Tudo vai dar certo. Estou convencida disso. Ando cheia de otimismo. Mas venha logo que puder. Fico esperando ansiosamente por você. No momento, tenho muito serviço e isso ajuda. É uma distração para o meu espírito. Trabalho só de dia. De noite, não.
- Não, não trabalhe de noite, Angela.
- E essa fase será superada em breve. Depois, permaneceremos sempre juntos. Futuramente, quando nos lembrarmos da situação que ora estamos vivendo, perguntaremos um ao outro: lembra-se daquela época quando estávamos longe um do outro e tínhamos que nos comunicar por telefone? Imagine você o que seria de nós se não existisse o telefone. Portanto, apesar de tudo, ainda somos felizes, você não acha?
- Sim, Angela, somos felizes.
- Você vai me telefonar amanhã?
- Naturalmente.
- Aguardarei sua chamada. Como sempre. Mesmo que demore bastante.
- Boa noite, Angela!
- Boa noite!
Continuei calmamente sentado no mesmo lugar, aspirando o suave perfume das rosas e contemplando o aeroporto. O luar inundava todos aqueles recantos com um brilho que parecia irreal. Eu tinha a impressão de que as árvores, os arbustos, o aeroporto, o hangar, a torre de controle, enfim, tudo o que eu via apresentava um aspecto de imaterialidade, de coisa etérea que não poderia projetar sombras.
Capítulo 41
- Aqui está a relação - disse Gustav Brandenburg, passando às minhas mãos duas folhas de papel que se encontravam sobre a sua mesa emporcalhada. - Trata-se de uma relação que foi enviada hoje expressamente. Gente muito distinta essa que se reuniu lá no Frankfurter-Hof!
Examinei a relação. Sessenta e três banqueiros haviam participado da reunião. Um deles, Hellmann, já estava morto. Os nomes e os endereços dos restantes sessenta e dois figuravam nas duas folhas de papel que se encontravam na minha mão. Achavam-se relacionados somente nomes de cidadãos bem conhecidos que viviam em Munique, Hamburgo, Bremen, Berlim, Frankfurt, Hannover, Stuttgart, Zurique, Basiléia, Berna, Londres, Viena, Paris, Roma e Oslo.
- Vamos começar com os banqueiros da Alemanha - disse Gustav, gemendo e fungando. - Nos próximos dias você terá que se movimentar um bocado, meu caro. Não vai ter tempo nem para se cocar. Mas que fazer? Não é sempre que a coisa corre bem. Se tiver sorte, o primeiro sujeito que você visitar desembuchará tudo o que precisamos saber. Mas se o azar montar na sua cacunda, só o último.
- Ou talvez nenhum deles - retruquei.
- Ou talvez nenhum deles - concordou Gustav. - Mas o que há com sua mulher?
- Que eu saiba, nada.
- Você já pediu o divórcio?
- Já!
- Ótimo. Então vamos começar logo o nosso trabalho.
Ele passou a dar ordens à sua secretária para que o pusesse em contato telefônico com os banqueiros alemães, um após outro. Esse trabalho se processou com relativa rapidez, pois os homens com os quais ele queria falar já se encontravam nos seus gabinetes. Gustav possuía uma maneira especial de conversar que nunca falhava: era uma espécie de fusão da oratória sacra, própria de um sacerdote que leva vida contemplativa, com a fluência verbal de um advogado afeito às arengas forenses.
Ele conseguiu telefonar para todos os banqueiros. Nenhum deles se recusou a receber-me. Todos eram homens muito corteses e polidos. Declararam que eu podia visitá-los quando bem quisesse. Antes do meu comparecimento ao seu escritório, Gustav já havia delineado um plano de viagem para mim. Eu devia começar pelo norte da Alemanha, Hamburgo, e depois, então, dirigir-me para o sul. Em seguida teria que visitar os banqueiros do exterior. Enquanto ele me explicava todo esse roteiro, comecei a refletir que por muito tempo eu não poderia ver Angela. Por isso fiquei triste e com raiva. Por sorte, a maior parte desses banqueiros vivia na mesma cidade. Só em Hamburgo, por exemplo, residiam três deles.
Gustav determinou que eu me dirigisse nesse mesmo dia a Hamburgo, já que os homens estavam dispostos a atender-me imediatamente. E para mim essa decisão calhou perfeitamente, pois eu não pretendia permanecer inativo um momento sequer. Tomei logo o avião para Hamburgo, onde cheguei aproximadamente às duas horas da tarde.
Antes de dirigir-me ao escritório de Gustav Brandenburg, eu já havia estado no banco e autorizei Kresse, o funcionário encarregado das contas correntes, a creditar mensalmente na conta da minha mulher a importância de mil e quinhentos marcos. Eu não sabia o número da conta dela, mas pedi que ele lhe telefonasse para perguntar.
Lá mesmo, no meu escritório na Global, redigi uma carta ao Departamento de Serviços Telefônicos pedindo o cancelamento da ligação do telefone em meu nome. Aproveitei também a ocasião para escrever cartas pedindo o cancelamento da minha assinatura do jornal e da minha matrícula no Departamento de Serviços de Televisão, bem como para tomar uma série de outras providências que me haviam sido recomendadas por Fontana.
Uma série de outras providências contra Karin e, paradoxalmente, a autorização para, a meu débito, creditar na sua conta mensalmente a importância de mil e quinhentos marcos. Vejam só!
O aluguel há muito tempo vinha sendo pago automaticamente. Da mesma forma, o seguro de vida e por doença. Não tomei senão providências de pequena monta. O mais importante mesmo em tudo isso foi a minha atitude, contrariando as determinações de Fontana, de mandar creditar dinheiro na conta de Karin. Se ele soubesse disso ficaria furioso.
Enquanto voava para Hamburgo assaltaram-me terríveis dúvidas: certamente eu agi de maneira errada. Mas cada indivíduo só deve fazer o que sua consciência manda. E deixar Karin sem dinheiro era uma coisa que eu não poderia fazer facilmente.
Em Hamburgo o tempo estava fresco e nublado.
Visitei imediatamente o primeiro banqueiro da lista, cujo nome, por motivos fáceis de compreender, deixo de mencionar. Ele recebeu-me no seu magnífico escritório todo revestido de finas tapeçarias. Tratava-se de um cidadão polido e calmo. Aliás, devo de antemão declarar aqui qae todos os escritórios que visitei posteriormente se achavam arrumados com muito bom gosto e com um luxo pomposo. Também os cidadãos que entrevistei eram polidos e corteses. Embora com palavras diferentes, todos eles diziam quase sempre a mesma coisa.
Nas entrevistas que fiz, os diálogos eram sempre pouco extensos. O relato do primeiro serve para dar uma idéia de como foram os outros.
- Estou investigando certos aspectos relacionados com o acidente em que perdeu a vida o Sr. Hellmann. Sei que nos dias 24 e 25 de abril o senhor e outros cidadãos, seus colegas, participaram de um congresso realizado no Frank-furter-Hof, ao qual o Sr. Hellmann também compareceu. Sei ainda que o Sr. Hellmann, depois de terminada a última reunião, ficou excessivamente nervoso e, de maneira inexplicável, se mostrou desesperado ou enfurecido, ou, melhor dizendo, desesperado e enfurecido ao mesmo tempo, assim permanecendo até que tomou o avião para Cannes. Poderia o senhor imaginar alguma razão plausível para essa brusca mudança do seu estado emocional?
- Não, Sr. Lucas.
- Aconteceu, nesse congresso, algo que pudesse excitar de tal modo o Sr. Hellmann? Houve desentendimentos? Discussões ásperas?
- No nosso círculo ninguém costuma ter discussões ásperas nem rixas, Sr. Lucas.
- O Sr. Hellmann talvez estivesse numa situação aflitiva.
- De maneira alguma! Se assim fosse, nós o teríamos sabido. Ficaríamos sabendo um do outro sem demora.
- O senhor considera possível que o Sr. Hellmann tenha efetuado certo tipo de transação incompatível com a sua fama de banqueiro honrado?
- Essa é uma hipótese que deve ser excluída.
- Como explica, então, o seu estado de excitação logo após a conferência que ele proferiu no encerramento desse congresso?
- Nada posso explicar.
- Tratava-se de uma conferência de caráter especial, quero dizer, envolvendo razões significativas que pudessem ocasionar esse descontrole emocional?
- Não, absolutamente não. Nós fazemos normalmente nossos encontros em reuniões desse tipo duas ou três vezes por ano. Trata-se de um contato feito com a finalidade de trocar informações e consultas sobre a realidade política e econômica predominante no momento. Somos uma espécie de grande família, Sr. Lucas.
- Então, quer dizer que em uma grande família todos se mantêm unidos e nunca deixam transparecer aos espectadores qualquer ocorrência desagradável, não é verdade?
- Essa pergunta... desculpe-me a franqueza, Sr. Lucas... foi formulada sem muito tato. Se eu realmente soubesse por que o Sr. Hellmann - conforme o senhor mesmo afirma, pois estou me baseando exclusivamente nas suas palavras - ficou tão nervoso, após o término da nossa reunião, eu lhe diria sem constrangimento.
- O senhor diria mesmo?!
- Evidentemente. O senhor não acredita em mim?
- Não. Como teria sido ocasionada a morte de Hellmann? Acidente, assassinato ou suicídio?
- Acidente ou assassinato. Suicídio é uma hipótese que eu excluo. Não havia nenhum motivo para tanto, salvo se o Sr. Hellmann se encontrasse atacado de uma doença incurável. Mas essa é também uma hipótese muito remota, pois, nesse caso, ele seria incapaz de dar cabo da vida dessa maneira, ocasionando igualmente a morte de muitas outras pessoas.
- O senhor não tem conhecimento de algo relacionado com a tragédia do Sr. Hellmann que sirva de subsídio para a minha investigação?
- Antes da sua chegada, eu havia vasculhado os escaninhos da minha memória para tal fim. Sinto muito, mas a resposta é não.
O que acabo de transcrever, embora esteja um pouco resumido e um tanto estilizado, traduz o conteúdo essencial do diálogo da minha primeira entrevista. As outras foram mais ou menos semelhantes.
Sempre conseguia visitar no mesmo dia bancos alemães sediados numa mesma cidade e ainda regressava a Düsseldorf viajando em qualquer avião que houvesse antes do anoitecer. Nessa primeira viagem, fiquei quase morto de cansaço e não tinha nenhum apetite. A dor no pé recrudescera. Ainda nesse mesmo dia telefonei a Brandenburg, do Intercontinental, dando-lhe ciência dos resultados negativos de minha primeira visita.
- E daí? - respondeu ele, notando meu cansaço e desânimo. - Ainda não foram concluídas todas as visitas. Você terá que entrevistar todos eles. Quem sabe se um desses sujeitos não vai abrir o bico, fornecendo-nos uma pista segura? Portanto, vá dormir e amanhã cedo tome de novo o avião para prosseguir seu trabalho. Soube de alguma coisa a respeito de Karin?
- Nada. Nenhum bilhete, nenhuma palavra, nenhum telefonema.
- Ótimo! Você já está conseguindo dobrá-la. Conserve sempre a cabeça erguida, rapaz! Mas, voltando à vaca fria, eu lhe garanto que mais dia menos dia descobriremos a verdade. Agora vá para a cama. Boa noite!
- Boa noite, Gustav.
Mas não fui logo para a cama. Estava muito nervoso. Pus-me debaixo do chuveiro e tomei um banho empregando alternadamente água quente e fria. Depois, então, tratei de telefonar para Angela. Finalmente chegara para mim o momento mais feliz. Era o momento ansiosamente aguardado por mim durante todo o dia. Falei com Angela dizendo-lhe que nesse dia o meu trabalho fora infrutífero. Ela não se mostrou impaciente nem insistiu para que eu regressasse logo. Pareceu ter compreendido que no momento eu não podia voltar a Cannes. Todavia um certo tremor na voz traía o seu nervosismo. O fato era que ambos já não podíamos suportar por muito tempo ficar longe um do outro.
Em certo momento ela me disse:
- Ontem à noite aconteceu algo importante com relação a você, Robert!
- O quê?
- Depois da nossa conversa pelo telefone, fui dormir. Lá pelas três ou quatro horas da madrugada despertei e quis pegar sua mão, mas você não estava perto de mim. Eu quase nem podia acreditar que você não estivesse na minha cama, pois, não sei por que estranho fenômeno, eu acordara absolutamente convencida da sua presença. Eu não tinha a mínima dúvida sobre isso.
- Antes você havia sonhado comigo?
- Não. Até parece loucura, não é? Então levantei-me e fui procurar você na sala, supondo que talvez eu estivesse roncando e que, por isso, você tivesse ido dormir no sofá.
- Mas você estava realmente de pé?
- Ora, foi como estou lhe dizendo!
- Oh, Santo Deus! Era só o que faltava, você andar perambulando de noite como uma sonâmbula!
- Não foi sonambulismo, homem! Eu me encontrava bem desperta. Mas nem na sala você estava. Então comecei a gritar, chamando você, e a procurá-lo por todo o apartamento. E fiz isso porque, acredite ou não, eu estava convencida de que você se encontrava aqui comigo. Como não encontrei você, voltei para a cama e comecei a chorar, pois naquele instante invadiu-me um triste pensamento: eu tinha a impressão de que você havia ido embora, abandonando-me para sempre. Fiquei chorando até pegar no sono de novo. Hoje de manhã doíam-me todos os ossos do corpo.
- Meu pobre tesouro! - exclamei.
- Eu não sou pobre. Eu sou amada - retrucou ela. Ambos fumávamos excessivamente nesses últimos dias.
Angela havia pegado aquela tossezinha seca que sempre ataca os fumantes e procurava mil e uma desculpas para justificar seu vício.
Ambos percebíamos que tal situação nos acarretava sofrimentos; contudo, nenhum de nós disse uma palavra de queixume. Quando nos telefonávamos, ficávamos sempre sentados naquela posição que nos permitia contemplar as luzes - eu, as do aeroporto, e ela, as de Cannes. As luzes eram o nosso único consolo. Maravilhosas luzes!
Capítulo 42
Munique, Bremen, Berlim, Stuttgart, Frankfurt!
Cada uma dessas cidades foi visitada num único dia.
Sempre diálogos que afinavam pelo mesmo diapasão. Nenhum resultado. Absolutamente nada de positivo.
Semblantes corteses. Frases e mais frases, mas nenhuma indicação. Nenhuma pista.
- Na verdade, Sr. Lucas, sinto muito, mas não posso auxiliá-lo...
Terminadas as visitas aos banqueiros alemães, tomei o avião para Viena. Não poderia desincumbir-me da minha tarefa ali num único dia. Hospedei-me no Imperial. Da Áustria também não era possível fazer discagem direta para Cannes. Da mesma forma que em relação à Alemanha, só era possível fazer discagem direta da França para a Áustria. Em Cannes já havia começado o festival de cinema, e Angela sem dúvida devia andar muito atarefada, participando das recepções oficiais, das exibições de películas e dos parties. Combinamos por isso fazer uma alteração nas nossas chamadas telefônicas. Como não poderia saber exatamente onde se encontraria à noite, ela se encarregaria de discar para o meu hotel, evitando desse modo que eu pedisse uma ligação sem encontrá-la no seu apartamento.
Os três banqueiros por mim visitados em Viena não tinham mais coisas a declarar do que os seus colegas alemães.
Nessas minhas andanças pela Europa, eu já me havia hospedado por diversas vezes no Imperial e gostava muito desse hotel. Todas as noites fazia minhas refeições nos fundos de um dos dois restaurantes ali existentes. Nessa noite, depois do jantar, fui sentar-me no pequeno bar revestido de tapete vermelho, onde permaneci tomando alguns drinques e fumando para passar o tempo, pois Angela me avisara de que só poderia telefonar tarde da noite. Eu já me sentia exausto efetuando tantas viagens infrutíferas. A dor no pé aumentara e eu tinha a impressão de que minhas pernas mal podiam carregar-me. Não deixava de tomar as drágeas receitadas pelo Dr. Betz, mas elas já não adiantavam muito.
Entretive-me, nessa noite, conversando com o Sr. Franzi, um dos barmen, que eu conhecia há muitos anos. Falou-me do seu jardim e de sua vinha, dizendo-me que já havia começado a produzir um pouco de vinho - só para o seu consumo e para os amigos. Prometeu enviar ao meu endereço algumas garrafas no outono seguinte.
Fiquei ali no bar conversando com ele até a uma da madrugada, quando minhas pálpebras começaram a cair de tanto sono. Então dirigi-me ao meu quarto e atirei-me sobre a cama. Esperaria a chamada de Angela deitado. E se eu pegasse, no sono, a campainha do telefone despertar-me-ia sem dúvida. Comecei a dormir e tive um sonho pavoroso. Sonhei que havia perdido Angela e que por causa disso não tinha mais interesse algum pela vida. Então saí correndo como doido, na contramão, por uma estrada coberta de gelo, destinada ao tráfego de carros durante o inverno. Eu corria ao longo da pista sob uma neblina bem espessa. Fazia um frio de gelar e comecei a tremer, apavorado. Mesmo assim não parei de correr, esperando que algum carro se aproximasse e passasse sobre meu corpo, já que a densa neblina impediria o motorista de divisar meu vulto a tempo de frear.
A muito custo consegui despertar quando o telefone tocou. Tão sonolento estava, que demorei para encontrar o interruptor da lâmpada sobre a mesinha-de-cabeceira. O fone chegou a escorregar da minha mão, úmida de suor. Verifiquei a hora no meu relógio de pulso: eram três e quarenta e cinco da madrugada. Coloquei o fone no ouvido.
- Alô...
Comecei a ouvir música... Uma melodia que me era bem conhecida... Uma voz masculina, grave, cantava: "Blowin' in the wind..."
- Robert? ...
- Angela! - Pigarreei. - Angela!
- Ora, acordei você, coitadinho!...
- Não.
- Acordei, sim. Percebo pela sua voz.
A voz masculina continuava cantando e a melodia ecoava no meu ouvido.
- Bem, tenho que concordar, você me despertou. Mas como fiquei contente com isso! Quem é que está cantando aí? Onde está você?
- Depois da avant-première de um filme, houve ainda um baile de gala aqui no Ambassadeur, o restaurante do Municipal, você se lembra dele, não é?
- Sim.
- Muita gente famosa. Gente rica. Consegui três pedidos de retratos, Robert!
- Meus parabéns!
- Obrigada. E você? Quais foram os resultados aí em Viena?
- Infrutíferos.
- Oh, meu Deus! - exclamou ela baixinho.
A música e a voz masculina tornaram-se nesse instante mais fortes. Após alguns segundos, soou novamente a voz de Angela. Notava-se o seu esforço para demonstrar um tom alegre e esperançoso.
- Esta fase difícil passará, Robert.
- Seguramente!
- Você acha que devo ir à Alemanha?... Para ficar junto de você? Eu posso viver em qualquer lugar. E nós poderemos nos encontrar secretamente.
- Sua ida à Alemanha não teria nenhuma razão de ser por enquanto, pois eu me encontro cada dia em um lugar diferente. A minha próxima viagem será à Inglaterra. Depois, à Suíça. Tenha um pouco de paciência, por favor.
- É claro que terei paciência. Ficarei esperando até que seu trabalho esteja concluído. O principal é podermos dizer que pertencemos um ao outro. Você está ouvindo a canção? A nossa canção?
- Sim. Mas como foi que você arranjou isso? Acho que a orquestra deve estar no restaurante, mas eu estou ouvindo a música tão bem como se ela estivesse perto do fone.
- Mas eu estou aqui no restaurante, Robert! O baile de gala já terminou. Pedi aos músicos que permanecessem ainda um pouquinho aqui e eles me atenderam. Você nem imagina o que eu fiz: trouxe o aparelho de telefone aqui para o restaurante! Um eletricista me ajudou, providenciando a extensão dos fios. E agora o telefone se encontra exatamente em frente à orquestra. Aqui no restaurante estamos so nós, eu e os músicos. A maior parte dos convidados já foi embora. Os poucos que ficaram estão nas salas de jogo. Expliquei à gerência do hotel que precisava fazer algo urgente. E eles se convenceram de que o meu pedido era urgente mesmo, quando lhes disse que queria mandar executar a canção preferida para o homem que eu amo.
- Mas você disse isso?
- E por que não?! A França é muito diferente da Alemanha.
"...the answer, my friend, is blowin' in the wind, the answer is blowin' in the wind ..."
Era uma voz masculina que cantava.
- Angela?
- Sim?
- Essa fase há de passar. Depois, então, viveremos felizes. - A canção terminou nesse exato momento. - Você realmente me fez uma surpresa maravilhosa. Muito obrigado, Angela!
- Eu é que devo agradecer a você, Robert.
- Por quê?
- Por tudo o que você é e faz por mim. Tenciona voltar logo a Düsseldorf?
- Não. Daqui de Viena devo tomar o avião diretamente para Londres. Amanhã à noite você estará no seu apartamento?
- Sim. Como sempre, esperando seu telefonema.
- Você vai permanecer ainda aí no restaurante?
- Que tenho a fazer aqui? Vou imediatamente para casa. Eu também estou cansada. Espero ter um sono repara-dor e sonhar bastante com você.
- Eu também espero sonhar com você, Angela. Boa noite!
Interrompeu-se a ligação. Desliguei a luz e deitei-me de costas, tentando pegar no sono de novo. Entretanto, não conseguia adormecer. Fiquei espichado na cama. Comecei a sentir aquela dor importuna no pé, uma espécie de disten-são muscular. Milhares de pensamentos invadiram minha mente.
Capítulo 43
Depois de ter permanecido três dias em Londres, tomei o avião para Zurique. Tampouco naquela cidade me seria possível fazer todas as entrevistas num curto espaço de tempo. Hospedei-me no Dolder. A Global era bem liberal com os gastos de viagem para conforto dos seus funcionários, isso não se podia negar. Durante os dezenove anos em que desempenhei funções dessa natureza, sempre me hospedei nos hotéis mais finos e mais caros do mundo. Como era maravilhoso o Grand Hotel Dolder, no alto da montanha! Com o orvalho da manhã, o verde tapete do gramado que fazia parte integrante do campo de golfe parecia cintilar. E como era suave a brisa! Os hóspedes do hotel continuavam tão internacionais e tão comunicativos como sempre.
Da janela do meu quarto podia vislumbrar os contornos da cidade e contemplar o mar. Era sempre com grande satisfação que eu me hospedava no Dolder, embora dessa vez me sentisse esgotado e oprimido pelo pessimismo que me invadia.
Eram três os banqueiros que eu deveria visitar em Zurique. Concluída essa tarefa, eu teria entrevistado apenas quarenta e uma pessoas das sessenta e duas constantes da relação. E sem obter nenhum resultado positivo até agora.
Eu procurava conformar-me com a situação refletindo que tais insucessos surgiam sempre como ossos do ofício. Confortava-me apenas a idéia de que a qualquer momento poderia ocorrer um milagre, com o aparecimento de uma boa pista. Os dois banqueiros que visitei no primeiro dia expressaram-se praticamente da mesma forma que os seus colegas visitados anteriormente. Mas que fazer?
Acho que à noite, quando telefonei para Angela, não pude me conter e manifestei-lhe abertamente o meu desespero e o meu acabrunhamento. Ela me confortou bastante. Disse-me que esperaria até que eu concluísse todas as investigações. Tivemos a nossa conversa mais ou menos às dez horas da noite. Às onze, eu já me encontrava deitado na cama, farto dessas minhas andanças inúteis. Às quatro e vinte da madrugada o telefone tocou de novo:
- Robert!...
Desta vez não havia nenhuma manifestação de alegria nem de tranqüilidade na voz de Angela. Suas palavras já não eram de encorajamento como antes...
- Querida. .. querida, que é que houve com você?
- Meu Deus, fui despertar você, que tanto precisa repousar!
- Bobagem. Eu pegarei no sono logo depois. Cheio de temor, perguntei-lhe:
- Aconteceu algo a você?
O meu temor aumentou quando ouvi Angela chorar.
- Que tem você, queridinha? Fale, Angela, por favor! Nesse momento eu já me encontrava sentado na cama, bem desperto.
Soluçando e fazendo um enorme esforço para dominar-se, ela falou:
- Eu amo você imensamente, Robert!
- Eu também amo você doidamente, Angela, meu amor! Que é que você tem?
- Preocupações... preocupações e saudade. Depois da nossa conversa desta noite pelo telefone, ainda fiquei de pé olhando para fora da janela. Percebi que ia ficando cada vez mais nervosa. Para... para acalmar-me tomei um copo de champanha. Mas continuei bebendo... Esvaziei uma garrafa inteira... Depois passei a beber cerveja. E não parava de fumar. Não podia ficar sentada em lugar nenhum de tão inquieta que fiquei depois da nossa conversa... Você parecia estar tão cansado e desiludido. Robert... acho que você já notou que eu tomei um pileque... Não, não é bem isso. .. Eu estou bêbada mesmo! Fazia anos que eu não bebia tanto assim.
Percebi que ela havia começado a chorar novamente. Depois prosseguiu:
- Perdoe-me. Estava chorando de saudade de você. Mas agora não estou chorando mais. Já assoei o nariz.
- Mas por que você não foi para a cama?
- Não pude. Depois do noticiário da televisão, eu me sentei no sofá... você sabe qual é... e comecei a pensar em você... Eu... eu mesma procurava me sugestionar para dormir, mas não conseguia... Nunca me aconteceu uma coisa assim. Comecei então a pensar o que seria de mim se você não mais voltasse. Tudo aqui estava tão calmo, tão sem vida. Então comecei a beber, sentada aqui neste sofá... durante muito tempo... sem levantar-me, sempre pensando no nosso amor. E agora, não agüentando mais, despertei você...
- Mas isso não importa! Fiquei muito contente com sua chamada, digo-lhe com toda a sinceridade, Angela. Sempre que você se encontrar numa situação dessas, telefone-me logo. Se eu, por meu turno, em algum momento me sentir no mesmo estado, não deixarei de ligar para você.
- É o que você deve fazer também, Robert... Robert?...
- Sim!
- Estou vivendo momentos horríveis. Só que agora eu tenho com quem desabafar. Antes de conhecer você, nenhuma pessoa ficava sabendo o que realmente se passava no meu íntimo. Desde que conheci você, tornei-me completamente diferente... Mas eu acordei você...
- Pare com isso, Angela!
- Hesitei mais de uma hora em telefonar-lhe... Eu pegava o fone e largava... Por fim criei coragem e disquei seu número... Mas você não está zangado comigo, não é verdade?
- Zangado?! Estou feliz com seu telefonema!
__ Ambos somos como uma única pessoa... O que acontece para um de nós acontece também para o outro... Eu fico imaginando como você deve estar aborrecido por ter que andar por esse mundo afora, longe de mim, fazendo suas investigações, sem nenhum resultado satisfatório.
- Angela, deve chegar o momento em que concluirei meu trabalho. Depois, então, nos veremos novamente. E, naquele seu terraço cheio de flores, passaremos juntos horas felizes...
- Neste meu terraço - repetiu ela. - Sim, sim, aqui bem juntinho de mim... Temos que achar um meio, Robert... Para mim a vida nada significa sem você... Absolutamente nada! Você não acha que foi uma coisa muito ruim eu ter perdido o ânimo?
- Ora, Angela, eu perco o ânimo diariamente e depois o recupero de novo.
- Tenho que ouvir a sua voz, Robert. Tenho que ouvi-la.
- Compreendo... compreendo muito bem o seu estado de espírito... Só peço que você me prometa agora não beber mais e ir para a cama imediatamente.
- Vou tomar um calmante e beber o resto de cerveja que está no meu copo para esvaziá-lo. Depois vou ficar mais sossegada. Mas perdoe-me, Robert, perdoe-me por ter despertado você.
- Notava-se que ela estava realmente embriagada. - Boa noite!
- Boa noite.
Depois de largar o fone, observei que as faixas brilhantes do sol, que já estava despontando, penetravam no quarto através das cortinas.
Capítulo 44
O terceiro banqueiro entrevistado em Zurique manteve comigo um diálogo que não diferia substancialmente dos outros. Tratava-se de um cidadão idoso, de cabelos brancos, e que tinha também suíças brancas. Já bem no fim da entrevista, ele me declarou algo que julguei um tanto estranho:
- Sr. Lucas, sei que o senhor está se desincumbindo das obrigações inerentes ao seu cargo, mas eu, se estivesse no seu lugar, recomendaria à empresa a que o senhor pertence terminar com essas investigações, dando o caso por encerrado.
- Por quê?
- Porque a verdade nunca será descoberta.
- Como pode o senhor fazer tal afirmativa com tanta certeza?
- Talvez o senhor consiga descobrir a verdade - prosseguiu ele mudando de atitude, como que reconsiderando as palavras proferidas -, mas de nada lhe adiantará essa descoberta. Aliás, de nada adiantaria a ninguém desvendar esse caso.
- Como foi que o senhor chegou a essa conclusão?
- Não lhe posso revelar. Mas acredite em mim. Envelheci lidando com bancos. Trata-se de uma atividade de caráter todo especial que dispõe também de leis especiais.
- Mas não pode haver uma lei especial só para bancos com o caráter, por assim dizer, de um código secreto de ética - retruquei.
- Pense como quiser, mas essa lei existe, Sr. Lucas. - Ele começou a alisar a barba. - Se o senhor insistir em dar prosseguimento às suas investigações... e pelo que vejo o senhor não tem nenhuma intenção de desistir delas...
- É claro que estou firmemente decidido a prosseguir com elas!
- ... então posso garantir-lhe que haverá muitas infelicidades. Não me refiro a infelicidades do ponto de vista financeiro, mas humano.
Fitou-me com olhos cheios de rugas, cansados e tristes, e depois prosseguiu:
- Em nenhuma ocasião a gente deve condenar o semelhante, seja ele quem for. A gente sempre deve abrandar qualquer ímpeto de ódio, perdoar, desculpar...
- O quê?! - exclamei alteando a voz, quase gritando, mas ele, parecendo não ter percebido minha atitude, prosseguiu:
- ...pois se cada um de nós ficasse sabendo tudo com relação ao outro... facilmente e até com grande satisfação nos perdoaríamos mutuamente. E assim não haveria no mundo orgulho nem vaidade, nem tampouco seria necessário recorrer à justiça. A justiça, Sr. Lucas, é uma coisa abstrata.
- Não! - retruquei-lhe em tom incisivo. - Sinto muito ter que discordar do senhor. A justiça não é abstrata. A justiça é concreta!
Ele fitou-me, calado, durante um certo tempo, depois sacudiu os ombros e se retirou.
Capítulo 45
No Grand Hotel Dolder deram-me um recado: eu devia comunicar-me imediatamente com Gustav. Ele já me havia telefonado duas vezes e aguardava ansiosamente minha volta ao hotel. Não levou mais de dois minutos para me pôr em contato com ele pelo telefone.
- E então? - soou aquela voz de indivíduo astuto e velhaco. - Conseguiu descobrir algo?
- Absolutamente nada! - respondi-lhe. - Mas também deve-se considerar que o banqueiro que visitei hoje é apenas o quadragésimo primeiro da lista.
- Acho que você não precisa mais visitar os restantes. Tome o primeiro avião para Frankfurt. O seu amigo, o chefe da portaria do Frankfurter-Hof, me telefonou. Ele disse que tem algo importante para você. Você deve ir falar com ele sem demora. Telefone-me antes de partir comunicando a hora da sua chegada.
- Mais um alarme falso! - exclamei.
- Não. Dessa vez não se trata de um alarme falso. Estou farejando coisa. Por enquanto, esse soa como o mais importante sinal de alarme. Venha imediatamente, Robert.
Sem demora tomei o avião. Mais ou menos às três horas da tarde já me encontrava no Frankfurter-Hof. O chefe da portaria ficou radiante quando me viu no saguão.
- Oh, mas até que o senhor veio ligeiro! Vou logo avisar Kalling. Ele ainda está esperando, mas parece que não quer revelar nada aqui no hotel. Ele é um bom indivíduo, mas muito medroso.
- Quem é Kalling?
- Um sujeito ainda relativamente jovem. Desde que o senhor esteve aqui a última vez, não parei de sondar o pessoal do hotel. Finalmente, ao que me parece, descobri algo importante.
- O quê?
- O próprio Kalling vai contar-lhe tudo. Agora são três horas. Às quatro e meia o senhor deverá encontrar-se com ele em frente da banca de jornais na estação ferroviária de Frankfurt.
- Agradeço-lhe muito.
- Não há o que agradecer. Para o senhor, faço tudo o que é possível, o senhor bem sabe. Mas ainda não se pode dizer que Kalling lhe dará uma boa pista. É muito cedo para agradecer-me, Sr. Lucas.
- Como poderei reconhecer Kalling?
- Ele estará lendo a página esportiva do Abend Zeitung de Munique, encostado à banca. A estatura dele é aproximadamente igual à sua. Seus cabelos são castanhos. Aparenta estar beirando os trinta e cinco anos. Rosto pequeno e pálido. Ele estará fumando.
Capítulo 46
- Sr. Kalling?
O homem de cabelos castanhos e rosto pequeno que, apoiado na banca, lia o Abend Zeitung de Munique na estação ferroviária de Frankfurt tirou o cigarro da boca, examinou-me bem e depois disse:
- Boa tarde, Sr. Lucas!
Havia muita gente na estação a essa hora, especialmente na plataforma. A todo momento soavam vozes estridentes nos alto-falantes. Composições de trens saíam e chegavam ininterruptamente. Grande barulho. Muita gente aglomerada. Ninguém nos observava.
- O chefe da portaria disse que o senhor tem algo para contar-me. Naturalmente, terei o prazer de dar-lhe uma boa gratificação pelos informes...
- Absolutamente! Só lhe contarei tudo se o senhor não falar em gratificação. O senhor é amigo do nosso chefe da portaria. Prestarei ao senhor qualquer obséquio que me for possível, mas por prazer e não mediante dinheiro ou gratificação. Tire essa idéia da cabeça.
Uma coisa dessas nunca me acontecera antes!
- Pois então está bem.
- A minha declaração - começou Kalling, enquanto uma multidão apressada passava por nós, crianças choramingavam, locomotivas apitavam e pneus chiavam sobre o asfalto - está relacionada com aquele congresso dos banqueiros que se realizou no salão de conferências do hotel nos dias 24 e 25 de abril. Na última noite, o Sr. Hellmann pronunciou um discurso. Em inglês.
- O senhor poderia me dizer precisamente que assunto ele abordou?
- Ele falou sobre a ética e o dever dos banqueiros
na moderna sociedade industrial - respondeu-me Kalling, chupando o cigarro. - Ao lado do elevador encontrava-se um quadro-negro. Quero dizer, lá no hotel. Nesse quadro-negro eles sempre escreviam os assuntos que iam ser debatidos. É por isso que sei o título da conferência do Sr. Hellmann. Deve ter sido um discurso bem humano e inteligente. Foi o que pude deduzir do comentário de outros banqueiros que se reuniram no salão de banquete, onde havíamos preparado uma mesa de frios e um bar com bebidas. Eu estava servindo na mesa de frios. E, como é natural, podia ouvir tudo o que eles conversavam, não é?
- Evidentemente.
- Todos escutavam o Sr. Hellmann com muita atenção e pareciam demonstrar entusiasmo por suas palavras. Seu discurso foi calorosamente discutido. E deve ter sido mesmo um discurso muito lindo. Também é preciso que se diga que o Sr. Hellmann era um dos mais estimados e prestigiosos banqueiros do país, não é?
- Sem dúvida.
Uma voz no alto-falante anunciava nesse momento que o trem para Dortmund provavelmente deveria sofrer um atraso de quinze minutos.
- Mas nem todos os banqueiros estavam muito satisfeitos com o discurso.
- O quê?! - interroguei.
- Não, não quero dizer que foram muitos, mas pelo menos um deles não ficou contente. E a conversa dele ficou gravada na minha cabeça. Explico: numa reunião em que o senhor só ouve elogios e louvores, quando, de repente, surge uma voz destoante que diz o contrário, o senhor começa a prestar mais atenção, não é verdade?
- Seguramente.
- O Sr. Hellmann veio também para a mesa de frios acompanhado de um outro cidadão. Lá, cada um escolhia o que queria e eu servia os pratos.
- Como estava vestido Hellmann?
- De smoking, como todos os outros.
- O senhor já o conhecia de vista?
- Conhecer?! Fazia muitos anos que ele era freqüentador do nosso restaurante francês.
- Sim, e daí?
- Ambos estavam à minha frente. O outro escolheu primeiro os frios. Depois o Sr. Hellmann. Enquanto eu colocava os frios no seu prato, disse-lhe esse outro cidadão: "Que magnífico discurso você pronunciou, meu caro! Suas palavras tão cheias de sentimento humano e de generosidade fariam chorar até as pedras..."
- E o senhor gravou na memória com exatidão as palavras que esse outro cidadão pronunciou?
- Sim. Posso garantir que foi mais ou menos assim que ele falou. Pode ser que a ordem de colocação das palavras não fosse bem essa, mas o elogio malicioso, feito em tom de ironia, estava bem claro. E as expressões sentimento humano e generosidade eu ouvi perfeitamente. Tenho absoluta certeza porque foi por causa delas que se deu o incidente.
- Que incidente?... Perdoe-me a interrupção! Relate o fato como o senhor bem quiser, Sr. Kalling.
- Está bem. Pela ordem das ocorrências, então. O Sr. Hellmann fitou o outro cidadão, sem ter compreendido nada, e perguntou-lhe: "Que é que o senhor quer dizer?" Foi mais ou menos essa a pergunta. Ou, melhor: "Que significam essas suas palavras?" Ou, talvez...
- Já compreendi, Sr. Kalling. Prossiga.
- Então o outro encarou o Sr. Hellmann com uma expressão de... de verdadeiro asco, pronunciando as seguintes palavras, que gravei na memória: "Mas, agora, pelo amor dos céus, não vá também representar uma comédia! Ninguém melhor do que você sabe o que está fazendo. Pois faça, então, o que estiver de acordo com sua consciência. Mas vá para o diabo e não venha nos fazer um discurso tão besta, que só serve para deixar a gente apatetada!"
- O tal cidadão disse mais ou menos isso ou essas foram realmente as suas palavras?
- Essas foram textualmente as suas palavras, Sr. Lucas.
- E que foi que aconteceu depois?
- O outro cidadão sem mais nem menos deixou o Sr. Hellmann ali, de pé, e retirou-se com o prato cheio de frios. O Sr. Hellmann ficou tão desconcertado que nem viu quando eu lhe entregava seu prato. Ele se apoiou na mesa de frios. Então pensei cá comigo: esse homem vai perder o equilíbrio e cair no chão. Fiquei com medo e chamei-o em voz alta, uma, duas, três vezes, mas ele não me ouvia. Ele tremia e cerrava os punhos. Em seguida, saiu do salão sem mesmo olhar para mim e eu fiquei ali segurando o prato dele.
- E ele deixou o salão de banquetes saindo antes do tempo?
- Sim. Isso eu posso jurar. E não voltou mais. Essas informações podem adiantar-lhe alguma coisa?
- Acho que elas me serão de grande utilidade. Esse outro cidadão, o senhor se lembra bem como ele era?
- Parecia ser italiano. Mas poderia ser, também, de outra nacionalidade. Falava inglês com sotaque. Era um tipo que não chamava muito a atenção. Mais jovem do que o Sr. Hellmann. Depois disso não o vi mais. Talvez ele tenha deixado imediatamente o hotel ou tenha se hospedado em outro lugar.
- Quando foi que eles tiveram essa conversa?
- Devia ser meia-noite ou um pouco mais tarde.
À uma e meia, conforme declarou Fred Molitor, do serviço de vigilância, o Sr. Hellmann se apresentou no seu banco completamente perturbado, parecendo até que iria ter um ataque nervoso.
- O senhor me ajudou bastante, Sr. Kalling. Eu não posso simplesmente aceitar esses informes sem, pelo menos, dar-lhe uma pequena gratificação...
- De maneira alguma! - retrucou ele em tom incisivo. - Mas, já que o senhor insiste tanto, sabe o que poderia fazer? Eu tenho uma filhinha que sempre me pede uma bonequinha para brincar. Lá do outro lado da rua existe uma loja de brinquedos.
Capítulo 47
- Eu sabia! - berrou Gustav Brandenburg. - Bem que eu sabia! Não lhe disse que havia cheirado alguma coisa? Vejam só como é este mundo! O nosso bom e distinto amigo Hellmann metido numa sujeira das grossas! Um dos seus colegas ficou sabendo de tudo. Por isso ele perdeu a cabeça... e depois... Uma coisa se encaixa perfeitamente na outra. É bem como eu lhe vinha dizendo desde o princípio: foi suicídio. Já pisamos no rastro!
- Mesmo assim ainda precisamos de algumas provas.
- Você deve regressar imediatamente a Cannes - disse Brandenburg, com a camisa aberta na frente mostrando a pança.
- Eu devo fazer o quê?
- Não há mais necessidade de entrevistar outros banqueiros. Já descobrimos o suficiente. Não faz ainda três horas que Friese me telefonou. Kessler, que está trabalhando em Cannes, permitiu que seu amigo Lacrosse utilizasse a ligação telefônica do ministério. E Lacrosse pediu a Friese que tentasse uma comunicação comigo para que eu avisasse você.
- Avisasse de quê?
- De que eles precisam de você lá. Imediatamente. Trata-se do caso com um argelino... um dos muitos que moram em La Bocca. Você sabe o que é. Kilwood não gritou que tudo começara com um argelino?
- Sim, e daí?
- Eles pretendem fazer uma caçada policial imediatamente, a fim de esclarecer o caso. E se eles conseguirem pegar logo esse tal argelino e ele desembuchar tudo o que sabe, talvez possamos dar o caso por encerrado. O que acha você do meu trabalho?
- Seu trabalho é magnífico! - exclamei.
Eu só pensava em Angela. Finalmente eu teria a oportunidade de voltar para junto dela agora.
- Seguirei imediatamente. Há ainda hoje algum avião para lá?
- Sim. O diabo é que está tudo uma merda.
- Que é que você quer dizer?
- A greve - respondeu Gustav. - Os ferroviários franceses estão em greve. Os empregados dos aeroportos franceses também estão em greve. Você não pode ir de trem nem de avião.
Capítulo 48
- Angela!
- Robert! Sua voz soou tão alegre. Aconteceu algo bom?
- Sim, Angela. Vou voltar para junto de você!
- Quando?
- O mais breve possível. Já é muito tarde para tomar as providências hoje. É quase meia-noite. Mas depois de amanhã ao meio-dia estarei aí com você.
Depois de amanhã - um sábado, 13 de junho... Fazia treze dias que eu estava ausente. Treze dias! Pareciam-me treze anos! Toda a minha vida! Finalmente agora... agora...
- Meu Deus, Robert, aqui há uma greve geral. Uma das maiores greves dos últimos tempos. Você não poderá vir de avião. De trem também é impossível.
__ Sim, sim. Eu já sabia e estudei um meio para viajar
imediatamente. Na Alemanha e na Itália não há greve alguma. Nesses países, os trens estão circulando normalmente. Você terá que ir com seu carro esperar-me na fronteira da Itália com a França. Em Ventimiglia. Daqui eu partirei de trem. De Ventimiglia você me transportará no seu carro até Cannes. Que tempo levará para fazer esse percurso?
- Não mais de duas horas, Robert. Eu trarei você a Cannes. A que horas você chegará a Ventimiglia amanhã?
- Não amanhã. Depois de amanhã! Às doze e cinqüenta e cinco. Mas note bem: estou me referindo ao horário de verão adotado na Itália.
- Eu estarei na plataforma aguardando a sua chegada. E quando vir você, gritarei tão alto que todo mundo vai se assustar. Depois de amanhã eu partirei daqui bem cedinho para chegar a tempo em Ventimiglia.
Na tarde do dia seguinte compareci mais uma vez à Global e Gustav me transmitiu novas instruções e me entregou mais cheques de viagem. Minha mulher não havia telefonado nem a mim nem a ele. Depois de ter deixado nosso apartamento, nada mais fiquei sabendo a respeito dela. Telefonei também ao meu amigo Paolo Fontana e dei-lhe autorização para diariamente mandar um dos seus empregados buscar na Global toda e qualquer correspondência a mim endereçada. Poderia muito bem aparecer qualquer comunicação oficial do juiz, talvez até marcando a data da primeira audiência, e eu não poderia absolutamente deixar de comparecer, caso contrário seria proferida a sentença estando eu ausente. Fontana, ao telefone, falou comigo quase que só por monossílabos.
- Abrirei todas as correspondências oficiais. Dê-me seu endereço em Cannes.
- Hotel Majestic, Croisette.
- Trate de agir direito - disse ele, e desligou.
No Intercontinental avisei também que viriam buscar toda a minha correspondência. O quarto do hotel ficou reservado em meu nome. Nessa mesma tarde tomei o expresso para Stuttgart. Dali, fiz baldeação para o trem direto para Ventimiglia. A Global já havia mandado reservar uma cabina individual no carro-dormitório. Nem me causou surpresa o fato de essa cabina ter o número 13. Peguei no sono logo que o trem começou a andar e só acordei quando ele se aproximava de Milão.
Meus ouvidos estavam tapados e doíam um pouco. Durante a noite, o trem trafegou sempre sobre o Gotthard e eu sentia o efeito da diferença de altitude. Não parava de bocejar. Finalmente, com um estalido, desapareceu a minha surdez.
Na Itália brilhava um sol radiante. A cada quilômetro que avançávamos, penetrando naquela região bendita do sul, eu me sentia mais feliz. Em Gênova tivemos uma longa demora. O carro-dormitório, o último da composição, ficou parado dentro de um túnel, de cujas paredes negras escorria água. Finalmente o trem se pôs de novo em movimento. O camareiro veio arrumar minha cama. Sentei-me à janela e fiquei tomando um forte espresso. Com o movimento não muito acelerado do trem, a partir da estação de Gênova eu podia contemplar os gigantescos navios ancorados no cais. Nesse ponto, o leito da ferrovia se aproximava bastante do porto. Um pouquinho mais adiante deu para enxergar o mar. Podia-se contemplá-lo quase continuamente durante todo o trajeto até a fronteira. O trem seguia sua marcha ao longo da Riviera italiana. No mar eu via navios. O sol continuava radiante. As praias principais estavam cheias de banhistas. Surgiam ante meus olhos palmeiras, eucaliptos e laranjais. O trem fazia uma pequena parada em todas as estações e muitos passageiros desciam um pouco. No carro-dormitório havia poucos ocupantes. Eu só pensava em Angela. Nunca na minha vida eu tivera sentimento de amor tão impulsivo como esse. Nem eu nem ela sabíamos o que nos reservaria o futuro. Eu não fazia a mínima idéia de qual seria a atitude de Karin. Eu não podia prever se o meu estado de saúde pioraria ou melhoraria. A única coisa que sabia era que estava a caminho para encontrar-me com Angela. Essa viagem ao longo do mar parecia-me um sonho cheio de felicidade. Ao simples pensamento de que dentro de pouco tempo estaria contemplando aquele sorriso amoroso de Angela, meu coração inundava-se de alegria. Ocorreu-me, então, que o bom Deus dá às criaturas, como compensação pelas suas atribulações, sofrimentos e misérias, três coisas: o sorriso, o sono e a esperança.
Capítulo 49
Aquela vez no aeroporto de Nice, havíamos corrido um ao encontro do outro. Em Ventimiglia, naquela gigantesca e horrível estação ferroviária, tudo aconteceu de maneira diversa. Desci do carro-dormitório. O camareiro tirou minha mala, deixando-a na plataforma. Eram poucos os passageiros com passagens diretas até a fronteira. O camareiro, gritando, procurava um carregador para levar minha mala enquanto eu permanecia de pé na plataforma, já quase completamente vazia. O sol intenso ofuscava a vista. Ansioso, olhei em torno. Na outra extremidade, quase perto da locomotiva, vi Angela de pé, como que perdida no meio daquela gente. A primeira coisa que vislumbrei foram os seus brilhantes cabelinhos louros. Medeava um bom pedaço de plataforma entre os lugares em que nos encontrávamos. Angela estava de blusa azul e calça branca. Nesse instante, ela também me viu, mas não esboçou nenhum sinal de movimento: continuou parada, olhando-me.
Mais tarde comentamos esse fato e perguntamo-nos por que ficamos parados, olhando extáticos um para o outro. Disse-me ela:
- Fazia já algumas horas que eu estava na plataforma. Havia saído de Cannes às nove horas com medo de chegar atrasada. Nessa manhã eu só agia como uma marionete e não como uma pessoa. Quando vi você, não consegui mover-me. Tive a impressão de ter ficado paralítica de repente. Mas eu sabia que nada de mal se passava comigo. Só não pude fazer o que queria: correr imediatamente para lançar-me nos seus braços e beijá-lo. Não consegui deslocar-me do lugar onde estava. A minha saudade e o meu contentamento eram tão fortes - e aqui está o aspecto mais estranho do caso - que eu cheguei a ficar triste naquele momento em que vi você, precisamente o momento em que deveria desmanchar-me de tanta alegria. Sim, fiquei triste e muito séria, querido.
Comigo aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Até hoje não pude compreender por quê. Naquele momento senti também uma tristeza imensa e permaneci imóvel na ensolarada e horrível estação de Ventimiglia. Nem sequer tive forças para levantar o braço a fim de acenar para Angela. Ela também não se movia.
Um carregador italiano se aproximou de mim com seu carrinho. Pegou minhas duas malas e minha valise dizendo que ficaria me esperando perto do portão de saída da estação. Ele saiu logo empurrando o seu carro. E Angela... ia estava ela imóvel... Então decidi-me a sair caminhando sobre a plataforma, até onde ela estava.
O carregador entrou num elevador destinado a transportar cargas e volumes. Fui avançando... avançando... até que finalmente cheguei bem pertinho de Angela. Seu semblante demonstrava que ela fazia um grande esforço para conter a emoção. Nesse instante ficamos sozinhos na plataforma. Estava tudo calmo. Ficamos nos fitando um ao outro. Refletido nos seus grandes olhos vi meu rosto em diminutas proporções. Não pronunciamos uma palavra sequer. Calados, abraçamo-nos fortemente. Angela pegou minha mão e, sempre sem dizer uma palavra, fomos caminhando em direção à escada que terminava quase na boca de um túnel. Penetramos numa passagem sob os trilhos, que conduzia ao edifício da estação. Via-se por ali muita sujeira e o cheiro de desinfetante era insuportável. Sempre fitando-nos, calados e sérios, seguimos caminhando até atingirmos outra escada, que subimos. Passamos pela borboleta e penetramos no hall. Dali fomos diretamente ao local onde Angela havia estacionado o carro. O carregador estava nos esperando. Por causa do abrasante calor dessa hora do dia, quase não se via ninguém nas ruas. As venezianas das janelas, na sua maior parte pintadas de branco e verde, se encontravam fechadas, como proteção contra os raios do sol. Do outro lado da estação havia um hotel e um café onde, numa espécie de terraço, se encontravam algumas mesas. Espichado, bem junto à parede, dormia um cachorro com os pêlos desgrenhados. Um silêncio de morte parecia invadir o ambiente. Sentamo-nos ao balcão. Nesse momento, comecei a pensar na morte. A morte devia ser mais potente do que o próprio amor. Não há ninguém neste mundo que não tenha a sua hora. Com a morte, tudo termina, até mesmo os grandes amores. Entrei no carro sentindo resignação pela minha própria sorte. Nunca mais estive em Ventimiglia.
Capítulo 50
Angela dirigia o carro calmamente e com muita segurança, como fazia habitualmente. Passamos primeiro pelo porto aduaneiro italiano e depois pelo francês. Os funcionários, por causa do calor, permaneciam ao ar livre e usavam calças e camisas esporte, sobre as quais se notavam manchas de suor. Eram muito corteses e nos desembaraçaram logo. Tanto os funcionários italianos como os franceses procuraram discretamente flertar com Angela, mas quando perceberam que ela não lhes correspondia pararam logo.
Fomos seguindo pela rodovia principal. Angela parou o carro num posto, onde pagou o pedágio. O ar parecia fervilhar. Tirei o paletó e a gravata, colocando-os no assento traseiro. Ainda não tínhamos falado um com o outro. Angela fazia o carro avançar em boa velocidade. Depois de cinco minutos, ela diminuiu a marcha e entrou num pátio amplo de estacionamento, onde parou o carro. Ali começamos a nos abraçar e beijar, apertando com toda a força os nossos corpos um contra o outro. Parecíamos doidos e desesperados. Estávamos tão agarrados como se um fosse o único ponto de apoio para o outro. E, na verdade, na nossa vida era assim mesmo: um era o sustentáculo do outro. Só então foi que conseguimos falar.
- Angela!...
- Meu amor... sinto-me tão feliz!...
- Eu também!...
Enquanto falávamos, não parávamos de nos beijar. Beijávamo-nos nas faces, na testa, nos olhos... Ficávamos com nossos lábios colados durante longo tempo.
- Finalmente, Robert, você está junto de mim de novo! Eu já tinha a impressão de que, longe de você, eu iria perder o juízo.
- Felizmente estamos juntos e vou permanecer aqui!
- Oh, Robert - exclamou ela - naquela estação ferroviária de aspecto horrível eu repentinamente tive um pavoroso pensamento...
- Qual?
Com as minhas mãos alisava seu rosto, seus cabelos, seus braços, suas costas...
- Eu... eu meditei muito e cheguei à conclusão de que só uma coisa poderá nos separar... Mas essa única coisa acontece a todo mundo. Chegará o dia em que ela fatalmente acontecerá para nós também. E, então, nos separaremos. Um de nós terá que continuar vivendo sozinho. Fiquei pensando que, se a sobrevivente for eu, não resistiria ao impulso de ir logo para junto de você, pois nunca mais, nunca mais, nunca mais poderei viver sem você, sem o seu amor.
Ela teve o mesmo pensamento que eu. Que estranho fenômeno!
- Mas agora - prosseguiu ela - tudo já passou. Tudo ficou maravilhoso de novo. - Ela sorriu. - Estamos juntos, Robert! Encontramo-nos novamente no nosso paraíso.
De um momento para outro ela ficou completamente mudada. Desapareceu aquela sua aflição e, já agora com o semblante desanuviado, mostrava-se alegre e feliz.
- Você está com fome? Nem precisa responder, é claro que você deve estar com fome. Eu... eu estou com uma fome danada! Por causa do meu nervosismo, nem café tomei hoje de manhã. Primeiro, vamos tratar de comer qualquer coisa, e depois continuaremos a viagem, você não acha melhor assim?
- É claro.
- Conheço por aqui um bom restaurante num local bem aprazível. Vamos para lá.
Ela sentou-se ao volante e fez o carro arrancar bruscamente. Os pneus chegaram a ranger. Olhei para trás: a poeira que se havia levantado empanava o ar. O pára-brisa e os quebra-ventos do carro estavam abertos. Eu permanecia sentado ao seu lado, bem juntinho dela, e sentia-me orgulhoso por ver que essa magnífica mulher me amava tanto quanto eu a amava. Não, não era propriamente orgulho o que eu sentia: era um indefinível sentimento de gratidão o que me dominava. Gratidão à vida, a Deus ou a quem quer que fosse que me havia propiciado esse amor. Olhei as mãos de Angela. Elas haviam ficado mais brancas. Isso significava que nesse meio tempo em que eu estive ausente ela não havia tomado sol.
- Estamos indo para Eze - disse ela.
Capítulo 51
Para nos dirigirmos a Eze, tínhamos que sair daquela rodovia principal. Por aquelas encostas em declive estendiam-se paralelamente três estradas. Angela tomou a do meio, denominada Moyenne Corniche, que era muito poeirenta. Não demorou muito e penetramos em outra estrada mais estreita e mais poeirenta, quase em acentuado declive. A localidade de Eze ficava bem no cimo da montanha. No começo do povoado, havia um pátio de estacionamento. Deixamos o carro ali e começamos a subir uma rua estreita muito íngreme, que passava entre os rochedos. As casas eram encravadas na rocha e muito velhas. Uma achava-se pegada à outra e o declive da rua era tão acentuado que muitas vezes a porta de entrada de uma casa ficava quase na mesma altura da janela de outra. Sem dúvida, essa localidade deve ter tido a sua origem na Idade Média.
Próximo ao pátio de estacionamento estava montado uma espécie de bazar onde se vendiam souvenirs. Uma infinidade de quadros pendia das paredes. Naquele local vi pintores, sentados, aguardando pacientemente o aparecimento de algum freguês.
Dispostos naquelas casas havia os mais variados tipos de comércio: sapataria, alfaiataria, armazém de comestíveis. Havia principalmente muitas lojas de artesanato. Fabricavam vasilhas de cobre, estatuetas da Virgem, canecos, esculturas em madeira e uma enorme quantidade de cobertas de rendas e bordados. Na sua maior parte, todos esses objetos eram oferecidos à venda na própria rua. O povoado era pequeno, com as ruas bem estreitas e muito íngremes. Pelas suas proporções diminutas, essa localidade poderia ser chamada de liliputiana.
A brisa corria pelas paredes rochosas e estava fresco. Por todo aquele recanto montanhoso não deviam morar mais do que cinqüenta - quando muito sessenta - pessoas nativas do lugar. Era um ponto muito procurado por turistas. A rua estendia-se até o cimo do monte. Eu e Angela caminhávamos de mãos dadas. Alguns homens, postados à porta das suas lojinhas, nos sorriam. As mulheres também. Era uma gente muito amável. Em pouco tempo, atingimos um ponto em que a rua fazia uma curva e deparamos com uma edificação de consideráveis proporções no estilo arquitetônico peculiar da região.
- É esta a região - disse Angela. - Aqui é o Chèvre d'Or. - No seu interior, o Chèvre d'Or estava repleto de raras antigüidades. Atravessando diversas salas, dirigimo-nos a um refeitório dotado de todos os requisitos modernos. Vários séculos separavam o estilo deste aposento do aspecto acentuadamente medieval das outras salas.
Ocupamos uma mesa próxima à janela. O maítre do restaurante anotou nosso pedido. Ficamos sentados um ao lado do outro, sempre de mãos dadas, contemplando o panorama que se vislumbrava lá fora. Eu observava o mar, que, dali, parecia ter uma amplidão imensa como jamais vira em nenhuma outra parte do mundo. Era como se eu estivesse divisando todo o Mediterrâneo. Lá embaixo, estendiam-se as três pistas da rodovia costeira, uma das quais era a Petite Corniche. Os carros pareciam ser pequenos, e ainda de menor tamanho, proporcionalmente, se apresentavam as pessoas na praia localizada entre penhascos.
- Não é lindo este lugar?
- Muito lindo, Angela!
- Quero mostrar-lhe tudo, especialmente o que há de mais belo. Eu já vim com essa intenção desde que saí de Cannes.
Coloquei um dos braços em torno do seu pescoço e dei-lhe um beijo. Seus lábios se abriram. Coloquei em seguida o outro braço. Ela também abraçou-me com força. Nossas línguas se tocaram. Angela gemeu baixinho.
- Alô, Sr. Lucas!
Eu e Angela nos assustamos. Levantei os olhos. Diante de nós encontrava-se um casal: o Sr. e a Sra. Dreyer, de Düsseldorf, amigos de Karin. Ilse Dreyer era provavelmente a sua melhor amiga. Tratava-se de uma loura beirando os trinta, elegante e não desprovida de dotes de beleza, mas que revelava no movimento dos lábios inconfundíveis traços de amargura por desejos não suficientemente satisfeitos. Dreyer era visivelmente mais velho, tinha os cabelos ralos e uma pança bem volumosa. Ambos usavam trajes de verão, exageradamente elegantes. Eles não gostavam muito de mim e eu lhes retribuía na mesma moeda.
- Céus! - exclamou Ilse. - Não estamos aqui para importuná-lo. Estávamos passando em frente a sua mesa quando o vi. Então disse a Franz: "Olhe ali o Sr. Lucas!" Como vai, Sr. Lucas?
Levantei-me e respondi:
- Muito bem, obrigado.
- Nota-se logo - emendou o Sr. Dreyer, com sua voz de trovão e sorrindo.
Ilse Dreyer fitou fixamente Angela, que lhe retribuiu o olhar, sem tanta afetação.
Verificou-se uma pausa. De resto, eu não tinha muita coisa a dizer-lhes e os Dreyer não eram também muito expansivos.
- Permitam-me que eu os apresente...
Fui dizendo os nomes deles. O nome de Angela, propositadamente, não pronunciei com clareza.
Ilse Dreyer, sorrindo, dirigiu-se imediatamente a Angela:
- Como é mesmo o seu nome, por favor?
- Eu me chamo Delpierre, Angela Delpierre, Madame Dreyer - respondeu-lhe Angela sem titubear, com voz clara e sorriso nos lábios.
- Muita satisfação em conhecê-la, Madame Delpierre.
- Igualmente, Madame Dreyer.
- A senhora é conhecida do Sr. Lucas? Ele nunca nos falou da senhora - disse Ilse.
Notava-se que seu marido demonstrava constrangimento.
- Por favor, cale-se, Ilse! -disse ele.
- Por quê? Então não é mesmo engraçado o fato de termos encontrado aqui o Sr. Lucas? Estamos fazendo uma excursão. Encontramo-nos hospedados em Juan-les-Pins. Meu marido tirou antecipadamente as férias este ano. Devemos permanecer na França mais catorze dias ainda. Como é bonito este país!
- Realmente é um país encantador - emendou Angela, sempre com um sorriso nos lábios.
- Mas não queremos importuná-los por mais tempo - disse o Sr. Dreyer, já começando a empurrar a mulher e insistindo para sair dali.
Ilse não lhe deu atenção, parecendo não ter ouvido as suas palavras.
- Sabe, Madame Delpierre, nós somos conhecidos do Sr. Lucas ou, explicando melhor, somos grandes amigos da mulher dele, especialmente eu. A senhora conhece a Sra. Lucas?
- Não, Madame Dreyer - respondeu Angela.
Eu já estava cheio!
- Não queremos detê-los por mais tempo. Foi uma grande satisfação tê-los encontrado aqui - disse eu.
- Teve mesmo uma grande satisfação, Sr. Lucas? - perguntou Ilse.
- Certamente - respondi-lhe.
- Também para mim foi um grande prazer tê-los conhecido - disse Angela.
- Então adeus! - exclamou Ilse.
Seu marido inclinou-se um pouco, muito tenso. Sua face ficou vermelha e ele tratou de retirar a mulher da nossa mesa dando-lhe delicadamente um empurrão.
Até o instante de sair do salão ela não parou de olhar para trás a fim de nos observar.
Sentei-me ao lado de Angela.
- Que você acha? - perguntou-me ela. - Esse encontro não foi bom para você, não é verdade, Robert?
- Não faz absolutamente a menor diferença. Eu já havia declarado a Karin que em Cannes mora a mulher que amo. Fiquei até muito contente por os Dreyer nos terem visto juntos. Que poderá acontecer? Talvez isso venha até contribuir para que Karin tome a resolução de concordar mais depressa com o divórcio.
- Tomara que seja mesmo assim! Ah, Robert, como seria maravilhoso se ela tomasse tal decisão! Como é grande o meu desejo de ver você ao meu lado como meu marido!
- Eu também não desejo outra coisa, Angela.
- Mas... mesmo que seja difícil por enquanto conseguir isso... não posso deixar de viver com você... como sua amante!
Beijei a mão dela.
Um sujeito se aproximou da nossa mesa rodando um carrinho. Enquanto Angela, que estava com muita fome, ia escolhendo os pratos da sua preferência, lancei meu olhar para fora para contemplar, desta vez, as montanhas. Divisava-se, não muito longe do restaurante, um grande jardim de cactos, no meio do qual via-se a ruína de um antigo castelo. Os abrasadores raios do sol inundavam todas as coisas, parecendo dar-lhes contornos luminosos numa profusão de cores.
Capítulo 52
Sobre a mesinha-de-cabeceira de Angela estava um aparelho de rádio transistor com a antena bem estendida. Já havíamos chegado a casa. Depois dessa viagem eu estava ansioso por tomar um banho. Angela foi até o banheiro para preparar-me a banheira. Fiquei no quarto, andando de um lado para outro. O sol, que penetrava por uma das janelas, lançava uma intensa luminosidade. Passados alguns minutos, Angela voltou ao quarto.
- Não demora muito e a banheira estará cheia - disse-me ela.
Só então ela se deu conta de que eu não parava de observar o pequeno rádio.
- À noite eu consigo pegar Munique.
- Então quer dizer que você ouve transmissões da Alemanha, não é verdade?
- Sim, todas as noites. Depois da meia-noite eu pego o noticiário alemão.
- Mas você já não tem muito que se preocupar com as transmissões dos noticiários franceses, Angela?
- Não. Além do mais, você se encontrava na Alemanha.
Eu já havia telefonado a Lacrosse diretamente do restaurante de Eze, e ele me dissera que só no dia seguinte talvez pudéssemos contar com os resultados das investigações que estavam sendo efetuadas pela polícia, a fim de constatar qual dentre os sete argelinos que moravam em La Bocca estava efetivamente relacionado com a explosão do iate e a morte de Hellmann. Expliquei-lhe que, em caso de necessidade, ele poderia encontrar-me, telefonando diretamente para o apartamento de Angela.
Logo que cheguei a Cannes, a primeira coisa que fiz foi dirigir-me ao Majestic, onde me receberam, dessa vez, como um bom amigo e cliente tradicional. Deram-me de novo o mesmo quarto. Ali também avisei que, na hipótese de ser procurado, eles deveriam procurar-me no apartamento de Madame Delpierre e dei-lhes o número do telefone. Nesses poucos dias em que estive ausente de Cannes, a Croisette se transformara num verdadeiro mar de flores ondulando sobre os canteiros que se estendiam ao longo das pistas. O tráfego também se tornara mais intenso. O apartamento de Angela, localizado naquela altitude, era mais fresco e agradável do que nessa parte baixa da cidade.
- Às vezes, eu não conseguia dormir durante a noite. Então ficava ouvindo os noticiários alemães. Eu não compreendia tudo o que os comentaristas diziam, mas nunca deixei de ouvir as notícias. Ou melhor, eu compreendia perfeitamente as palavras, mas meu cérebro não as registrava. Só ficava pensando em você enquanto ouvia o rádio.
- E eu, lá na Alemanha, ficava dormindo...
- Bem, agora você pode ir tomar seu banho. Espere um momento que eu vou colocar na água um sal que a torna admiravelmente fresca.
Atirou na água uma substância que produziu bastante espuma e exalou um suave aroma.
Em seguida, como doida, agarrou-me apertando fortemente o seu corpo contra o meu.
- Tome logo o seu banho! - balbuciou ela. - Não demore. Já esperei tanto tempo!...
Ela saiu logo do banheiro. Tirei a roupa e me lancei na banheira. Só então é que pude notar como estava excitado. Tomei o banho o mais depressa que pude, saltei para fora da banheira e me enxuguei com uma toalha grande. Estando ainda ali sentado à beira da banheira, ouvi quando Angela baixou as persianas do quarto.
Sai do banheiro completamente nu. O quarto de dormir parecia estar envolto em penumbra. Angela, também completamente nua, já se encontrava estendida sobre a cama. Seu corpo, amorenado pelo sol, parecia bem escuro devido àquela fraca luz difusa. Tinha as pernas compridas e de lindo formato. Os contornos das coxas eram maravilhosos. Os quadris eram relativamente pequenos. Nos seus seios de mulher já feita, os mamilos bem salientes pareciam estar circundados de grandes halos. Há quanto tempo vinha sonhando exatamente com o que agora eu via diante de mim!!
Angela fitou-me sorridente. Enfiei-me na cama ao lado dela e começamos logo a nos acariciar. E como nos beijávamos! De tanta ânsia, ela chegava até a perder a respiração. Com as mãos ela agarrava os meus cabelos. Sua pele, lisa e macia, parecia um pêssego. Nossos corpos ficaram enrolados. Pronunciávamos um para o outro as mais belas palavras de amor e fazíamos tudo... tudo o que um homem e uma mulher podem fazer a fim de aumentar a excitação. Levamos seguramente um quarto de hora desse jeito. Finalmente, num tom de voz misto de raiva e vergonha, exclamei:
- Vamos parar! Não vou conseguir fazer nada!
Embora tivesse saído do banheiro daquele jeito, decidido a possuir Angela, vi que me era impossível fazer amor. Fiquei deitado de costas e me lembro perfeitamente de que eu só lhe dizia:
- Perdoe-me! Perdoe-me!
Angela inclinou-se para mim, beijou minha testa banhada de suor, os meus olhos e a minha boca, dizendo-me:
- Louquinho! Tontinho da cabeça! Que significa esse seu pedido de perdão? Você simplesmente está nervoso.
- Isso nunca me aconteceu, Angela. Nunca na minha vida! Eu... eu não sei o que é...
- É por causa do longo percurso que você fez de carro hoje. E você tem trabalhado muito com essas suas intermináveis viagens. É puro nervosismo... Nervosismo e nada mais, é o que você tem, querido.
Sua voz era amável. Em seguida ela saltou da cama dizendo:
- Além do mais, eu também não me acho em bom estado. Desde o almoço venho sentindo uma sede horrível. Temos tempo, Robert! Todo o tempo do mundo. Venha, vamos beber algo!
Ela correu para a cozinha. Eu ainda continuei na cama por alguns momentos e notei que, se por um lado me haviam faltado as forças, por outro, meu corpo chegava a explodir de veemente desejo erótico. Levantei-me e fui até a sala de estar onde, nu mesmo, sentei-me no sofá. Por causa do meu fracasso eu me sentia envergonhado e ridículo.
Angela aproximou-se de mim com um comprimido. Ela trouxe, também, uma garrafa, copos e uma jarra cheia de gelo.
Ela falava com a maior naturalidade deste mundo enquanto preparava nossos drinques.
- Vou preparar dois Ricards para nós. É a melhor bebida para combater a sede.
Com toda a calma verteu o líquido da garrafa nos copos e juntou a quantidade de gelo necessária. A bebida, depois de preparada, tomou um aspecto leitoso. Seu pequeno e bem-proporcionado abdome subia e descia continuamente sobre o sofá. Eu sentia os seus lindos cabelinhos louros roçarem meu corpo. Ardia-me uma forte volúpia, mas ao mesmo tempo eu me sentia impotente para realizar meu desejo. Angela absolutamente não observava o meu corpo. Depois de termos tomado o primeiro drinque, ela preparou outra dose. Em seguida, foi até um toca-discos colocado ao lado do aparelho de televisão e perguntou-me:
- Que música vamos ouvir agora? Você gosta das composições de Gershwin?
- Muito!
- Então vamos ouvir o Concerto em fá.
Retirou da prateleira uma série de discos, que empilhou e colocou na vitrola. Eu a observava. Tinha as mais lindas costas que eu jamais vira. Sua linda pele amorenada pelo sol era sedosa e, de tão lisa, parecia refletir o brilho da luz que penetrava na sala através da janela. Soou a melodia do Concerto em fá. Sentados no sofá, fumávamos e nos fitávamos calados enquanto ouvíamos as maravilhosas melodias daquele gênio incomparável, que teve que deixar tão cedo este mundo em conseqüência de um tumor cerebral. De maneira desconexa, ocorreu-me a lembrança de um jornal que eu lera no carro-dormitório. Eu o havia lido todo, inclusive a seção desportiva e os anúncios fúnebres. Entre estes últimos havia um bem grande, que me chamou a atenção: um general que só na avançada idade de noventa e dois anos teve o seu passamento! Gershwin morreu com trinta e nove anos.
Sua música inundava a sala e penetrava no terraço cheio de flores. Estávamos sentados bem juntinhos, roçando nossos corpos nus, eu e Angela.
E dizer que eu não consegui fazer amor com aquela mulher... a mulher que eu mais amava neste mundo, entre todas as que havia conhecido!
- Você nem imagina como me sinto feliz com o que aconteceu!
- Aconteceu quando?
- Agora, conosco.
- Feliz com o que aconteceu?!
Respondendo afirmativamente com a cabeça, ela passou a explicar:
- Você me ama de maneira excessiva. Eu já tenho ouvido falar a respeito de casos idênticos. Exatamente pelo fato de você me amar em demasia é que não pôde ainda fazer amor comigo. Mas tudo vai dar certo depois. Se, para você, eu importasse tanto quanto qualquer outra mulher, você teria conseguido na cama fazer tudo o que quisesse. E é por isso que agora eu o amo muito mais ainda.
- Angela, eu lhe juro... eu...
- Pssst! - Ela colocou um dedo nos lábios. - Não diga nem mais uma palavra. Fique só escutando a música. Não é maravilhosa esta melodia?
- Sim, é maravilhosa.
Continuamos sentados no sofá. Angela estendeu-me a mão, que agarrei. Ela apertou tanto a minha que chegou a doer. Acendemos mais um cigarro e tomamos mais uma dose de Ricard.
O Concerto em fá terminou e um novo disco começou a rodar. Tratava-se de um dos melodiosos Evergreens compostos por Gershwin. Surgiu inicialmente a melodia A foggy day in London town, lenta, sentimental. Um pistão em surdina soltava notas pulsantes. Angela levantou-se convidando-me:
- Venha, vamos dançar!
Levantei-me e abracei-a. Acompanhando o ritmo lento da música, começamos a girar. Nossos corpos, no começo, mal se tocavam, parecendo que a timidez nos dominava. Um pouco depois, lentamente, fomos nos encostando cada vez mais. Finalmente, passamos a dançar bem agarrados, comprimindo nossos corpos. Angela colocou os braços em torno do meu pescoço. Fechou os olhos conservando a boca levemente aberta. Dançávamos bem agarradinhos, e revoluteando na sala. A essa primeira canção, seguiu-se The man I love.
- O homem que eu amo e você mesmo! - murmurou ela.
E eis que inopinadamente deu-se o milagre! Percebi que o sangue pulsava nas minhas veias. Recobrei a coragem e agora me sentia completamente desinibido para fazer com Angela na cama o que bem quisesse. Quanto tempo não fazia que eu vinha esperando ansiosamente a chegada desse momento? O sangue parecia martelar no meu crânio.
Tentei puxar logo Angela para o quarto, mas ela, falando baixinho, me disse:
- Devagar, Robert... Por favor, não se apresse...
Então continuamos dançando. Sempre revoluteando ao ritmo da canção, fomos nos deslocando pouco a pouco da sala para o quarto. Na verdade, foi ainda dançando que nos atiramos sobre a cama. Percebi que eu havia me tornado novamente um homem. Sentia-me como um jovem. Já fazia mais de vinte anos que eu não me mostrava tão impulsivo assim. E na cama, dessa vez, não perdemos tempo fazendo aquela espécie de carinho para provocar a excitação... A coisa saiu bem depressa.
Logo que possuí Angela, ela, que parecia uma mocinha de tão estreita e apertada, soltou um grito, uma tomada de alento, talvez. Minha cabeça parecia retumbar com as fortes pulsações. Diante dos meus olhos, girava vertiginosamente um turbilhão de chispas, de um vermelho incandescente. Nossos corpos ficaram colados como se fosse um só... Um só corpo no desejo e na voluptuosa sensação do gozo...
E, como é natural, atingimos perfeitamente o clímax gozando juntos, ao mesmo tempo. Não falávamos. Fazíamos amor com os olhos, com as mãos, com a boca... Exsudáva-mos AMOR por todos os poros. Nossos corpos pareciam ter-se fundido num só para o gozo.
Mas não parou aí. Não deixei Angela descansar. Nossa doce loucura parecia não ter mais fim. Recomeçamos tudo.
Angela cravava as pontas das unhas em minhas costas e dava-me mordidinhas no braço. Acabamos juntinhos mais uma vez.
Eu já não era nenhum jovem, mas uma coisa assim nunca acontecera em minha vida. Continuei agarrado em Angela. Mexe daqui, mexe dali, ficamos preparados para a terceira investida. Dessa vez demoramos bastante tempo. Lá na sala de estar ecoou a melodia da canção Rhapsody in blue. Finalmente, depois de termos gozado pela terceira vez juntos, Angela soltou um gemido de alívio. Conservei-a ainda durante algum tempo apertada nos meus braços. Depois, cautelosamente, fui me retraindo. Ficamos, então, deitados na cama, imóveis, olhando para o teto. A vitrola continuava tocando as melodias de Gershwin. Angela deu-me um cigarro já aceso e acendeu outro para ela. Eu segurava-lhe os seios e ela apalpava minha mão. Sempre calados, continuamos ouvindo a música de George Gershwin. Mais tarde um pouco, não me lembro bem quando, tocou a campainha da porta do apartamento. Angela enfiou o roupão e foi atender imediatamente. Eu a ouvi conversar. Ela voltou para o quarto segurando na mão um buquê de rosas sonja. Deve ser lembrado que estávamos num sábado e eu havia autorizado a Floreal a remeter a Angela, todos os sábados à tarde, um buquê de treze sonjas, pois foi num sábado que nos conhecemos.
Capítulo 53
Eu me dispus desde o início a fazer esse relato minucioso objetivando que ele pudesse representar para Angela um seguro de vida. Eu me achava também compenetrado do dever de, com a ajuda de Deus, concluí-lo à risca no devido tempo. Não se trata da questão de saber o que dizer. Eu sei perfeitamente tudo o que fiz com Angela. Trata-se, isso sim, de uma questão de tempo.
Com fidelidade e exatidão, tomei nota aqui de todas as experiências que vivi com ela, descrevendo-as uma por uma. Só deixarei de relatar um tipo de experiência: o que Angela fazia comigo nos seus impulsos de erotismo, proporcionando-me as mais indescritíveis sensações de volúpia. Creio que trairia Angela se anotasse tais ocorrências da nossa intimidade e me dispusesse a relatar tudo o que fazíamos com tanta freqüência naqueles dias e naquelas noites. Uma só coisa posso declarar: ela gozava e sabia provocar o gozo do amor como nenhuma outra mulher deste mundo. Nada mais posso dizer. Todo o resto constitui o nosso segredo e como tal deve ser guardado. Eu jamais poderia imaginar que uma mulher seria capaz de fazer amor desse jeito, com tal transbordamento de volúpia. Para mim, ela constituía um milagre. O meu milagre. O milagre, a felicidade e o amor que preenchiam minha vida.
Capítulo 54
A vitrola continuava girando. O último disco já havia tocado pela terceira vez quando me levantei da cama.
- Aonde você vai?
- Volto logo, sem demora.
Fui ao banheiro e tirei do bolso do meu paletó os brincos de brilhantes que havia comprado para Angela e que ela me devolvera. Segurando na mão essa jóia, sentei-me na cama, onde ela estava esticada. Ela compreendeu logo o que eu havia ido buscar. Entreguei-lhe os brincos, que ela sem nenhuma hesitação foi prendendo nas orelhas. Saímos juntos para o banho. Nem para entrar na banheira ela tirou os brincos. Debaixo da água, parecia estar usando um finíssimo vestido de soirée, todo confeccionado de branca espuma. Depois do banho, Angela vestiu um roupão bem leve e eu me enfiei num elegante pijama. Ela tirou da geladeira uma garrafa de champanha e fomos para o terraço, onde nos sentamos nas cadeiras de balanço. Como já era do nosso hábito, passamos a contemplar o mar e a cidade enquanto sorvíamos lentamente a bebida e fumávamos. Já estava anoitecendo. As tonalidades do céu e da terra cambiavam a cada momento. Observávamos novamente os gigantescos aviões aterrissando no aeroporto de Nice, ou decolando para sumir nas alturas. De repente, naquele céu que se apresentava como um vapo-roso dossel, surgiu a primeira estrela.
- Você é tudo na vida para mim! - exclamei.
- E também você para mim! - repetiu ela, beijando-me a palma da mão.
Os brilhantes dos brincos luziam refletindo a luz. Sem talar, permanecemos ali sentados durante muito tempo. Apenas nos beijávamos carinhosamente e cheios de ternura.
- Já estou começando a sentir fome - disse ela, quando já estava escuro. - Venha comigo, Robert, meu amor!
Agarrados como duas criancinhas, fomos para a cozinha. La, sentei-me outra vez no banquinho e fiquei observando Angela preparar nossa refeição. Ela fritou os bifes que já havia deixado preparados desde a véspera e fez uma salada.
Como num sonho, via nesse momento concretizado tudo o que desejava... tudo o que eu esperava como suprema manifestação da felicidade neste mundo.
- Já está quase na hora do noticiário - disse ela ao mesmo tempo que ligava o aparelho Sony que estava na cozinha! Em seguida correu para ligar o outro aparelho grande que se encontrava no quarto. Voltou imediatamente e começou a preparar a salada na mesa. Em dado momento, foi passando a sua mão de leve pelo meu corpo. Depois me agarrou com força e, quase aos arrastões, foi me levando para o quarto.
Sempre balbuciando como uma doida, atirou num canto o seu roupão e puxou meu pijama.
- Venha... Venha ligeiro! - exclamou ela, dando a impressão de que estava gemendo.
E foi assim que mais uma vez fizemos amor. Estávamos ofegantes. Inebriados de tanto gozo e de tanta volúpia, parecia que nos havíamos tornado cegos e surdos. Finalmente, com grande alívio, nos espichamos na cama, um ao lado do outro.
Angela interrompeu o silêncio dizendo:
- Sou uma verdadeira louquinha, não é verdade?
- Você é amada - retruquei-lhe. - E conseguiu fazer de mim o homem mais feliz deste mundo.
- E você também fez de mim a mulher mais feliz deste mundo... Mas, meu Deus, e os bifes?!...
Capítulo 55
Os bifes ficaram um pouco passados. Preparamos nossa mesa de refeição na sala de estar. Comemos salada com bastante fiambre e bâtard. Nem dessa vez faltaram aquelas fatias de pão torrado e o bom rosé. Perdêramos o primeiro noticiário da noite. Angela deixara os aparelhos ligados, mas sem som.
Depois do jantar, ajudei a lavar os talheres e a pôr a cozinha em ordem. Angela achou que podíamos tomar mais uma garrafa de champanha. Enquanto íamos esvaziando nossos copos, lentamente, fiz a Angela um pequeno relato dos meus trabalhos nos últimos dias. Ela passou, então, a me contar que a morte de Hellmann e o assassinato de Kilwood constituíam realmente o assunto do dia em todas as rodas. Em Cannes formigava uma verdadeira multidão de advogados e policiais.
Altos funcionários de diversos ministérios se encontravam também na cidade. Todavia, Angela achava que aquela gente fazia todo o possível para não se envolver no caso. Todas aquelas pessoas com as quais ela me havia posto em contato na casa dos Trabaud ainda se encontravam em Cannes. Angela confidenciou-me ter ouvido comentar que elas - isoladamente ou na maioria das vezes juntas - tiveram diversos encontros com o Procurador-Geral Seeberg. Ela conseguira uma série de pedidos de trabalho. Fomos até seu estúdio, onde, orgulhosa, me fez ver o quanto havia sido diligente durante a minha ausência. Depois de termos voltado à sala, ela disse:
- Robert, eu me havia proposto fazer algo. E tenho que satisfazer esse meu propósito ainda hoje. E deve ser exatamente agora!
- O quê?
- Eu pertenço a você e você a mim. Portanto você tem o direito de saber que tipo de vida eu tenho levado.
- Fique quieta aí!
- Não, não quero ficar quieta. Naturalmente, eu já tive outros homens na minha vida...
- Eu já sei. Por favor, Angela, pare de falar!
- Deixe-me continuar! Nenhum desses homens era como você. E não foi a partir de hoje que me dei conta disso: eu havia pressentido tudo desde a primeira vez que você entrou neste apartamento.
- Quando estive aqui com uma roupa malconfeccionada, tão abatido como se estivesse desiludido da vida, não é verdade?
- Sim, Robert. Exatamente como você diz. Logo tive o pressentimento de que você seria o homem que eu iria amar como nunca amei antes. Por isso, de você não quero ocultar nenhum segredo. Nada quero ocultar depois... dessa tarde que passamos juntos! Não quero dizer com isso que foi um grande número de homens que entrou na minha vida, absolutamente. Eu sempre tive mais propensão para uma vida honesta, na minha casa. Vou contar-lhe tudo o que se passou.
- Não! - retruquei-lhe em tom incisivo. - Você não terá que me contar nada! Absolutamente não me interessa saber o que houve na sua vida. Nem quero saber. Para mim não tem nenhuma significação. Naquela época não nos conhecíamos. Jamais poderíamos ter imaginado que viríamos a conhecer. O que houve antes simplesmente não pode ter nenhum significado para o presente. Esqueça, portanto, o que você queria me dizer.
- Oh, Robert! - exclamou ela. - Robert... nunca... nunca... nunca poderia imaginar que viesse a amar tanto!
- Nem eu!
- Foi você que me ensinou a amar com tamanha intensidade. É só a você que devo agradecer por estar amando tanto assim.
Ela atirou-se no meu colo e passou a acariciar a minha face e alisar os meus cabelos.
- Para mim tudo está bem assim mesmo - disse.
- E nada jamais poderá nos separar.
- Nada jamais poderá nos separar, Angela - repeti.
- Só... só aquela única coisa - disse ela soluçando. Novamente o pensamento da morte... pensamento
este que já havia surgido em nossas mentes durante o dia.
- Fique quieta! Deixe de pensar nisso - pedi-lhe, mas ela continuou:
- Se um de nós morrer, o outro deverá acompanhá-lo em breve, você não acha? Pois parece que nenhum de nós poderá viver sem o outro. Você não acha que é assim mesmo, Robert?
- Sim, Angela. Penso que é assim mesmo.
Ela levantou-se e foi buscar um livro que estava sobre uma mesa. Eu já disse no começo deste livro que havia esquecido o nome do autor da obra que Angela me mostrara. Só sei que era um americano, porque ela me disse.
- Aqui está a tradução alemã dos poemas. Entre eles encontrei um que li repetidas vezes nestes últimos dias - disse-me ela, sentando no sofá e colocando os óculos.
Nua mesmo, tendo apenas os óculos sobre o nariz e os brincos de brilhantes fixos nos lóbulos das orelhas, ela passou a ler o seguinte poema:
- "Completamente livre de selvagens inclinações, de temores e de esperanças, agradece à divindade - seja lá qual for o teu deus - por dar ele um fim a cada vida e não permitir a nenhum morto que volte a este mundo. Até o rio mais vagaroso encontra o seu caminho para o mar".
Ela tirou os óculos e deixou o livro cair sobre as pernas.
- Por que você lê uma coisa assim, Angela? Por quê?
- Acalme-se... acalme-se, querido. Eu leio esse tipo de poemas porque agora eu quero viver! Eu quero viver intensamente a vida! É só por isso. Como é óbvio, às vezes ho que pensar naquela coisa também. Acho esse poema maravilhoso. Um poema tão consolador e que nos traz tanta tranqüilidade, Robert. E se Deus permitir, hei de amar você de maneira muito melhor... depois desta vida...
No relógio pendurado na parede, os ponteiros marcavam uma e meia da madrugada.
Havíamos perdido também o último noticiário da noite. Lá embaixo, distantes, brilhavam milhares de luzes das mais diversas cores.
Capítulo 56
Já passava de uma e meia da madrugada e nenhum de nós se decidia a ir dormir. Continuamos ouvindo discos, fumando e bebendo. Bebíamos e fumávamos demais. Angela colocou um candelabro de três braços sobre a mesa e desligou a luz elétrica. Agora, num ambiente iluminado pela luz das velas, ficamos ouvindo música. Permanecíamos sentados no sofá, bem agarradinhos. As chamas das velas de vez em quando bruxuleavam e bizarras sombras projetavam-se pela sala.
Em certo momento, Angela começou a dormir nos meus braços sem que eu notasse. Sua respiração era tão calma! Deixei-a dormir e fiquei ouvindo o seu ressonar e as músicas de Rachmaninoff. Também rezei um pouquinho. Angela não chegou a dormir uma hora.
- Por que você não me despertou quando peguei no sono? - interrogou-me ela com um tom de repreensão na voz.
- Não quis despertá-la. Fiquei contemplando o seu rosto enquanto você dormia. Ele é tão lindo e mais lindo fica quando você dorme. Não quero cometer nenhum pecado ao dizer isso agora, mas o seu rosto é tão lindo como o de qualquer madona. Ainda hei de conseguir fotografá-lo em algum momento em que você estiver dormindo para que você mesma veja como o seu semblante é maravilhoso e como ele irradia uma indefinível sensação de paz.
E o que eu dizia era a pura verdade. Nada havia neste mundo que pudesse irradiar tanta paz como o rosto de Angela, quando ela dormia.
- Mas você não pode me deixar dormir - bradou ela. - Cada vez que eu pegar no sono você deve despertar-me. Você promete?
- Prometo. E a mim também, você me despertará se eu começar a dormir.
- Sim.
- Nós não devemos dormir muito - prossegui. - Enquanto dormimos, não podemos nos ouvir um ao outro nem nos contemplar mutuamente. Enquanto dormimos, cada um de nós deixa de fruir a sensação da presença do outro.
- Na verdade só devemos dormir um pouquinho - disse Angela.
- Estar dormindo é como estar morto - disse eu, com essa idéia de morte mais uma vez se introduzindo no meu cérebro. - A maioria das pessoas desperdiça o seu tempo como se elas tivessem uma existência eterna.
Meu pé esquerdo começou a doer levemente. Continuei:
- Ninguém sabe quanto tempo de vida ainda lhe resta... se um ano, se cinco, se um minuto...
- É verdade, meu amorzinho... Robert?
- O quê, meu coração?
- Venha para a cama. Já estou sentindo novamente um desejo tão grande...
E assim fomos para o quarto e mais uma vez fizemos amor. Depois do gozo, acendemos nossos cigarros e ficamos conversando um pouco. Por fim, Angela não conseguia falar de tão sonolenta. Levantei-me e abri um pouco a vidraça da janela, empurrando-a para o lado a fim de permitir que o ar fresco entrasse para arejar o quarto. Depois, voltei a deitar-me ao seu lado.
- Abraçe-me! - exclamou ela. - Sempre, sempre dormiremos abraçados, não é verdade?
Ela falava com a língua. tão pesada que eu mal podia compreender suas palavras. Abracei-a e assim ela pegou no sono conservando nos lábios um sorriso misteriosamente encantador, que parecia iluminar o seu semblante meigo. Nossos corpos nus sobre a cama formavam um só corpo. Eu continuei desperto e pus-me a contemplar mais uma vez o rosti-nho de Angela e com isso fiquei muito comovido. Finalmente, apoiei-me no cotovelo e fumei mais um cigarro, pois não tinha sono.
Entre o mar e a cidade estendia-se o leito da ferrovia, e durante toda a noite fiquei ouvindo o barulho dos trens. Assim permaneci até algum tempo depois de clarear o dia. Então levantei-me.
Através de uma fenda da janela passei a contemplar a cidade que começava a despertar e a observar o mar que parecia estender-se até o infinito. Encantava-me ver como a tonalidade do céu mudava a cada minuto, com a aproximação do dia. Dei mais uma olhadela no rosto de Angela. Ele me lembrava realmente o rosto de uma madona. Não conseguia despregar meus olhos do rosto dela.
O barulho de um trem que passava feria meus ouvidos nesse instante.
Capítulo 57
Angela dormia profundamente quando me dirigi ao banheiro. Vesti a roupa e deixei-lhe um bilhete: "Às dez horas estarei de volta. Eu a amo. Robert".
Coloquei esse bilhete sobre a mesinha-de-cabeceira, ao lado do rádio transistor.
Na sala telefonei chamando um táxi para levar-me ao Majestic.
O porteiro, entregando-me a chave do quarto, sorriu amavelmente. Não fez nenhum gesto capaz de deixar transparecer alguma insinuação pelo fato de eu ter passado a noite fora. Como são felizes e magníficos os franceses! Não havia no hotel nenhum recado para mim.
Peguei o elevador e fui ao meu quarto. Tomei um banho e fiz a barba. Em seguida vesti a calça branca e a camisa esporte azul. Calcei também os sapatos brancos. Eram as roupas que Angela me havia comprado alguns dias antes. Tinha a impressão de que fazia anos que ela saíra comigo para fazer essas compras. Pedi um chá e tomei a refeição matinal. Depois, fiquei esperando até as nove horas. Então saí do hotel e dirigi-me à filial da Van Cleef & Arpeis. Lá, a minha presença estava sendo aguardada por Monsieur Quémard e um empregado. Eu já me havia comunicado por telefone com Quémard a fim de lhe perguntar se ele, nesse dia, um domingo, poderia atender-me na sua loja. Sem demonstrar a mínima hesitação, deu-me uma resposta afirmativa.
Logo que me viu, mandou abrir a porta de vidro. Alegrou-se sinceramente com a minha visita. Eu levava francos franceses comigo e disse que queria comprar uma aliança.
- Uma aliança, Monsieur Lucas?
- Sim. Por que o senhor pergunta?
- Nós temos também anéis para noivos. É hábito aqui na França presentear a noiva com um anel incrustado de brilhantes. As alianças, pelo contrário...
- Nada de anel de noivado - disse. - Quero mesmo uma aliança.
- Muito bem, monsieur!
Fez-me um aceno com a cabeça, demonstrando ter ficado radiante. Mandou logo o seu empregado trazer um esto-jo revestido de veludo azul com amostras de diversos tipos de aliança.
- Qual deve ser o tamanho? - perguntou-me.
- Deste mesmo tamanho - respondi-lhe, tirando do bolso um anel pertencente a Angela, que eu havia apanhado da sua mesinha-de-catfeceira.
Quémard tirou a medida. Verificou, então, que dispunha de alianças exatamente desse mesmo tamanho. Gostei especialmente de uma com pedrinhas talhadas obliquamente. Custava vinte mil francos.
O próprio Quémard embrulhou-me o estojo com o anel e depois telefonou para chamar um táxi.
Voltei imediatamente à Résidence Cléopâtre. Eu havia levado comigo a chave do apartamento para, no caso de Angela ainda estar dormindo quando eu retornasse, poder entrar sem despertá-la. Mas ela já tinha se levantado. Quando cheguei, estava no terraço tomando café numa xícara grande.
- Robert! - exclamou ela, dando um pulo da cadeira. - Onde você estava? Eu tive tanto medo!...
- Eu lhe deixei um bilhete sobre a mesinha-de-cabeceira.
- Isso não impediu que sentisse um medo horrível quando notei que o seu lugar na cama estava vazio. Só um pouquinho depois foi que encontrei o bilhete. Onde foi que você esteve?
- Feche os olhos!
Ela me obedeceu. Tirei a aliança do estojo e disse-lhe:
- Dê-me sua mão esquerda. Enfiei a aliança no seu dedo.
- Posso abrir os olhos agora?
- Pode.
Ela abriu os olhos cravando-os na aliança cujas pedrinhas de brilhantes luziam com todas as cores do arco-íris. Murmurou:
- Robert!... Passei a explicar-lhe:
- É uma loucura, eu bem sei. Ainda estou casado com outra mulher e já lhe presenteio uma aliança. Mas, refletindo bem não se trata de nenhuma loucura, pois você é a mulher que quero desposar. Posso dizer, portanto, que você é a minha mulher.
- E você é o meu marido! Agradeço-lhe, Robert.
Agradeço-lhe imensamente. Esta aliança já é para as nossas núpcias.
- Sim.
Na sala o telefone começou a tocar.
Capítulo 58
A torre era estreita e bem alta, tendo o aspecto de uma peça saliente que remata o cimo de uma gigantesca coroa. Bem no topo da torre, em torno de uma cabina de pequenas dimensões, haviam sido colocados possantes refletores para iluminar, à noite, as imediações do armazém da estação ferroviária. Essa torre havia sido erigida isoladamente no meio de um parque cimentado. Dentro da cabina, um policial enfiou rapidamente o cano de uma arma através da janela e começou a detoná-la. As balas batiam contra uma janela fechada no primeiro andar de uma casa localizada num beco do outro lado do portão de entrada para a estação. Na frente desse portão viam-se somente duas casas e algumas palmeiras com as folhas empoeiradas. Uma das casas estava pintada de cor-de-rosa e a outra de verde. Tratava-se de construções de um só pavimento, já bem estragadas, com o reboco caindo. Atrás da janela fechada, que recebia os impactos das balas, alguém se moveu e começou a revidar aos tiros do policial. Vi lampejar momentaneamente o cano de uma espingarda colocada no canto de uma outra janela disposta ao lado da que vinha servindo de alvo, cuja vidraça, a essa altura, já havia sido reduzida a estilhaços pelas balas. Essa outra janela estava aberta. Não se podia divisar o ponto exato em que estava entrincheirado o indivíduo que revidava aos tiros. Ele metralhava não somente o abrigo do policial no topo da torre, mas também as imediações da estação, os vagões e os trilhos. Muitos policiais, munidos de pistolas automáticas, abrigavam-se atrás dos vagões, onde ficavam agachados. Eu pulava como urna lebre de um vagão de carga para outro, pois, quando peguei ao local, as balas cruzavam por mim assobiando. O homem que atirava daquela janela parecia ser um assassino louco ou um louco assassino.
Todo o quarteirão estava cercado por policiais e por carros da polícia. Atrás dos cordões de isolamento, comprimia-se uma multidão de curiosos: pescadores, velhos, crianças, mulheres que traziam consigo bolsas de compras. Gente pobre de uma zona miserável. Só consegui atravessar o cordão policial depois de ter pronunciado o meu nome a um oficial de alta patente e de lhe ter explicado que Louis Lacrosse me havia telefonado pedindo-me que comparecesse ao local. Esse oficial já me conhecia de nome através de Lacrosse. Apontou com a mão um vagão, explicando-me que Lacrosse estava do outro lado. Ao correr para o ponto indicado, senti um medo horrível, mas não parei de seguir o meu rumo.
Os policiais entrincheirados nos vagões e nos depósitos de mercadorias, bem como o que se encontrava sobre a torre, davam-me cobertura atirando contínua e ininterruptamente contra a janela daquela casa da Avenue Pierre Semard. Viam-se policiais por todos os lados. Eles fervilhavam nas proximidades daquela estação comprida e de aspecto grotesco. Muitos deles iam se aproximando da casa para formar o cerco, e era provável que alguns já houvessem a essa hora penetrado nela. Estavam fortemente armados e usavam capacetes de aço. A horrível Avenue Pierre Semard começava na Avenue Francis Tonner, na parte norte, e, estendendo-se quase em linha reta na direção-sul, vinha desembocar, lá embaixo, no Boulevard du Midi, ao fim do qual começava o mar. A Avenue Pierre Semard tinha apenas algumas edificações com as fachadas para o lado leste, achando-se completamente aberta no seu lado esquerdo. É ali que se encontra a enorme gare dos armazéns de mercadorias, num verdadeiro emaranhado de trilhos e de pavilhões de depósitos. Essa estação, destinada ao embarque de mercadorias, é a mais horrível e deprimente que vi na minha vida. O Boulevard du Midi, atrás dela, estendia-se paralelamente à plataforma até o mar, que não distava dali mais de cem metros. Naquela zona, tudo era simplesmente imundo e sujo, até mesmo os leques das palmeiras.
Consegui chegar até o vagão que o oficial me apontara. Então vi o baixinho Louis Lacrosse, em traje civil, como era do seu hábito, mas segurando também uma pistola automática.
- Bom dia! - disse-me ele.
Sua voz e sua atitude espantaram-me. Já não era mais aquele funcionário da polícia medroso e submisso. Tornara-se um indivíduo raivoso e dotado de energia para o comando.
- O senhor não tem nenhuma arma?
- Não.
- Mas que idiotas do inferno! Por que não lhe entregaram uma arma? Aqui não estamos brincando de farwest num ataque de índios.
Enquanto conversávamos, as armas de fogo detonavam, as balas pipocavam, vidraças se estilhaçavam, mulheres gritavam desesperadamente, homens vociferavam. Era uma confusão dos diabos.
- O que está acontecendo aqui? - perguntei.
- Eu já lhe havia dito pelo telefone que ainda não tínhamos certeza de qual seria o argelino suspeito entre os mencionados pelo comando policial. Pretendíamos fazer essa busca com o máximo de cautela possível. Cautela uma ova!
Ele escarrou sobre o pó dos trilhos. Sua roupa estava tão suja como a minha calça. Ambos estávamos banhados de suor. O sol estava abrasador.
- Hoje, lá pelas oito horas, saíram diversos funcionários da polícia criminal para fazer sindicâncias a respeito dos argelinos, visitando as suas residências. Esses funcionários formavam sempre duplas e se achavam munidos da competente ordem para dar buscas. A dupla que se dirigiu a essa casa tocou a campainha na porta do maldito argelino. Ele - que se chama Argouad - estava em casa, mas não quis abrir a porta. Nossos homens disseram-lhe que eram da polícia. Ouvindo tais palavras, Argouad resolveu reagir e começou a vociferar.
- Dizendo o quê?
- Dizia que não acreditava em nenhuma das palavras ditas pelos dois homens, que eles não eram da polícia e que, por isso, ele não permitia que dessem busca na sua casa. Em seguida, com a sua arma, deu um tiro através da porta fechada, acertando um dos funcionários no abdome. Esse cachorro do inferno!
Lacrosse deu mais uma cuspida.
Nesse instante ele devia ter vislumbrado algo naquelas janelas do primeiro andar, pois fez pontaria com a pistola e apertou o gatilho.
- Nada! - disse ele, depois de ter atirado.
- E que aconteceu com o funcionário que foi baleado? - Levaram-no para o hospital. Teve que se submeter a uma operação de emergência.
- Será que ele se salva?
- Assim esperamos. Ainda estão operando. Em todo caso, isso provocou um estrondoso alarme. Todos os suspeitos que encontrarmos serão detidos para averiguações. Rous-sel também se encontra aqui. Ele está atrás daquele vagão frigorífico.
Eu não podia vê-lo, mas logo sua voz soou através de um megafone: "Argouad! Argouad! Preste bem atenção! Já estamos fartos disso. A casa está cercada. Se você não se entregar, não sairá vivo daí. Os policiais se encontram enfileirados por toda a escada, desde a entrada até sua porta. Você já acertou um deles. Será que quer piorar ainda mais a situação para você? Jogue sua arma pela janela e saia com as mãos atrás da cabeça".
A voz ecoava por todos aqueles recantos ensolarados. Como resposta às palavras de Roussel, veio mais um tiro.
Lacrosse levava consigo um aparelho transmissor e receptor portátil. Segurando o microfone perto da boca ele disse:
- Letouche, você está me ouvindo aí na torre?
- Sim, estou ouvindo - respondeu uma voz no aparelho.
- Agora, gás lacrimogêneo. Pela janela.
- Está bem!
Coloquei a mão sobre um trilho, mas tive que retirá-la bem depressa, pois o ferro estava tão quente que quase me queimou. O suor escorria abundantemente pela minha face e pela de Lacrosse. De tão molhada, minha camisa colava-se à pele.
Não demorou muito e uma densa nuvem de fumaça branca começou a despontar da janela estilhaçada. De repente, ficou tudo em silêncio. Silêncio durante um minuto... Dois minutos... Então soou uma voz no aparelho de Lacrosse:
- Ele resolveu entregar-se, comissário. Em resposta, fez-se ouvir a voz de Roussel:
- Sejam cautelosos, tomem muito cuidado! Não o matem. Ainda vou precisar muito dele. Se ele atirar, atirem também, mas sem matá-lo.
- Entendido, chefe!
Depois de uma pausa de quinze segundos, a voz prosseguiu:
- Ele está saindo com as mãos atrás da cabeça... Já o agarramos, chefe! Já o agarramos!
- Venham todos! - ordenou Lacrosse e saiu correndo .
Ele atravessou os trilhos e avançou em direção à Avenue Pierre Semard.
Tropecei num dormente e caí. Começou a sair sangue da minha mão, que ficou um pouco esfolada. Num impulso, levantei-me e saí correndo para alcançar Lacrosse. Tínhamos muita dificuldade em passar no meio daquela multidão de curiosos. Como por milagre, meu pé dessa vez não doeu absolutamente nada. Os policiais deixaram-nos transpor o cordão de isolamento. Só quando nos aproximamos da porta da tal casa, foi que vi Roussel, vindo do outro lado. Com uma carabina nos ombros, ele me fez um aceno. Dois policiais surgiram no portão empunhando armas. Seguindo-os, apontou, com as mãos algemadas atrás das costas, para um homem com a camisa para fora das calças. Ele tinha o rosto magro, de aspecto quase cadavérico e a tez acentuadámente escura. Usava bigode e seus cabelos eram bem pretos. Seu comportamento era o de um indivíduo completamente fora de si. Outros dois homens empurravam-no.
- Não me matem! Deixem-me viver! Seus cachorros, não me matem! - berrava Argouad, tropeçando como um cego.
Seus olhos estavam vermelhos e lacrimejavam. Enquanto gritava, tossia tanto a ponto de sufocar-se. Devia ter aspirado uma grande quantidade de gás.
Os homens que o conduziam empurraram-no para dentro do carro da polícia.
Roussel entrou também no carro, postando-se atrás de Argouad. A sirena começou a estridular. Sem pestanejar, o motorista fez o carro arrancar bruscamente, partindo em alta velocidade. Apavoradas, as pessoas atiraram-se para os lados a fim de dar passagem ao veículo.
- Meu carro está lá do outro lado - disse-me Lacrosse.
Arquejando e com o suor a escorrer por todo o corpo, fui seguindo-o. Fazia um calor insuportável nesse dia.
Capítulo 59
Duas horas mais tarde...
Encontrávamo-nos numa das salas de interrogatório do Comissariado Central, eu, Roussel, Lacrosse, dois oficiais da polícia e Argouad. Este último estava sentado numa cadeira no meio da sala. Os demais permanecíamos de pé em torno dele. Um médico dera um calmante ao argelino e tratara dos seus olhos e da sua garganta. Depois disso, deixaram-no ficar sossegado na sua cela durante quase uma hora, isto é, até o momento em que o médico declarou que ele podia ser inquirido. Nesse meio tempo, telefonei para o Carlton a fim de comunicar-me com Kessler, mas ele não se encontrava no hotel e não havia deixado nenhuma comunicação do lugar onde poderia ser encontrado. Então pedi que lhe dissessem, quando chegasse, que deveria pôr-se imediatamente em contato com o Comissariado Central.
Roussel, Lacrosse e os dois oficiais da polícia conduziam o interrogatório. Começaram a metralhar Argouad com perguntas e mais perguntas. Ele quase não tinha tempo para respirar. Estava vestido só de calça e camisa, com os pés descalços. Na sua face, diversos músculos tremiam. Ele só repetia o que, no seu francês com sotaque, já havia dito uma infinidade de vezes.
- Eu não acreditei que os homens que bateram na porta da minha casa eram da polícia. Então atirei.
- Por quê?
- Porque eu não queria que atirassem em mim.
- Quem atirasse?
- Eles.
- Mas eles quem?
Nesse instante, observei que todo o corpo de Argouad tremia. Como todos nós, ele também suava em bicas. Naquela sala não havia boa ventilação. Argouad não respondeu à última pergunta. Dos seus olhos inflamados começaram novamente a brotar lágrimas.
- Responda logo, cachorro miserável! - gritou Roussel.
- Eu... eu... não posso - dizia, gemendo, Argouad, cujo prenome era Jussuf, conforme fiquei sabendo nesse meio tempo. Jussuf Argouad, trinta e cinco anos de idade, administrador de depósito de mercadorias, solteiro...
- Você não responde porque não quer, seu canalha.
- Não! Não! Não! Não posso.
As perguntas matraqueavam com mais rapidez do que os tiros na estação ferroviária. Sem a mínima comiseração, eles não davam a Argouad nem um segundo de descanso, pois ele havia atirado num dos seus colegas, deixando-o em perigo de vida.
- Por que você não pode dizer? - berrou Lacrosse.
- De medo... de medo... Se eu falar, eles me matarão. Eles me matarão em seguida... Eu já não podia mais dormir direito nem comer. Desde que aquele iate voou pelos ares e principalmente nos últimos dias, com a morte do americano, nunca mais tive sossego. Disseram-me que ele havia falado de um certo argelino de La Bocca com o qual tudo começou.
- Quem foi que lhe disse isso?
- Nem me lembro mais... Foi um sujeito num bistrot.
- Mentiroso!
- Não estou mentindo. De fato não me lembro mais...
- Deixe de conversa mole. Você tem que saber!
- Já faz muitos dias que vivo com medo de ser morto. Eu tinha certeza de que de um momento para outro eles apareceriam para me liquidar. Aqueles porcos conseguiriam me liquidar com facilidade... Foi por isso que reagi.
- Que motivo eles tinham para liquidar você? - interrogou Lacrosse, apertando o queixo de Argouad e falando bem em frente ao seu rosto. - Qual era o motivo, Jussuf? Por que eles queriam matar você? Fale, homem!
- Porque eles tinham medo de que eu falasse demais. Mas eu não falei nada. Absolutamente nada. Mas agora...
- Agora você vai falar... Você vai falar de qualquer maneira, nem que isso seja a última coisa que você faça na sua vida - emendou Roussel, falando com veemência. - De um jeito ou de outro você está liquidado. Se o homem que você baleou no abdome morrer, nem adianta você suplicar clemência... Nesse caso, seu pedido de clemência não lhe ajudaria uma merda. Está compreendendo bem qual é sua situação?
- Eu não queria... Eu nem mesmo sabia... Mas ele não morrerá! - gritou Jussuf Argouad, desesperado. - Eu não queria fazer isso!
- Não queria fazer mas fez, não é?
- Mesmo que eu não fale nada, vou ser condenado à pena máxima por ter atirado naquele policial - disse Argouad, que inopinadamente passou a falar num tom de voz mais baixo e calmo. - E se falar, eles me matarão...
- Enquanto estiver na prisão, ninguém matará você - disse Roussel.
- Mesmo assim eles conseguirão! Sempre conseguem matar qualquer indivíduo, esteja ele onde estiver. Eles têm gente espalhada por toda parte. Conhecem tudo. Não há nada que eles não descubram.
- Se você nos disser tudo o que sabe, será vigiado dia e noite na sua cela da prisão. Não ficará um segundo sem a nossa vigilância. Eu prometo isso a você. Entretanto, se continuar com a boca fechada, não desembuchando logo tudo o que sabe, prenderemos você e não o vigiaremos... Então, sim, poderá acontecer o que você teme... Afinal, pensando bem, aqui existe um montão de prisioneiros. Facilmente algum deles pode conseguir uma lima... ou dois deles, uma corda... Então, enquanto você estiver dormindo, ou na hora em que você for mijar...
- Parem com isso! - gritou o argelino. - Parem com isso! Tenham a bondade...
- "Tenham a bondade..." já está melhorando... - atalhou Roussel, que devido a sua altura tinha sempre que se curvar quando falava com o prisioneiro. - Se você não falar agora mesmo, vamos encarcerá-lo. Aí, sim, poderá acontecer que eles façam você esticar as canelas. Compreendeu direitinho?
O argelino respondeu afirmativamente com um meneio de cabeça.
- Então?
- Eu vou falar - declarou Jussuf Argouad.
Capítulo 60
As fitas de um gravador colocado sobre a mesa da sala de interrogatório começaram a rodar. Argouad falava continuamente interrompido pela tosse que quase o sufocava.
- Um sujeito me procurou para falar comigo... Eu nunca o tinha visto antes... Aí ele disse que sabia que eu trabalhava na estação ferroviária como administrador do armazém de mercadorias... e que num dos depósitos estava guardada dinamite... para dinamitação de pedras no monte Esterel. Uma grande quantidade... E que eu devia arranjar-lhe dinamite. Ele, também, me deu dinheiro. Muito dinheiro.
- Quer dizer, então, que você lhe arranjou a dinamite, não é verdade? - interrogou Roussel.
- O dinheiro era muito. Eu sou pobre... Afinal, eu queria fazer alguma coisa diferente daquele trabalho infame lá da estação. E era mesmo muito dinheiro!
- Quanto?
- Cem mil francos. Francos novos. Ele prometeu me dar o dinheiro logo que eu lhe entregasse o que ele queria. Então roubei a dinamite. Era muito pesada. Todas as caixas estavam bem fechadas e marcadas. Eu precisei da ajuda de um colega. Mas ele não está mais aqui. Faz muito tempo que foi embora. Não sei onde se meteu. Quando recebi o dinheiro, dei-lhe vinte e cinco mil francos.
- Muito bem... Então você roubou uma caixa de dinamite...
- Juntamente com um colega.
- E entregou-a ao tal indivíduo?
- Sim.
- Quando?
- No dia 5 de maio. Era uma sexta-feira, dia em que recebo meu ordenado semanal. Por isso eu me lembro bem.
- E quando foi que o homem lhe falou pela primeira vez?
- Dois dias antes. No dia 3 de maio... Mas posso ter certeza de que vou ser bem vigiado na minha cela?
- Se você contar tudo, pode ter certeza. Do contrário, não.
- Eu vou contar tudo... Sim, eu vou contar tudo...
- Você agora já sabe para que fim o tal homem precisava da dinamite, não é verdade?
- Eu não sei nada.
- Jussuf, não nos venha com essa balela, sim? - disse Lacrosse, o baixinho Lacrosse, que se havia transformado de maneira inacreditável. Ele falava com uma voz ameaçadora. - O iate de Hellmann voou pelos ares. Você mesmo já se referiu a isso. E voou pelos ares em conseqüência de uma explosão de dinamite. Foi a dinamite que você arranjou.
- Não... não...
- Não diga que não! Você sabe perfeitamente que foi com essa dinamite que eles provocaram a catástrofe. O explosivo foi colocado dentro de um aparelho infernal. Você não lhe forneceu esse aparelho também?
- Não!
- Ou peças para fabricá-lo?
- Não! Não!
- Lindo! Mas você, embora como simples amador, não lhe teria prestado sua ajuda trabalhando para a construção do tal engenho?
- Não. Juro que não. Eu só arranjei a dinamite.
- E você tem coragem de jurar?
- É a pura verdade o que estou dizendo. Por que eu haveria de mentir nesta situação?
- Porque você é um patife, um crápula, um ladrão e um criminoso que agora está se cagando todo de medo!
- Exatamente porque estou me cagando de medo e porque serei protegido, estou lhe contando tudo direitinho, senhor comissário.
- Muito bem. Então quer dizer que você só forneceu a dinamite.
- Só a dinamite. Eu juro...
- Cale a boca! E só com isso você recebeu toda aquela grana, não é verdade?
- Sim, recebi.
- Assim sendo, outra pessoa deve ter construído o aparelho...
- Sim, deve ter sido qualquer outra pessoa.
- Bem, agora diga-nos como se chamava o indivíduo a quem você entregou a dinamite.
- Não sei.
- Oh, claro que não! Como poderia ser outra a resposta? !
- De fato, não sei. Então o senhor acha que ele iria me dizer o nome dele?
O telefone tocou.
Lacrosse levantou-se e atendeu, falando durante uns dois minutos. Dando a impressão de ter ficado mais aliviado, disse:
- Foi do hospital que telefonaram. A operação terminou. Se não sobrevier alguma complicação, o nosso homem escapará.
Argouad caiu de joelhos, exclamando em voz alta:
- Agradeço-vos, Alá! Agradeço-vos!
- Pare com essa encenação!
Lacrosse, puxando Argouad pela camisa, fê-lo sentar-se de novo, mas ele não parava de expandir sua satisfação.
- Pare com essa encenação, eu já disse! Você tem mais sorte do que juízo, seu saco de bosta!
- Ele vai escapar!... Ele vai escapar! - bradava Argouad. - Eu não o matei. Não sou um criminoso.
- Pare com isso! Está me ouvindo? Pare já! Ainda temos muito que conversar. Já que você não sabe o nome do tal homem, diga-nos, então, como era a aparência dele.
Argouad respondeu tremendo:
- Na realidade não era nenhum homem. Era uma mulher.
- Uma mulher?!
- Sim, sim, uma mulher.
- E, como era de imaginar, também o nome dela você não sabe, não é verdade?
- Claro que não.
- Então faça-nos a descrição de como ela era. Depressa! Descreva-a com todos os detalhes.
- É difícil - ponderou Argouad. - Foi de noite que nos encontramos. Mas tenho certeza de que ela não era daqui.
- Não era daqui? Como é que você poderia saber isso?
- Por causa do francês que ela falava. Tinha muito sotaque. Notei logo que ela não era francesa.
- E se ela não era francesa, de onde você acha que ela era?
- Da Itália. Eu tenho amigos que vieram daquele país e eles falam do mesmo jeito. De Milão ou talvez de Gênova. E... e... a aparência dela... Ela era corpulenta e tinha força... muito mais força do que eu... Estou dizendo a verdade... a pura verdade, juro por Deus! Ela era robusta e tinha tanta força como qualquer brutamontes, e nesse nosso encontro...
- Nesse encontro o que é que houve? - perguntou Roussel.
- ...coisa estupenda!... Enquanto eu falava com ela, não podia deixar de pensar em minha mãe...
- Pensar em sua mãe? Por quê?
- Porque essa mulher era como uma mãe... uma mãe para todos... Ela possuía algo de maternal, o senhor me compreende?
Capítulo 61
Em dois carros rodamos para Cannes.
Aqui e ali pessoas atravessavam a rua. Os carros paravam nos sinais, não ultrapassando as faixas. Nossos carros, entretanto, avançavam o sinal vermelho. Eu estava sentado ao lado de Roussel. Lacrosse se postara no banco dianteiro, ao lado do chofer. Ocupávamos o primeiro carro. O segundo so transportava funcionários da polícia criminal.
Trafegávamos através das ruas calmas do bairro nobre Les Vallergues. Era ali que começava a propriedade de Hellmann, com seu muro bem alto encimado por uma cerca de arame farpado e pontiagudas setas de aço. Deparamos com o grande portão de entrada no parque.
Ambos os carros estacaram rangendo os pneus. O porteiro, que eu já conhecia, saiu de sua guarita. Ele continuava usando uniforme branco com botões de metal e galões dourados. O chofer do nosso carro buzinou.
O porteiro fez-lhe sinal para que descesse do carro.
- Ele não deixa nenhum carro penetrar no parque - expliquei.
- Ah, é assim?! - bradou Lacrosse, furioso. - Esperem um momento.
Ele desceu do carro e saiu correndo em direção ao portão. Exibiu ao porteiro as credenciais de funcionários da polícia e começou a vociferar com ele.
Não consegui ouvir o que ele dizia, mas suas palavras devem ter sido muito ameaçadoras, pois o porteiro, assustado, pôs-se a abrir o portão enquanto Lacrosse voltava para tomar seu lugar no carro.
- Cachorro estúpido! - exclamou.
Nosso chofer fez o carro arrancar. O outro carro seguiu-nos. Penetramos naquele parque com suas palmeiras, cedros, ciprestes e oliveiras. Atravessamos aquele túnel formado pelos galhos de velhas árvores frondosas. Ali estavam os bancos de pedra e as figuras talhadas igualmente em pedra, que apresentavam rachaduras. Mais uma vez surgiram à minha frente aquela piscina sem água, os canteiros cheios de flores perto da rampa de entrada, o gigantesco chafariz que formava um encantador arco-íris ao receber os brilhantes raios de sol.
Nossos carros frearam, fazendo-ranger os pneus no chão de saibro.
Passamos entre as colunas da mansão, dirigindo-nos à entrada. A porta, da qual pendia uma pesada argola de metal, estava fechada. Lacrosse começou a dar pancadas na porta sem parar, com a argola. Não demorou muito e apareceu um criado, também todo de branco.
- Somos da polícia - rosnou Lacrosse.
- O porteiro já nos telefonou comunicando a chegada dos senhores - gaguejou o homem. - O que... o que significa isso? Os senhores não podem fazer tanto alarme. Madame está passando mal... muito mal.
- Onde está ela?
- Na cama. Lá no seu quarto.
- Conduza-nos até lá.
Mas... não posso. Eles vão me botar para fora
- Ninguém vai botar você para fora do emprego. Ligeiro! Ande! Ligeiro! - ordenou Lacrosse.
Em poucos instantes, já nos encontrávamos no saguão.
Vi quando os funcionários da polícia criminal saltaram do carro e começaram a cercar a casa. Só um deles se juntou ao nosso grupo. Postados nas diversas portas existentes ali no saguão, os empregados nos observavam cheios de curiosidade.
- Vamos subir pela escada! - ordenou Lacrosse. Fomos subindo, passando diante de quadros de Rubens, Botticelli, El Greco, Vermeer van Delft e de enormes gobelinos. Comecei a sentir novamente o perfume de diversas flores. Lá estavam ainda as estatuetas de marfim nos seus nichos na parede. Passamos pelo corredor do primeiro andar, onde primeiramente se descia e depois se subia uma escadinha de três degraus e onde se viam muitos quartos de cada lado.
O criado, bastante nervoso, bateu na porta da ampla sala que eu já conhecia. Uma das mulheres encarregadas da limpeza e da arrumação, que eu não vira quando lá estive da outra vez, abriu a porta.
- Estes senhores... - começou a falar o criado. Lacrosse empurrou-o para o lado e passou a interrogar a mulher:
- Onde está madame? No quarto dela?
E, sem mais conversa, avançou em direção à porta do quarto da irmã de Hellmann. Antes de ter atingido a porta, esta se abriu, surgindo à nossa frente o vulto de Hilde dos Brilhantes, que parecia um macabro fantasma. Sua peruca, como da outra vez, estava fora do lugar. Ela estava pálida. Irazia, atirado sobre as costas, um casaco bordado, cor-de-rosa. Nesse dia, Hilde dos Brilhantes usava um antigo colar com o correspondente anel, no qual estava incrustado um enorme brilhante. Além desse, ela enfiara no dedo outro anel com uma grande pérola, acompanhada de mais dois jrilhantes de considerável tamanho. Como a peruca estava deslocada para a frente, pude notar que a sua pele, atrás das oelhas, estava amarelada, franzida e cheia de pigmentos, como acontece quando o cirurgião, ao efetuar uma operação plástica no rosto, distende fortemente a pele, puxando o tecido cutâneo supérfluo para trás, onde ela cicatriza.
Aquele roupão cor-de-rosa combinava perfeitamente com os olhos com que Hilde, fora de si de tanta raiva, nos fitou quando entramos.
- Mas que desaforada falta de respeito é essa? Inspetor Lacrosse, o senhor ainda hoje vai ver com quem é que está se metendo e praticando confiadamente tais abusos! E o senhor também, Sr. Lucas. Vou telefonar imediatamente para Düsseldorf.
- Eu julguei que a senhora quisesse que eu continuasse investigando o assassinato do seu irmão - respondi-lhe.
- Ah, fique quieto, seu bobo! - gritou ela. Depois, dirigindo-se ao corpulento Roussel, disse:
- E o senhor, monsieur, eu farei...
- A senhora não fará nada a não ser parar com essa gritaria. Não é sem razão que aqui estamos, madame. A coisa está ficando preta para o seu lado.
- Os senhores é que verão...
Bruscamente, Hilde dos Brilhantes começou a vacilar. Não fiquei sabendo se ela estava realmente tonta ou se estava fingindo.
- Estou passando mal - gemeu ela.
- Onde está a irmã-enfermeira?
- Anna?
- Sim, Anna. Onde está ela?
- Não sei.
- Mas que significa isso? A senhora não sabe onde ela está?!
- Depois do café dormi um pouquinho. Foi ela quem me acordou. Foi, portanto, só- na parte da manhã que vi Anna. Depois ela se retirou para seu quarto. Ora, acordei às sete horas e agora são três da tarde.
Lacrosse interrogou a mulher que fazia a limpeza:
- Onde fica o quarto da irmã-enfermeira?
- No segundo andar, monsieur.
- Conduza-nos até lá!
Com a voz estridente, Hilde dos Brilhantes voltou a falar:
- Os senhores não podem fazer isso! Os senhores possuem uma autorização judicial para dar buscas na casa?
- Não - respondeu Lacrosse calmamente -, e estamos dando pouca importância a tal tipo de autorização.
Depois, dirigindo-se à mulher que fazia a limpeza, a qual mostrando-se hesitante, não parava de olhar para Hilde, como que a suplicar ajuda, disse:
- Depressa, ande! Faça o que o comissário ordenou. Do contrário, pode lhe acontecer o pior.
- Bem os senhores podem ir ao quarto dela, mas eu os acompanharei - disse a irmã de Hellmann, com os olhos faiscando de ódio.
- Mas acho que a senhora está passando mal - ponderei.
- E o que o senhor entende disso, Sr. Lucas? - Bruscamente sua voz começou a parecer-se com a de qualquer vagabunda do basfond. - Trate de cuidar das suas merdas e deixe os outros em paz. Vamos, sigam-me!
Ela amparou-se no meu braço. Fomos caminhando pelo corredor em direção à escada de mármore que conduzia ao segundo andar. Aí as portas dos quartos não eram muito altas.
- É aqui - disse finalmente a arrumadeira. Roussel bateu na porta, chamando:
- Madame Anna?! Nenhuma resposta.
- Madame Anna, por favor, abra a porta. É a polícia! - Não se ouvia o mínimo ruído lá dentro.
- Será que ela fugiu? - cochichei ao ouvido de Lacrosse.
- Toda a casa está cercada. Se ela se encontrava aqui quando chegamos, ainda deve estar aqui, não é, Jules?
O funcionário da polícia criminal que nos acompanhava avançou e começou a sacudir com força o trinco da porta.
- Está trancada - disse ele, e inclinou-se um pouco para espreitar através do buraco da fechadura.
- A chave não está na fechadura.
- Vamos arrombar a porta - ordenou Lacrosse.
- Que estúpida monstruosidade! - berrou Hilde dos Brilhantes.
- Fique quieta aí! - retrucou-lhe Lacrosse, o baixinho que outrora tinha tanto medo dos ricos e dos grandes.
O funcionário, um indivíduo robusto, lançou, com toda a força, o corpo de encontro à porta... uma... duas vezes... No terceiro impulso a porta voou, fazendo o homem cambalear para dentro do quarto. Nós o seguimos. Era um quarto espaçoso, de estilo antigo, com janelas em forma de arcos.
Mal Hilde dos Brilhantes colocou o pé dentro do quarto, soltou um grito de pavor. Perdeu o equilíbrio, ameaçando cair de costas. Num salto, aproximei-me dela, agarrando-a a tempo de evitar que tombasse no chão. Ela desmaiara. Se essa atitude foi simulada, então deve-se dizer que ela representou o papel com o máximo de perfeição. Por não agüentar seu peso, deixei-a cair, apenas evitando que sofresse o impacto do baque.
- Caramba! - exclamou Lacrosse.
Numa cama bem larga estava estendido o corpo da irmã-enfermeira Anna, de Milão, aquela mulher forte e corpulenta, mas ao mesmo tempo de aspecto matemal. Achava-se vestida com o hábito branco - só que agora ele não era mais dessa cor. Nem tampouco seu semblante tinha aquele aspecto maternal. A cabeça da mulher estava caída de lado e os olhos pareciam estar contemplando fixamente a parede. A boca apresentava-se desmesuradamente aberta. O hábito branco, na parte superior, achava-se completamente ensopado de sangue. O cabo de um grande punhal cravado no seu peito estava à mostra...
Capítulo 62
Decorrida meia hora, os peritos criminais já se encontravam no local. Acompanhavam-nos o baixinho Dr. Vernon, médico-legista, e o caçador de sonegadores de impostos, Kessler. Este havia telefonado do Carlton para saber se havia algum recado para ele. Então, no Comissariado Central, informaram-no de que ele deveria vir até aqui. Kessler observou a irmã-enfermeira morta e ficou horrorizado.
- Quem poderia ter feito isso?
Lacrosse em rápidas palavras informou-o das ocorrências desse dia. Depois de ter feito um relato sucinto, passou a responder à pergunta de Kessler:
- Só podia ter sido alguém que queria calar a irmã-enfermeira antes que ela revelasse algo, especialmente agora que o argelino abriu o bico.
- Mas como o assassino poderia saber que o argelino havia falado?
- Ele poderia facilmente ter chegado a essa conclusão. Talvez tivesse até presenciado a caçada policial. Depois dessa caçada, fizemos ainda o interrogatório do argelino. O assassino teve, portanto, tempo suficiente para cometer o crime - ponderei.
- O argelino! - exclamou Kessler com ar meditativo. - Estive toda a manhã com Malcolm Thorwell no campo de golfe. Tentei espremê-lo como quem espreme um limão para que ele falasse sobre as suas relações de negócio orn Kilwood, bem como sobre as relações de toda aquela sente com ele. Comentamos, também, a atitude de Kilwood, que se referiu, berrando, a um certo argelino de La Bocca. Thorwell respondeu-me que Kilwood não passava de um beberrão e que esse tal argelino nunca existiu. Entretanto, misericordioso Deus, agora sabemos que o argelino existe mesmo. Kilwood, o bêbado, disse a verdade!
- Ele realmente disse a verdade - repetiu Lacrosse, de mau humor. - E por isso foi morto. Porque alguém tinha medo de que ele viesse a revelar mais coisas ainda... Exatamente pelos mesmos motivos pelos quais agora a irmã-enfermeira foi assassinada.
Os homens da polícia criminal se movimentavam de um lado para outro, tirando fotografias do cadáver e colocando pó de grafite sobre todos os móveis a fim de verificar a existência de impressões digitais.
Terminaram de examinar o cadáver na parte que lhes competia e, então, o médico baixinho deu início à sua tarefa.
- Não quero ser importuno nem insistente, mas não seria possível dizer-nos a que hora mais ou menos foi cometido o crime, Dr. Vernon? - interrogou Lacrosse.
- É evidente que ainda não, crianças - respondeu Vernon, soltando uma daquelas suas costumeiras risadinhas abafadas e enxugando o suor que lhe escorria pela testa.
- Apenas uma idéia aproximada da hora...
- A rigidez cadavérica já começou. Que horas são? Quatro e meia da tarde. Apesar do calor, já existe rigidez cadavérica. Mas deve-se levar em conta que o quarto dispõe de ar-condicionado. Muito bem, crianças... pois vocês não passam mesmo de umas crianças... sem compromisso e apenas com base na minha experiência, posso adiantar que essa mulher não foi apunhalada antes das dez horas nem depois das onze.
- Como o senhor bem pode ver, o assassino dispôs de tempo suficiente - disse Lacrosse a Kessler.
- Mas a porta do quarto estava fechada e não encontramos nenhuma chave - ponderei.
E porque o assassino levou-a consigo. Ou a assassina. Num caso desses devemos considerar possível até as hipóteses mais absurdas - disse Roussel.
- É claro. Mas como poderia o criminoso ter entrado na casa? Especialmente numa casa como esta? - perguntei.
- Não sei - respondeu Roussel. - Talvez ele até se encontrasse aqui dentro.
- Algum empregado? - interrogou Kessler.
- É uma hipótese digna de se levar em conta. Ou a própria Hilde dos Brilhantes.
- Por que não poderia... - comecei, mas interrompi a frase.
- Sim, isso mesmo! - prosseguiu Lacrosse, balançando energicamente a cabeça. - Você queria perguntar exatamente isso: "Por que não poderia ter sido a própria Hilde dos Brilhantes?" Não era isso que você queria perguntar? Bem, agora eu mesmo pergunto: por que não poderia ter sido ela própria a assassina? Conforme verificamos, ela pode caminhar perfeitamente e não anda tão doente assim... Além do mais, a arma do crime é daqui da casa mesmo, pelo que ficamos sabendo agora.
Os policiais tinham constatado que o punhal estivera enfiado numa bainha muito velha e toda ensebada, que se achava pendurada na parede da escadaria.
- Que é que há com relação às impressões digitais? - perguntou Roussel a um dos peritos.
Sacudindo os ombros, ele respondeu:
- Evidentemente muitas impressões da morta e uma boa porção das de outras pessoas. Pode tratar-se de impressões da mulher que fazia a limpeza, dos criados ou de qualquer outra pessoa que tivesse entrado antes no quarto. Primeiro temos que examiná-las todas.
- Que merda! - exclamou Lacrosse. - Este vai se tornar um caso igual ao de Kilwood, já estou prevendo.
O criado que nos introduzira na casa aproximou-se de nós.
- Desculpem-me, senhores, mas madame está se sentindo muito mal. Será que o médico-legista não poderia atendê-la bem depressa? Seu médico particular só chegará daqui a meia hora.
- Claro que sim, criança, claro que sim - cacarejou Vernon com uma aparência engraçada. - O bom tio doutor aqui já vai. Voltarei sem demora, meus senhores.
- E Monsieur Lucas poderia também ir até a presença de madame?
- Eu?! - interroguei surpreso.
- Madame pediu insistentemente que o senhor fosse ter com ela.
Então ambos descemos até o pavimento térreo. Hilde dos Brilhantes achava-se estendida sobre o seu leito estilo rococó movendo a cabeça, irrequieta. Seus dedos deslizavam nervosamente sobre o cobertor. O perfume de diversas flores que invadia o quarto era sufocante. Enquanto o Dr. Vernon examinava Hilde dos Brilhantes, fiquei espreitando, através de uma abertura da veneziana, os canteiros de flores lá embaixo e lembrei-me, então, do momento da despedida por ocasião da minha primeira visita a essa casa. Seeberg acompanhou-me até aquele esquisito jipe que me aguardava para transportar-me até o portão de saída. Depois que o veículo já havia andado um pouquinho, virei-me e lancei o olhar na direção do primeiro pavimento. Postadas à janela - que devia ser esta mesma perto da qual me encontrava agora -, estavam duas pessoas segurando a cortina levantada, com o rosto comprido contra a vidraça: Hilde dos Brilhantes e a irmã-enfermeira Anna. Logo que notaram que eu as estava observando, deixaram cair a cortina com a rapidez de um raio. Eu nunca vira antes em minha vida rostos humanos tão desfigurados pelo terror como os daquelas duas criaturas. De que será que Hilde dos Brilhantes tinha medo? E por que razão a irmã-enfermeira também se mostrava tão apavorada? Estará também Hilde dos Brilhantes em perigo de vida devido a alguma ameaça? E provável que ela esteja correndo perigo idêntico ao da sua enfermeira, pensara, já que ambas revelavam, na expressão dos seus semblantes, compartilhar do mesmo temor. Não... essa minha suposição não pode estar certa. Ambas estavam com medo, mas só uma delas foi assassinada. Estará certo o meu raciocínio?
Ouvindo a voz de Vernon, virei-me.
- ...tudo está em ordem agora. Foi apenas um pequeno choque. Meu honrado colega que a atendeu ministrou-jne um bom calmante de efeito seguro. Sob a minha responsabilidade, antes mesmo da chegada do seu médico, tome estes dois...
Ele apoiou a cabeça de Hilde e segurou o copo com água, dando-lhe os dois comprimidos, que ela engoliu.
- A senhora verá como dentro de alguns minutinhos se sentirá melhor, madame.
Por que será que assassinaram Anna? - murmurou ela. Na cama, ela vestia uma blusa de malha sobre a camisola. E estava com suas jóias, como era de prever.
- Nada sabemos ainda. A senhora tem alguma suspeita? - perguntou-lhe Vernon.
Ela meneou a cabeça negativamente.
- Bem... devo voltar ao meu serviço.
- Quero que o Sr. Lucas fique aqui comigo por uns minutos.
- Bem... se esse é o seu desejo... Mas a senhora agora não deve falar muito.
Vernon, estando já na porta para sair, voltou-se para mim e disse:
- Só cinco minutos!
Quando ficamos a sós, Hilde dos Brilhantes me fez um sinal para que eu me aproximasse dela. Então, como que cochichando, disse-me:
- Dois milhões?
- O quê?!
- Dois milhões de marcos. - Ela segurava apertadamente um botão da minha camisa. - Pagar-lhe-ei quando o senhor conseguir que toda essa gente seja passada no fio da faca...
Ali estava ela com aquela lengalenga de novo.
- Sim, Sra.Hellmann - respondi-lhe.
- Como o senhor bem pode ver, eu tenho razão para tanto. Essa gente não recua diante de nada. já liquidaram meu irmão, já liquidaram Kilwood, depois Anna. Amanhã será a minha vez. Eu tenho medo! Medo! - Ela puxava com força o botão da minha camisa, sacudindo-o quase a ponto de arrancá-lo.
Custei a desembaraçar-me dela.
- Farei todo o possível. A polícia também.
- Oh, a polícia! A polícia é que não vai fazer nada mesmo. Nada! O senhor, Sr. Lucas, é o único que poderá fazer alguma coisa. Faça algo antes que seja tarde demais, eu lhe suplico. O senhor quer o dinheiro já? O senhor aceita um cheque?
- Voltarei de novo - disse-lhe eu. - Primeiro tenho que falar com o seu procurador-geral.
- Seeberg?
- Sim. Onde está ele?
- Ele viajou hoje cedo para Frankfurt. Foi solicitada com urgência a presença dele no banco. Obteve autorização da polícia para sair de Cannes. Dentro de alguns dias estará de volta. O que o senhor deseja de Seeberg?
- Direi a ele pessoalmente.
- Bem... bem... Então o senhor aceita minha proposta? O senhor vai liquidar esses brutos? O senhor terá cuidado para que não escape nenhum deles?
- Naturalmente, Sra. Hellmann.
O perfume daquela enorme quantidade de flores causava-me náuseas. Como podia uma criatura dormir num quarto assim?
Capítulo 63
A Roussel e Lacrosse competia proceder às sindicâncias de rotina com relação a esse novo assassinato. Entrei em entendimento com eles para que, de três em três horas, me pusessem a par do andamento das investigações, pois eu devia sair logo para dirigir-me à casa de Madame Delpierre.
Fiz esse pedido a Lacrosse, e ele concordou sem nenhuma expressão de desagrado. Um carro da polícia levou-me até o Majestic. De lá, expedi dois longos telegramas cifrados a Gustav Brandenburg. No primeiro, relatei o assassinato da irmã-enfermeira Anna Galina. No segundo, pedi que ele procurasse averiguar os seguintes fatos: a) se Seeberg se encontrava realmente em Frankfurt; b) em que avião ele havia chegado àquela cidade; c) finalmente, que procurasse obter informações sobre a data do seu regresso a Cannes.
Ora, Gustav sempre se gabava de conseguir subornar facilmente as pessoas. Que ele desse uma prova disso agora.
Passei os telegramas com a indicação de urgentes. No meu quarto mudei de roupa e telefonei para Angela. Em lugar dela, atendeu-me Álphonsine Petit, a arrumadeira do apartamento, que se mostrou muito cordial comigo.
- Madame esperou o seu telefonema durante muito tempo, monsieur. Agora ela já saiu. Há uns dez minutos, talvez.
- Para onde?
- Para a igreja. Ela mesma pediu que lhe comunicasse isso quando o senhor telefonasse.
- "Obrigado.
Logo que larguei o fone, senti uma dor inesperada no lado esquerdo do peito. Tive que me contrair, mas ela não durou muito.
Capítulo 64
A pequena igreja russa estava escura e fresca. Depois que meus olhos se acostumaram com a penumbra, vi Angela. Estava sentada diante do ícone da madona, em frente do qual havia muitas pontas salientes para espetar as velas. E sem dúvida Angela já havia colocado e acendido uma vela, pois quando a vi ela estava olhando fixamente a chama com as mãos juntas, tal qual uma criança.
Fui para perto dela, sentei-me ao seu lado e dei um beijo nos seus cabelos. Ela não se mexeu. Seus lábios se moviam numa prece silenciosa. Eu não juntei as mãos, mas fiquei igualmente contemplando a chama da vela, a madona negra, e rezando. Dessa vez consegui rezar. Pedi a Deus que nos ajudasse e que dispusesse as coisas de tal modo que Karin concordasse com o divórcio imediatamente, a fim de que pudesse me casar com Angela.
Depois de ter feito minha prece, continuei sentado ao lado de Angela, que fechara os olhos e estava completamente absorta em meditação. Ouvi um ruído de passos atrás de mim, mas não me virei. Esperei até que Angela abrisse os olhos. Ela pegou minha mão e levantou-se. À porta de entrada da igreja um jovem sacerdote estava afixando avisos num qua-dro-negro. Dirigimo-nos a ele. Inclinou a cabeça para nós com um sorriso amável nos lábios.
Angela parou na frente dele, fitando-o durante algum tempo.
- Posso ser-lhe útil em alguma coisa, madame? - interrogou o jovem sacerdote delicadamente.
Usava uma batina bem comprida e os cabelos caíam-lhe até os ombros. Tinha olhos cinzentos e lindos. Sua voz soava repassada de bondade.
- Père? - exclamou Angela baixinho. - Vejo que é o senhor mesmo. Reconheci sua voz. Sim, não há dúvida, é o senhor mesmo.
- Quem a senhora está dizendo que eu sou?
Lá fora, no jardim coberto de inço e de capim, as crianças brincavam. Seus gritos alegres invadiam a igreja.
- Se eu lhe disser quem sou, certamente o senhor não se lembrará. Já faz três anos. Foi na noite de 10 para 11 de junho de 1969, para ser mais precisa. Naquela noite, lhe telefonou uma mulher que queria terminar com a vida. Não, o senhor não poderá lembrar-se disso.
- Eu me lembro perfeitamente - disse ele. - Essa mulher achava-se muito desesperada. Ela estava sozinha em casa. Tivera experiências dolorosas com um homem. Contou-me que era obrigada a freqüentar a alta sociedade e participar constantemente dos bailes de gala por causa da sua profissão. Confidenciou-me que era forçada a apresentar-se sempre alegre perante a sociedade, sem nunca deixar transparecer seus cuidados e preocupações. Fiquei durante muito tempo aguardando a sua visita, madame.
- O senhor se lembra realmente?
- Como se fosse ontem. Durante todos esses anos, nunca deixei de pensar na senhora. Tinha a certeza de que a senhora apareceria algum dia. E eis que agora a senhora se encontra aqui na minha presença. E, pelo que vejo, está feliz.
- Mais feliz do que eu poderia esperar, père. E essa felicidade eu devo e agradeço ao senhor. Na ocasião, não o procurei porque tinha vergonha. Depois tomei a decisão de visitar esta igrejinha... porém só faria essa visita quando me sentisse feliz novamente, quando não mais me encontrasse tão sozinha no mundo.
- E agora isso ocorreu, não é verdade?
- Sim. Já não estou só. Agora encontrei o homem que amo realmente.
- E eu também amo esta mulher, padre - emendei.
- Meu nome é Ilja. Podem chamar-me de Irmão Ilja, pois sou ainda jovem.
Nós também lhe dissemos nossos nomes e ele apertou-me a mão.
- Alegro-me pelo fato de a senhora ter encontrado felicidade e paz, Madame Delpierre. - Ele falava fluentemente o francês, embora com um pouco de sotaque russo. - Como os senhores vêem, todo sofrimento passa. Deus ama as criaturas. Ele também precisa delas. Que seria dele sem as suas criaturas?
- Na verdade encontramos a felicidade, mas até agora não encontramos a paz - disse Angela. - Monsieur Lucas é casado.
- Oh! - exclamou o padre.
- Já vivo separado da minha mulher, mas continuo casado - expliquei-lhe.
- Compreendo.
Ele olhou as mãos e depois nos fitou.
- Digam-me algo mais a respeito dos senhores. Desejam que eu lhes manifeste a minha opinião, não é verdade?
- Evidentemente - respondeu Angela.
- Então devo conhecer melhor as circunstâncias que envolvem sua vida conjugal, Monsieur Lucas. Talvez o senhor ache mais fácil falar...
Contei-lhe tudo. O Irmão Ilja ouvia calado meu relato. De vez em quando manifestava a sua concordância com um meneio de cabeça. Por fim, respondeu-me:
- E o senhor tem algum sentimento de culpa com relação à sua mulher?
- Não, Irmão Ilja. Só antes de ter dito toda a verdade a minha mulher é que o sentimento de culpa me dominava. Depois disso nunca mais.
- E a senhora, madame?
- Comigo deu-se quase a mesma coisa...
Angela, então, passou a contar-lhe toda a sua história e concluiu assim:
- Como o senhor vê, Irmão Ilja, desejei a separação logo que fiquei sabendo da verdade com relação a Monsieur Lucas. Eu jamais poderia viver com ele como sua amante... amante que traía a sua verdadeira mulher. Entretanto, depois ele me esclareceu sua situação e eu realmente me convenci de que já fazia muito tempo que a sua vida conjugal não existia mais na realidade, a não ser perante a lei. Eu também agora não tenho mais nenhum sentimento de culpa. O senhor acha reprovável nossa conduta?
O Irmão Ilja sorriu.
- Devo eximir-me de expender qualquer comentário generalizado com relação ao aspecto moral do procedimento dos senhores. E os senhores também não podem exigir de mim que eu proceda de outra forma. Posso apenas responder-lhes como uma pessoa que aqui se encontra para atender os seus semelhantes.
- E qual é sua resposta? O Irmão Ilja prosseguiu:
- A senhora encontrou uma vida com novo conteúdo, madame. A senhora ama. Sente-se feliz. A vida, agora, para a senhora, tem uma grande significação e é bela.
- É verdade - confirmou Angela.
- E o senhor, Monsieur Lucas, viveu durante anos um matrimônio praticamente extinto. Certamente era infeliz. Mas agora o senhor não é mais infeliz. O senhor não teve filhos com sua mulher. Sem dúvida, providenciará para que ela não venha a passar necessidades, mesmo que o senhor a abandone.
- Certamente - confirmei.
Permanecíamos de pé diante do padre com as mãos dadas, como duas criancinhas.
- Considerado esse aspecto... falo-lhes assim porque sou jovem e liberal, embora outros sacerdotes talvez se pronunciassem de maneira diferente... seria, do ponto de vista teológico, meramente formalístico e falso condenar, proibir ou mesmo considerar pecaminosas as relações dos senhores, pois elas contribuem para dar a ambos um sentido mais significativo da vida. Não! - exclamou o Irmão Ilja com um ar meditativo. - Não poderia condenar a atitude dos senhores. Pensando como criatura humana, isto é, como criatura que tem sentimento, porém não me apegando às leis da Igreja, não posso dizer que haja pecado no comportamento dos senhores. Havia antes três pessoas infelizes. Agora, aqui se encontram na minha presença duas delas cheias de felicidade. O senhor, monsieur, jamais poderia dar à sua mulher aquela verdadeira felicidade que decorre de uma vida conjugai perfeita, se é que compreendi direito seu caso.
- Sim, o senhor o compreendeu perfeitamente.
- Então, pode-se afirmar que o senhor pôs fim a uma situação insuportável para o senhor e que também devia ser insuportável para a sua mulher. Correndo o risco de ser alvo de severas críticas, devo dizer que me alegro por ver que os senhores se amam mutuamente. Tomo uma posição favorável aos senhores e se assim procedo é porque acredito que Cristo, antes de mais nada, era homem... na exata acepção da palavra. Nunca devemos deixar de ter em mente que os mandamentos da Igreja... não me refiro somente à nossa religião, mas também a muitas outras... consoante a sua definição intrínseca de pecado, se tornam mais aptos a proporcionar-nos uma vida feliz e agradável a Deus precisamente quando consideramos a humanidade como um todo. Em cada caso isolado, todavia, a faculdade de determinar se há culpa ou inocência fica adstrita ao juízo de Deus e não deve ser revelada aos homens. Seria nesse caso o mesmo que fixar leis ora num ora noutro sentido, para cada grupo isolado de diversas origens, como sendo leis definitivas.
Ele fitou Angela, depois prosseguiu:
- Como já lhes disse, sou muito jovem ainda. Talvez o que lhes afirmei seja falso e suscetível de induzir ao pecado, mas só devo dizer o que acho verdadeiro e correto. Qual será a decisão do juiz e a atitude de sua mulher, monsieur, não se pode prever. O futuro sempre fica na penumbra. Todavia, madame, como sacerdote, tenho a grande satisfação de declarar-lhes que tomo o partido dos senhores. Juntos, ambos poderão começar vida nova repleta de alegrias e de felicidade. A Igreja, o cristianismo, deve estar do lado das pessoas e não do lado da lei. Foi isso mesmo que declarou Jesus Cristo, embora com outras palavras.
Ele sorriu amavelmente, revelando-se um tanto constrangido.
Angela, então, disse-lhe baixinho:
- Obrigado, Irmão Ilja. Agradeço-lhe imensamente.
- E eu também - disse.
Fiz menção de tirar dinheiro da minha pasta, mas ele foi logo dizendo:
- Não, por favor, não! Agora não.
- Mas o senhor também precisa de dinheiro.
- Sempre precisamos de dinheiro. Entretanto, agora não nos ofereça nada, monsieur. Veja aquela caixinha perto da porta. Nela o senhor poderá colocar algum dinheiro sempre que quiser. Mas não agora. Acho que o senhor me compreende...
- Naturalmente - respondi-lhe, envergonhado. - Perdoe-me.
- Apareçam mais vezes - disse o Irmão Ilja. - Venham procurar-me sempre que estiverem tristes ou tiverem algum dissabor.
Despedimo-nos. Eu e Angela fomos caminhando em direção ao carro dela, que estava estacionado debaixo de velhas árvores e novamente se encontrava cheio de pólen caído das flores. Entramos no carro e Angela fê-lo arrancar em seguida. Na porta da igreja, ainda aberta, estava o Irmão Ilja. Acenamos-lhe e ele correspondeu ao nosso aceno. Dentro de poucos segundos, Angela já estava girando o volante para entrar na rodovia.
- Como estou me sentindo alegre agora, Robert!
- E eu também, Angela.
- Ele nos compreende. Eu tinha certeza de que nos compreenderia. E ele disse que devemos procurá-lo sempre que tivermos algum dissabor ou tristeza. Você poderia imaginar que no mundo houvesse uma criatura assim para nos confortar?
- Não.
- Você precisa ir trabalhar agora?
- No momento, não. Tenho só que telefonar.
- Que aconteceu de novo?
- Leve-me ao nosso cantinho no Majestic. Vamos beber algo. Lá vou contar-lhe tudo o que aconteceu.
Mais uma vez começamos a subir a Croisette. Como sempre à tarde começava a soprar uma brisa fresquinha. Serge, o amigo de Angela, pegou o carro e levou-o à garagem do subsolo. No terraço, o nosso cantinho estava vazio. Sentamo-nos e o nosso garçom veio atender-nos depressa. Pedi uma garrafa de champanha. Depois, dirigi-me ao saguão. O telegrama com a resposta de Gustav ainda não havia chegado. Telefonei para o Comissariado Central e pus-me em contato com Roussel. Ele me disse que as investigações estavam prosseguindo. Até aquela hora eles não dispunham de uma referência concreta para suspeitar de alguém. Disse-lhe que eu telefonaria novamente três horas mais tarde. Voltei ao terraço, que começava a encher-se de pessoas que vinham tomar aperitivos. Sentei-me ao lado de Angela, tomei um gole de champanha e comi algumas azeitonas. Então passei a relatar a Angela a caçada policial levada a efeito em La Bocca e o assassinato da irmã-enfermeira Anna Galina.
- Santo Deus, a coisa está se tornando cada vez pior! - exclamou ela.
- É verdade - confirmei, e tive logo um pressentimento de que estávamos ainda muito longe da solução de toda essa trama.
Ela colocou a mão direita sobre a minha esquerda, que se achava estendida em cima da mesa. Olhando a mão dela, senti um repentino calafrio a perpassar-me pelo corpo. "É impossível que isso tenha acontecido!", pensei.
- Robert? - Ouvi a voz de Angela como que a me despertar de um devaneio. - Robert, que é que você tem?
Não fui capaz de pronunciar uma palavra. Ela olhou para o mesmo ponto em que eu estava com o olhar fixo e soltou um gritinho.
- Não, não! É impossível que isso tenha acontecido! Robert, é impossível!
Uma indefinível sensação de doce alegria chegou quase a deixar-me tonto.
- Não é impossível, Angela. Ambos estamos vendo a realidade! Eu não lhe disse que algum dia a manchinha na sua mão desapareceria? E eis que o milagre aconteceu!
- Oh, Robert, Robert!
Devido à emoção, ela só conseguia falar com a voz como que sufocada. Comprimiu o braço contra o meu. Ambos ficamos contemplando o dorso da sua mão direita colocada sobre a minha. Aquela manchinha branca, que, como eu sabia, Angela tinha desde a infância e que nunca se tornava escura ou morena como as outras partes da sua pele, não existia mais.

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                          CONTINUA
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Terceiro Livro
Capítulo 1
Gaston Tilmant disse:
- Tudo o que acontece tem uma razão de ser bem determinada. Para nós muitas vezes é difícil, se não impossível, descobrir essa razão e então descambamos para a cólera e para a tristeza... exatamente como os senhores estão fazendo agora. Mas os senhores não devem proceder assim. Eu não vim aqui para consolá-los nem iludi-los com um discurso barato. Foi-me incumbida uma missão que a cada momento ameaça invadir meu espírito com tristeza e raiva. Todavia, devo desincumbir-me dessa missão, sejam quais forem os percalços, pois ela também tem sua razão de ser; o seu sentido determinado. Em minha imaginação, visualizo que cada folha de um livro... inclusive o livro da vida... tem dois lados. Num dos lados escrevemos nós, os homens, que estamos cheios de planos, convicções, esperanças, desejos e intentos. Mas no outro lado escreve o destino, isto é, o sentido oculto que fica atrás de tudo isso. E o que esse sentido dispõe raramente corresponde aos nossos planos. Todavia, não deixa de corresponder ao escopo ou finalidade da própria justiça.

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Com ar acabrunhado, ele passou a mão pelos cabelos louros. Era um homem corpulento e cheio de vigor. Vestia-se com elegância, tal qual um fino diplomata (e ele o era de fato). Tinha o rosto redondo, com as faces rosadas. Seu semblante parecia irradiar infinita bondade. Com os olhos meigos e amáveis, olhava através das lentes de um par de óculos. Gaston Tilmant era um dos mais altos funcionários o Ministério das Relações Exteriores da França. Fora enviado a Cannes com instruções especiais e expressamente determinadas. Exatamente nesse momento, punha-nos a par de quais eram tais instruções. Estávamos sentados em torno de uma grande mesa no salão de conferências do chefe de polícia.
Ali reunidos, nos encontrávamos eu, o chefe de polícia, Lacrosse, Roussel, cerca de meia dúzia de dirigentes policiais e Kessler.
Gaston Tilmant, depois de um pigarro, acrescentou:
- Essa finalidade distanciada, de natureza teleológica por assim dizer, sempre convergirá para a justiça, embora muitas vezes nos pareça que ela não vá alcançá-la. A justiça, por fim, sairá sempre vitoriosa.
O pequeno Louis Lacrosse, com grande amargura na voz, obtemperou:
- Sim, a justiça vencerá por fim, Monsieur Tilmant. Mas quando? Daqui a cem anos? Daqui a mil anos? O senhor diz que leva muito tempo até que ela vença porque seu objetivo acha-se distanciado. E durante todo o tempo que medeia até que o objetivo seja atingido, quem é que vence? A justiça? Monsieur, eu abomino a injustiça. Todos nós sabemos que no caso de que nos ocupamos houve injustiça. Sabemos que houve crimes e que mais crimes talvez sejam perpetrados. Que tenho eu a ver com uma distanciada vitória da justiça se não puder vê-la concretizada? Como poderei levar em consideração essa tão longínqua vitória se durante o tempo da minha vida triunfa a injustiça e os criminosos permanecem impunes? Quando tomei posse do meu cargo, prestei o juramento de combater a injustiça com todas as minhas forças. Devo agora esquecer meu juramento? Será que...

 

 

                                                                  

 

                                                   

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