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Ainda estava escuro e fazia um frio intenso quando Martha acordou. O vento, soprando pelo Mar do Norte, entrava enregelante pelas frestas que antigas tempestades haviam aberto na casa de dois cómodos. As ondas ressoavam a distância. O resto era silêncio.
Permaneceu imóvel na cama na cozinha, mantendo-se rigidamente afastada de Robert, cuja tosse e agitação tinham varado a noite. Ela refletiu por um minuto, encarando decidida o novo dia, reprimindo a amargura que sentia contra ele. E depois levantou-se, com grande esforço.
Os pés descalços no chão de pedra pareciam estar em contato com gelo. Pôs as roupas rapidamente, com os movimentos incisivos de uma mulher vigorosa que ainda não chegara aos 40 anos. Mas o esforço de se vestir deixou-a ofegante. Não estava com fome agora... por algum estranho motivo, o pior da fome desaparecera dias antes... mas sentia-se doente, terrivelmente doente. Quase se arrastando, foi até a pia e abriu a torneira. Não saiu qualquer água. O cano estava congelado.
Martha ficou perdida e desorientada por um momento, comprimindo as mãos calosas contra o lado intumescido, olhando pela janela, para o amanhecer hesitante. Cabanas de mineiros estendiam-se além da janela, meio indistintas. À direita, ficava a escuridão da cidade de Sleescale, com o porto além, iluminado por uma única luz, depois o mar gelado. À esquerda, os contornos da estrutura da boca de Neptune destacavam-se como um cadafalso contra o céu pálido de leste, dominando a cidade, o porto e o mar.
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O vinco aprofundou-se na testa de Martha. Fazia três meses agora que a greve se prolongava. Ao pensar na miséria que isso acarretava, ela desviou-se abruptamente da janela e empenhou-se em acender o fogo. Era difícil. Dispunha apenas da madeira úmida que Sammy recolhera na praia no dia anterior e um pouco de pó de carvão, da pior espécie de escória, que Hughie trouxera da boca do poço. Ficou irritada ao pensar que ela, Martha Fenwick, sempre acostumada ao melhor carvão, a um fogo de carvão de verdade, fosse agora obrigada a usar pó de carvão. Mas finalmente conseguiu acender o fogo. Saiu pela porta dos fundos, quebrou a camada de gelo na bica com uma pancada ressentida, encheu a chaleira, voltou e pôs a água para ferver.
A chaleira ficou no fogo por um longo tempo. Quando a água ferveu, Martha encheu uma xícara e sentou diante do fogo, segurando-a com as duas mãos, bebendo lentamente. A água escaldante esquentou-a, irradiou correntes difusas de vida pelo corpo entorpecido. Não era tão bom quanto chá. Nada era tão bom quanto chá. Mas, apesar disso, era bom, ela sentiu que estava voltando a existir. As chamas que se espalhavam pela madeira verde iluminaram um pedaço de jornal antigo, tirado de sua reserva de acender fogo e caído no fundo da lareira. Mr. Keir Hardie indagou na Câmara dos Comuns se, tendo em vista a penúria intensa no Norte, o governo se propõe a permitir que as autoridades educacionais tomem providências para alimentar as crianças indigentes. A resposta foi que o governo não tenciona conceder autorização às referidas autoridades para alimentar as crianças indigentes. Ainda tomando a água quente, Martha leu a notícia sem pensar a respeito. O rosto esquelético nada deixou transparecer, nem interesse nem ressentimentos; absolutamente nada. Estava impassível como a morte.
Subitamente, ela virou-se. Isso mesmo, ele estava acordado, o rosto apoiado na mão, deitado de lado, do jeito familiar, observando-a. No mesmo instante, toda a amargura tornou a invadi-la. Tudo, tudo, tudo... ele. E foi então que ele começou a tossir. Martha sabia que ele estivera reprimindo a tosse, por medo dela. Não era uma tosse que sacudisse o corpo todo, mas uma tosse suave, profunda, experiente. Era uma tosse íntima. Na verdade, a tosse era ele próprio, sem nada de hostil, possuindo-o quase afavelmente. Enchia-lhe a boca com uma vasta quantidade de catarro. Erguendo-se, apoiado no cotovelo, ele cuspiu num quadrado de Tit-Bits. Parecia estar sempre cortando aqueles quadrados de papel que arrancava de Tit-Bits, cuidadosamente, meticulosamente, com sua velha faca de batata de cabo de osso. Tinha um estoque grande, que jamais se esgotava. Escarrava no pequeno quadrado, contemplava o resultado, dobrava e queimava... queimava com uma espécie de otimismo. Quando estava deitado, largava-os ao lado da cama... e queimava-os quando se levantava.
Martha sentiu um ódio súbito contra ele e contra a. tosse que era ele. O que não a impediu de levantar-se, tornar a encher a xícara com água quente e entregar-lhe. Ele pegou-a em silêncio.
Estava mais claro agora. O relógio fora a primeira coisa penhorada, o relógio grande de pedestal de mármore que o pai dela ganhara no boliche... um grande homem o pai dela, um verdadeiro campeão de boliche! ... mas Martha calculou que deviam ser sete horas. Ela enrolou no pescoço uma das meias de David, pôs na cabeça um gorro de homem que agora lhe pertencia, depois vestiu o casaco preto esfarrapado. Pelo menos isso, o casaco, já era alguma coisa. Não era uma mulher de xale. Jamais. Era respeitável, sempre fora e seria, apesar de tudo. Por toda a sua vida... respeitável.
Sem dizer nada, sem olhar para ele, Martha saiu, desta vez pela porta da frente. Firmando o corpo contra o vento frio, começou a descer a Cowper Street, a ladeira íngreme que levava à cidade. Estava mais frio lá fora, terrivelmente frio. Os Terraços estavam vazios, não havia uma única alma à vista. Ela passou pela Salutation, passou por Middlerig, passou pelos degraus desertos do Instituto, cobertos de saliva congelada, os sinais do último debate. A parede do lado tinha uma frase escrita a giz: Concentração às três horas. Charley Gowlan, o representante dos mineiros na hora da pesagem do carvão para o pagamento dos homens, é que escrevera aquilo... o grande consumidor de bebida.
Martha estremeceu e tentou acelerar os passos. Mas não podia andar mais depressa. A criança dentro dela, ainda sem vida, pesava como chumbo, retardando-a, obrigando-a a se inclinar. Estar grávida... e numa ocasião como aquela! Três filhos crescidos, com David, o mais moço, tendo quase 15 anos, para depois ser surpreendida assim! Martha cerrou as mãos. A indignação fervilhava dentro dela. Ele, novamente, chegando em casa embriagado,, silenciosamente, obstinadamente, cheio de bebida, para lhe impor sua vontade,
Na cidade, a maioria das lojas estava fechada. Muitas não tornariam a abrir. Nem mesmo a Cooperativa, onde o crédito, esticado ao máximo, finalmente se esgotara. Mas o que importava é que ela tinha na bolsa uma moeda de cobre de dois pence. O que daria para comprar bastante coisa, não é mesmo? Também não poderia comprar nada em Masters, que há dois dias estava fechado, abarrotado de vales. Nem em Murchison, Dobbs ou Bates. Estavam todos fechados, todos assustados, apavorados com a perspectiva de encrenca.
Martha virou a esquina da Lamb Street, atravessou-a diante da loja de Ramage, desceu a passagem estreita para o matadouro. O rosto se iluminou quando chegou perto. Hob ali estava, varrendo o pátio de concreto, em mangas de camisa e avental de couro.
- Alguma coisa esta manhã, Hob?
A voz de Martha era calma e ela ficou parada, esperando que ele a notasse.
Hob a notara no instante em que entrara na passagem, mas mantivera a cabeça abaixada, empurrando a agua suja com a vassoura. Um cheiro forte exalava dos braços vermelhos e molhados de Hob. Martha não se importava. Hob era um bom homem. Hob a conhecia. Hob faria o que fosse possível. Ela esperou.
- Não tem alguma sobra, Hob?
Não estava pedindo muito, apenas um pedaço indesejável, um pedaço das vísceras, um pouco de bofe, coisas geralmente jogadas fora como refugo.
Hob parou finalmente de trabalhar, sem olhar para Martha, mal-humorado porque tinha de recusar.
- Não temos nada.
Martha fitou-o atentamente.
-Não?
Ele sacudiu a cabeça.
- Absolutamente nada! Ramage fez a gente matar seis ontem à noite e levar tudo para a loja. Alguém deve ter falado com ele dos restos para sopa. E Ramage quase que me arrancou a cabeça!
Martha contraiu os lábios. Então Ramage acabara com a sua possibilidade de fazer uma sopa, de conseguir um pouco de fígado. Ela parecia preocupada. Hob brandia a vassoura furiosamente.
Ela afastou-se, pensando, acelerando os passos gradativamente, voltando à Lamb Street, descendo ao porto. Apenas um olhar foi suficiente. Parou de repente, enquanto o vento lhe enfurnava a saia, o desalento finalmente estampado no rosto fino e macilento. Também não havia sequer a perspectiva de arrumar um arenque, embora estivesse disposta a pedir a caridade dos Macers. O Annie Macer estava atracado com os outros barcos, por trás do quebra-mar, as redes dobradas no convés. É o tempo, pensou Martha, entorpecida, deixando que o olhar se deslocasse pelas ondas turbilhonantes além. Nenhum dos barcos saíra.
Ela virou-se, lentamente, começou a voltar, desolada. Havia mais pessoas nas ruas agora, a aldeia despertava, umas poucas carroças passavam ruidosamente pelas pedras do calçamento. Harkness, da escola da Bethel Street, passou, um homenzinho de barba pontuda, óculos de aros de ouro e capote grosso; algumas mulheres que trabalhavam na cordoaria em seus tamancos de madeira; um funcionário do Conselho Municipal, apressado, soprando as mãos. Todos a evitavam, deliberadamente, evitavam seus olhos. Não a conheciam, mas sabiam que ela era dos Terraços, parte do problema, a desgraça que pairava sobre a cidade há três meses. Os pés de Martha se arrastavam, cansados, quando começou a subir a ladeira.
Um cavalo e uma carroça fechada estavam diante da padaria de Teasdale, carregando o pão para entrega. Dan Teasdale, o filho, entrava e saía apressadamente, carregando um cesto grande, cheio de pães que acabavam de sair do forno. Quando Martha se aproximou da padaria, o aroma quente e irresistível de pão fresco elevou-se do porão, agarrando-a pela garganta. Ela parou," instintivamente. Poderia até desfalecer de tanto desejo por um pão. Nesse momento, Dan saiu, com outro cesto de pão. Viu-a, percebeu a fome no rosto dela. Empalideceu no mesmo instante, uma espécie de horror lhe toldou os olhos. Sem pensar, Dan pegou um pão e pôs nas mãos de Martha.
Ela não disse nada, nenhuma palavra. Mas uma névoa de gratidão, o mais próximo que já tinha chegado das lágrimas, dançou diante de seus olhos, enquanto continuava a subir a Cowpen Street entrando na Sebastopol Row. Ela gostava de Dan, um bom rapaz, que trabalhava na Neptune. Desde o início da greve que ele ajudava o pai, dirigindo a carroça, entregando o pão. Dan costumava conversar frequentemente com Davey. Respirando um pouco mais depressa da subida, Martha estendeu a mão para a porta de sua casa.
- A Alice da Sra. Kinch está de congestão. - Hannah Brace, a vizinha, deteve-a.
Martha acenou com a cabeça. Ao longo daquela semana, as crianças dos Terraços vinham caindo de cama com pneumonia.
- Avise à Sra. Kinch que darei um pulo até lá mais tarde - murmurou Martha, entrando em casa.
Todos os quatro já estavam de pé e vestidos, Robert e os três filhos, reunidos em torno do fogo. Mas, como sempre acontecia, os olhos de Martha fixaram-se primeiro em Sammy. Ele sorriu-lhe, aquele sorriso fácil, de lábios contraídos, que fazia com que os olhos azuis sumissem por baixo da testa larga. Havia uma determinação e bravura infinitas por trás do sorriso de Sam. Ele tinha apenas 19 anos, já era um escavador na Neptune, o filho mais velho de Martha, seu predileto.
- Ei, olhe só! - disse Sam para David, piscando o olho. - Veja o que sua mãe conseguiu! Saiu para buscar um pão para você!
Em seu canto, Davey sorriu gentilmente, um garoto magro, quieto, rosto pálido, comprido, compenetrado, obstinado. As omoplatas pularam para fora quando se inclinou para o fogo. Os olhos.grandes e escuros pareciam geralmente inquisitivos, mas não estavam tanto agora. Ele tinha 14 anos, era puxador de cavalo na Neptune, seção de Paradise, nove horas por dia no fundo da terra, agora em greve e um tanto esfomeado.
- O que acham disso, rapazes? - continuou Sam. - Aqui está o velho Sammy treinando para o seu número de esqueleto-vivo. Perdi não sei quantos quilos em duas semanas, fazendo o Regime para Mulheres Robustas, promovendo a cura de corpulência. E de repente a mãe aparece com um banquete. Não acha que é um golpe e tanto para o velho Sammy, Hughie?
Martha lançou-lhe um olhar irritado.
- Tem sorte de poder comer isto. E ela começou a cortar o pão.
Todos ficaram observando-a, fascinados. Até mesmo Hughie desviou os olhos do trabalho de ajeitar um remendo nas suas velhas botinas de futebol, e não era fácil afastar a mente de Hughie do futebol. Hughie era louco por futebol, o centroavante do time de Sleescale - aos 17 anos - quando não estava recolhendo carvão na seção Paradise da Neptune. Hughie não respondeu a Sam. Hughie nunca tinha muito o que dizer, estava sempre calado, mais calado do que o silencioso pai. Mas Hughie olhou para o pão.
- Desculpe, mãe. - Sammy levantou-se de um pulo e pegou a travessa, com o pão. - O que quer que eu pudesse estar pensando, não podia esquecer as boas maneiras. Se me permite, disse o Duque, em seu resplandecente uniforme dos Hussardos de Tyneside.
Ele estendeu a travessa para o pai.
Robert pegou uma fatia, olhou-a, depois fitou Martha.
- Esse pão veio dos Guardians? Se veio, não vou querer comer. Martha sustentou o olhar dele.
E Robert acrescentou, num tom de derrota:
- Estou perguntando se esse pão veio dos Guardians...
Martha continuou a fitá-lo, ainda pensando na loucura dele, ao lançar todas as economias na greve. E ela disse: -Não. Sammy interveio, jovialmente:
- Que importância no mundo isso pode ter, se desconfio que todos vamos comer com prazer? - Ele enfrentou os olhos do pai, com a mesma jovialidade decidida. - Não precisa ficar me olhando desse jeito, papai. Todas as coisas boas sempre acabam. E não adianta ficar chorando. A coisa é trabalhar e não ficar sentado sem fazer nada, esperando que a mãe arrume comida para a gente.
Ele virou-se para Davey.
- Ei, conde, pegue logo um. Não hesite. Pode estar certo de que não vão esperar por muito tempo.
Martha arrancou a travessa de pão das mãos dele.
- Não gosto de brincadeira assim, Sammy. Não se deve nunca brincar com boa comida.
Ela fez uma carranca para Sammy. Mas deu-lhe o maior pedaço de pão. E servindo Hughie em seguida, ficou com o menor pedaço para si mesma.
II
Dez horas. David pegou seu gorro, saiu de casa, foi avançando pelo calçamento irregular e meio afundado da Inkerman Row. Todas as vielas dos mineiros em Sleescale haviam recebido os nomes das gloriosas vitórias na Criméia. A lá de cima, em que David morava, era Inkerman; a seguinte era Alma; a outra era Sebastopol; a mais baixa de todas, a de Joe, era Balaclava. David estava agora a caminho da casa de Joe, a fim de verificar "se Joe estava saindo".
O vento diminuíra de intensidade, o sol rompeu as nuvens inesperadamente. Embora ofuscado, já que não estava muito acostumado, a profusão intensa da luz do sol pareceu muito bonita a David. No inverno, quando estava trabalhando, havia ocasiões em que passava dias a fio sem ver a luz do sol. Estava escuro pela manhã quando descia na mina; estava escuro à noite quando subia.
Aquele dia, porém, embora frio, estava brilhante, inundando todo o seu ser com um fulgor estranho, levando-o a recordar daquelas raras ocasiões em que o pai levava-o para pescar no Wansbeck. Longe da escuridão e do poço sujo, bosques verdes e de tonalidades de castanho-avermelhado, um sussurro de água cristalina...
- Olhe só aquilo, papai!
Era um grito que volta e meia acontecia, como nas vezes em que um ramo de prímulas prematuras se oferecia à contemplação de seus olhos deslumbrados.
David virou a esquina da Balaclava Row.
Como as outras, a Balaclava estendia-se por cerca de 500 metros, casas de pedra cobertas de fuligem, já pretas, cobertas por veias brancas irregulares, onde reboco fora acrescentado para preencher as rachaduras fhaiores e mais recentes. As chaminés quadradas, quebradas e irregulares pareciam prestes a desabar; as longas fileiras de telhados ondulavam em decorrência do afundamento do terreno, como um mar encapelado; os pátios estavam delimitados por dormentes apodrecendo, tocos quebrados e feno corrugado enferrujado, apoiados por pilhas de escória e terra retirada dos poços. Cada pátio tinha o seu quartinho e cada um tinha o seu balde. Um balde de ferro. Os quartinhos pareciam sentinelas, entre as casas. Ao final das vielas, entre as casas, havia um amontoado de construções, erguidas num terreno irregular, ao lado de uma extensão de trilhos. A Neptune 17 ficava quase no meio, com a desolação acidentada do Snook por trás. O Snook era uma área de terra devastada, toda rachada, com depressões em que a água se acumulava, esburacada pelas antigas escavações da Neptune, que remontavam a cem anos. O velho Scupperhole vocejava para o céu no Snook. Tudo tinha a ver com poços. Eram chaminés de poços, pilhas de escória, equipamentos de boca de poço e todo o resto. Uma corda de roupa lavada, com seus azuis e vermelhos intensos, contra o cinza e sujo por trás, atraía a atenção como uma afronta. Aquela corda de roupa lavada proporcionava à paisagem uma beleza sombria e viciosa.
David conhecia tudo aquilo e não gostava muito. Agora, gostava ainda menos. Por toda a extensão das residências desoladas, de meia-parede, pairava uma atmosfera de apatia e derrota. Alguns mineiros, Slogger Leeming, Keeker Howe, Bob Ogle e uns poucos outros, que em tempos normais se divertiam jogando, estavam acocorados contra a parede. Não estavam jogando agora, já que não tinham dinheiro. Permaneciam em silêncio. Bob Ogle, que trabalhava na Paradise, afagava a cabeça estreita de sua cadela, uma cruza de galgo com temer. Acenou com a cabeça para Davey. Slogger Leeming disse:
- Como estão as coisas, Davey? Ao que David respondeu:
- Como antes, Slogger.
Os outros fitaram-no, curiosos, identificando-o com Robert, seu pai, que fora o mestre de todos. Viram um garoto de rosto pálido, vestindo roupas velhas, que já tinham ficado pequenas demais, uma manta de algodão e os tamancos de madeira de trabalhar na mina, porque as botas estavam penhoradas, os cabelos precisando de cortar, os pulsos finos e as mãos grandes e calosas do trabalho árduo.
David percebeu que os homens examinavam-no atentamente e se manteve calmo, levantando o queixo, enquanto se encaminhava para o Número 19, que era a casa de Joe. Por cima da porta, havia um aviso pintado irregularmente: Agente dos mineiros. Cuida-se de enterros. Dá-se pensão, David entrou.
Joe e seu pai, Charley Gowlan, estavam comendo. Uma grande tigela de porcelana estava sobre a mesa de madeira, cheia de pastelão frio, com um bule de chá grande e marrom ao lado, uma lata de leite condensado aberta e um pão cortado irregularmente. A mesa estava incrivelmente atravancada; a casa inteira, dois cómodos unidos por uma escada perpendicular, era atravancada. Sujeira, desordem, comida em quantidade, um fogo forte, roupas penduradas por toda parte, pratos por lavar, cheiro de cerveja, gordura, suor.
- Olá, garoto. Como vão as coisas esta manhã?
Charley Gowlan, o camisolão metido por dentro da calça, os suspensórios soltos sobre a barriga imensa, os pés metidos em chinelas, meteu na boca um pedaço grande de carne. Brandiu a faca, na mão grande vermelha, acenou com a cabeça jovialmente para David. Charley era sempre jovial, nada menos que amistoso, sempre afável, Big Charley Gowlan, o agente dos mineiros para a verificação da pesagem do carvão. Dava-se bem com os mineiros, dava-se bem com Barras. Estava sempre disposto a experimentar sua habilidade em qualquer coisa das lides domésticas, já que a mulher morrera há três anos, a caçar coelhos furtivamente ou pescar ilegalmente os salmões do Coquet.
David sentou e ficou observando Joe e Charley comerem. Os dois comiam com infinita satisfação: as mandíbulas jovens de Joe se movimentavam metodicamente, Charley estalava os lábios grossos, enquanto pegava o molho grosso do pastelão. David não pôde se conter, sentindo a boca aguar angustiosamente, um filete de saliva lhe escorrendo pela boca. Subitamente, quando já estavam quase acabando, Charley parou de comer, com a faca no pastelão, como se só então lhe ocorresse o pensamento.
- Não quer raspar a panela, garoto?
David sacudiu a cabeça. Alguma coisa dentro dele exigia que recusasse. Ele sorriu.
- Já comi.
- Se já comeu, está certo. - Os olhos pequenos de Charley faiscaram no rosto vermelho e grande. Ele terminou o prato e acrescentou: - E como seu pai está encarando as coisas, agora que tudo indica que vamos vencer?
- Não sei.
Charley lambeu a faca e soltou um suspiro de contentamento.
- Foi uma tremenda encrenca. Os homens do sindicato estavam querendo. Heddon estava querendo. Mas nenhum de nós queria. Não há razão para criar problema por causa de um pouco de escória e de um aumento de meio penny por tonelada. Todos disseram desde o início que não havia sentido.
David ficou olhando para Charley. Charley era o representante dos mineiros, um dirigente sindical, dava-se bem com Heddon, o agente do sindicato de Tynecastle. Charley sabia perfeitamente que não era apenas o aumento. E David comentou, pensativo:
- Há muita água em Scupper Flats.
- Água!
Charley sorriu, um sorriso largo, superior. Seu trabalho nunca o levava ao fundo do poço. Conferia a pesagem do carvão extraído quando chegava à superfície. Podia se dar ao luxo de ser superior.
- A Paradise sempre foi molhada. Teve muitos dias em que ficou com água. Scupper Flats não vai ser pior do que o resto. Seu pai não está com medo de um pouquinho de água, não é mesmo?
Consciente do sorriso insidioso de Charley, David se empertigou em sua indignação. Mas disse, em tom de indiferença:
- Ele trabalhou lá no fundo por 25 anos. Não seria agora que ficaria com medo.
- Tem toda razão. E todos sabemos disso. Sempre defenda seu pai. Se não o fizer, só Deus sabe quem fará. Ninguém vai pensar mal de você por isso. É um rapaz esperto.
Charley arrotou sonoramente, foi até sua cadeira junto ao fogo, bocejou, espreguiçou, começou a encher o cachimbo de barro enegrecido. Joe e David saíram.
- Ele nunca teve de descer na Paradise! - comentou Joe, irreverentemente, no instante em que a porta foi fechada. - Bem que merecia ficar em lugares cheios de água, como já me aconteceu.
- Não é apenas um pouco de água, Joe - insistiu David. - Sabe o que meu pai diz.
- Já sei, já sei! Estou cansado de ouvir e o resto do pessoal também, Davey. Seu pai tem muitas ideias sobre Scupper Flats. Acha que conhece todo o negócio.
David disse, veementemente:
- Pois saiba que ele conhece um bocado. E não começou a coisa por brincadeira.
Joe disse:
- Mas alguns dos homens começaram. Estavam cansados de trabalhar na água e acharam que seria divertido parar um pouco. Mas agora já não aguentam mais e dariam qualquer coisa para voltar ao trabalho, mesmo sabendo que Scupper Flats corre o perigo de desmoronar por excesso de água.
- Pois então que eles comecem tudo de novo! Joe murmurou, amargamente:
- É o que vai acontecer, não tenha a menor dúvida. Espere só até a reunião das três horas para ver. Mas não me leve a mal. Estou tão cansado de tudo isso quanto você. Já não aguento mais o maldito poço. E vou tratar de escapar na primeira oportunidade. Não pretendo passar o resto dos meus dias naquele buraco miserável. Quero conhecer um pouco da vida, me divertir.
David permaneceu em silêncio, transtornado e indignado, pensando que a vida se voltava contra ele. Também queria largar a Neptune... mas não do mesmo jeito que Joe. Lembrava-se perfeitamente da ocasião anterior em que Joe fugira e fora trazido de volta, em lágrimas, por Roddam, o sargento de polícia, para ser devidamente espancado com uma correia de couro pelo pai.
Continuaram a andar, sem falar por algum tempo, Joe se pavoneando arrogantemente, as mãos nos bolsos. Era um rapaz forte, dois anos mais velho que David, ombros largos, costas sempre empertigadas, cabelos pretos crespos e abundantes, olhos castanhos pequenos e alertas. A expressão era de profunda confiança em si mesmo. Joe era extremamente bem apessoado. E sabia disso. E era vaidoso, impetuoso, agressivo. Não demorou muito para que ele voltasse a falar:
- Mas é preciso ter dinheiro, quando se quer ter um pouco de diversão. E você algum dia vai conseguir arrumar dinheiro na mina? Não tem a menor possibilidade. Nunca vai ganhar um dinheiro grande. Mas quero me divertir. Quero ter muito dinheiro. Conhecer outros lugares. Você tem sorte, pois isso deve lhe acontecer. Talvez vá para Tynecastle. Seu pai quer que continue a estudar, o que é outra das ideias dele. Mas eu terei de-cuidar de mim sozinho. E é o que vou fazer. Vai ver só! A gente tem de ser assim na vida. É preciso chegar primeiro ou alguém pode aparecer na nossa frente!
Joe parou bruscamente de falar e deu uma pancada cordial nas costas de David. E sorriu-lhe, um sorriso afável, afetuoso. Quando Joe estava querendo, ninguém sabia ser mais afável, mais cordial... e era uma cordialidade que desmanchava qualquer coração, uma afabilidade que se irradiava dos bonitos olhos castanhos de Joe e revelava-o como o príncipe dos bons sujeitos.
- Vamos sair de barco, Davey. Podemos remar um pouco e ver se conseguimos pegar alguma coisa.
A esta altura, já tinham descido a Quay Street e estavam chegando à praia. Pularam o dique de pedra e caíram na areia compacta no outro lado. As dunas se estendiam interminavelmente, cobertas por uma vegetação rasteira e juncos. David gostava das dunas. Aos sábados, no verão, quando estavam de folga na mina e o pai ia com os companheiros à igreja, David se metia entre os juncos, sozinho, escutanto os sons da cotovia, largando o livro a fim de procurar a pequena mancha a se erguer contra o céu azul brilhante. Sentiu vontade de deitar ali agora. A cabeça estava novamente tonta, a fatia de pão fresco que comera tão vorazmente pesava como chumbo em seu estômago. Mas Joe já estava no quebra-mar.
Subiram pelo quebra-mar e chegaram ao porto. Ali, nas águas espumosas, alguns dos rapazes dos terraços estavam pescando carvão. com um balde velho, cheio de buracos, preso numa vara, dragavam o fundo, à procura dos pedaços de carvão que haviam caído das barcaças. Privados da cota quinzenal que levavam da mina, estavam rebuscando o lodo à procura do combustível que de outra forma teriam ignorado. Joe fitou-os com um desprezo secreto. Parou por um momento, as pernas bem afastadas, as mãos ainda metidas nos bolsos da calça. Desprezava a todos. Seu porão estava cheio de carvão da boca do poço, carvão que ele recolhera pessoalmente, o melhor da pilha. A barriga estava cheia de comida, boa comida. Charley, seu pai, cuidara disso. Só havia um jeito de fazer as coisas. Era preciso agarrá-las com as duas mãos, procurar, conseguir de qualquer maneira, não ficar parado, tremendo todo, faminto, raspando o fundo, na débil esperança de que alguma coisa pulasse de bom grado para o balde, ruidosamente.
- Como estão as coisas, Joe?
Ned Softley, que era o encarregado de abrir e fechar os portos na mina, regulando o fluxo de ar, foi quem gritou, jovialmente. O nariz grande estava vermelho, o corpo minguado tremia espasmodicamente do frio. Ele soltou uma risada meio vaga.
- Tem uma guimba, Joe? Estou morrendo de vontade de fumar.
- Claro, Ned... - A simpatia de Joe foi instantânea e condescendente.
- Mesmo que seja a minha última!
Ele tirou a guimba de trás da orelha, contemplou-a tristemente, acendeu-a com uma expressão de pesar. Mas sorriu no instante mesmo em que Ned virou as costas. É claro que Joe tinha um maço cheio de Woodbines no bolso. Mas ia deixar que Ned soubesse disso? De jeito nenhum! Ainda sorrindo, ele virou-se para David. Foi nesse instante que um grito repentino fê-lo voltar-se outra vez.
Era um grito de Ned, um gemido alto de protesto. Ele enchera seu saco ou estava perto disso; depois de três horas de trabalho ao vento frio, pusera-o no ombro, a fim de voltar para casa. Mas Jake Wicks se postara diante dele. Jake, um camarada corpulento de 17 anos, ficara esperando calmamente para se apropriar do carvão de Ned. Pegou o saco e lançou um olhar belicoso para os outros, antes de começar a se afastar.
Um coro de risadas se elevou do bando de rapazes. Aquela era ótima! Jake arrebatando o carvão de Softley, afastando-se com a maior tranquilidade, enquanto Ned gritava e se lamuriava atrás dele, como um lunático. Era a própria essência do humor... e a risada de Joe foi mais alta que qualquer outra.
Mas David não riu. Seu rosto ficou muito pálido.
- Ele não pode levar aquele carvão - murmurou David. - O carvão é de Softley, que trabalhou para pagá-lo.
- Quero ver quem vai detê-lo. - Joe estava quase sufocando com o próprio riso. - Ah, olhe só para Softley, veja como ele está desconsolado...
O jovem Wicks avançava pelo quebra-mar, carregando o saco, seguido por Softley a soluçar e por um bando esfarrapado e escarninho.
- O carvão é meu - lamuriava-se Softley, enquanto as lágrimas escorriam-lhe pelas faces. - Peguei todo ele, trabalhando sem parar, só para minha mãe poder acender um fogo...
David cerrou os punhos e deu um passo para o lado, postando-se no caminho de Wicks. Jack estacou abruptamente.
- Qual é o caso?
- Esse carvão que você está levando é de Ned - disse David, entre os dentes semicerrados. - Não pode ficar com ele. Não é justo. Não está direito.
- É mesmo? - disse Jake, calmamente. - E quem vai me impedir?
- Eu vou.
Todos pararam de rir. Jake pôs o saco de carvão no chão, com todo cuidado.
- Vai mesmo?
David sacudiu a cabeça, afirmativamente. Não podia falar agora, todo seu corpo estava tenso de indignação. Fervilhava interiormente com a injustiça da ação de Jake. Wicks já era quase um homem, fumava, praguejava, bebia como um homem, era um palmo mais alto e pelo menos dez quilos mais pesado que David. Mas David não pensava nisso. Nada importava, absolutamente nada, a não ser que era preciso impedir que Wicks maltratasse Softley.
Wicks ergueu os punhos, um por cima do outro.
- Pois tente passar o bloqueio.
Era o convite tradicional para a briga.
David contemplou atentamente o rosto cheio de espinhas de Jake, encimado por cabelos cor-de-palha. Tudo estava muito definido e nítido. Podia ver as pontas pretas na pele ruim de Jake, uma pequena inflamação surgindo na pálpebra esquerda. Depois, como um relâmpago, David baixou os punhos de Jake e acertou-lhe um soco de direita no nariz.
Foi um soco perfeito. O nariz de Jake se achatou visivelmente e o sangue esguichou. A multidão rugiu e um frémito de exultação intensa percorreu a espinha de David.
Jake recuou, sacudiu a cabeça, como um cachorro, depois avançou vigorosamente, brandindo os braços.
No mesmo instante, alguém no fundo da multidão gritou em advertência:
- Cuidado! Chorou está vindo para cá!
David hesitou por um instante, começou a virar a cabeça para olhar. E o punho de Jake acertou em cheio em sua têmpora. Prontamente, a cena pareceu se desvanecer, misteriosamente. David sentiu-se tonto, imaginou por um momento que estava descendo para o fundo da mina, tão súbita era a escuridão que o envolvia, tão alto era o zumbido em seus ouvidos. E, depois, ele desmaiou.
O bando lançou um último olhar para David e depois se dispersou apressadamente. Até mesmo Ned Softley correu. Mas estava agora com o seu carvão.
Chorou se aproximou. Estava passeando pela praia, contemplando o fluxo e refluxo sobre a areia das ondas que vinham de longe. Jesus Chorou gostava muito do mar. Todos os anos, ele tirava dez dias de folga na Neptune e passava-os na Whitley Bay, andando de um lado para outro, à beira d'água, levando um cartaz com o seu texto predileto: Jesus chorou pelos pecados do mundo. O mesmo texto estava pintado em letras douradas na fachada de sua pequena casa. Era por isso que, embora seu nome fosse Ciem Dickery, era conhecido como Chorou, ou mais comumente como Jesus Chorou. Apesar de ser mineiro, Chorou não morava nos Terraços. Amulher, Susan Dickery,tinha uma pequena loja em que vendia pastelão de carneiro que ela própria fazia, no final da Lamb Street. Os Dickerys viviam por cima da loja. Susan preferia um texto mais forte: Preparai-vos para receber vosso Deus. Imprimira-o em todos os sacos de papel da loja, o que provocara o aparecimento de um ditado em Sleescale: Coma os pastelões Dickery e preparai-vos para encontrar vosso Deus. Mas os pastelões eram de fato muito gostosos. David gostava deles. E gostava de Ciem Dickery. Jesus Chorou era na verdade um fanático. Mas pelo menos era sincero.
Quando David voltou a si, abrindo os olhos, ainda atordoado, Chorou estava inclinado sobre ele, esfregando as palmas de suas mãos, observando-o com uma certa ansiedade melancólica.
- Já estou bem agora - murmurou David, soerguendo-se, apoiado no cotovelo.
Chorou, com uma discrição extraordinária, não fez qualquer referência à briga. Em vez disso, perguntou:
- Quando foi que tu comeste pela última vez?
- Esta manhã.
- Podes te levantar?
David levantou-se, apoiando-se no braço de Chorou, balançando-se meio trôpego, tentando indicar que não era nada com um sorriso.
Chorou fitou-o com uma expressão compenetrada. Sempre partia direto para a verdade. E disse:
- Estás fraco por falta de comida. Irás comigo à minha casa.
Ainda amparando David, ele conduziu-o lentamente pela areia, através das dunas, até sua casa, na Lamb Street.
David sentou-se à mesa na cozinha da casa de Chorou. Era ali que Chorou realizava as suas "reuniões de cozinha". Nas paredes, estavam penduradas alegorias coloridas: A Última Trombeta, O Juízo Final, Os Caminhos Largo e Estreito. Incontáveis anjos apareciam nas ilustrações, criaturas louras assexuadas, em trajes impecáveis, empunhando trombetas douradas. A luz brilhava sobre os anjos. Mas havia também escuridão, por entre as ruínas das colunas coríntias, onde as bestas das trevas vagueavam e oprimiam as hordas reunidas, tremendo à beira do abismo.
Por cima da lareira-fogão, havia fieiras de ervas e algas marinhas secas, penduradas na parede. Chorou conhecia todas as ervas medicinais, recolhia-as constantemente, nas respectivas estações, entre os arbustos e rochas. Ele estava agora parado junto ao fogo, preparando um chá de camomila num bule. Despejou finalmente numa xícara e estendeu para David. E depois, sem dizer uma só palavra, saiu da cozinha.
David tomou a infusão. Era amarga, mas aromática e bastante quente. Esquentou-o, confortou-o, fortaleceu-o, fez com que esquecesse inteiramente a briga, fez com que sentisse fome. A porta se abriu e Chorou tornou a entrar, acompanhado pela mulher. Ela era estranhamente parecida com o marido, uma mulher pequena e impecável, vestida toda de preto, discreta, de movimentos contidos, com a mesma expressão controlada e intensa. .Sem dizer nada, ela pôs um prato diante de David com dois pastelões de carneiro que acabara de fazer. Despejou um pouco de molho quente sobre os pastelões, de um pequeno pote azul esmaltado.
- Coma devagar - recomendou ela, calmamente.
Depois, recuou para o lugar em que o marido estava. Os dois ficaram observando David. Ele ainda hesitou por um instante, mas logo começou a comer.
Os pastelões estavam deliciosos, o molho consistente e saboroso. David terminou de comer o primeiro pastelão, até a última migalha. Depois, levantando os olhos subitamente, contemplou os olhos compenetrados que ainda estavam fixados nele. E Jesus Chorou citou, em tom solene:
- Eu vos alimentarei e aos vossos; e Ele os confortou e falou com bondade.
David procurou sorrir, para demonstrar sua gratidão. Mas alguma coisa, talvez o inesperado da bondade com que fora cumulado, apertou-lhe a garganta. Detestava aquilo, mas nada podia fazer para evitar. Um sentimento intenso invadiu-o, trazendo a recordação de tudo o que passara, de tudo o que todos haviam enfrentado naqueles últimos três meses. Sentiu o horror terrível, a carência, as coisas penhoradas, a amargura latente entre os pais, a raiva da mãe, a obstinação do pai. Ele tinha apenas 14 anos. No dia anterior, comera um nabo que pegara na fazenda de Liddle. Naquele mundo belo e rico, ele fora ao campo como um animal e pegara um nabo para aliviar a fome.
David apoiou a cabeça na mão esguia. Uma aspiração súbita e intensa surgiu dentro dele. Queria fazer alguma coisa... qualquer coisa... alguma coisa que impedisse tudo aquilo. Uma lágrima escorreu de seu olho e misturou-se com o molho do pastelão de carneiro. Nas paredes, os anjos sopravam suas trombetas. Envergonhado, David assoou o nariz.
III
Uma e meia; o almoço no Law estava quase terminando. Sentado muito empertigado, com os joelhos descobertos por baixo da toalha de damasco branco, as botinas mal encostando no tapete Axminster vermelho, Arthur continuava a importunar o pai com olhos afetuosos, conturbados. A tensão que pairava no ar, a sensação de crise, deixavam-no assustado, quase paralisado. Como sempre acontecia diante de uma crise emocional, ele perdera o apetite e até mesmo a simulação de comer deixava-o enjoado. Sabia que os homens estariam se reunindo naquele dia, os homens de seu pai, que deveriam estar trabalhando honesta e fielmente na mina de seu pai. Sabia que tudo dependia da reunião, na qual os homens decidiriam se voltariam ao trabalho ou se aquela greve terrível continuaria. Um pequeno tremor de ansiedade percorreu-lhe o corpo ao pensar nisso. Os olhos ardiam de lealdade, fixados no pai.
Arthur esperava também pelo convite para acompanhar o pai a Tynecastle. Estava esperando por isso desde as 10 horas daquela manhã, quando ouvira a ordem dada a Bartley para aprontar a charrete. Mas o convite habitual não viera. O pai iria a Tynecastle, iria à casa dos Todds, só que ele, Arthur, não o acompanharia. Era muito difícil suportar.
À mesa, uma conversa serena prosseguia, conduzida e dominada pelo pai. Aquela conversa tranquila fora mantida durante toda a duração da greve. Sempre sobre assuntos inteiramente irrelevantes, como a próxima apresentação do Messias pelo Coral Union, como o novo medicamento da mãe estava surtindo efeito, como estavam viçosas as flores na sepultura da avó, e sempre calma, perfeitamente calma. Richard Barras era um homem calmo. Exibia em tudo um controle inflexível. Sentava-se à cabeceira da mesa, com uma serenidade inabalável, como se a greve de três meses na mina de carvão Neptune não passasse de uma coisa sem a menor importância. Estava muito empertigado na cadeira grande... e era por isso que Arthur também sentava empertigado... comendo queijo, aipo de sua própria horta e biscoitos. Era uma comida simples, o almoço inteiro era simples. Barras só admitia os pratos mais simples e também gostava de regularidade: fatias finas de bife, presunto frio, carne de carneiro, uma coisa de cada vez. Detestava a opulência e exibição à mesa. Não permitia em hipótese alguma. Comia quase que distrai damente, comprimindo os lábios que já eram estreitos e de uma cor saudável, mastigando o aipo com os dentes sólidos. Não era um homem grande, mas tinha o peito largo e estufado, braços grossos, mãos imensas. Irradiava um senso poderoso de vitalidade física. A pele era avermelhada, o pescoço tão curto e musculoso que a cabeça parecia afundada nos ombros. Os cabelos prateados eram meticulosamente aparados, os malares salientes, os olhos excepcionalmente penetrantes e bem definidos. Dava uma impressão de homem do norte, não exatamente rude, mas sólido, inabalável. Era um homem de convicções firmes e fé evangélica profunda, um liberal, sabatista inflexível, que conduzia as preces vespertinas da família, lendo as Escrituras com tanta veemência que muitas vezes fazia Arthur chorar. Não tinha medo de confessar que escrevera hinos religiosos na juventude. Não havia coisa alguma que Barras tivesse medo de confessar. Sentado ali, tendo ao fundo o amarelo envernizado do grande órgão americano que instalara na sala de jantar, a um custo vultoso, por causa de seu amor por Haendel, Barras irradiava uma intensa integridade espiritual. Arthur sentia frequentemente essa transcendência. Adorava o pai. Para Arthur, o pai era absoluto, era como Deus.
- Vamos, Arthur querido, coma o seu pudim.
Tia Carrie, censurando-o gentilmente, fez com que os olhos perplexos de Arthur voltassem a se concentrar no prato. Era o pudim St. George, feito de cascas de bolo, pedaços queimados, que ele detestava. Mas empenhou-se em comer, esperando que o pai notasse e aprovasse. Hilda já tinha acabado, olhava para frente fixamente, com uma expressão sombria, sorumbática. Grace, sorridente e inocente, desfrutava alguma felicidade secreta interior.
- Estará em casa para o chá, Richard? - perguntou Tia Carrie, respeitosamente.
- Claro! Às cinco horas.
A voz dele era incisiva, perfeitamente controlada.
- Está bem, Richard.
- Pode perguntar a Harriet se ela tem alguma incumbência para mim hoje.
- Pois não, Richard.
Tia Carrie baixou a cabeça. Ela sempre fazia a maior demonstração de obediência a Richard. De qualquer forma, sua cabeça estava geralmente inclinada, num símbolo de submissão, a tudo e a todos, mas principalmente a seu destino na vida. Tia Caroline Wandless conhecia a sua posição. Embora fosse de uma família boa de Northumberland, não tirava partido desse fato. Nunca se prevalecia de qualquer coisa, nem mesmo de ser a cunhada de Richard. Ela cuidava das crianças, dava-lhes aulas todas as manhãs na sala de estudos, fazia-lhe companhia quando ficavam doentes, servia dedicadamente a Harriet, preparava pratos especiais, arrumava as flores, serzia as meias, tricotava cachecóis e despachava a roupa suja da família, desincumbindo-se de todas as suas tarefas com um ar de subserviência gentil. Cinco anos antes, quando Harriet caíra de cama, Tia Carrie viera para Law, a fim de tornar-se útil, como sempre fizera por ocasião dos partos da irmã. Aos 40 anos, com um corpo se avolumando cada vez mais, rosto pálido e rechonchudo, a testa vincada por um franzido de preocupação, cabelos neutros desarrumados, Tia Carrie ainda continuava a se fazerútil. Provavelmente tivera muitas oportunidades de se afirmar. Mas jamais esquecera que era uma dependente. Adquirira os pequenos hábitos e expedientes típicos dos dependentes. Mantinha um bule de chá e um estoque de biscoitos em seu quarto; enquanto os outros conversavam, saía da sala silenciosamente, como se tivesse subitamente chegado à conclusão de que não era desejada; em público, sempre falava com os criados com a correção necessária, mantendo a distância devida, embora em particular se mostrasse jovial, até mesmo familiar, insinuante: Não gostaria de ficar com esta blusa, Ann? Olhe, menina, quase não foi usada... Tinha um pouco de dinheiro próprio, cerca de cem libras por ano que recebia do Consols, o fundo social do governo britânico. Vestia-se sempre com a mesma tonalidade de cinza. Claudicava ligeiramente de um acidente de carruagem na juventude e havia uma vaga insinuação, totalmente inverídica, de que na mesma ocasião fora indevidamente tratada por um cavalheiro. Gostava imensamente de banhos quentes e tomava um em todas as noites de sua vida. Seu grande horror era o de que pudesse estar usando o banheiro no momento em que Richard o quisesse. De vez em quando, tal possibilidade lhe provocava um pesadelo, do qual despertava pálida e suando, convencida de que Richard a vira no banho. Barras correu os olhos pela mesa. Ninguém estava comendo.
- Não quer um biscoito, Arthur? - perguntou ele, firmemente, com a mão sobre a tampa de prata do pote de vidro.
- Não, obrigado, papai.
Arthur engoliu em seco, nervosamente.
Richard encheu seu copo com água, mantendo-o suspenso por um momento, a mão firme. A água parecia mais clara e mais fria porque ele a segurava. Bebeu-a lentamente.
Silêncio. Richard levantou-se- e saiu da sala.
Arthur quase desatou a chorar. Por que o pai não o estava levando a Tynecastle, justamente naquele dia, quando queria estar perto dele? Por que não o estava levando à casa dos Todds? O pai obviamente tinha negócios a tratar com Adam Todd, que era um engenheiro de minas, o seu mais antigo amigo. Mas isso não importava. Certamente ele poderia levá-lo e deixá-lo ficar com Hetty. com o coração palpitante, Arthur ficou zanzando pelo vestíbulo, olhando para os ladrilhos pretos e brancos, olhando para os lindos quadros do pai nas paredes, ainda acalentando uma esperança, mesmo sabendo que não havia nenhuma. Hilda subira direto para o seu quarto, levando um livro. Não fazia muita diferença. Nunca houvera muito sentimento entre ele e Hilda. Ela era brusca demais, difícil, irascível sem motivo. Parecia estar sempre lutando interiormente, lutando contra alguma coisa invisível. Embora tivesse apenas 17 anos, completados três meses antes, quando a greve ainda não começara, Hilda já usava os cabelos para cima. Arthur achava que Hilda nada tinha de simpática. E também não era bonita. Era áspera, dando a impressão de que desprezava tudo. Tinha uma pele azeitonada. E não exalava um cheiro dos mais agradáveis.
Enquanto Arthur estava zanzando pelo vestíbulo, Grace desceu a escada com uma maçã na mão.
- Vamos ver Boxer - suplicou Grace. - Por favor, Arthur. ..
Ele contemplou Grace. Ela tinha 11 anos, era um ano mais moça, pelo menos um palmo mais baixa. Arthur invejava a felicidade de Grace. Ela estava sempre com a mais feliz das disposições. Era uma criança meiga, simpática, terrivelmente desleixada. A travessa torta nos cabelos claros e macios dava a seu rosto uma aparência cómica de espanto. Os olhos azuis e grandes irradiavam uma inocência sincera. Até mesmo Hilda adorava Grace. Arthur já a vira, depois da mais violenta demonstração de raiva, pegar Grace e abraçá-la ternamente.
Arthur pensou por um momento. Deveria ou não acompanhar Grace? Queria ir, mas ao mesmo tempo não queria. Não conseguia se decidir, era-lhe difícil demais chegar a uma conclusão. Ele hesitou. E finalmente sacudiu a cabeça.
- Vá sozinha - disse ele, sombriamente. - Estou preocupado com a greve.
- É mesmo, Arthur? - perguntou Grace, aturdida.
Ele assentiu. O sentimento de que estava negando a si mesmo o prazer de ver o pónei mastigar a maçã deixou-o ainda mais triste.
Depois que Grace saiu, Arthur ficou escutando atentamente. O pai desceu finalmente. Levava uma valise estufada de couro preto debaixo do braço. Não deu a menor atenção a Arthur, seguindo direto para a carruagem à espera e indo embora.
Arthur sentiu-se humilhado, desesperado, angustiado. Não era porque sentisse tanta falta assim de Tynecastle. Ou porque ansiasse voltar à casa dos Todds. Claro que Hetty era simpática. Ele gostava de suas tranças compridas e sedosas, de seu sorriso jovial, do calor que irradiava quando às vezes o abraçava e pedia que lhe comprasse um sorvete de chocolate com os seis pence que ganhava aos sábados. Gostava e gostava muito de Hetty, não tinha a menor dúvida de que casaria com ela, quando crescesse. Gostava também do irmão dela, Alan Todd. E gostava do velho Todd, como Alan chamava o pai, com seu bigode irregular, manchado de tabaco, as pequenas manchas amarelas nos olhos e o cheiro estranho de alho e mais alguma coisa. Mas o fato de não poder vê-los agora não era o que perturbava Arthur. O que o transtornava, angustiava, torturava e desesperava era aquela negligência... o terrível abandono a que fora relegado por seu próprio pai.
Talvez não merecesse qualquer atenção, talvez fosse justamente esse o problema. Era pequeno demais para a sua idade e imaginava que não muito forte. Ouvira Tia Carne comentar várias vezes: Arthur é tão delicado! Embora Hilda tivesse ido à escola em Harrogats e Grace também iria em breve, ele, Arthur, não iria à escola. Tinha também bem poucos amigos. Era extraordinário'como poucas pessoas iam ao Law. Estava morbidamente consciente de si mesmo, como tímido, sensível, solitário. Sendo louro e claro, corava facilmente, o que fazia muitas vezes com que desejasse que a terra o tragasse. Ansiava com toda a força de sua alma pelo momento em que começaria a trabalhar com o pai na Neptune. Começaria aos 16 anos, aprendendo o lado prático; depois, faria alguns cursos, tiraria o seu diploma; e finalmente chegaria o dia maravilhoso em que trabalharia ao lado do pai. Ah, era um dia pelo qual valia a pena esperar!
E enquanto esperava, com as lágrimas lhe ardendo nos olhos, Arthur passou pela porta da frente da casa, sem rumo certo. O terreno do Law estendia-se à sua frente, um amplo gramado, com um laburno no meio, depois uma pastagem cercada, em seguida a descida até a praia arenosa. Dois cinturões de árvores estendiam-se nos lados, escondendo tudo o que não era aprazível na paisagem. A casa ficava bem perto de Sleescale, sobre o law ou colina que lhe dava o nome. Contudo, era como se estivesse a cem quilómetros de distância, pois de lá não se podia avistar os poços das minas e as pilhas de escória. Era uma boa casa de pedra, com a fachada quadrada, um pórtico ao estilo georgiano, um acréscimo construído posteriormente nos fundos e uma estufa. A fachada da casa estava coberta por hera, sempre aparada. Embora fosse uma casa simples, pois Richard detestava a ostentação, tudo estava na ordem mais impecável, o gramado sempre aparado, as beiradas definidas, nenhuma erva daninha aparecia no longo caminho vermelho. Havia muita tinta branca por toda parte, a melhor tinta branca, nos portões, cercas, janelas e armação de madeira da estufa. Richard gostava assim. Tinha apenas um homem para cuidar de tudo, Bartley, mas sempre muita gente disposta a subir da Neptune a fim de "fazer algum serviço para o patrão".
Os olhos desolados de Arthur correram pela paisagem tão agradável. Deveria ir se encontrar com Grace? Achou que sim, a princípio, depois pensou que não. Angustiado, não podia chegar a uma decisão. Depois, como sempre acontecia, ele recuou da decisão, voltando ao vestíbulo. Distraidamente, contemplou os quadros nas paredes, os quadros a que o pai dava tanta importância. Todos os anos, o pai comprava um quadro, às vezes dois, por intermédio de Vincent, o grande negociante de objetos de arte de Tynecastle, gastando o que parecia a Arthur, cujos ouvidos absorviam até os últimos detalhes de todas as conversas de Richard, quantias incríveis. Conscientemente, porém, Arthur aprovava aquela ação do pai, como aprovava tudo o que o pai fazia, assim como também aprovava o gosto do pai. Os quadros eram realmente maravilhosos, telas grandes, esplendidamente coloridas. Stone, Orchardson, Watts, Leighton, Holman Hunt... especialmente Holman Hunt. Arthur conhecia os nomes. Sabia que aqueles pintores, como o pai dizia, seriam os velhos mestres no futuro. Um quadro em particular, The Garden Lovers, atraía-o por sua ternura e suavidade, provocava-lhe uma angústia estranha, uma espécie de anseio, uma contração no estômago.
Arthur franziu o rosto, hesitou, olhando para um lado e outro do vestíbulo. Queria pensar, definir os fatos daquela greve horrível, entender a estranha e preocupada partida do pai para a casa dos Todds. Virando-se, ele seguiu pelo corredor e entrou no banheiro. Trancou-se lá dentro. Ali, finalmente, estava seguro.
O banheiro era o seu refúgio, o lugar em que ninguém podia incomodá-lo, para onde alguns dias levava os seus problemas e em outros se entregava a seus sonhos. O banheiro era um lugar maravilhoso para sonhar. De certa forma, fazia-o pensar numa igreja, na nave de uma catedral, pois era um cómodo alto, com cheiro desolado de igreja, um papel de parede envernizado, com pequenas arcadas góticas. Arthur experimentava ali dentro a mesma sensação que tinha ao contemplar The Garden Lovers.
Arthur baixou a tampa envernizada e sentou-se, a cabeça nas palmas das mãos, os cotovelos nos joelhos. Sentia de repente uma pontada adicional de ansiedade e tensão. Invadido por um desejo intenso de consolo, fechou os olhos com força. com o fervor que frequentemente o dominava, fez uma prece: Deus do céu, faça com que a greve termine hoje, faça com que todos os homens voltem a trabalhar para meu pai, faça com que compreenda o erro que estão cometendo, afinal, meu Deus, sabe como meu pai é bom, eu o amo, meu Deus, e também amo a Você, faça com que os homens ajam certo assim como meu pai, não deixe que continuem em greve, faça com que eu cresça depressa para estar com meu pai na Neptune, pelo amor de Jesus, amém.
IV
Richard Barras voltou às cinco horas para encontrar Armstrong e Hudspeth à sua espera. Ele chegou com a sua precisão fria habitual, sem demonstrar qualquer pressa, franzindo o rosto ligeiramente, trazendo a firmeza de sua personalidade para a casa, encontrando-se sentados no vestíbulo, lado a lado, a olharem para o chão, em silêncio. Tia Carrie, num alvoroço de hesitação, pusera-os sentados ali. George Armstrong, como supervisor da Neptune, teria ido normalmente para a sala de fumar. Mas Hudspeth era apenas assistente, antigo capataz. Além do mais, viera diretamente de uma inspeção no poço com os homens da segurança, estava com as botas sujas, calça molhada. Era impossível permitir que sujasse a sala de Richard'. Era uma situação das mais difíceis para Tia Carrie, que optara por um meio-termo, deixando-os à espera no vestíbulo.
A expressão de Richard não se alterou quando ele viu os dois homens. Já esperava por uma visita deles. Mas apesar da frieza de sua inflexibilidade, um brilho débil irradiou-se por um momento de seus olhos, prontamente reprimido. Armstrong e Hudspeth levantaram-se. Houve um breve silêncio.
- E então? - indagou Richard. Armstrong acenou com a cabeça, emocionado.
- Está acabado, graças a Deus.
Richard recebeu a notícia sem qualquer reação, como se o ligeiro tremor de emoção na voz de Armstrong lhe fosse repulsivo. Permaneceu empertigado, apartado, resguardado. Finalmente se mexeu, fazendo um gesto com a mão e conduzindo os dois visitantes à sala de jantar. Foi até o aparador, uma enorme peça de carvalho, de origem holandesa, esculpida num estilo barroco, com cabeças de crianças sorridentes. Despejou uísque em dois copos, depois tocou a sineta, pedindo chá numa bandeja para si. Ann trouxe imediatamente.
Os três homens beberam de pé, com Hudspeth esvaziando o copo num único gole, enquanto Armstrong bebia seu uísque com soda, em goles rápidos, nervosos. George Armstrong era um homem constantemente nervoso, um homem que parecia estar sempre com os nervos à flor da pele. Preocupava-se em demasia, transtornava-se com coisas sem maior importância, perdia o controle facilmente com os homens. Mas conseguia fazer muita coisa, através da pura intensidade nervosa de sua aplicação. Um homem de estatura mediana, começando a ficar calvo, com um rosto contraído e olheiras, era bastante popular na cidade, apesar de sua irritação permanente. Tinha uma boa voz de barítono e cantava nos concertos maçónicos. Era casado, com cinco filhos, sentia intensamente as suas responsabilidades. No fundo de sua alma, sentia um pavor desesperado de perder o emprego. Desculpou a mão que tremia nervosamente com uma risada depreciativa.
- Juro por Deus que não lamento que toda essa história estúpida tenha acabado, Mr. Barras. Não foi nada fácil para todos nós. Prefiro trabalhar um ano inteiro em dois turnos do que passar novamente pelos últimos três meses.
Barras ignorou o comentário, limitando-se a perguntar:
- Como acabou?
- Eles tiveram uma reunião no Instituto. Fenwick falou, mas não lhe deram a menor atenção. Depois foi a vez de Gowlan... creio que sabe quem é, Charley Gowlan, o homem que fiscaliza a pesagem do carvão extraído. Ele se levantou e disse que não havia outro jeito que não voltar ao trabalho. E depois Heddon despejou tudo em cima dos homens. Veio especialmente de Tynecastle. E pode estar certo, Mr. Barras, de que ele não poupou as palavras. Disse que eles não tinham o direito de entrar em greve sem o apoio do sindicato. Disse que a federação repudiava a greve. Chamou-os de bando de tolos confusos. E somente por estar na sua presença, Mr. Barras, é que nãoo repito as palavras certas que ele disse para pôr as coisas nos eixos. E depois os homens votaram. Oitocentos e tantos foram a favor de voltar ao trabalho imediatamente. Setecentos votaram contra.
Houve uma pausa.
- E o que aconteceu em seguida? - perguntou Barras.
- Eles foram ao escritório... um bando deles, Heddon, Gowjan, Ogle, Howe e Dinning. Posso lhe assegurar que estavam muito humildes. Pediram para lhe falar. Mas repeti o que me havia dito, que não receberia nenhum deles enquanto não voltassem ao trabalho. Gowlan fez um pequeno discurso. Até que ele não é dos piores, apesar de beber muito. Disse que estavam vencidos e sabiam disso. Heddon veio com aquelas besteiras habituais do sindicato, ameaçou com isso e aquilo, falou em levar o caso a Harry Nugent no Parlamento. Mas estava querendo apenas salvar as aparências. Para resumir, eles cederam completamente, pediram para voltar ao trabalho no primeiro turno da manhã. Eu respondi que iria consultá-lo, Mr. Barras, daria uma resposta por volta das seis horas.
Richard terminou de tomar o chá.
- Então eles estão querendo voltar ao trabalho...
Ele parecia encarar a situação como interessante e analisá-la sem qualquer emoção. Três meses antes, ele obtivera um contrato dos Parsons para fornecimento de carvão de coque. Tais contratos eram preciosos, muito raros, difíceis de obter. com o contrato no bolso, iniciara as operações, entrando no distrito de Scupeer Flats da Paradise, pondo-se a extrair o carvão de coque especial do Dyke, o único desse tipo que ainda estava na Neptune.
Fora então que os homens entraram em greve, apesar de seus esforços para impedir, apesar do repúdio do sindicato. O contrato não estava mais em seu bolso agora, fora jogado no fogo. Não cumprira o contrato. E perdera 20 mil libras.
O sorriso débil no rosto pálido parecia dizer que era uma situação interessante, muito interessante.
Armstrong disse:
- Devo afixar os avisos, Mr. Barras?
Richard contraiu os lábios, os olhos se fixando no subserviente Armstrong com uma súbita aversão.
- Pode afixar - disse ele, friamente. - Deixe os homens voltarem ao trabalho amanhã.
Armstrong suspirou de alívio, encaminhou-se instintivamente para a porta. Mas Hudspeth, cuja mente obtusa só funcionava-com o óbvio, continuou parado, retorcendo o boné entre as mãos.
- E Fenwick? - perguntou ele. - Também pode voltar ao trabalho? Barras respondeu:
- Isso é problema de Fenwick.
- E a outra bomba? - insistiu Hudspeth, diligentemente.
Era um camarada grandalhão, rosto apático, lábio superior muito comprido, amarelado.
Richard remexeu-se impacientemente.
- Que outra bomba?
- A bomba de que falou há três meses, no dia em que os homens entraram em greve. Tiraria muita água de Scupper Flats. Isto é, tiraria a água mais depressa, ficaria menos lama para os homens trabalharem...
Richard disse, frio como gelo:
- Está redondamente enganado se pensa que vou continuar a trabalhar em Scupper Flats. Aquele carvão de coque deve ficar esperando por outro contrato.
- Como quiser, senhor. - O rosto pálido de Hudspeth ficou subitamente vermelho.
- Creio que isso é tudo - disse Barras, em sua voz clara, incisiva. - Pode informar que estou contente que os homens estejam voltando ao trabalho, pelo próprio bem deles. Todas aquelas dificuldades desnecessárias na cidade foram horríveis.
- Claro que direi isso, Mr. Barras - murmurou Armstrong.
Richard Barras ficou calado. Como parecia não haver mais nada a dizer, Armstrong e Hudspeth deixaram a casa.
Por um momento, Barras continuou de costas para o fogo, pensando. Depois, tornou a guardar o uísque no aparador, pegou dois torrões de açúcar que haviam caído na bandeja e colocou-os metodicamente no açucareiro. Detestava o desleixo, desagradava-lhe a possibilidade de desperdiçar um só torrão de açúcar. No Law, nada podia ser desperdiçado. Ele não admitia. E isso ficava patente especialmente nas pequenas coisas. Economizava o uso de fósforos. Usava um lápis até que não havia mais onde segurar. As luzes deviam ser apagadas regularmente, os restos de sabão juntados para formar uma nova barra, a água quente devia se limitar ao estritamente necessário, até mesmo o fogo devia ser abafado com escória. O barulho de louça quebrada fazia com que o sangue lhe afluísse à cabeça. A principal virtude de Tia Carrie, a seus olhos, era o cuidado meticuloso com que tomava conta da casa.
Ele permaneceu parado, examinando as mãos brancas e bem cuidadas. Depois, abriu a porta e subiu a escada, lentamente. Não viu Arthur, cujo rosto levantado ansiosamente era como uma trémula lua pálida na semi-escuridão do vestíbulo. Entrou no quarto da mulher.
- Harriet!
- Pois não, Richard...
Ela estava sentada na cama, com três travesseiros por trás, fazendo croché. Usava três travesseiros porque alguém lhe dissera que três travesseiros era o melhor. E fazia croché porque o jovem Dr. Lewis, seu mais novo médico, receitara-o para os nervos. Ela fez uma pausa, levantando os olhos para fitar o marido. Tinha sobrancelhas pretas e espessas e uma pele muito escura por baixo dos olhos, a pele pigmentada da neurótica total. Sorriu para o marido, com uma expressão de quem pedia desculpas, levou a mão aos cabelos lustrosos, que estavam despenteados, emoldurando o rosto pálido.
- Não se importa, não é mesmo, Richard? Tive uma das minhas piores dores de cabeça. E pedi a Caroline que me fizesse esta tarde uma massagem na cabeça.
E ela tornou a sorrir... o seu sorriso de inválida sofredora, o sorriso triste de inválida, uma inválida confirmada. Sofria das costas, do estômago, dos nervos. De vez em quando, sentia as mais terríveis dores de cabeça, para as quais uma toalha embebida em vinagre era inútil... tudo era inútil, a não ser as escovadelas suaves de Caroline. Nessas ocasiões, Tia Carrie passava uma hora ou mais a escovar a cabeça de Harriet, em escovadelas compridas e lentas. Ninguém jamais conseguira determinar a causa dos problemas de Harriet. Ela já esgotara a capacidade dos Drs. Riddel, Scott e Proctor, os médicos de Sleescale, consultara especialistas de Tynecastle, até mesmo recorrera, em desespero, a um curandeiro, um homeopata, um herbalista, um terapeuta elétrico, que a envolvera com as maravilhosas cintas elétricas. Cada um dos charlatães começava como sendo maravilhoso, o homem certo finalmente, afirmava Harriet. Ao final, porém, lamentavelmente, todos comprovavam serem uns tolos, exatamente como Riddel, Scott, Proctor e os especialistas de Tynecastle. É verdade que Harriet não se entregava ao desespero. Conhecia bem o seu caso, lia persistentemente, perseverantemente, pacientemente, todos os livros que encontrava a respeito de seus males. Infelizmente, era inútil. Tudo, absolutamente tudo, era inútil. E não se diga que Harriet não tentava. Já experimentara todos os medicamentos que existiam sob o sol, seu quarto estava cercado por dezenas de vidros, tónicos, sedativos, linimentos, paliativos, antiespasmódicos, tudo enfim. Todos os medicamentos já lhe haviam sido receitados nos últimos cinco anos. Uma coisa pelo menos podia dizer-se de Harriet: ela jamais jogava fora um vidro de medicamento. Alguns dos vidros estavam praticamente cheios, só faltando uma dose. Harriet tinha tanta experiência que, depois de tomar apenas uma colherada de um novo medicamento, podia dizer:
- Pode levar. Sei que não vai me adiantar coisa alguma. E o vidro era guardado na prateleira.
Era terrível. Mas Harriet era uma mulher paciente. Estava confinada à cama. Contudo, comia muito bem. Havia ocasiões em que comia até bem demais, o que era parte do seu problema, já que o estômago a atormentava, com um excesso de gases. Apesar de tudo, conseguia se mostrar afável. Jamais discordava do marido, mostrando-se sempre dócil, submissa, compreensiva. Eximia-se do cumprimento dos mais íntimos deveres conjugais. Afinal, estava de cama, doente. Possuía um corpo grande, muito branco, um ar de santidade. Dava a estranha impressão de ser como uma vaca. Mas era muito devota. Talvez fosse uma vaca sagrada.
Barras contemplou-a, como de uma distância muito grande. Como exatamente a considerava? No momento, era impossível dizer.
- Sua dor de cabeça está melhor agora?
- Está um pouco melhor, Richard. Não desapareceu de todo, mas melhorou um pouco. Depois que Caroline escovou-me os cabelos, tomei um pouco daquela poção de valeriana que o jovem Dr. Lewis receitou. Acho que ajudou.
- Eu pretendia lhe trazer algumas uvas de Tynecastle, mas acabei esquecendo.
- Obrigada, Richard. - Era espantoso como Richard frequentemente esquecia de trazer as uvas, mas pelo menos sempre tinha a intenção. - Foi à casa dos Todds, é claro.
A expressão de Richard Barras ficou ligeiramente contrafeita. Arthur, ainda absorvido por seu enigma, deveria ter visto a expressão do pai.
- Estive lá, sim. Estão todos bem. Hetty parece mais bonita do que nunca, pensando em seu aniversário. Vai fazer 13 anos na próxima semana.
Richard virou-se para a porta, acrescentando:
- Por falar nisso, a greve acabou. Os homens voltam ao trabalho amanhã.
A boca pequena de Harriet se contraiu, formando a letra O. Num gesto. de proteção, ela levou a mão ao coração, coberto por flanela.
- Oh, Richard, estou tão contente! Por que não me disse logo? Isso é maravilhoso, um tremendo alívio!
Ele parou, na porta entreaberta, e disse:
- Pode me esperar esta noite. - Então ele saiu.
- Pois não, Richard.
Harriet recostou-se nos travesseiros, a surpresa satisfeita ainda pendurando em seu rosto. Depois, pegou um pedaço de papel e um lápis, escrevendo, com sua letra impecável: "Lembrar de dizer ao Dr. Lewis que o coração teve um baque forte quando Richard deu boa notícia." Fez uma pausa, pensativa, depois sublinhou a palavra forte. Finalmente voltou ao seu trabalho de croché, placidamente.
Já estava escuro quando Armstrong e Hudspeth passaram pelos grandes portões brancos do Law e entraram no caminho entre faias altas que levava à Hedley Road e à cidade. Andavam um tanto separados e em silêncio, pois nenhum dos dois gostava muito do outro. Mas, finalmente, espicaçado pela censura que recebera, Hudspeth resmungou, amargamente:
- Ele faz com que um homem se sinta muito sujo às vezes. É um demónio um bocado frio. Não consigo entendê-lo, por mais que tente.
Armstrong sorriu para si mesmo, no escuro. Desprezava Hudspeth secretamente como um homem sem educação, um homem que subira à custa do trabalho árduo, alcançando o sucesso mais por obstinação do que por mérito real. Sentia-se frequentemente irritado, até mesmo humilhado pela brusquidão e agressividade física de Hudspeth. Era bastante agradável vê-lo agora humilhado.
- Como assim? - indagou Armstrong, fingindo não ter compreendido.
- Entendeu muito bem o que falei - respondeu Hudspeth, asperamente.
Armstrong disse:
- Ele sabe o que está fazendo.
- Tem razão, ele conhece realmente o seu trabalho. E que Deus nos ajude se não conhecêssemos o nosso. Ele não nos pouparia. É daquele tipo que se considera perfeito e não tem a menor misericórdia com ninguém. Também ouviu o que ele disse, não é mesmo?
Hudspeth fez uma breve pausa, para depois acrescentar, arremedando Barras, com um tom de amargura:
- Todas aquelas dificuldades desnecessárias na cidade... Santo Deus, essa é muito boa!
- Ele estava falando sério.
- Estava uma ova! É o pior demónio de Sleescale e isso ainda é pouco! Estava simplesmente fervendo de raiva por dentro por ter perdido aquele contrato. E já que estamos falando nisso, vou lhe dizer outra coisa. Fico contente que Scupper Flats não seja reaberta. Claro que fiquei de boca fechada, mas sempre pensei quase a mesma coisa que Fenwick a respeito daquela maldita água.
Armstrong lançou um olhar brusco e desaprovador para Hudspeth.
- Isso não é jeito de falar.
Houve outro breve silêncio e depois Hudspeth declarou, visivelmente irritado :
- A verdade é que estou meio deslocado.
Armstrong não fez qualquer comentário. Continuaram a andar em silêncio, descendo pela Hedley Road, entrando na Cowpen Street, passando pelos Terraços. Ao se aproximarem da esquina, um clarão de luz e um burburinho de vozes fizeram com que os dois virassem a cabeça. Armstrong disse, com o desejo óbvio de mudar de assunto:
- Eles vão ter uma casa cheia esta noite.
- E das mais animadas - acrescentou Hudspeth, ainda mal-humorado.
- Amour recomeçou suas atividades, depois de mais de 15 dias sem dar crédito a ninguém.
Sem dizer mais nada, os dois foram afixar os avisos.
VI
No Salutation, o tumulto era cada vez maior. O pub estava apinhado ao ponto de sufocação, a fumaça turbilhonando, palavras, luzes fortes e o cheiro de cerveja espalhando-se pelo ar. Bert Amour estava por trás do balcão, em mangas de camisa, a lousa em que anotava a giz a relação dos homens e dos drinques que haviam tomado pendurada na parede ao seu lado. Bert era um homem que sabia das coisas. Nas duas últimas semanas, apesar de todos os rogos e ameaças, suspendera totalmente o crédito. Agora, porém, com o pagamento de sábado uma certeza iminente, ele prontamente voltara às atividades. O bar estava aberto, o pagamento adiado.
- Pode encher o copo de todo mundo, Bert, meu rapaz!
Charley Gowlan bateu com sua caneca, pedindo outra rodada. Charley não estava bêbado, nunca ficava realmente bêbado, encharcava-se como uma esponja, suava e ficava branco que nem carne de vitela, mas ninguém jamais o vira embriagado de verdade. Alguns dos homens ao seu redor, no entanto, já estavam bastante acesos, especialmente Tally Brown, o velho Reedy e Slogger Leeming. Era justamente Slogger quem estava mais embriagado. Era um sujeito rude, o rosto vermelho, todo amassado, nariz achatado, orelha de couve-flor, meio roxa. Fora pugilista na juventude e lutara no St. James's Hall, com o apelido cativante de Garoto Maravilha da Mina de Carvão. Mas a bebida e outras coisas haviam-no consumido. Voltara à mina, não mais era um garoto e muito menos maravilha. Nada tinha a mostrar de suas proezas nos tempos áureos, a não ser um temperamento esquentado, uma esquerda violenta e o rosto tristemente amassado.
Sempre uma espécie de mestre-de-cerimónias oficioso do pub, Charley Gowlan tornou a bater com a caneca na mesa. Estava insatisfeito com a ausência de jovialidade reinante naquela noite. Queria restabelecer o antigo clima de alegria que sempre predominara no Salutation. E comentou:
- Temos muito o que recuperar dos últimos três meses. Não fiquem tão desanimados, rapazes. Um coração triste nunca encontra motivo para se alegrar.
Os olhinhos de porco contemplaram radiantes os companheiros, em busca da aprovação exuberante habitual. Mas estavam todos muito contrariados e irritados para aprovarem. Em vez disso, Charley deparou com os olhos sardónicos de Robert Fenwick fixados nele. Robert estava em seu lugar de sempre, na extremidade do balcão, bebendo indiferente, como se nada mais pudesse agora despertar-lhe muito interesse.
Gowlan levantou sua caneca.
- Beba comigo, Robert. Bem que pode se molhar por dentro esta noite, já que amanhã vai ficar todo encharcado por fora.
Robert pareceu estudar o rosto inchado de Gowlan com uma total indiferença. E disse:
- Ficaremos todos completamente encharcados um dia. Ao que outros gritaram:
- Cale a boca, Robert.
- Não insista. Já disse o que tinha a falar na reunião.
- Já estamos cansados de ouvi-lo dizer isso nos últimos três meses. Uma expressão de tristeza e cansaço estampou-se no rosto de Robert.
Ele fitou os companheiros com olhos derrotados.
- Está certo, pessoal. Façam o que bem quiserem. Não direi mais nada. Gowlan sorriu insinuantemente:
- Se está com medo de descer em Paradise, por que não diz logo? Slogger Leeming interveio:
- Cale essa boca, Gowlan. Você não passa agora de uma mulher que fala sem saber o que diz. Robert é meu companheiro. E não fala do que não sabe. Ele conhece mais a maldita mina do que você conhece o seu próprio pau.
Houve silêncio, enquanto a multidão prendia a respiração, na expectativa de uma briga. Mas Charley jamais brigava e agora limitou-se a sorrir, meio embriagado. A tensão se dissolveu em desapontamento.
Foi nesse momento que a porta se abriu. Will Kinch entrou no pub, abrindo caminho com os cotovelos até o balcão.
- Sirva-me uma cerveja, Bert. Estou mais do que precisando. O interesse tornou a se reavivar, concentrando-se em Will.
- Ei, Will, qual é o problema?
Ele empurrou os cabelos caídos sobre a testa, pegou a caneca e virou-se para os companheiros. Tremia um pouco.
- Tenho problema que não acaba mais.
Ele cuspiu, como se quisesse tirar a sujeira da boca,-depois continuou, falando depressa:
- Minha Alice está passando mal, com pneumonia. A patroa queria que ela tomasse um chá quente. Fui até o armazém do Ramage. O próprio estava lá, parado atrás do balcão, com a sua imensa barriga e tudo o mais. Falei com a maior cortesia: "Mister Ramage, eu gostaria que me desse um pouco de chá para a minha garotinha, que não está passando bem. Pode estar certo de que lhe pagarei no sábado."
Os lábios de Will ficaram subitamente brancos e ele começou a tremer, da cabeça aos pés. Mas cerrou os dentes e forçou-se a continuar o relato:
- Pois ele me olhou de alto a baixo e disse com a maior tranquilidade: "Não vou vender fiado a ninguém." Fiquei meio transtornado e disse: "Ora, Mister Ramage, é só um pouquinho. A greve já terminou e o pagamento vai sair no sábado. Eu lhe pagarei tudo, tão certo como Deus é o meu criador."
Will fez nova pausa.
- Ele ficou calado por um momento, me lançando um olhar de desprezo. E depois disse, como se estivesse falando com um cachorro: "Eu não lhe daria nem mesmo um pedaço de osso. Você e seu bando são uma desgraça para esta cidade. Pararam de trabalhar porque quiseram e depois se põem a pedir a caridade das pessoas decentes. Saia da minha loja antes que eu o expulse."
Uma nova pausa.
- Não tive outro jeito que não sair.
Um silêncio profundo se abatera sobre os homens enquanto Will falava. Quando ele terminou, ficaram todos completamente imóveis, aturdidos. Bob Ogle foi o primeiro a se manifestar, resmungando:
- Santo Deus! Isso é demais!
E Slogger tratou de acrescentar, muito tenso:
- É demais mesmo! Não podemos admitir!
Todos começaram a falar ao mesmo tempo, num tumulto total. Slogger estava de pé, abrindo caminho pela multidão, meio trôpego.
- Não vou engolir essa, pessoal. vou dar uma lição pessoalmente no desgraçado do Ramage. Você vai ter o melhor que existe para a sua menina e não apenas um pouquinho de chá fiado, Will.
Ele agarrou o braço de Will Kinch afetuosamente e arrastou-o pela porta. Os outros saíram também, seguindo-os, manifestando seu apoio. O pub esvaziou-se em um minuto. Era um verdadeiro milagre. Não houve a menor necessidade de ficar insistindo "está na hora de fechar, por favor". Nunca o pub se esvaziara tão depressa. Somente Robert ficou, observando o atónito Amour, com seus olhos tristes e desiludidos. Tomou mais um trago, mas finalmente saiu também.
Lá fora, a multidão foi engrossada por uma vintena de homens mais moços, a turma que fazia ponto na esquina. Não tinham a menor ideia do que estava acontecendo, mas farejavam excitamento, encrenca, uma briga, já que Slogger estava à frente do bando. Todos desceram a Cowpen Street. O jovem Joe Gowlan meteu-se no meio da multidão.
Viraram a esquina e entraram na Lamb Street. Mas foram contidos quando chegaram à loja. Ramage a fechara para a noite. Estava vazia, às escuras, sem oferecer coisa alguma, a não ser a porta de ferro e o nome por cima: James Ramage - Armazém. Não havia ao menos uma vitrina à mostra para quebrar!
Os homens empacaram. Slogger deixou escapar um uivo de desespero. Toda a cerveja que bebera se misturara com o sangue e o sangue lhe subira à cabeça. Não se deixou abater. Por Deus, não se deixaria nunca! Havia outras lojas na rua, perto da de Ramage, lojas sem portas corrediças de ferro, como a de Bates, por exemplo. Ou a de Murchison, merceeiro, que tinha apenas uma tranca comum e um cadeado. Slogger gritou:
- Não estamos vencidos, pessoal! Vamos à loja do Murchison!
Ele correu para a porta da loja, levantou a bota pesada e bateu com força na tranca. Ao mesmo tempo, alguém nos fundos da multidão arremessou um tijolo. O tijolo espatifou a vitrina da loja. Foi o bastante. O barulho do vidro se estilhaçando foi o sinal para o saque.
Os homens arremeteram contra a porta, derrubaram-na, entraram na loja. Quase todos estavam embriagados, há semanas que não sabiam o que era comer direito. Tally Brown pegou um presunto e meteu-o debaixo do braço. O velho Reedy pegou algumas latas de frutas. Slogger, esquecendo inteiramente a simpatia sentimental pela Alice de Will Kinch, derrubou o batoque de um barril de cerveja. Algumas mulheres do Quay, atraídas pelo barulho, comprimiram-se por trás dos homens e começaram em pânico a se apoderar de tudo o que encontravam, picles, molho, sabão. Não importava o que fosse, contanto que fosse alguma coisa. Estavam aterrorizadas demais para olhar, simplesmente pegavam o que encontravam e jogavam em seus xales. O lampião da rua projetava uma claridade amarelada sobre a multidão.
Foi Joe Gowlan quem pensou no dinheiro. Não precisava de comida, pois estava bem alimentado, como o pai. Mas o dinheiro bem que lhe seria útil.
Ficando de quatro, ele foi avançando entre as pernas dos homens que se contorciam freneticamente. Rastejou por trás do balcão, encontrou a gaveta do dinheiro. Estava destrancada! Exultante com a negligência do velho Murchison, Joe meteu a mão na gaveta e pegou um bom punhado de moedas de prata, guardando no bolso. Depois, levantando-se, ele correu pela porta e afastou-se rapidamente.
Enquanto Joe deixava a loja, Robert entrava. Isto«, não chegou a entrar, parando no limiar, a inquietação em seu rosto transformando-se em profunda consternação.
- Mas o que estão fazendo?
O seu tom era suplicante. Estava chocado com o patético daquela violência mal orientada.
- Vão se meter na maior encrenca por causa disso! Ninguém lhe deu a menor atenção. Robert alteou a voz:
- Parem com isso! Será que não compreendem que é a pior coisa que poderiam fazer? Ninguém terá a menor compaixão de nós agora! Parem com isso! Estou lhes dizendo para parar!
Mas ninguém parou.
Um tremor convulsivo espalhou-se pelo rosto de Robert. Ele pôs-se a avançar através da multidão. E foi nesse momento que um barulho às suas costas fê-lo virar-se bruscamente, na direção do lampião. Era a polícia, Roddan, da ronda do Quay, junto com o novo sargento da delegacia.
- Fenwick! - gritou Roddan imediatamente, reconhecendo-o.
E tratou de segurar Robert. Um grito ainda mais alto partiu da multidão no interior da loja:
- A polícia! Vamos sair daqui! A polícia chegou!
E uma avalanche de corpos vivos, quase que formando uma única massa, despejou-se pela porta. Roddan e o sargento não fizeram a menor tentativa de deter a avalanche. Ficaram parados, completamente aturdidos, deixando a multidão passar. Depois, ainda segurando Robert, Roddan entrou na loja.
- Aqui tem outro, sargento! - exclamou Roddan subitamente, na maior alegria.
Em meio à desolação da loja saqueada, balançando incontrolavelmente, sentado no barril de cerveja, estava Slogger Leeming. Tampava com o dedo o buraco do batoque, na maior felicidade. Estava totalmente cego para o mundo.
O sargento olhou para Slogger, contemplou a loja, fixou-se em Robert.
- O caso é muito sério - disse ele, em sua voz ríspida, oficial. - Você é Fenwick, o homem que começou a greve.
Robert sustentou o olhar firmemente, dizendo:
- Não fiz nada.
O sargendo murmurou:
- Claro que não fez nada. ..
Robert abriu a boca para explicar, mas compreendeu que não havia a menor esperança de que entendessem. Não disse nada. Submeteu-se. Foi levado para a cadeia, junto com Slogger.
VII
Cinco dias depois, às quatro horas da tarde, Joe Gowlan avançava tranquilamente pela Scottswood Road, em Tynecastle, observando atentamente as janelas em que havia o cartaz Aluga-se Quarto. Tynecastle, aquela dinâmica cidade do Norte, repleta de movimento, clamor e cores, ressoando com o clangor dos bondes, o barulho dos pés, as batidas estrondosas dos martelos nos estaleiros, encantara Joe de verdade. Os olhos de Joe há muito que estavam voltados para Tynecastle, a apenas 32 quilómetros de sua cidade natal, como um lugar de possibilidade e aventura. Joe dava uma ótima impressão, um rapaz de pele clara, cabelos encaracolados, as botinas ofuscantemente escovadas, um ar jovial de quem sabia das coisas. Mas apesar da aparência esplêndida, Joe estava praticamente sem dinheiro. Desde que fugira de casa, as duas libras de prata, roubadas da gaveta de dinheiro de Murchison, haviam sido esbanjadas da maneira mais agradável, num estilo mais sofisticado do que o aspecto inocente de Joe podia sugerir. Joe estivera na galeria do Empire Music Hall, no interior do bar de Lowe e em outros lugares similares. Comprara cerveja, cigarros e os mais deliciosos cartões-postais imorais. E agora, depois de gastar honrosamente os seus últimos seis pence num banho, corte nos cabelos e graxa nas botinas, Joe estava procurando por um alojamento decente.
E ele foi descendo pela Scottswood Road, passando pelas cercas de ferro do mercado de gado, passando pela Duque de Cumberland, pela Plummer Street, pelo Elswick East Terrace. Era um dia nublado, mas seco, as ruas estavam alegremente movimentadas. Um trem apitou pomposamente e foi respondido pela sirene de um vapor no Tyne lá embaixo. Joe experimentava uma estimulante sensação de vida ao seu redor. Interiormente, sentia que o mundo era como uma grande bola de futebol a seus pés, pronta para ser chutada.
Além da Plummer Street, Joe parou diante de uma casa que exibia um cartaz: Pensão - Boas Camas - Somente Homens. Contemplou a casa por um momento, pensativo, mas acabou sacudindo a cabeça ligeiramente e seguiu em frente. Um momento depois, uma jovem aproximou-se, caminhando apressadamente na mesma direção, emparelhou com ele e passou adiante. Os olhos de Joe brilharam, todo o seu corpo se empertigou. Era uma jovem das mais graciosas, pés e tornozelos pequenos, cintura fina, quadris salientes, a cabeça empinada no ar como uma rainha. O olhar de Joe acompanhou-a ansiosamente. A moça atravessou a rua, subiu rapidamente os degraus e entrou na Scottswood Road, 117A. Fascinado, Joe parou e umedeceu os lábios, que haviam ficado ressequidos. Na janela da Scottswood Road, 117A havia um cartaz que dizia Aluga-se Quarto.
- Essa não! - exclamou Joe.
Ele abotoou o casaco, atravessou a rua sem qualquer hesitação e tocou a sineta.
Foi a própria moça quem veio abrir a porta, parecendo subitamente mais íntima a Joe, pelo simples fato de ter tirado o chapéu. Ela era ainda mais atraente do que ele julgara a princípio: provavelmente em torno dos 16 anos, com um nariz pequeno, olhos castanhos-claros, a pele alva, em que o recente caminhar acrescentara um viço rosado. As orelhas eram bem pequenas e quase grudadas na cabeça. Mas a boca era linda, disse Joe a si mesmo. Era grande, não excessivamente vermelha, parecendo muito macia, com uma penugem fascinante no lábio superior.
- O que deseja? - perguntou a moça, bruscamente.
Joe sorriu timidamente, baixou os olhos, tirou o gorro da cabeça, retorceu-o entre as mãos. Ninguém conseguia exibir uma atitude simples e acanhada melhor do que Joe; ele o fazia com perfeição.
- Desculpe, moça, mas eu estava procurando um quarto para alugar. Ela não retribuiu o sorriso. Os lábios se contraíram e examinou Joe com
evidente aversão. Jenny Sunley não gostava dos inquilinos da mãe, mesmo sendo apenas um, que ocupava o quarto vago dos fundos lá em cima. Julgava isso vulgar, e ser vulgar era para Jenny um pecado imperdoável.
Ela alisou a blusa, pôs as mãos no cinto lustroso e disse, com uma certa arrogância:
- Acho que é melhor você entrar.
Avançando reverentemente, Joe seguiu-a por um corredor estreito. No mesmo instante, percebeu o som e o cheiro de pombos. Pru-pru-pru-pru! Ele olhou para cima. Não havia pombos visíveis, mas no patamar intermediário a porta do banheiro estava aberta, revelando uma pequena corda de roupa lavada, com meias pretas compridas e diversas roupas brancas. São dela!, pensou Joe, deliciado. Mas ele disfarçou o olhar antes que a moça tivesse tempo de corar. Mesmo assim ela corou, por causa da negligência com a porta. E seu tom tornou-se subitamente irritado, quando declarou, com um movimento brusco da cabeça:
- É aqui mesmo, se você quer saber. A sala dos fundos!
Joe foi atrás dela, entrando na "sala dos fundos", um cómodo pequeno e frio, atravancado de móveis velhos de crina de cavalo, revistas ordinárias, presentes de Whitley Bay e sacos de ração de pombo. Dois pombos-correio azuis estavam solenemente pousados na platibanda por cima da lareira. Ao lado do fogo forte, balançando-se gentilmente numa cadeira de balanço que rangia sem parar, lendo Home Chat, estava uma mulher indolente e desmazelada, de olhos grandes e os cabelos empilhados no alto da cabeça.
- Mãe, aqui está alguém que quer ver o quarto.
E acomodando-se no sofá de mola quebrada, Jenny pegou uma revista velha e, ostensivamente, não se interessou mais pelo assunto.
A Sra. Sunley continuou a se balançar tranquilamente, confortavelmente. Somente as trombetas do Juízo Final impediriam que Ada Sunley ficasse à vontade. Era o que ela estava sempre fazendo, tirando um sapato ou afrouxando o espartilho, bebendo uma soda para aliviar os gases, tomando uma xícara de chá, sentando um pouco e lendo um jornal, até que a chaleira fervesse. Ada era uma mulher desleixada, gorda, jovial, sonhadora. De vez em quando, atormentava o marido; mas na maior parte do tempo era pachorrenta. Estivera no serviço doméstico "nos tempos da juventude", para uma "boa família", como sempre insistia. Era romântica, gostava de contemplar a lua cheia; era supersticiosa, jamais usava verde, passava por baixo de uma escada ou derramava sal sem jogar um pouco para trás, por cima do ombro esquerdo; adorava uma boa novela, especialmente quando tinha um final feliz. Queria ser rica, estava sempre participando de concursos, especialmente de limericks, os poemas humorísticos de cinco versos, sempre esperando ganhar muito dinheiro. Mas os limericks de Ada eram lamentáveis. Ela até que tinha frequentemente ideias extraordinárias, as ondas cerebrais da Mãe, como eram chamadas na família: mudar o papel de parede de um cómodo, forrar um sofá de pelúcia rosa, esmaltar a banheira, mudar-se para o campo, abrir um hotel ou uma loja, até mesmo escrever uma história, pois tinha certeza de que possuía o dom. Mas nenhuma das ideias de Ada jamais se concretizava. Ada nunca se afastava muito de sua cadeira de balanço. Alf, o marido, muitas vezes lhe dizia, suavemente:
- Santo Deus, Ada, você está ficando pirada! Agora, diante de Joe, ela disse:
- Pensei que fosse outra coisa. - Uma pausa. - Então está procurando por um quarto?
- Isso mesmo, madame.
- Só aceitamos um rapaz de cada vez. - Sempre que conhecia alguma pessoa, Ada tentava se dar ares de importância, mas logo abandonava a pose.
- Nosso último cavalheiro foi embora há uma semana. Vai querer também refeições?
- Se não for incómodo, madame.
- Terá de comer com a família. Somos seis pessoas na família. Meu marido, eu, Jenny que aqui está, Phyllis, Clarice e Sally, que é a caçula.,
Ada fez outra pausa, examinou Joe atentamente, antes de acrescentar:
- E quem é você, por falar nisso? De onde vem?
Joe baixou os olhos humildemente, mas foi invadido por uma onda de pânico. Entrara na casa como uma aventura, uma espécie de tentativa de diversão, mas agora sabia que tinha de ficar, de qualquer maneira. Aquela Jenny era maravilhosa, uma coisinha linda, deixava-o embasbacado. Mas que diabo ele ia dizer agora? Uma sucessão de mentiras plausíveis surgiu em sua mente, mas todas foram prontamente rejeitadas. Onde estava sua bagagem, o dinheiro para pagar adiantado? Oh, diabo! Joe suava. Entrou em desespero. E, subitamente, teve uma inspiração: nada podia ser melhor do que a verdade. Era isso mesmo, pensou Joe, exultante. Claro que não toda a verdade, mas algo bem próximo da verdade. Ele levantou a cabeça e fitou Ada, dizendo com uma sinceridade consciente:
- Eu poderia lhe dizer uma porção de mentiras, madame, mas prefiro contar a verdade. Fugi de casa.
- Essa não!
A revista foi baixada, a cadeira parou de balançar. A Sra. Sunley e Jenny fitaram-no com um novo interesse. O romance na melhor tradição se instalara no cómodo desarrumado.
Joe acrescentou:
- A situação era terrível e eu não podia mais aguentar. Minha mãe morreu, meu pai costumava me espancar até que eu mal conseguia ficar de pé. Tivemos uma greve na mina. Eu não tinha. .. não tinha o suficiente para comer.
Uma emoção viril brilhou nos olhos de Joe, enquanto ele continuava a falar. Era glorioso, simplesmente glorioso, tinha as duas na palma da mão!
- Quer dizer que sua mãe morreu? - balbuciou Ada.
Joe assentiu lentamente. A última convenção estava consumada.
Ada deixou que seus olhos suaves contemplassem a beleza arrumada e aprumada do rapaz, com uma crescente simpatia. O pobre coitado sofrera muito, pensou ela. E era bem bonito, com seus olhos castanhos-claros, os cabelos crespos. Mas cabelos crespos não pagam o aluguel, infelizmente. E tendo de pensar na música de Sally... Ada recomeçou a balançar. Apesar de toda a sua indolência desleixada, Ada Sunley não era nenhuma tola. E sabia o que fazia.
- Não pode ficar aqui conosco por compaixão - declarou ela, calmamente. - Precisa ter um trabalho, um bom emprego. Meu Alf me disse hoje que estão aceitando novos empregados em Millington-Yarrow, a fundição no caminho para Platt Lane. Tente ver se consegue alguma coisa por lá. Se tiver sorte, pode voltar. Caso contrário, não precisa tornar a aparecer.
- Pois não, madame.
Joe manteve o ar de probidade inocente até sair da casa. Depois, em sua exultação, atrevessou a rua correndo.
- Ei, você aí! - Ele segurou pela gola um garoto-mensageiro que passava. - Diga qual é o caminho para a Fundição de Millington ou vou lhe torcer o maldito pescoço!
Ele seguiu quase correndo para Yarrow, que ficava longe, muito longe mesmo. Apresentou-se na Fundição. Mentiu nobremente, deslavadamente, mostrando os músculos desenvolvidos ao capataz. Sua sorte persistiu, pois estavam precisando urgentemente de mais homens. Foi contratado como ajudante de pudlagem, a 25 shillings por semana. Depois da mina, era uma fortuna. E havia Jenny, Jenny, Jenny...
Joe voltou à casa da Scottswood Road lentamente, fazendo um esforço para se controlar, dizendo a si mesmo que devia ser cuidadoso, não se precipitar em coisa alguma, preparar o terreno meticulosamente. Mas o triunfo aflorou exultante através da ténue camada de cautela quando ele tornou a entrar na sala dos fundos.
Toda a família estava reunida ali, acabara de tomar o chá. Ada estava refestelada à cabeceira da mesa, com Jenny ao seu lado. Depois, vinham as três filhas mais moças: Phyllis, a própria imagem da mãe, loura, lânguida e com 13 anos de idade; Clarice, morena, de pernas compridas, com 11 anos e meio, tendo nos cabelos uma fita vermelha, tirada de uma caixa de chocolate de Jenny; e finalmente Sally, uma esquisita menina de 10 anos, com a boca grande de Jenny, olhos pretos hostis e uma expressão serena e confiante. Na outra extremidade da mesa estava sentado Alfred, o marido de Ada, pai das quatro garotas e chefe da família, um homem insignificante, de rosto pálido, ombros vergados e um bigodinho ralo. Estava com torcicolo e não usava colarinho, os olhos eram bem claros. Alf era pintor de paredes e absorvia uma boa quantidade de alvaiade no processo de espalhá-la pelas fachadas das casas de Tynecastle. Era o que lhe dava o rosto pálido, dores no estômago e a linha azulada que se podia divisar ao longo das gengivas. O torcicolo, no entanto, não era decorrência de suas atividades de pintor, mas sim dos pombos. Alf era um criador, sua paixão eram os pombos-correio, azuis e vermelhos, de primeira categoria. E voando seus pombos, observando-os deslizar pelo vasto azul do céu, Alf gradativamente acabara ficando com um torcicolo permanente, o pescoço singularmente torto.
Joe examinou o grupo ali reunido e exclamou jovialmente:
- Eles me aceitaram. Começo a trabalhar amanhã. E vou receber 25 shillings por semana.
Jenny obviamente o esquecera, mas Ada pareceu ficar satisfeita, à sua maneira indolente.
- Não lhe falei? Vai me pagar 15 shillings e assim lhe sobrará dez. Mas só por enquanto. Vai ter logo um aumento. Quem trabalha na pudlagem sempre ganha bem.
Ada bocejou delicadamente por trás da mão e depois vagamente abriu uma vaga na mesa atravancada dizendo:
- Clarry, pegue uma xícara e um pires na copa, depois corra até a Sra. Gresley e compre, três pence de presunto. E não se esqueça de verificar quando ela pesar. Bem que podemos ter alguma coisa saborosa para começar. Alf, esse é Mr. Joe Gowlan, nosso novo cavalheiro.
Alf interrompeu a lenta mastigação de um último pedaço de pão encharcado em chá, para presentear Joe com um aceno de cabeça, lacónico, mas impressivo. Clarry não demorou a voltar, pondo diante de Joe uma xícara e um pires. O chá escuro foi servido, um pouco de presunto apareceu, junto com um pedaço de pão. Solenemente, Alf empurrou a mostarda na direção de Joe.
Joe sentou ao lado de Jenny no sofá de crina de cavalo. Sentia-se inebriado por estar ao lado dela, ao pensar como maravilhosamente conseguira. Ela era deslumbrante, nunca antes o desejo o acometera de maneira tão intensa e súbita. Ele preparou-se para agradá-los, cativar a todos... não a Jenny, é claro, de jeito nenhum, pois Joe sabia como fazer as coisas. Ele exibiu o seu sorriso mais afável e caloroso. Pôs-se a falar, uma conversa fácil, inventou episódios engraçados de seu passado. Lisonjeou Ada, brincou com as meninas. Contou uma história devidamente divertida que ouvira numa apresentação de trovadores da Banda da Esperança. Não chegara a pertencer realmente à Banda da Esperança. Ingressara na noite anterior ao concerto, desligara-se bruscamente do movimento religioso na manhã seguinte. A história teve a melhor acolhida, exceto por Sally, que a ouviu desdenhosamente, e Jenny, que permaneceu com sua altivez inabalável. Ada sacudiu-se de risadas, as mãos nos flancos gordos, derrubando grampos por toda parte.
- E Bonés encontrou a mosca em sua salsaparrilha... Ora, Mr. Gowlan...
- Chame-me de Joe, Sra. Sunley. Trate-me como se fosse da família.
Ele estava conquistando-os, em breve todos estariam inteiramente dominados. A emoção da vitória subiu à cabeça de Joe como vinho. Era assim mesmo, ele podia conseguir, podia dominar a vida, extrair tudo de proveitoso. Continuaria assim, teria tudo o que quisesse, qualquer coisa. Era só esperar para ver.
Mais tarde, Alf convidou Joe a vê-lo alimentar os pombos. Saíram para o quintal, onde os pombos arrulhavam, esticavam para fora e recolhiam as cabeças no pombal que o próprio Alf fizera, bicando os grãos delicadamente. Longe da presença da mulher, diante da qual se mantinha calado, humilde e retraído, Alf revelou-se um pequeno herói, com opiniões não apenas sobre seus pombos, mas também sobre cerveja, patriotismo e as perspectivas de Spearmint no Derby. Foi afável com Joe, ofereceu um cigarro amigavelmente. Mas Joe sentiu-se irritado, pois estava ansioso em voltar para junto de Jenny. Depois de fumar o cigarro, ele pediu licença e voltou para dentro da casa.
Jenny estava sozinha na sala dos fundos. Continuava sentada no sofá, absorvida na mesma revista.
- com licença - murmurou Joe. - Gostaria que mostrassem meu quarto. Ela nem mesmo baixou a revista, que mantinha erguida com um dedo
elegantemente levantado.
- Uma das meninas pode mostrar. Joe não se mexeu.
- Não costuma sair para dar um passeio à noite... no seu meio dia de folga... como hoje?
Não houve resposta.
- Você serve numa loja, não é mesmo? - insistiu Joe, pacientemente, Ele tinha uma vaga recordação da Slattery's, numa loja grande, de vitrinas de vidro, na Grainger Street.
Jenny condescendeu em fitá-lo.
- E se. eu trabalhar? Não é da sua conta. E já que estamos falando nisso, eu não sirvo. É uma palavra vulgar e a detesto. Trabalho na confecção de chapéus. E é um trabalho dos mais refinados. Detesto tudo o que é vulgar e baixo. E, mais do que qualquer coisa, detesto os homens que têm um trabalho vulgar.
A revista tornou a subir, bruscamente. Joe coçou o queixo, pensativo, contemplando-a de alto a baixo, os tornozelos impecáveis, os quadris arredondados, os seios aflorando. Então não gosta de homens que fazem um trabalho sujo, vulgar, pensou ele, com um sorriso interior. Pois garanto que vai encontrar em mim o mais sujo de todos.
VIII
Para Martha, a desgraça foi terrível. Nunca, em toda a sua vida, imaginara que uma coisa assim fosse possível. Jamais! Era profundamente horrível. Enquanto trabalhava na cozinha, verificando as batatas com um garfo, levantando a tampa da panela para ver se o guisado já estava no ponto, procurava não pensar a respeito. Mas não adiantava, pois tinha de pensar. Lutou em vão, batalhou tenazmente contra o pensamento de que ela, Martha Redpath, tivesse de terminar assim. Sua família, os Redpaths, sempre haviam sido pessoas decentes, metodistas decentes, religiosos decentes, mineiros de carvão decentes. Podia remontar a quatro gerações com orgulho, sem encontrar qualquer mancha na família. Todos haviam trabalhado decentemente no fundo da terra e se comportado decentemente na superfície. E agora? Agora, ela não era mais uma Redpath, era uma Fenwick, a mulher de Robert Fenwick. E Robert Fenwick estava na cadeia!
Um espasmo de amargura estampou-se no rosto dela. Na cadeia! A cena surgiu diante dos olhos dela, como já acontecera uma centena de vezes, toda a cena angustiante: Robert de pé no tribunal, com Leeming ao seu lado, logo Leeming, entre todos os homens! James Ramage prestando depoimento, rude, de cara vermelha, arrogante, não poupando as suas palavras, dizendo exatamente o que pensava. Ela fora ao tribunal. Não pudera deixar de ir, era a sua obrigação. Estava presente, vira tudo, ouvira tudo. Três semanas sem alternativa. Ela poderia ter gritado quando Ramage condenara seu marido. Poderia ter morrido. Mas o orgulho mantivera-a empertigada, ajudara-a a assumir uma expressão impassível. O orgulho ajudara-a a enfrentar aqueles dias terríveis, ajudara-a até mesmo naquela tarde em que, voltando da cidade com as mensagens que fora buscar, a mulher de Slogger Leeming abordara-a na esquina da Alma e dissera, num tom de compaixão, que seus homens estariam fora da cadeia no sábado. Seus homens e fora da cadeia!
com um olhar para o relógio, a primeira coisa que Sammy tirara do prego para ela, Martha puxou a tina de estanho para a frente do fogo e começou a enchê-la com água quente do caldeirão. Usava uma panela de ferro como concha. As jornadas de um lado para outro, com o peso extra, constituíam um esforço terrível. Não vinha se sentindo bem ultimamente. Sabia que não estava bem e naquele momento sentia-se fraca e trémula. E também sentia uma dor profunda. Teve de parar por um minuto, a fim de atenuar a pressão no flanco. Sabia que era a preocupação que causava aquilo, pois era uma mulher forte. Estaria se sentindo melhor se a criança dentro dela apresentasse sinais de vida. Mas não havia qualquer movimento, absolutamente nenhum, apenas um peso terrível.
O relógio bateu cinco horas e pouco depois o barulho de pés ressoou pelos Terraços, os passos lentos de homens cansados. Nove horas de trabalho exaustivo e depois os Terraços para subir. Mas era um trabalho honesto e bom, arraigado nos ossos deles. E nos ossos de Martha também. Os filhos eram jovens e fortes. Era o trabalho deles. E Martha não desejava qualquer outro.
A porta se abriu nesse momento e os três entraram, Hughie primeiro, depois David e finalmente Sammy, com um pouco de lenha debaixo do braço, para o fogo. Ah, o querido Sammy... Estava sempre pensando nela. Um ímpeto de afeição rompeu o gelo que envolvia o coração de Martha. Ela experimentou uma vontade súbita de abraçar Sammy e chorar.
Todos estudaram atentamente o rosto dela. A casa andava opressiva naqueles últimos dias, Martha estava deprimida, todos passavam por um período difícil. Ela sabia disso e sabia que os filhos examinavam-na ansiosamente. E isso a magoava, embora fosse culpada pelo clima reinante na casa.
- Como está, mãe?
Sammy sorriu, os dentes falseando muito brancos contra a escuridão do pó de carvão, que o suor grudara em seu rosto, como uma crosta.
Martha adorava a maneira como Sammy a chamava de "mãe". Mas limitou-se a acenar com a cabeça na direção da tina, que já estava pronta, virando-se em seguida para a mesa.
com a mãe na sala, os três rapazes tiraram as botinas, casacos, calças de trabalho, camisetas, tudo encharcado de água e suor, impregnado com o pó da mina. Juntos, em pêlo, ficaram de pé na tina fumegante, esfregando-se. Não havia muito espaço e .sempre cumpriam aquele ritual com brincadeiras. Mas não houve muita brincadeira naquela noite. Sam ainda tentou, cutucando Davey, sorrindo e dizendo:
- Abaixe um pouco a tromba, seu elefante. E, um momento depois, ele comentou:
- Ei, meu camarada, você por acaso engoliu o sabão?
Mas o esforço de pilheriar não era genuíno. A tensão na casa, no rosto de Martha, não permitia. Vestiram-se sem qualquer brincadeira, sentaram para o jantar praticamente em silêncio.
Foi um jantar suculento, com imensas porções do saboroso guisado, repleto de cebolas e batatas se desmanchando na boca. Os jantares de Martha eram sempre suculentos, pois ela conhecia o valor de um bom jantar para um homem. Agora, graças a Deus, aquela greve horrível acabara e ela podia providenciar uma boa comida para os filhos. Martha ficou observando-os comer, tornar a encher os pratos. Ela própria não estava com vontade de comer, mas tomou um pouco de chá. Mas nem o chá ajudou muito. Uma dor difusa começou a se espalhar por suas costas, fez pressão contra os seios e desvaneceu-se antes que pudesse reconhecer sua natureza.
Os filhos terminaram de jantar. David foi o primeiro a se levantar, indo para o canto em que estavam seus livros, sentando-se num banco baixo perto do fogo, com um lápis na mão e um caderno nos joelhos. Latim, pensou Martha, sombriamente, ele está estudando latim agora. O pensamento, sobrepondo-se à sua amargura, deixou-a estranhamente irritada. Era coisa de Robert, aquela instrução, aquele desejo do garoto de estudar, de candidatar-se a uma bolsa de estudos no ano seguinte, elevar-se acima de sua situação. Robert pusera o filho para frequentar as aulas noturnas de Mr. Carmichael, na Bethel Street. E Martha, que vinha de uma longa linhagem de mineiros, uma mulher que orgulhosamente tinha consciência de classe, desprezava o que se aprendia nos livros, estava convencida de que nada de bom poderia resultar disso.
Hughie levantou-se em seguida, foi ao lavatório e voltou com um martelo e uma forma de sapato, as velhas botinas de futebol e 12 travas de couro novas. Nos fundos da cozinha, longe dos demais, ele acocorou-se, inclinou a cabeça escura, ainda lustrosa do banho, começou a martelar as traves, à sua maneira taciturna e absorta. No último sábado, ele não entregara à mãe seis pence de seu pagamento. Não dissera nada, ficara simplesmente com o dinheiro. Martha devia ter adivinhado o motivo. Futebol! Não era apenas um amor pelo esporte, embora ele o amasse com todo seu coração. Não, não era apenas isso. Martha sabia que o interesse de Hughie era mais profundo. Hughie queria ser um astro, um jogador de futebol na liga principal, um atleta que ganhava seis libras por semana graças à sua habilidade no jogo. Esse era ao mesmo tempo o segredo e a ambição na alma de Hughie. Era o que o mantinha afastado do cigarro, o que o impedia de sequer tomar um copo de cerveja, como poderia fazer aos domingos. Era o que o afastava das conversas com as garotas. .. Martha sabia que Hughie nem olhava para as garotas, embora muitas olhassem para ele. Era o que o fazia correr vários quilómetros à noite, dizendo que se tratava de treinamento. Quer estivesse ou não cansado, Hughie sairia para correr, assim que terminasse de ajeitar as botinas. Era algo que Martha podia prever com certeza.
Martha franziu o rosto. Aprovava de todo coração a vida espartana de Hughie, nada poderia ser melhor. Mas para que ele estava fazendo tudo aquilo? Para deixar a mina! Hughie também estava se empenhando, com toda força de sua alma, em deixar a mina. Martha não tinha a menor fé na ilusão deslumbrante do filho e nenhum receio de que ele pudesse realizar o seu sonho.
Mas sentia-se preocupada com a estranha devoção de Hughie ao seu sonho. Era algo que a atormentava.
Instintivamente, Martha olhou para Sammy, que ainda estava sentado à mesa, impacientemente fazendo desenhos no oleado com o cabo da faca. Ele sentiu o olhar da mãe, pois depois de um momento largou a faca e se levantou, encabulado. Ficou parado por um momento, as mãos nos bolsos, depois foi até o espelho pequeno por cima da pia. Pegou o pente que estava sempre no fundo do suporte esmaltado do sabão, molhou-o, repartiu os cabelos cuidadosamente. Depois, pegou um colarinho limpo, que Martha engomara e passara a ferro naquela tarde mesmo e deixara pendurado na grade perto do fogo. Ajeitou o colarinho no pescoço, pôs a gravata, procurou se fazer o mais elegante possível. Depois, assoviando meio constrangido, encaminhou-se para a porta.
A mão de Martha, pousada no joelho, contraiu-se tão tensamente que as articulações ficaram brancas, parecendo osso.
- Sammy!
Sam, já passando pela porta, virou-se bruscamente, como se tivesse levado um tiro.
- Para onde vai, Sammy?
- vou sair, mãe.
Ela não permitiu que o sorriso do filho atenuasse a firmeza que exibia.
- Sei que vai sair. Mas para onde vai?
- vou descer a rua.
- Vai descer a Quay Street?
Ele fitou-a, o rosto franco agora corado, com uma expressão obstinada.
- Isso mesmo, mãe, vou descer a Quay Street, se está querendo saber.
O que significava que seu instinto era verdadeiro, pensou Martha. Sammy ia procurar Annie Macer. Ela detestava os Macers, desconfiava deles, o pai imprevidente, o filho turbulento, Pug Macer. Estavam na mesma categoria que os Leemings, simplesmente não eram respeitáveis. Nem sequer eram mineiros de carvão, mas "gente da pesca", parte daquela comunidade separada que levava uma vida incerta, de "desperdício e carência", como dizia Martha, com uma vida farta num mês, no outro penhorando o barco e as redes. Ela nada tinha contra o caráter de Annie, muita gente dizia que era uma moça decente. Mas não era a moça certa para Sammy. Pertencia à família errada, apregoava peixe na rua, chegara mesmo a ir a Yarmouth num ano ruim, a fim de ajudar a sorte da família, como uma coisa sem préstimo. Sammy, o seu filho querido, que esperava ver um dia tornar-se o melhor mineiro da Neptune, não podia casar com uma moça assim. Nunca! Jamais! Martha respirou fundo.
- Não quero que você saia esta noite, Sammy.
- Mas sabe que eu prometi, mãe. Pug Macer e eu vamos sair. E Annie também vai.
- Isso não importa, Sammy. - A voz de Martha era agora áspera, estridente. - Não quero que você saia.
Ele fitou-a e Martha deparou com uma firmeza inesperada nos olhos ternos, afetuosos.
- Annie está me esperando, mãe. Desculpe, mas vou sair. E Sammy saiu, fechando a porta.
Martha continuou sentada, imóvel, rígida. Pela primeira vez em sua vida, Sammy lhe desobedecera. Tinha a sensação de que o filho lhe desferira uma bofetada. Consciente dos olhares furtivos de David e Hughie, ela fez um esforço para se controlar. Levantou-se, tirou a mesa, lavou a louça com mãos que tremiam.
David perguntou:
- Quer que eu enxugue para você, mãe?
Ela sacudiu a cabeça, enxugou toda a louça, sentou-se com alguma costura para fazer. Teve alguma dificuldade em enfiar a linha na agulha. Pegou uma velha camiseta de trabalho na mina, de Sammy, tão remendada que quase não restava coisa alguma da flanela original. A visão da camiseta deixou-a angustiada. Fora brusca demais com Sammy. Sentiu subitamente que não o tratara da maneira apropriada, que ela e não o filho era a culpada pela cena. O pensamento penetrou-a fundo. Sam faria qualquer coisa por ela, absolutamente qualquer coisa, se ao menos o tratasse da maneira apropriada.
com os olhos enevoados, Martha preparou-se para remendar a camiseta quando, de repente, a dor nas costas tornou a acometê-la. A dor foi terrível desta vez, paralisando-a por completo. No mesmo instante, Martha compreendeu do que se tratava. Consternada, ficou esperando. A dor foi, voltou. Sem dizer nada, ela levantou-se e saiu pela porta da cozinha. Subiu com dificuldade até a casinha. Era aquilo mesmo.
Martha saiu, parou por um momento, cercada pela escuridão da noite, apoiando-se na cerca divisória baixa com uma das mãos, "amparando o corpo intumescido com a outra. Acabara lhe acontecendo, enquanto o marido estava na prisão, aquela última indignidade. E diante dos dois filhos crescidos. Inescrutável como a escuridão que a envolvia, Martha pensou rapidamente. Não podia contar com o Dr. Scott nem com a Sra. Reedy, a parteira. Robert esbanjara loucamente as economias da família na greve. Ela estava endividada, não podia e não queria assumir novas despesas extras. Levou apenas um minuto para tomar uma decisão.
Ela retornou à casa.
- David, corra até a Sra. Brace e diga-lhe para vir me falar imediatamente.
Espantado, ele olhou para a mãe, com uma expressão inquisitiva. Ela nunca fora muito importante para David, sempre mais chegado ao pai. Agora, no entanto, a expressão nos olhos dele deixou Martha comovida. E ela disse-lhe, gentilmente:
- Não precisa ficar preocupado, Davey. Apenas não estou me sentindo muito bem.
Enquanto o filho saía apressadamente, Martha foi até a arca em que guardava os panos para a ocasião e abriu-a. Depois, desajeitadamente, levantando um pé depois de outro, lentamente, cautelosamente, subiu a escada para o quarto dos filhos por cima.
A Sra. Brace, a vizinha, apareceu um momento depois. Era uma mulher bondosa, de fôlego curto e extremamente corpulenta. A pobre coitada dava a impressão de que também estava para ter um filho. Mas não era o caso. Hannah Brace era herniada, como ela própria dizia. Tinha uma hérnia umbilical, resultado de incontáveis gravidezes. Todos os Natais, o marido Harry fielmente lhe prometia o artigo, mas até agora ela ainda não tinha uma funda para segurar a hérnia. Todas as noites, quando se deitava, Hannah Brace solenemente empurrava para trás a massa esbugalhada; todas as manhãs, quando se levantava, a massa tornava a saltar para fora. Ela se tornara quase afeiçoada à hérnia. Representava um tópico de conversa, falava a respeito com as amigas íntimas com a mesma naturalidade com que outras pessoas comentam o tempo. Hannah subiu a escada também com a maior cautela e desapareceu no quarto lá em cima.
David e Hughie continuaram sentados na cozinha. Hughie largara as botinas de futebol e agora parecia absorvido num jornal. David também fingia ler. Mas, de vez em quando, os dois se entreolhavam, pensando no mistério que secretamente se desenrolava no quarto lá em cima. Nos olhos de ambos havia uma estranha vergonha. Pensar numa coisa daquelas. .. e acontecendo com a própria mãe!
Nenhum som vinha do quarto lá em cima, a não ser os passos pesados da Sra. Brace. Em determinado momento, ela pediu uma chaleira com água quente. Davey entregou.
Sam voltou às 10 horas, um tanto pálido, os dentes cerrados, pronto para escutar uma descompostura da mãe. Contaram-lhe o que estava acontecendo. Ele corou, como fazia tão facilmente, foi invadido pelo remorso. Sam não podia suportar uma situação assim. Levantou os olhos para o teto e murmurou:
- Minha pobre mãe...
Era o máximo que qualquer deles se atrevia a dizer.
A Sra. Brace desceu quando faltavam 20 minutos para 11 horas, trazendo um pequeno embrulho de jornal. Parecia triste, consternada. Lavou as mãos vermelhas na pia, tomou um copo de água fria e depois dirigiu-se a Sammy, o mais velho :
- Um garoto, mas nasceu morto. Não precisam ficar nervosos, pois fiz tudo tão bem quanto a Sra. Reedy poderia fazer. Mas não havia a menor chance. Voltarei amanhã para ajeitar o bebé. Leve uma xícara de chocolate para sua mãe agora. Ela está bem. Tenho de ir, a fim de preparar a comida do meu homem para o turno da manhã.
Ela pôs num canto o pacote, cuidadosamente, sorriu gentilmente para David, que viu o sangue escorrendo pelo jornal, e depois se retirou.
Sam preparou o chocolate e levou para a mãe. Ficou lá em cima durante cerca de 10 minutos. Ao descer, o rosto estava extremamente pálido, o suor aflorava na testa. Viera de seu namoro para deparar com a morte. David esperava que Sam pudesse falar, assegurar que a mãe passava bem. Mas Sam limitou-se a dizer:
- Vamos deitar aqui embaixo. Dormiremos os três na cozinha esta noite. Na manhã seguinte, que era uma terça-feira, a Sra. Brace veio ver Martha. Conforme prometera, preparou o bebé que nascera morto. David voltou da mina antes dos outros. Tivera sorte, conseguindo completar rapidamente duas cargas de carvão. Entrou na cozinha mergulhada na semi-escuridão. E ali, em cima da cómoda, estava o corpo do bebé.
David aproximou-se e contemplou-o, sentindo uma estranha mistura de medo e reverência. Era muito pequeno, as mãos não maiores do que as pétalas de um lírio. Os dedos pequenos não tinham unhas. David calculou que a palma de sua mão daria para cobrir inteiramente o rosto. As feições contraídas e pálidas eram perfeitas. Os pequenos lábios azulados estavam entreabertos como que em espanto pela vida que não houvera. A Sra. Brace, com um toque profissional, enchera as narinas e a boca de algodão. Olhando o bebé, com algum orgulho, ela explicou:
- É um anjinho muito bonito. Mas sua mãe não podia suportar que o bebé ficasse lá em cima, junto com ela.
David não estava prestando atenção. Um ressentimento profundo o invadia, enquanto olhava para o bebé natimorto. Por que tinha de ser assim? Por que sua mãe não pudera ter comida suficiente, cuidados, atenção, tudo o que o estado dela exigia? Por que aquela criança não estava vivendo, sorrindo, sugando o seio da mãe? Ele sentiu-se angustiado, compelido a uma indignação intensa. Como na ocasião em que Chorou e a mulher lhe haviam dado comida, David sentia alguma coisa vibrar dentro dele, bem fundo, dolorosamente. E novamente jurou, com toda a paixão incoerente de sua jovem alma, que faria alguma coisa... qualquer coisa... não sabia exatamente como... mas faria... desfecharia algum golpe profundo contra as terríveis iniquidades da vida.
Sam e Hughie chegaram juntos. Olharam para o bebé. Ainda com as roupas de trabalho na mina, comeram o toucinho frito que a Sra. Brace preparara.
Não era a boa refeição habitual, as batatas estavam duras, não havia água suficiente para o banho, a cozinha estava desarrumada, tudo sujo. Eles podiam sentir a falta dos cuidados da mãe.
Mais tarde, ao descer de uma visita à mãe, Sammy olhou furtivamente para os irmãos. E disse, embaraçado:
- Ela não quer um funeral. Falei e falei, mas ela simplesmente não quer. Diz que não podemos arcar com a despesa, por causa da greve.
- Mas não podemos deixar de ter um funeral, Sammy! - gritou David.
- Pergunte à Sra. Brace...
A Sra. Brace foi convocada para argumentar com Martha. De nada adiantou, pois Martha estava inflexível, dominada por uma profunda amargura pelo bebé, uma criança que não quisera e que agora não tinha a menor necessidade dela. A lei não exigia um funeral. Martha não o queria, não admitia os rituais solenes da morte.
Hughie, sempre hábil com as mãos, fez um pequeno caixão, com pedaços de tábuas que eram usadas na mina. Forraram o interior com papel branco limpo e ali ajeitaram o corpo do bebé. Hughie pregou a tampa.
Tarde da noite de quinta-feira, Sam pôs o pequeno caixão debaixo do braço e saiu de casa sozinho. Proibiu que Hughie e David o acompanhassem. Estava escuro, ventava forte. Eles não souberam para onde Sam fora até sua volta. Foi quando ele contou. Tomara cinco shillings emprestado de Pug Macer, o irmão mais velho de Annie, dera a Geddes, o homem que tomava conta do cemitério. Geddes deixara-o enterrar o bebé particularmente, num canto do cemitério. David muitas vezes pensou naquela cova rasa. Nunca soube onde era. Sabia apenas que o lugar ficava perto das covas dos indigentes, a única informação que Sammy dera.
A sexta-feira passou e o sábado chegou. Era o dia em que Robert devia ser libertado. Martha estava de cama desde a noite de segunda-feira. Mas na tarde de sábado ela estava de pé, esperando... esperando por ele, por Robert.
Ele chegou às oito horas, encontrando-a sozinha na cozinha. Entrou tão silenciosamente que Martha não percebeu a sua presença, até que o ruído da tosse fê-la virar-se bruscamente, na mesma posição em que se encontrava, debruçada sobre o fogo. Os dois ficaram se olhando, Robert calmamente, sem rancor, Martha com a terrível amargura que lhe ardia como fogo nos olhos. Nenhum dos dois falou. Robert largou o gorro no sofá, sentou-se à mesa, como um homem extremamente cansado. Imediatamente, Martha foi até o forno, pegou o prato de comida quente, que guardara para o jantar dele. Colocou-o diante de Robert, ainda mantendo o terrível silêncio.
Robert começou a comer, lançando olhares rápidos para o corpo da mulher, olhares que ficaram impregnados de um estranho pedido de desculpas. Finalmente, ele disse:
- Qual é o problema, minha garota? Martha tremeu de raiva.
- Não me chame de sua garota!
Ele compreendeu então o que acontecera e foi dominado por um estranho assombro.
- O que era?
Martha sabia que o marido sempre desejara ter uma filha. E para feri-lo ainda mais, disse que o bebé natimorto era uma menina.
- Sempre acontece o que tem de acontecer. - Robert suspirou. - Passou muito mal, minha garota?
Era demais. Martha não se deu ao trabalho de responder imediatamente. Mas com uma presteza amargurada, tirou o prato vazio e colocou o chá diante do marido. E só então é que falou:
- Estou acostumada a maus tempos assim, desde que o conheci. Embora ele tivesse vindo para casa em busca de paz, a atitude belicosa
da mulher fez com que seu sangue cansado começasse a ferver.
- Não pude evitar o que aconteceu - disse ele, com súbita amargura, igualando-se a Martha. - Espero que compreenda que me prenderam sem motivo algum.
- Não, não compreendo - respondeu ela, com a mão no quadril, fitando-o.
- Será que não percebe que só me meteram na cadeia por causa da greve?
- Isso não me surpreende - insistiu Martha, ofegando de raiva.
Foi nesse momento que Robert perdeu totalmente o controle. Que diabo ele fizera? Levara os homens a entrarem em greve porque sentia bem lá no fundo um medo tremendo de Scupper Flats. Ao final, haviam escarnecido dele, cuspido nele, deixado que fosse para a cadeia por nada. A fúria fervilhava nele, contra a mulher e contra seu próprio destino. Levantou a mão e desferiu um tapa no rosto de Martha.
Martha não recuou, recebeu o golpe agradecida. As narinas se dilataram.
- Obrigada. Foi muita gentileza sua. Isso era tudo o que eu estava precisando.
Robert arriou na cadeira, mais pálido do que a mulher. Começou a tossir, sua tosse profunda e sonora. Foi sacudido pelo espasmo. Depois que o acesso acabou, ele ficou derreado na cadeira, derrotado. Depois levantou-se, tirou as roupas, meteu-se na cama da cozinha.
No dia seguinte, domingo, embora acordasse às sete horas, Robert ficou na cama durante a manhã inteira. Martha levantou-se cedo e foi à capela. Fez um esforço para ir, suportando os olhares, pêsames, de toda a congregação da Bethel Street, em parte para se afastar de Robert, em parte para preservar a própria respeitabilidade. O almoço foi um sofrimento, especialmente para os rapazes. Todos ficaram angustiados com a hostilidade declarada entre o pai e a mãe. Paralisava a casa, abatia-se sobre eles como uma degradação.
Depois do almoço, Robert foi à mina. Esperava se descobrir despedido. Mas não fora despedido. Compreendeu vagamente que fora ajudado por sua amizade com Heddon, o agente dos mineiros, e com Harry Nugent, da Federação. O medo de uma encrenca maior com o sindicato salvara o seu emprego na Neptune.
Ele voltou para casa, sentou-se ao lado do fogo, ficou lendo, foi deitar em silêncio. Foi acordado de madrugada pelo pregoeiro, às duas horas já estava na mina, trabalhando no primeiro turno do dia.
Durante o dia inteiro, preparou-se para a volta à casa, em meio à mesma tempestade de amargura desenfreada. Martha haveria de querer com que ele pagasse... olharia a todo instante para o relógio, esperando que as horas passassem.
Ao final do turno, ele voltou para casa, exausto, encharcado até os ossos. Martha estava pronta para feri-lo com sua raiva silenciosa. Mas, de alguma forma, a visão do marido dissipou toda a amargura que lhe corroía o coração.
- O que aconteceu? - perguntou ela, instintivamente.
Robert apoiou-se na mesa, reprimindo a tosse, ofegando para respirar.
- Mexeram os pauzinhos - respondeu ele, indicando que a hierarquia de posições na Paradise fora abandonada. - Puseram-me na lista negra. E me deram o pior lugar. Um buraco nojento de um metro de altura. Fiquei com a barriga na água durante todo o turno.
Uma onda de compaixão aflorou em Martha. E com a angústia veio também algo que há muito tempo ela julgara morto. Estendeu as mãos, murmurando:
- Deixe-me ajudá-lo... deixe-me ajudá-lo com essas roupas.
Ela ajudou-o a tirar as roupas sujas e encharcadas. Ajudou-o a tomar banho. Sabia que ainda o amava.
IX
David, 150 metros abaixo da superfície e a três quilómetros do poço principal, calculou que estava quase na hora de comer. Estava na Paradise, na parte de Mixen, o nível mais baixo da Neptune, com o trecho de Globe Coal 60 metros acima e Five Quarter a 30 metros mais alto. Ele não tinha relógio, mas o número de viagens que fizera com os vagonetes do fundo da galeria à plataforma lhe proporcionava a indicação segura. Estava agora parado ao lado de Dick, seu cavalo, na plataforma, onde os vagonetes eram atrelados ao sistema de tração mecânica e retirados do interior da Paradise. Esperava que Tally Brown trocasse os vagonetes carregados por outros vazios. Embora detestasse a Paradise, David sempre gostara de ficar ali na plataforma. Era um lugar fresco, depois de uma corrida suada pela galeria, podia ficar empertigado sem medo de bater com a cabeça.
Enquanto esperava, David refletiu sobre sua sorte. Mal podia acreditar que aquele fosse o seu último sábado na Neptune. E não apenas o último sábado, mas também o último dia! Não, não podia mesmo acreditar plenamente em sua sorte.
Sempre odiara a mina. Alguns dos rapazes até que gostavam, passavam a trabalhar no fundo da terra como um pato na água. Mas isso não acontecera com ele. Nunca! Talvez sua imaginação fosse vívida demais, não podia se livrar da sensação de que estava sendo trancafiado, enterrado naquelas tocas escuras, no fundo da terra. Também não se esquecia de que, ali, estava debaixo do mar. Mr. Carmichael, seu professor na Council School, que o ajudara a ganhar a bolsa de estudos, dissera-lhe o nome daquela estranha sensação de estar trancafiado, no fundo da terra, por baixo do mar, enquanto lá em cima o sol brilhava, o vento soprava ameno, as ondas deslizavam, espumantes e maravilhosas.
David sempre resistira obstinadamente a essa sensação. Estaria perdido se cedesse a uma coisa assim. Mas estava contente, contente por deixar a Neptune, ainda mais porque tivera a estranha impressão de que, a partir do momento em que um garoto descia pela mina, a mina o reivindicava como sua propriedade, recusava-se a deixá-lo partir. Era o que diziam os velhos mineiros, brincando. Na escuridão, David riu sozinho. Era uma brincadeira, nada mais do que isso.
Tally trocou os vagonetes. David arrumou-os numa composição de quatro, prendeu-os, estalou a língua para Dick e começou a descer pela inclinação, escura como breu. Os vagonetes foram descendo, ruidosamente, aos solavancos, por trás dele, nos trilhos maldispostos, enquanto aumentava a velocidade. David orgulhava-se de guiar depressa. Era o mais rápido, entre todos os condutores de cavalos da Paradise. E estava acostumado aos solavancos dos vagonetes, não se importava com o estrépito. O que o incomodava era quando um vagonete descarrilava. O esforço de recolocá-lo nos trilhos quase o deixava morto.
E ele foi descendo e descendo, avançando numa velocidade gloriosa, balançando, guiando, sabendo quando abaixar a cabeça e quando jogar o peso do corpo contra uma curva. Era uma temeridade, uma terrível temeridade, o pai muitas vezes o repreendera por conduzir tão depressa. Mas David adorava a emoção. E finalmente parou, com um solavanco espetacular, quase à entrada da galeria.
Ali, como David já esperava, Ned Softley e tom Reedy, os dois condutores manuais, que traziam os vagonetes do fundo da galeria, estavam acocorados no buraco de refúgio, comendo.
- Venha comer também, companheiro! - gritou tom jovialmente, a boca cheia de pão e queijo, movendo-se para o lado a fim de abrir espaço.
David gostava de tom, um rapaz grandalhão, afável, que substituíra Joe. Muitas vezes David se perguntava onde Joe teria se metido, o que estaria fazendo. E se perguntava também por que sentia tão pouca a ausência de Joe. Afinal, Joe fora o seu grande amigo. Talvez fosse porque tom Reedy era um substituto tão bom na mina, tão jovial quanto Joe, mais disposto a ajudar com um vagonete descarrilado, menos propenso a se lançar em blasfémias imorais. Mas embora gostasse da companhia de tom, David sacudiu a cabeça em negativa. - vou descer, tom.
David queria realmente comer junto com o pai. Sempre que tinha a oportunidade, pegava seu lanche e descia. E não ia deixar de fazê-lo naquele último dia.
A rampa do veio de carvão era tão baixa que ele tinha de se agachar. O túnel era como uma toca de coelho pelo tamanho, tão escuro que a sua luz, fazendo um pouco de fumaça, parecia não iluminar mais que um palmo além, tão úmído que os pés chapinhavam enquanto avançava. Em determinado momento, bateu com a cabeça na rocha dura e irregular, praguejando baixinho.
Chegando ao fundo da galeria, David descobriu que o pai e Slogger ainda não haviam suspendido o trabalho. Continuavam a arrancar carvão, para encher os vagonetes vazios que tom e Ned trariam em breve. Só de botas e as ceroulas da mina, eles trabalhavam num trecho escorado. O lugar era horrível, o trabalho terrivelmente difícil. David sentou-se num canto seco, observando, esperando que terminasse. Robert, o corpo contorcido de lado, chanfrava o carvão, aprontando para derrubá-lo. A respiração era ofegante, o suor escorria por todos os poros do corpo, ele parecia exausto. Não havia espaço para virar, o teto era tão baixo que parecia achatá-lo. Contudo, ele trabalhava tenazmente, com experiência e uma habilidade excepcional. Slogger trabalhava com ele. O enorme torso cabeludo e o pescoço taurino faziam-no parecer um titã ao lado de Robert. Ele jamais dizia uma só palavra, ficava mascando tabaco furiosamente, mascando, cuspindo e chanfrando. David percebeu, com um ímpeto de gratidão, que Slogger estava ajudando o pai, trabalhando na parte mais difícil, encarregando-se pessoalmente dos fragmentos de carvão mais duros. O suor escorria do rosto amarrotado de Slogger, que não tinha a menor semelhança com o Garoto Maravilha.
Finalmente eles suspenderam o trabalho, enxugaram-se com as camisetas, vestiram-nas e foram sentar perto de David.
- Tudo bem, Davey? - disse Robert, ao ver o filho.
- Tudo bem, papai?
Harry Grace e Bob Ogle saíram de outra galeria e se juntaram aos dois. Hughie o irmão de David, seguiu-os, em silêncio. Todos começaram a comer.
Para David, depois de uma manhã de trabalho árduo, o pão e o toucinho frio que a mãe preparava estavam deliciosos. Mas ele percebeu que o pai quase não comia, limitando-se a tomar goles de chá frio de sua garrafa. E ele tinha até pastelão em seu lanche. Desde que Robert e Martha haviam se reconciliado que ela lhe preparava os lanches mais apetitosos. Mas Robert deu metade do pastelão a Slogger. Disse que não estava com fome.
- Isso tira o apetite de qualquer homem - comentou Harry Brace, acenando com a cabeça para a galeria de Robert. - É de fato um lugar miserável.
- Não tem nem espaço para a cabeça - concordou Slogger, mastigando o pastelão com a satisfação ruidosa de um homem cuja mulher geralmente lhe providenciava apenas pão cortado e molho. - Mas este é um pastelão danado de bom.
- O problema é a umidade - disse Ogle. - Está por toda parte. O teto sangra água.
Houve silêncio, rompido apenas pelo ronco do ar que passava pela bomba. O som ecoava pela escuridão, misturando-se com o gorgolejo da água através dos tubos inferiores. Embora mal ouvisse o som, cada homem subconscientemente o aprovava, consciente lá no fundo de que significava o funcionamento correto da bomba.
Harry Brace virou-se para Robert.
- Mas não é tão molhado como Scupper.
- Não, não é. Ainda bem que nos livramos daquele buraco. Slogger disse:
- Se a umidade está incomodando você, Harry, é melhor pedir à sua mulher para arrumar um agasalho.
Todos riram. Animado pelo sucesso, Slogger cutucou David nas costelas, jovialmente.
- Você é um garoto esperto, Davey. Pode fazer alguma coisa pelo meu traseiro molhado?
- Que tal um chute? - sugeriu Davey.
As risadas foram ainda mais altas. Slogger sorriu. Na débil claridade do buraco escuro, ele parecia algum gigantesco demónio jovial, empenhado numa brincadeira satânica.
- Essa é boa, garoto! Iria esquentar meu rabo direitinho. - Ele olhou para Davey, avaliando-o atentamente. - Você é um garoto esperto, no final das contas. É verdade o que eu ouvi, de que você vai para o Baddeley College, a fim de ensinar a todos aqueles professores de Tynecastle?
David disse :
- Espero que eles me ensinem, Slogger.
- Mas por que diabo você vai para lá? - indagou Slogger com uma piscadela para Robert. - Não quer se tornar um bom mineiro como eu, ficando com uma cara elegante como a minha? E com um bocado de dinheiro guardado no banco de Fiddler.
Desta vez, Robert não achou graça alguma.
- Ele vai porque quero que se livre de tudo isto - disse Robert, firmemente, silenciando a todos pela ênfase intensa na última palavra. - Está aproveitando a sua oportunidade. Trabalhou muito, ganhou a sua bolsa de estudos e segue para Tynecastle na segunda-feira.
Houve uma pausa e depois Hughie, o calado, declarou subitamente:
- Eu gostaria de também poder ir a Tynecastle. Adoraria ver o primeiro time do United jogando.
O anseio intenso na voz de Hughie fez com que Slogger risse novamente.
- Não se preocupe, rapaz. - Ele deu um tapa vigoroso nas costas de Hughie. - Você próprio estará jogando pelo United um dia desses. Já o vi jogar e sei do que é capaz. E ouvi dizer que alguém de Tynecastle virá observá-lo na próxima partida em Sleescale.
Hughie ficou vermelho, sob a poeira de carvão. Sabia que Slogger estava caçoando dele. Mas não se importava. Um dia conseguiria, apesar de todas as zombarias. Mostraria a todos e não ia demorar!
De repente, Brace levantou a cabeça, inclinando-a na direção da rampa.
- Ei, o que há com a bomba?
Slogger parou de mastigar, todos ficaram perfeitamente imóveis, escutando, na escuridão. Os roncos da bomba haviam cessado. Por um minuto inteiro, ninguém disse nada. David sentiu um estranho calafrio descer-lhe pela espinha.
- Oh, diabo! - disse Slogger, lentamente, com um espanto obtuso. Escutem só isso! A bomba nos deixou na mão!
Ogle, quê não trabalhava há muito tempo na Paradise, levantou-se e verificou o filete de água que corria pelo lado da galeria. E gritou no mesmo instante:
- O nível está subindo! Há mais água aqui, muito mais água! - Ele fez uma pausa, tateando com o braço pela água, para depois acrescentar, com súbita ansiedade: - vou chamar o assistente.
-Espere! - Robert deteve-o com uma ordem brusca e repentina. E depois falou, argumentando: - Não precisa sair correndo como um garotinho. Deixe Dinning ficar onde está. Vamos manter a calma. Nunca há qualquer problema com uma bomba como a nossa. Não pode ser nada sério. Tenho certeza de que foi alguma coisa que prendeu na válvula. vou verificar qual é o problema.
Ele levantou-se devagar, calmamente, desceu pela rampa. Os outros ficaram esperando, sem falar. Cinco minutos depois, ouviram o barulho de sugar da válvula desobstruída, o gorgolejo rouco da bomba voltando a funcionar Mais três minutos e os roncos saudáveis voltaram. A tensão que dominava os homens se desvaneceu. David sentiu-se invadido por um profundo senso de orgulho pelos conhecimentos do pai.
- com todos os diabos... - suspirou Ogle.
Slogger escarneceu dele:
- Não sabe que a gente nunca precisa se preocupar quando Robert Fenwick está por perto? Vamos encher alguns vagonetes. Não vai ganhar nada se passar o dia inteiro sentado aí.
Ele levantou-se tirando a camiseta. Brace, Hughie e Ogle voltaram para sua galeria. David encaminhou-se para seus vagonetes, cruzando com Robert no caminho.
- Fez um bom trabalho, Robert - disse Slogger. - Ogle quase desmaiou de medo.
E Slogger riu exageradamente.
Mas Robert não riu. Tirou a camiseta com uma estranha expressão remota no rosto contraído. Jogou-a para longe, sem olhar. A camiseta foi cair numa poça de água.
Recomeçaram a trabalhar. Pegaram picaretas, cortando, furando, derrubando o carvão. O suor voltou a porejar por seus corpos. A poeira grudava na pele. Estavam 150 metros abaixo da superfície, a três quilómetros do poço principal. A umidade escorria lentamente do teto, pingava incessantemente, como uma chuva invisível numa noite de total escuridão. E sobrepondo-se a tudo, havia o estertor regular da bomba.
Ao final do turno, David levou seu cavalo para os estábulos e acomodou-o da melhor forma possível.
Era o pior de tudo. David já sabia que seria o pior, mas mesmo assim ainda foi pior do que imaginara. David afagou o pescoço do pónei, as mãos firmes. Dick virou a cabeça comprida, pareceu olhar para David com seus olhos cegos suaves, depois esticou o focinho na direção do bolso do casaco. Muitas vezes, David guardava um pedaço de pão ou talvez um biscoito. Mas naquele dia tinha algo especial. Tirou do bolso um pedaço grande de queijo... Dick era louco por queijo... e lentamente foi alimentando o pónei, partindo pequenos fragmentos e pondo na palma da mão, prolongando o prazer para Dick e para si mesmo. O contato aveludado do focinho úmido do pónei em sua mão provocou um aperto na garganta de David. Ao terminar, ele esfregou a mão úmida na lapela do casaco, deu uma última olhada em Dick e depois afastou-se rapidamente.
Encaminhou-se para a galeria principal, passando pelo lugar em que uma queda de teto matara três homens no ano anterior: Harrower e os irmãos Neil e Allen Preston. David estava presente quando tiraram os corpos, mutilados, achatados, os peitos afundados e ensanguentados, as bocas cheias de terra. David jamais esqueceria aquele dia. Sempre passava mais devagar pelo local do acidente, com uma determinação obstinada de mostrar que não tinha medo.
No caminho, foi se encontrando com outros mineiros, tom Reedy e seu irmão Jack, Softley, Ogle, o jovem Chá Leeming, filho de Slogger, Dan Teasdale, mais alguns. Chegaram ao fundo do poço, onde havia uma multidão esperando pacientemente o momento de subir. O elevador era simples e só cabiam 12 homens de cada vez. Além da Paradise, servia também à Globe e Five Quarter Coal, os níveis superiores. David descobriu-se espremido perto de Chorou, longe das brincadeiras de tom Reedy e Softley. Chorou fitou-o com seus olhos escuros e intensos.
- Quer dizer que vai estudar em Tynecastle?
David assentiu. Mais uma vez, parecia-lhe estranho demais para ser verdade. Talvez estivesse consumido pelos últimos seis meses, a tensão de trabalhar à noite, estudar com Mr. Carmichael, ir a Tynecastle para se candidatar à bolsa de estudos, tomar conhecimento do resultado com a maior alegria. A luta silenciosa entre o pai e mãe também o havia preocupado. Robert estava obstinadamente determinado a fazer com que ele conquistasse a bolsa e deixasse a mina; Martha estava igualmente determinada a impedir que isso acontecesse. Quando chegara a notícia do sucesso de David, Martha nada dissera, nem uma única palavra. Nem mesmo preparara as roupas dele para a viagem. Não queria ter qualquer participação naquilo e não teria.
- Deve tomar muito cuidado com Tynecastle, rapaz - disse Chorou.
- Vai fazer uma viagem para um lugar terrível, em que as trevas convivem com o dia, em que é preciso tatear durante o dia como se fosse de noite. Tome aqui!
Ele meteu a mão no bolso interno do casaco e tirou um opúsculo fino e dobrado, cheio de marcas de dedos, sujo da poeira do carvão.
- Vai encontrar muitos conselhos aqui! Tem sido muito boa companhia para mim durante a hora do lanche aqui na mina!
David pegou o opúsculo, ficando vermelho. Não o queria; ao mesmo tempo, não queria magoar os sentimentos de Chorou. Constrangido, ele folheou o opúsculo. A claridade era pouca, quase não podia ver, mas não conseguia pensar em qualquer outra coisa para fazer. Subitamente, seu lampião faiscou e uma frase saltou a seus olhos: Não se pode servir a dois senhores, não se pode servir a Deus e a Mammon.
Chorou observava-o atentamente. Por cima do ombro dele, tom Reedy sussurrou zombeteiramente:
- Ele lhe deu a informação certa sobre o vencedor das três horas?
Ao redor deles, os homens começavam a se movimentar. O elevador descia ruidosamente e parou. Lá de trás, alguém gritou:
- Ei, pessoal, vamos entrar logo!
Houve a corrida, a disputa habitual por lugares. David espremeu-se com os demais. O elevador foi subindo, como se puxado por uma mão gigantesca. A claridade do dia desceu para encontrá-los no poço. O elevador parou com um solavanco clangoroso, a barra transversal foi levantada, os homens saíram para a suave luz do dia como se fosse uma massa sólida.
David desceu os degraus com os companheiros, atravessou o pátio da mina, entrou na fila de pagamento, diante dos escritórios. Era um dia de sol de junho. Os contornos bruscos dos equipamentos na boca do poço, vigas e roldanas, até mesmo a chaminé de respiração da mina, por onde se desprendia fumaça, eram suavizados pela beleza do dia. Não havia como duvidar, era de fato um dia maravilhoso para deixar a mina.
A fila foi avançando lentamente. David viu o pai sair do elevador. Ele foi um dos últimos a sair da mina e postou-se no final da fila. Depois, avistou a charrete do Law passar pelos portões do pátio. A presença da charrete era absolutamente normal. Todos os sábados de pagamento contava com a presença de Richard Barras nos escritórios, enquanto os homens esperavam na fila para receberem seus envelopes. Era uma espécie de ritual.
A charrete fez a volta rapidamente, os aros amarelos faiscando ao sol, indo parar no lado oposto dos escritórios. Richard Barras desceu, muito empertigado, e desapareceu na porta principal dos escritórios. Bartley já estava ao lado do cavalo. Arthur Barras, que viera espremido entre os dois, continuou sentado na charrete.
A distância, enquanto avançava lentamente pela fila, David estudou Arthur, pensando ociosamente nele. Sem entender por quê, sentiu uma estranha simpatia por Arthur. Era uma sensação muito esquisita, peculiar, quase paradoxal, como se estivesse sentindo pena de Arthur. Era absolutamente ridículo, levando-se em consideração as respectivas situações. Mas o garoto, pequeno demais para a sua idade, empoleirado no alto da charrete, os cabelos louros desmanchados pela brisa, parecia terrivelmente solitário. Clamava por proteção. E Arthur era extremamente sério, solene, a preocupação assentando nele como se fosse uma profunda tristeza. Ao descobrir que estava com pena de Arthur Barras, David quase riu.
Chegou a sua vez no guichê. Ele se adiantou, recebeu o envelope de pagamento que lhe foi empurrado pela abertura por Petit, o caixa. Depois, David encaminhou-se lentamente para os portões, a fim de esperar pelo pai. Quando lá chegou, encostando-se na coluna, Annie Macer vinha descendo pela Cowpen Street. Ao vê-lo, Annie parou e sorriu. Ela não disse nada. Annie raramente falava a menos que lhe dirigissem a palavra antes. Ela simplesmente parou e sorriu por amizade, ficou esperando que David lhe falasse.
- Está sozinha, Annie?
David gostava de Annie Macer, gostava realmente. Podia compreender por que Sam sentia-se tão atraído. Ela era simples, viçosa, despretensiosa. Não tinha orgulho. Era ela mesma. Era evidente que não havia qualquer absurdo em Annie. Por alguma razão absurda, David associava Annie com um pequeno arenque prateado. Só que Annie não era pequena nem tinha a menor semelhança com um arenque. Era uma moça grande e exuberante, com quadris generosos e seios volumosos e firmes. Vestia uma saia azul de sarja e meias que ela própria tricotara. Annie nunca lera um livro em toda a sua vida, mas já tricotara muitos pares de meias.
- Este é o meu último dia, Annie - declarou David, querendo puxar conversa para reté-la ali. - Acabei com a Neptune para sempre. .. água, lama, póneis, vagonetes e tudo o mais!
Ela sorriu, tolerantemente. David acrescentou:
- E não lamento. Pode apostar por sua vida que não lamento nem um pouco.
Annie acenou com a cabeça, compreensivamente. Houve silêncio. Ela olhou para um lado e outro da rua. Depois, com seu sorriso cordial, tornou a acenar com a cabeça e afastou-se.
Satisfeito, David seguiu-a com os olhos. Ocorreu-lhe que Annie não dissera uma única palavra. Contudo, ele apreciara cada minuto da companhia dela. Ah, a maravilhosa Annie Macer!
Virando-se novamente, David olhou para o pai. Ele ainda estava muito longe do guiché. Petit estava muito mole naquele dia. David recostou-se no poste, encostando um calcanhar.
Subitamente, percebeu que também estava sendo observado. Barras, escoltado por Armstrong, voltara à charrete. Os dois estavam parados, o dono e o supervisor, olhando diretamente para ele. David sustentou o olhar, obstinado, determinado a não se deixar intimidar. Afinal, não estava deixando a mina? Agora, não tinha mais importância. Eles continuaram a conversar por mais um minuto, depois Armstrong riu respeitosamente, levantou a mão e fez sinal para David. Ele pensou em não ir, mas acabou indo, só que bem devagar.
- Mr. Armstrong me disse que você ganhou uma bolsa de estudos em Baddeley.
David compreendeu que Barras estava de bom humor; mas podia sentir o exame atento dos olhos frios e pequenos.
- Fico satisfeito por saber do seu sucesso - continuou Barras. - O que pretende estudar em Baddeley?
- Pretendo fazer o curso de humanidades.
- Por que não estuda engenharia mineira?
David respondeu em tom de desafio, porque algo em Barras lhe provocava tal reação:
- Não tenho o menor interesse pelo trabalho.
O desafio passou por Barras como água por pedra.
- É mesmo... não está interessado?
- Não! Não gosto de descer para o fundo da terra.
- Não gosta de descer. .. E quer ser professor. David compreendeu que Armstrong já lhe contara.
- Não vou parar em ensinar.
Ele se arrependeu imediatamente do comentário. Aquele seu orgulho veemente, sempre armado em desafio, acabara por traí-lo, levando-o a revelar seus planos. Sentiu toda a incongruência da cena, a sua presença ali, em roupas de trabalho na mina, com Arthur sentado na charrete, observando e escutando. Teve a impressão de ser o herói sentimental de uma autobiografia... da Cabana de Troncos à Casa Branca. Mas era obstinado o bastante para não recuar. Se Barras perguntasse, diria francamente quais eram as suas aspirações.
Mas Barras parecia não ter a menor curiosidade, nenhuma consciência do antagonismo. E simplesmente continuou em sua pregação de moral, como se não tivesse ouvido as palavras de David:
- A educação é sempre uma ótima coisa. Jamais me interponho no caminho de alguém que está querendo estudar. Quando terminar o curso em Baddeley pode me avisar. Estou no conselho e posso arrumar-lhe um lugar numa das escolas do condado. Sempre estamos precisando de novos professores.
Ele deu a impressão de afastar-se inteiramente de David, por trás das lentes fortes dos óculos. Distraidamente, ele meteu a mão no bolso da calça, tirando um punhado de moedas. Em seu estilo sem qualquer pressa, pegou uma meia-coroa, avaliou-a mentalmente. Largou-a e escolheu em vez disso uma moeda de dois shillings.
- Aqui tem um florim - disse Barras, calmamente, pomposamente, um presente e uma dispensa.
David ficou tão aturdido que pegou a moeda. Ficou parado, a segurá-la, enquanto Barras subia na charrete. Percebeu vagamente que Arthur lhe lançava um sorriso cordial. E depois a charrete se afastou.
David foi invadido por um impulso imenso de rir. Recordou a frase no opúsculo que Chorou lhe dera: "Não se pode servir a Deus e a Mammon." Interiormente, ele ficou repetindo:
- Não se pode servir a Deus e a Mammon. Não se pode servir... Era muito engraçado, ah, como era engraçado!
David virou-se abruptamente e encaminhou-se para os portões, onde Robert estava agora parado, à sua espera. David compreendeu que o pai fora espectador da cena. E percebeu que o pai estava furioso. Pálido de fúria, Robert mantinha os olhos abaixados, sem querer olhar para David.
Saíram do pátio juntos, lado a lado, subindo pela Cowpen Street. Não trocaram uma só palavra. Pouco adiante, Swee Messer juntou-se aos dois. No mesmo instante, Robert pôs-se a falar com Swee, cordialmente. Swee era um rapaz louro, de boa aparência, sempre jovial e alegre, trabalhava na Glove Coal, que ficava acima de Paradise. O nome verdadeiro de Swee era Oswey Messuer. O pai era barbeiro na Lamb Street, um austríaco naturalizado que estava há 20 anos em Sleescale. Eram bastante populares, pai e filho, cada um em sua esfera, o filho jovialmente enchendo vagonetes na mina, o pai humildemente raspando caras em sua barbearia.
Robert continuou a falar com Swee como se não tivesse acontecido coisa alguma que pudesse perturbá-lo. E quando Swee separou-se, na esquina da Freehold Street, ele disse:
- Diga a seu pai que lá estarei às quatro horas, como sempre.
Mas no momento em que Swee se afastou, o rosto de Robert recaiu na amargura anterior. Suas feições pareceram se contrair, esticar sobre os ossos. Em silêncio, ele continuou a andar ao lado de David, até chegarem à metade da Cowpen Street. Foi então que ele parou. No outro lado da rua estava Middlerig, o pátio dos fundos das antigas baias das vacas, um lugar imundo, uma monstruosidade para a cidade, recendendo a palha apodrecida, esterco, imundície. Robert virou-se para David e perguntou calmamente:
- O que ele lhe deu, filho?
- Uma moeda de dois shillings, papai.
E David exibiu o florim que ainda tinha na mão, secretamente, apertando com força, de vergonha.
Robert pegou a moeda, contemplou-a em silêncio e depois jogou-a para longe com uma força frenética.
O florim foi cair bem no meio de uma pilha de esterco.
XI
A noite, a grande noite do Social de Millington, finalmente chegou. A Fundição Millington ficava num beco sem saída que começava na Platt Street, empregava 200 homens. Embora pequena, não deixava de impressionar, especialmente se vista numa tarde nublada de março. Das chaminés das fornalhas, que o ferro era derretido, projetavam-se para o céu línguas de fogo vermelhas e nuvens de fumaça. O céu cinzento, iluminado pelo vapor ardente de tal derretido, fluindo dos cubilotes para as conchas, parecia arder com um clarão avermelhado. Vapores pungentes elevavam-se do chão da fundição enquanto o ferro líquido despejava-se nos moldes, penetrando implacavelmente pelas narinas dos homens. Os ouvidos vibravam com o ressoar incessante das marretas, o retinir das talhadeiras aprontando os moldes, o zumbido das correias e rodas das engrenagens, os gritos penetrantes dos tornos e outras máquinas, o rangido das serras no metal. Em meio ao nevoeiro que emergia pelas portas abertas, podia avistar os vultos meio indistintos de homens, despidos até a cintura, por causa do tremendo calor.
O principal produto da fundição era equipamento de mineração de carvão, vagonetes de ferro, engrenagens de tração, vigas de escoramento e cavirões. A competição era intensa nesse mercado e a Millington se mantinha mais através de suas ligações antigas com firmas tradicionais do que por dinamismo. A própria Millington era uma firma antiga, tinha tradição. E parte dessa tradição era o Clube Social.
O Clube Social da Millington, fundado na década de 1870 pelo Velho, Wesley Millington, imbuído da atitude mais benevolente pelo Trabalhador e a Família do Trabalhador, tinha quatro seções: Biblioteca, Excursões, Fotografia, inclusive com quarto-escuro, e Atlética. Mas o grande acontecimento do calendário do Clube Social era o Baile, conhecido desde tempos imemoriais como o Social e realizado invariavelmente no Oddfellows Hall.
Aquela noite, sexta-feira, 23 de março, era a noite da alegria e descontração. Contudo, Joe saiu do trabalho na fundição e voltou para casa oprimido por uma sombria meditação. Claro que Joe iria ao Social. Afinal, já era um dos membros mais populares do clube, integrando com destaque crescente a seção de boxe, um dos candidatos prováveis à vitória no campeonato de noviços. Joe saíra-se muito bem nos últimos oito meses, engordando, estufando os músculos dos ombros, fazendo uma porção de amigos. Era muito exuberante, estava sempre dando tapas afetuosos nos ombros dos outros e gritando sonoramente:
- como estão as coisas, companheiro?
Joe tinha um riso fácil, um riso alegre, viril, um aperto de mão firme, sabia como ninguém contar as melhores histórias obscenas. Todos pareciam gostar de Joe, todos os que importavam, de Porterfield, o capataz, ao próprio Mr. Stanley Millington. A única exceção era Jenny.
Jenny! Joe pensava nela enquanto atravessava a High Levei Bridge, analisando a situação com melancolia. Claro que Jenny iria acompanhá-lo ao Social. Mas o que isso significava, depois de tudo pesado e medido? Nada, absolutamente nada! Até onde ele chegara com Jenny, naqueles oito meses? Não muito longe, não tanto quanto ele esperava. Saíra com Jenny muitas vezes, pois ela adorava passear. Gastara dinheiro com ela, muito dinheiro, como se fosse água. Mas o que recebera em troca? Uns poucos beijos, bem poucos beijos, cedidos sem muito empenho e vontade, alguns abraços logo desfeitos, que só serviam para aguçar seu apetite ainda mais.
Joe deixou escapar um suspiro comprido e triste. Se Jenny pensava que poderia fazê-lo de palhaço, estava redondamente enganada. Iria dizer-lhe umas poucas verdades, dar-lhe o fora, acabar com tudo. Mas não, não ia fazê-lo. Já se dissera isso pelo menos uma dúzia de vezes antes. E não acabara com coisa alguma. Ele a queria, ainda mais do que naquele primeiro dia... e já então seu desejo era intenso. Joe não pôde conter uma imprecação em voz alta.
Jenny deixava-o perplexo. Tratava-o às vezes com uma arrogância altiva, em outras ocasiões com uma intimidade coquete. Era-lhe sempre mais agradável quando ele usava o seu novo terno azul de sarja e o chapéu-coco que ela o obrigara a comprar. Mas se por acaso o encontrava em sua roupa de trabalho suja, Jenny passava por ele com um ar distante, quase o congelando com seu olhar. A mesma coisa acontecia quando saíam. Se Joe a levava a um bom lugar no Empire, Jenny ronronava feliz, sorria, deixava que lhe segurasse a mão; mas se ele sugeria um passeio pelo Town Moor depois do anoitecer, ela o acompanhava mal-humorada, a cabeça empinada, as respostas curtas e bruscas, mantendo-se a um metro de distância. Quando Joe a convidava a ir ao McGuigan's, a fim de comer salsichas e puré de batatas, ela franzia o rosto desdenhosamente e dizia:
- É o tipo de lugar que meu pai frequenta.
Mas um convite para ir ao Leonard's, um salão de chá de alta classe, deixava-a radiante, aconchegando-se contra ele. Jenny queria estar acima de sua família, ser melhor do que eles. Corrigia o pai, a mãe e as irmãs, especialmente a Sally. Estava sempre corrigindo também ao próprio Joe, censurando-o, dizendo desdenhosamente como ele devia levantar o chapéu, segurar a bengala, andar pelo lado de fora da calçada, entortar o dedo mínimo ao segurar a xícara de chá. Jenny era terrivelmente refinada, atulhada com a etiqueta que aprendia nas colunas dos jornais e revistas. Era onde também descobria as indicações sobre moda, os "feitios" para os vestidos que ela própria fazia, conselhos sobre como manter as mãos brancas, como "a clara de um ovo misturada com a água de enxaguar" proporcionaria um lustro intenso a seus cabelos.
Na verdade, Joe não se importava com esse empenho de Jenny em alcançar o refinamento. Ao contrário, até que gostava, apreciava pequenas coisas como a fragrância de Jockey Club dela, a camisola de rendas, com fitas rosadas .podendo ser divisadas através da blusa. Eram coisas que o excitavam, faziam-no sentir que ela era diferente das outras garotas que ele possuíra anteriormente, durante aqueles meses terríveis de esperança adiada.
Só de pensar no que suportara era o suficiente para espicaçar seu desejo insuportavelmente. Ao subir os degraus da frente da Scottswood Road, 117A, Joe disse a si mesmo que levaria a situação a uma decisão naquela noite ou pelo menos saberia a explicação para o insólito comportamento de Jenny.
Ao entrar na sala dos fundos, ele olhou para o relógio e constatou que já estava atrasado. Jenny já subira para se vestir. A Sra. Sunley estava deitada, com enxaqueca. Phyllis e Clarry haviam saído para brincar na rua. Só restava Sally para servir-lhe o chá.
- Onde está seu pai? - perguntou Joe subitamente, enquanto devorava dois arenques e um pedaço grande de pão, tomando três xícaras de chá.
- Foi a Birmingham. O secretário não podia ir e assim papai teve de viajar no lugar dele. Levou todos os pombos-correio do clube e os nossos também. Para amanhã.
Joe levantou o garfo e palitou os dentes, pensativo. Então Alf conseguira uma viagem de graça a Birmingham para o Voo de Sábado dos Pombos... Que sujeito de sorte!
Observando Joe criticamente, Sally decidiu presenteá-lo com um dardo de seu precoce humor espirituoso.
- Tome cuidado para não engolir esse garfo - avisou ela, solenemente.
- Vai chocalhar quando você dançar a polca.
Joe franziu o rosto. Sabia perfeitamente que Sally o detestava, por mais que se esforçasse na tentativa de conquistá-la. Tinha a impressão constrangedora de que Sally, por trás de seus olhos escuros, era capaz de vê-lo até o fundo. Havia ocasiões em que a risada estridente e desdenhosa de Sally, interrompendo a sua conversa viril, deixava-o completamente atordoado, levando-o a perder o controle e corar horrivelmente.
A carranca de Joe deixou Sally satisfeita, os olhos dela faiscaram. Embora tivesse apenas 11 anos, ela possuía um senso de humor dos mais intensos. Alegremente, Sally prosseguiu na brincadeira de fazê-lo perder o prumo.
- Deve ser um bom dançarino, com pés tão grandes. Pode me conceder a honra, Miss Sunley? Claro, Joe. .. isto é, Mr. Gowlan, desculpe a liberdade. Vamos tentar? Pois não, meu caro Mr. Gowlan. Essa música não é adorável? Ei, tome cuidado, está pisando nos meus calos!
Sally era de fato muito engraçada, fazendo caretas com o rostinho cómico, revirando os olhos grandes e pretos, imitando com perfeição a pronúncia meticulosa de Jenny.
- Quer que eu vá lhe buscar um sorvete, minha cara? Ou prefere um pouco de tripa? Uma linda tripa, saída diretamente da vaca. Pode ficar com todos os pedaços enrugados.
Sally sacudiu a cabeça para cima, bruscamente.
- Ela está lá em cima, encrespando os cabelos. Miss Sunley... Jenny, a garota grã-fina que dorme com um pregador no nariz. Está lá em cima há uma hora. Chegou da chapelaria e nem se lembrou de esperar para servi-lo. Isso é coisa para os escravos, para os plebeus! Obrigou-me a esquentar o ferro e ainda me deu um cascudo, pelo bem da casa. É o que está lhe esperando, Joseph. Por isso mesmo, acho melhor cair fora antes que seja tarde demais.
- Ora, cale essa boca... sua pirralha atrevida! Joe levantou-se, encaminhou-se para a porta.
- Não seja tão formal, meu caro Mr. Gowlan. Pode chamar-me de Maggie. com esses olhos tão adoráveis, É uma pena que fume. E não pense que vai me deixar tão cedo...
Ela se interpôs no caminho de Joe, antes que ele pudesse deixar a sala, acrescentando:
- Deixe-me cantar-lhe uma cantiga antes de ir embora, Mr. Gowlan. Só uma pequena cantiga.
Cruzando as mãos, numa imitação do jeito recatado de Jenny de ficar ao lado do piano, ela começou a cantar, em tom de falsete:
- Veja os amores-perfeitos Crescendo ali no jardim...
Parou de cantar, quando Joe finalmente saiu da sala, batendo a porta. E desatou a rir, um riso deliciado. Depois, jogou-se no sofá. Ficou enroscada na beira, sacudida pelo riso, fazendo as molas rangerem.
Lá em cima, Joe fez a barba, lavou-se meticulosamente, vestiu o terno azul de sarja, pôs uma gravata verde nova, deu os laços nas botinas marrons lustrosas. Mesmo assim, ainda ficou pronto antes de Jenny. Ficou esperando no vestíbulo, impacientemente. Mas, quando finalmente desceu, Jenny deixou-o aturdido, sem fôlego. Ela usava um vestido rosa, sapatos brancos de cetim, um xale branco de croché, que estava em voga no momento, sobre os cabelos. Os olhos castanhos tinham um lustro frio no rosto pálido e suave. E estava chupando delicadamente uma pastilha perfumada.
- Por Deus, Jenny, você está maravilhosa!
Ela aceitou a homenagem como algo corriqueiro, vestiu o casaco de todos os dias por cima da roupa de festa, pegou a chave da porta da frente e guardou-a com um ar extremamente feminino no bolso do casaco. Só então é que viu as botinas marrons de Joe. A boca se entreabriu e ela disse irritada:
- Eu gostaria, Joe, que você tivesse posto um par de sapatos. Eu lhe disse isso há uma semana.
- Todos costumam usar botinas assim no Social. Tomei a precaução de perguntar.
- Não seja tolo! Como se eu não soubesse... Vai me fazer parecer ridícula com essas botinas marrons. Já providenciou o carro de aluguel?
-Ahn?
Joe ficou boquiaberto. Será que Jenny estava'pensando que ele era Carnegje? E ele acrescentou, mal-humorado:
- Vamos de bonde.
Os olhos de Jenny ficaram gelados de indignação.
- Ah, já estou entendendo! Então é isso o que pensa de mim! Não sou boa o bastante para um carro de aluguel!
Do patamar lá em cima, Ada gritou:
- Não cheguem tarde, vocês dois! Tomei um medicamento e vou deitar agora!
- Não se preocupe, mie - respondeu Jenny, ainda indignada. - Claro que não vamos chegar tarde.
Pegaram um bonde, que infelizmente estava cheio demais. O que deixou Jenny ainda mais mal-humorada. Olhou de cara amarrada para o condutor, quando ele pediu a Joe que arrumasse dinheiro trocado. Não disse nada durante toda a viagem. Mas finalmente chegaram a Yarrow e saltaram do trem apinhado. Aproximaram-se do Oddfellows' Hall no silêncio frio de sua dignidade ofendida. O Social já começara quando entraram no salão.
Na verdade, até que não era um baile ruim, sendo mais uma festa íntima e informal, como a reunião anual de uma grande e feliz família de classe média. Numa das extremidades do salão, havia diversas mesas, onde estava a ceia: bolos, sanduíches, biscoitos, geléias, pequenas laranjas que pareciam cheias de laranjas e de fato eram, garrafas vermelhas com refresco de cola, duas imensas urnas de latão com café e chá. No outro lado, sob uma plataforma muito alta, cercada por duas palmeirinhas, estava a orquestra, uma grande orquestra, com um grande bombo e Frank McGarvie ao piano. Ninguém sabia tocar músicas mais maravilhosas que Frank. E o ritmo? Era impossível errar um passo com o ritmo de Frank McGarvie. Era absolutamente maravilhoso, como se fosse marcado por um martelo... La de di, La de di, La de di... o assoalho do Oddfellows' Hall parecia subir com o La e descer em seguida, reverberando, com o di final.
Todos estavam animados, não havia regras rígidas, não havia programa. Duas folhas de papel almaço, preenchidas com uma letra impecável pela irmã de Frank McGarvie, estavam afixadas em paredes opostas, indicando o número e ordem das danças. Valsa... Noites de Alegria, Valetta 2... Numa Gôndola com Você... e assim por diante. Uma multidão afável se concentrava em torno das listas, rindo, esticando o pescoço, dando os braços, numa mistura de perfume e transpiração, num tropel de exclamações:
- Ei, Bella, meu bem, podemos dançar o two-step militar?
Era assim que se formavam os pares para as danças. Ou então um rapaz corpulento esquadrinhava a lista, deslizava galantemente pelo assoalho cheio de talco, o ímpeto levando-o diretamente ao colo de sua amada, a quem dizia:
- Está na hora dos lanceiros! Vamos entrar nessa?
Jenny correu os olhos pelo salão. Viu os refrescos vulgares, os programas afixados nas paredes sujas, os vestidos baratos e de mau gosto, vermelhos, azuis e verdes, a roupa ridícula do velho Mike McKenna, o honrado mestre-decerimônias; constatou que luvas e sandálias eram consideradas por muitas mulheres como elementos não essenciais; percebeu o círculo das mulheres mais velhas, sentadas num canto, conversando amigavelmente, enquanto sua prole pulava e deslizava pelo salão. Jenny contemplou tudo isso num único olhar. E depois empinou o narizinho bonito e disse desdenhosamente a Joe:
- Isso me causa arrepios.
- Como?
Jenny explicou, bruscamente:
- Não é elegante, não tem classe, é vulgar.
- Mas não vai dançar?
Jenny sacudiu a cabeça, com um ar de indiferença.
- Já que estamos aqui, podemos aproveitar a pista. As entradas não estão pagas?
E assim eles dançaram. Mas Jenny teve o cuidado de manter-se afastada dele, alheia às palmas, ao bater de pés, aos gritos de alegria ao redor.
- Quem é aquele? - perguntou ela, desdenhosamente, ao passarem dançando pelas proximidades da porta.
Joe acompanhou o olhar dela. Aquele era um camarada de aparência inofensiva, um homem de meia-idade, cabeça redonda, corpo atarracado, pernas ligeiramente arqueadas.
- Jack Lynch - respondeu Joe. - Ele é ferreiro na oficina. Parece estar interessado por você.
- Ele? - disse Jenny, sorrindo de sua própria graça.- Já vi melhores em jaulas.
Ela recaiu em seu ânimo monossilábico, alteando as sobrancelhas, mantendo a cabeça sempre empinada, com um ar condescendente. Queria ser vista pelo que era, segundo as suas próprias palavras, muito acima de tudo aquilo.
Mas Jenny estava sendo um tanto prematura em seu julgamento. Gradativamente, enquanto a noite prosseguia, outras pessoas começaram a aparecer. Não eram mais operários, os sócios mais simples do clube, que haviam apinhado o Social no início, mas alguns desenhistas do escritório, Mr. Irving, o contador, acompanhado pela mulher, Morgan, o caixa, até o velho Mr. Clegg, o gerente da oficina. Jenny animou-se ligeiramente. Chegou mesmo a sorrir para Joe.
- Parece que está melhorando.
Mal ela tinha falado quando a porta se abriu e Stanley Millington entrou, o próprio Mr. Stanley, nosso Mr. Stanley. Era um grande momento. Ele entrou jovialmente, muito bem vestido e arrumado, acompanhado pela noiva.
Jenny se animou de verdade, olhando atentamente para os dois elegantes jovens, enquanto eles sorriam e apertavam as mãos dos sócios mais velhos do clube.
- Aquela é Laura Todd - sussurrou ela, excitada. - Sabe quem ela é? O pai é o engenheiro de mineração em Groat Market. Já a vi muitas vezes. Eles ficaram noivos em agosto. A notícia saiu no Courier.
Joe contemplou-lhe o rosto ansioso. O interesse incontrolável de Jenny pela sociedade "elegante" de Tynecastle, sua satisfação por estar informada dos menores detalhes, tudo isso deixava-o completamente aturdido. Mas ela estava agora abandonando o retraimento que mantivera até então.
- Por que não estamos dançando, Joe?
E Jenny saiu a rodopiar languidamente nos braços dele, nas proximidades de Millington e Miss Todd.
- Aquele vestido dela... um modelo... veio direto do Bonar's... sussurrou Jenny, confídencialmente, ao ouvido de Joe. Evidentemente, o Bonar's era o máximo em Tynecastle. - E aquela renda. ..
Jenny revirou os olhos expressivamente.
A alegria aumentou, o bombo estrondeava. Frank McGarvie parecia mais animado do que nunca, o ritmo se acelerou, foi se tornando frenético. Todos estavam contentes porque o jovem Mr. Stanley encontrara "tempo para aparecer". E também levara Miss Laura! Stanley Millington era muito bem considerado em Yarrow. O pai morrera alguns anos antes, quando Stanley tinha apenas 17 anos e ainda se encontrava na escola, em St. Bede's. Assim, Stanley chegara animado à fundição, um rapaz atlético, aprumado, com um princípio de bigode, para aprender as coisas com o velho Henry Clegg. Agora, aos 25 anos, Stanley estava no comando, entusiasmado e infatigável, sempre ansioso em fazer o que considerava a coisa certa. Todos concordavam que Stanley tinha o espírito certo, contando com a vantagem de ter passado por "uma boa escola".
Fundada 50 anos antes, por um grupo de ricos comerciantes do Norte inconformistas, St. Bede's alcançara, no curto espaço de sua existência, a tradição da verdadeira escola pública. Monitores, alunos de classes inferiores que serviam aos outros, pastelaria, esprít de corps, hino escolar... a St. Bede's tinha tudo isso e mais alguma coisa, como se o Dr. Fuller, seu primeiro diretor, tivesse percorrido todas as antigas escolas da Inglaterra com uma rede de caçar borboletas, recolhendo habilmente de cada uma os seus melhores costumes. Os esportes eram cultivados amplamente em St. Bede's. As cores da escola eram púrpura, escarlate e ouro. Stanley, intensamente devotado à sua velha escola, também era devotado às suas cores. Geralmente usava alguma coisa, gravata, abotoaduras, suspensórios, em que apareciam as cores famosas, púrpura, escarlate e ouro. Era uma espécie de testemunho do espírito esportivo e de lealdade pelo qual St. Bede's se destacava.
De certa forma, era esse o motivo da presença de Mr. Stanley no Social. Ele queria ser decente, fazer o quê era decente, correto. E por isso estava ali, extremamente simpático e jovial, apertando mãos calosas, entremeando as suas valsas com Laura com diversas outras danças com as mulheres mais corpulentas dos sócios mais velhos.
Enquanto a noite avançava, o sorriso jovial no rosto de Jenny, que surgira à entrada de Mr. Stanley e Laura Todd, foi se tornando um tanto fixo. Seu riso, que parecia explodir espontaneamente sempre que passavam perto de um ou outro, ou de ambos, era um tanto forçado. Jenny estava ansiosa em ser "notada" por Miss Todd, morrendo de vontade que o nosso Mr. Stanley a convidasse para dançar. Mas nada acontecia, o que era terrível. Em vez disso, Jack Lynch continuava a observá-la, acompanhando-a por toda parte, tentando encontrar uma oportunidade de convidá-la para dançar.
Jack não era um mau sujeito, o problema é que estava embriagado. Todos sabiam que Jack já gostava de um trago. E naquela noite, entrando e saindo a todo instante do salão, indo ao Duque de Cumberland ao lado, Jack tomara vários tragos, contara algumas contas de seu rosário alcoólico. Normalmente, Jack teria permanecido perto da porta, sacudindo a cabeça feliz, ao ritmo da música. Ao final, voltaria para casa meio trôpego, as pernas arqueadas não conseguindo sustentá-lo direito, e se meteria na cama. Naquela noite, porém, o anjo mau de Jack estava disposto a fazer das suas.
Na última dança, antes da ceia, Jack ajeitou a gravata e avançou cambaleando para Jenny.
- Vamos dançar, garota. Nós dois vamos mostrar a essa gente como é que se dança.
Jenny sacudiu a cabeça e olhou ostensivamente para o outro lado. Joe, sentado ao lado dela, disse:
- Vá embora, Jack. Miss Sunley está dançando comigo. Jack balançou um pouco.
- Mas ela quer dançar comigo.
Ele estendeu o braço, com uma galanteria um tanto rude. Não havia um pingo de maldade em Jack, mas ele cambaleava de tal forma que a mão bateu acidentalmente no ombro de Jenny.
E Jenny gritou dramaticamente. Joe, levantando-se numa fúria súbita, desferiu um gancho de direita habilmente no queixo de Jack. E Jack estatelou-se no chão. Houve o maior tumulto.
- Mas o que está havendo?
Mr. Stanley, abrindo caminho pela multidão, aproximou-se de Joe, que estava com o peito estufado, galantemente passando o braço pelos ombros de uma Jenny assustada, muito pálida.
- O que aconteceu? Qual é o problema?
O bravo Joe, morrendo de medo, balbuciou virtuosamente:
- Ele estava bêbado, Mr. Millington. Bêbado que nem um gambá. A gente tem de pôr um limite nas coisas.
Joe tivera uma linda bebedeira com Lynch no sábado anterior, os dois haviam saído às gargalhadas do Empire Bar. Mas agora tudo o mais estava esquecido, ele se punha acima de tais coisas.
- Ele estava bêbado e mexeu com a minha amiga, Mr. Stanley. Eu apenas cuidei de protegê-la.
Stanley olhou para os dois, o rapaz esguio e forte, a beleza aflita. E depois, franzindo o rosto, olhou para o bêbado estatelado no chão.
- Bêbado! - exclamou ele. - Isso é péssimo, uma coisa terrível. Não posso admitir uma coisa dessas. Meu pessoal é gente decente e quero que todos se divirtam decentemente. Levem-no daqui. Cuide disso, por favor, Mr. Clegg. E que ele vá me procurar no escritório amanhã. Vamos acertar as contas.
Jake Lynch, a torpeza, foi levado para fora. E foi despedido no dia seguinte. Stanley virou-se novamente para Joe e Jenny, sorrindo em resposta à expressão ansiosa de Joe e à jovialidade sedutora de Jenny.
- Esse problema está resolvido - disse ele, acenando com a cabeça, para tranquilizá-los. - Você é Joe Gowlan, não é mesmo? Conheço-o perfeitamente. Conheço todos os meus homens. Faço questão de conhecer. Apresente-me à sua garota, Joe. Como tem passado, Miss Sunley? Deve dançar comigo, se quiser, Miss Sunley. Vamos fazer um esforço para esquecer esse incidente desagradável. Quanto a você, Joe, deixe-me apresentá-lo à minha garota. Não quer dançar com ela?
E assim Jenny flutuou, extasiada, nos braços de Mr. Stanley, mantendo-se perfeitamente aprumada, o cotovelo elegantemente esticado, consciente de que todos os olhos no salão estavam fixados nela. E Joe dançou com Miss Todd, cujos olhos pareciam achá-lo engraçado, e examinavam-no com um certo interesse.
- Foi um golpe espetacular - disse ela, com uma pequena contração jovial dos lábios, que era o seu maneirismo.
Joe admitiu que o soco fora de fato um golpe bem desfechado, sentindo-se virtuoso e ao mesmo tempo terrivelmente constrangido.
- Gosto de um rapaz que sabe se defender. - Miss Todd sorriu outra vez. - Mas não comece a dar a impressão de que de repente se tornou um Templário.
Stanley, Miss Todd, Jenny e Joe fizeram a ceia juntos. Jenny estava no céu. Sorria sem parar, exibindo os dentes bonitos,mexia com as pestanas sedutoramente. Comeu geléia com o garfo, deixou um pouco de tudo no prato. Ficou um pouco abalada quando Laura Todd, pegando uma laranja, mordeu a casca com os dentes brancos, sem a menor cerimónia. E ficou ainda mais abalada quando Laura calmamente tomou emprestado o lenço de Stanley. Mas era o êxtase, a felicidade, tudo aquilo, cada momento. E para coroar a noite gloriosa, quando tudo acabou, o Social chegou ao fim, Joe, como reparação pelo pecado de omissão anterior, requisitou pomposamente um cabriolé de aluguel.
Os últimos cumprimentos foram trocados, gritaram-se despedidas, mãos acenaram. Num tumulto de anáguas e excitamento, Jenny embarcou no carro esverdeado de mofo, que recendia a camundongos, funerais, casamentos e estábulos úmidos. As bolinhas brancas de lã do xale pareciam dançar em delírio. Ela afundou nas almofadas.
- Oh, Joe! Foi absolutamente maravilhoso! Não sabia que você conhecia Mr. Millington tão bem. Por que não me contou? Eu não tinha a menor ideia. Ele é muito simpático. E ela também é. Não é tão bonita assim. Mas tem classe. Fique sabendo que aquele vestido que ela usava custa libras e mais libras. É a última moda. Mas notou quando ela mordeu aquela laranja? E o lenço? Fiquei horrorizada. Eu jamais teria feito uma coisa dessas. Não está à altura de uma dama. Está me ouvindo, Joe? Preste atenção!
Joe assegurou ternamente que estava prestando atenção. Sozinho com ela no compartimento escuro do carro, o desejo que sentia por Jenny elevava-se a um nível febril. Durante toda a noite ele a tivera em seus braços, sentira o corpo contra o seu. Há meses que Jenny o vinha repelindo. Agora, ele a tinha ali, a sós. Ardendo de desejo, Joe mudou de posição cuidadosamente, chegou mais perto dela, passou o braço por sua cintura. Jenny ainda estava falando sem parar, muita excitada, delirando de alegria.
- Algum dia ainda vou ter um vestido como o de Miss Todd! De cetim, debruado de renda! Ela sabe disso. Aquela mulher tem uma cara de leviana. Sempre se pode perceber essas coisas.
Gentilmente, bem gentilmente, Joe puxou-a para si, murmurando, sua voz como uma carícia:
- Não estou interessado em falar dela, Jenny. Nem a olhei direito. Era para você que eu estava olhando o tempo todo... é para você que estou olhando agora. ..
Jenny soltou uma risadinha, feliz da vida.
- Você é muito mais bonita do que ela, Jenny. E seu vestido parecia muito mais bonito.
- O material não custou quase nada, Joe... e tirei o modelo do Weldon's.
- Você é uma verdadeira maravilha, Jehny...
Joe continuou a lisonjeá-la, habilmente. E quanto mais a lisonjeava, mais a acariciava. Podia sentir que Jenny estava excitada, acesa, deixando-o fazer coisas que nunca lhe permitira antes. Embora sôfrego, ele continuava a avançar cautelosamente.
Mas, de repente, Jenny gritou, bruscamente:
- Não, Joe! Não! Tem de se comportar!
- Não precisa se preocupar, minha querida...
- Não, Joe, não! Está errado! Não é certo!
- Não tem nada de errado, Jenny - sussurrou ele, insinuantemente. Nós não nos amamos?
Taticamente, era perfeito. Qualquer que fosse a sua classificação no bilhar, Joe certamente não era um noviço nas artes da sedução. Perturbada, sentindo-o tão perto, Jenny balbuciou:
- Não, Joe... não aqui.
- Ah, Jenny... Ela se debateu.
- Estamos quase chegando, Joe. Dê uma olhada. .. é a Plummer Street. Estamos quase em casa. Largue-me, Joe... largue-me. ..
Contrariado, Joe levantou o rosto afogueado do pescoço de Jenny e verificou que ela estava certa. Dominado pelo desapontamento, ele quase deixou escapar uma imprecação. Mas conteve-se a tempo, saltou do carro, ajudou Jenny a desembarcar, jogou um shilling para o cocheiro que mais parecia um espantalho, subiu os degraus, atrás dela. As curvas do corpo de Jenny por trás, o jeito gracioso com que ela pegou a chave e meteu-a na fechadura deixaram Joe enlouquecido de desejo. Foi então que se lembrou de que Alf, o pai de Jenny, não estava passando aquela noite em casa.
Na cozinha, iluminada apenas pelo clarão do fogo aceso, Jenny fitou-o. Apesar de sua virtude ultrajada, ela parecia relutante em se retirar. O excitamento deixava-a ansiosa por mais alguma coisa, o triunfo no Social ainda lhe zumbia na cabeça, inebriante. Ela assumiu uma pose recatada.
- Quer que eu acenda o gás e lhe prepare um pouco de chocolate, Joe? com um grande esforço, Joe controlou o seu mau humor, o desejo frenético de agarrá-la. E disse, lamuriando-se:
- Você não me dá nenhuma chance, Jenny. Venha sentar comigo no sofá só um pouco. Quase não conversamos durante a noite inteira.
Meio tentada, meio assustada, Jenny continuou parada onde estava, indecisa. Não tinha a menor graça dizer boa-noite naquele instante e ir deitar. Joe parecia muito bonito naquela noite. E pegando aquele carro, ele se comportara muito bem. Jenny soltou outro risinho.
- bom... não há mal nenhum em a gente conversar.
Ela encaminhou-se para o sofá.
Ali, Joe tomou-a nos braços. Era mais fácil agora, pois já o fizera antes. Jenny tentou se desvencilhar sem muito empenho, mas logo desistiu. Joe podia sentir o excitamento e o triunfo da noite fazendo o corpo de Jenny vibrar.
- Não, Joe, não... Temos de nos comportar...
Ela continuou a repetir as mesmas palavras, sem saber direito o que estava dizendo.
- Por que não, Jenny? Sabe que estou louco por você. E sabe também que nos amamos.
Fascinada, apavorada, resistindo, cedendo, dominada pelo medo, angustiada, temendo o desconhecido, Jenny balbuciou:
- Mas, Joe... Está me machucando, Joe...
Ele sabia que a tinha agora, sabia com uma certeza desvairada e deliciosa que finalmente encontrara a Jenny de seus sonhos.
O fogo estava se apagando. A grade estava vazia. Agora que já passara o período de choramingar, Jenny sussurrou:
- Aperte-me com força, Joe. .. com mais força, Joe querido...
Oh, Deus! Lá estava ele, deitado meio sem jeito, alguns cabelos de Jenny penetrando em sua boca. E Jenny se aconchegou contra ele, oferecendo o rosto pálido e bonito, manchado pelas lágrimas, agora desprovido de qualquer afetação, para o beijo de Joe. Naquele instante, estava tão simples e bonita como uma das pombas do pai. Só que agora, ele, Joe, quase sentia vontade de repeli-la. Havia, é claro, uma circunstância atenuante: era o primeiro amor de verdade de Joe, como ele próprio se dissera uma porção de vezes.
XII
A noite de sábado seguiu a sua rotina no Law. Depois do jantar frio, Hilda tocava o órgão para o pai. E naquela noite, o último sábado de novembro de 1909, às oito horas, Hilda estava tocando o primeiro movimento de Water Music, de Haendel, enquanto Barras ficava sentado em sua cadeira, sustentando a testa com a mão, escutando. Hilda não gostava de tocar para o pai. Mas tocava assim mesmo. Era parte da rotina de Barras que Hilda tocasse o órgão.
Richard Barras mantinha rigorosamente a sua rotina. O que não significava que fosse uma criatura de hábitos arraigados. A rotina não era o fundamental, mas antes o eco, um eco constantemente retumbante de seus princípios. Para compreender Richard Barras, era necessário começar por admitir isso. Ele era um homem de princípios. E deve-se ressaltar que não eram princípios hipócritas. Ele era sincero.
Era também um homem de moral. Desprezava as fraquezas a que a humanidade se entregava, tão frequente e lamentavelmente. Era incapaz, por exemplo, de pensar em qualquer outra mulher que não a sua. Embora Harriet fosse uma inválida, era a sua mulher. Sua mulher. Ele desprezava os apetites mais vulgares dos homens, como a comida suculenta e vinhos, comer demais, beber demais, dormir demais, luxúria, sensualidade. Todos os excessos da indulgência física pareciam-lhe abomináveis. Comia com simplicidade, frugalmente, quase que só bebia água. Não fumava. Embora suas roupas fossem sempre bem-feitas e de boa qualidade, tinha pouca e nenhuma vaidade no vestir.
Tinha o seu orgulho, é claro, o orgulho de um homem liberal, esclarecido. Sabia que era um homem de posição e posses, dono de mina, o proprietário da Neptune, que sua família vinha explorando há um século. Sentia uma profunda satisfação ao pensar na continuidade da família ali, começando com Peter Barras, que em 1805 abrira o poço Número 1, no Snook, agora conhecido como a Velha Neptune. Depois viera o filho William, que abrira os poços 2 e 3. Peter William, o pai de Richard, abrira o Número 4, uma iniciativa hábil e sagaz, da qual Richard agora se beneficiava enormemente. A projeção do nome e da fortuna da família, por esses homens sagazes e determinados, era algo que deixava Richard profundamente satisfeito. Ele se orgulhava de tudo o que herdara, desenvolvendo as qualidades de seus antepassados, exibindo a sua própria sagacidade e determinação, a sua capacidade de tirar o melhor proveito possível numa negociação.
Socialmente, não podia ser considerado ambicioso. Quando surgia numa conversa o nome de algum notável do condado, Barras tinha o hábito de indagar calmamente:
- E quanto ele vale?
Era a insinuação, em tom divertido, de que a situação financeira do vizinho era desprezível. Ele podia desfrutar a deferência de seu banqueiro e de seu advogado, mas não era um esnobe. Desprezava as mesquinharias do mundo. Embora Harriet Wandless pertencesse a uma família tradicional do condado, não casara com ela pela distinção de sua árvore genealógica. Casara com Harriet para torná-la sua mulher.
A possibilidade de uma paixão parece despontar aqui. Contudo, Barras era um homem se paixões aparentes. A força de sua personalidade era terrível. Mas era uma força estática, glacial. Não tinha violência, não tinha emoções arrebatadas, não tinha explosões de emoção intensa. Rejeitava o que lhe era estranho; possuía o que desejava. A evidência de Harriet, na intimidade, era positivamente a prova disso. Harriet, nas manhãs seguintes aos idílios noturnos regulares, limitava-se a devorar vorazmente um lauto desjejum, com a plácida satisfação de uma vaca que fora bem ordenhada. Tal evidência biológica visível, que o recato de Harriet proporcionava, era ao mesmo tempo negativa e positiva. O exame do conteúdo do estômago de Harriet certamente haveria de revelar uma atividade de ruminante.
O próprio Richard também dava algumas indicações de si mesmo. Era um homem reservado, o que não constituía uma qualidade, no seu caso. Não se tratava da discrição comum e banal de quem não quer se expor, mas uma discrição mais sutil, uma reserva que se ressentia profundamente de qualquer intromissão, repelia toda e qualquer familiaridade com um olhar. Parecia dizer friamente sou eu mesmo e serei sempre eu mesmo, mas isso não é da conta de ninguém, a não ser minha. E para mantê-la, domino a mim mesmo; mas jamais serei dominado por qualquer outra pessoa que não eu mesmo. Era a geleira estática que voltava.
Não se deve presumir, no entanto, que as qualidades de Richard eram contidas inteiramente por esse molde ártico descomunal. Barras tinha algumas características extremamente individuais. Como o seu amor pela música de órgão, de Handel, do Messias em particular. Ou sua devoção pela arte, pela pintura consagrada, que se manifestava nos quadros dispendiosos em suas paredes. Ou sua lealdade aos valores domésticos. Ou sua precisão e manias metódicas. E, finalmente, sua possessividade.
Aqui está, finalmente, a intenção oculta da alma de Richard, a sua própria essência. Ele amava profundamente tudo o que possuía, sua mina, sua casa, seus quadris, sua propriedade, tudo o que era seu. Isso explicava a abominação pelo desperdício, de que o pálido reflexo era a incapacidade adquirida de Tia Carrie de "jogar fora qualquer coisa". Tia Carrie muitas vezes protestava contra isso abertamente e Barras sempre ficava satisfeito. O próprio Barras jamais jogava qualquer coisa fora. Papéis, documentos, recibos, registros de transações, tudo estava impecavelmente classificado e guardado na escrivaninha de Barras. Era quase uma religião a sua obsessão de classificar e guardar tudo. Possuía uma qualidade espiritual. Era exemplar. E estava em harmonia com seu amor por. Handel. Como Handel, era algo que possuía amplitude e profundidade, uma religiosidade impenetrável. Só que estava baseado pura e simplesmente na avareza. Pois, acima de tudo, o segredo e a paixão consumidora da alma de Barras era o amor pelo dinheiro. Embora disfarçasse habilmente, enganando até mesmo a si próprio, ele adorava dinheiro. Amealhava dinheiro e o acalentava, deleitava-se com a sua riqueza, com a própria prosperidade.
Hilda acabou de tocar Handel. Ou pelo menos terminou Water Music. Normalmente, ela teria fechado o piano e subido para o seu quarto. Naquela noite, porém, Hilda parecia determinada a agradar. E sem tirar os olhos do teclado, ela perguntou:
- Gostaria de ouvir Largo, pai?
Era a peça predileta de Richard Barras, a peça que o impressionava mais que qualquer outra, a peça que deixava Hilda com vontade de gritar. Ela tocou devagar, com um ritmo sonoro. Houve silêncio em seguida. Sem tirar a mão da testa, Barras disse:
- Obrigado, Hilda.
Ela levantou-se, ficou parada no outro lado da mesa. Embora seu rosto exibisse a expressão agressiva familiar, Hilda estava tremendo por dentro. E disse:
- Pai...
- Pois não, Hilda. ..
A voz de Barras parecia compreensiva.
Hilda respirou fundo. Há semanas que vinha tentando reunir coragem suficiente.
- Já estou com quase 20 anos agora, pai. E faz quase três anos que saí da escola e voltei para casa. E durante todo esse tempo não tenho feito nada. Estou cansada de não fazer nada. Quero fazer alguma coisa, para variar. Quero que me deixe sair e fazer alguma coisa.
Barras descobriu os olhos e examinou-a, curioso, enquanto repetia:
- Fazer alguma coisa?
- Isso mesmo, fazer alguma coisa - repisou Hilda, com a maior veemência. - Deixe-me estudar para ser alguma coisa. Ter uma posição.
- Uma posição? - A voz de Barras ainda tinha um tom de espanto. Que posição?
- Qualquer posição. Ser sua secretária. Ser uma enfermeira. Ou deixeme estudar medicina. É o que eu mais gostaria.
Barras estudou-a de novo, ainda mais jovialmente irónico.
- E o que vai acontecer quando casar?
- Jamais vou casar! Detestaria ter de casar. E sou feia demais para casar.
Uma frieza visível insinuou-se pelo rosto de Barras, mas ele não alterou o tom:
- Andou lendo os jornais, Hilda.
A perspicácia do pai fez com que o sangue afluísse ao rosto pálido de Hilda. Era verdade. Ela lera o jornal da manhã. No dia anterior, houvera uma manifestação das sufragistas em Downing Street, durante uma reunião do Gabinete. Houvera também cenas violentas quando algumas mulheres tentaram entrar na Câmara dos Comuns. E as notícias levaram as reflexões de Hilda a um ponto decisivo.
- Foi efetuada uma tentativa de invadir... - Barras disse, citando a notícia no jornal - de invadir... a Câmara dos Comuns.
Pelo jeito como ele falava, parecia a suprema insanidade. Hilda mordeu o lábio, mais determinada do que nunca.
- Pai, deixe-me estudar medicina. Quero ser médica.
- Não, Hilda.
- Deixe-me estudar, pai.
- Não, Hilda. -Deixe!
Havia agora um tom quase frenético na voz de Hilda.
Barras não disse nada.
Houve silêncio. O rosto de Hilda estava agora pálido como giz. Barras olhava para o teto, com um ar de interesse distraído. Os dois ficaram assim por cerca de um minuto. Depois, discretamente, sem nada de dramático, Hilda virou-se e saiu da sala.
Barras não pareceu notar que Hilda se retirara. Hilda rompera uma convenção inviolável. E ele fechara sua mente a qualquer pensamento de Hilda.
Ele continuou sentado por mais meia hora, depois levantou-se e cuidadosamente apagou o gás, seguindo para o seu gabinete. Sempre ia para seu gabinete depois que Hilda lhe tocava piano nas noites de domingo. O gabinete era uma sala espaçosa e confortável, com um tapete grosso, uma imensa escrivaninha, cortinas vermelhas cobrindo as janelas, diversas fotografias da mina nas paredes. Barras sentou-se à escrivaninha, pegou o molho de chaves, escolheu uma com um cuidado meticuloso e abriu a gaveta do meio. De lá, tirou três livros de contabilidade, de capa vermelha. Pôs-se a examiná-los. O primeiro continha uma relação de seus investimentos, escrita cuidadosamente por ele próprio, com sua letra impecável. Barras estudou a lista friamente, mas com um sorriso satisfeito, embora neutro, insinuando-se em seus lábios. Levantou uma pena, sem mergulhar na tinta, passou a pena delicadamente pelas fileiras de números. De repente, fez uma pausa, pensou por um momento com uma expressão compenetrada, tomou a decisão de vender as suas ações da Preference United Collieries. Haviam chegado ao ponto máximo de valorização recentemente, as informações que tinha sobre os lucros atuais eram desfavoráveis, fornecidas por uma fonte confidencial. Isso mesmo, o melhor era vender logo. Barras tornou a sorrir, reconhecendo o seu instinto astuto, o faro pelo dinheiro. Jamais cometia qualquer erro. E por que deveria cometer? Cada investimento relacionado no seu pequeno livro era garantido, seguro, praticamente à prova de qualquer desastre. Ele tornou a fazer um cálculo rápido. O total deixou-o satisfeito.
Barras pegou então o segundo livro. Continha a relação de suas propriedades em Sleescale e no resto do distrito. A maior parte dos Terraços pertencia a Barras, sempre ficando contrariado toda vez que se lembrar que Ramage, o açougueiro, possuía a metade da Balaclava Row. Barras também tinha diversos quarteirões de pequenas casas em Tynecastle. Essas habitações ficavam à beira do rio e os aluguéis eram pagos semanalmente a um cobrador. Os lucros que proporcionavam eram extraordinários. Richard jamais se arrependera de ter adquirido essas habitações, uma ideia sua. Bannerman, seu advogado, é quem cuidava de tudo, com extrema discrição. Ele decidiu ter uma conversa com Bannerman, sobre uma questão de custo.
E finalmente, com um senso de relaxamento, um contato afetuoso, Richard Barras pegou o terceiro livro. Era a relação dos seus quadros, com os preços que pagara. Contemplou o livro com uma expressão indulgente. Divertia-o pensar que gastara 20 mil libras, uma verdadeira fortuna, em quadros. Mas era também um sólido investimento, estavam em suas paredes, aumentando de valor, tornando-se raros e antigos como os Ticianos e Rembrandts. Mas não compraria mais quadros. Já fizera a sua homenagem à arte. Era suficiente.
Ele olhou para o relógio. Os lábios emitiram um pequeno estalido, por ser tão tarde. Guardou os livros cuidadosamente, tornou a trancar a gaveta, subiu para o seu quarto.
Tirou o relógio do bolso outra vez e deu a corda. Tomou um pouco de água da garrafa que estava ao lado da cama. Depois, começou a despir-se. Os movimentos tranquilos do corpo poderoso possuíam uma determinação evidente. Eram movimentos regulares e sistemáticos. E eram movimentos que não admitiam quaisquer outros movimentos. Cada movimento possuía um egoísmo deliberado. As mãos brancas e fortes falavam o seu próprio alfabeto. Assim... assado... a melhor maneira de fazer é esta... a melhor maneira para mim... pode haver outras... mas esta é a melhor maneira para mim... para mim. Na semi-escuridão do quarto, o simbolismo das mãos era estranhamente ameaçador.
Barras finalmente estava pronto. Deu uma volta pelo quarto, em seu chambre púrpura. Ficou parado por um momento, alisando o queixo com os dedos. E depois saiu do quarto e avançou decidido pelo corredor.
Hilda, sentada na escuridão de seu próprio quarto, ouviu os passos firmes do pai, entrando no quarto da mãe, ao lado. Ela sentiu o corpo se contrair, manteve-se rígida. Tinha uma expressão atormentada no rosto. Desesperadamente, tentou tampar os ouvidos para não escutar. Mas não era possível. Jamais conseguia deixar de escutar. Os passos avançando. Passos abafados. Um ranger forte. Todo o corpo de Hilda estremeceu. Ela ficou esperando, numa agonia de aversão. Os sons começaram.
XIII
Joe estava refestelado na sala de estar da casa da Scottswood Road sem prestar a menor atenção a Alf Sunley, sentado à mesa, lendo em voz alta os palpites do Capitão Sanglar para as corridas em Gosforth Park. Naquela tarde, Joe e Alf iam às corridas. Mas Joe, pela expressão contrariada em seu rosto e pela indiferença desdenhosa às informações do Capitão, não parecia estar muito exultante com a perspectiva. Empanturrado do almoço, estava recostado na cadeira, com os pés no peitoril da janela, entregando-se a uma meditação sombria.
- Porque está em grande forma, confiantemente indico Nesfield, de Lorde Kell, para o Eldon Plate, escolhendo essa égua experiente como a minha principal seleção para o dia...
Enquanto a voz de Alf soava incessantemente, os olhos de Joe esquadrinhavam a sala. Oh, Deus, que lugar horrível! Que buraco desagradável! E pensar que ele vinha aguentando aquilo há mais de três anos! Quase quatro anos, para ser mais exato! Será que ainda iria suportar por muito mais tempo? Não podia acreditar que o tempo fora passando e ele continuara ali, como uma baleia encalhada. Onde estava sua ambição? Iria desperdiçar ali toda a sua vida?
Analisada objetivamente, a situação impressionava-o por não ter nada de objetivo. Até que se saíra bastante bem na Millington naqueles quatro anos. Mas bastante bem não era o suficiente. Ou pelo menos não era o suficiente para Joe Gowlan. Estava agora na pudlagem, ganhando regularmente três libras por semana, o que era alguma coisa para quem tinha apenas 22 anos. Era popular... e um brilho débil de júbilo rompeu o seu ânimo sombrio... maravilhosamente popular. Era um dos rapazes! Mr. Millington parecia interessar-se por ele, sempre parava para lhe falar, ao passar pela oficina. Mas nada de mais importante parecia resultar disso. Absolutamente nada, pensou Joe, desesperado.
O que fizera por si mesmo? Tinha agora três ternos, ao invés de apenas um, três pares de botinas marrons e uma porção de gravatas elegantes. Tinha algumas libras no bolso. Melhorara o físico, estava até lutando boxe em St. James's Hall. Conhecia a cidade de fio a pavio. E tinha alguns recursos dos mais hábeis. Mas o que mais? Nada, absolutamente nada, pensou Joe novamente, a depressão se agravando. Ainda era um operário, vivendo num quarto alugado, sem dinheiro para se gabar. E ainda estava. .. ainda estava envolvido com Jenny.
Joe remexeu-se, inquieto. Jenny representava o auge, a crise, o espinho que espicaçava o seu descontentamento atual. Jenny estava apaixonada por ele, agarrando-se a ele, absorvendo-o. Podia haver algo pior? A princípio, como não podia deixar de acontecer, sua vaidade fora lisonjeada, fora maravilhoso ter Jenny correndo atrás dele, segurando-se em seu braço, enquanto desfilava pelas ruas, de peito estufado, o chapéu empurrado para trás, lampeiro e satisfeito.
Mas agora. Joe já não se sentia tão satisfeito assim. Estava cansado de Jenny. Não, talvez não devesse pôr as coisas em termos tão fortes. Ela ainda era atraente, desejável em seus braços. O ato de amor, a consumação do seu desejo intenso, secretamente ali naquela sala, no quarto dele, lá fora no escuro, em portais, atrás dos estábulos de Elswick, nos lugares mais estranhos e inesperados, ainda era maravilhoso. Não podia deixar de admiti-lo. Mas era... Ora, era fácil demais agora. Não havia qualquer dificuldade, não havia resistência nenhuma de Jenny. Havia até algumas vezes uma ligeira ansiedade da parte dela, um senso de negligência, quando ele a deixava sozinha por muito tempo. Oh, diabo! Era quase como se ele estivesse casado com Jenny.
E Joe não queria estar com aquela Jenny ou com qualquer outra Jenny. Não estava disposto a se amarrar pelo resto da vida. Era um pássaro esperto demais para esse tipo de alçapão. Queria subir na vida, melhorar, ganhar muito dinheiro. Queria ter a oportunidade de desfrutar as melhores coisas da vida.
Ele franziu o rosto. Jenny representava demais em sua vida, mudando-a em demasia, deixando-o transtornado. Naquela própria tarde, por exemplo, ao saber que ele iria a Gosforth com seu pai e a deixaria em casa, Jenny derramara subitamente lágrimas escaldantes e só fora apaziguada pela promessa de levá-la. Ela estava agora vestindo-se lá em cima para acompanhá-los.
Oh, diabo! Joe deu um chute repentino e violento no banquinho à sua frente, fazendo Alf parar de ler e fitá-lo, com alguma surpresa.
-Não está escutando, Joe. De que adianta eu perder meu fôlego se você não presta atenção?
Joe respondeu em tom irritado:
- Esse camarada não sabe de nada. Ele tira os seus palpites das bocas dos cavalos. E todos os cavalos são mentirosos. vou obter minhas informações com Dick Jobey no prado. É amigo meu e um homem que sabe o que diz.
Alf soltou uma risada breve e expressiva.
- O que há com você, Joe? Parei de ler sobre os cavalos há dez minutos. Estava lendo sobre o aeroplano que o tal de Bleriot construiu. Se não se lembra, é aquele camarada que voou sobre o Canal no ano passado.
Joe resmungou:
- Um dia desses vou ter pessoalmente uma frota desses malditos aeroplanos. Espere só para ver.
Alf estreitou os olhos, por cima do jornal.
- vou esperar - disse ele, com o maior sarcasmo.
A porta se abriu e Jenny entrou. Joe levantou a cabeça, com uma expressão mal-humorada.
- Finalmente ficou pronta.
- Estou mesmo pronta - anunciou ela, jovialmente.
Todos os vestígios de sua choradeira recente haviam desaparecido. Como frequentemente acontecia depois de um acesso de petulância chorosa, Jenny estava animada e jovial, brejeira como uma cotovia.
- Gosta do meu chapéu novo? - perguntou ela, inclinando a cabeça na direção de Joe insinuantemente. - Não é muito bonito?
Apesar de toda a sua contrariedade, Joe não podia deixar de admitir que ela estava de fato muito bonita. O chapéu novo, que ela usava pomposamente, ressaltava sua beleza pálida. O corpo era extraordinariamente atraente, Jenny possuía pernas e quadris deslumbrantes. Fisicamente a perda da virgindade a melhorara. Estava agora mais madura, mais segura, menos anêmicà. Tinha mais ímpeto, estava quase chegando ao ponto de perfeição.
- Pois então vamos logo - disse Jenny, rindo. - Levante-se, papai. Vamos embora ou chegaremos atrasados. Não quero que me deixem ficar esperando.
- Deixá-la ficar esperando? - repetiu Joe, irritado.
E Alf, acenando com a cabeça num gesto de compaixão, suspirou.
- Ah, as mulheres...
Os três partiram para Gosforth de bonde, Jenny sentada entre os dois homens, muito empertigada e feliz. Enquanto o bonde sacolejava pela North Road, ela confidenciou para Joe, apalpando a bolsa:
- Quero ganhar algum dinheiro.
- Não é a única - respondeu Joe, bruscamente.
Foram para o recinto de dois shillings, que estava agradavelmente cheio, com pessoas em quantidade suficiente para interessar Jenny, mas não o bastante para fazê-la sentir-se sufocada. Ela ficou deliciada, com as cercas brancas contra a pista verde, as cores dos jóqueis, os cavalos lustrosos e maravilhosos, os gritos dos bookmakers sob os imensos guarda-sóis azuis e dourados, as roupas elegantes, as celebridades que podiam ser vistas a uma distância não muito grande, no padoque.
- Olhe ali, Joe! - gritou ela, segurando o braço dele. - Lá está Lorde Kell!
Lorde Kell, decano do esporte britânico, proprietário milionário do North, rubicundo, de costelas, jovial, estava conversando com uma amostra de homem, Lew Lester, seu jóquei.
Joe resmungou, invejoso:
- Se ele pensa que Nesfield vai ganhar, está redondamente enganado. E depois ele se afastou, à procura de Dick Jobey.
Teve a maior dificuldade em encontrar Dick, pois Dick estava no reservado de dez shillings. Mas Joe conseguiu chamá-lo até a cerca.
- Lamento incomodá-lo, Mr. Jobey - disse Joe, com uma-cordialidade insinuante. - Estava imaginando se não teria alguma indicação para me dar. Quero que saiba que não o estou incomodando por minha causa. Nunca aposto muita coisa. Mas estou com minha garota e o pai dela... e ela ficaria na maior satisfação se pudesse ganhar dois ou três shillings...
Dick Jobey bateu com a ponta do sapato preto impecável na cerca, cordialmente. A ideia de que os bookmakers são sempre gordos e corados, falando por um canto da boca, enquanto um imenso charuto ocupa o outro canto, era desmentida cabalmente por Dick Jobey, de Tynecastle. Dick era um bookmaker, um bookmaker em grande estilo, com um escritório em Bigg Matket e outro em Yarrow, em frente à igreja católica. Só fumava cigarros e bebia apenas água mineral. Era um homem simpático, tranquilo, afável, de estatura mediana, jamais praguejava, jamais apregoava as cotações aos berros, nunca era visto em qualquer outro hipódromo que nato Gosforth Park. Corria até o rumor, entre os seus muitos amigos, de que Dick ia a Gosforth uma vez por ano apenas para apreciar a paisagem.
- E então, Mr. Jobey, tem alguma coisa que eu possa dizer à minha garota?
Dick Jobey examinou Joe atentamente. Gostava do tom do pedido de Joe. Vira-o lutar no St. James's Hall e achava que Joe era um rapaz com "possibilidades". E como Dick tinha uma fraqueza por rapazes com possibilidades, permitia que Joe o cultivasse, fizesse alguns serviços para ajudá-lo. De um modo geral, Joe era assíduo em se insinuar nos favores de Dick Jobey. Depois de uma longa pausa, Dick finalmente falou:
- Eu não a deixaria fazer coisa alguma até o último páreo, Joe.
- Está certo, Mr. Jobey.
- Mas ela pode então apostar alguma coisa. Não muito, é verdade. Apenas meia coroa, para se divertir.
- Claro, Mr. Jobey.
- É verdade que nunca se pode ter certeza.
- Sei disso, Mr. Jobey. - Uma pausa excitada e depois Joe acrescentou:
- Nesfield é a sua indicação?
Dick sacudiu a cabeça.
- Ela não tem a menor possibilidade. Deixe a sua garota apostar meia coroa em Pink Bud. Apenas meia coroa, não se esqueça. E apenas pela emoção.
Dick Jobey sorriu, acenou com a cabeça e afastou-se. Vibrando de triunfo, Joe voltou ao lugar em que deixara Alf e Jenny.
- Oi, Joe, onde é que você esteve? - protestou Jenny. - O primeiro páreo já terminou e nem pude apostar!
De bom humor, ele garantiu que Jenny podia agora apostar à vontade. Afavelmente, ficou escutando, enquanto ela e Alf discutiam seus palpites. Jenny preferia os nomes bonitos, as cores mais atraentes, um cavalo que pertencesse a alguém particularmente eminente. Joe limitava-se a aprovar, radiante. Sempre afável, pegou o dinheiro de Jenny, fez a aposta. Ela perdeu, perdeu novamente e perdeu uma terceira vez.
- É tão difícil assim? - exclamou Jenny, completamente frustrada, ao final do quarto páreo.
Ela queria desesperadamente ganhar. Jenny não era mesquinha. Ao contrário, era até exageradamente generosa, sempre descuidada com as suas poucas meias coroas. Mas seria simplesmente maravilhoso ganhar.
Alf, que vinha se atendo obstinadamente às indicações do Capitão Sanglar, sem maiores resultados que não um placê, tratou de tranquilizá-la:
- Vamos recuperar tudo em Nesfield, menina. Ela é a grande indicação do dia.
Exultando interiormente, Joe ouviu-o gabar as qualidades de Nesfield. Jenny estudou seu programa, com dúvida.
- Não tenho tanta certeza assim das indicações de seu velho Capitão disse ela. - O que acha, Joe?
- Nunca se pode saber - sugeriu Joe, inocentemente. - Nesfield não é a égua de Lorde Kell?
- É isso mesmo! - Jenny se animou. - Tinha esquecido esse detalhe. Acho que é melhor apostar em Nesfield.
- E o que acham de Pink Bud? - arriscou Joe, um tanto vagamente.
- Nunca ouvi falar - disse Alf prontamente. E Jenny arrematou:
- Oh, não, Joe. .. Fico com a égua de Lorde Kell.
- Como quiser - disse Joe, afastando-se. - Mas eu vou apostar em Pink Bud.
Ele pegou todo o dinheiro que tinha no bolso, um total de quatro libras, temerariamente apostou em Pink Bud. O animal estava sendo cotado a cinco por um no momento em que ele apostou, a cotação logo baixou para três por um. E depois houve a partida. Joe ficou parado junto à cerca, apertando-a tensamente, observando os cavalos agrupados contornarem a curva. Depressa, cada vez mais depressa. Joe suava, mal se atrevendo a respirar. Ofegante, ele observou os animais entrarem na reta, aproximarem-se da linha de chegada. E depois ele deixou escapar um grito frenético. Pink Bud chegara em primeiro, com uma vantagem de dois corpos.
No instante em que o resultado foi afixado, Joe tratou de ir receber o que ganhara. Meteu as quatro notas de cinco libras no bolso interno do paletó, pôs os quatro soberanos no colete. Abotoou o casaco, inclinou o chapéu para o lado, voltou para junto de Jenny.
- Oh, Joe - murmurou Jenny, quase chorando - por que eu não...
- Isso mesmo, por que você não aceitou minha indicação? Ganhei um bocado de dinheiro. E não diga que não a avisei. Falei o que ia fazer. Estava com um palpite forte em Pink Bud desde o início.
Joe estava exultante com a satisfação de ter levado a melhor sobre os dois. A visão do rosto pálido e consternado de Jenny fê-lo rir. E ele acrescentou, condescendente:
- Não fique tão desolada, Jenny. Vamos sair esta noite. E nos divertiremos à beça.
Habilmente, descartaram-se de Alf na saída. Já o tinham feito em outras ocasiões e desta vez foi ainda mais fácil. Alf, avançando de cabeça baixa, estava ocupado demais a xingar o Capitão Sanglar para perceber que eles estavam se desviando.
Chegaram a Tynecastle pouco depois das seis horas, subiram pela Newgate Street, entraram em Haymarket. Todo o desalento anterior de Joe se desvanecera, varrido por uma magnanimidade efusiva. Mostrava-se condescendente com Jenny, exibindo uma jovialidade generosa. Até mesmo permitiu que ela lhe desse o braço.
Subitamente, ao virarem a esquina da Northumberland Street, Joe se empertigou, soltando uma exclamação de espanto.
- Por Deus, não pode ser ele! - E depois ele gritou: - Davey! Ei, Davey Fenwick!
David parou, virou-se. O reconhecimento insinuou-se lentamente por seu rosto.
- Ora, Joe. .. não pode ser você!
- Mas sou eu mesmo! - exclamou Joe, lançando-se em cima de David com uma exuberância varonil. - Sou eu mesmo e nenhum outro! Só existe um Joe Gowlan em Tynecastle!
Todos riram. Joe, acenando com a mão pomposamente, fez a apresentação necessária.
- Essa é Miss Sunley, Davey. Uma amiga minha. E esse é Davey, Jenny, um velho companheiro de Joe nos bons tempos de antigamente.
David olhou para Jenny. Fitou-a nos olhos claros e grandes. E depois, diante do sorriso dela, sorriu também. A admiração estampou-se em seu rosto. Apertaram-se as mãos, polidamente.
- Jenny e eu íamos comer alguma coisa - comentou Joe, assumindo irresistivelmente o comando da situação. - Mas agora podemos ir os três juntos. O que acha da ideia, Davey?
- Acho ótima - concordou Jenny, entusiasmada. - Estamos perto da Nun Street. Podemos ir ao Lockharfs.
Joe quase desmoronou.
- Lockhart's... - ele repetiu para Jenny. - Ouviu mesmo falar no Lockharfs?
- E o que há de errado nisso? - indagou David, aturdido. - É um ótimo lugar. Costumo sempre ir até lá ao cair da noite, para tomar uma xícara de chocolate.
- Chocolate... - balbuciou Joe, fingindo se apoiar num poste ao lado.
- Quem ele pensa que somos?
- Comporte-se, Joe - suplicou-lhe Jenny, trocando um olhar tímido com David.
Joe empertigou-se dramaticamente. Aproximou-se de David, com grande efeito.
- Não está mais na mina, meu rapaz. Está com Mr. Joe Gowlan. E ele está em condições de oferecer-lhe o melhor. Portanto, feche essa boca e vamos embora.
Sem dizer mais nada, Joe enfiou o polegar no sovaco e saiu na frente, descendo a Northumberland Street até o Percy Grill. David e Jenny foram atrás. Entraram, sentaram a uma mesa. O exibicionismo de Joe era espetacular. Era uma das coisas que ele realmente apreciava, mostrar-se à vontade, descontraído e com o maior aprumo, pavoneando-se. Sentia-se inteiramente à vontade no Percy Grill. No último ano, ali estivera muitas vezes com Jenny. Era uma casa pequena, vulgar e ostentosa, com muitos dourados e protetores de lâmpadas vermelhos, uma espécie de anexo do pub adjacente, conhecido como Percy Vaults. Havia um garçom com um guardanapo metido na cintura, que se aproximou lentamente, em resposta ao chamado sofisticado de Joe.
- O que vão querer? - perguntou Joe. - vou tomar um uísque. E você, Jenny, não quer um pouco de porto? E qual vai ser a sua escolha, Davey? Tome cuidado, meu rapaz, para não dizer que vai querer um chocolate.
David sorriu, comentou que neste caso preferia tomar uma cerveja.
Depois que as bebidas foram servidas, Joe pediu uma lauta refeição: costeletas, salsichões e batatas fritas. Em seguida, ele recostou-se na cadeira, inspecionando David criticamente. Achou-o mais magro, mais amadurecido, curiosamente melhorado. E com uma curiosidade incontrolável, Joe perguntou:
- O que está fazendo atualmente, Davey? Mudou muito desde a última vez em que nos vimos.
David certamente mudara. Estava agora com quase 21 anos, mas o rosto pálido e os cabelos escuros lisos faziam-no parecer um pouco mais velho. O queixo continuava a indicar a mesma determinação de antes. O rosto parecia um tanto tenso e contraído, mas o sorriso tímido era delicioso. E ele sorriu agora.
- Não há muita coisa a dizer, Joe.
- Ora, deixe disso... - murmurou Joe, condescendente. - Conte logo, meu rapaz.
- bom...
Os últimos três anos não haviam sido fáceis para David. Haviam deixado a sua marca, eliminando para sempre a imaturidade de seu rosto. Viera para Baddeley com sua bolsa de estudos de 60 libras por ano, arrumando um quarto em Westgate Hill, em frente ao Big Lamp. O dinheiro era ridiculamente insuficiente, o dinheiro que vinha de casa às vezes não chegava - Robert ficara certa ocasião sem trabalhar por dois meses a fio - e David passara necessidades. Em determinado momento de maior penúria, carregara a mala de um homem da Central Station, a fim de ganhar uma moeda de seis pence para o jantar.
O que não chegava a ser tão importante assim, pois seu entusiasmo levava-o a superar todas as dificuldades. O entusiasmo derivava da descoberta de sua própria ignorância. O primeiro mês em Baddeley mostrara que era um rapaz rude saído de uma mina de carvão, que conseguira ganhar uma bolsa de estudos, por uma combinação de sorte, estudos elementares e um bom senso inato. E, com isso, David dispusera-se a fazer alguma coisa. Começou a ler. Não se limitava às leituras estereotipadas determinadas no curso, não ficava apenas com seu Gibbon, Macaulay, Horácio. Lia tudo o que lhe chegava às mãos, de Marx a Maupassant, de Goethe a Concourt. Talvez lesse insensatamente, mas lia bem. Lia absorvido, às vezes perplexo, mas sempre obstinadamente. Ingressou na Sociedade Fabiana, uma organização socialista, sempre dava um jeito de espremer seis pence de seu orçamento para um lugar na galeria nos concertos sinfónicos, passou a conhecer Beethoven e Bach. Foi à Galeria Municipal de Tynecastle para descobrir a beleza de Whistler, Degas e o brilho solitário do Manet que lá havia.
Não fora fácil. Podia-se até dizer que fora um tanto patético, aquela busca conturbada e solitária. Ele era muito pobre, andrajoso e orgulhoso demais para fazer muitos amigos. Queria ter amigos, mas deveriam procurá-lo.
Depois, David começou a dar aulas, nas escolas primárias dos bairros mais pobres, como Saltley, Witton e Heburn. Por causa de seus ideais, claro que deveria adorar a oportunidade. Ao contrário, porém, detestou a experiência. As crianças pálidas, desnutridas e frequentemente doentes dos cortiços distraíam sua atenção, angustiavam-no terrivelmente. Tinha vontade de dar-lhes botinas, roupas e comida, não meter em suas cabecinhas atordoadas a tabuada de multiplicação. Queria levá-las para Wansbeck e deixá-las brincar ao sol, ao invés de censurá-las por não conseguirem decorar dez linhas de incompreensível "poesia", a história de Lycidas, de Milton. Seu coração se desesperava por aquelas pobres crianças. Compreendeu imediata e irremediavelmente que não tinha lugar diante de um quadro-negro, jamais poderia se tornar um professor. E compreendeu também que ensinar era apenas um meio para alcançar um fim, que devia abandonar em breve aquela atividade para atuar em outra esfera, mais ativa, mais combativa. Devia tirar o seu diploma no ano seguinte e depois rapidamente seguir em frente.
David parou de repente, o sorriso raro tornando a se estampar em seu rosto.
- Oh, Deus! Fiquei mesmo falando durante todo esse tempo? Pediu-me para contar a triste história... e essa é a minha única desculpa!
Mas Jenny se recusou a permitir que ele terminasse daquele jeito jovial, como se nada fosse importante. Ela estava profundamente impressionada.
- Puxa, não tinha a menor ideia de que ia conhecer alguém tão importante! - comentou ela, animada, mas também acanhada.
O porto deixara as suas faces coradas e ela olhava para David fascinada.
David fitou-a desconfiado.
- Importante? Mas isso é muito sarcasmo, Miss Jenny!
Mas Miss Jenny não fizera o comentário por sarcasmo. Jamais conhecera antes um estudante de verdade, um aluno do Baddeley College. Os alunos do Baddeley pertenciam quase que exclusivamente a um mundo social que até aquele momento Jenny se limitara a observar a distância, com inveja. Além disso, ela achava David, embora um tanto andrajoso em contraste com a opulência de Joe, um rapaz bem-apessoado... atraente seria o termo mais exato! E finalmente pensava que Joe a vinha tratando de maneira abominável ultimamente... e seria ótimo flertar com David, a fim de deixá-lo com ciúme. Jenny murmurou:
- Fico assustada só de pensar em todos os livros que precisa estudar. E nem se fala no diploma!
- Provavelmente só vai me servir para arrumar um emprego de professor em alguma escola miserável, dando aulas a crianças desnutridas.
- Mas não é isso o que quer? - Jenny estava incrédula. - Ser professor! Isso é maravilhoso!
David sacudiu a cabeça, sorrindo. Já ia argumentar com Jenny quando chegaram as costeletas, salsichões e batatas, criando uma diversão. Joe dividiu a comida meticulosamente. E com uma expressão extremamente pensativa. A princípio, ouvira David com inveja, com um sorriso ligeiramente zombeteiro, com uma gargalhada pronta, disposto a humilhar o velho amigo na primeira oportunidade. E de repente percebera a maneira como David olhava para Jenny. Fora então que ocorrera a Joe uma ideia maravilhosa, absolutamente maravilhosa. Ele levantou a cabeça, entregou o prato de David, cortesmente.
- Está bom assim para você, Davey?
- Está, sim. Obrigado, Joe.
David sorriu. Há semanas que não via um prato cheio daquele jeito. Joe acenou com a cabeça, graciosamente passou a mostarda para Jenny e pediu outro porto para ela.
- O que era mesmo que estava dizendo, Davey? - perguntou ele, suavemente. - Não era sobre fazer alguma outra coisa que não ensinar?
David sacudiu a cabeça.
- Tenho certeza de que não vai se interessar por isso, Joe.
- Mas estamos interessados... não é mesmo, Jenny? - Havia um entusiasmo genuíno na voz de Joe. - Vamos, meu garoto, fale-nos mais a respeito.
David olhou de um para outro. Encorajado pela atenção solene de Joe e pelos olhos brilhantes de Jenny, ele continuou: '
- A coisa é muito difícil. Não pensem que estou bêbado, sou um pretensioso ou um candidato ao asilo de loucos. Quando tiver meu diploma, posso dar aulas por algum tempo. Mas só farei isso para sobreviver. Não estou me preparando para ensinar. Não tenho jeito para professor... acho que sou impaciente demais. Estou me preparando para lutar. O que quero fazer é uma coisa diferente, terrivelmente difícil de explicar. Mas, no fundo, equivale ao seguinte: quero fazer alguma coisa por minha gente, pelos homens que trabalham nas minas. Sabe como é o trabalho nas minas, Joe. Lembre-se da Neptune, onde ambos trabalhamos. Sabe o que fez com meu pai. Sabe quais são as condições por lá... e quanto se paga. Quero ajudar a melhorar as coisas para os mineiros, a mudar a situação.
Joe pensou: ele está doido, completamente pirado. Mas Joe disse suavemente :
- Continue, Davey. - É assim que se fala. Animando-se com o assunto, David protestou:
- Provavelmente pensa que estou dizendo disparates, Joe. Mas pode ter uma ideia melhor do que estou querendo dizer se examinar a história dos mineiros... isso mesmo, a história dos mineiros em Northumberland, que tem apenas 60 ou 70 anos. Eles trabalhavam praticamente num sistema feudal. Eram tratados como bárbaros... como párias. Não tinham qualquer instrução. Impediam que aprendessem alguma coisa. As condições eram terríveis, ventilação insuficiente, acidentes incontáveis, os donos de minas sempre se recusando a tomar precauções contra o grisu. Mulheres e crianças de até seis anos podiam descer nas minas... crianças de seis anos, imaginem só! Os garotos passavam 18 horas por dia debaixo da terra. Os homens estavam acorrentados, não podiam protestar sem serem expulsos de suas casas ou jogados na prisão. Compravam fiado nos armazéns geralmente dirigidos por um parente do capataz. Os mineiros eram obrigados a comprar mantimentos em tais armazéns e seus salários eram confiscados no dia do pagamento para saldar as dívidas...
Subitamente, ele parou de falar e riu, constrangido, olhando para Jenny.
- Isso não pode certamente interessá-la! Sou um idiota em incomodála com uma história dessas!
- Não acho - declarou ela, com uma admiração franca. - Ao contrário, penso que é preciso ser muito inteligente para saber de tudo isso.
- Continue, Davey - insistiu o jovial Joe, pedindo outro porto para Jenny. - Fale-nos mais a respeito.
Mas desta vez David sacudiu a cabeça categoricamente.
- Guardarei o resto para o debate da Sociedade Fabiana. É lá que se pode falar à vontade dessas coisas, mas talvez você tenha entendido o que quis explicar, Joe. As condições melhoraram desde aqueles dias terríveis que mencionei. Percorremos uma certa distância. Mas ainda não é o suficiente. Ainda existem condições terríveis em algumas minas, pagamento miserável e acidentes em demasia. As pessoas parecem não compreender o que está acontecendo. Outro dia, ouvi um comentário de um homem no bonde. Ele estava lendo o jornal. O amigo a seu lado perguntou quais eram as notícias. E ele respondeu: "Não há nenhuma notícia importante. Houve apenas mais um acidente numa mina." Olhei por cima do ombro dele e descobri que 15 homens haviam morrido numa explosão em Nottingham.
Houve uma breve pausa. Os olhos de Jenny estavam fixados em David. Ela tomara três doses de porto e suas emoções reagiam com a maior facilidade. Estava vibrando, pronta para rir com alegria da vida ou chorar pela tristeza da morte. Jenny aprendera a gostar imensamente de porto. Considerava-o uma bebida digna de uma dama, um vinho, o que o classificava com algo infinitamente refinado. Evidentemente, fora Joe quem a introduzira no consumo de porto.
Foi Joe quem rompeu o silêncio, declarando solenemente:
- Você vai longe, Davey. Está muitas ruas na minha frente. Vai parar no Parlamento, enquanto eu continuarei a trabalhar numa fundição.
- Não diga bobagem! - reagiu David, bruscamente.
Mas Jenny ouvira e sua atenção por David aumentou ainda mais. Começou a devotar-se a ele. Seus olhares recatados para David tornaram-se insinuantes. Estava radiante. Claro que ela sabia, durante todo o tempo, que estava jogando David contra Joe. Era extremamente fascinante poder manipular dois homens.
Passaram a conversar de coisas mais amenas, como o que Joe fizera. Falaram e riram até 10 horas, sempre alegres e cordiais. Foi então que David percebeu que horas eram, com um sobressalto.
- Santo Deus! Eu deveria estar trabalhando!
- Não se vá ainda - protestou Jenny. - A noite é uma criança.
- Não quero ir, mas preciso. Não há outro jeito. Tenho uma prova de História na segunda-feira.
- Pois então voltaremos a nos encontrar na terça-feira, meu caro Davey, conforme combinamos - interveio Joe. - E da próxima vez não vai nos escapar tão facilmente.
Enquanto Jenny ia- "se arrumar", Joe pagou a conta com uma exibição de notas de cinco libras.
Lá fora, enquanto esperavam por Jenny, Joe parou de mastigar o palito subitamente e disse:
- Jenny é uma ótima garota, Davey.
- Também acho. Admiro o seu bom gosto.
- Meu bom gosto? - Joe riu efusivamente. - Entendeu errado, meu rapaz. Somos apenas amigos. Não há nada entre Jenny e mim.
- É mesmo?
David parecia profundamente interessado.
- Mas claro que é! - Joe riu novamente. - Não tenho a menor ideia de como você pôde ter uma impressão errada.
Jenny chegou e os três seguiram até a esquina da Collingwood Street, onde David se separaria, indo pela Westgate Road.
- Não se esqueça - disse-lhe Joe. - Voltaremos a nos encontrar na noite de terça-feira.
O aperto de mão em despedida foi cordial. Os dedos de Jenny transmitiram apenas a impressão mais polida de um aperto.
David voltou feliz para o seu quarto miserável. Pegou a Histoire de la Révolution Française de Mignet e acendeu o cachimbo.
Fora simplesmente sensacional, pensou ele, ter encontrado Joe de forma tão inesperada. Era estranho que nunca tivessem se encontrado antes. Mas Tynecastle era uma cidade grande e, como o próprio Joe dissera, só havia nela um Joe Gowlan.
David parecia estar pensando muito em Joe. Mas o rosto que surgia insistentemente através das páginas do compêndio de Mignet não era o rosto de Joe. Era o rosto sorridente de Jenny.
XIV
David apareceu na Scottswood Road, 117A na terça-feira seguinte. Foi uma infelicidade, levando-se em consideração o quanto ele aguardava ansiosamente a noite em companhia do amigo, que Joe ficasse retido na Millington, trabalhando em horas extras. Mas era o que acontecia e nada se podia fazer. O pobre Joe tinha de trabalhar além do expediente. O que não impediu que David se divertisse imensamente. Embora suas oportunidades fossem mínimas, ele possuía uma natureza sociável. Chegou disposto a se divertir e foi o que aconteceu. Os Sunleys, informados previamente por Jenny, estavam propensos inicialmente a tratá-lo com alguma desconfiança. Esperavam uma demonstração de superioridade. Mas o ambiente não demorou a degelar, o jantar apareceu na mesa, o clima era de hilaridade. A Sra. Sunley, abandonando a sua letargia por uma vez, fizera torradas com queijo derretido... e, como Sally comentou, as torradas dela eram um petisco e tanto. com a ajuda de duas colheres de chá e o vidro de pimenta, Alf demonstrara o seu método especial de construção de pombais. Poderia ganhar uma fortuna, se o patenteasse. Jenny, muito atraente num vestido estampado, serviu pessoalmente o chá... pois a mãe estava cansada demais das lides na cozinha.
David não conseguia desviar os olhos de Jenny. No cenário desleixado de sua casa, ela estava radiante para David. Durante os anos que passara em Tynecastle, David quase não falara com mulheres. Em Sleescale, é claro, ele ainda não chegara ao estágio de "sair"... como tradicionalmente se dizia nos Terraços. Jenny era a primeira... absolutamente a primeira a lançar-lhe o encantamento do sexo.
Um ar quente entrava pela janela entreaberta da sala dos fundos. Embora estivesse impregnado com as exalações de dez mil chaminés, continha para David a fragrância da primavera. Ele observava atentamente, aguardava ansiosamente por um sorriso de Jenny. O contrair suave dos lábios dela constituía a coisa mais deliciosa que ele já vira. Era como o desabrochar de uma flor. Quando ela lhe entregou a xícara e os dedos roçaram por um instante, David sentiu-se inundado por um prazer indescritível.
Jenny, consciente do efeito que estava produzindo, sentia-se lisonjeada. E quando Jenny sentia-se lisonjeada, exibia o melhor de si. Na verdade, ela não estava se sentindo muito atraída por David. Quando os dedos dos dois se encontraram, ela não experimentara qualquer emoção especial. Jenny estava apaixonada por Joe.
Jenny começara desprezando Joe, por seus maus modos, sua rudeza, porque ele tinha, nas palavras dela, "um trabalho vulgar". Por mais estranho que pudesse parecer, foram essas as próprias qualidades que a haviam subjugado. Jenny tinha a disposição para ser dominada; no fundo de seu ser, havia um reconhecimento inconsciente da brutalidade que a conquistara. Naquele momento, porém, Jenny estava bastante satisfeita com aquela sua nova conquista. Seria uma "lição" para Joe, quando ele soubesse, de que não deveria tratá-la de maneira tão indiferente.
Terminado o jantar, Alf sugeriu música. Foram para a sala de visitas. Lá fora, podia-se ouvir o burburinho suave da noite; lá dentro, estava agradavelmente fresco e arejado. Enquanto Sally tocava o acompanhamento, Jenny cantou Juanita e Sweet Afarie, come to me. Embora sua voz fosse um pouco estridente e um tanto forçada, ela era bastante eficiente ao piano. Ao terminar Sweet Maríe, ela se ofereceu para cantar PassingBy. Mas Alf, apoiado por Clarry e Phyllis, começara a clamar por Sally.
- Sally é sensacional - ele comentou confidencialmente para David. Se pudermos fazer com que ela comece, vai ver o que é se divertir a valer. Ela é uma grande comediante. E vamos ao Empire todas as semanas.
- Vamos, Sally! - suplicou Clarry. - Imite Jack Pleasants. Phyllis insistiu:
- Isso mesmo, Sally, por favor! E imite também Florrie Forde! Mas Sally, empoleirada apaticamente nobanquinho do piano, recusou-se, tocando algumas notas no piano com apenas um dedo.
- Não estou com vontade. Além do mais, ele... - E Sally sacudiu a cabeça na direção de David. - ... quer ouvir Jenny e não a mim.
A seu lado, Jenny soltou um risinho de superioridade.
- Ela quer ser lisonjeada até aceitar. No mesmo instante, Sally explodiu:
- Está certo, Miss Sweet Marie Sunley! Farei tudo sem que ninguém precise ficar me lisonjeando!
Ela empertigou-se no banquinho.
Aos 15 anos, Sally ainda era baixa e atarracada. Mas tinha alguma coisa, algo estranho, que atraía a atenção e fascinava. Agora, parecia que seu corpo se tornara elétrico. Ela franziu o rostinho feio, numa expressão irresistível de ironia. E tocou uma terrível nota dissonante.
- A pedido especial - disse ela, arremedando - a outra Miss Sunley vai cantar Molly o 'Morgan.
E ela começou.
Era bom, muito bom mesmo. A canção não era nada, apenas uma música popular na ocasião. Mas Sally tirou o máximo de proveito. Não se limitou a cantar a música; fez uma paródia, uma pantomima, cantou em tom de falsete, ficou emocionada, quase chorou pela tragédia dos amantes abandonados de Molly.
- Molly o 'Morgan com seu realejo, Meio irlandesa, meio italiana.
Esquecendo o que Jenny poderia chamar suas maneiras, Sally concluiu com uma vergonhosa representação do macaco que se poderia esperar que acompanhasse o realejo de Miss o' Morgan.
Todos se dobraram de tanto rir, à exceção de Jenny. Depois, sem lhes dar tempo para se recuperarem, Sally lançou-se a uma apresentação de / was síanding at the comer of the street (Eu estava parado na esquina). Deixou de ser o macaco, transformou-se em Jack Pleasants. Era um campônio rude, apático, sustentando o muro do pub da aldeia. Quase que se podia ver o chapéu de palha em sua cabeça enquanto cantava:
- Um sujeito de uniforme se aproximou e gritou: Como você entrou no exército? Respondi: Eu... estava parado... na esquina.
Alf bateu palmas efusivamente em aprovação. Sally sorriu-lhe brejeiramente, com os cantos dos olhos. Piscou firmemente, restabeleceu o próprio sexo. Pôs-se a cantar Yip I addy I ay. Estofou o peito, puxou do fundo uma voz sonora, exibiu quadris maravilhosos. Era Florrie Forde, Florrie, em carne e osso.
- Canto de alegria, canto de felicidade, nunca foi assim Até que você apareceu.
Ela terminou abruptamente. Deixou o banquinho, virou-se e fitou-os, sorrindo.
- Uma porcaria! - exclamou, torcendo o nariz. - Não vale nada. E vou tratar de sair daqui antes dos tomates podres começarem a voar!
Mais tarde, Jenny pediu desculpas a David pelo comportamento insólito de Sally.
- Deve desculpá-la, porque ela frequentemente fica muito esquisita. E que génio!
Ela baixou a voz para acrescentar, em tom confidencial:
- Sei que é uma bobagem, mas receio que ela seja propensa a sentir ciúmes de mim.
- Tenho certeza de que não! - David sorriu. - Ela não passa de uma criança.
- Já vai fazer 16 anos - protestou Jenny, empertigando-se. - E realmente detesta ver alguém me dispensando muita atenção. Posso lhe assegurar que isso torna as coisas muito difíceis para mim. E o pior é que não posso fazer nada para evitar.
Claro que Jenny não podia evitar. Seria a mesma coisa que culpar uma rosa por seu perfume, um lírio por sua pureza.
Naquela noite, David foi para casa mais convencido do que nunca de que Jenny era a coisa mais maravilhosa do mundo.
Ele começou a fazer visitas regulares, aparecendo ao cair da noite. Encontrava Joe de vez em quando; mais frequentemente, não encontrava. com um ar de tremenda preocupação, Joe fazia horas extras febrilmente, quase nunca aparecia no 117A. E um dia David convidou Jenny a sair em sua companhia. Começaram a fazer passeios juntos. Eram estranhas excursões para Jenny, passeios por Aston Hills, uma ida a Liddle, um piquenique, chegaram mesmo a visitar Esmond Dene. Secretamente, Jenny desdenhava todas aquelas excursões. Estava acostumada à companhia magnificente de Joe, que a levava ao Percy Grill, Bioscope, Carrick's. Para Jenny, "sair" significava multidões, diversão, alguns copos de porto, dinheiro gasto com ela. David não tinha dinheiro para gastar com ela. Jenny não duvidava por um momento sequer que David a levaria a todos os seus lugares prediletos, se os recursos dele assim o permitissem. David era um rapaz simpático. Jenny gostava dele, embora às vezes o achasse muito esquisito. Deixou-a inteiramente desconcertada, por exemplo, na tarde em que foram a Esmond Dene.
Jenny não sentia muita disposição de visitar Esmond. Julgava-o um lugar vulgar, em que nada se pagava para entrar, em que as pessoas mais vulgares estendiam-se pela relva e comiam o que traziam em sacos de papel. Algumas das garotas mais vulgares da oficina iam lá com seus namorados aos domingos. Mas David parecia tão ansioso em levá-la que Jenny acabou concordando.
Começaram a visita com uma volta por Esmond, a fim de que David pudesse mostrar-lhes os ninhos das andorinhas. Ansiosamente, ele perguntou:
- Já tinha visto os ninhos, Jenny? Ela sacudiu a cabeça.
- Só estive aqui uma vez antes. E era muito pequena, devia ter no máximo cinco anos.
David ficou atónito.
- Mas este é um lugar maravilhoso, Jenny! Faço um passeio por aqui todas as semanas. É um lugar que tem ânimos diferentes, como a alma humana. Às vezes está escuro e melancólico, outras ensolarado e alegre. Olhe ali! Veja aqueles ninhos sob o beiral do pavilhão:
Jenny olhou atentamente, mas pôde ver apenas borrões de lama grudados nas paredes. Aturdida, sentindo-se um tanto irritada por estar perdendo alguma coisa, Jenny acompanhou-o além do salão de banquetes, pelo caminho de rododendros, até a cascata. Ficaram parados juntos na pequena ponte de pedra.
- Veja os castanheiros, Jenny! - exclamou David, na maior felicidade.
- Não parece que desabrocham para o céu como se estivessem abrindo os braços numa prece? E olhe o musgo naquelas pedras! Não acha que aquele moinho é maravilhoso? É exatamente como um dos primeiros Corots!
Jenny via uma casa velha em ruínas, com um telhado vermelho, uma roda de moinho de madeira, coberta de hera, com as cores mais esquisitas. Era um lugar todo desmantelado e estranho, que não servia para mais nada, pois o moinho não funcionava. Ela sentiu-se novamente furiosa. Haviam percorrido um longo caminho, seus pés estavam inchados, doendo bastante nos sapatos novos e apertados, que ela julgara um bom negócio, um abatimento de nove shillings numa liquidação. E, até aquele momento, vira apenas relva, árvores, flores e o céu, ouvira apenas o barulho da água e dos passarinhos, comera apenas alguns pequenos sanduíches de ovo e duas bananas... e nem mesmo eram as bananas grandes da Jamaica, que ela preferia. Estava confusa, perplexa, toda "pelo avesso", irritada com David, com ela mesma, com Joe, a vida, os sapatos... será que estava ficando velha?... irritada com tudo. Queria uma xícara de chá, um copo de porto, alguma coisa! Parada ali, naquela ponte de pedra adorável, Jenny comprimiu os lábios pálidos por um instante, entreabrindo-os em seguida para dizer algo bem desagradável. E foi nesse instante que percebeu a expressão de David.
Ele estava feliz, extasiado, dominado por tamanho ardor, intensidade e amor que Jenny ficou atordoada. E desatou a rir. Era tão engraçado que ela não conseguia parar de rir. Teve um perfeito paroxismo de alegria quase histérica.
David riu também, de pura simpatia.
- O que houve, Jenny? - ele indagou algumas vezes. - O que é tão engraçado?
- Não sei... - balbuciou ela, lançando-se a um novo acesso de riso. Apenas isso... não sei... não sei do que estou rindo...
Jenny finalmente enxugou os olhos num lencinho debruado de renda ... um lencinho realmente deslumbrante, que alguma dama esquecera no toalete de Slattery.
- Oh, Deus! - suspirou ela. - Foi um pagode e tanto, não é mesmo?
Era uma das expressões prediletas de Jenny. Todos os eventos de significado insólito, que ficavam além de sua compreensão, eram imediatamente classificados de pagodes.
Contudo, ela sentiu-se plenamente recuperada, passando a sentir alguma afeição por David. Permitiu até que ele lhe segurasse o braço e ficasse bem perto dela, enquanto subiam a encosta íngreme do Dene, a caminho do ponto do bonde. Mas, mesmo assim, ela tratou de abreviar a tarde, alegando cansaço. E recusou-se a permitir que David a acompanhasse até em casa.
Jenny seguiu sozinha pela Scottswood Road, inquieta e excitada, pensando na ideia que lhe ocorrera quando estava sentada ao lado de David no bonde. A rua fervilhava de gente. Era sábado, por volta das seis horas. As pessoas começavam a sair para passear, se divertir. Era um momento que Jenny adorava, o momento em que quase sempre saía para passear com Joe.
Ela entrou em casa silenciosamente. E por um golpe de sorte, que fez seu coração disparar, deparou inesperadamente no corredor com Joe, que estava saindo.
- Olá, Joe! - disse ela, jovialmente, esquecendo que há uma semana brigara com ele.
- Olá - disse Joe, sem fitá-la.
- Tive um pagode e tanto esta tarde, Joe - continuou Jenny, alegremente, brejeiramente. - Você teria morrido de verdade se estivesse lá! Vi todos os tipos de andorinha, menos uma de verdade!
Joe lançou-lhe um olhar rápido e desconfiado, enquanto Jenny permanecia parada no corredor, bloqueando-lhe a passagem. Ela percebeu a expressão e chegou pouco mais perto, fazendo-se sedutora, pedindo-lhe que a fitasse, nos olhos, no corpo.
- Não podemos sair esta noite, Joe? - murmurou ela, mais sedutora do que nunca. - Juro que tive uma tarde terrível. Tenho sentido muito a sua ; falta ultimamente. Quero sair com você. Quero mesmo. Já estou pronta, toda vestida...
- Mas...
Jenny comprimiu-se contra ele, começou a alisar as lapelas do casaco, enfiou um dedo na botoeira, com um apelo infantil, mas sugestivo.
- Estou morrendo de vontade, Joe... Vamos ao Percy Grill e poderemos nos divertir como antigamente. Sabe, Joe... sabe o que...
Ele sacudiu a cabeça bruscamente e disse, em tom áspero:
- Não! Estou ocupado, estou preocupado, tenho uma porção de problemas na cabeça!
E passando por ela, Joe saiu de casa e bateu a porta.
Jenny ficou encostada na parede, os lábios entreabertos, os olhos fixados na porta. Ela pedira a Joe, rebaixara-se ao ponto de pedir. Abrira-se, escancarara-se, ansiando por ele. E Joe a rejeitara bruscamente. A humilhação dominou-a. Nunca antes, em toda a sua vida, fora tão ferida, tão humilhada. Lívida de raiva, mordeu os lábios vigorosamente. Não demorou a se controlar, empinando a cabeça e seguindo para a sala dos fundos, como se nada tivesse acontecido.
Largando o chapéu e as luvas no sofá, Jenny foi servir-se de uma xícara de chá. Ada, recostada na cadeira de balanço, baixou a revista e observou-a com evidente desprazer.
- Onde você esteve? - perguntou ela, friamente.
- Saí.
- Hum. .. com aquele tal de Fenwick?
- Isso mesmo - confirmou Jenny, mantendo a serenidade. - Saí com David Fenwick. E tive uma tarde das mais agradáveis. Simplesmente perfeita. Vimos flores maravilhosas e passarinhos adoráveis. Ele é um ótimo rapaz, muito simpático.
O peito indolente de Ada arfou ameaçadoramente.
- Quer dizer que ele é simpático, hem?
- E muito. - Jenny fez uma pausa em sua medição meticulosa do chá para acenar graciosamente com a cabeça. - Ele é o melhor e o mais simpático rapaz que já conheci. Estou muito impressionada com David.
E ela começou a cantarolar, distraídamente.
Ada não conseguiu aguentar por mais tempo. E disse, tremendo de indignação:
- Não comece a cantarolar quando está conversando comigo que não admito! E deixe-me dizer-lhe uma coisa, madame: Está se comportando de maneira chocante! Não está tratando Joe como deveria. Há quatro anos que ele está atrás de você, levando-a para passear sempre que pode, como se fosse o seu prometido. E no instante em que esse outro rapaz aparece, você esquece Joe e o acompanha a toda parte... Não é justo com o pobre Joe.
Jenny tomou um gole do chá, com sua pose contida de dama.
- Não me preocupo com Joe Gowlan, mãe. Basta levantar o dedinho para atrair Joe. Mas não o levantei. Ainda não.
- Então é esse o problema! Joe não é bom o bastante para você agora... não é importante o suficiente agora que esse professor entrou em cena! Você é mesmo terrível. Eu deveria ter imaginado. Pois quero que saiba, minha cara, que não foi assim que tratei seu pai. Ao contrário, tratei-o direito, com toda a atenção que devia. E se não tratar Joe da mesma forma vai acabar perdendo-o, tão certamente quanto o seu nome É Jenny Sunley!
- Pouco me importa, mãe - disse Jenny, sorrindo desdenhosamente. E não me importaria se nunca mais tornasse a pôr os olhos em Joe Gowlan!
À Sra. Sunley explodiu.
- E é bem possível que isso aconteça! Joe está transtornado, muito transtornado. Esteve aqui há pouco, conversando comigo. Havia lágrimas nos olhos do pobre coitado, enquanto me falava a seu respeito. Ele não sabe o que fazer. E também está metido em algum problema lá na fundição. Você o está tratando de maneira vergonhosa. Anote as minhas palavras: nenhum homem suporta esse tipo de coisa por muito tempo. Portanto, tome cuidado. Você é uma garota terrível, sem coração. Estou pensando até em contar tudo a seu pai.
Ada formulou a ameaça final e depois encerrou a conversa, levantando a revista bruscamente. Já dissera o que queria, cumprira o seu dever. Que Jenny agora agisse como quisesse e depois aguentasse as consequências!
O sorriso de Jenny ainda era superior quando ela acabou de tomar o chá. E ainda era condescendente e mais superior quando pegou o chapéu e as luvas e saiu da sala, subindo a escada.
Ao chegar ao quarto, no entanto, alguma coisa saiu errada com o sorriso de Jenny. Ela ficou parada no meio do chão frio de linóleo gasto, como uma criança desesperada, mimada e abandonada. Largou o chapéu e as luvas. E depois, subitamente, jogou-se na cama. Ficou toda estendida, como se quisesse abraçar a cama. A saia, suspensa acima de um joelho, deixava à mostra um pedaço de pele alva, por cima da meia preta. Seu desamparo era indescritível.
E Jenny chorou e chorou, com a sensação de que o coração iria arrebentar a qualquer momento.
Joe, descendo Bigg Market para se encontrar com Dick Jobey, com quem tinha negócios particulares e importantes a tratar, dizia a si mesmo, alegremente:
- Está funcionando, rapaz! Por Deus, tudo está dando certo!
XV
Dez dias depois, no início da manhã, Joe apresentou-se no escritório da fundição e pediu para falar com Mr. Stanley.
- E então, Joe, qual é o problema?
Stanley Millington perguntou levantando os olhos de sua mesa, no meio da sala antiquada, de janelas altas, atulhada de papéis, livros e plantas azuis, as paredes marrons cobertas de fotografias de grupos de empregados, diretores da firma, instantâneos de excursões do Clube Social e imensos moldes pendendo precariamente de guindastes.
Joe disse, respeitosamente:
- Estou concluindo a minha semana de aviso prévio, Mr. Millington. Não queria ir embora sem me despedir.
Nosso Mr. Stanley empertigou-se na cadeira.
- Ei, não me diga que está nos deixando! Ora, isso é lamentável! Você é um dos rapazes mais brilhantes da oficina. E também uma figura de destaque no Clube Social. Qual é o problema? Alguma coisa que eu possa resolver?
Joe sacudiu a cabeça com uma expressão de melancolia viril.
- Não, Mr. Stanley. É apenas um problema particular. Não tem nada a ver com a oficina. Gosto muito do trabalho aqui. É... é apenas um problema entre minha garota e mim.
- Deus do céu, Joe! - exclamou Mr. Stanley. - Não está querendo dizer. ..
Nosso Mr. Stanley recordava-se perfeitamente de Jenny; nosso Mr. Stanley casara recentemente com Laura; nosso Mr. Stanley, por assim dizer, acabara de sair do leito nupcial e por isso mesmo o seu ânimo era dramaticamente propício.
- Não está querendo me dizer que ela lhe deu o fora? Joe assentiu solenemente.
- Por isso é que tenho de ir embora. Não posso mais ficar aqui. Tenho de partir imediatamente.
Millington desviou os olhos de Joe. Era muito azar do pobre coitado, um azar terrível, uma verdadeira desgraça. Mas ele estava aceitando a coisa com espírito esportivo! Para dar algum tempo a Joe de se recuperar, Stanley Millington pegou o cachimbo, encheu-o lentamente, com o fumo que estava num jarro com as cores de St. Bede, endireitou a gravata de St. Bede e só depois é que tornou a falar:
- Lamento muito, Joe.
O cavalheirismo para com as mulheres não lhe permitia dizer mais do que isso. Não podia fazer acusações a Jenny. Mas ele acrescentou:
- E lamento ainda mais perdê-lo assim. Para ser franco, venho pensando em você há algum tempo. Venho observando-o atentamente. Queria dar-lhe uma oportunidade, ajudá-lo a subir.
com todos os diabos, pensou Joe, sombriamente, então por que não falou antes? Sorrindo agradecido, ele disse:
- É muita bondade sua, Mr. Stanley.
- Obrigado. - Stanley Millington soprou a fumaça para o alto, pensativo. - Aprecio o seu estilo, Joe. É o tipo de homem com que gosto de trabalhar... franco e decente. A instrução conta muito pouco atualmente. É o homem por si mesmo que importa. Eu queria lhe dar uma boa oportunidade.
Houve uma pausa prolongada.
- Contudo, não vou tentar dissuadi-lo agora. Não há sentido em oferecer a um homem o que ele não está querendo. Nas circunstâncias em que você se encontra, eu faria provavelmente a mesma coisa. Pois vá embora e tente esquecer.
Ele fez outra pausa, com o cachimbo na mão, pensando com uma súbita e intensa alegria como era feliz o seu relacionamento com Laura, como era diferente da situação do pobre Joe.
- Mas não se esqueça do que eu disse, Joe. Falei sério. Se e quando você quiser voltar, sempre haverá um emprego aqui à sua espera. Um emprego decente. Está me entendendo, Joe?
- Estou, sim, Mr. Stanley - respondeu Joe, sorrindo bravamente. Millington levantou-se, tirou o cachimbo da boca, estendeu a mão,
encorajando Joe a enfrentar o seu destino atual.
- Adeus, Joe. Tenho certeza de que voltaremos a nos encontrar. Apertaram-se as mãos. Joe virou-se e saiu. Desceu apressadamente a
Platt Street, pegou um bonde, insistiu mentalmente para que desenvolvesse o máximo de velocidade. Desembarcou finalmente e avançou pela Scottswood Road, entrou no 117A, subiu silenciosamente a escada e fez a mala. Recolheu tudo o que lhe pertencia. Ao chegar à fotografia emoldurada de Jenny, que a própria lhe dera, contemplou-a por um momento, sorrindo ligeiramente. Depois, tirou a fotografia e guardou a moldura na mala. Afinal, era uma boa moldura, uma moldura de prata.
Ele desceu, carregando a mala estufada. Largou-a no vestíbulo e foi para a sala dos fundos. Como sempre, Ada estava na cadeira de balanço, as curvas desmazeladas transbordando por todos os lados, enquanto se entregava ao que chamava de descanso matutino.
- Adeus, Sra. Sunley.
- Como?
Ada quase se levantou da cadeira de um pulo.
- Fui despedido - anunciou Joe, laconicamente. - Perdi o emprego, Jenny não quer mais saber de mim, não suporto mais continuar aqui. Estou indo embora.
- Mas, Joe... - Ada engoliu em seco. - Não está falando sério, não é mesmo?
- Estou, sim.
Joe não estava agora aflito. Sabia que era um momento perigoso, com muitos protestos de Ada para que continuasse ali. Ele foi firme, determinado, controlado. Estava indo embora, um homem que fora ultrajado e tomara uma decisão inexorável. E foi assim que a suscetível Ada aceitou tudo.
- Eu sabia! - lamuriou-se ela. - Tinha certeza de que isso acabaria acontecendo, pela maneira como Jenny estava se comportando! Bem que falei a ela que você não iria suportar! Ela tratou-o de maneira chocante!
- Pior do que chocante - murmurou Joe, tristemente.
- E pensar que você perdeu o emprego ainda por cima! Oh, Joe, lamento muito! É terrível! E o que você vai fazer agora?
- Arrumarei outro emprego - declarou Joe, resoluto. - Mas será bem longe de Tynecastle.
- Mas, Joe... você não quer...
- Não! - gritou Joe subitamente. - Não posso aceitar. Já sofri demais. Fui passado para trás por meu melhor amigo. Não suporto mais continuar aqui.
Como não podia deixar de ser, David era o trunfo de Joe. Se não fosse por David, Joe jamais teria conseguido se livrar da ligação daquele jeito. Teria sido simplesmente impossível. E impossível sob todos os aspectos. Ele teria sido questionado, pressionado, espionado em cada turno de trabalho na oficina. Mesmo enquanto falava, tal pensamento passou pela mente de Joe. E ele foi invadido por uma onda de exultação pela própria esperteza. Isso mesmo, fora muito esperto e astucioso. Era um verdadeiro artista. E experimentava uma sensação maravilhosa por estar de pé ali, enganando Ada, rindo interiormente de todos eles.
- Quero que saiba que não guardo qualquer ressentimento, Sra. Sunley
- disse ele finalmente. - Diga a Jenny que a perdoo. E despeça-se dos outros por mim. Não posso encará-los neste momento. Estou transtornado demais.
Ada não queria deixá-lo partir. Na verdade, era ela quem parecia transtornada. Mas o que podia fazer com aquele homem injuriado? Joe deixava a casa como entrara: na melhor tradição e sem qualquer mácula em seu caráter.
Jenny chegou tarde em casa naquele dia. Era o período da Grande Venda de Verão da Slattery e por ser sexta-feira, o último dia de horário integral daquela semana detestável, o estabelecimento só fechou quando eram quase oito horas. Jenny chegou em casa 15 minutos depois das oito horas.
Ada estava sozinha em casa. com extraordinária energia, tratara de despachar Clarry e Phyllis para passearem lá fora, enquanto Alf e Sally iam ao Empire.
- Temos de conversar, Jenny.
Algo estranho transparecia na voz da mãe, mas Jenny estava cansada demais para se preocupar. Estava exausta e ainda por cima indisposta, o que agravava o seu estado, depois de um dia inteiro de muito trabalho.
- Aquela Slattery... - murmurou Jenny, arriando numa cadeira. Não aguento mais. Passei dez horas miseráveis sem conseguir sentar. E estou sentindo os pés inchados, ardendo. vou acabar com varizes se continuar assim por muito mais tempo. E cheguei a pensar que era um trabalho fácil... Que esperança! Está pior do que nunca e as mulheres que atendemos agora são cada vez mais vulgares!
- Joe foi embora - disse asperamente a Sra. Sunley.
- Foi embora? - repetiu Jenny, aturdida.
- Partiu esta manhã. Foi embora para sempre!
Jenny compreendeu. O rosto pálido ficou totalmente lívido. Parou de massagear os pés inchados, ainda metidos nas meias, empertigou-se bruscamente. Os olhos castanhos estavam fixados não na mãe, mas perdidos em algum ponto do espaço. Ela parecia assustada. Mas logo se recuperou.
- Sirva-me o chá, mãe - disse ela, num tom estranho. - E não fale mais nada. Apenas me sirva um chá e fique calada.
Ada respirou fundo e todas as censuras acumuladas morreram em sua garganta. Conhecia alguma coisa de sua Jenny. .. não tudo, mas o suficiente para saber que naquele momento devia fazer o que lhe era pedido. Assim, ela ficou calada e serviu o chá.
Lentamente, Jenny tomou o chá, enquanto comia requeijão, que fora guardado no forno para continuar quente, numa refeição que era na verdade o jantar. Ela continuou sentada muito ereta, ainda olhando fixamente para frente. Estava pensando.
Ao terminar, Jenny virou-se para a mãe.
- E agora escute, mãe, preste muita atenção. Sei que está pronta para começar a brigar comigo. Posso imaginar todas as palavras que estão prestes a saírem de sua boca. Tratei Joe muito mal e o resto todo. Sei tudo isso. Portanto, não precisa falar. Assim, não terá do que se arrepender mais tarde. E agora, se dá licença, vou me deitar.
Jenny deixou a mãe, completamente atordoada, e subiu a escada, exausta. Sentia-se incrivelmente cansada. Se ao menos pudesse tomar um porto, talvez dois, para se reanimar... Subitamente, ela sentiu que daria qualquer coisa por um copo de porto, a única coisa capaz de reanimá-la. No quarto, ela foi tirando as roupas, deixando algumas coisas numa cadeira, largando outras no chão, por toda parte, em qualquer lugar. Deitou-se na cama. Graças a Deus que Clarry, que partilhava o quarto, não estava ali para incomodá-la.
Na escuridão fria do quarto, Jenny ficou estendida de costas, ainda pensando... pensando... Não havia histeria desta vez, não havia um jorro de lágrimas, não havia pancadas frenéticas nos travesseiros. Jenny estava perfeitamente calma. Mas, apesar de toda a serenidade, estava também assustada.
Tinha de enfrentar o fato de que Joe a abandonara, um golpe terrível, um golpe quase que fatal para o seu orgulho, um golpe que a atingia psicologicamente no pior momento possível. Estava cansada da Slattery, não aguentava mais as longas horas a trabalhar de pé, não aguentava mais ser polida e atenciosa com as freguesas vulgares. Somente naquele dia é que os seis anos na Slattery haviam atingido um ponto insuportável para confrontá-la. E dissera firmemente a si mesma que tinha de largar o emprego. Estava cansada também de sua casa, não aguentava mais os cómodos atravancados e desleixados. Queria a sua própria casa, queria ter as suas próprias coisas. Queria conhecer outras pessoas, oferecer pequenos chás, frequentar a "sociedade". E se nunca pudesse realizar o seu desejo? E se tivesse de continuar na Slaterry e na Scottswood Road pelo resto de sua vida? Ali estava a causa vital do súbito alarme de Jenny. com Joe, ela perdera uma oportunidade. E agora perderia a outra?
Jenny empenhou-se em pensar objetivamente, antes de adormecer. Acordou revigorada na manhã seguinte. Sábado era o seu dia de meio-expediente. Quando chegou em casa, à uma hora da tarde, almoçou rapidamente e depois subiu para trocar de roupa. Passou muito tempo a se arrumar: escolheu o seu vestido mais elegante, um cinza-pérola com enfeites rosas, penteou os cabelos de maneira diferente, passou creme Vinólia na pele. O resultado deixou-a satisfeita. Desceu para a sala de visitas, a fim de esperar por David.
Ela o esperava às duas e meia, mas David chegou dez minutos antes, transbordando de ansiedade em vê-la. Um único olhar tranquilizou Jenny. Ele estava perdidamente apaixonado. Ela abriu-lhe a porta e David ficou parado, ainda no vestíbulo, consumindo-a com seus olhos ardentes.
- Jenny... - balbuciou ele. - Você está boa demais para ser verdade!
Jenny riu, satisfeita, enquanto o conduzia para a sala de visitas. Não podia deixar de admitir que David tinha um jeito de dizer as coisas muito superior à capacidade de Joe. Mas ele lhe trouxera o mais estúpido dos presentes. Não era um perfume ou mesmo bombons. Não era nada de útil. Eram apenas goivos amarelos, nem mesmo um ramo grande, apenas um pequeno buque, que não podia custar mais do que dois pence em qualquer barraca do mercado. Mas não tinha importância, não podia se preocupar com isso agora. Jenny sorriu.
- Não sabe como estou satisfeita em vê-lo, David... e adorei as flores!
- Não são grande coisa, Jenny, mas são bonitas... como você. As pétalas parecem possuir uma espécie de névoa... como a que existe em seus olhos.
Jenny não sabia o que dizer. Aquele tipo de conversa deixava-a completamente desorientada. Imaginava que tudo vinha dos livros que David lera nos últimos três anos... "poemas e coisas assim". Normalmente, ela teria se afastado com as flores, fazendo o comentário apropriado de uma dama:
- Adoro arrumar flores.
Naquela tarde, porém, Jenny não se afastou para cuidar das flores. Queria ficar perto de David. Ainda segurando as flores, ela sentou-se no sofá, muito afetada. David sentou-se ao lado dela, sorrindo pelo decoro de suas atitudes.
- Parece que vamos posar para uma fotografia.
- Como?
Jenny fitou-o com uma expressão aturdida, fazendo-o rir.
- Sabe, Jenny, jamais conheci alguém tão... ora, alguém tão inocente como você. Como Francesca... "e todo orvalho em seu coração fluía..." foi um homem chamado Stephen Phillips quem escreveu isso.
Os olhos de Jenny estavam recatadamente abaixados. O vestido cinza, o rosto pálido e as mãos imóveis, ainda segurando as flores, proporcionavam-lhe uma estranha aparência de freira. Ela permaneceu muito quieta depois que David falou, imaginando o que ele estaria querendo dizer com aquilo. Inocente? Será que ele... poderia estar zombando dela? Não, claro que não. Ele estava apaixonado demais para isso. Jenny finalmente disse.
- Espero que não esteja caçoando de mim. Não tenho me sentido muito bem nestes dois últimos dias.
- Oh, Jenny! - A preocupação de David foi instantânea. - O que você tem?
Ela suspirou, começou a mexer na haste de uma das flores.
- Todos estamos deprimidos por aqui... por causa do problema com Joe... Ele foi embora.
- Joe foi embora? Jenny assentiu:
- Mas por quê? Em nome de Deus, por quê?
Jenny ficou em silêncio por um minuto e depois disse, ainda mexendo pateticamente na flor:
- Ele estava com ciúme... Não quis mais continuar aqui. .. porque eu gosto mais de você do que dele!
- Mas, Jenny. .. - balbuciou David, confuso. - Joe disse... está querendo me dizer. .. que no final das contas Joe gostava realmente de você?
- Não vamos mais falar sobre isso - murmurou ela, com um pequeno sobressalto. - Não quero falar. Eles não param de falar a respeito, o tempo todo. Estão me culpando porque eu não podia suportar Joe...
Jenny fez uma pausa, levantando a cabeça bruscamente para fitar David nos olhos, antes de acrescentar:
- Não posso evitar, não é mesmo, David?
Diante da insinuação sutil nas palavras dela, o coração de David disparou, invadido pela maior exultação. Ela o preferia. Chamara-o de David. Contemplando-a nos olhos como naquela primeira noite em que haviam se conhecido, ele sentiu-se inteiramente perdido, sabendo apenas que a amava, querendo-a com todo o seu coração. Não havia mais ninguém no mundo além de Jenny. Nunca haveria mais ninguém além de Jenny. O simples pensamento, apenas o nome dela, Jenny, já era um encantamento, uma cotovia cantando, um botão desabrochando, beleza e suavidade, melodia e perfume. David desejou-a, com todo o ardor de sua alma jovem e ansiosa. Ele inclinou-se para Jenny, que não se afastou.
- Jenny... - murmurou David, acima do barulho de seu coração. Está querendo dizer que gosta de mim?
- Isso mesmo, David.
- Eu sabia desde o início que seria assim, Jenny. Você me ama? Ela assentiu nervosamente.
David tomou-a nos braços. Nada, em toda a sua vida, transcendera ao êxtase daquele beijo. Beijou-a de leve, quase reverentemente. Havia uma juventude trágica, uma denúncia total de sua inexperiência, na terna falta de jeito daquele abraço. Foi o beijo mais estranho que Jenny já conhecera. E alguma qualidade indefinida no beijo fez com que uma lágrima escorresse hesitante por seu rosto, depois outra e mais outra.
- Jenny... você está chorando! Não me ama? Oh, minha querida, diga-me o que está errado!
- Eu o amo, David - sussurrou ela. - Não tenho mais ninguém além de você. E quero que continue a me amar. Quero que me tire daqui. Odeio isto aqui. Odeio de verdade. Eles são horríveis para mim. E estou cansada de trabalhar na Slattery. Não vou aguentar mais um minuto sequer. Quero ficar com você, imediatamente. Quero casar com você e ser feliz... Oh, David, quero tanto!
A emoção na voz de Jenny comoveu-o muito além do êxtase.
- Eu a levarei daqui, Jenny. Assim que puder. Assim que tirar o meu diploma e arrumar um emprego.
Ela desatou a chorar.
- Oh, David, mas isso vai demorar outro ano inteiro! E você estará em Durnham, na universidade, longe de mim. Vai acabar me esquecendo. Eu não poderia esperar tanto tempo assim. Já não aguento mais este lugar. Não poderia arrumar um emprego agora?
Jenny chorava amargamente, mesmo sem saber direito por quê. David sentiu-se terrivelmente angustiado por vê-la chorar. Podia compreender que Jenny estava cansada e tensa, mas cada soluço dela era como uma ferida a arder-lhe.
Ele procurou consolá-la, afagando-lhe os cabelos, a cabeça de Jenny encostada em seu ombro.
- Não será tanto tempo assim, Jenny. E não precisa se preocupar, minha querida. Ora, eu poderia arrumar um emprego agora, se não houvesse outro jeito. Já estou qualificado para ser professor. Já tenho o diploma de Bacharel em Literatura, que se pode obter depois de dois anos em Baddeley. Mas não vale nada. .. ou pelo menos não vale tanto quanto o diploma de Bacharel em Artes. Mas acho que poderia me proporcionar um emprego agora, se fosse realmente indispensável.
- Poderia mesmo, David? - Os olhos marejados de lágrimas de Jenny estavam suplicantes. - Pois então tente, David! Como poderia conseguir?
David ainda estava lhe afagando os cabelos. Somente a loucura de seu amor fê-lo continuar.
- Posso escrever para um homem na minha terra que tem alguma influência. O nome dele é Barras. Ele pode me arrumar um posto em algum lugar do condado. Mas deve compreender...
- Oh, David, eu compreendo tudo! Posso entender exatamente o que está querendo dizer. Deve tirar o seu diploma de Bacharel em Artes. Mas por que não tirá-lo depois''. Oh, David, pense um pouco, você e eu juntos, numa casinha em algum lugar... Você estudaria de noite, os seus livros tão importantes em cima da mesa, enquanto eu ficaria sentada ao seu lado. Não é tão árduo assim dar aulas durante o dia. E poderia estudar à noite. Oh, David, seria tão maravilhoso!
A imagem descrita tão romanticamente por Jenny levou David a uma ternura sorridente. Ele contemplou-a com um instinto protetor.
- Mas tem de compreender, Jenny, que devemos ser práticos... Ela sorriu, através das lágrimas.
- David, David... não diga mais nada. Eu me sinto tão feliz que não quero que estrague tudo.
Jenny levantou-se abruptamente.
- E agora escute! Vamos sair para um passeio maravilhoso, Iremos a Esmond Dene, um lugar adorável, que eu tanto amo, com todas aquelas árvores e aquele lindo moinho velho! E vamos conversar sobre tudo, sem esquecer nada. Afinal, não haveria mal algum em escrever para esse cavalheiro, Mr. Barras...
Jenny parou de falar de repente, fascinando-o com seus olhos deslumbrantes, que pareciam derreter-se com as lágrimas reprimidas. Ela beijou-o rapidamente e depois saiu correndo para se aprontar.
David ficou de pé, sorrindo, animado, extasiado, talvez um pouco perplexo. Mas nada tinha importância além do fato de que Jenny o amava. Ela o amava! E ele a amava. David transbordava de ternura, sentia uma esperança ardente pelo futuro. Jenny esperaria, claro que ela esperaria... ele tinha apenas 22 anos... tinha de tirar o seu diploma de Bacharel em Artes, como ela compreenderia.
Enquanto David esperava por Jenny, a porta abriu-se de repente e Sally entrou na sala. Ela estacou abruptamente ao vê-lo.
- Não sabia que estava aqui - disse ela, franzindo o rosto. - Só vim tocar um pouco de música.
A expressão contrariada de Sally era como uma nuvem a desfilar pelo céu claro da felicidade de David. Ela sempre o tratara de maneira estranha, brusca, cáustica, deliberadamente antipática. Parecia ter algum ressentimento contra ele, um instinto para atormentá-lo. Subitamente, David sentiu vontade de manter boas relações com Sally, agora que se sentia tão feliz, agora que ia casar com a irmã dela. E, num súbito impulso, ele disse:
- Por que me olha assim, Sally? É porque não gosta de mim?
Ela fitou-o firmemente. Usava um velho uniforme azul, relíquia dos tempos de escola. Os cabelos estavam completamente desgrenhados.
- Não tenho qualquer antipatia por você - disse ela, sem nada de sua irreverência precoce habitual.
David compreendeu que ela estava dizendo a verdade. E sorriu.
- Mas você... você sempre me trata azedamente. Sally respondeu com uma solenidade inesperada:
- Sabe onde encontrar o açúcar, se quiser.
E baixando os olhos, Sally virou-se rapidamente e saiu da sala. Um instante depois que ela passou pela porta, Jenny entrou, esfuziante.
- O que aquela gata estava lhe dizendo? - Sem esperar por uma resposta, Jenny pegou-lhe o braço com um ar de proprietária e deu um apertão. Vamos embora, querido. Não pode imaginar como estou ansiosa por nossa conversa. Vai ser tão maravilhosa...
Jenny estava agora exuberante, saltitante como um passarinho. E por que não? Não tinha todos os motivos para sentir-se satisfeita, tendo agora um noivo, não apenas um namorado, mas um noivo de verdade, um noivo que estava qualificado a ser professor? Oh, como era maravilhoso ter um noivo que era professor! Ela deixaria a Slattery imediatamente, deixaria também a Scottswood Road. Mostraria a todos, mostraria também a Joe. Teria um casamento na igreja, para escarnecer de todos, com uma notícia no jornal.
Sempre desejara um casamento na igreja. Teria de pensar agora no que usaria. Seria algo simples, mas bonito... muito bonito mesmo...
Ao voltar do passeio, David escreveu para Barras, "apenas para agradar" a Jenny. Recebeu a resposta uma semana depois, com a oferta de um emprego como professor júnior na Escola do Conselho na New Bethel Street, em Sleescale. Mostrou a carta a Jenny, dividido entre a razão e o êxtase de seu amor por ela, pensando nos pais, na carreira, procurando imaginar o que ela diria. Jenny enlaçou-o pelo pescoço, soluçando.
-Oh, David, querido! Não é maravilhoso, maravilhoso demais para se expressar com palavras? Não está satisfeito que eu o tenha feito escrever? Não é simplesmente maravilhoso?
Comprimido contra ela, os olhos fechados, os lábios nos dela, David sentiu, num inebriamento total, que Jenny estava certa. Era realmente maravilhoso.
XVI
Naquela manhã", mesmo antes de chegar o telegrama para o pai, Arthur estava consciente de uma exultação singular. Foi assim que acordou, consciente desde o instante em que abriu os olhos, deparando com o quadrado de céu azul pela janela aberta e pensando que a vida era extremamente preciosa... repleta de sol, vigor e esperança. É claro que nem sempre ele acordava assim. Havia manhãs em que o sol não brilhava, nada o aguardava além da tristeza, uma espécie de escuridão estagnada, o senso desolador de suas próprias deficiências.
Por que ele estava tão feliz? Era inexplicável, assim como os seus momentos de depressão. Talvez fosse a premonição do telegrama da manhã. Ou talvez a perspectiva de se encontrar com Hetty à tarde. Mas provavelmente era o alegre reconhecimento da própria melhoria. Pois deitado na cama, as mãos cruzadas atrás da cabeça, o corpo comprimido de 18 anos voluptuosamente relaxado, seu primeiro pensamento fora: "Não comi os morangos."
É claro que os morangos, embora muito os apreciasse, nada representavam por si mesmos. Mas constituíam um símbolo, um sinal de sua própria força. Meio sorrindo, Arthur reconstituiu a cena. À mesa, na noite anterior, Tia Caroline, a cabeça inclinada para o lado, como sempre, servindo os saborosos morangos... um luxo raro na mesa austera de Barras. E o creme também. Arthur quase esquecera a tigela de prata cheia de creme amarelado. Não havia nada que ele gostasse tanto quanto de morangos com creme.
- E agora é a sua vez, Arthur - ele ouviu Tia Caroline dizer, preparando-se para servi-lo generosamente.
Foi quando ele declarou prontamente:
- Não, obrigado, Tia Carrie. Não quero morangos esta noite.
- Mas, Arthur...
Havia surpresa e até mesmo consternação na voz de Tia Carrie. Os olhos arredios do pai fixaram-se nele por um instante. Tia Carrie insistiu:
- Não está se sentindo bem, Arthur, meu querido? E ele próprio, rindo:
- Estou me sentindo perfeitamente bem, Tia Carrie. Apenas não estou com vontade de comer morangos esta noite.
E ele continuara sentado à mesa, com água na boca, observando-os comer os morangos.
Era assim que se devia fazer. Podia ser uma coisa pequena, mas o livro dizia que outras maiores se seguiriam. Isso mesmo, ele estava satisfeito naquela manhã.
- Eu gostaria que Arthur demonstrasse mais caráter.
O comentário impertinente da mãe, ouvido quando ele passava pelo corredor, diante do quarto dela e gravado no centro de sua mente por todos aqueles meses, estava agora se desvanecendo, devidamente respondido por seu comportamento em relação aos morangos!
Arthur pulou da cama... era um erro ficar sonhando acordado na cama... executou os seus exercícios vigorosamente, diante da janela aberta, depois correu para o banheiro e tomou um banho frio... um banho frio de verdade, diga-se de passagem, não apenas alguns respingos, nem mesmo uma ligeira abertura da torneira de água quente, para quebrar um pouco o jato gelado. Ele voltou ao quarto, radiante, vestiu a roupa de trabalho, os olhos fixados religiosamente no cartaz pendurado na parede em frente à cama. O cartaz dizia, em letras grandes: Eu posso! Por baixo, havia outra inscrição: Encare cada homem nos olhos
Arthur terminou de amarrar as botinas, as botinas mais grossas, pois desceria pela mina naquele dia. Estava pronto. Foi abrir uma gaveta, tirou um livro vermelho pequeno: A Cura da Inibição. Pertencia a uma série intitulada A Vontade e o Poder. Ele sentou-se na beira da cama, muito compenetrado, preparando-se para ler. Sempre lia um capítulo antes do desjejum, quando a mente era mais receptiva, conforme afirmava o livro. Preferia ler no quarto, pois lhe garantia a intimidade, já que aqueles pequenos livros vermelhos eram um segredo, zelosamente guardado.
Além dos limites de sua concentração, podia ouvir os movimentos da casa: os passos lentos de Tia Carrie no quarto da mãe dele, o riso e a corrida de Grace para o banheiro, o baque soturno de Hilda ao deixar relutantemente a cama para enfrentar o dia. O pai dele se levantara uma hora antes. Acordar cedo era parte da rotina do pai, inevitável por algum motivo, jamais questionado, sempre esperado.
Arthur fez uma breve pausa na leitura: A vontade humana é capaz de controlar não apenas o destino de um homem, mas também os destinos de muitos homens. Essa faculdade da mente, que determina fazer ou deixar de fazer, que nos permite escolher, entre dois cursos, qual o que devemos seguir, pode afetar não apenas as nossas próprias vidas, mas também as vidas de muitos outros.
Como isso era verdadeiro! Mesmo que apenas por essa única razão, devia-se cultivar a vontade... não pelos efeitos sobre si mesmo, mas pelas consequências mais amplas e profundas sobre os outros. Arthur queria ser forte, ter controle, determinação, o domínio de si mesmo. Conhecia os próprios defeitos, a timidez natural, as inibições, a propensão para se refugiar em sua própria reserva. Mas o defeito principal, acima de todos os outros, era a sua tendência incorrigível para sonhar.
Como todas as naturezas sensíveis e gentis, ele sentia-se tentado a escapar da dura realidade da vida pelo portão da imaginação. Como eram maravilhosos os seus sonhos! Como se via frequentemente a realizar algum ato sensacional de heroísmo na Neptune... ou então era uma criancinha que ele salvava de morrer afogada ou tirava no último instante do caminho de um trem expresso, afastando-se discretamente sem revelar seu nome, apenas para ser descoberto mais tarde e carregado em triunfo por uma multidão delirante. .. ou era algum brutamontes em quem dava uma surra por atormentar uma mulher... ou então se via de pé num palanque, fascinando uma audiência com a sua oratória... ou em alguma mesa de jantar elegante, acompanhado por Hetty Todd, encantando-a e aos demais pela maneira fácil e brilhante com que discorria sobre todos os assuntos... Não havia limite para a maravilha deslumbrante dos sonhos. Mas Arthur podia compreender o perigo e por isso mesmo tratara de reprimi-los. Seria forte agora, excepcionalmente forte. Estava com quase 19 anos, dentro de um ano terminaria o curso de engenharia mineira. A vida tinha... Era isso mesmo, a vida tinha realmente começado e era necessário ter coragem para enfrentá-la. Coragem e determinação. Eu posso, pensou Arthur, firmemente, fechando o livro e olhando fervorosamente para o cartaz na parede. Fechou os olhos com força e repetiu a frase interiormente por várias vezes, gravando as palavras em sua alma. Eu posso, eu posso, eu posso... Depois, ele desceu para comer o desjejum.
O pai, que preferia fazer a primeira refeição meia hora antes dos outros, já estava quase acabando. Tomava uma última xícara de café, com uma expressão pensativa, o jornal sobre os joelhos. Acenou com a cabeça, sem'dizer nada, em resposta ao bom-dia de Arthur. Não havia nada de autoritário naquele aceno, não havia a brusquidão enregelante que às vezes atingia Arthur até os ossos. O aceno naquela manhã exibia uma tranquilidade indulgente. Caiu sobre Arthur como uma carícia. Reforçava e admitia a sua devoção, reconhecia-o como um indivíduo. Ele sorriu de felicidade, começou a descascar muito concentrado a parte superior de seu ovo, consciente do olhar do pai.
- Tenho a impressão, Arthur - disse Barras subitamente, como se tomasse a decisão abrupta de falar - de que podemos ter notícias interessantes hoje.
- É mesmo, pai?
- Temos a perspectiva de um contrato.
- É mesmo, pai?
Arthur levantou os olhos, corando. O fato do pai ter falado no plural era algo sensacional, incluía-o, tornava-o unido ao pai, acrescentando-o já como um sócio na mina.
- E posso acrescentar que será um contrato de primeira linha, com a P. W. & Company.
- Isso é ótimo, pai.
- Está satisfeito? - perguntou Barras, com um tom satírico jovial.
- Claro, pai.
Barras tornou a acenar com a cabeça.
- Eles estão querendo o nosso carvão de coque. Já estava pensando que nunca mais voltaríamos a trabalhar naquele veio. Mas se pagarem o nosso preço, começaremos a trabalhar na próxima semana. Vamos preparar tudo em Scupper Flats.
- Quando saberemos, pai?
- Esta manhã.
E como se a pergunta direta de Arthur o deixasse subitamente ressentido com sua inflexibilidade anterior, Barras levantou o jornal e acrescentou, por trás dele, em tom autoritário:
- Esteja pronto às nove horas em ponto, por favor. Não quero ficar esperando.
Arthur voltou a concentrar-se no ovo, gratificado pela informação que recebera. Mas, de repente, um pensamento perturbou-o. Lembrava-se de alguma coisa... alguma coisa inquietante. Scupper Flats! Ele tornou a levantar os olhos, rapidamente, na direção do pai, protegido pelo jornal. Queria perguntar... desejava desesperadamente formular uma pergunta. Deveria... poderia... ou seria melhor não falar nada? Enquanto ele vacilava, Tia Carrie entrou na sala, acompanhada por Grace e Hilda. Tia Carrie exibia a sua expressão jovial habitual, que afixava todas as manhãs, regularmente, naturalmente, da mesma forma como afixava os dentes postiços.
- Sua mãe passou uma noite esplêndida.
Ela falou para Arthur, alegremente. Embora a informação fosse para Richard, Carrie sabia que era melhor não lhe falar diretamente. Todos os métodos de Tia Carrie eram indiretos, visando a resguardar sua própria paz e a paz geral.
Arthur passou-lhe as torradas sem ouvir uma só palavra. Sua mente estava concentrada inteiramente no pensamento inquietante... Scupper Flats. Não se sentia tão feliz agora, começava a ficar preocupado e transtornado. Mantinha os olhos fixados no prato. Enquanto remoía o pensamento, o esplendor da manhã foi lentamente se desvanecendo. Tinha vontade de chorar de tanta aflição. Por que devia ser sempre assim, aquela mudança abrupta da alegria extasiada para a angústia e a consternação?
Ele olhou para Grace com alguma inveja, observando-a servir-se de marmelada, com a maior alegria, na maior felicidade. Grace era sempre igual. Aos 16 anos, possuía a mesma doçura e a mesma inconsciência feliz dos tempos de que Arthur se recordava tão nitidamente, quando os dois viviam caindo do lombo de Boxer. E no dia anterior ele a vira subir a avenida com Dan Teasdale, comendo uma imensa maçã vermelha, numa alegre camaradagem. Grace, que ia para a escola de aperfeiçoamento em Harrogate no mês seguinte, tinha a coragem de sair pela cidade a comer maçãs em plena luz do dia e ainda por cima em companhia de Dan Teasdale, o filho do padeiro! Não podia haver a menor dúvida de que fora ele quem dera a maçã a Grace, pois estava comendo outra igual. Se Tia Carrie tivesse visto a cena, certamente haveria uma briga.
Foi nesse momento que os olhos de Grace fixaram-se nos dele, antes que Arthur tivesse tempo de desviar-se. Ela sorriu-lhe e silenciosamente articulou uma única palavra. Pelo menos os lábios dela assumiram o jeito de quem dizia a palavra, soprando-a através da mesa, em sua direção. Arthur sabia perfeitamente qual era a palavra. Grace, ainda lhe sorrindo jovialmente, estava dizendo "Hetty!" Sempre que o surpreendia num momento de introspecção, Grace deduzia que ele estava sonhando com Hetty Todd.
Arthur sacudiu a cabeça vagamente... uma reação que pareceu causar a maior diversão a Grace. Os olhos dela brilhavam, toda ela estava borbulhando de alegria interior. Mas como a boca estava cheia de torrada e marmelada, o resultado foi calamitoso. Grace engasgou de repente, tossiu, o rosto ficou vermelho.
- Puxa! - balbuciou ela finalmente. - Alguma coisa entrou pelo caminho errado.
Hilda franziu o rosto.
- Tome então um pouco de café. E depressa. Aproveite para deixar de bancar a pamonha.
Grace tomou o café, obedientemente. Hilda observava-a, empertigada e severa, a expressão contrafeita perdurando, fazendo com que seu rosto parecesse ainda mais áspero.
- Acho que você nunca vai aprender a se comportar - acrescentou Hilda, firmemente.
O comentário era como um cascudo. Ou pelo menos seria assim que Arthur o teria sentido. E, no entanto, ele sabia que Hilda adorava Grace. Curióso...
Isso mesmo, era-lhe sempre curioso aquele amor de Hilda por Grace. Era de certa forma violento, ao mesmo tempo contido; como uma carícia unida a um golpe; vigilante; ao mesmo tempo latente e possessivo; constituído de raiva súbita e ternura que rapidamente se desvanecia. Hilda queria Grace sempre ao seu lado, Hilda daria tudo para ser amada por Grace. Contudo, pensava Arthur, Hilda desdenhava abertamente qualquer demonstração de afeição que poderia atrair Grace, que poderia mesmo despertar o amor de Grace.
com uma brusca impaciência, ele desviou-se desse problema... o que era outro defeito que devia corrigir, a tendência para divagar de sua mente inquisitiva. Já não tinha o suficiente com que se ocupar depois da conversa com o pai? Ele terminou de tomar o café, enrolou o guardanapo e o ajeitou na argola de osso. Continuou sentado, esperando que o pai levantasse. A caminho da mina, ele perguntaria... ou não seria melhor indagar quando estivesse voltando para casa?
Barras finalmente terminou a leitura do jornal. Não o largou ao seu lado. Em vez disso, dobrou-o cuidadosamente, com as mãos brancas, impecavelmente cuidadas. Os dedos alisaram meticulosamente o jornal. Entregou-o em seguida a Tia Carrie, sem dizer uma só palavra.
Hilda sempre pegava o jornal no momento em que Barras saía e ele sabia disso. Mas ele preferia um tanto altivamente ignorar essa impertinência.
Ele saiu da sala, seguido por Arthur. Cinco minutos depois, os dois estavam na charrete, seguindo para a mina. Arthur fez um tremendo esforço para falar. As palavras chegaram à ponta de sua língua uma dúzia de vezes, de uma dúzia de maneiras diferentes. "Por falar nisso, pai", diria ele. Ou simplesmente: "Pai, você acha..." Ou talvez: "Ocorreu-me subitamente, pai..." fosse uma abertura mais propícia. Todas as combinações se apresentavam à sua escolha. Arthur imaginou-se a falar, ouviu a própria voz a pronunciar as palavras. Mas não disse nada. Era uma agonia. E de repente, para seu infinito alívio, Barras se manifestou calmamente, indo direto ao próprio cerne de sua angústia:
- Tivemos um pequeno problema em Scupper Flats, há alguns anos. Está lembrado?
- Estou, sim, pai.
Arthur lançou um olhar rápido para o pai, sentado ao seu lado, sereno e empertigado.
- Uma coisa terrível! Eu não queria. Quem pode querer uma encrenca? Mas o problema foi jogado em meu colo. E me custou muito caro.
Barras encerrou o assunto, devolvendo-o aos arquivos do passado e arrematando com uma moral:
- A vida às vezes é muito difícil, Arthur. É necessário preservar uma posição, diante das circunstâncias. - Depois de um momento, ele acrescentou:
- Mas desta vez não teremos qualquer problema.
- Acha que não, pai?
- Tenho certeza. Os homens tiveram uma lição na última vez e agora não vão querer repetir o erro. - A voz era comedida, racional, o argumento apresentado objetivamente. - Não resta a menor dúvida de que um trecho da Scupper vai apresentar água. Mas isso também acontece com a Mixen e toda a Paradise. Os homens estão acostumados a tais condições. Perfeitamente Acostumados.
Enquanto o pai falava, dizendo tão pouco, mas transmitindo tanto, Arthur foi invadido por uma onda imensa de conforto, apagando todas as ansiedades e temores nebulosos que o haviam atormentado pela última hora. Desapareceram como castelos de areia, levados pela maré cheia, sem deixar qualquer vestígio. A gratidão envolveu-o. Amava o pai pela serenidade dele, a calma, a força inabalável. Arthur ficou em silêncio, intensamente consciente da presença do pai ao lado. Estava agora tranquilo. A exuberância da manhã fora restaurada.
Desceram pela Cowpen Street a uma boa velocidade, entraram no pátio da mina, foram direto para o escritório. Armstrong lá estava, obviamente esperando; de pé junto à janela, batendo com o polegar no vidro. Ele virou-se quando Barras entrou.
- Chegou um telegrama, Mr. Barras. - E um momento depois, mostrando que conhecia o significado do telegrama, ele acrescentou: - Achei que deveria esperar.
Barras pegou o envelope alaranjado na mesa e abriu-o, sem a menor pressa.
- Está resolvido - anunciou ele, calmamente. - Eles aceitaram nosso preço.
- Quer dizer que começamos a trabalhar na Flats na segunda-feira? perguntou Armstrong.
Barras assentiu.
Armstrong passou as costas da mão pelos lábios, num gesto estranho de constrangimento. Sem qualquer motivo aparente, ele assumiu uma expressão embaraçada. O telefone tocou de repente. Quase com alívio, Armstrong aproximou-se da mesa e atendeu.
- Alo? Alo? - Ele escutou por um momento, depois olhou para Barras.
- É Mr. Todd, de Tynecastle. Já ligou duas vezes esta manhã.
Barras pegou o fone.
- Richard Barras falando... Isso mesmo, Todd. Estou contente que o problema esteja resolvido.
Ele parou de falar, escutando por um instante, depois acrescentou, em tom alterado :
- Não seja absurdo, Todd. Claro que sim. O quê? Eu disse claro que sim!
Outra pausa, enquanto a testa de Barras se franzia, na expressão impaciente familiar.
- Estou lhe dizendo que sim. - A voz estava um pouco áspera. - Mas que absurdo! Acho que sim. Pelo telefone não dá. O quê? Não vejo a menor necessidade. Estarei em Tynecastle esta tarde. Onde? Em sua casa? O que foi? Indigestão? Essa não...
A ênfase sarcástica na voz de Barras tornou-se mais acentuada. Seus olhos, vasculhando o escritório, irritados, fixaram-se em Arthur subitamente, nele permanecendo, sugestivos, desdenhosos.
- ...seu fígado outra vez? Mas que pena! Alguma coisa não combinou com você. Já que você está indisposto, acho que é melhor eu ir procurá-lo. Mas me recuso a levá-lo a sério. Isso mesmo, recuso-me terminantemente. Levarei Arthur comigo. Diga a Hetty para esperá-lo.
Ele desligou abruptamente, ficou imóvel por alguns segundos, o sorriso desdenhoso ainda lhe contraindo os lábios. E depois comentou para Arthur:
- Acho que é melhor visitarmos Todd esta tarde. Ele parece ter sido imprudente novamente... em sua dieta. Nunca o ouvi antes tão desanimado.
Barras exibiu o sorriso brusco que lhe servia como risada e virou-se para sair. Armstrong, com um eco subserviente do divertimento do patrão, abriu prontamente a porta do escritório. Os dois homens seguiram juntos para o pátio da mina.
Arthur continuou no escritório, com seus pensamentos contraditórios e um tanto curiosos. Claro que ele sabia que a imprudência de Todd era a bebida, não em acessos violentos de embriaguez, mas com uma devoção serena, melancólica e persistente à garrafa, que periodicamente o deixava de cama. Embora as crises não fossem sérias e de um modo geral todos as aceitassem como inevitáveis e inócuas, Arthur sempre se sentia angustiado ao tomar conhecimento. Ele gostava de Adam Todd, sentia pena dele, como uma figura patética e derrotada. Sentia que Todd, na juventude, conhecera os ardores intensos, os medos e esperanças que afligem as almas sensíveis. Era impossível imaginar que Todd, soturno e macambúzio, os dedos manchados de nicotina e encharcado de álcool, pudesse ter sido outrora ansioso e suscetível às promessas da vida, que seus olhos apáticos já tivessem sido brilhantes e animados. Mas assim fora. Na juventude, quando fizera o seu período de aprendizado junto com Richard Barras, em Tynecastle Main, Todd fora vigoroso e animado, cheio de entusiasmo pela carreira que escolhera. Mas os anos acabaram por massacrá-lo. Perdeu a mulher de parto. Um julgamento importante da North Hetton, em que fora contratado como testemunha técnica, foi-lhe desfavorável. Sua reputação sofreu, seu interesse arrefeceu, passou a desconfiar de suas próprias decisões, seu trabalho começou a declinar. Os filhos começaram a afastar-se dele. Laura, a predileta, estava agora casada. Alan parecia mais interessado em divertir-se do que na recuperação da firma. Hetty estava absorvida em seus próprios problemas. Gradativamente, Todd fora se retraindo, deixara de visitar os amigos, limitando-se a frequentar o Country Club, onde podia ser encontrado das oito às 11 horas em quase todas as noites, na sua poltrona habitual, bebendo em silêncio, fumando escutando, fazendo algum comentário ocasional, com o ar ligeiramente apático de um homem que finalmente aceitara a desilusão.
Enquanto cuidava de seu trabalho naquela manhã, Arthur não conseguiu tirar da cabeça o pensamento do velho Todd. Às três horas da tarde, quando acompanhou a pai e Tynecastle e subiu a College Row, na direção da casa de Todd, experimentou um senso estranho e inexplicável de expectativa, como se algum acorde vibrasse entre a sua própria personalidade ansiosa e a personalidade rabugenta de Adam Todd, Não podia compreender o sentimento, era algo novo e desconcertante.
Barras tocou a campainha e a porta foi aberta quase que imediatamente. O próprio Todd recebeu-os, o que era típico dele, jamais se preocupando com as formalidades. Usava um velho chambre castanho e chinelas.
- Não está de cama - comentou Barras, lançando um olhar sugestivo para Todd.
- Estou bem. - Todd empurrou para cima os óculos de aros de ouro, que sempre ficavam equilibrados na beira do nariz de veias saltadas. Os óculos imediatamente tornaram a deslizar. - É apenas um resfriado. Estarei inteiramente recuperado dentro de dois dias.
- Não tenho a menor dúvida quanto a isso - concordou Barras, suavemente.
Barras achava a maior graça de Todd sempre atribuir os seus ataques biliosos a resfriados, embora não o deixasse transparecer. Barras exibia também um ar afável de condescendência com o seu velho amigo. Também tinha uma aura de imensa prosperidade e sucesso, em contraste com o homenzinho no chambre manchado, no vestíbulo estreito e desolado, com o papel de parede marrom, a estante de guarda-chuva e o barómetro de carvalho transmitindo uma tristeza paciente e resignada.
- Eu precisava mesmo falar com você, Richard.
Todd ficou olhando para as chinelas, com uma evidente hesitação.
- Foi o que imaginei.
- Não se importou de eu lhe telefonar esta manhã?
- Por que deveria me importar, meu caro Todd?
A condescendência de Richard foi se tornando mais expansiva. Na mesma proporção, a hesitação de Todd aumentou.
- Achei que devia lhe falar.
Era quase um pedido de desculpas.
- Agiu bem.
- bom... - Todd fez uma pausa. - É melhor irmos para a sala dos fundos. Tenho um bom fogo aceso lá. Sinto-me enregelado. Talvez seja porque estou com o sangue ralo.
Ele fez outra pausa, preocupado, os olhos se desviaram para Arthur, um sorriso indefinido se insinuando no rosto.
- Talvez você queira subir para falar com Hetty, Arthur. Laura veio de Yarrow esta tarde. As duas estão na sala de estar lá de cima.
Arthur ficou imediatamente ruborizado. A conversa deixara-o excitado. Todd tinha algo excepcional a conversar com seu pai. Como um jovem amadurecido, esperara ser incluído na conversa. Mas descobria-se agora descartado, despachado ignominiosamente para fazer companhia às mulheres. Arthur sentia-se totalmente humilhado. Tentou disfarçar, fingindo que não se importava.
- Boa ideia - disse ele jovialmente, forçando um sorriso. Todd acenou com a cabeça.
- Já conhece o caminho, meu rapaz.
Barras concentrou o seu olhar de indulgência crítica em Arthur.
- Não vou demorar - disse ele, em tom de indiferença - pois precisamos pegar o trem das cinco e dez para voltarmos.
E Barras seguiu Todd para a sala dos fundos. Arthur ficou parado no vestíbulo por mais um momento, o rosto ainda contraído do sorriso forçado. Sentia-se horrivelmente menosprezado. Era sempre a mesma coisa. Bastava uma palavra, uma simples inflexão da voz, para que se sentisse prontamente ofendido, facilmente humilhado. Foi dominado por uma espécie de tormento diante de seu temperamento sensível demais, ao mesmo tempo em que experimentava uma curiosidade indignada quanto ao problema que Todd tinha a tratar com seu pai. Será que Todd estava querendo pedir dinheiro emprestado? O que mais poderia ser? Por que Todd estava tão ansioso, enquanto seu pai se mostrava tão desdenhoso e autoritário? Uma onda impetuosa de exasperação invadia Arthur quando ele levantou subitamente a cabeça e viu Hetty descendo a escada.
- Arthur! - gritou Hetty, acelerando os passos. - Tive a impressão de tê-lo ouvido. Por que não me chamou?
Ela se aproximou e estendeu-lhe a mão. Imediatamente, com uma prontidão quase mágica, o ânimo de Arthur se alterou. Contemplou-a altivamente, esquecendo o pai e Todd, no desejo irresistível de impressioná-la. De repente, tudo o que queria era brilhar diante de Hetty. E o que era melhor, sentia-se perfeitamente capaz de fazê-lo. Não que a sua natureza fosse assim, mas era tudo uma reação da censura anterior.
- Olá, Hetty - disse ele, animadamente. Depois, observando que ela estava vestida para sair, acrescentou: - Ei, você está de saída?
Hetty sorriu, sem qualquer vestígio de timidez, um problema que nunca a afetava.
- vou acompanhar Laura por uma parte do caminho. Ela está de partida. - Fazendo uma pausa, Hetty assumiu uma expressão brejeira. -Passei a tarde inteira fazendo sala à minha irmã casada rica. Mas voltarei correndo para lhe servir um chá no instante mesmo em que me livrar dela.
- Vamos tomar o chá no Dilley - sugeriu Arthur, num súbito impulso. Hetty cruzou as mãos num gesto de alegria, diante do convite inesperado.
- Oh, Arthur, será maravilhoso!
Ele observou-a atentamente, pensando como ela estava linda desde que passara a usar os cabelos penteados para cima. Agora, aos 18 anos, Hetty estava mais bonita do que nunca. Embora as suas feições não fossem bonitas, embora não devesse ser considerada bonita, a verdade era que Hetty era bonita. Tinha pulsos finos e mãos pequenas. Possuía olhos grandes, esverdeados, um nariz insignificante, a pele pálida. Mas os cabelos eram macios e louros e ela usava-os atraentemente afofados, por cima da testa estreita. Os olhos sempre exibiam um brilho úmido e ocasionalmente as pupilas estavam dilatadas e pretas, constrastando sedutoramente com os cabelos louros. Era esse o segredo de Hetty. Ela não era bonita, mas era atraente, tranquila, animada, provocante e sedutora, como uma gatinha insinuante. Ela estava agora sorrindo sedutoramente para Arthur e disse, no jeito de falar ingénuo de uma criança a que às vezes recorria:
- O bom Arthur vai levar Hetty ao Dilley. Hetty gosta de ir ao Dilley.
- Está querendo dizer que gosta de ir comigo? - perguntou Arthur, com a mesma confiança artificial.
- Isso mesmo! Arthur e Hetty vão se divertir no Dilley. Muito mais do que aqui.
Inconscientemente, Hetty sublinhou a última palavra. Não se importava muito com os antecedentes de sua casa. Para Hetty, era apenas uma casa velha, em College Row, 15, com uma atmosfera antiquada que a irritava particularmente, fazendo com que tentasse pressionar o pai a mudar-se para uma residência mais elegante.
- Não é daqueles éclairs de café que você gosta? - insistiu Arthur, empenhando-se em conseguir mais bálsamo para atenuar a ardência de seu orgulho ferido. - Ou é de mim?
- Arthur vai mesmo comprar um lindo éclair de café para Hetty? Hetty adora éclairs de café.
Uma tosse de advertência fez os dois se virarem. Laura estava parada no vestíbulo, ao lado deles, pondo as luvas, com uma concentração por demais óbvia. No mesmo instante, a expressão infantil desvaneceu-se do rosto de Hetty. E ela disse, um tanto asperamente:
- Mas que susto nos deu, Laura! Devia deixar as pessoas ouvirem você se aproximar.
- Eu tossi - respondeu Laura, secamente. - E já estava prestes a espirrar.
- Muito engraçado! - exclamou Hetty, lançando um olhar furioso para a irmã.
Laura continuou a pôr as luvas, olhando de um para outro ironicamente. Estava elegantemente vestida, embora discretamente, num costume azulmarinho. Arthur quase não a vira desde que ela casara com Stanley Millington. Por alguma razão, obscura, ele nunca se sentia muito à vontade na presença de Laura. Podia compreender Hetty, que era sempre meiga, evidentemente inocente. Mas Laura invariavelmente deixava-o desnorteado. Sentia-se estranhamente perturbado com a reserva constante de Laura, a sua frieza emocional, a impressão de alguma qualidade cuidadosamente oculta, um ar quase vigilante, por trás do rosto pálido e irónico.
- Vamos indo - disse Hetty, impacientemente. A placidez de Laura, o seu ar quase indiferente, irritou-a ainda mais. - Não quero ficar parada aqui o dia inteiro. Arthur vai me levar ao Dilley.
Um sorriso insinuou-se nos lábios de Laura. Ela não disse nada. Ao passarem pela porta e saírem para a rua, Arthur tratou de puxar conversa, apressadamente :
- Como está Stanley?
- Está muito bem - respondeu Laura, jovialmente. - Creio que está jogando golfe esta tarde.
Continuaram a conversar sobre banalidades, até chegarem à esquina da Garinger Street, onde Laura se despediu afavelmente e partiu para o encontro marcado com Bonar, sua costureira.
- Ela é louca por roupas - comentou Hetty, com uma risada abrupta, no instante em que Laura se afastou. Ela pousou os dedos de leve no braço de Arthur, enquanto se encaminhavam para o Dilley. - Se ela não fosse tão esbanjadora, poderia ser um pouco mais decente comigo.
- Como assim, Hetty?
- Ela só me dá cinco libras por mês, para gastar com roupas, pequenas despesas e tudo mais.
Arthur fitou-a com uma expressão aturdida.
- Laura lhe dá mesmo uma mesada, Hetty? Mas é muita generosidade dela!
- Fico contente que pense assim. - Hetty parecia contrariada, quase arrependida de ter falado. - Seja como for, ela pode muito bem se dar a esse luxo. Fez um bom casamento, não é mesmo?
Houve uma pausa.
- Jamais consegui entender Laura muito bem - comentou Arthur finalmente, perplexo.
- O que não me surpreende. - Hetty soltou outra risada inocente. Eu bem que poderia lhe contar algumas coisinhas a respeito dela. Mas é claro que não vou fazê-lo, por nada neste mundo.
Ela tratou de descartar o assunto, com um pequeno sobressalto virtuoso, antes de arrematar:
- A verdade é que me sinto muito feliz por não ser como ela. Mas não vamos mais falar sobre isso.
Eles entraram no Dilley. Reagindo ao clima de alegria que ali reinava, Hetty prontamente mudou seu ânimo, passando-o para uma vivacidade serena. Eram quatro e meia e o lugar estava apinhado, pois o Dilley era considerado o ponto mais elegante para se tomar chá em Tynecastle. O Recanto da Elite!... era esse o alarde orgulhoso do anúncio publicado no Courier. Uma orquestra estava tocando por trás de algumas palmeiras, o ruído agradável de vozes a conversarem descontraidamente envolveu-os quando entraram na sala Mikado, ao estilo japonês. Sentaram-se a uma mesa de bambu e Arthur pediu chá.
- É um lugar bastante agradável.
Arthur inclinou-se sobre a mesa na direção de Hetty, que estava acenando jovialmente em cumprimento aos amigos na sala apinhada. Havia uma clientela regular para o chá da tarde no Dilley, constituída principalmente pela geração mais jovem de Tynecastle, os filhos e filhas de prósperos médicos, advogados e comerciantes da cidade, uma perfeita aristocracia de esnobísmo provinciano. Hetty era uma presença e tanto naquele grupo elegante. E era realmente popular. Embora o velho Todd fosse apenas um engenheiro mineiro, com uma empresa não muito próspera, Hetty frequentava bastante. Era jovem, segura de si, no comando da situação. Todos diziam que tinha de fato uma boa cabeça em cima dos ombros. Os mais sábios, que profetizavam um bom casamento para a pequena Hetty, sempre sorriam sugestivamente quando a viam em companhia de Arthur Barras.
Hetty tomou o chá displicentemente.
-Alan está ali. - Alegremente, com evidente prazer pelo reconhecimento, ela indicou o irmão. - Junto com Dick Purves e alguns outros da turma de Nomad Rugger. Devemos ir até lá.
Arthur olhou submissamente para Alan, que devia estar no escritório naquele momento, mas se encontrava ali, em companhia de meia dúzia de amigos, numa mesa no meio da sala, a fumaça de seus cigarros a se elevar languidamente.
- Não vamos nos incomodar com eles, Hetty - murmurou Arthur. - É
melhor ficarmos só nós dois à mesa.
Empertigada, os olhos a faiscarem, consciente dos olhares de admiração que lhe eram dirigidos, Hetty brincava distraidamente com o garfo do bolo.
- Aquele Purves... Ele é bonito demais.
- Ele não passa de um idiota.
Arthur lançou um olhar furioso para um rapaz de uma beleza insípida, os cabelos ondulados repartidos no meio.
- Não diga isso, Arthur. Ele é muito simpático. E dança divinamente.
- Ele é um almofadinha presunçoso. - Cheio de ciúme, Arthur pegou a mão de Hetty por baixo da mesa e acrescentou, num sussurro: - Gosta mais de mim do que dele, não é mesmo, Hetty?
- Mas é claro, seu tolinho! - Hetty riu jovialmente e deixou que seus olhos voltassem a se fixar em Arthur. - Ele não passa de um estúpido empregado de banco. Jamais conseguirá ser alguma coisa importante.
- Mas eu serei! - declarou Arthur, com veemência.
- Mas é claro, Arthur!
- Espere só até eu ficar junto de papai... espere só... e vai ver o que acontece! - Ele fez uma pausa, excitado subitamente pela perspectiva do futuro, ansioso em impressioná-la com o seu ardor. - Fechamos um novo contrato hoje, Hetty. com a P .W. & Company. Um contrato bom demais. Espere só para ver!
Hetty arregalou os olhos, com uma expressão ingénua.
- E vão ganhar muito dinheiro? Arthur assentiu, solenemente.
- Mas não é apenas isso, Hetty. É também... ora, é tudo! Estar com papai, dirigindo a Neptune, como todos os Barras sempre fizeram, pensando em constituir família, ter alguém para quem trabalhar. Sinceramente, Hetty, fico todo emocionado quando penso nisso.
Enlevado, Arthur contemplou-a, o rosto dominado pela ansiedade.
- Não é uma ideia muito agradável, Arthur? - disse Hetty, estudando-o com um sorriso compreensivo.
Ela sentia-se intensamente atraída por Arthur naquele momento. Ele estava o melhor possível, um débil colorido nas faces, fervor nos olhos. Claro que ele não era realmente bonito, conforme Hetty não podia deixar de admitir, pesarosa. As sobrancelhas louras, a pele pálida e o queixo débil lhe davam uma aparência sensível demais. Não podia absolutamente ser comparado a Dick Purves, que era realmente o rapaz mais bonito. Mas, no todo, Arthur era bastante atraente, com a Neptune e muito dinheiro por trás dele. Hetty deixou-o segurar novamente a sua mão, por baixo da mesa.
- Estou me sentindo extremamente feliz esta tarde - disse Arthur, impulsivamente. - E não sei por quê.
- Não sabe?
- bom... acho que sei.
Os dois riram. O riso de Hetty, revelando os seus dentes pequenos e perfeitos, deixou-o extasiado.
- Também está se sentindo feliz, Hetty?
- Claro.
O contato da mão frágil de Hetty por baixo da mesa fez o coração de Arthur disparar com sua promessa silenciosa. Uma espécie de inebriamento subiu-lhe à cabeça, uma gloriosa sensação de esperança... em si mesmo, em Hetty, no futuro. E ele alcançou a crise de sua ousadia. Tomando coragem, ele disse apressadamente:
- Há muito tempo que venho querendo lhe falar, Hetty. Por que não podemos ficar noivos?
Ela riu outra vez, sem estar absolutamente desconcertada, apertando de leve a mão de Arthur.
- Oh, Arthur, você é maravilhoso! Ele recuperou a cor e continuou:
- Sabe como me sinto em relação a você, Hetty. Acho que sempre me senti assim. Lembra como brincávamos no Law, quando éramos crianças? Você é a moça mais linda que conheço. Papai vai me dar em breve sociedade...
Sua própria incoerência fez com que ele parasse de falar abruptamente. Hetty pensou depressa. Já recebera antes pedidos de casamento, propostas insensíveis e inócuas, geralmente na semí-escuridão, quando estava "descansando" nos bailes. Mas aquilo era diferente, era um pedido de casamento para valer. E, no entanto, a sua astúcia advertia-a a não se precipitar. Podia perceber claramente como seria ridículo o seu noivado prematuro com Arthur, o tema de boatos, insinuações maliciosas. Além do mais, ela queria se divertir um pouco, antes de assentar.
- Você é maravilhoso, Arthur - balbuciou ela, baixando as pálpebras.
- É maravilhoso mesmo. Sabe também o quanto gosto de você. Mas acho que ambos somos um pouco jovens para qualquer coisa. .. ahn... oficial. Temos o nosso acordo, é claro. Está tudo certo entre nós.
- Quer dizer que gosta de mim, Hetty?
- Oh, Arthur, você sabe que eu gosto!
Arthur foi dominado por uma exultação intensa. com a intensidade fácil de sua emoção, as lágrimas afloraram-lhe aos olhos. Sentia-se incrivelmente feliz. Sentia-se amadurecido e viril, capaz de qualquer coisa, poderia até agradecer a Hetty de joelhos por amá-lo.
Alguns minutos se passaram, até que Hetty finalmente disse, com um suspiro:
- Acho que está na hora de voltarmos para ver como o velho Todd está passando.
Arthur olhou para o relógio.
- Faltam 20 minutos para as cinco horas. Prometi encontrar-me com papai no trem das cinco e dez.
- vou acompanhá-lo até a estação.
Arthur sorriu-lhe ternamente. A devoção de Hetty para com ele, a mesma que demonstrava pelo pai doente, já o fascinava. Ele chamou a garçonete com uma confiança altiva e pagou a conta. Levantaram-se para ir embora.
No caminho, pararam por um momento junto à mesa de Alan. Alan era um bom rapaz, afável, risonho, um tanto corpulento, talvez propenso a ser um pouco preguiçoso e turbulento. Mas não havia realmente nada de pernicioso nele. Jogava futebol na equipe do Northern Nomads, integrava o Exército Territorial e conhecia algumas empregadinhas de bar pelos nomes de batismo. Agora, em meio a risos e gracejos, ele pôs-se a caçoar de Arthur por levar Hetty para o chá. Geralmente, Arthur mostrava-se angustiosamente inibido diante de tais gracejos. Naquela tarde, porém, ele reagiu jovialmente aos gracejos de Alan. Seu ânimo tornou-se ainda melhor. Sentia-se forte, feliz, confiante. Sabia que pequenas coisas jamais tornariam a preocupá-lo, os rubores súbitos, os acessos de languidez e depressão, o complexo de inferioridade, o ciúme. Purves, por exemplo, lançando olhares melosos para Hetty, não passava de um empregadinho de banco, completamente desprezível. com um último comentário espirituoso, que provocou as maiores risadas em torno da mesa, Arthur acendeu um cigarro e depois escoltou Hetty galantemente até a rua.
Saíram andando, Arthur envolvido por uma aura excepcional de autoaprovação, como um ator que acabara de apresentar um desempenho extraordinário, num papel de destaque. Isso mesmo, ele se saíra muito bem. E sabia que Hetty queria que ele fosse assim, não alguém tímido, hesitante, mas seguro, cheio de confiança.
Entraram na estação e foram juntos para a plataforma, um pouco cedo, pois o trem ainda não estava ali e Barras não chegara. Hetty parou de repente.
- Estou me lembrando de uma coisa, Arthur. Por que seu pai veio visitar o meu hoje?
Ele parou, fitando-a, completamente aturdido diante do comentário inesperado.
- Pensando agora no assunto, acho um tanto estranho - acrescentou Hetty, sorrindo. - Papai não suporta receber ninguém quando está indisposto. Mesmo assim, ele telefonou três vezes para Sleescale esta manhã. Por que foi, Arthur?
- Não sei. - Ele hesitou, ainda fitando-a atentamente. - Para dizer a verdade, eu também estava curioso.
Arthur fez outra pausa.
- vou perguntar a papai. Hetty riu e apertou o braço dele.
- Não precisa, seu tolinho. E também não precisa ficar tão sério. Que importância isso pode ter?
XVII
Às quatro e meia daquela tarde, David deixou a Bethel Street School e atravessou o pátio de concreto, a caminho da rua. A escola, já conhecida como a New Bethel Street, para distingui-la da escola antiga, fechada, era um prédio de tijolos arroxeados, brilhantes, construída num terreno baldio no alto da Bethel Street. A abertura da New Bethel Street, seis meses antes, causara uma movimentação geral entre a equipe educacional do condado, além de abrir uma vaga para um novo professor júnior. Fora esse o posto que David obtivera.
A New Bethel Street School não era bonita. Estava dividida ao meio. Numa das metades, num bloco de pedra cinzenta, estava esculpida a palavra Meninos. Na outra metade, em letras igualmente grandes, estava a palavra Meninas. Para cada sexo, separados por uma cerca ameaçadora com espigões, havia uma entrada abobadada. Muitos ladrilhos brancos haviam sido utilizados na construção da escola e um cheiro intenso de desinfetante impregnava os corredores. No conjunto, a escola conseguia assemelhar-se a um grande banheiro público.
O vulto escuro de David avançou rapidamente sob o céu abaixado pelas nuvens e varrido pelo vento. Sua pressa parecia indicar que estava ansioso em deixar a escola. Era uma noite fria. Como ele não tinha casaco, levantou o colarinho do paletó, descendo rapidamente pela rua sinuosa. Percebeu de repente a própria ansiedade e sentiu-se propenso a sorrir. Ainda não estava acostumado a pensar em si mesmo como um homem casado e um professor na New Bethel Street. Como Strother dizia, devia começar a cultivar o decoro.
Estava casado há seis meses e instalado com Jenny numa casa pequena por trás das Dunas. Não fora fácil encontrar a casa... a casa certa, como dissera Jenny. E claro que seria impossível viver nos Terraços. Jenny não admitia viver entre os mineiros, "nem por amor nem por dinheiro". David, por sua vez, sentia-se melhor por estar no outro lado da cidade, longe dos pais. A reação deles ao seu casamento tornara as coisas bastante difíceis.
Procuraram por toda parte. Jenny não admitia quartos mibiliados ou vazios. Mas finalmente encontraram uma pequena casa de fachada de reboco, isolada, na Lamb Lane, que era a continuação irregular da Lamb Street. A casa pertencia à mulher de Chorou, que tinha algumas propriedades em seu nome em Sleescale e que lhes alugou por dez shillings por semana, porque estava há algum tempo vazia e agora apresentava sinais de intensa umidade. Mesmo assim, o aluguel era mais do que David podia pagar, com um salário de 70 libras por ano. Mas ele não quisera desapontar Jenny, que desde o início se mostrara entusiasmada com a casa, porque não pertencia a uma fileira de casas iguais e ainda tinha um pequeno jardim na frente. Jenny insistiu em que o jardim lhes proporcionaria um isolamento requintado e insinuou romanticamente que faria verdadeiras maravilhas ao cultivá-lo.
David também não se preocupara em contê-la na hora de mobiliar a casa. Jenny era tão inteligente e intrépida, tão determinada a encontrar a "coisa certa" que era capaz de vasculhar uma dúzia de lojas, antes de confessar a derrota. Diante de tanto entusiasmo, como ele podia arrefecer o espírito doméstico de Jenny? Contudo, acabara sendo obrigado a assumir uma posição firme e ao final chegaram a um acordo. Três aposentos da casa foram mobiliados a crédito, a cozinha, a sala e o quarto, este com um conjunto de nogueira que era o orgulho do coração de Jenny. O resto fora ajeitado com chitas, cortinas de musselina e uma esplêndida coleção de panos rendados.
David sentia-se feliz... mas muito feliz mesmo, naquela casa por trás das Dunas. Os últimos seis meses haviam sido de longe os mais felizes de sua vida. E, antes disso, houvera a lua-de-mel. David jamais esqueceria a alegria daquela semana, aqueles sete dias abençoados em Cullercoats. Claro que ele pensara que uma lua-de-mel era impossível. Mas Jenny, tenaz como sempre em tudo o que envolvia a tradição romântica, insistira firmemente. Revelando um tesouro insuspeito, Jenny lhe apresentara 15 libras, o dinheiro do fundo de economia dos seus seis anos de trabalho na Slaterry. Além disso, sobrepondo-se a todos os protestos, Jenny persuadira-o a comprar um terno novo, roupa feita, a fim de substituir o terno cinza surrado que ele sempre usava. E a maneira como ela o fizera não envolvera qualquer humilhação. Pelo menos nisso, Jenny nunca era mesquinha. Em matéria de dinheiro, ela jamais pensava duas vezes. David comprara o terno com o dinheiro de Jenny, passaram a lua-de-mel com o dinheiro de Jenny. E pelo resto de sua vida, David jamais esqueceria isso.
A cerimónia de casamento fora um fracasso, embora David estivesse preparado para algo ainda pior... a missa fria na igreja da Plummer Street, com Jenny tensa e afetada, um desjejum pretensioso na Scottswood Road, uma horrível rigidez entre as facções opostas de Sunleys e Fenwicks. Mas a semana em Cullercoats compensara tudo. Jenny fora maravilhosa, revelando um ardor... surpreendente, embora deslumbrante. David esperava que ela se mostrasse tímida e ficara subjugado pela profundeza de sua paixão. Ela o amava ... ela o amava. .. ela o amava de verdade...
É claro que ele descobrira que ela fora infeliz, não havia como escapar à pura fisiologia do fato. Soluçando nos braços dele, naquela primeira noite entre amarga e doce, Jenny lhe contara toda a história. David não quisera ouvir, suplicando angustiado para que ela parasse. Mas Jenny insistira, tinha de explicar. Acontecera, contou ela, em lágrimas, quando era apenas uma criança. Evidentemente, fora um próspero caixeiro-viajante que trabalhava com a chapelaria, um perfeito bruto, um homem bestial, que se aproveitara dela. Ele estava bêbado, já tinha mais de 40 anos, enquanto Jenny ainda não completara 16 anos. E ele também era careca, Jenny podia se lembrar, com uma verruga no queixo. E o nome... o nome dele era Harris. Jenny não se entregara facilmente. Debatera-se, lutara, mas sua resistência fora inútil. Apavorada, ficara com medo até de contar à mãe. Acontecera apenas uma vez e nunca mais tornara a se repetir, nunca mais mesmo, com nenhum outro homem do mundo.
As lágrimas afloraram aos olhos de David, enquanto a abraçava ternamente, as lágrimas aumentando seu amor, a paixão fermentada por uma sublime piedade. Pobre Jenny, pobre e querida Jenny!
Depois da lua-de-mel, eles seguiram direto para Sleescale, onde David começara a trabalhar imediatamente na New Bethel Street. E aqui, infelizmente, a sua boa sorte se desvanecera.
David não se sentia feliz na escola. Sempre compreendera que ensinar jamais seria o seu ofício, era impulsivo demais, muito ansioso por resultados. Queria reformar o mundo. E agora, no comando da HIA, uma turma de crianças de nove anos, sujas, desmazeladas, apáticas, David estava consciente da ironia de tal começo. Irritava-se com o sistema absurdo, controlado pela sineta, apito e bengala, detestava igualmente a GrandMarch maltratada no piano por Miss Mimms, a sua equivalente na turma IIIB, não suportava quando ela dizia asperamente "agora, crianças", uma expressão que podia ouvir pela parede divisória fina mais de 50 vezes por dia. Como no período em que fazia o curso superior, David queria mudar todo o currículo, eliminar todas as coisas idiotas e não-essenciais que pareciam deleitar os inspetores visitantes, ignorar a Batalha de Hastíngs, a latitude de Cape Town, decorar capitais e datas, substituir o pomposo Crown Reader, o livro oficial, por Hans Andersen, despertar as crianças, atiçar-lhes o interesse definhando, estimular a mente e não a memória. É claro que todas as suas tentativas, todas as suas sugestões nesse sentido, tiveram a mais fria recepção. A cada hora de cada dia David sentia que não pertencia àquele lugar. A mesma coisa acontecia na sala dos professores. Ele sentia-se um completo estranho, tratado à distância pelos colegas, com extrema frieza pela virgem Mimms. Como também não podia ignorar o fato de que Strother, o diretor, não gostava dele. Strother era um homem tacanho, com um M.A. de Durnham, um comportamento enfadonho, a mente confusa e pedante. Sempre se vestia de preto, exibia um imenso bigode preto, assumia ares de rigoroso e exigente. Fora professor na escola antiga, sabia de tudo a respeito de David, sua família e origem. Desprezava-o por ter trabalhado na mina, por não ter tirado o B.A., achava que David lhe fora impingido. Empenhava-se em ser desdenhoso e rigoroso com David. Se Mr. Carmichael fosse o diretor da nova escola, as coisas ainda poderiam ser diferentes. Mas Carmichael, embora se candidatando ao posto, não conseguira obtê-lo. Não tinha qualquer influência. Desgostoso, ele aceitara a direção de uma escola de aldeia, em Wallington. Escrevera uma carta comprida a David, convidando a visitá-lo em breve, passar um fim de semana em sua companhia. A carta estava impregnada do pessimismo de um homem desanimado.
Mas David não se sentia desanimado. Era o jovem entusiasta, determinado a abrir caminho pela vida de qualquer maneira. E ao virar a esquina da Lamb Street, ele jurou a si mesmo que seguiria em frente, deixaria a New Bethel Street, ainda se livraria da mesquinhez de Strother, partiria para algo melhor. A oportunidade certamente apareceria. E ele haveria de aproveitá-la.
Na metade da Lamb Street, David divisou um vulto avançando pelo mesmo lado em que se encontrava. Era Jesse Ramage.o açougueiro, vice-presidente do conselho de administração da escola, prefeito em perspectiva da cidade. David preparou-se para um cumprimento cortês. Não chegou a fazê-lo. Ramage passou por ele sem o menor sinal de reconhecimento, os olhos fixando-se impassivelmente em David, como se estivesse olhando através dele.
David ficou vermelho, cerrou os dentes. Aí está um inimigo meu, pensou ele. Ao final de um dia cansativo e atribulado, aquela última esnobação afetava-o profundamente. Mas tentou esquecer tudo o mais ao chegar em casa, chamando alegremente por Jenny assim que passou pela porta.
Ela apareceu com uma encantadora blusa rosa que David nunca vira antes, os cabelos recentemente lavados e elegantemente arrumados.
- Ora, Jenny, você parece a própria rainha!
Ela manteve-o à distância, posando coquetemente.
- Não amarrote a minha blusa nova, Mister Homem. Ultimamente, Jenny adquirira o hábito de chamá-lo de Mister Homem.
Soava horrivelmente e David precisava dizer-lhe que parasse com isso. Não agora, é claro... afinal, ela poderia parar por sua própria iniciativa. Passando o braço pelos quadris esguios da mulher, David conduziu-a à cozinha, onde podia avistar um fogo confortador, através da porta aberta. Mas Jenny protestou:
- Não, David, não! Não vamos ficar na cozinha!
- Mas, Jenny... estou acostumado a cozinhas. .. e é tão aconchegante e quente...
- Não, Mister Homem Mau, não quero. Sabe o que combinamos. Não vamos mudar agora. Temos de usar a sala da frente. É terrivelmente vulgar ficar sentado na cozinha.
Jenny seguiu na frente para a sala, onde um fogo verde e fumarento não oferecia qualquer perspectiva animadora.
- E agora fique sentado aqui, enquanto vou buscar o chá.
- Espere um pouco, Jenny...
Mas ela obrigou-o a sentar, com um gesto autoritário. Trouxe o chá cinco minutos depois, primeiro uma bandeja, depois um prato de bolo niquelado ... uma aquisição recente, a preço de ocasião, comprado na perspectiva de receberem visitas... e finalmente dois guardanapos de papel japoneses.
- E agora fique quieto, Mister Homem.
Jenny sufocou novamente o protesto aturdido de David, antes mesmo de ele esboçá-lo. Serviu uma xícara de chá não muito quente, entregou-lhe polidamente um guardanapo, colocou o prato de bolo a seu lado. Era como uma menina brincando com um serviço de chá de boneca. David não podia suportar por mais tempo e disse, numa exasperação jovial:
- Em nome dos céus, Jenny, o que significa tudo isso? Estou com fome. Quero um chá de verdade, um arenque ou ovos, uma das comidas de Chorou para se encontrar com o teu Deus.
- Ora, David, não blasfeme, por favor. Sabe que não fui criada assim. E não seja impaciente. Espere mais um pouco. Uma xícara em sua mão é uma boa coisa, de vez em quando. Afinal, estarei recebendo visitas dentro em breve. Preciso treinar. Experimente um pouco deste bolo. Comprei no Murchison's.
David engoliu em seco, reprimindo o seu ressentimento com algum esforço. Em silêncio, procurou tirar o melhor proveito possível de "uma xícara em sua mão", o bolo molhado de Murchinson e o pão fino e comprido, com geléia comprada. Por uma fração de segundo, não pôde deixar de pensar no chá que a mãe costumava servir-lhe quando estava trabalhando na mina, ganhando um salário que não chegava a ser a metade do que tinha agora: um pão grosso, feito em casa, para ser comido à vontade, uma tigela grande de manteiga, queijo e geléia de amora, também feita em casa. Geléia comprada pronta era algo que jamais entrava na casa de Martha. Mas a própria deslealdade da súbita visão levou-o prontamente de volta a Jenny. E ele sorriu-lhe ternamente.
- Em suas próprias palavras inimitáveis, Jenny, você é um pagode.
- Sou mesmo, é? Pois está chegando lá, Mister Homem. O que aconteceu na escola hoje?
- Não muita coisa, Jenny querida. - Nunca acontece nada!
- bom, Jenny...
- E então, o que houve?
- Nada, querida.
David encheu o cachimbo lentamente. Como podia contar a história insípida de suas lutas e reveses? Algumas pessoas poderiam gostar disso, mas não era o caso de Jenny. Ela esperava alguma história espectacular de sucesso, como o diretor o elogiara, algum ato sensacional que lhe valeria uma rápida promoção. David não queria deixá-la aborrecida. E não podia mentir-lhe.
Seguiu-se um breve silêncio e depois, jovialmente, Jenny passou para outro assunto perigoso.
- Pois então me diga uma coisa. Já tomou uma decisão em relação a Arthur Barras?
- Hum... Confesso que não estou muito ansioso em aceitá-lo.
- Mas é uma oportunidade tão boa! Não se esqueça de que foi convidado diretamente por Mr. Barras.
David respondeu bruscamente:
- Acho que já me envolvi demais com Barras. Não gosto dele. De certa forma, lamento ter-lhe escrito. Não me agrada a ideia de dever-lhe o meu emprego.
- Não diga bobagens, David. Ele tem muita influência. Acho maravilhoso que ele tenha se interessado por você, a ponto de convidá-lo a ser tutor do filho.
- Não encare isso como interesse. Ele é um homem com quem nada tenho a ver, Jenny. E está apenas tentando fazer com que sua benevolência pareça convincente.
- E a quem ele haveria de querer convencer? David respondeu asperamente:
-A si mesmo!
Pausa. Jenny não tinha a menor ideia do que ele estava querendo dizer. No sábado anterior, Barras encontrara-se com David na Cowpen Street, de tivera-o com um ar condescendente, interrogara-o com um interesse remoto e finalmente o convidara a aparecer no Law três noites por semana, a fim de dar aulas de matemática a Arthur. Como era muito fraco em matemática, Arthur precisaria de aulas particulares para poder passar no exame final e ganhar o diploma.
Jenny sacudiu a cabeça.
- Acho que você próprio não sabe o que esta falando, David.
Por um momento, ela deu a impressão de que poderia acrescentar alguma coisa. Mas não disse mais nada. E com uma cara amuada, recolheu as xícaras do chá e saiu da sala.
Houve silêncio na pequena sala, com o fogo de lenha verde e os móveis novos. Depois David levantou-se, largou os livros na mesa, foi atiçar o fogo. Fez um esforço. Deliberadamente, afastou da mente o problema de Barras e senlou-se para estudar.
Estava atrasado na programação que fixara para si mesmo e isso o preocupava. Por algum motivo, não conseguia encontrar as oportunidades para estudar que imaginara. Ensinar era muito mais árduo do que esperara. Sentia-se frequentemente muito cansado quando chegava em casa. Estava cansado naquela noite. E as distrações sempre davam um jeito de se insinuarem e afastarem-no do trabalho. Ele cerrou os dentes, apoiou a cabeça entre as mãos, fixou sua atenção firmemente em Jusserand. Precisava trabalhar, estudar bastante, a fim de conquistar o maldito B.A. Era a única maneira de melhorar, de elevar a si mesmo e a Jenny.
Por .meia hora, David estudou com grande proveito, sem ser perturbado. Depois, Jenny voltou à sala e aboletou-se no braço da cadeira. Estava arrependida de sua impertinência, dengosa, infantil.
- David, querido - murmurou ela, passando o braço pelos ombros dele
- lamento muito ter ficado zangada. Lamento de verdade. Mas é que tive um dia insípido, sem nada para fazer. Talvez seja por isso que fico aguardando ansiosamente que a noite chegue, todos os dias.
Ele exibiu um meio sorriso, comprimiu o rosto contra o seio jovem e arredondado de Jenny, os olhos ainda fixados no livro.
- Você não estava zangado e é insípido também para você. Jenny afagou-lhe a nuca, insinuante.
- Foi um dia realmente horrível, David. Quase não falei com ninguém, a não ser o velho Mr. Murchinson, a mulher que me vendeu um pedaço de seda e mais uma ou duas pessoas que apareceram aqui. Eu... eu estava pensando que poderíamos sair esta noite, para nos animarmos um pouco.
- Mas eu preciso estudar, Jenny. Você sabe disso tão bem quanto eu. Os olhos de David ainda estavam fixados no livro.
- Oh, David, você fica sempre enterrado nesses livros velhos estúpidos! Pode tirar esta noite de folga... pode deixar para estudar em outra ocasião.
- Sinceramente, Jenny, não posso fazer isso. É muito importante.
- Mas claro que pode, David! Basta você querer!
Atónito, perplexo, David finalmente despregou os olhos no livro e estudou-a por um momento.
- Mas onde você poderia querer ir, Jenny? Está frio e úmido lá fora. Ficar em casa é a melhor coisa.
Ela já tinha tudo preparado, arrumado, cuidadosamente planejado. E tratou de explicar, rapidamente:
- Podemos pegar o trem das seis e dez para Tynecastle. Há um concerto popular no Eldon Hall, uma coisa realmente bonita. Vi no jornal, e alguns dos artistas de Whitley Bay estarão presentes. É o que eles costumam fazer no inverno. Colin Loveday, por exemplo, estará presente... e ele é um tenor maravilhoso. Os ingressos são muito baratos e assim o dinheiro não tem importância. Oh, David, vamos! Tenho certeza de que será muito agradável. Tenho andado muito deprimida e quero me divertir um pouco. Não seja um velho ranzinza.
Houve outro breve momento de silêncio. David não queria passar por um velho ranzinza. Estava cansado, obcecado pela necessidade de estudar; como ele dissera, era uma noite fria e inóspita lá fora; e o concerto não o atraía. Subitamente, ocorreu-lhe uma ideia, uma ideia sensacional. Seus olhos se iluminaram.
- Ei, Jenny, acabo de ter uma ideia! vou tirar esta noite de folga, como você está sugerindo. E vou sair correndo para chamar Sam e Hughie. Vamos aumentar o fogo, preparar um jantar de carne com batatas e jogar rummy. Já que está falando em gente que se diverte, Jenny, posso garantir que não existe igual a Sam. O nosso Sammy é o melhor que você jamais conhecerá, vai deixála rindo durante todo o tempo.
David estava sinceramente convencido de que era uma grande ideia. Estava preocupado com o seu afastamento da família, queria conviver novamente com os irmãos, aquela era uma oportunidade maravilhosa para quebrar o gelo. Mas enquanto ele se animava, Jenny ia desanimando.
- Não, David - disse ela, friamente. - Isso não me agradaria de jeito nenhum. Sua família não tem me tratado muito bem. Não vou permitir que usem a minha casa assim.
Outro silêncio. David comprimiu os lábios, firmemente. Achava que Jenny estava sendo irracional e injusta, não era direito pedir-lhe que fosse a Tynecastle numa noite como aquela. Ele não iria. Mas, de repente, divisou lágrimas aflorando aos olhos de Jenny. Era o bastante. Não podia deixá-la em lágrimas.
David suspirou, levantou e fechou o livro.
- Está bem, Jenny. Vamos ao concerto, se é isso mesmo o que você quer.
Ela deixou escapar um gritinho de alegria, cruzou as mãos, beijou-o, muito excitada.
- Oh, David, querido, você é maravilhoso! E agora espere um instante! vou pôr o chapéu. E não se preocupe que não vou demorar. Temos tempo suficiente para pegar o trem.
Enquanto ela estava lá em cima, David foi à cozinha e cortou um pedaço de pão e queijo. Comeu devagar, olhando para o fogo. Provavelmente, pensou ele, com um sorriso irónico, Jenny tomara a decisão de arrastá-lo ao concerto há vários dias.
Ele acabara de comer quando soou uma batida na porta dos fundos. Surpreso, David foi abri-la.
- Sammy! - exclamou ele, deliciado. - Ora, seu velho maroto! Sammy, com seu sorriso permanente no rosto pálido e saudável, entrou
na cozinha.
- Annie e eu estávamos de passagem - anunciou ele, não sem uma certa timidez, apesar do sorriso. - E me lembrei de dar uma parada em sua casa.
- Mas isso é ótimo, Sammy! Mas... onde está Annie?
Sam sacudiu a cabeça na direção da escuridão lá fora. A etiqueta era perfeita. Annie estava esperando lá fora. Annie conhecia o seu lugar. Annie não tinha certeza se era bem-vinda. David compreendeu tudo isso, divisando o vulto obscuro de Annie Macer lá fora, andando de um lado para outro, esperando até que a sua entrada na casa fosse julgada conveniente. Ele gritou no mesmo instante:
- Diga a ela para entrar imediatamente, seu grande idiota! Vamos, traga-a agora mesmo!
O sorriso de Sammy se alargou.
E no momento seguinte, Jenny entrou na sala, toda vestida para sair. Sammy hesitou, a caminho da porta, indeciso, olhando para Jenny, que avançou em sua direção com a maior cortesia.
- É um grande prazer - disse Jenny, sorrindo polidamente. - E também bastante inesperado. Mas é uma pena que tenha aparecido no momento em que David e eu estamos de saída.
David interveio:
- Mas Sammy veio nos visitar, Jenny. E trouxe Annie. Ela está lá fora. As sobrancelhas de Jenny se altearam. Fez uma breve pausa, pelo momento apropriado, depois sorriu insinuantemente para Sam.
-Mas que pena! Não pode imaginar como lamento que vocês tenham aparecido quando estamos de saída para o concerto. Combinamos encontrar com alguns amigos em Tynecastle e não podemos desapontá-los. Vocês devem aparecer em outra ocasião.
Sammy apegava-se tenazmente a seu sorriso.
- Não há problema. Annie e eu nunca temos mesmo muito o que fazer. Podemos aparecer em qualquer outra ocasião.
- Não vai embora agora, Sammy - disse David, impulsivamente. - Vá buscar Annie. Vocês vão tomar pelo menos um chá conosco. Jenny lançou um olhar angustiado para o relógio.
- Nada disso, meu caro. - Sammy já estava a caminho da porta. - Não ou atrapalhar o seu passeio e de madame. Annie e eu vamos apenas dar uma volta por aí. Boa-noite para os dois.
Até o final, o sorriso de Sammy persistiu. Mas David podia perceber por trás do sorriso, Sammy estava profundamente magoado. E lá fora murmuraria para Annie:
- Vamos embora, menina. Não somos bons o bastante para eles. Estou achando que o nosso Davey anda com ideia de grandeza, depois que virou mestre-escola.
David se contraiu todo, dividido entre o seu desejo de correr atrás de Sammy e a promessa de levar Jenny ao concerto. Mas Sammy já se fora.
Jenny e David embarcaram no trem das seis e dez para Tynecastle, uma composição apinhada e lenta, parando em cada estação. Foram para o Eldon Hall. Os ingressos custaram dois shillings cada, os lugares mais baratos já estando lotados quando chegaram. Ficaram sentados durante três horas de performance insossa.
Jenny adorou, batendo palmas fervorosamente com o resto do público, pedindo bis. Para David, no entanto, foi horrível. Ele bem que tentou não ser superior, bem que se esforçou em gostar. Mas o concerto inteiro foi uma decepção. Oh, eles são da melhor qualidade!, Jenny insistia em murmurar a todo instante, com o maior entusiasmo. Mas não eram. Ao contrário, eram artistas de quarta categoria, o rebotalho dos conjuntos que se apresentavam em feriados, o comediante recorrendo basicamente à sogra para provocar risadas, Colin Loveday com um vibrato cómico, a mão sobre o coração, transbordando de emoção. David pensou na performance de Sally na sala de visitas da Scottswood Road, muito superior ao que estava presenciando agora. Pensou em seus livros, fechados. Pensou em Sammy e Annie Macer, passeando de braços dados.
Depois que o espetáculo terminou, Jenny aconchegou-se contra ele, ao saírem.
- Falta uma hora para o último trem, David. É o que devemos pegar, pois é bastante rápido... e a primeira parada é em Sleescale. Vamos dar um pulo ao Percy Grill para bebermos alguma coisa. Joe sempre me levava lá. Podemos tomar um porto ou algo assim. Não será nada agradável ficar esperando na estação.
No Percy, cada um tomou um porto. Jenny estava deliciada por voltar, reconhecer rostos familiares, acenar para o garçom, a quem chamou de Chawles, recordando uma piada do comediante de nariz vermelho.
- Não o achou um pagode? - acrescentou ela, soltando uma risadinha. O porto tornou as coisas um pouco diferentes para David, os contornos
menos incisivos, as cores mais suaves, a atmosfera um tanto nebulosa. Sorriu para Jenny e disse:
- Você é uma diabinha incontrolável e pode influenciar inteiramente um pobre homem! No final das contas, terei mesmo de dar aulas particulares ao jovem Barras!
- É assim que deve encarar as coisas, querido.
Jenny aprovou efusivamente, no mesmo instante. Seduziu-o com os olhos, comprimiu o joelho contra o dele, por baixo da mesa. E com um ímpeto jovial, pediu a Chawles que lhe trouxesse outro porto.
Depois, tiveram de correr para pegar o trem. Depressa, depressa, acabaram alcançando-o, embarcaram num vagão de fumantes vazio.
- Puxa vida! - Jenny ria, ofegante. - Não foi maravilhoso, David querido?
Ela fez uma pausa, recuperou o fôlego, constatou que estavam a sós, lembrou com um anseio bem fundo que o trem não parava antes de Sleescale... pelo menos mais meia hora. Jenny gostava de lugares diferentes, sempre gostara, mesmo com Joe. Subitamente, ela aconchegou-se contra David.
- Você tem sido tão bom para mim, David, que não posso lhe agradecer o bastante. Feche as cortinas, David... fica mais aconchegante assim.
Jenny estava em seus braços e ele fitou-a atentamente, em dúvida. Os olhos dela estavam fechados, pareciam cheios sob as pálpebras; os lábios estavam úmidos e entreabertos, como que sorrindo vagamente; a respiração exalava o bafo generoso do porto; o corpo era macio, muito quente.
- Vamos, feche as cortinas - murmurou ela. - Todas as cortinas.
- Não, Jenny... espere, Jenny...
O trem sacolejava um pouco, para cima e para baixo. David levantou-se e fechou todas as cortinas.
- Está maravilhoso assim, David. ..
Depois, Jenny recostou-se contra ele e adormeceu, ressonando suavemente. David ficou olhando fixamente para a frente, uma estranha expressão no rosto firme. O vagão recendia a fumaça de cachimbo, porto e fumaça da locomotiva. Alguém jogara uma casca de laranja no chão. Lá fora, estava escuro como breu. O vento uivava, arremessando a chuva forte contra as janelas do vagão. E o trem avançava, ruidosamente.
XVIII
No início de abril, quando já estava dando aulas a Arthur Barras no Law há quase três meses, David recebeu um recado do pai. Harry Kinch, um garoto dos Terraços, irmão da pequena Alice que morrera de pneumonia quase sete anos antes, foi quem levou uma manhã o bilhete a David, na New Bethel Street. Caro David pode vir a Wansbeck... pescar truta no sábado seu Papai.
Estava escrito um tanto desajeitado, com lápis-tinta, na parte interna de um envelope velho.
David ficou profundamente comovido. O pai ainda desejava fazer uma pescaria com ele, como nos tempos antigos, quando o levava, um garotinho, para pegar trutas no Wansbeck! A perspectiva deixou-o feliz. Há dez dias que Robert não trabalhava na mina, com um acesso de pleurisia tuberculosa. .. a que ele não dava a menor importância, referindo-se como mera "inflamação". Mas já saíra da cama e estava se movimentando. Sábado seria o seu último dia livre e estava querendo passá-lo em companhia de David. O convite era como uma proposta de paz, partindo direto do coração do pai.
Parado ao lado de sua mesa, na sala de aula barulhenta, os pensamentos de David repassaram num relance os últimos meses. Fora ao Law contra a sua própria vontade e inclinação, talvez por causa da insistência de Jenny, certamente porque precisavam do dinheiro extra. Mas o fato deixara o pai consideravelmente transtornado. E, no fundo, David também se sentia numa posição irreal, por estar agora em termos familiares com os Barras, que sempre haviam figurado em sua mente como totalmente apartados dele e de sua vida. David ficou pensando. Tia Carrie, por exemplo, tão curiosa e preocupada com ele no início, costumava olhá-lo como fazia com as pessoas que entravam na casa com as botinas sujas de lama ou como examinava a conta de Ramage, quando achava que lhe fora cobrado um preço exorbitante pela carne. Os olhos míopes haviam exibido essa desconfiança preocupada por algum tempo.
Mas, com o passar do tempo, tal expressão se desvanecera dos olhos de Tia Carrie. Ela acabara "aceitando" David, enviando leite quente e biscoitos para a velha sala de aula, por volta das nove horas da noite, quando Arthur e David encerravam os trabalhos.
E depois, estranhamente, Hilda passara a levar o leite quente e os biscoitos. Ela começara por tratá-lo não como a pessoa que entrava na casa com as botinas sujas, mas como a própria sujeira nas botinas. David não deu importância, compreendeu imediatamente que era o sintoma do conflito de Hilda. Ela interessava-o. Hilda estava com 24 anos, o comportamento hostil e a falta de encanto arraigados mais profundamente agora. Hilda não é como a maioria das mulheres desgraciosas, pensou David. Elas ficam se iludindo, vestindo-se com esmero, procurando tirar o melhor proveito de si mesmas, pensando diante do espelho, este azul me fica bem, meu perfil é de fato atraente, meus cabelos ficam ótimos repartidos no meio. E continuam a se iludir até morrerem. Mas Hilda, desde o início, concluíra resolutamente que era feia. E com seu comportamento hostil, agravara ainda mais a feiúra. Afora isso, David podia perceber que Hilda vivia em conflito: talvez a força do pai lutasse contra a fraqueza da mãe dentro dela. Hilda sempre impressionara David com a união involuntária desses dois elementos, como se ela fora concebida involuntariamente, lutara consigo mesma em embrião e finalmente viera ao mundo num estado de turbulenta discórdia. Hilda não era feliz. Fora se revelando gradativamente, sem saber que estava se revelando. Sentia intensamente a falta de Grace, que estava agora na escola, em Harrogate. Os comentários dela geralmente assumiam uma forma, como a seguinte:
- Nunca conseguirão ensinar-lhe coisa alguma, pois ela é uma perfeita pamonha!
Ou então ela dizia, ao ler uma carta:
- Mas ela nem sabe ainda escrever direito!
Apesar disso, David podia perceber que Hilda adorava Grace. Ela era uma estranha espécie de feminista, militante dentro de si mesma. No dia 12 de março, os jornais noticiaram uma campanha de destruição organizada pelas sufragistas no West End de Londres. Vitrinas haviam sido quebradas e janelas destruídas nas ruas principais, centenas de mulheres foram presas, inclusive a Sra. Pankhurst. Hilda ficou exultante. Iniciou uma discussão magnifica naquela noite, completamente arrebatada. Queria participar do movimento, disse ela, fazer alguma coisa, lançar-se no turbilhão da vida, trabalhar incansavelmente para acabar com as terríveis opressões a seu sexo. Os olhos faiscavam enquanto citava como exemplo as mulheres arménias e o tráfico de escravas brancas. Estava desdenhosa, altiva. Os homens? Mas claro que ela detestava os homens! Odiava e detestava. E foi desfiando um argumento depois de outro. Era outro sintoma de seu conflito, sua feiúra, sua psicose.
Embora ela jamais o revelasse abertamente, era evidente que a aversão que Hilda sentia pelos homens derivava do pai. Ele era um HOMEM, símbolo fálico, seu pai. A supressão serena de Barras de todos os desejos dela serviria para ampliar e aprofundar as repressões de Hilda. Ela queria deixar o Law e Sleescale, queria trabalhar para viver... em qualquer coisa e em qualquer lugar, contanto que fosse entre o seu próprio sexo. Queria fazer alguma coisa. Mas todos os seus desejos frenéticos desvaneciam-se contra a indiferença fria do pai. Ele ria de Hilda, fazia com que ela se sentisse uma tola, com algum comentário indiferente. Hilda jurava que iria embora, que lutaria. Contudo, ela continuava, a luta ocorrendo apenas dentro de si mesma. Hilda esperava... esperava o quê?
Por intermédio de Hilda, David tinha uma visão de Barras. A outra vinha de Arthur, como não podia deixar de ser. No Law, David nunca tinha qualquer contato com Barras, que permanecia um vulto remoto e inacessível. Mas Arthur falava muito a respeito do pai, só se sentia plenamente feliz nesses momentos. Depois que as equações de segundo grau estavam resolvidas, Arthur começava a falar... e qualquer coisa era um pretexto para isso. Mas enquanto os comentários de Hilda estavam impregnados de ódio, as palavras de Arthur eram extasiadas.
David começou a gostar de Arthur. Contudo, a afeição continuava impregnada pelo mesmo senso de compaixão que experimentara ao ver Arthur pela primeira vez, empoleirado na charrete, no pátio da mina. Arthur era muito ansioso, pateticamente ansioso. Mas era também tão fraco! Vacilava até mesmo sobre o tipo de lápis que deveria usar... H ou HB. Uma decisão rápida confortava-o profundamente. Levava tudo muito a sério, era excessivamente sensível. Muitas vezes, David tentava gentilmente arrancar Arthur de sua timidez com um gracejo. Não adiantava, pois Arthur não tinha o menor senso de humor.
David acabara por conhecer também a mãe de Arthur. Uma noite, Tia Carrie levou o leite quente à sala de aula com um ar de quem fazia um grande favor ainda maior do que o habitual.
E ela disse, com extrema dignidade:
- A Sra. Barras, minha irmã, gostaria de falar-lhe.
Recostada sobre os travesseiros, Harriet queria saber de Arthur, a "opinião" dele a respeito de Arthur. O filho Arthur causava-lhe uma grande ansiedade. E era também uma grande responsabilidade. Isso mesmo, uma grande responsabilidade, repisou ela, perguntando se David não se incomodaria de entregar-lhe o vidro de colónia que estava na mesinha-de-cabeceira. Esse mesmo, por favor. Colónia lhe aliviava as dores de cabeça, quando Caroline estava ocupada demais para escovar-lhe os cabelos. Isso mesmo, continuou Harriet, seria um grande desapontamento para o pai de Arthur se este não se saísse bem nos exames finais. Talvez David pudesse tentar, à sua maneira, já que Caroline falara tão bem dele, influenciar o caráter de Arthur para sempre, prepará-lo para a vida. E sem parar para respirar, Harriet perguntou se ele acreditava na cura através do pensamento. Ela vinha achando ultimamente que deveria tentar a cura pelo pensamento. Mas a dificuldade na cura pelo pensamento é que a cama deveria ficar virada para o norte, o que era desagradável naquele quarto, pela posição da janela e da estufa a gás. É claro que não podia agora dispensar a estufa a gás. Impossível! Como ele conhecia matemática, insistiu Harriet, achava sinceramente que a cura pelo pensamento seria igualmente eficaz se a cama ficasse virada para noroeste, o que se poderia conseguir com alguma dificuldade, deslocando a arca de gavetas para a outra parede?
Jenny sentia-se deliciada porque David estava causando tão boa impressão no Law, deliciada porque ele se tornara "muito amigo dos Barras". O desejo de Jenny de ascender socialmente era tão intenso que lhe agradava até mesmo consegui-lo indiretamente. Quando David voltava para casa à noite, Jenny exigia que lhe contasse tudo o que acontecera: ela dissera realmente aquilo, haviam lhe oferecido os biscoitos diretamente ou simplesmente deixado na bandeja? A possibilidade de Hilda ter algum interesse por David não a preocupava absolutamente. Ela não sentia ciúme, pois estava "absolutamente segura" de David. Além do mais, Hilda era a coisa mais feia que se podia imaginar.
As reações de Jenny ao Law devertiram David. Frequentemente, ele inventava os incidentes mais elaborados, só para provocá-la. Mas Jenny não se deixava enganar facilmente. Segundo ela própria dizia, Jenny tinha uma cabeça nos ombros. Jenny era Jenny.
Durante todo esse tempo, David estava aprofundando o conhecimento de Jenny. Muitas vezes parecia-lhe estranho que somente agora passasse a conhecer sua própria mulher. Mas não era tão estranho assim, quando refletia que certamente não a conhecera antes do casamento. Jenny fora então uma projeção do amor de David, uma flor, ternura, a própria brisa da primavera.
David começou agora a conhecer a verdadeira Jenny, a Jenny que sonhava com a ascensão social, que queria roupas e diversões, gostava de "sair" e apreciava um copo de porto, que era ardente, mas ficava facilmente chocada, que subitamente exigia amor, simpatia e carinho, que tinha o hábito da contradição pura e simples, sem qualquer argumento de apoio, que combinava a lógica e a irracionalidade total na mesma frase.
David ainda amava Jenny, sabia que jamais deixaria de amá-la. Mas começaram agora a ter discussões frequentes e violentas. Jenny era teimosa e ele era teimoso. E havia determinadas coisas em que Jenny não devia impor a sua vontade. David não gostava que ela bebesse porto. Na noite em que ela pedira um segundo porto no Percy Grill, David sentira que a mulher gostava demais de porto. Não lhe permitia ter porto em casa. E brigavam por causa disso:
- Você é um desmancha-prazer... devia entrar para o Exército da Salvação... eu o odeio... odeio...
Depois, havia uma erupção de lágrimas, uma grande reconciliação e amor.
- Oh, David, eu o amo muito...
Brigavam também por causa dos exames de David. Jenny queria que ele tirasse o B.A., é claro. Estava até ansiosa para que tal acontecesse, para se vingar da Sra. Strother e de algumas outras. Mas simplesmente não lhe dava tempo para estudar. Havia sempre alguma coisa para fazerem à noite. Ou se estavam sozinhos e não tinham para onde ir, a cena era sempre patética:
- Quero sentar no seu colo, David querido. Parece que há séculos não tenho qualquer carinho.
Ou então ela sofria um pequeno talho com a faca de cortar batatas... perdia muito sangue.
- E quando você acha que poderemos ter uma empregada, David? E não tinha mais ninguém além dele para fazer as coisas. O B.A. parecia distante nessas ocasiões. David já adiara os exames por seis meses e parecia-lhe agora, com as aulas extras no Law, que teria de acrescentar outros seis meses nos anteriores. Em desespero, ele percorria de bicicleta os 25 quilómetros até a aldeia de Wallington, onde Carmichael agora vivia. Na escola AS Wallington, ele encontrava paz e conselhos criteriosos: o que devia continuar a estudar, o que devia largar. O desiludido Carmichael era extremamente bondoso com ele, sempre decente. Muitas vezes, David passava o fim de semana inteiro com Carmichael.
E, finalmente, Jenny e David brigavam também por causa de suas famílias. David preocupava-se terrivelmente com o seu afastamento da família, provocado pelo casamento. Claro que havia algumas idas e vindas entre Inkerman Terrace e a casa em Lamb Lane. Mas não era o que David queria. Jenny era formal, Martha fria, Robert calado, Sammy e Hughie contrafeitos. Era estranho que David, ao ver Jenny tratar a família dele com condescendência, sentia vontade de dar-lhe uma surra; mas tornava a amá-la intensamente no momento em que saíam. Ele sabia que seu casamento fora um choque para Martha e Robert. Evidentemente, Martha recebera o golpe com um ar de justificativa amarga: Jenny não era boa o bastante, ela sempre soubera que só poderiam acontecer coisas ruins pelo fato de David deixar a mina, o que ficara plenamente comprovado por aquele casamento prematuro.
A atitude de Robert era diferente. Ele se refugiava no silêncio. Sempre tratava Jenny gentilmente, esforçava-se em ser gentil. Por mais que tentasse parecer animado, no entanto, havia uma tristeza inequívoca em seu comportamento. Acalentara muitas ambições por David, contara demais com tudo o que ele faria, de certa forma empenhara toda a sua vida no futuro do filho. E David, aos 21 anos, casara com uma tola balconista. Era assim, no fundo de seu coração, que Robert encarava a situação.
David podia sentir a tristeza do pai. E isso o magoava horrivelmente. Ficava acordado por muitas noites, pensando a respeito. O pai ressentia-se de seu casamento. O pai ressentia-se porque pedira a Barras que lhe arrumasse um emprego. O pai ressentía-se porque ele dava aulas particulares a Arthur Barras no Law. Contudo, o pai lhe escrevera e convidara para uma pescaria no Wansbeck.
com um sobressalto, David voltou ao presente. Sentindo-se um tanto culpado, tratou de silenciar a turma barulhenta. Rapidamente, escreveu uma resposta curta ao bilhete do pai, para Harry levar. Depois, concentrou-se no trabalho do dia.
Durante toda a semana, David ficou aguardando ansiosamente a chegada do sábado. Sempre gostara de pescarias, embora ultimamente tivesse bem poucas oportunidades de pescar. A primavera estava novamente no ar, ele sabia que o vale do Wansbeck estaria maravilhoso naquela época. Subitamente, com toda a força de sua alma, David ansiava em ir para lá.
O sábado chegou, um ótimo dia para pescaria, quente, com o sol se insinuando entre as nuvens, um vento oeste ameno. David lenvantou-se cedo, serviu a Jenny a xícara de chá da manhã, preparou alguns sanduíches de geléia. Depois, examinou o caniço de beberu que o pai lhe dera em seu aniversário... e como se recordava nitidamente da ida ao Marriofs, na West Street, para comprá-lo! Experimentou o caniço, ainda estava flexível e útil como antes. Calçou as botinas, assoviando baixinho. Jenny ainda estava na cama quando ele saiu de casa.
David subiu aos Terraços, seguiu pela Inkerman até a casa dos pais, experimentando uma estranha sensação, naquela aprazível manhã de primavera. Sammy e Hughie estavam trabalhando em seu turno na mina, mas a mãe estava à mesa, embrulhando o lanche de Robert com barbante fino e papel oleado. Martha guardava as duas coisas como se fossem ouro. Ao ver David, ela acenou com a cabeça, mas seus lábios se contraíram sombriamente. David sabia que a mãe ainda não o perdoara.
- Você parece não estar muito bem - disse ela, penetrando-o com seus olhos frios.
- Estou me sentindo perfeitamente bem, mãe.
Não era verdade. Intermitentemente, David vinha se sentindo indisposto nos últimos meses.
- Está com a cara branca que nem lençol. David respondeu bruscamente:
- Não posso fazer nada para mudar minha cara. E pode ter certeza de que estou bem.
- Estou achando que você se sentia melhor quando vivia nesta casa e trabalhava na mina como um rapaz decente.
David sentiu a irritação invadi-lo, mas disse apenas:
- Onde está papai?
- Saiu para arrumar algumas iscas. Estará de volta daqui a pouco. Será que você está com tanta pressa que nem pode sentar por um segundo e trocar umas palavrinhas com sua própria mãe?
David sentou-se observando-a, enquanto ela dava o último laço no barbante. Não havia nós, pois Martha ia querer o barbante de volta. Ela pouco envelhecera. O corpo grande sólido ainda era ativo, os movimentos seguros, os olhos fundos continuavam a exibir um brilho astuto e vigoroso, no rosto fino e saudável. Martha virou-se.
- Onde está seu lanche?
- No meu bolso.
- Mostre-me.
David fingiu não ter ouvido. A mãe estendeu a mão, repetindo:
- Mostre-me.
- Não vou mostrar, mãe. Meu lanche está no bolso. É o meu lanche. vou comê-lo. E ponto final.
Martha continuou com a mão estendida, sombriamente, a expressão tensa.
- com que então quer me desobedecer pela frente agora... como tem feito nas minhas costas.
- Ora, mãe, pare com isso. Não quero desobedecê-la. Mas... Furioso, David acabou tirando o saco de papel do bolso. Martha pegou-o, friamente, abriu-o, expondo os três pedaços de pão velho com geléia que o próprio David preparara. O rosto dela não se alterou, não expressou qualquer desdém. Simplesmente pôs o saco de lado e disse:
- Vai servir para o meu pudim de pão.
Martha pegou o embrulho que acabara de fazer, estendeu-o para David, comentando:
- Há mais do que suficiente para vocês dois aí.
Havia algo de injustiça na atitude dela, mas havia justiça também. E foi a justiça que atingiu David como um golpe violento, levando-o a dizer, com veemência:
- Mãe, eu gostaria que desse uma oportunidade a Jenny. Sempre a desprezou. Não é justo. Nem sequer tenta acertar as coisas entre vocês. Não a viu mais do que meia dúzia de vezes nestes três últimos meses.
- Ela quer que eu vá visitá-la, David?
- Não lhe dá uma chance de querer, mãe. Devia tratá-la com mais gentileza. Ela se sente muito solitária aqui. Devia procurar animá-la.
Mais sombria do que nunca, Martha disse, desdenhosamente:
- Quer dizer então que ela precisa ser animada? - Martha fez uma pausa. Uma raiva intensa dominava-a, sufocava-a. Não deixou transparecer, mas da profundeza de sua raiva resvalou inconscientemente para o dialeto de sua juventude. - E ela é solitária, hem? Mas que motivo tem para ser solitária, com sua casa e seu homem para cuidar? Eu não sou solitária. Nunca tenho tempo para me sentir solitária. Mas ela está sempre se pavoneando, dando-se ares. Nunca vai fazer amigos assim. Não o tipo certo de amigos. E se eu fosse você, diria a ela para não comprar tantas garrafas de porto no Murchinson's.
- Mãe! - David levantou-se de um pulo, o rosto pálido se avermelhando. - Como pode dizer uma coisa dessas...
Enquanto eles se encaravam, David ardendo... Martha pálida, fria... Robert passou pela porta aberta. Compreendeu a situação num relance.
- Já estou pronto, Davey - disse ele, suavemente. - Vamos embora. Poderá conversar mais com a sua mãe quando voltarmos.
Um longo suspiro escapou do fundo do peito de David. Ele abaixou os olhos, para ocultar a mágoa neles.
- Está certo, papai.
E os dois saíram.
Descendo a Cowpen Street, Robert falou mais do que o habitual. Fez questão de puxar conversa sobre a pescaria. Arrumara algumas boas minhocas no Spit e outras em Middlerig. O vento também estava soprando do quadrante certo, certamente fariam uma boa pescaria. E arrumara uma carona no carro de Teasdale. O entregador estava doente e Dan Teasdale, de folga na mina, faria as entregas naquele sábado, a fim de ajudar ao pai. Ele os levaria até Avery's Farm... a três quilómetros de Morpeth. Era muito decente da parte dele... Dan Teasdale era um bom rapaz.
David escutava, tentava escutar, mas podia ver além do fluxo de conversa de Robert. Ficou um pouco apartado, diante da loja de Teasdale, enquanto Dan e Robert conversavam. O que doía não era o fato de sua mãe ter dito aquelas coisas; era o fundo de verdade por trás das palavras dela que o atormentava e corroía, não o deixava em paz.
Quando o carro ficou pronto, Dan Teasdale embarcou, Robert seguiu-o, pondo o pé na roda e levantando o corpo lentamente, com alguma dificuldade. Depois foi a vez de David. Havia espaço bastante. E partiram.
Assim que deixaram a cidade, Dan pôs-se a falar em tom amistoso. Disse que os levaria direto a Avery's deixando para fazer as entregas no caminho de volta. Gostaria de poder acompanhá-los, acrescentou ele, jovialmente. Gostava de pescar, mas quase não tinha oportunidade. De um modo geral, gostava do campo e adorava a vida rural. No fundo, sempre desejara ser um fazendeiro, usando os músculos ao ar livre, não no poço da mina. Mas sabem como são as coisas... e nesse ponto Dan riu, um tanto envergonhado por ter revelado seus sentimentos.
Foram seguindo, deixando para trás a terra desolada com as chaminés de poços, correias transportadoras e pilhas de escória, entrando pelos campos, que pareciam um mundo novo, revestido de folhas verdes e relva vicejante. Era como se Deus tivesse acabado de fazer aquele pedaço do mundo, largando-o ali na noite anterior, sem que os homens já o tivessem descoberto e conspurcado. Havia campinas maravilhosas com dentes-de-leão amarelos, milhares deles, ninguém podia deixar de reconhecer que era uma vista deslumbrante.
Até mesmo David animou-se com a contemplação daquelas campinas intermináveis de flores amarelas. E disse para Dan:
-É lindo!
Dan assentiu.
- Tem razão. E fazem o leite melhor. - Silêncio por um momento. Depois, olhando furtivamente para David, Dan perguntou: - Gosta de ir ao Law?
David respondeu:
- Não é tão ruim assim, Dan.
Não havia qualquer motivo que David pudesse determinar para a expressão de vergonha que se estampou no rosto de Dan. O rapaz soltou uma risada brusca fixando os olhos azuis inocentes em David.
- Conhece todos eles, não é mesmo? A esta altura, já deve conhecer todos eles. Já conheceu Grace, não é?
Ao mencionar o nome de Grace, algo como uma reverência dominou Dan. Ele engoliu em seco, como se estivesse aceitando um sacramento. David não percebeu. Sacudiu a cabeça e respondeu:
- Ainda não me encontrei com Grace. Ela está ausente, não é mesmo? Em Harrogate?
- Está, sim - confirmou Dan, olhando para as orelhas do cavalo. - Ela está em Harrogate.
Houve uma pausa, uma pausa prolongada. E depois Dan suspirou.
- Aquela Grace é uma garota sensacional!
Ele tornou a suspirar, um suspiro honesto e opressivo, um suspiro que sintetizava o anseio, o impossível anseio que estava oculto em seu coração há quase oito anos.
A esta altura, estavam se aproximando de Avery's Farm. Dan parou o carro, Robert e David saltaram. Agradeceram novamente a Dan e partiram pelos campos na direção do Wansbeck.
Chegaram ao córrego. Havia bastante água e a cor estava boa. Sem olhar para o filho, Robert disse:
- vou ficar depois da ponte, Davey. Você começa aqui... este é o melhor lugar. Vá pescando na minha direção e comeremos quando nos encontrarmos.
Ele acenou com a cabeça e foi se afastando pela margem.
David ajeitou o caniço, lentamente. Estendeu a linha, arrumou o anzol e a isca, quase apaticamente. Ao experimentar o peso, sentiu uma emoção percorrer-lhe o corpo. Era novamente como nos velhos tempos. De caniço na mão, aproximou-se da beira da água, subindo numa pedra. Uma truta aflorou à superfície no meio do córrego, quase silenciosamente. O ténue ruído penetrou até a medula dos ossos de David. Afetou-o como o som de uma rolha deixando uma garrafa pode afetar um beberrão que há anos não sabe o que é vinho. Ele começou a pescar.
Foi pescando pelo córrego acima, cobrindo toda a água que podia, os lugares mais prováveis. O sol saiu de trás das nuvens, envolveu-o com o seu calor. O ruído da água correndo ressoava em seus ouvidos agradavelmente, o som eterno e suave de água correndo.
David pegou cinco peixes, o maior pesando pelo menos meio quilo. Mas quando se encontrou com o pai, ao lado da ponte, descobriu que Robert o batera. Uma dúzia de trutas estavam enfileiradas sobre a relva e Robert estava deitado ao lado, fumando. Parara de pescar há cerca de uma hora, quando completara uma dúzia de peixes.
Eram três horas da tarde e David estava faminto. Comeram o lanche juntos: sanduíches de bacon, ovos cozidos, um pedaço de pastelão de vitela e uma geléia de amora feita por Martha. Havia até uma garrafa de leite, que Robert pusera para esfriar na beira do córrego.
Ao contrário da maioria das pessoas que sofre de tuberculose crónica, Robert de um modo geral não tinha muito apetite. E comeu muito pouco naquele dia, embora a comida estivesse tentadora. E logo voltou a seu cachimbo.
David notou. Examinou o pai por algum tempo, preocupado, pensando que ele parecia mais magro... encolhido. As pessoas iam para a Suíça, Arizona e Flórida quando estavam tuberculosas. Iam para sanatórios luxuosos e caros, ficavam cercadas por médicos, cuspiam em frascos com tampa de borracha. Robert descia pela mina, não era examinado por ninguém, cuspia em pedaços de papel. Todos os sentimentos antigos voltaram a dominar David. E ele disse:
- Não comeu nada, papai. Não está cuidando direito de si mesmo.
- Estou muito bem - respondeu Robert, com absoluta sinceridade.
Ele possuía o otimismo de sua doença. Os tuberculosos geralmente pensam que vão se recuperar. Mas não era apenas isso que acontecia com Robert. Há muito tempo que tinha a doença. A tosse, os suores, os escarros, tudo era parte dele, coisas que não encarava com hostilidade. Nunca pensava muito a respeito, a não ser que ia melhorar. Sorriu agora para David e bateu no peito com a haste do cachimbo.
- Não se preocupe. Isto... isto nunca vai me matar.
David acendeu o seu cachimbo. Os dois ficaram deitados ali, fumando, olhando para o céu e para as nuvens brancas que se perseguiam pelo azul. O ar recendia a relva, prímulas e fumaça de tabaco, a minhocas que ainda restavam na bolsa de iscas de Robert. Era um cheiro agradável. Campinas e árvores ao redor deles, não havia uma única casa à vista. Podiam ouvir os balidos dos cordeiros por toda parte, repousantes e serenos. Tudo parecia quieto, as únicas coisas que se moviam eram as nuvens brancas e os pequenos cordeiros brancos, pulando de um lado para outro e se insinuando sob as barrigas das mães, que mastigavam a relva pacientemente, esperando, as patas traseiras bem separadas. Os cordeirinhos davam-se marradas, mas não ficavam muito tempo. Logo se afastavam, preparando-se para dar marradas com uma força cada vez maior.
Robert estava imaginando se David era feliz... uma coisa em que pensava muito. Talvez fosse feliz na superfície, mas não era realmente feliz por baixo. Só que ele não podia perguntar a David, não podia cravar os dentes como Martha e rasgar o coração do filho, expondo as relações dele com Jenny. Robert sentia a primavera no ar e pensou: uma prímula, um pássaro cantando... e está feito. Os únicos passarinhos que deviam ter permissão para cantar na primavera eram os cucos, concluiu ele. Se ao menos David a tivesse apenas possuído, pois ela parecia mulher para isso, não estaria agora deitado ali com aquela expressão tensa no rosto. Mas ele era jovem demais para saber e tudo tinha que desaguar num casamento. E agora ele era professor na escola elementar, dava aulas particulares ao jovem Barras por dinheiro, o B.A. e todos os planos gloriosos sobre os quais costumavam conversar postos de lado, talvez esquecidos. Robert pedia a Deus que David conseguisse em breve livrar-se de tudo isso, seguir em frente, fazer seu nome, construir alguma coisa importante de verdade. Ele tinha condições para isso. Ah, como ele pedia a Deus que tal acontecesse! E nesta altura Robert deixou esse problema de lado, pois tinha outras coisas em sua mente. David soergueu-se abruptamente.
- Está muito calado, papai. Alguma coisa o está preocupando.
- Ora, Davey, não há nada. É maravilhoso aqui em cima. - Robert fez uma pausa. - Muito melhor do que lá embaixo, na Scupper Flats.
David compreendeu tudo. E disse, lentamente:
- Então é lá que estão trabalhando agora?
- É, sim. Estamos finalmente na Scupper Flats. Começamos a trabalhar no Dyke há três meses.
- Conseguiram chegar lá?
- Conseguimos.
- Está molhado?
- Está, sim! - Robert soprou a fumaça do cachimbo. - Estamos com água até as orelhas na minha galeria. Foi o que me deixou tão mal na semana passada.
A placidez na voz do pai deixou David subitamente triste. E ele murmurou :
- Lutou tanto para manter a Scupper Flats fora de funcionamento, papai...
- Talvez sim. Mas fomos vencidos, não é mesmo? Teríamos nos acabado na Scupper naquela ocasião, se Barras não tivesse perdido o contrato. Pois ele arrumou outro contrato e lá estamos nós outra vez, de volta no ponto em que começamos. A vida é como uma roda, meu rapaz, sempre dá a volta, quando se espera pelo tempo suficiente.
Houve um breve silêncio e depois Robert acrescentou:
- Como eu disse antes, não me importo com a umidade. Durante toda a vida, sempre trabalhei em galerias cheias de umidade, algumas bem piores, quando era jovem. O que me perturba é a água. A coisa é assim, Davey.
Ele fez uma pausa, pondo a mão de lado sobre a terra.
- Isto é o Dyke, o dique universal, a barreira, que corre do norte para o sul. Num lado do Dyke, você tem todas as antigas minas, o refugo das perfurações da velha Neptune, partindo do Snook. Todos os níveis inferiores estão cheios de água, como não podia deixar de ser. Pois no outro lado do Dyke, no lado oeste, está Scupper Flats, onde estamos trabalhando agora. E o que estamos fazendo? Estamos extraindo carvão do Dyke, estamos enfraquecendo a barreira.
Ele recomeçou a fumar. David disse:
- Sempre ouvi dizer que o Dyke pararia qualquer coisa, é uma barreira natural.
- É possível. Mas não consigo deixar de pensar no que aconteceria se fôssemos tirando carvão muito perto das antigas escavações inundadas. Essa barreira natural poderia ficar bastante fina.
Robert falava serenamente, quase como se meditasse. Parecia ter perdido inteiramente a sua antiga amargura.
- Mas eles sabem o que estão fazendo, papai. Não podem deixar de saber, se estão perto das escavações antigas. Devem ter todas as plantas.
Robert sacudiu a cabeça.
- Eles não têm as plantas das velhas escavações da Neptune.
- Devem ter, papai. Procure o inspetor, fale com Jennings.
- De que adiantaria? - disse Robert, calmamente. - Ele não pode fazer nada. Não pode impor uma lei que não existe. Não há nenhuma lei sobre minas abandonadas antes de 1872. E as escavações da velha Neptune foram abandonadas muito antes disso. Eles não registravam as plantas naquele tempo. Assim, as plantas acabaram se perdendo. A água pode estar bem no outro lado do Dyke, pelo que sabemos. Como pode estar também a um quilómetro de distância.
Ele bocejou de repente, como se estivesse cansado do assunto, depois sorriu para David e acrescentou:
- Espero que seja um quilómetro.
- Mas, papai...
David parou de falar. Estava preocupado com a atitude do pai. Robert parecia cansado, envolvido por uma espécie de fatalismo.
Robert percebeu a expressão do filho e tornou a sorrir, dizendo:
- Não, Davey, não vou criar caso desta vez. Não acreditariam em mim, nenhum dos rapazes. Foi apenas a oportunidade de um aumento-de meio penny que os levou a entrarem em greve na última vez. Não vou me incomodar... não vou cansar minha cabeça. - Ele fez uma pausa, olhou para o céu.
- Acho que voltarei aqui no próximo domingo. Você poderia vir também. É a melhor época do ano para o Wansbeck.
Robert tossiu, a tosse suave, ao mesmo tempo trovejante. David apressou-se em dizer. ......
- Deveria tirar folgas com mais frequência com essa sua tosse.
Robert sorriu.
- vou me aposentar um dia desses. - Ele tornou a bater no peito com cachimbo. - Mas essa tosse não é nada. Ela e eu somos agora velhos amigos. Ela nunca vai me matar.
David olhou atentamente para o pai, em silêncio, na maior ansiedade. Seus nervos, à flor da pele naqueles dias, ressentia-se da situação intolerável: a tosse de Robert, sua jovialidade, sua apatia diante dos perigos de Scupper Flats. E se o perigo fosse realmente concreto e iminente? O coração de David contraiu-se. com uma súbita determinação, ele pensou: devo falar com Barras sobre Scupper Flats. E falarei com ele esta semana.
XIX
Enquanto isso, Joe estava se divertindo a valer. Frequentemente, murmurava comentários sobre os "grandes tempos" ou "isto é que é vida". Gostava de Shiphead, uma cidade agradável, com bons pubs, dois salões de bilhar, um salão de baile e um programa de boxe regular, em todas as noites de sábado. Gostava da mudança, de seus aposentos, de seu escritório... uma única sala em frente ao Fountain Hotel, completo, até com telefone, duas cadeiras, uma mesa para pôr os pés, um cofre, um calendário das corridas, as paredes cobertas com recortes de todo mundo, de Jack Johnson a Vesta Victoria. Gostava de seu novo terno marrom-claro, a corrente do relógio novo estendida entre os dois bolsinhos do colete. Gostava de suas unhas, trabalhadas com um canivete, o chapéu atrás da cabeça, os pés em cima da mesa. Gostava da maneira como estava se relacionando com a linda jovem na bilheteria do novo cinema. Acima de tudo, porém, gostava de seu trabalho. O trabalho era uma canja, apenas recolher as apostas e o dinheiro, passar as apostas pelo telefone para Dick Jobey em Tynecastle, ficar com o dinheiro até a noite de sábado, quando Dick vinha buscar pessoalmente. Dick considerara-o o homem certo para o trabalho, o homem certo para abrir aquele escritório novo em Shiphead, um rapaz ambicioso, simpático, efusivo, capaz de se dar muito bem com os apostadores, ficar longe da polícia, cuidar de tudo com habilidade e eficiência. Dick não queria de jeito nenhum uma máquina de calcular, não queria alguém para ficar sentado de bobeira no escritório, esperando os negócios aparecerem espontaneamente. Dick queria um camarada esperto, promissor, com uma cabeça nos ombros...
E Dick se enganara? Joe sorriu jovialmente para a dama de malha que estava na parede. Um rapaz esperto com uma cabeça nos ombros... Joe tinha uma cabeça nos ombros? Joe podia desatar a rir, se engasgar de tanto rir. Era fácil, muito fácil, fácil até demais, dinheiro que era uma beleza. Era tudo uma questão do lado que se escolhia, passando a perna no próximo, antes de ser passado para trás. Joe mudou o palito para o outro canto da boca, enfiou a mão no bolso interno do paletó, tirou um caderninho. Era um ritual que sempre deixava Joe feliz da vida. Nas linhas vermelhas, estava anotado
202 libras, 10 shillings e seis pence a crédito de Mr. Joe Gowlan, Brown Street,
7, Shiphead. O caderninho provava que Joe era um tremendo sucesso. O telefone tocou e Joe atendeu.
- Alo? Pois não, Mr. Carr. Claro. O de duas e meia. Dez shillings em Slider, o que der em Blackbird, às quatro horas. Está apostado, Mr. Carr.
Carr era o farmacêutico da Bank Street. Era engraçado como pessoas que nunca se podia imaginar tinham o hábito de fazer suas apostas. Carr era um tipo assim. Dava a impressão de que só pensava em coisas como raiz de jalapa e fórmulas complicadas, ia à igreja todos os domingos com a mulher. Mas apostava dez shillings nos cavalos duas vezes por semana. E também ganhava. Ganhava até bastante. Podia-se muito bem determinar os que tinham o hábito de ganhar, eram sempre cautelosos, meticulosos, não se vangloriavam. E também se podia reconhecer de longe os perdedores. Era o caso de Tracy, o jovem Tracy, que aparecera em Shiphead no mês anterior. Para quem quisesse saber, ali estava um perdedor nato. com otário escrito na cara. Desde o momento em que o jovem Tracy o procurara, no salão de bilhar do Markey, durante uma partida, querendo apostar uma libra em Sally Sloper, que chegara em último num páreo de 14 animais, Joe o tomara para si. O jovem Tracy era o otário de qualquer um, magro, pálido, o tipo cómico. Apesar de tudo, porém, o jovem Tracy tinha dinheiro bastante para jogar nos cavalos. Jogara mais de 20 libras em apenas um mês e perdera tudo, não ganhara uma única vez. O jovem Tracy deixara de ser o otário de qualquer um, tornara-se agora o otário exclusivo de Joe. E que ninguém se enganasse quanto a isso, pensou Joe.
O telefone tocou novamente.
- Alo? Alo?
Independente de sua simplicidade particular, Joe era magnífico ao telefone. Melhorara consideravelmente. Era sonoro, jovial, de alta classe... conforme exigia a ocasião. Não assassinava a língua inglesa agora, a não ser para demonstrar a sua afabilidade. Ele recostou-se na cadeira, sorrindo. Desta vez não era um telefonema de negócios. Era apenas a jovem da bilheteria do Picturedrome, dando um toque antes do patrão chegar.
- Olá, Minnie! Quem você pensava que fosse... o China-pau? Ah! Ah! Puxa, Minnie, também não precisa ficar assim. Como? Para as três horas... ou qualquer páreo? Ora, Minnie, quem você pensa que eu sou... o diretor A uma casa de caridade? Não fique esperando que eu lhe entregue segredos , estado a troco de nada... Não estou querendo insinuar nada. Absolutamente nada, ó luz da minha vida! Já lhe disse antes... Como?
A boca entreaberta, subitamente exultante, Joe escutou atentamente.
- Assim é diferente, Minnie. Não lhe disse sempre que o faria, Minnie? poi você que levantou a coisa. Isso mesmo, Minnie... se mudou de ideia, acho que posso lhe arrumar uma barbada.
Cada vez mais exultante, Joe manteve a voz calma, persuasiva, lisonjeira.
- Deixe tudo comigo, Minnie. Isso mesmo, uma barbada... Sempre falei que podia arrumar uma coisa boa para você, Minnie. Farei alguma coisa por você, se fizer alguma coisa por mim. Não é esse o nosso lema, Minnie? Mas se pensa que pode me escapulir depois, está... Ora, está bem, Minnie, eu estava apenas pensando em voz alta. Então está combinado, às 11 horas, diante do cinema. E pode apostar suas ligas que estarei aí, levando os seus ganhos!
Joe desligou, na maior alegria. Sempre dissera que era a maneira de se conseguir tudo... como no livro da escola, fazer a montanha vir a Maomé. O peito dele estava estufado, tinha vontade de levantar e sair dançando pela sala. Mas não dava, estava além disso agora, era um homem experiente, controlado, sabia algumas coisinhas. Joe se controlou, guardou o palito num bolsinho do colete, acendeu um cigarro e pôs-se a trabalhar.
Primeiro, pegou todos os talões de apostas da manhã. Examinou cada aposta meticulosamente, avaliando-a, antes de seguir adiante. Ao final, tinha duas pilhas, uma grande, de apostas que poderiam ganhar, outra pequena, consistindo em três apostas, que ele sabia com toda certeza que seriam perdedoras, a não ser que houvesse algum milagre. Tracy, por exemplo, apostara três libras... a maior aposta isolada que já fizera até aquele momento... em Hydrangea, um velho matungo que nem mesmo daya para a saída. Joe sorriu ligeiramente pelo ingénuo Tracy, enquanto fazia um rápido cálculo mental. Quem dissera que ele não tinha cabeça para números? Depois, rasgou em pedacinhos o talão de apostas de Tracy. Fulbroock e Sweet Orb eram os cavalos escolhidos nas outras duas apostas... e Joe rasgou-as também. Ainda sorrindo, ele olhou para o relógio. Uma e meia. Não haveria mais apostas. Alegremente, pegou o telefone, conversou um pouco com a telefonista, pediu a ligação para Tynecastle, a alguns quilómetros de distância.
- Alo? Quero falar com Dick Jobey. Aqui é Joe, Dick. Até que não foi um dia dos piores. Ah! Ah! Está pronto, Dick? Pois então vamos lá...
Joe começou a ler as apostas que não destruíra. Falava claramente, incisivamente, um tanto sonoramente. E arrematou:
- Isso é tudo, Dick. Como? Se eu tenho certeza? Pode apostar que tenho, Dick. Já me viu cometer algum erro antes? Isso mesmo, Dick, é tudo. Até sábado.
Joe bateu com o fone no gancho, exuberante, levantou-se, piscou para a dama de malha na parede, inclinou o chapéu para o lado, trancou o escritório e saiu. Atravessou a rua movimentada até a Fountain, entrou no bar, acenando para um e outro. Todos o conheciam... a ele... Joe Gowlan... agente por comissão... o grande Joe Gowlan...
Ele comeu um bife, um bife grande, suculento, sangrento, da maneira como gostava, com cebolas, batatas fritas e uma cerveja. Gostou muito da carne, apreciou até a última gota da cerveja amarga. Depois, pediu um pedaço de queijo... de queijo Stilton. Hum... como estava gostoso o Stilton... gostoso de verdade... o que ele sabia de Stilton dois anos antes?... ia subir muito na vida, mas muito mesmo... ele. .. Joe Gowlan...
A tarde mais ou menos lhe pertencia. Teve uma conversa com Preston, Jack Preston, o dono do Fountain... um bom sujeito, o Jack. Depois foi ao salão do Markey, jogou duas partidas de sinuca. Tracy não estava lá. E era engraçado Tracy estar ausente. Mas não tinha importância. As três libras de Tracy estavam seguras no bolso de Joe.
Depois da sinuca, Joe foi ao ginásio de Young Curley. Joe era um freguês regular de Young Curley... um camarada não podia fazer nada se não estivesse em boas condições físicas! Não poderia nem se divertir! Como seria possível? Um pouco de tudo no lugar certo, pensou Joe, afavelmente, lembrando-se de Minnie e das 11 horas.
No ginásio, Joe despiu o seu corpo vigoroso de 75 quilos, pôs um calção, fez algum exercício nas barras, lutou boxe com a sombra, depois foi para o ringue para três rounds com o próprio Curley. Suava que era uma beleza então, depois foi para o banheiro, meteu-se na água quente. Em seguida uma chuveirada fria, uma massagem. Curley não estava massageando com força suficiente.
- Mais força, homem, mais força! - insistiu Joe. - Para que está pensando que lhe pago?
Era ele quem mandava, não é mesmo? E tinha de se desforrar de Curley de algum jeito. Afinal, Curley lhe acertara um golpe forte demais no ouvido, naquele terceiro round. Rosado e reluzente, Joe saiu da mesa como uma imensa foca. Foi para o seu cubículo, vestiu-se meticulosamente, jogou meia coroa para Curley e saiu.
Cinco horas... o momento de voltar ao escritório. No caminho, comprou uma edição especial do jornal, verificou os resultados das corridas, com uma expressão confiante, imperturbável. Como já esperava, Hydrangea nem dera para a saída, Fulbrook chegara em quarto num páreo de seis cavalos, Sweet Orb também perdera. Joe não deixou transparecer qualquer reação. Era algo que somente os otários faziam. Talvez o seu porte fosse ligeiramente mais arrogante quando atravessou a rua e entrou no escritório.
Sentado à mesa, Joe conferiu as contas do dia, pegou o telefone e ligou para Tynecastle.
- Alo? Dick Jobey está? Alo... como?... Mr. Jobey saiu cedo?... Está bem. Ligarei amanhã de manhã.
Então Dick saíra cedo. Não era de admirar, pensou Joe, alegremente. Não tinha com que se preocupar. Joe levantou-se, assoviando, endireitando a gravata. Foi nesse instante que a porta se abriu e Dick Jobey entrou na sala.
- Mas. .. Olá, Dick! E uma grande... Não o esperava. ..
- Cale a boca, Gowlan. E sente-se.
Quieto, muito sério, Dick Jobey indicou a cadeira, Joe balbuciou:
- Mas... Dick, meu velho...
E foi então que Joe sentiu uma vertigem, ficou esverdeado. Por trás de Dick Jobey, o jovem Tracy apareceu. E por trás de Tracy, entrou um homem extremamente grande, de cara vermelha, com ombros que pareciam a fachada de uma casa, olhos frios, hostis. O grandalhão fechou a porta, encostou-se nela, cuidadosamente. O jovem Tracy, parecendo um pouco menos otário, olhou para Joe sem qualquer compaixão.
- Gowlan, você é um patife nojento - disse Jobey.
- Como? - Joe tratou de se controlar, fez um esforço angustiante para manter o blefe. - Vamos com calma, Dick. Do que está falando? Acabei de ligar para Tynecastle, tentando falar com você, a fim de comunicar que esquecera de passar a aposta em Hydrangea. A aposta dele. ..
Ele indicou Tracy com um aceno de cabeça e depois continuou, com uma crescente indignação:
- Juro por Deus que esqueci, Dick. E lhe telefonei no instante em que lembrei.
- Cale essa boca, Gowlan. Não foi apenas a aposta de hoje que você me roubou. Há um mês que Tracy vem jogando com você. Ele perdeu 35 libras e não recebi absolutamente nada desse dinheiro.
- Essa não! - gritou Joe. - Mas que mentiroso sujo! Não acredite nele, Dick. É uma maldita mentira. Minha palavra vale tanto quanto a dele...
- Cale essa boca, Gowlan - ordenou Jobey, pela terceira vez, quase cansado. - Tracy está comigo. Ele trabalha um mês com todos os meus agentes, como fez com você. Pensou que eu fosse algum idiota? Pensou que eu não ia verificar tudo? Pois eu sempre verifico tudo, seu idiota! E sei que vem me roubando descaradamente. Recebeu um bom emprego, teve uma boa oportunidade. Mas agora está perdido, nunca mais vai trabalhar comigo, seu patife nojento!
Era demais,pensou Joe. A raiva dominou-o e ele gritou, impulsivamente;
- Ei, quem é você para me chamar de patife? Eu poderia dar-lhe uma lição por isso... eu...
Joe tratou de se controlar. Se fossem apenas dois, ainda poderia partir para cima de Jobey. Mas eram três, não daria conta do recado. Além do mais, não se importava. Estava bem de vida, com muitas libras guardadas. Joe ficou absolutamente frio. Virando de lado, com um gesto de repulsa, Jobey disse:
- Cuide dele, Jim. Reviste-o.
Jim adiantou-se, dando a impressão de que pretendia passar pela parede no outro lado da sala. Oh, Deus, pensou Joe, ele vai arrancar a minha grana! Uma fúria súbita dominou-o. Não vou deixar!, pensou Joe, furioso. Ele ficou semi-agachado, desferiu um soco violento contra o queixo de Jim. O golpe acertou em cheio, mas o queixo parecia de ferro. Jim abaixou a cabeça e arremeteu.
Por três minutos, a sala sacudiu-se com a violência da briga. Mas de nada adiantava, Joe estava cedendo ao peso superior. E acabou caindo no chão, fragorosamente. Ficou estendido, com Jim montado em seu peito. Não adiantava... não adiantava mesmo... tinha de ceder... deixar que Jim o revistasse, encontrando as notas de cinco libras e o caderninho, pondo tudo em cima da mesa.
Enquanto Dick Jobey embolsava o dinheiro delicadamente e pegava o caderninho dos depósitos bancários, Joe levantou-se, balbuciando:
- Pelo amor de Deus, Mr. Jobey, é meu próprio dinheiro, minhas economias. ..
Jobey olhou para o relógio, pegou imediatamente o telefone, ligou para o gerente do banco. Chorando, Joe ficou escutando.
- Lamento -incomodá-lo depois do expediente, mas acontece que é urgente e muito importante. Mr. Gowlan precisa descontar um cheque imediatamente. Quem está falando é Jobey, de Tynecastle... isso mesmo, Mr. Dick Jobey... gostaria que me prestasse o favor especial de atender a Mr. Gowlan. Obrigado... isso mesmo, ele irá imediatamente. E novamente obrigado.
- Eu não vou! - gritou Joe. - Não vou de jeito nenhum!
- Eu lhe dou um minuto para tomar a sua decisão - disse Jobey, tristemente. - Se não for, chamarei a polícia.
Joe foi. A procissão silenciosa de quatro homens seguiu para o banco, depois voltou ao escritório, igualmente em silêncio.
- Dê-me o dinheiro - disse Jobey, ao chegarem.
- Pelo amor de Deus! - choramingou Joe. - Uma parte é o meu próprio dinheiro!
- Dê-me - repetiu Jobey.
Jim estava ali, pronto para entrar em ação. Oh, Deus, pensou Joe, ele vai-me surrar de novo! Joe entregou o dinheiro, todo o dinheiro, notas de vinte e cinco libras, soberanos, todo o seu adorável dinheiro, todas as suas adoráveis 200 libras, tudo o que...
- Pelo amor de Deus, Mr. Jobey! - suplicou Joe, abjetamente.
Dick Jobey parou por um momento, a caminho da porta. Uma expressão de desprezo estampou-se em seu rosto. Pegou um soberano no bolso e jogou-o para Joe.
- Tome aqui. Compre um trago.
E ele saiu, acompanhado por Tracy e Jim.
Por dez minutos, Joe continuou sentado na cadeira, desesperado, as lágrimas escorrendo pelas faces. Depois levantou-se e pegou o soberano. Uma fúria intensa dominou-o. Chutou uma cadeira, chutou e chutou. Começou a destruir o escritório. Destruiu tudo, meticulosamente, rancorosamente. Era tudo mobília ordinária, de segunda mão. E havia muito pouco. Mas o que havia, Joe destruiu. Cuspiu no chão. E xingava Jobey sem parar. Pegou um lápis azul e escreveu em letras grandes na parede, Jobey é um filho da puta. E continuou a escrever, os piores palavrões. Depois, sentou-se no peitoril da janela e contou seu dinheiro. com a libra e algumas moedas no bolso, tinha exatamente 30 shillings. Trinta shillings. Trinta moedas de prata!
Saiu do escritório destruído, batendo a porta com toda força. Foi direto para o Fontain. Pôs 10 shillings no bolso do colete. E com o resto embriagou-se. Ficou sentado ali, bebendo, sozinho, até dez e meia. A esta altura, estava completamente embriagado. Levantou-se e foi para o Picturedrome, a cambalear.
Minnie deixou o serviço às 11 horas, loura, peito minguado, exibindo o seu dente de ouro e tudo mais. Não podia haver a menor dúvida. Minnie era uma vigarista.
Joe pegou Minnie, balançando ligeiramente.
- Vamos embora, Minnie - disse ele, a voz engrolada. - Estou com o dinheiro que você ganhou. Dez shillings. E não é nada em comparação com o que lhe trarei amanhã.
- Oh! - exclamou Minnie, com uma expressão desiludida. - Vocês todos sempre querem a mesma coisa.
- Vamos embora - insistiu Joe.
E Minnie foi. Para Joe, aquela noite teve muitas consequências.
XX
As árvores da Avenue estavam silenciosas sob a chuva forte, os galhos pingando e parecendo vultos desolados, braços estendidos de mulheres a se lamentarem, ao crepúsculo triste. Mas David, subindo rapidamente pelo molhado, não prestava a menor atenção às árvores que choravam. Estava com a cabeça abaixada, a expressão concentrada. Sob a tensão de alguma emoção positiva, ele entrou nos terrenos do Law, tocou a campainha e ficou esperando. A porta foi aberta um momento depois, não por Ann, a criada, mas por Hilda Barras. Ao vê-lo, ela corou inesperadamente.
- Chegou cedo! -exclamou ela, controlando-se imediatamente.-Cedo demais. Arthur está com o pai no gabinete.
David entrou no vestíbulo e tirou o casaco molhado.
- Vim cedo porque queria falar com seu pai.
- com o pai? - Apesar da insinuação de ironia, ela observava atentamente o rosto de David. - Parece muito sério.
- É mesmo?
- É, sim. Está terrivelmente sério.
David percebeu o sarcasmo na voz dela, mas não respondeu. Gostava de Hilda, a rudeza constante dela era pelo menos sincera. Houve uma pausa. Embora ela estivesse obviamente Curiosa, querendo saber o que David tinha em mente, não insistiu. Em tom de indiferença, limitou-se a comentar: .
- Eles estão no gabinete, como eu disse:
- Posso subir?
Hilda deu de ombros, sem responder. David estava consciente dos olhos escuros dela fixados nele. Um momento depois, Hilda virou-se e afastou-se. Ele continuou parado por mais um instante, preparando-se para o encontro, antes de subir. Foi bater na porta e entrou no gabinete.
A sala estava quente e intensamente iluminada, um bom fogo ardendo na lareira. Barras estava sentado à mesa, Arthur de pé ao lado da lareira, diante dele. Quando David entrou, Arthur sorriu, à sua maneira amistosa habitual. Mas a recepção de Barras foi muito menos cordial. Virou-se na cadeira de couro, olhando para David com uma expressão inquisitiva.
- O que é? - perguntou ele, bruscamente.
David olhou de um para outro. Comprimiu os lábios, firmemente. E disse a Barras :
- Gostaria de lhe falar por um momento.
Richard Barras recostou-se na cadeira. Estava com um excelente humor naquela noite. Na correspondência da tarde, recebera uma carta do prefeito de Tynecastle pedindo-lhe que aceitasse a presidência do comité de organização da construção da nova ala do Hospital Real Municipal. Barras já estava no conselho municipal, há três era presidente do comité de educação local. E, agora, mais isso. Ele estava satisfeito, farejando a perspectiva de um título , cavaleiro, da mesma forma que um mastim bem alimentado fareja as posibilidades de um osso suculento. com sua própria letra, impecável, precisa, já que não existia máquina de escrever no Law, ele estava elaborando uma carta de aceitação apropriada. Sentado ali, ele personificava uma satisfação quase sensual pelo fato da vida ser tão boa.
- O que tem a me falar? - Observando o olhar de David para Arthur, Barras acrescentou, impacientemente: - Pode falar. Se é a respeito de Arthur, é melhor ele ouvir.
David respirou fundo, determinado. Sob a força da personalidade de Barras, o que tinha a dizer parecia subitamente presunçoso e absurdo. Mas tomara a decisão de falar com Barras e nada poderia demovê-lo.
- É sobre as novas escavações na Paradise, senhor - disse ele, falando depressa, para que Barras não pudesse interrompê-lo. - Sei que não tenho o direito de falar, pois estou fora da Neptune agora. Mas meu pai e meus dois irmãos continuam trabalhando lá. Como sabe, Mr. Barras, meu pai está há 30 anos na mina. Não é um alarmista. Mas desde que obteve o novo contrato e começou a tirar carvão da barreira, ele anda terrivelmente preocupado com a possibilidade de uma inundação.
Silêncio na sala. Barras ficou avaliando David com uma expressão fria e inquisitiva.
- Se seu pai não gosta da Paradise, então pode ir embora. Ele teve essa mesma ideia absurda há cerca de sete anos. Sempre foi um criador de encrencas.
David sentiu o sangue correr mais depressa, mas fez um esforço para falar calmamente:
- Não é apenas meu pai. Muitos homens não estão gostando. Dizem que estão chegando perto demais das antigas escavações da velha Neptune, que devem estar cheias de água.
- Neste caso, eles sabem o que podem fazer - disse Barras, friamente.
- Se estão com medo, basta irem embora.
- Mas não podem fazer isso. Eles precisam viver. Quase todos têm mulher e filhos para sustentar.
As feições de Barras se endureceram imperceptivelmente.
- Pois então que eles falem com aquele tal de Heddon. Não é para isso que ele está lá? Pagam-lhe para explorar suas queixas. Você nada tem a ver com o problema.
Havia uma tensão súbita no ar e Arthur olhava de David para o pai, com crescente inquietação. Arthur detestava encrencas, qualquer coisa que se aproximasse de uma discussão provocava-lhe uma intensa angústia. David mantinha os olhos fixados em Barras. Empalidecera, mas sua expressão continuava determinada e controlada.
- Tudo o que estou lhe pedindo é que escute com atenção o que os homens têm a dizer.
Barras riu bruscamente.
- Essa é ótima! - disse ele, sarcasticamente. - Espera então que eu fique sentado aqui e deixe meus trabalhadores me ensinarem o meu próprio negócio?
- Não vai fazer nada?
- Mas claro que não!
David cerrou os dentes, reprimiu o turbilhão de indignação que lhe subia à cabeça. E disse, em voz baixa:
- Muito bem, Mr. Barras. Se vai encarar o que falei pelo lado errado, então não tenho mais nada a dizer. Não resta a menor dúvida de que eu nem deveria ter falado qualquer coisa.
Ele ainda ficou parado ali por um momento, como se esperasse que Barras pudesse falar alguma coisa. Depois virou-se e deixou a sala.
Arthur não o seguiu imediatamente. O silêncio foi se prolongando. Depois, hesitante, com os olhos no chão, Arthur disse:
- Acho que ele não queria falar nada de mal, pai. David Fenwick é um bom homem.
Barras não respondeu.
Arthur corou. Embora já tivesse tomado muitos banhos frios e soubesse quase de cor o conteúdo dos livrinhos vermelhos, ainda corava abominavelmente. Mas insistiu, com algum desespero:
- Quer dizer que acha que ele não tem qualquer razão? Pois não consigo deixar de pensar no que ele disse. E hoje mesmo aconteceu uma coisa esquisita na Paradise, pai. A bomba da Scupper não deu vazão no turno da tarde.
- E daí?
- Houve um grande acúmulo de água em Swelly.
- É mesmo?
Barras pegou a pena e ficou examinando a ponta. Arthur hesitou. A informação parecia nada significar para o pai. Ele continuava sentado ali impassível, sereno e indiferente. Acabrunhado, Arthur acrescentou:
- Tive a impressão de que houve água demais entrando em Scupper Flats. Parecia até que um bloco de carvão do Dyke foi forçado para a frente, como se houvesse alguma pressão intensa por trás. Pensei que gostaria de saber, pai.
- Gostaria de saber - repetiu Barras, quase como se não estivesse entendendo. - Ah, sim!
Ele fez uma pausa, antes de acrescentar, sardonicamente:
- Claro que lhe agradeço muito, Arthur. Não tenho a menor dúvida de que se antecipou a Armstrong em pelo menos 16 horas. O que é bastante satisfatório.
Arthur parecia consternado e magoado, os olhos viajando pelos padrões do tapete.
- Tudo seria diferente se tivéssemos as plantas das escavações da velha Neptune, pai. Poderíamos então saber com certeza. Acho terrível, pai, que eles não costumassem guardar as plantas naquele tempo.
A impassibilidade não deixara Barras em momento algum. Não podia escarnecer. E sua voz continha apenas um ligeiro toque de censura:
- Está um pouco atrasado em sua condenação, Arthur. Se tivesse nascido há 80 anos, não tenho a menor dúvida de que revolucionaria a indústria completamente.
Houve outro silêncio. Barras olhou para a carta inacabada em cima da mesa. Pegou-a, parecendo estudá-la com profunda admiração pelo estilo firme e elegante. Pensou por um momento numa nova frase, levantou a pena. Descobriu então que Arthur ainda estava parado junto da porta. Estudou Arthur deliberadamente, da mesma forma como estudara a carta. Gradativamente, a severidade foi se desvanecendo de seu rosto. Parecia quase divertido, até o máximo a que poderia chegar, quando disse:
- Seu interesse pela Neptune é bastante satisfatório, Arthur. E fico contente por constatar que você tem ideias a respeito de sua administração. Dentro de alguns anos, tenho certeza de que poderá estar dirigindo a mina... e amim!
Barras fez uma pausa. Se fosse capaz de rir de verdade, aquele seria o momento em que o teria feito.
- Até lá, sugiro que se limite às coisas elementares, deixando de lado os problemas mais complicados. E agora vá procurar aquele Fenwick e trate de meter um pouco de trigonometria nessa sua cabeça tola.
Depois que Arthur se retirou, consternado e um tanto envergonhado, Barras voltou a concentrar-se na carta de aceitação. Onde tinha de recomeçar? Como era mesmo a frase que imaginara? Ah, sim, era isso mesmo... E com a sua letra precisa e determinada, ele continuou: "Por mim mesmo..."
XXI
Os meses passaram rapidamente, o verão transformou-se em outono, o outono em inverno. A recordação de David da entrevista com Barras foi se tornando menos angustiante. Contudo, muitas vezes, quando pensava a respeito, ele não podia conter um sobressalto. Fora um tolo, um idiota presunçoso. Os trabalhos ainda prosseguiam na Scupper Flats, o contrato deveria estar cumprido até o Ano Novo. Suas visitas ao Law haviam cessado. Arthur prestara os exames e tirara o seu diploma com louvor.
E agora, com uma espécie de fúria, David se lançava a seus próprios estudos. Seu exame final para o B.A. seria a 14 de dezembro e tornara a decisão de conseguir uma aprovação de qualquer maneira, nem que precisasse se matar para isso. Fora ficando angustiado por adiar sucessivamente o exame. Fechara os ouvidos às súplicas e adulações de Jennie, seguira até o fim os cursos de correspondência e a cada 15 dias passava o fim de semana com Carmichael, em Wallington. Estava achando que se sairia muito bem e que era agora uma questão de garantir a aprovação.
Jenny tornara-se a pobre mulherzinha negligenciada... Jenny era sempre a pobre coitada quando exigia compaixão, beirando o patético. Queixava-se que não recebia «Visitas", não tinha amigas, embora procurasse por companhia, cultivando até mesmo a Sra. Chorou, que obviamente já era uma «Visita", pois aparecia sempre para receber o aluguel. Tudo correu muito bem, até que a Sra. Chorou levou Jenny a uma reunião. Jenny voltou da reunião muito chateada. David não conseguiu arrancar-lhe o que acontecera, exceto a informação de que fora tudo muito vulgar.
Como um último recurso, Jenny decidiu virar-se para a sua própria família, imaginando que talvez seria agradável que alguém viesse lhe fazer companhia. Mas quem? Não a mãe, desta vez, pois a mãe estava ficando tão gorda e pesada que passava o tempo todo sentada. Era peso morto demais na casa. Phyllis e Clarry não poderiam vir, pois as duas estavam trabalhando agora na Slatery e não podiam se ausentar. O pai também não podia. Além do mais, quando tinha alguns dias de folga, sempre aproveitava para devotá-los aos pombos. Um dia desses, o pai ia acabar se transformando num pombo!
Restava Sally. Sally não trabalhava na Slattery. Sally começara muito bem, trabalhando na estação telefónica de Tynecastle. Tudo ainda poderia estar muito bem com Sally, se ela continuasse na estação telefónica. Era um trabalho limpo e de classe, com todas as vantagens inerentes. Infelizmente, o pai jamais tirara de sua cabeça toda a ideia de que Sally tinha talento para o palco. Estava sempre levando-a a music-halls, encorajando-a a imitar as artistas de variedades, inscrevendo-a em concursos de sapateado, geralmente para bancar a tola. E como se isso não fosse suficiente, ele persuadira Sally a entrar num concurso de variedades no Empire. Aqueles concursos eram vulgares, toda a gentalha participava.
Era muito triste, mas Sally ganhara o concurso. E não apenas ganhara o primeiro prémio, mas também entusiasmara tanto a audiência vulgar da noite de sábado que a gerência lhe oferecera um contrato para toda a semana seguinte. Ao final da semana, Sally recebera a oferta de uma excursão de seis semanas pelo circuito norte Payne-Gould.
Mas por que, perguntava-se Jenny, desolada, por que Sally fora tola o bastante para aceitar o convite? Pois Sally aceitara o convite, largara o emprego de classe na estação telefónica e realizara o circuito de seis semanas. Claro que isso fora o fim de Sally, o fim absoluto e irremediável.
Já fazia quatro meses agora que Sally estava desempregada. Não havia mais circuito, não havia mais propostas, não havia mais nada. Quanto à estação telefónica, eles nem mesmo se dignavam a olhar mais para Sally. Era lamentável! Mas, afinal, a estação telefónica era um lugar de classe e não aceitava de volta as pessoas que haviam feito sujeira uma vez. Isso mesmo, suspirava Jenny, infelizmente a pobre Sally liquidou com todas as suas chances!
De qualquer maneira, ainda seria agradável ter a companhia de Sally, seria uma gentileza para a pobre coitada. Talvez Jenny tivesse um senso de condescendência complacente por trás da benevolência fraternal. Ela sempre quisera mostrar às pessoas.
Sally chegou a Sleescale ao final da terceira semana de novembro e foi recebida efusivamente pela irmã. Jenny mostrou-se deliciada, abraçando a querida Sally, cheia de "mas que coisa boa!" e "não é como nos velhos tempos?", cheia de confidências e risos, exibindo o quarto sobressalente recentemente mobiliado, providenciando água quente e toalhas limpas. Oh, minha cara, não é sensacional? David ficou satisfeito. Há muito tempo que não via Jenny tão feliz e excitada.
Mas a satisfação se desvaneceu comicamente depressa, as corridas para atender à irmã se tornaram tediosas, os risos silenciaram, toda a novidade da presença da querida Sally se acabou.
- Ela está mudada, David - anunciou Jenny tristemente, ao final da primeira semana. - Não é absolutamente a mesma moça. Nunca imaginei que pudesse ficar tão diferente...
David não achou que Sally estava mudada, a não ser que se tornara mais quieta e melhorada. Talvez a exuberância de Jenny a deixasse reprimida. Ou talvez fosse a ideia de que estava liquidada que arrefecia Sally. Ela perdera toda a sua petulância. Havia agora uma expressão pensativa em seus olhos. Ela fazia-se útil, saindo para fazer pequenos serviços, cuidando da casa. Não pedia para ser distraída e todas as providências e exibições de Jenny só serviam para deixá-la calada. Umas poucas vezes, na cozinha, sentada à mesa tosca, as pernas estendidas para o fogo alto, ela condescendia, no dizer de Jenny, em sair de dentro de si mesma. Punha-se então a falar, contando-lhes com um jeito franco e divertido as suas experiências no circuito Payne-Gould, as senhorias, os gerentes, os camarins cheios de traças, a sua própria inexperiência, nervosismo e equívocos. Nada tinha de pretensiosa. Podia parodiar os outros muito bem, mas parodiava ainda melhor a si mesma. Sua melhor história era lhe terrivelmente desfavorável, como fora um tremendo fiasco em fiasco... uma história que Jenny simplesmente adorava ouvir! Mas Sally contava jovialmente, sem qualquer vestígio de amargura. Era um tanto negligente consigo mesma. Jamais se incomodava com o tipo de sabonete que usava, sempre lavava o rosto com água fria, tinha bem poucas roupas. E ao contrário de Jenny, que estava sempre ajustando, costurando e passando suas roupas, mantendo-as nas melhores condições, Sally não cuidava das suas. Tinha um costume marrom de tweed e usava-o quase que o tempo todo. Como Jenny comentava, aquela coisa parecia que nunca deixava o corpo dela. Mas o método de Sally era comprar uma roupa, usá-la até o fim, depois comprar outra. Não tinha boas roupas, chapéus para o domingo ou roupas de baixo adoráveis. Usava calções de sarja, sapatos sem saltos. Era baixa e um tanto atarracada. Era muito feia.
Mas David gostava muito de Sally. A crescente petulância de Jenny começava a preocupá-lo novamente. Na noite de 19 de dezembro, no entanto, quando ele voltou da escola, Jenny recebeu-o com um ressurgir da animação antiga.
- Adivinha quem está em Sleescale? - perguntou ela, um sorriso a lhe iluminar o rosto.
Sally, pondo a mesa para o chá de David, disse tristemente:
- Buffalo Bill.
- Fique quieta! - exclamou Jenny. - Fala assim só porque não gosta dele, Miss Atrevida! Mas tenho certeza de que você jamais adivinharia, David. ÉJoe!
- Joe? - repetiu David. - Joe Gowlan?
- Isso mesmo! - Jenny sacudiu a cabeça efusivamente. - E como ele está bem! Fiquei tão aturdida quando o encontrei na Church Street que poderiam me derrubar com uma pena! Claro que eu não ia reconhecê-lo, pois não fiquei muito satisfeita com Joe Gowlan na última vez em que o vi. Mas ele se aproximou e falou comigo, na maior gentileza. Joe melhorou maravilhosamente.
Sally olhou para a irmã e perguntou:
- Vai ser carne fria para o chá de David?
- Não, não - murmurou Jenny, distraidamente. - Será apenas um chá simples esta noite. Guardaremos a carne para depois. Convidei Joe a nos visitar. Sabia que você gostaria de vê-lo, David.
- Mas é claro que sim!
- Não que eu esteja muito ansiosa em vê-lo, diga-se de passagem. Mas eu não gostaria que Mr. Joe Gowlan pensasse que é o único que está bem na vida. vou mostrar algumas coisinhas a Mr. Joe, com minha porcelana azul, os guardanapos de rendas, a carne fria e todo o resto. É uma pena que não seja o bacalhau que comemos ontem, pois então eu poderia exibir a minha nova carne de peixe. Mas não importa. Pedirei emprestadas as facas da Sra. Chorou e Mr. Joe vai ver só uma coisa!
- Por que não aproveita e contrata também um mordomo? - disse Sally suavemente.
Jenny corou. A jovialidade desapareceu de seu rosto. Virou-se para Sally e disse:
- Está sendo muito ingrata, logo você, que fica na minha casa, me falando desse jeito. Isso é demais. Acho que é um absurdo você ficar me criticando só porque convidei um cavalheiro a vir jantar em minha própria casa. E depois de tudo o que fiz por você! Volte para a sua casa, mocinha, se não está satisfeita aqui!
- Voltarei mesmo, se é isso o que você está querendo. E Sally foi providenciar o chá de David.
Joe apareceu por volta das sete horas. Usava o terno marrom-claro, o relógio de corrente, o chapéu-coco impressivo, um ar de afável simplicidade. Não se mostrou arrogante, exuberante ou presunçoso, não se mostrou coisa alguma que David pudesse temer. Na verdade, Joe fora forçado a voltar para casa. Embora o próprio Joe jamais encarasse a coisa por esse ângulo, ele estava numa situação difícil, no mato sem cachorro. Em termos simples, Joe estava desempregado. Remoía em sua mente a ideia de voltar à Millington. Afinal, Stanley Millington não prometera ajudá-lo? Isso mesmo, ele voltaria à Millington. Mas não agora, ainda não. Havia algo mais, uma coisa na mente de Joe que absolutamente não lhe agradava. Joe estava preocupado consigo mesmo, preocupado com alguma coisa. Oh, Deus, como um homem podia bancar o tolo! Mas talvez não fosse nada importante, talvez não fosse absolutamente nada, no final das contas.
O efeito geral de sua incerteza física e espiritual era envolvê-lo com um ar de virtude reprimida, projetá-lo como um homem que finalmente voltara para visitar o pai idoso e modestamente era reticente em relação a seus sucessos óbvios na vida. E ele estava imensamente satisfeito por rever David, profundamente comovido por tornar a se encontrar com seu "velho companheiro"!
Em relação a Jenny, Joe mostrou-se humilde, arrependido, retraído. Elogiou a porcelana, os panos de rendas, o vestido, a comida. Comeu bastante, ainda mais para alguém acostumado a dietas mais requintadas que carne fria e ervilhas. Estava impressionado, imensamente impressionado, pela melhoria na posição social de Jenny.
E ele repetia a todo instante:
- Por Deus, devo dizer que as coisas aqui estão muito melhores do que na Scottswood Road.
As maneiras dele eram agora mais refinadas. Não costumava mais ficar catando as ervilhas soltas com a faca. E servia às mulheres. Estava mais bonito do que nunca e seu tom era quase reverente.
Jenny foi se derretendo, esquecendo a boa educação formal que pretendera exibir inicialmente. Tornou-se brejeira, jovial, condescendente, loquaz.
Não que Joe falasse muito com Jenny. Nada disso. Era evidente que Joe tinha agora pouco tempo para as "mulheres". Seu interesse por Jenny era apenas amistoso e polido. Quanto a Sally, nem chegava a olhá-la. Joe estava inteiramente concentrado em David, cheio de perguntas, interesse e admiração. Era sensacional que David fosse prestar o seu exame para o B.A. dentro de duas semanas, aqueles fins de semana de estudo com Carmichael eram certamente muito proveitosos. Sempre estudioso e inteligente, não é mesmo, Davey, meu velho? Joe e David conversaram por muito tempo depois do jantar. Jenny ficou entrando e saindo da sala, a todo instante, cantarolando alegremente, indagando graciosamente se não queriam alguma coisa. Sally estava lavando a louça, com alguma irritação.
- Foi um prazer tornar a vê-lo - disse David, quando Joe finalmente levantou-se para ir embora.
- O prazer é todo meu em tornar a vê-lo, meu velho - disse Joe. - Não pode imaginar como isso me deixa feliz. Passarei uma ou duas semanas aqui e espero podermos nos encontrar outras vezes. Vamos, acompanhe-me até a rua. Ainda é cedo. Por falar nisso...
Joe fez uma pausa, mexendo na corrente do relógio, um brilho divertido nos olhos.
- ... quase que eu ia esquecendo, Davey. Fiquei inteiramente desprevenido esta tarde, quando dei ao velho uma porção de coisas que ele estava precisando. Acho que me senti generoso por tornar a vê-lo. Não poderia me emprestar umas duas libras... só até eu receber o aviso do banco? Quero apenas duas libras.
- Duas libras. .. Joe?
David ficou olhando para Joe, completamente aturdido.
- Ora, não importa! - O sorriso de Joe desapareceu, ele parecia ofendido, magoado, amizade e decência ultrajadas, tudo aparecendo no rosto brilhante. - Não tem importância se você não quer. .. não é nada para mim... arrumarei com outra pessoa. ..
- Joe...
A expressão magoada de Joe penetrou fundo em David, fê-lo sentir-se mesquinho, horrível. Ele tinha cerca de dez libras na arca do quarto, um dinheiro guardado para as suas despesas com o exame. Não fora fácil economizar todo aquele dinheiro. David disse abruptamente:
- Claro que lhe emprestarei o dinheiro, Joe. Espere um pouco... David subiu correndo, pegou três libras e voltou para oferecer a Joe.
- Obrigado, Davey. - A crença de Joe na humanidade estava restaurada. Ele estava radiante. - Eu tinha certeza de que você ajudaria a um velho companheiro. E só terá de esperar até o fim da semana.
Ao subirem juntos pela rua, Joe inclinou um pouco o chapéu. Seu boanoite para David soou como uma bênção.
David desceu pela Cowpen Street. Tencionara visitar o pai naquela noite, mas já eram quase 10 horas. Joe ficara por mais tempo do que ele esperava e Martha se mostrava contrafeita quando ele aparecia tarde, como se isso lhe fosse uma desfeita. David seguiu pela Freehold Street, pretendendo cortar caminho pela Bethel Street. Subitamente, avistou o irmão Hughie aproximando-se pela escuridão, correndo depressa de calção e camiseta. David chamou:
-Hughie! Hughie!
Ele teve de chamar depressa, pois Hughie já estava se afastando rapidamente. Hughie parou e veio ao encontro dele. Embora tivesse corrido cinco quilómetros, sua respiração era regular. Estava em perfeitas condições físicas. Ao ver que era David, ele soltou um grito e prontamente abraçou-o.
- Davey, seu patife! David desvencilhou-se.
- Pelo amor de Deus, Hughie, pare com isso! Mas Hughie estava incontrolável.
- Aconteceu, Davey! Finalmente aconteceu! Já sabia? A carta chegou esta tarde. Recebi-a quando saí da mina. Eles me convidaram. Não é sensacional, Davey?
- Convidaram para o quê, Hughie? - perguntou David, aturdido.
Ele nunca vira Hughie assim, jamais... E se não o conhecesse bem, seria capaz de jurar que Hughie estava embriagado.
O calado Hughie estava mesmo embriagado, inebriado de prazer.
- Convidaram-me para jogar por Tynecastle! Pode acreditar numa coisa dessas? Estavam assistindo à partida do último sábado e eu nem sabia... e marquei três gois... Agora, eles me convidaram para fazer uma experiência com os reservas, em St. James's Park, no sábado. Deus do céu, não é sensacional? Se eu fizer tudo certo, Davey, vou ser contratado... contratado pelo United, Davey! Pelo United!
A voz de Hughie estava estridente, alcançando auges delirantes. David podia compreender. Ali estava, finalmente, o que Hughie tanto ansiara, tanto sonhara, a realização do sonho impossível. Não fora por nada que Hughie se martirizara por tanto, tempo, levando uma vida austera, resistindo aos olhares sedutores que tantas vezes o procuravam na Lamb Street, nas noites de sábado. Subitamente, David sentiu-se contente, uma onda de felicidade genuína invadiu-o. Estendeu a mão, dando os parabéns.
- Não pode imaginar como me sinto satisfeito, Hughie.
Como as palavras eram comicamente insuficientes para exprimir toda a alegria intensa que ele sentia naquele momento! Hughie continuou a falar:
- Estavam de olho em mim há meses. Já lhe contei isso? Não sei direito o que estou falando. Mas pode ter certeza de uma coisa: jogarei a melhor partida da minha vida no sábado. Oh, Davey, não é maravilhoso?
Esse último êxtase pareceu fazer com que Hughie recuperasse o controle. Ele ficou vermelho, lançou um olhar furtivo para David e acrescentou:
- Estou tão feliz esta noite que nem sei direito o que falo. É a emoção.
- Ele fez uma pausa. - Vai assistir à partida, Davey?
- Pode estar certo de que não a perderia de jeito nenhum, Hughie. Hughie sorriu, o seu velho sorriso tímido.
- Sammy também vai. Ele disse que vai me torcer o pescoço se eu não marcar pelo menos seis gols. - Hughie se balançou por um instante nos calcanhares, em seu estilo familiar. - É melhor eu ir embora. Não quero pegar um resfriado. Não posso correr qualquer risco agora. Boa-noite, Davey.
- Boa-noite, Hughie.
Hughie partiu, correndo, logo desapareceu na escuridão da noite.
David voltou para casa, sentindo-se feliz e animado. Entrou em casa. Sally estava sozinha, sentada numa cadeira, com as pernas debaixo do corpo, os lábios contraídos, diante do fogo. Parecia muito pequena e silenciosa. Depois da exultação de Hughie, o contraste fez com que ela parecesse muito triste para David.
- Onde está Jenny?
- Já foi deitar. -Oh!
David fez uma pausa, desapontado. Queria contar imediatamente a Jenny o que acontecera com Hughie. Depois, tornando a sorrir, ele contou a Sally.
Encolhida ali, ela estudou-o, observando-o atentamente com o seu rosto meio encoberto pela sombra da mão.
- Não é sensacional? - arrematou David. - Não é tanto pelo que ele conseguiu. .. mas porque sempre esteve tão determinado a conseguir...
Ela suspirou. Ficou calada. E, depois de um momento, disse:
- Tem razão, é sempre bom se conseguir o que se quer. David observou-a atentamente.
- O que há com você?
- Nada.
- Não parece ser nada. Você dá a impressão de estar transtornada.
- É que fui um tanto estúpida - disse Sally, lentamente. - Pouco antes de você voltar, tive uma briga com Jenny.
David desviou os olhos rapidamente.
- Lamento muito que isso tenha acontecido.
- Não precisa se lamentar. Não foi a primeira vez e acho que isso já estava para acontecer há muito tempo. Eu nem deveria lhe contar. Seria melhor que bancasse a nobre e fosse embora amanhã, com um sorriso, polida e abnegada.
- Vai embora amanhã?
- Isso mesmo. Já está na hora de eu voltar para Alfred. Ele não tem um lugar na casa e cheira a pombos. Mas, apesar de tudo isso, ainda prefiro a companhia do velho Alfred.
Ele disse:
- Eu gostaria de saber qual foi o problema. Ela disse:
- Fico contente que não saiba. David fitou-a, aturdido.
- Não me agrada que vá embora desse jeito. Por favor, Sally, fique mais um pouco.
- Preciso ir. Não trouxe uma só muda de lingerie.
Ela soltou uma risada curta e depois desatou a chorar. David não sabia o que fazer.
Sally parou de chorar um instante depois. E disse:
- Não dê muita importância. Ando meio transtornada desde que tive aquele fiasco no ato da prima-dona. E não quero qualquer compaixão. É melhor ter tentado e fracassado, do que jamais haver tentado. Já estou melhor agora e acho que vou me deitar.
- Mas eu sinto muito, Sally.
- Cale-se! Já está na hora de deixar de sentir pena dos outros e começar a sentir pena de si mesmo.
- Mas por que eu deveria sentir pena de mim mesmo?
- Por nada. - Sally levantou-se. - Já é tarde demais para essas conversas. Eu lhe contarei pela manhã.
Abruptamente, Sally disse boa-noite e foi se deitar.
David não a viu na manhã seguinte. Ela se levantara cedo e partira no trem das sete horas.
Durante o dia inteiro, David ficou preocupado com Sally. Falou com Jenny ao voltar da escola.
Jenny soltou a sua risadinha complacente típica.
- Ela está com ciúme, meu querido, apenas com ciúme.
David ficou irritado.
- Oh, não! Estou convencido de que não é isso. Ela acenou com a cabeça indulgentemente.
- Ela sempre estava de olho em você, mesmo nos tempos da Scottswood Road. Detestava ver que você me preferia. E sua raiva por causa disso é ainda maior agora. - Jenny fez uma pausa, sorrindo-lhe. - Ainda está apaixonado por mim, não é mesmo, David?
Ele fitou-a de maneira estranha, com uma expressão fria e insólita nos olhos.
- Eu ainda a amo, Jenny. Sei que é cheia de defeitos... assim como eu também sou. Há ocasiões em que você diz e faz coisas que eu detesto. Às vezes, eu não consigo nem suportar. Mas também não posso fazer nada. Eu a amo.
Jenny não tentou compreendê-lo, mas considerou que os comentários, no todo, eram-lhe favoráveis.
- Isso é maravilhoso - disse ela, brejeiramente, voltando a se concentrar em sua novela.
David não estava acostumado a analisar seu sentimento por Jenny. Simplesmente aceitava-o. Mas dois dias depois, na sexta-feira seguinte, ocorreu um incidente que o deixou estranhamente perturbado.
De um modo geral, ele não deixava a escola antes das quatro horas da tarde. Mas nesse dia em particular, Strother apareceu às três horas para "dar sua aula". Strother tinha o hábito de dar uma aula a cada turma uma vez por semana, a fim de verificar o progresso dos alunos, fazendo depois comentários enérgicos e incisivos na presença de todos. Ultimamente, no entanto, Strother vinha sendo bastante gentil com David, desde que ele passara a se empenhar tão arduamente para conquistar o B.A. Strother disse-lhe bruscamente, embora não sem alguma simpatia, que podia ir embora.
E David foi. Passou primeiro pela barbearia de Hans Messuer, para cortar os cabelos. Enquanto Hans, um homem gordo, manso e risonho, com um bigode com as pontas viradas para cima, como o do Kaiser, cortava-lhe os cabelos, David conversava com Swee, que acabara de deixar a Neptune e estava se barbeando lá atrás. Era uma conversa jovial, que nada tinha de edificante. Swee era sempre jovial e podia ser extremamente insípido. Podia barbear-se e falar, ser jovial e insípido, tudo ao mesmo tempo, sem sofrer qualquer talho. A conversa com Swee deixou David num ótimo ânimo, mas durou apenas meia hora. Ele chegou em casa às três e meia, ao invés de quatro e quinze, como normalmente acontecia. Ao subir pelo caminho por trás das Dunas, ele avistou Joe Gowlan saindo de sua casa.
David parou. Ficou absolutamente imóvel. Não vira Joe desde que lhe emprestara o dinheiro. Experimentou uma estranha sensação ao ver Joe saindo de sua casa, como se fosse dele. E a sensação tornou-se de intenso constrangimento, especialmente porque Joe também parecia embaraçado.
- Pensei ter deixado minha bengala na sua casa na outra noite - explicou Joe, olhando para toda parte, menos para David.
- Você não estava com uma bengala, Joe.
Joe soltou uma risada, olhando para um lado e outro do caminho. Talvez pensasse que a bengala estivesse por ali.
- Eu tinha uma bengala... sempre a levava a toda parte... devo ter perdido em algum lugar...
Apenas isso. E Joe acenando com a cabeça, sorrindo, afastando-se, afastando-se apressadamente, para escapar.
David subiu pelo caminho e entrou em casa, pensativo.
- Jenny, o que Joe estava querendo aqui?
- Joe?
Ela fitou-o rapidamente, ficou vermelha.
- Acabei de encontrá-lo... saindo desta casa.
Jenny ficou imóvel no meio da sala, parecendo perdida, desnorteada. E depois explodiu.
- Não posso fazer nada se você o encontrou. Não sou a guardiã dele. Ele apenas passou aqui por um minuto. Por que está me olhando desse jeito?
- Nada - disse David, virando-se.
Por que Jenny não dissera nada a respeito da bengala?
- Nada o quê? - insistiu ela, com a maior veemência.
David olhou pela janela. Por que Joe aparecera numa hora em que era provável que ele estivesse na escola? Por quê? Subitamente, uma explicação ocorreu-lhe: a hora estranha da visita de Joe, o nervosismo de Joe, sua pressa em afastar-se, tudo enfim. Joe lhe pedira três libras emprestadas e ainda não podia pagar!
O rosto de David iluminou-se e ele virou-se novamente para Jenny.
- Joe veio procurar sua bengala... não foi isso?
- Foi, sim! - gritou ela, quase histericamente, jogando-se nos braços dele. - Claro que foi isso! Por que outro motivo ele viria aqui?
David afagou-lhe os cabelos sedosos e maravilhosos.
- Desculpe, Jenny querida. É que tive uma sensação esquisita ao vê-lo sair de minha casa como se lhe pertencesse.
- Oh, David - soluçou Jenny - como pode dizer uma coisa dessas? O que ele dissera? David sorriu, roçou os lábios no pescoço de Jenny. Ela suplicou:
- Não está zangado comigo, David?
Por que ele deveria ficar zangado com ela?
- Claro que não, minha querida.
Tranquilizada, Jenny levantou o rosto e beijou-o. Foi meiga com ele pelo resto do dia, extremamente meiga. Levantou cedo na manhã seguinte, um sábado, a fim de servir-lhe um chá. Ao vê-lo pegar a bicicleta a fim de ir passar o fim de semana com Carmichael, Jenny agarrou-se a ele, não queria deixá-lo ir embora.
Mas acabou largando-o, depois de um último abraço. Tornou a entrar na casa, cantarolando alegremente, satisfeita porque David a amava, satisfeita consigo mesma, satisfeita com o fim de semana de liberdade que tinha à sua frente.
Claro que não deixaria Joe vir jantar naquela noite, não sonharia sequer em tal coisa, fora muita desfaçatez de Joe ao menos sugerir. Para conversar sobre os velhos tempos, dissera ele. E como se poderia acreditar em tal coisa? Ela nem mesmo se dera ao trabalho de contar a David sobre a impertinência de Joe. Não era o tipo de coisa que uma dama pudesse mencionar.
Naquela tarde, Jenny fez um passeio até a cidade. Parou diante da Murchinson's, indecisa, acabando por concluir que era sempre uma boa coisa para se ter em casa. Entrou e elegantemente encomendou uma garrafa de porto, para ser entregue naquela mesma tarde, por favor, Mr. Murchinson. Jenny sabia que David não gostava. Mas David vinha se mostrando muito intransigente ultimamente. Além do mais, David estava ausente, nunca saberia. Como era mesmo o ditado antigo? O que os olhos não vêem, o coração não sente. Muito bom, não é mesmo? Sorrindo um pouco, Jenny voltou para casa, mudou o vestido, passou perfume atrás das orelhas, como se recomendava em Home Chat, fez-se bonita, mesmo que apenas para ela própria.
Joe bateu na porta às sete horas. Jenny foi atender imediatamente. E declarou, chocada:
- Mas como se atreve, depois de tudo o que eu disse?
- Ora, Jenny, pare com isso - murmurou Joe, insinuantemente. - Não seja tão dura com um pobre homem.
- Pois a minha ideia é não deixá-lo entrar!
Mas ela deixou-o entrar. E não deixou-o sair até que já era tarde demais. Estava afogueada, perturbada, um tanto encabulada. Ria a todo instante. O porto tinha acabado.
XXII
No dia seguinte, domingo, 7 de setembro, Jack Reedy, o mais velho dos irmãos Reedy, e seu companheiro, Chá Leeming, estavam trabalhando em Scupper Flats, num turno extra, a fim de se poder completar o contrato da P. W. Robert estava no mesmo turno, embora num nível muito mais acima da Scupper, no alto da inclinação. Sua galeria não era boa. A galeria de Reedy e Lemming era boa, a cerca de dois quilómetros e meio do fundo do poço. Às cinco horas, o turno interrompeu o serviço e saiu do poço. Reedy e Chá Leeming, antes de saírem, deixaram um bloco cheio de carvão a ser extraído na frente da galeria. Poderiam encher cinco ou seis vagonetes com aquele carvão quando o bloco fosse derrubado. Era carvão de primeira e seria fácil extraí-lo, quando voltassem, na manhã seguinte.
Satisfeitos, Jack Reedy e Chá passaram pelo Salutation para tomarem um trago, antes de voltarem para casa. Jack tinha algum dinheiro. Como era a noite de domingo, eles tomaram vários drinques e depois mais outros. Jack ficou alegre e Chá estava inebriado. De braços dados, subiram para os Terraços, cantando. Foram para a cama. Na manhã seguinte, dormiram demais. Mas nenhum dos dois percebeu a importância de não conseguirem acordar a tempo até mais tarde.
Às três e meia da madrugada de segunda-feira, Dínning, o subinspetor encarregado do distrito, entrou na seção da Paradise e examinou as escavações. Sempre fazia isso, antes de admitir o pessoal do turno da manhã. De bastão na mão, cabeça baixa, Dinning percorreu diligentemente a Mixen e Scupper Flats. Tudo parecia satisfatório e Dinning voltou ao seu posto na entrada da Scupper, escrevendo o seu relatório regular.
O pessoal do turno entrou na mina. 105 pessoas, 87 homens e 18 garotos. Dois homens do turno, Bob Ogle e Tally Brown, foram falar com Dinning.
- Jack e Chá dormiram demais - disse Bob Ogle.
- Mas que diabo! - exclamou Dinning.
- Tally e eu podemos ficar com aquela galeria? - perguntou Bob. - A que temos não vale nada.
- Está bem.
Ogle e Brown foram para a entrada do poço junto com um bando de homens, entre os quais estavam Robert, Hughie, Slogger Leeming, Harr Brace, Swee Messer, tom Reedy, Ned Softley e Jesus Chorou. O irmão mais moço de tom Reedy, Pat, um garoto de 15 anos, cuja primeira semana no interior da mina ainda não acabara, seguiu-os.
Robert estava animado. Sentia-se bem e esperançoso. Dormira profundamente, a tosse não o estava incomodando muito. Nos últimos meses, com uma intensa sensação de alívio, chegara à conclusão de que seus temores de inundação eram infundados. Enquanto subia pela escuridão do túnel inclinado, que era baixo e estreito, com pouco mais de 1 ,20m de altura, 200 metros abaixo da superfície e a três quilómetros do poço principal, ele descobriu-se ao lado do pequeno Pat Reedy, o mais moço da tribo dos Reedys.
- Ei, Pat, este é o melhor lugar que poderia encontrar para as suas férias! - gracejou Robert, procurando encorajá-lo.
Ele bateu afavelmente nas costas de Pat, entrou no declive conhecido como Swelly e seguiu para a sua galeria, junto com Slogger. A galeria estava mais seca do que nas últimas semanas.
Ogle e Brown já estavam em sua nova galeria. Encontraram o bloco deixado por Jack e Chá. Começaram a trabalhar, perfuraram dois buracos de tiro de um metro no bloco, outro com a mesma profundidade à direita. Faltavam 15 minutos para as cinco horas quando Dinning apareceu. Colocou as cargas e disparou os tiros. Oito blocos de carvão caíram.
Dinning constatou que os tiros haviam sido bem disparados e que o veio de carvão era dos melhores.
- com todos os diabos, rapazes - disse ele, acenando com a cabeça, num gesto de satisfação - este é bom demais.
E ele voltou ao seu posto na entrada da Scupper. Mas dez minutos depois tom Reedy veio procurá-lo, dizendo em tom de urgência:
- Ogle diz que é melhor ir até lá. Está saindo água pelos buracos dos tiros.
Dinning pensou por um momento.
- com todos os diabos!
tom Reddy e Dinning voltaram à galeria. Dinning examinou a parede, deu uma boa olhada. Descobriu um filete de água saindo entre dois tiros que disparara. Parecia não haver qualquer pressão por trás. Ele cheirou a água. Tinha um cheiro ruim, o que indicava água de poço estagnada. Ele sabia que não era água de carvão virgem. Não gostou absolutamente da situação.
- com todos os diabos, rapazes! - disse Dinning, preocupado. - Vocês fizeram o buraco. Agora, é melhor tentarem se livrar de um pouco dessa água.
Ogle, Brown e tom Reedy começaram a tentar canalizar a água para a calha de escoamento no lado do túnel de acesso. Nesse momento, Geordie Dinning, que era o filho de Dinning e trabalhava junto com tom Reedy como apanhador de carvão na Scupper Flats, apareceu na galeria.
- Venha comigo, Geordie - gritou Dinning.
Embora Dinning normalmente precedesse qualquer frase com a expressão "com todos os diabos", pronunciada quase que inconscientemente, nunca a dizia na presença do filho, por mais estranho que pudesse parecer.
Dinning seguiu com o filho de volta a seu posto. No caminho,, ele pensou em usar o telefone que havia lá embaixo. Mas o telefone ficava um pouco longe e ainda era cedo, ele receava que Hudspeth ainda não tivesse aparecido. Além do mais, Dinning não era muito bom em questões de pensar. Chegando a seu posto, ele pegou um coto de lápis-tinta e escreveu dois bilhetes.
Escreveu bem devagar, de vez em quando umedecendo a ponta do lápis na língua. O primeiro bilhete dizia o seguinte:
Mr. Hudspeth, Supervisor, Prezado Senhor,
Apareceu água na Seção Nº 6 da Scupper e está cobrindo as botinas e mais água está saindo e vai chegar a um ponto que as bombas não vão dar jeito. Pode descer para ver tudo e eu estarei esperando no posto em Paradise ou então na Mixen. P.S. Há um perigo muito grande de inundação. Atenciosamente, H. Dinning.
No segundo bilhete, Dinning escreveu o seguinte:
A água rompeu pela Seção Nº 6 da Scupper. Frank avisará os outros homens na Paradise, caso aconteça alguma coisa. Atenciosamente, H. Dinning.
Dinning virou-se para o filho. Era um homem lerdo, de pensamento lento, falar arrastado. Mas agora falou muito mais depressa do que o habitual, dizendo:
- Geordie, corra para Frank Logan, o capataz, entregue-lhe este bilhete. Depois saia da mina e vá à casa do supervisor para levar este outro bilhete. E agora corra, Geordie, corra de verdade.
Geordie partiu com os dois bilhetes. E foi bem depressa. Ao chegar à junção dos dois túneis, Geordie procurou pelo capataz. Mas o capataz não estava ali. Foi nesse momento que Geordie ouviu um baque surdo e sentiu que a corrente de ar se invertia. Geordie sabia que isso significava algum problema na Scupper Flats. E sabia que queria sair da mina. Mas o pai lhe dera uma ordem. Indeciso, Geordie começou a subir pelo túnel da Paradise.
Subitamente, do meio da escuridão, quatro vagonetes carregados vieram descendo em sua direção. Os vagonetes haviam se soltado lá de cima. Geordie gritou. Ele pulou um segundo tarde demais. Os vagonetes derrubaram-no, arrastaram-no por cerca de 20 metros, passaram por cima, deixaram o corpo mutilado no túnel. E seguiram adiante, ruidosamente.
Depois que o filho partiu, Dinning ficou pensando por um momento, convenceu-se de que fizera o que deveria. E depois ouviu um estouro alto, o mesmo barulho que o filho escutara, só que bem mais perto. Subitamente aterrorizado, Dinning ficou boquiaberto. Esperava problemas, mas não tão depressa ou tão terríveis assim. Sabia que era um jorro de água. Virou-se instintivamente para Flats e foi avançando. Mas não percorrera dez metros quando avistou a água correndo em sua direção. A água vinha pela altura do teto, ruidosamente. E, na água, estavam os corpos de Ogle, Brown e dez outros homens. O gás na frente da água apagou o lampião de Dinning. Por dois segundos, enquanto ficava parado ali, na mais total escuridão, esperando pela água, Dinning pensou: com todos os diabos, fico contente que tenha mandado Geordie sair do poço! Mas Geordie já estava morto. E no instante seguinte a água envolveu Dinning. Ele lutou, debateu-se, tentou nadar. Foi em vão. O corpo afogado de Dinning aumentava para 14o número de mortos que já havia na inundação de Scupper Flats.
Frank Logan, o capataz da Paradise, não recebeu o bilhete de Dinning. O bilhete estava caído na escuridão, coberto com algum sangue, na mão completamente decepada de Geordie Dinning. Mas Frank também ouviu o impacto distante e um minuto depois sentiu a água descendo pela encosta. Sabia agora, sem ter recebido o bilhete, que água penetrara nas escavações. Havia 15 homens trabalhando perto dele. Frank ordenou que dois homens descessem rapidamente pelo túnel de ar, para avisar aos homens que estavam trabalhando nos níveis inferiores da Paradise. Recomendou aos outros 13 homens que subissem para a superfície pelo poço principal, percorrendo uma distância aproximada de um quilómetro e meio. Mas o próprio Frank ficou ali. Sabia que as escavações da Scupper eram as mais profundas da Paradise. Sabia que eles seriam os primeiros a serem atingidos pela inundação. Por causa disso, ele começou a descer, para alertar os 18 homens que estavam lá embaixo. Esses homens já tinham morrido afogados antes mesmo que ele começasse a descer. E Frank Logan nunca mais foi visto vivo.
Os 13 homens que seguiam para a superfície, os homens que o capataz Frank Logan mandara sair, alcançaram o Atlas Drift. Hesitaram ali por um momento, realizaram uma rápida conferência. O Atlas era o túnel que ligava a Paradise com a Globe Coal, que era o veio imediatamente superior. Chegaram à conclusão de que era mais provável não haver água num nível superior, que seria mais seguro alcançar o poço principal pela Globe Coal. E subiram pelo Atlas para a Globe Coal. Ali, encontraram alguns pedreiros que estavam trabalhando no túnel principal dos vagonetes e não tinham a menor ideia do que estava acontecendo, até que houvera a inversão do ar. Os pedreiros ficaram aturdidos, puseram-se a falar por um minuto, depois escutaram por um minuto, sem saberem se deveriam correr para a superfície ou ficar. Mas decidiram agora sair da mina, acompanhando os 13 homens que haviam subido pelo Atlas Drift. E seguiram todos pelo túnel de transporte da Globe Coal, na direção do poço principal.
Três minutos depois, o fluxo de água desceu pelo túnel de transporte da Paradise, subiu pelo Atlas Drift, entrou pelo túnel de transporte da Globe Coal. Os homens ouviram o ruído da água e começaram a correr. O caminho era bom, com bastante espaço para se levantar a cabeça, o chão socado. Todos os homens eram jovens, capazes de correrem bem depressa. E alguns jamais haviam corrido tão depressa em todas as suas vidas.
Mas a água corria ainda mais depressa. A velocidade da água era terrível. Perseguiu-os com uma ferocidade animal, arremeteu sobre os homens com a velocidade e inevitabilidade de um maremoto. Num momento não havia água na Globe Coal, no instante seguinte a água envolveu-os por completo.
E a água seguiu em frente, chegou ao poço principal, começou a descer, num volume terrível. Ocorreu agora o encontro das águas. A água que cascateava da Globe Coal juntou-se à água no fundo da Paradise. Houve um repuxo das águas, que turbilhonaram sobre os homens que estavam abrigados lá embaixo, afogando-os rapidamente. A água espumou em torno dos estábulos, inundou as baias.
Os únicos quatro póneis ainda vivos estavam nas baias, Nigger, Kitty, Warrior e Ginger, todos relinchando de terror. Warrior desferiu coices contra a água e enlouqueceu na baia, quase quebrando o pescoço antes de morrer afogado. Mas os outros ficaram parados, relinchando, relinchando, até que a água cobriu-os. A esta altura, a água já subira pelos dois poços principais, fechando tanto a Globe como a Paradise, impedindo todo acesso das galerias à superfície.
A rapidez da calamidade era inacreditável e mortal. Menos de 15 minutos haviam transcorrido desde o instante da invasão da água e já havia 89 mortos, de afogamento, violência ou sufocamento pelo gás.
Mas Robert e seus companheiros ainda estavam vivos. Estavam muito abaixo da superfície, no alto do túnel, o fluxo da água passou longe deles.
Robert ouviu o baque surdo quando aconteceu e 50 segundos depois sentiu a inversão do ar. E compreendeu. Pensou no mesmo instante: Santo Deus, aconteceu! Ao seu lado, na galeria, Slogger Leeming levantou-se lentamente.
- Ouviu isso, Robert? - disse Slogger, atordoado, procurando instintivamente a opinião de Robert.
Robert disse rapidamente:
- Mantenha todo mundo aqui até eu voltar. Todo mundo!
Ele saiu da galeria, foi descendo pelo túnel da Scupper, ouvindo o barulho infernal da água a se despejar nas escavações. Pisava na água, as botinas afundando cada vez mais, a água subindo aos joelhos, à cintura. Sabia que devia estar próximo de Swelly, a depressão que corria de norte para sul, passando pelo túnel principal da Scupper. Perdeu subitamente o equilíbrio e caiu na profundidade de Swelly. A água levantou-o, até que sua cabeça bateu no teto do túnel. Agarrou-se ao teto com as mãos, bateu com as pernas na água, fez um esforço para voltar pelo caminho por que viera. Desceu para o chão do túnel, foi avançando com a água pelo peito, cintura, joelhos. Tremia de frio. Sabia exatamente o que acontecera. O fluxo de água cobria o Swelly. Por 50 metros, uma barreira de água bloqueava o túnel. Todos os caminhos de fuga estavam cobertos de água até o teto, ao passarem pelo Swelly.
O frio da água fez Robert tossir. Ele parou, tossindo por um minuto, depois tornou a subir pela inclinação, esbarrando em Pat Ready no meio do caminho. Pat estava apavorado.
- O que aconteceu?
- Não foi nada, Pat - respondeu Robert. - Venha comigo.
Robert e Pat alcançaram o alto da inclinação, onde encontraram os outros homens remanescentes, reunidos em torno de Slogger Leeming. Eram dez homens no total, entre os quais Hughie, Harry Brace, tom Reedy, Ned Softley, Swee Messer e Jesus Chorou. Estavam todos esperando por Robert. Embora não pudessem saber, eram os únicos sobreviventes na Neptune.
- Como está, Robert? - perguntou Slogger, quando Robert se aproximou, observando-o atentamente.
- E você, Slogger, como está?
Robert fez uma pausa. Sabia que devia fazer com que tudo o que falasse parecesse normal e perfeitamente razoável. Torceu a água do casaco, enquanto acrescentava:
- Fizeram um buraco por lá e deixaram entrar um pouco de água no Swelly. Mas estamos alto o bastante para não precisarmos nos preocupar com isso. E temos de encontrar outro caminho de saída.
Silêncio. Todos sabiam o bastante para ficarem calados. Mas tom Reedy perguntou:
- Quer dizer que não podemos passar pelo Swelly? Slogger virou-se para ele, furioso.
- Cale a boca, seu palerma. E continue calado até que seja convidado a abri-la.
Robert continuou, como se nada tivesse acontecido:
- vou dizer o que temos de fazer, rapazes. Vamos seguir pelo túnel de ventilação até a Globe e sair da mina pela Globe.
Mantendo Pat Reedy perto dele, Robert seguiu na frente pelo túnel de ventilação. Todo o grupo foi atrás, à exceção de tom Reedy. tom era um esplêndido nadador. Sabia que era um esplêndido nadador, tanto por cima como por baixo da água, sabia que podia passar pelo Swelly. E depois de passar pelo Swelly, seria fácil chegar à superfície. Poderia entrar e trazer ajuda e mostraria a Slogger quem era o palerma. tom ficou para trás, até que os outros desapareceram. Desceu correndo a inclinação, tirou as botinas, respirou fundo e entrou no Swelly. Passou pelo Swelly. Mas o que tom não contava era com os dois quilómetros e meio de água além do Swelly. No outro lado, foi apanhado pelo fluxo principal da água. tom acabou saindo da mina. Cinco minutos depois, seu corpo saiu pelo poço de desaguamento da mina.
Robert seguiu em frente, rastejando, levando seu grupo pelo túnel de ventilação. Sabia que deviam estar perto da Globe. Subitamente, seu lampião apagou-se, como se fosse soprado por uma brisa suave. Ao mesmo tempo, Pat Reedy tossiu, ficou quieto ao seu lado. Não era água desta vez. Grisu.
- Vamos voltar - disse Robert. - Voltem todos.
O grupo voltou, por 40 metros, ajudaram Pat Reedy a recuperar os sentidos. Observando Pat Reedy recuperar-se, Robert pensou depressa. Devia haver homens no beco sem saída da Globe. E finalmente ele disse:
- Quem vai tentar novamente chegar à Globe comigo?
Ninguém respondeu. Todos conheciam o grisu, aquele cheiro rápido fizera com que conhecessem ainda melhor. Não era tão fácil pensar em alcançar a Globe, naquelas circunstâncias. Hughie disse:
- Não vá, papai. Tem gás por lá.
Jesus Chorou ainda não dissera coisa alguma até aquele momento. Mas agora Jesus Chorou declarou:
- Eu irei.
Ele sabia o que Robert estava querendo fazer, tirar da Globe quaisquer homens que pudessem ter sido atingidos pelo grisu e ainda estivessem vivos. Jesus Chorou não era um bravo, mas sua religião determinava que acompanhasse Robert.
Robert e Chorou voltaram a avançar pelo túnel de ventilação na direção da Globe. Tiraram os casacos e envolveram as cabeças, embora isso fosse apenas uma tradição contra o grisu, que de nada adiantava. Seguiram em frente, rastejando. Chorou estava muito assustado, de vez em quando tinha pequenas convulsões nervosas. Mas continuou em frente, rezando silenciosamente.
O grisu era um gás cheio de monóxido de carbono, trazido das antigas escavações pela água. Parecia se levantar e desvanecer. Levantou-se ligeiramente quando Robert e Chorou entraram na Globe. Embora se sentissem enjoados e sonolentos, os dois puderam continuar. Mas fora intenso antes, havia quatro homens caídos ali. Estavam sentados, juntos, parecendo conversar, inteiramente à vontade e normais. Pareciam estar muito bem, o gás imprimira uma coloração rosada a seus rostos e mãos, que quase não estavam sujas, pois o turno começara pouco antes. Pareciam saudáveis. Pareciam animados. Estavam todos mortos.
Robert e Chorou arrastaram os homens de lá. Para isso é que tinham ido à Globe. Mas nada se podia fazer para reviver os quatro homens. À visão dos quatro cadáveres, Pat Reedy, que nunca antes encarara a morte de frente, desatou a chorar.
- Oh, Deus! - balbuciou ele. - Oh, Deus! O que estou fazendo aqui? E onde está meu irmão tom?
Chorou disse:
- Não chore.? rapaz. O Senhor cuidará de todos nós.
Havia algo de terrivelmente impressivo na maneira como Jesus Chorou pronunciou tais palavras.
Silêncio. Robert estava parado, pensando. Sua expressão era preocupada. Se havia gás na Globe, pensou ele, então havia água também. O grisu só poderia ter alcançado aquele nível tão alto com uma grande massa de água por trás. Os homens haviam sido encurralados pela água primeiro, depois liquidados pelo gás. - É isso mesmo, concluiu Robert. A Globe está fechada também, não há saída por esse lado. Foi então que Robert lembrou-se do telefone na extremidade da Scupper Flats.
- Não podemos chegar à Globe, rapazes - disse ele. - Tem gás e água por lá. Voltaremos à Scupper e telefonaremos para a superfície.
À menção do telefone, os rostos de todos se iluminaram.
-Por Deus, Robert! - exclamou Slogger, com evidente admiração.
O simples pensamento de telefonar fez com que todos esquecessem as dificuldades de voltar pelo túnel de ventilação. Não pensaram como uma volta, não se lembram que estavam acuados. Pensavam apenas em telefonar.
Mas quando Robert tornou a atingir a Scupper Flats, parecia mais preocupado do que nunca. Parecia preocupado demais. Podia ver que o nível da água na Flats estava alto e continuava a subir, rapidamente. Isso significava apenas uma coisa: O fluxo de água derrubara as vigas de escoramento; o teto sem sustentação desmoronara, além do Swelly, bloqueando assim a vazão da água pelo túnel principal; e agora a água estava voltando na direção deles. com todos os caminhos de fuga bloqueados, eles dispunham provavelmente de 15 minutos para escaparem daquele beco sem saída da Scupper Flats.
- Esperem aqui-
Robert foi sozinho até o telefone, girou vigorosamente a manivela, depois pegou o fone. Estava muito pálido. Agora. .. pensou ele.
- Alo? Alo?
Sua voz, a voz de um homem que ainda não morrera, elevou-se da tumba escura, seguindo numa esperança angustiada pelos cabos submersos, até a superfície, a três quilómetros de distância.
A resposta veio imediatamente:
- Alo? Alo?
Robert quasí desmaiou. Era Barras, de seu escritório, repetindo insistentemente :
- Alo, alo, alo, alo. ..
Robert respondeu, falando febrilmente:
- Fenwick n? telefone da Scupper Flats. A água está além do Swelly, cobrindo tudo. Há um desmoronamento além do Swelly. Um grupo de nove homens está comigo- O que vamos fazer?
A resposta veio imediatamente, clara, incisiva:
- Sigam pelo túnel de ventilação para a Globe Coal.
- Já tentamos.
- Como?
- A Globe está cheia de água e grisu.
Silêncio. Trinta segundos de silêncio angustiante, que pareciam 30 anos. Depois, Robert ouviu o bater de uma porta, como se Barras tivesse fechado a porta com um pontapé. Era realmente muito estranho ouvir o bater de uma porta tão longe, lá em cima, na superfície.
- Preste atenção, Fenwick! - Barras falava depressa agora, mas cada palavra soava clara e incisiva. - Devem seguir para o poço da Old Scupperhole. Não podem vir por este lado, já que os dois poços estão obstruídos pela água. Devem seguir pelos túneis antigos para o poço da Old Scupperhole!
- O poço da Old Scupperhole? Mas do que Barras estava falando?
- Subam direto pela inclinação - continuou Barras, com a mesma precisão inflexível. - Abram uma passagem lá em cima, no lado leste, por cima do Dyke. Vão sair no nível superior da Old Neptune. Não tenham medo da água, pois está toda nos níveis inferiores. Sigam pelo túnel. É o túnel principal. Não peguem nenhum dos túneis secundários. Vão seguir na direção leste por cerca de mil e 500 metros, até chegarem ao poço principal da Old Scupperhole. ..
Santo Deus!, pensou Robert, ele conhece as velhas escavações, sabe de tudo. O suor aflorou na testa de Robert. Oh, Deus, ele sabia de tudo desde o início...
- Está me ouvindo? - perguntou Barras, debilmente, muito longe. - O grupo de socorro irá encontrá-los lá. Está me ouvindo?
- Estou, sim! - gritou Robert.
Nesse momento, um jato de água rompeu os cabos e deixou o telefone mudo em sua mão. Ele largou o fone, que ficou balançando. .. Santo Deus!, pensou Robert novamente, sentindo-se fraco, dominado por uma terrível emoção.
- Depressa, papai! - gritou Hughie, aproximando-se, frenético. - Depressa, papai! A água está subindo!
Robert virou-se, encaminhou-se para os outros. Santo Deus!, pensou ele, mais uma vez. E gritou:
- Vamos todos para as escavações antigas, rapazes. Não podemos fazer mais nada.
Ele seguiu na frente, subindo pela inclinação, um beco sem saída que ninguém pensaria em experimentar. E lá estava a antiga represa, mais um simples batoque, uma fileira de tábuas de três polegadas, separadas por cerca de 40 centímetros, com argila nos intervalos. Slogger abriu uma passagem em dois minutos. O grupo entrou nas escavações abandonadas da Old Neptune.
Estava frio, tinha um cheiro estranho. Mas não era grisu, apenas o cheiro de algo abandonado. As velhas escavações não eram trabalhadas há 80 anos.
Comandados por Robert, os homens seguiram em frente, com crescente esperança... estava seco ali, deixavam a água para trás. Oh, graças a Deus que estavam se afastando da água! Seis homens ainda tinham lampiões acesos e Harry Brace tinha três velas de mina no bolso. Podiam ver o caminho. Não havia dificuldade. Havia apenas um túnel, o túnel principal, que seguia para leste.
Avançaram pelo túnel abandonado por cerca de 400 metros. E depois tiveram de parar. Diante deles, o teto desmoronara.
- Não se preocupem, rapazes - gritou Slogger. - É apenas entulho. Vamos passar num instante.
Ele tirou o casaco e apertou o cinto de couro. E comandou o ataque à obstrução.
Não tinham ferramentas, todas um quilómetro atrás, submersas. Trabalharam com as mãos, escavando, escavando, arrancando as pedras soltas. Trabalharam em duplas, Slogger sempre dobrando. Ninguém sabia há quanto tempo estavam trabalhando... e trabalhavam tão arduamente que ninguém pensava no tempo ou nas mãos sangrando. Mas trabalharam por sete horas seguidas e avançaram por 15 metros de entulho. Slogger foi o primeiro a passar para o outro lado.
- Hurfe! - gritou ele, puxando Pat Reedy em seguida.
Todos passaram, todos falando ao mesmo tempo, rindo, triunfantes. Era maravilhoso ter passado pelo entulho caído. Todos riam como crianças.
Mas deixaram de rir 50 metros adiante. Outro desmoronamento e desta vez não era apenas entulho. Era um bloco de rocha, sólido, impenetrável a qualquer outra coisa que não fosse uma broca de diamante. E eles tinham apenas as mãos nuas. Era o único caminho. E o único caminho estava bloqueado. Uma rocha sólida. Suas mãos nuas, sangrando. Um silêncio. Um silêncio comprido e gelado.
- Muito bem, rapazes - disse Robert, com uma animação deliberada.
- Aqui estamos e não muito longe da saída da Scupperhole. Eles virão nos buscar agora. Eles estão certos de que vão nos alcançar, mais cedo ou mais tarde. Só nos resta agora esperar. E manter o ânimo bem alto.
Todos sentaram. Harry Brace, agachado ao lado da rocha caída, pegou um pedaço grande de pedra e começou a bater, na obstrução, ritmadamente, para que o grupo de socorro pudesse ouvir. De vez em quando, ele alteava a voz e soltava um grito prolongado. No fundo do túnel abandonado, a 400 metros do poço da Old Scupperhole, eles esperavam. Batendo na pedra e gritando, para orientar o socorro, eles esperavam.
XXIII
Pouco antes das seis horas daquela manhã, Richard Barras foi despertado por uma batida de leve na porta do seu quarto. A batida vinha se repetindo há algum tempo. Ele gritou:
- Quem está aí?
A voz de Tia Carrie, hesitante e assustada, passou pela porta:
- Não quero incomodá-lo, Richard, mas o supervisor veio da mina e está aqui. Ele quer lhe falar.
Tia Carrie absteve-se da palavra que Hudspeth usara expressamente... que ele próprio dissesse aquela palavra terrível a Richard.
Richard vestiu-se e desceu. De qualquer forma, já estava quase na sua hora de se levantar.
- Bom-dia, Hudspeth.
Ele percebeu imediatamente que Hudspeth estava apenas parcialmente vestido e parecia extremamente nervoso. Compreendeu que Hudspeth viera correndo. E quase que no mesmo instante, Hudspeth deu a notícia, abruptamente :
- Há água nos dois poços principais, Mr. Barras, cobrindo todos os níveis. Não podemos descer.
Houve uma pausa terrível.
- Entendo.
Saiu assim, um reflexo, um controle automático.
- O turno inteiro estava na Globe Coal e na Paradise. - A voz de Hudspeth, geralmente impassível, tremia agora. - Não podemos chegar perto deles, nenhum saiu até agora.
Barras estudou Hudspeth atentamente e perguntou, com a sua precisão mecânica:
- Quantos homens no turno?
- Em torno de cem homens e garotos, por aí. Ainda não sei com certeza. Saí da cama há menos de cinco minutos, quando um homem foi me avisar. Mandei-o avisar Mr. Armstrong e vim para cá o mais depressa possível.
Richard não hesitou por mais tempo. Seis minutos depois, estavam no pátio da mina. Jimmy, que fora avisar Hudspeth, estava ali com outros empregados, um grupo pequeno, silencioso e intimidado. Assim que Barras chegou, um dos homens disse:
- Mr. Armstrong acaba de chegar, senhor. Foi lá para cima.
Barras disse a Hudspeth:
- Vá chamá-lo.
Hudspeth afastou-se correndo. Barras foi para a sua sala, onde o relógio redondo na parede, por cima da lareira, indicava seis horas e 15 minutos. No momento em que Barras entrou na sala vazia, o telefone de comunicação com o fundo da mina começou a tocar. Ele atendeu prontamente, dizendo em sua voz impessoal:
- Alo, alo, alo...
A voz de Robert Fenwick respondeu de Scupper Flats. Era o chamado do grupo preso no fundo da mina. Depois que a conversa terminou e o aparelho ficou mudo em sua mão, Barras repôs o fone no gancho, sem olhar. Em seguida, respirou fundo, tratou de controlar-se. No mesmo instante, Armstrong e Hudspeth entraram na sala.
Barras disse prontamente, com uma voz que irradiava autoridade:
- E agora me diga tudo o que sabe, Mr. Armstrong.
Armstrong contou, com visível tensão. Durante todo o tempo em que falou, o que foi cerca de dois minutos, Armstrong ficou pensando: o fim de tudo isso é o fim do meu emprego. A pele por baixo de um dos olhos começou a tremer e ele levantou a mão para esconder.
- Entendo - disse Barras, para logo depois acrescentar, bruscamente. Ligue para Mr. Jennings.
Armstrong apressou-se em responder:
- Mandei Saul Pickings chamá-lo, Mr. Barras. Foi a minha primeira providência. Ele deverá estar aqui a qualquer momento.
- Fez bem.
Barras se mostrava afável. Seu controle era perfeito. E sob o efeito disso, Armstrong e Hudspeth estavam se recuperando. Especialmente Armstrong. Barras continuou:
- Pegue o telefone, Mr. Armstrong. Imediatamente. Ligue para a Rigger & Headstock, em Tynecastle. Ligue também para a T & R. Henderson, de Seaton, a Amalgamated Collieries e a Horton Iron... e peça especialmente para que Mr. Probert venha até aqui. Apresente a todos os meus cumprimentos, informe de nossa situação, peça toda e qualquer ajuda que puderem nos enviar. Vamos precisar de todas as bombas e equipamentos elétricos que puderem nos ceder. Peça a Tynecastle especialmente pelo equipamento a vapor. Peça a Amalgamated Collieries todos os homens de resgate disponíveis. E imediatamente, por favor, Mr. Armstrong.
Armstrong correu para o telefone em sua sala. Barras virou-se para Hudspeth.
- Pegue dez homens e siga para o poço da Old Scupper. Faça uma inspeção. Tão rápida e completa quanto for possível. Descubra tudo o que puder a respeito do poço, as condições em que se encontra. E depois venha me informar.
Enquanto Hudspeth saía, Mr. Jennings chegou. O inspetor de minas era um homem rude, atarracado, de cara vermelha, com uma atitude determinada. Todos sabiam que Jennings não admitia qualquer absurdo, que era firme, embora não fosse agressivo. Todos gostavam dele, respeitavam-no. Naquele momento, ele estava com um furúnculo na nuca.
- Puxa! - exclamou ele, arriando numa cadeira. - Isso dói como o diabo. O que aconteceu?
Barras contou.
Jennings esqueceu imediatamente o furúnculo. De repente, ele parecia totalmente consternado.
- Não é possível!
Houve um momento de silêncio. Depois, Barras disse, formalmente:
- Vai inspecionar o dique?
Embora tivesse acabado de sentar, Jennings prontamente levantou-se, dizendo:
- Claro. vou dar uma olhada.
Barras seguiu na frente. Os dois examinaram a situação. As bombas não davam vazão. A água subira mais dois metros, nos dois poços. Jennings interrogou o homem que tomava conta das bombas. Depois, os dois voltaram ao escritório. Jennings disse:
- Vai precisar de bombas extras nesses poços, Mr. Barras. E vai precisar imediatamente. Mas há tanta água subindo que eu tenho dúvidas se adiantarão alguma coisa...
Barras escutou, com uma paciência determinada. Deixou Jennings falar tudo o que queria. Não fez qualquer comentário. Mas quando Jennings acabou, ele declarou, em voz firme e incisiva, como se Jennings não tivesse dito nada:
- Vai demorar alguns dias para esvaziar os poços principais. Devemos entrar pela Scupperhole, na esperança de encontrarmos um túnel desobstruído. Quanto a isso, não resta a menor dúvida. Hudspeth deve estar voltando de uma inspeção do poço da Old Scupperhole. Vamos entrar assim que for possível.
Jennings parecia um pouco subjugado. Sentia o impacto de uma personalidade mais forte do que a sua, o que o deixava deprimido. O furúnculo estava doendo de novo. Contudo, a definição da situação feita por Barras era exata, seu plano de salvação dos homens era o único curso lógico. Uma admiração relutante insinuou-se no rosto de Jennings.
- Está certo. Mas como vamos conseguir avançar sem as plantas?
- Temos de dar um jeito - respondeu Barras, com súbita veemência.
Podemos pelo menos tentar - disse Jennings, em tom conciliatório, deixando escapar um suspiro. - Mas se ao menos tivéssemos as plantas, não estaríamos agora nesta situação. Oh, Deus, como eles eram idiotas naquele tempo!
Ele estremeceu, com a dor no pescoço.
- É horrível este furúnculo que me deu. Estou tomando levedo, mas acho que não está adiantando muito.
Enquanto Jennings mexia no curativo no funrúnculo, Hudspeth voltou de sua inspeção.
- Dei uma boa olhada, Mr. Barras. O poço da Old Scupperhole não está muito ruim. Tem algum entulho, mas não muito. Mas há grisu, muito grisu. Baixamos um homem na corda e ele voltou passando mal. Acho que podemos limpar o poço do entulho e do grisu em 24 horas.
Barras disse:
- Obrigado, Mr. Hudspeth. Vamos agora ao poço da Scupperhole.
Era algo incontestável: Barras estava no comando. Havia algo de sublime em sua calma e determinação. Ele dominava sem esforço, continha o pânico, estava absoluto.
Quando os quatro homens deixaram o escritório, o jovem Dr. Lewis, que era agora o associado do Dr. Scott, aproximou-se apressadamente pelo pátio da mina. Ele disse:
- Acabei de saber... ao voltar de uma visita... Posso fazer alguma coisa?
Ele fez uma pausa, expectante, imaginando-se a desempenhar atos de heroísmo dramático no fundo da mina. Era um jovem ansioso, de faces coradas, com ideais e entusiasmos borbulhando. Em Sleescale, era sempre chamado como o jovem Dr. Lewis. Jennings fitou-o como se tivesse vontade de chutar o traseiro do jovem Dr. Lewis. Ele virou-se.
Barras disse, gentilmente:
- Muito obrigado, Dr. Lewis. Podemos mesmo precisar de sua ajuda. Vá para o escritório e Saul Pickings lhe servirá uma xícara de chocolate quente. Provavelmente precisaremos de seus serviços mais tarde.
O jovem Dr. Lewis afastou-se, na maior felicidade. Barras, Jennings, Armstrong e Hudspeth seguiram para o poço da Old Scupperhole. Somente agora é que estava começando a clarear. Fazia muito frio. Uns poucos flocos de neve começaram a cair, descendo suavemente do céu invisível. Foram acompanhados por um grupo de 25 homens, caminhando em silêncio, a neve envolvendo-os. Aquele era o primeiro grupo de resgate.
E agora a notícia começou a espalhar-se pela cidade. Portas nos Terraços se abriram, homens e mulheres saíram correndo. Desceram correndo pela Cowpen Street. E mais e mais pessoas saíam correndo atrás. Corriam como se não pudessem se controlar, corriam como se a mina se tornasse subitamente um gigantesco ima, atraindo-os, inexoravelmente, independente da vontade de cada um. Corriam porque tinham de correr. E corriam em silêncio.
Martha tomou conhecimento da notícia por intermédio da Sra. Brace. Seu primeiro pensamento foi menos de angústia e mais de gratidão: Graças a Deus que o meu Sammy não está lá embaixo. Acordando o filho, ela vestiu o casaco e saiu correndo para a mina, junto com Sammy. O velho Hans Messer estava correndo também. Hans estava fazendo a barba de um freguês madrugador ao ouvir a notícia. Correndo, ele ainda segurava o pincel de barba na mão esquerda. David soube ao chegar de bicicleta à cidade. Seguiu direto para a mina. A mulher de Slogger soube ainda na cama, enquanto Chá, o filho de Slogger, soube na porta lateral do Salutation. Susan Chorou soube quando estava fazendo a prece da manhã. A Sra. Reedy, a parteira, soube quando trabalhava num parto com o jovem Dr. Lewis. Jack Reedy, o filho mais velho dela, soube quando seguia para o pub a fim de tomar um trago para esquentar. Junto com Chá Leeming, Jack correu para a mina. A mãe de Ned Softley soube quando estava saindo de casa. O velho tom Ogle soube quando estava no banheiro. Abotoando a calça, tom Ogle saiu correndo.
Numa questão de minutos, 500 homens e mulheres estavam agrupados em torno do pátio da mina e havia muitos outros lá fora. Estavam parados em silêncio, quase todas as mulheres com xales, a maioria dos homens sem capotes, todos muito pretos, contra a neve branca. Pareciam um imenso coral, formado em silêncio, sob o céu escuro. Não eram os atores no drama, mas mesmo assim participavam. Em silêncio estavam, um silêncio mortal, sob o céu escuro e imortal.
Eram nove horas da manhã e nevava forte quando Barras, Jennings e Armstrong tornaram a atravessar o Snook e voltaram ao pátio da mina. Armstrong olhou para a multidão e perguntou:
- Devo mandar fechar os portões do pátio?
- Não! - disse Barras, observando a multidão com seus olhos remotos e míopes. - Mande acender um fogo no pátio. Uma fogueira bem grande. Bem no meio do pátio. Está frio para ficar parado aqui fora.
Acenderam a fogueira. Charley Gowlan, Jake Wicks e os homens das bombas trouxeram muita lenha para alimentar o fogo. E no momento em que o fogo estava bem forte, chegou o primeiro grupo de voluntários das minas de carvão de Seaton. Seguiram imediatamente para a Scupperhole. Depois, chegaram os homens de Tynecastle, trazendo seus equipamentos. Armstrong estava postado junto ao telefone. Barras e Jennings voltaram a Scupperhole. O grisu tornava impossível a descida pelo poço naquele momento, mas iriam em breve dissipá-lo. Já tinham começado a armar guinchos, instalar novas bombas, montar um ventilador.
Arthur Barras chegou às 11 horas. Arthur estava passando o fim de semana com os Todds, em Tynecastle, acabara de chegar, pelo trem das 10:45 horas. Correu para o escritório no maior nervosismo.
- Mas que coisa terrível, pai! Barras virou-se lentamente.
- É mesmo lamentável.
- O que posso fazer? Farei qualquer coisa. Que coisa horrível para acontecer, pai.
Barras contemplou o filho com uma expressão cansada. Fez um gesto com a mão.
- É a vontade de Deus, Arthur.
Arthur retribuiu o olhar do pai com uma expressão angustiada. E repetiu, numa voz estranha:
- A vontade de Deus... O que isso significa? Armstrong entrou correndo naquele momento.
- Estão despachando duas bombas da Amagamated. E uma nova bomba de turbina está vindo da Horton. Mr. Probert diz que fará tudo o que for necessário.
- Obrigado, Mr. Armstrong - disse Barras, mecanicamente.
Houve um silêncio tenso, até que o velho Saul Pickings entrou na sala, claudicando, com três xícaras de chocolate quente. Saul tinha mais de 70 anos. Embora tivesse uma perna de pau, era capaz de se deslocar com a maior rapidez. Claudicava quando prestava pequenos serviços, sabia fazer um ótimo chocolate. Arthur e Armstrong pegaram as xícaras, Barras recusou. Arthur e Armstrong insistiram para que Barras tomasse o chocolate quente, dizendo que lhe faria bem. Armstrong acrescentando que era impossível trabalhar de estômago vazio. Mas Barras continuou a recusar. Parecia um pouco exaltado.
Saul Pickings disse:
- O jovem Dr. Lewis quer saber se ainda vão precisar dele. Se ele deve esperar, vou levar-lhe uma xícara de chocolate.
O jovem Dr. Lewis já tomara quatro xícaras de chocolate àquela altura, seu heroísmo estava um tanto diluído. E ele fora obrigado a perguntar, polidamente, onde ficava o banheiro.
Barras olhou para Armstrong.
- Seria bom que os médicos da cidade combinassem para que sempre haja um deles de plantão aqui, pelos próximos dias. Podem ficar se revezando.
- É uma ótima ideia, Mr. Barras - declarou Armstrong.
Ele saiu da sala apressadamente, para tornar a usar o telefone. Arthur disse, com algum desespero:
- Pai, como isso aconteceu? Preciso saber.
- Agora não, Arthur. Agora não.
Arthur virou-se e comprimiu o rosto contra a janela fria. Por um momento, o tom do pai o silenciara.
Foi nesse momento que entrou na sala o chefe dos bombeiros, Ebenezer Carnhow. Ele vestira seu uniforme, com uma quantidade apreciável de alamares vermelhos e oito imensos botões de latão, que a Sra. Camhow se encarregava de deixar permanentemente brilhando. O chefe dos bombeiros era baixo, redondo, careca. Sempre gostara de uniformes, começara ainda cedo com um quepe improvisado na brigada dos meninos, agora era o chefe dos bombeiros e o regente da banda de Sleescale. Tocava quatro instrumentos musicais, inclusive o triângulo, sistematicamente ganhava prémios por suas ervilhas do cês nas feiras do condado. Nos últimos cinco anos, apagara um pequeno incêndio numa cervejaria abandonada.
- Estou ao seu serviço, Mr. Barras - declarou ele. - Meus homens estão lá fora. Fora do pátio. Estão em formação. Cada um deles já fez um curso de primeiros socorros. Basta dar as ordens, senhor.
Barras agradeceu ao chefe dos bombeiros, Saul Pickings serviu-lhe a xícara de chocolate que sobrara. O chefe dos bombeiros finalmente saiu. Ao atravessar o pátio, parecia tão importante que dois repórteres que haviam acabado de chegar a Tynecastle tiraram uma fotografia dele, que apareceu na manhã seguinte no Tynecastle Argus. O chefe dos bombeiros recortou-a.
Ofertas de ajuda continuaram a chegar, telegramas, telefonemas, Mr. Probert da Horton veio pessoalmente, três novas equipes de resgate vieram da Amalgamated.
Antes de meio-dia, Barras e Arthur saíram para inspecionar os preparativos no poço da Old Scupperhole. O poço ficava no meio de uma área de terra devastada, conhecida como Snook, a neve caindo, o vento cortante soprando. Apesar do fogo no pátio, quase todos haviam saído de lá e estavam esperando no Snook. Estavam afastados dos homens que trabalhavam na abertura do poço. À aproximação de Barras e Arthur, a multidão entreabriu-se silenciosamente. Mas um grupo de homens não se afastou. Foi nesse momento que Arthur avistou David.
David estava parado à frente dos homens que não se afastaram. Jack Reedy, Chá Leeming e tom Ogle também estavam no grupo. David esperou até que Barras chegasse perto. A pele parecia repuxada sobre os ossos do rosto pelo frio e a tensão oculta de sua mente. Seus olhos se encontraram com os de Barras. Sob a expressão acusadora, Barras baixou os olhos. David falou então:
- Estes homens querem saber uma coisa.
- O quê?
- Querem saber se será feito tudo para resgatar os homens que estão lá embaixo.
- Está sendo feito. - Uma pausa. Barras levantou os olhos. - Isso é tudo?
- É, sim - disse David, lentamente. - Por enquanto.
Foi nesse ponto que o velho tom Ogle adiantou-se bruscamente, gritando para Barras:
- Para que toda essa falação? - Ele estava meio desnorteado. Já tentara espetacularmente pular no poço da Scupperhole. - Por que não os salva? Toda essa encenação não serve de coisa alguma. Meu filho está lá embaixo, meu filho Bob Ogle. Por que não manda esses homens descerem para buscá-lo?
- Estamos fazendo tudo o que podemos, meu bom homem - disse Barras, muito distinto e calmo.
- Eu não sou seu homem! - gritou tom Ogle, levantando o punho e acertando em cheio na cara de Barras.
Arthur estremeceu. Charley Gowlan e alguns outros afastaram tom Ogle, debatendo-se, gritando. Barras permaneceu empertigado. Não se defendera. Recebera o golpe numa espécie de exaltação espiritual, como se, lá no íntimo, o golpe lhe satisfizesse. Continuou a avançar calmamente até o poço, determinou que outra fogueira fosse acesa, ficou para supervisionar os trabalhos.
Permaneceu na mina durante o dia inteiro. Ficou até que os preparativos no poço da Old Scupperhole estivessem concluídos, o grisu removido. Ficou até que turmas de socorro começaram a remover o entulho que obstruía o túnel da velha mina abandonada. Ficou até que as novas bombas estivessem instaladas nos poços da Nº 17, uma delas tirando 250 galões por minuto, a outra tirando 450 galões por minuto. Depois, sozinho, voltou a pé para o Law.
Não se sentia cansado nem particularmente com fome, oscilava entre o torpor do corpo e a curiosa exaltação da mente. Estava impessoal, o que fazia era ilusório. Era como um homem condenado à morte que recebe o veredicto calmamente. Não chegava a compreender. Sua convicção na própria inocência permanecia inexpugnável.
Tia Carrie providenciara para que houvesse uma rabada à sua espera... Tia Carrie sabia que Richard, quando tinha um "dia difícil", gostava de rabada mais do que qualquer outra coisa. Ele comeu a rabada, uma asa de galinha, uma fatia do seu queijo predileto. Mas comeu muito pouco e bebeu apenas água. Nem prestou atenção a Tia Carrie, que pairava ao fundo, numa subserviência ansiosa. Nem mesmo a viu.
À mesa, sentada no lado oposto, Hilda mantinha os olhos fixados nele, com uma intensidade desesperada. E finalmente, como se não pudesse suportar por mais tempo, ela disse:
- Deixe-me ajudar, pai. Deixe-me fazer alguma coisa. Eu lhe suplico para deixar-me fazer alguma coisa.
Diante daquela emergência, Hilda sentia-se angustiada com a sua falta de oportunidade. Barras levantou os olhos para fitá-la, observando-a pela primeira vez. E disse:
- O que há para fazer? Tudo já está sendo feito. Não há nada que uma mulher possa fazer.
Ele deixou a sala. Subiu a escada, foi para o quarto da mulher. A ela, como já fizera com Arthur, Barras disse:
- É a vontade de Deus.
Depois, inescrutável e firme, ele deitou em sua cama, inteiramente vestido.
Mas quatro horas depois estava de volta à mina, seguindo imediatamente para o poço da Old Scupperhole. Sabia que a única possibilidade de penetrar na Paradise era através da Old Scupperhole. Desceu pelo poço.
Os homens estavam trabalhando em turno na Scupperhole, trabalhando tão depressa que estavam removendo o entulho do túnel a uma média de dois metros por hora. Havia mais entulho do que haviam imaginado. Mas os homens lançavam-se contra os obstáculos em ondas, pareciam frenéticos em sua investida. Aquele progresso através do entulho era mais do que humano, uma turma entrando em ação no instante mesmo em que outra saía, extenuada.
- Esse túnel segue para oeste - disse Jennings a Barras. - Deve nos levar bem perto do lugar.
- Isso mesmo.
- Devemos estar próximos do final da obstrução.
- Tem razão.
Em 24 horas, as turmas de resgate haviam removido quase 50 metros de entulho do túnel principal. Alcançaram um trecho desobstruído do túnel da velha mina. Um grito de alegria elevou-se dos homens que ali trabalhavam, subiu pelo poço, emocionou os ouvidos dos que esperavam na superfície.
Mas não houve um segundo grito. Logo depois de superada a obstrução, os homens das turmas de resgate encontraram uma depressão cheia de água, intransponível.
Sujo, coberto de poeira de carvão, sem colarinho e sem gravata, com um velho cachecol de seda em torno do pescoço, Jennings olhou para Barras e disse, desesperado:
- Oh, Deus, se ao menos tivéssemos as plantas, poderíamos saber disso de antemão!
Barras permaneceu inabalável.
- Uma planta não teria eliminado a vala. Esperamos dificuldades. Devemos abrir um novo caminho.
Havia algo de tão resoluto e inflexível em suas palavras que até mesmo Jennings ficou impressionado.
- Santo Deus! - balbuciou ele, exausto até quase às lágrimas. - Isso é que é espírito! Vamos tratar de explodir logo esse teto.
Começaram a explodir o teto, a rocha dura como ferro, derrubando os fragmentos na água, enchendo a depressão, para permitir a passagem. Foi providenciado um compressor para acionar as brocas, foram usadas as melhores brocas de diamantes. O trabalho era terrível e extenuante. Realizava-se na escuridão, poeira, suor, entre a fumaça dos explosivos. Todos estavam dominados por uma espécie de frenesi. Somente Barras permanecia calmo. Calmo e impenetrável. Estava ali. Era o motivo, a força compulsiva. Por mais 18 horas, ele não deixou a Scupperhole.
Voltando revigorado de um descanso de seis horas, Jennings suplicou-lhe:
- Durma um pouco, pelo amor de Deus, Mr. Barras. Está se matando desse jeito.
Mr. Probert, Armstrong e diversos outros homens importantes também lhe suplicaram: já fizera demais, levaria pelo menos cinco dias para superar aquele novo obstáculo, devia poupar-se até lá. Até mesmo Arthur suplicou:
- Durma um pouco... por favor... pai. .. por favor. ..
Mas Barras limitava-se a tirar um cochilo de meia hora em sua cadeira no escritório. Não voltou para casa até a noite do quarto dia. E, novamente, voltou a pé para casa. Ainda fazia um frio intenso, a neve ainda cobria a terra, uma neve recente. Como a neve era branca! Barras subiu pensativo pela Cowpen Street... mas não estava pensando. Desde o acidente que se recusava a pensar, subconscientemente a mente se desligara, desenvolvera aquele ataque vigoroso contra a mina, fixara-se inflexivelmente nos trabalhos de resgate. A isenção fria persistia e era o que sustentava. Correntezas impetuosas se movimentavam lá no fundo, por baixo da crosta da frieza exterior. Barras não sentia tais correntezas. Mas as correntezas existiam.
Ao seu redor, as ruas estavam vazias, cada porta fechada, nenhuma criança brincava. Muitas lojas estavam fechadas. Uma agonia se estendia sobre os Terraços, dominados pela imobilidade do desespero. De lados opostos de Alma Terrace, duas mulheres se aproximaram. Eram amigas. Passaram uma pela outra desviando o rosto. Sem trocarem uma só palavra. Silêncio: até mesmo os passos eram silenciados pela neve. Dentro das casas, o mesmo silêncio. Nas casas dos homens presos dentro da mina a mesa estava posta para o desjejum, aguardando que voltassem. Era a tradição. Mesmo à noite, as venezianas permaneciam abertas. No Inkerman, Nº 23, Martha estava fazendo um pastelão de carne: tanto Robert como Hughie gostavam de pastelão de carne. Sammy e David estavam sentados em silêncio, sem olhá-la. Ambos tinham voltado do poço da Scupperhole; ambos tinham ajudado lá; David não aparecia na escola há quatro dias. Esquecera a escola, esquecera o seu exame, esquecera Jenny. Estava sentado em silêncio, a cabeça enterrada entre as mãos, pensando no pai, pensando em seus próprios pensamentos amargos.
Depois do clamor e do calor da Scupperhole, aquele frio parecia afetar Barras profundamente. Enquanto ele continuava a avançar, um imenso suspiro escapou de seu peito. Não percebeu esse suspiro. Não percebia coisa alguma. Entrou no Law. Uma correspondência enorme aguardava-o, cartas de louvor, simpatia, condolências, um telegrama de Stapleton, o congressista por Sleescale, outro de Lorde Kell, proprietário dos royalties da Neptune, outro do prefeito de Tynecastle... Seus esforços heróicos para resgatar os homens presos na mina despertam a nossa mais profunda admiração e pedimos a Deus que o sucesso coroe seus esforços. Havia também uma Mensagem Real, com graciosas condolências. Barras estudou tudo cuidadosamente. Curioso! Ele leu uma carta da mulher de um fabricante de tubos de borracha de Leeds, oferecendo fornecer gratuitamente... sublinhado... 500 metros ou mais... sublinhado... de tubos de borracha, a fim de que se pudesse servir sopa quente aos mineiros soterrados. Curioso! Barras não sorriu.
Ele voltou ao poço na manhã seguinte, bem cedo. O nível da água nos poços principais fora baixado o suficiente para permitir que mergulhadores descessem. Eles avançaram pelos níveis da Globe e da Paradise, até o desmoronamento. Efetuaram uma busca árdua e exaustiva. Ninguém sabia melhor do que Barras como aquela busca seria inútil. Os mergulhadores encontraram apenas os corpos de 72 homens afogados.
Os mergulhadores voltaram. Comunicaram a ausência de qualquer alma viva; declararam que seria necessário pelo menos mais um mês para esvaziar tudo. E depois começaram a tirar os corpos: os homens afogados, presos por cordas, saindo da mina para a claridade do dia que não veriam.
Tudo estava agora concentrado na aproximação pela Scupperhole. Todos presumiam que os homens desaparecidos podiam estar presos na mina abandonada. Embora já tivessem se passado dez dias desde a data do desastre, esses homens podiam ainda estar vivos. Num frenesi renovado, os homens redobraram os seus esforços. Seis dias depois de começarem a disparar as cargas para derrubar o teto do túnel, os homens conseguiram alcançar o outro lado do túnel, através da depressão. Exaustos, mas exultantes, eles seguiram adiante. E 20 metros adiante, na direção oeste, depararam com um desmoronamento de rocha. Pararam, desesperados.
- Oh, Deus! - lamuriou-se Jennings. - Pode haver até um quilómetro de rocha. Jamais conseguiremos alcançá-los. Isto é o fim. Não resta mais nada.
Totalmente exausto, ele encostou-se na rocha, comprimiu o rosto contra o braço.
- Temos de continuar - declarou Barras, com súbita veemência. - Temos de continuar.
XXIV
Harry Brace foi o primeiro a morrer. O coração de Harry era fraco, ele não era mais um jovem, a imersão na Flats fora um esforço grande demais. Ele morreu de pura exaustão. Ninguém soube como ou quando ele morreu, até que Ned Softley bateu com a mão no rosto gelado de Harry e gritou que ele se fora. Isso aconteceu ao final da terceira noite, embora fosse sempre noite para eles agora, pois todos os lampiões haviam se apagado e todas as velas usadas, à exceção de uma, que Robert guardava para alguma emergência. A escuridão não era tão ruim, servia para envolvê-los, ligá-los num espírito de camaradagem, escondê-los ao mesmo tempo.
Eram nove: Robert, Hughie, Slogger, Pat Reedy, Jesus Chorou, Swee Messer, Ned Softley, Harry Brace e mais dois outros homens, Bennett e Seth Calder. Passaram o primeiro dia empenhados em bater na rocha, principalmente em bater... ta-ta... ta-ta... ta-ta-ta-ta-ta-ta... interminavelmente. .. ta-ta... ta-ta... ta-ta-ta-ta-ta... como um indígena num tambor tribal. Bater era importante, indicava a posição deles naquela escuridão insondável; dezenas de homens já haviam sido resgatados por indicarem as suas posições assim. Ta-ta... ta-ta... ta-ta-ta-ta-ta... Revezavam-se batendo com a pedra. No segundo dia, porém, Slogger gritou subitamente:
- Parem com isso! Pelo amor de Deus, parem com isso! Não consigo mais aguentar esse barulho!
Ned Softley, que estava na vez, imediatamente. Na verdade, todo mundo pareceu ficar contente quando as batidas cessaram. Parou por uma hora inteira. Depois, todos concordaram, inclusive Slogger, que deveriam continuar. Deviam estar agora perto deles, os homens que vinham pela Scupperhole. E deviam estar pertinho de verdade, disse Swee Messer. Assim, Ned recomeçou. .. ta-ta... ta-ta... ta-ta-ta-ta-ta. ..
Foi pouco depois disso que Chorou efetuou o seu primeiro serviço religioso, a sua primeira missa. Jesus Chorou passara muito tempo de joelhos, rezando sozinho, longe dos outros, rezando com a maior intensidade, como o próprio Jesus, no Jardim de Getsêmani. Chorou era um homenzinho calado, não se impunha aos outros exceto pelo meio silencioso das suas tortas e sanduíches. Nas partidas de futebol em Whitley Bay ou Sleescale, Chorou ficava silencioso entre as multidões ruidosas, andando devagar, de um lado para outro, em silêncio, proclamando as lágrimas de Jesus. Era o mais quieto propagandista que Jesus já tivera e nem por isso o pior. Assim, não estava na natureza de Chorou forçar os outros a rezarem. Mas, estranhamente, o próprio Robert, que nunca ia à capela, sugeriu que eles deveriam fazer um serviço religioso.
Embora Chorou não tivesse falado a respeito, queria realizar uma missa. Queria muito, e aceitou a sugestão com a maior satisfação, com uma profunda alegria. Começou com uma prece. Era uma prece muito boa, sem qualquer pompa. Foi uma boa prece repleta de fé e de péssima gramática, terminando suavemente:
- ...e nos tire daqui, querido Deus, pelo amor de Jesus, Amém. Depois, Chorou fez um pequeno sermão. Disse simplesmente o texto de
Joio VIII :12: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas, pelo contrário, terá a luz da vida.
Chorou simplesmente lhes falou, falou normalmente.
E depois cantaram o hino Venha, Grande Salvador, Venha:
"Vagueei por frias montanhas, Vagueei longe de casa. Oh, leve-me agora para o seu seio, Venha, Grande Salvador, Venha."
Um silêncio profundo se prolongou. Nenhum deles parecia querer romper aquele silêncio. Todos permaneceram imóveis, Slogger inteiramente rígido, cerrando os dentes. E foi Slogger quem cedeu.
- Oh, Deus! - balbuciou ele. - Oh, meu Deus, ajude-me, meu Deus!
E Slogger começou a chorar. Slogger era um homem empedernido, mas tinha laivos de suavidade. Ficou sentado agora, a cabeça entre as mãos, o corpo sacudido por soluços secos. Seu desespero total era horrível de se ouvir. Estavam todos debilitados a esta altura, era difícil manter um espírito viril com a barriga vazia. Não tinham comida e não tinham água, além de uma pequena poça, que escorria do teto. Era estranho ter escapado de uma inundação tão terrível para ter tão pouca água agora, apenas o suficiente para cada um, um gole mínimo de água salobra, cheirando a carvão.
Chorou aproximou-se de Slogger e pôs-se a confortá-lo. Chorou experimentava uma grande alegria por salvar Slogger, e por algum tempo houve alegria em Slogger também.
Depois, alguns sentiram fome. Pat Reedy, sendo o mais jovem, sentiu mais intensamente a pontada da fome. Robert tinha no bolso três bolinhos. Deu um para Pat e depois outro. Qual o intervalo entre cada bolinho? ...cinco minutos ou cinco dias? Só Deus sabia! Depois do segundo, Pat sussurrou:
- Estava muito bom.
Robert sorriu. Decidiu dar o terceiro a Pat também, mas conteve-se pela curiosa noção de que era o último. vou guardar para ele, pensou Robert.
O mesmo desejo de manter alguma coisa em reserva levou Robert a guardar a última vela, embora a princípio a escuridão não fosse agradável, mas difícil, terrivelmente difícil de suportar, depois que o clarão amarelo da vela extinguiu-se, como uma fogueira de acampamento, entre os homens.
A escuridão tornava muito mais difícil calcular o tempo. Entre todos, somente Robert tinha um relógio, que parara quando ele entrara no Swelly. Hughie especialmente estava preocupado com o tempo. Hughie sempre fora um rapaz calado, mas agora estava mais calado do que nunca. Desde que haviam deparado com o desmoronamento da rocha que Hughie praticamente não dissera uma só palavra. Estava sentado ao lado do pai, de rosto franzido, pensativo. Todo o seu corpo estava tenso com o segredo que o corroía. E finalmente ele disse, em voz baixa:
- Papai, há quanto tempo estamos aqui? Robert disse:
- Não sei dizer, Hughie.
- Mas quanto tempo acha, papai?
- Dois dias, talvez três.
- Então que dia é hoje?
- Não sei, Hughie... provavelmente é quarta-feira.
- Quarta-feira...
Hughie suspirou, recostou-se tensamente contra a parede. Se fosse apenas quarta-feira, não era tão ruim assim, ainda lhe restavam três dias inteiros para sair dali, três dias até a partida. Tinha de sair da mina até sábado, tinha de sair de qualquer maneira... e num súbito tormento de ansiedade, Hughie pegou a pedra e começou a bater... ta-ta... ta-ta... ta-ta-ta-ta-ta...
Quando Hughie parou de bater, houve um longo silêncio. Foi nesse momento que Ned Softley estendeu a mão para se mover e tocou no rosto de Harry Brace. Pensou inicialmente que Harry estava adormecido. Sondou outra vez, cautelosamente, os dedos entrando direto pela boca aberta, fria e morta de Harry.
Robert acendeu a vela. Isso mesmo, Harry Brace morrera. Pobre Harry, jamais daria a cinta especial para a hérnia de sua mulher, como sempre prometera. Robert e Slogger levantaram Harry. Ele estava muito pesado. Ou simplesmente eles estavam fracos? Levaram-no pelo túnel, por cerca de 30 metros. Deitaram-no de costas, Robert cruzou-lhe as mãos, fechou os olhos de Harry. Chorou estava mergulhado no sono, dormindo pela primeira vez em três dias, roncando profundamente. Robert não o despertou. Recitou a Prece do Senhor ao lado de Harry, depois voltou para junto dos outros, junto com Slogger.
- Vamos queimar mais um pedacinho da vela, rapazes - disse Robert.
- Só para manter os ânimos elevados.
Pat Reedy estava chorando baixinho outra vez. Encontrara-se com a morte pela segunda vez e ainda não conseguira aceitá-la.
- Aguente firme, rapaz. - Robert passou o braço pelos ombros trémulos de Pat. - Está na hora de eu lhe dar alguma coisa para fazer. Não quer pegar um turno de bater?
Pat sacudiu a cabeça.
- Quero escrever para minha mãe - disse ele, desmoronando por completo.
- Está certo - disse Robert, solenemente. - Vai escrever para a sua mãe. Tenho um lápis. Quem tem papel?
Ned Softley tinha um caderninho de anotações, que usava na conferência dos vagonetes. Entregou-o a Robert, que arrancou uma folha dupla, estendeu-a sobre a capa do caderninho e estendeu para Pat, junto com o lápis.
Pat pegou tudo, com um suspiro de gratidão. Começou imediatamente, escrevendo em letras grandes e redondas: Minha querida mamãe... Ele parou, inclinou a cabeça para um lado, lendo o que escrevera. Minha querida mamãe... Pat parou novamente. Minha querida mamãe... Leu mais uma vez e parou. E depois começou a chorar. Chorou amargamente. Tinha apenas 15 anos.
Depois que a vela queimou pelo pedaço previsto e se apagou, Pat ficou um pouco mais calmo. Robert pegou de volta o lápis, o caderninho e a folha dupla, guardando no bolso. Passou o braço esquerdo pelos ombros de Pat Reedy, como se estivesse protegendo-o. E foi nessa posição que Pat Reedy adormeceu.
Robert também cochilou. O tempo foi passando. Ele acordou no silêncio, a escuridão incessante, teve um longo acesso de tosse, a sua tosse silenciosa, íntima, familiar. As roupas molhadas haviam secado no corpo e isso não era bom para ele. Terei outro ataque quando saírmos, com toda certeza, pensou Robert. Depois, com uma frieza vaga em torno do coração, ele pensou, se saírmos. Mais tempo passou. Certamente deviam estar perto deles agora, os homens se aproximando para salvá-los, claro que estavam perto deles agora!
- Papai, que dia é hoje? - perguntou Hughie, novamente.
- Não sei dizer, Hughie.
Robert tentava falar calmamente, sensatamente, mas sua voz permanecia apática e cansada.
- Mas, papai... que dia é hoje? É o dia do jogo, papai... o United, papai... o United... tenho de estar fora daqui no sábado. Tenho de sair... tenho de sair de qualquer maneira, papai!
A histeria se insinuava na voz estridente do calado Hughie. Ele se balançava de um lado para outro na escuridão. Devia estar fora dali no sábado, tinha de sair dali até o sábado! Era então a noite de domingo.
Slogger acordou. Todos pareciam estar domindo um bocado agora. Devia haver vestígios de grisu no ar. Ou seria apenas fraqueza? Slogger disse:
- Oh, Deus, que sonho que eu estava tendo! Se minha pobre velha soubesse. . Oh, Deus, como eu gostaria de ter uma caneca de cerveja! Não estou mais com fome, mas querendo apenas a cerveja. Oh, Deus, o que estou dizendo? Não jurei que renunciaria à bebida? Tem de nos tirar daqui, meu Deus. Se nos tirar, prometo que nunca mais beberei. Oh, Deus, tire-nos daqui, pelo amor de Deus!
Ned Softley também gritou. Vários outros acompanharam-no.
- Tire-nos daqui! Tire-nos daqui!
Até Chorou estava agora perdendo o controle. E gritou subitamente, em voz estridente:
- Quanto tempo ainda vai demorar. Senhor, para que nos salve? Era como o rugido de bestas enjauladas.
Bennett morreu em seguida e Seth Calder partiu seis horas depois. Eram companheiros que trabalhavam juntos há quase 14 anos. Por 14 anos, haviam trabalhado juntos, bebido juntos, jogado boliche juntos. Mas não lhes parecia absolutamente apropriado que também morressem juntos. Bennett era o mais quieto dos dois. Seth Calder, quando se sentia afundando, ficava a se lamentar:
- Não quero morrer. Sou um homem ainda jovem. Tenho uma mulher jovem. Não quero morrer.
Mas, mesmo assim, ele morreu.
Todos estavam agora fracos demais para afastar os corpos de Bennett e Seth Calder. Além do mais, restavam apenas dois fósforos no bolso de Robert, junto com o coto de vela. Ele deu o último bolinho a Pat Reedy. Certamente Deus não permitiria que demorasse ainda muito mais tempo para que as turmas de resgate chegassem da Scupperhole. Oh, meu Deus, faça com que eles cheguem depressa ou não vai adiantar coisa alguma!
Estavam agora simplesmente deitados, fracos demais para se mexerem. Estavam fracos demais até para erguerem os corpos às posições a que estavam acostumados. Estavam apenas deitados. E foi nesse momento que Robert teve uma ideia. Gritou cada nome três vezes. Se não houvesse resposta depois da terceira vez, sabia que mais um se fora.
Ned Softley parou de responder em seguida. Devia ter morrido tão serenamente quanto Harry Brace. Ned sempre tivera a fama de ser um fraco, mas morreu muito bem. Não deixou escapar qualquer lamúria. E depois foi a vez de Swee Messer. Era um camarada libidinoso, o Swee, mas deixara agora de contar as suas histórias engraçadas para sempre.
Foi depois que Swee morreu que Chorou enlouqueceu. Como todos os outros, ele estava quieto há algum tempo. Mas agora se levantou. Ficou de pé ali, na escuridão. E todos podiam sentir a loucura dele, parado ali, na escuridão. Ele disse:
- Estou vendo-os! Vejo os sete anjos que se ergueram diante de Deus! Posso ouvir suas trombetas! Está me sendo revelado!
A princípio, os outros tentaram não perceber. Mas Chorou continuou:
- Ouço os anjos tocarem suas trombetas. O primeiro anjo sopra a trombeta e se segue granizo misturado com sangue.
Slogger disse:
- Pelo amor de Deus, homem, cale essa boca! Chorou continuou, ainda mais alto:
- E depois o segundo anjo sopra a trombeta e há uma grande montanha ardendo em fogo sendo lançada no mar e uma terça parte do mar se converte em sangue. Não é água, meus irmãos, mas sangue. Não é água que nos trouxe até aqui, mas sangue.
Slogger sentou-se. E disse:
- Pelo amor de Deus, Chorou, não consigo mais suportar esse negócio! Chorou continuou, em sua voz enlevada:
- O terceiro anjo sopra a trombeta e a estrela cai. Essa estrela caída, meus irmãos, é o nosso destino nesta terra, os homens esmagados por sua própria ganância. E o quarto anjo toca e o quinto também, outra estrela cai no poço sem fundo e a fumaça sai desse poço. Estamos no poço, meus irmãos, o ar está enegrecido pela fumaça e o sinal de Deus está em nossas testas, a punição se abaterá sobre aqueles nos altos postos que nos trouxeram para cá. Posso ver, meus irmãos. Pois me foi concedido o dom da profecia. Sou um profeta no fundo do poço.
Robert não teve mais qualquer dúvida de que Chorou enlouquecera. E ele disse:
- Sente-se, homem, sente-se. - Robert falava persuasivamente. - Vamos, sente-se. Não pode demorar muito até que nos alcancem. Sente-se e fique esperando quieto. Não vai demorar.
Chorou continuou:
- E o sexto anjo sopra a trombeta e uma voz se ergue do altar dourado que está diante de Deus. E quatro anjos se soltam, quatro anjos que estão prontos para abater a terça parte dos homens pela fumaça e enxofre e o resto dos homens que não morreram nesses tormentos não vai se arrepender nem mesmo assim das obras de suas mãos, de seus crimes, bruxarias, fornicações e roubos.
A voz de Chorou se elevara gradativamente a um grito que ressoava, parecia balançar o própiro teto do túnel. Slogger resmungou:
- Não consigo mais suportar isso.
Ele rastejou na direção de Chorou, tateando com as mãos. Chorou continuou, com uma voz terrível:
- E agora o sétimo anjo sopra a trombeta...
Antes que o sétimo anjo se manifestasse, Slogger agarrou Chorou pelo tornozelo e puxou-lhe o pé. Chorou caiu, gemendo.
- Mas o sétimo anjo está soprando a trombeta! Posso ver! Vejo o milênio encerrado pela loucura e a ganância do homem. Dinheiro, dinheiro, dinheiro... estamos sufocados, somos mortos pelo dinheiro. vou profetizar... Dos lugares mais altos eles caem... não é água, mas sangue... o sangue do Cordeiro... venha, mãe, distribua os livros de hinos e cantaremos, mãe, segure a minha mão, pois não existe qualquer pecado que o Salvador não possa...
A voz dele definhou. Ficou se lamuriando baixinho por mais alguns minutos e depois ficou completamente silencioso. Esgotara-se com a profecia. Depois, chorou um pouco. Por um minuto, Jesus Chorou chorou. E depois Jesus Chorou morreu.
O tempo passou. Robert deu um pouco de água para Pat Reedy beber. Pat estava apenas meio consciente, vomitou a água suja nas mãos em concha de Robert.
- Oh, Deus, faça com que eles venham depressa - disse Slogger, numa espécie de delírio. - Ou então nem adianta eles virem.
Ele rastejou até a rocha caída e pôs-se a bater. Mas estava agora fraco demais para bater por muito tempo, a pedra logo caiu-lhe dos dedos entorpecidos.
O tempo passou. Slogger levou a mão à garganta e disse, a voz rouca:
- Santo Deus, Robert, não pode imaginar como eu gostaria de tomar uma cerveja!
E depois ele caiu de lado, não tornou a se mexer. Pat Reedy morreu em seguida. Estava estendido nos braços de Robert, a cabeça encostada no peito dele, como um bebé aconchegado à mãe. Ele delirou um pouco ao final. E acabou murmurando:
- Vamos, mamãe, faça tudo por nós.
Depois disso, Robert chamou todos os homens. E finalmente disse:
- Restamos apenas você e eu, Hughie. Hughie disse, mecanicamente:
- Que dia é hoje, papai? - Ele repetiu a pergunta e depois acrescentou:
- Eu gostaria de beber um pouco, papai, mas não posso me mexer.
Robert rastejou e serviu um pouco de água a Hughie. Hughie agradeceu.
- Está tudo acabado agora, papai. - Hughie ainda pensava no jogo de futebol. - Nunca me darão outra oportunidade.
Robert disse:
- Não, Hughie. Hughie disse:
- Eu teria gostado de jogar, papai. Robert disse:
- Sei disso, Hughie.
Robert perdera inteiramente a esperança. Escutara e escutara, mas não ouvira qualquer som dos homens se aproximando. Deviam ter encontrado algum obstáculo, água ou então um desmoronamento muito grande. Ele estava além da esperança e além da amargura.
Gentilmente, ele largou o corpo de Pat Reedy e passou o braço pelos ombros de Hughie. Talvez nunca tivesse se devotado o bastante a Hughie. Hughie era muito parecido com ele próprio, sempre calado e contido. Não amara Hughie o bastante.
Tentou falar com Hughie, mas era difícil, as palavras saíram completamente erradas de sua boca. Ele tossiu e um gosto salgado saiu de sua boca, com as palavras erradas.
O tempo passou. Um débil suspiro escapou do corpo de Hughie. Ele morreu pensando na partida de futebol que nunca jogaria, morreu realmente desolado.
O tempo passou. Robert beijou Hughie na testa, tentou cruzar as mãos mortas de Hughie, como fizera com as mãos de Harry. Estava quase fraco demais para consegui-lo. Estava fraco demais até para tossir. Fez uma prece, silenciosamente. As palavras da prece saíram certas, embora a tosse não saísse certa.
Os pensamentos de Robert divagaram: achava estranho que fosse ele o último a morrer, que logo ele, o tuberculoso, sobrevivesse a tantos homens saudáveis. Pois ele sempre dissera que sua tosse nunca o mataria... não o mataria agora. Perdeu a noção do tempo e lugar, estava de volta ao Wansbeck, pescando com David, seu pequeno David... mostrando a David como lançar o anzol... observando David pegar a sua primeira truta... ei, Davey, meu garoto, não é maravilhoso?
O tempo passou. Robert remexeu-se, abriu os olhos. Acendeu o último pedaço de vela. Pensou que era uma pena não usá-lo. Já que tinha a opção, achava que preferia não morrer no escuro.
A vela lançava um clarão amarelado sobre as formas espectrais silenciosas dos mortos ao seu redor. Robert sabia que em breve também estaria morto. Não tinha medo, não tinha nada... mas pensava finalmente que gostaria de escrever para David... sempre amara David.
Tateou à procura do caderninho, o lápis, a folha dupla. Fez um esforço para pensar e depois escreveu:
Caro David, vai receber isso quando me encontrarem. Fizemos o melhor, mas de nada adiantou. Ficamos presos na Flats. Consegui telefonar para a superfície e Barras nos orientou para Scupperhole. Mas tinha um desmoronamento no velho túnel, um desmoronamento de rocha, não dava para passar. Hughie acaba de partir. Ele morreu sem qualquer sofrimento. Diga a sua mãe que rezamos. Espero que você continue em frente, Davey, e seja alguma coisa na vida. Seu papai.
Ele pensou por um momento, sem saber que estava pensando, depois acrescentou no verso:
P.S. Barras deve ter as plantas das minas abandonadas, pois suas instruções foram carretas.
Robert dobrou o papel, pôs debaixo da camiseta, sobre o peito magro. Ficou sentado, todo encolhido, as costas contra o bloco de rocha caído, como se estivesse pensando. Nuvens de escuridão flutuavam em seu cérebro. Ele tossiu, a tosse íntima familiar, a tosse que era ele. Depois, seu corpo resvalou lentamente, ficou estendido. Estava de costas, com os braços estendidos, como se estivesse suplicando. Seus olhos mortos estavam abertos. Ele estava entre os seus companheiros mortos. A vela foi se extinguindo lentamente e finalmente se apagou.
LIVRO II
A sessão final do inquérito oficial, realizado nos termos do Artigo 83 da Lei das Minas de Carvão, estava terminando. O prédio municipal, na Lamb Street, estava apinhado ao ponto de sufocamento, multidões esperavam lá fora, um senso de tensão filtrava-se com o sol da tarde através das janelas, penetrando no ambiente enfumaçado do tribunal. A sessão era presidida pelo Comissário, o Honorável Henry Drummond, K.C., assistido pelo Assessor Técnico, o Subinspetor-Chefe de Minas. Estavam presentes o Inspetor Regional e Mr. Jennings, o Inspetor local, ambos representando o Departamento de Minas; Mr. Lynton Roscoe, K.C., assistido por Mr. John Bannerman, advogado de Tynecastle, representando Richard Barras, da Mina Neptune; Harry Nugent, membro do Parlamento, e Jim Dudgeon, representando a Federação dos Mineiros da Grã-Bretanha; tom Heddon, representando a Associação dos Mineiros de Sleescale; Mr. William Snagg, advogado de Tynecastle, representando os dependentes dos mortos; e o Coronel Gascoigne, acompanhando o caso como representante de Lorde Kell, proprietário da área. Ocupando os lugares da frente, estavam Barras, Arthur, Armstrong, Hudspeth e outros dirigentes da Neptune. Três fileiras de testemunhas vinham em seguida, com David, Jack Reedy, Harry Ogle e alguns outros homens dos Terraços, postados imediatamente atrás de Nugent. Depois, vinham os parentes dos mortos, principalmente mulheres, todas de preto, umas poucas de cabeça descoberta e com xales, ligeiramente atordoadas, sem compreenderem direito o que estava acontecendo, intimidadas. O resto do tribunal estava ocupado por mineiros e habitantes da cidade, não restando um só lugar vago.
Nos termos da prática oficial costumeira, deixara-se passar um período determinado entre a calamidade e a investigação subsequente. Mas agora, há seis dias, desde 27 de julho de 1914, o tribunal estava em sessão, o salão fervilhando de vozes, 54 testemunhas convocadas e reconvocadas, 15 mil perguntas formuladas e respondidas, palavras voando de um lado para outro, iradas, persuasivas, amarguradas, centenas de milhares de palavras. Lá estava Heddon, com sua veemência incontrolável, perdendo o fio do argumento, sendo asperamente chamado à ordem; Jim Dudgeon, jovial e pouco afeito à gramática, apoiando a lógica serena de Nugent; o Coronel Gascoigne, com sua insistência nos detalhes técnicos, divagação sobre aspectos geológicos; Lynton Roscoe, experiente na arte da oratória, mestre da gesticulação e das palavras suaves.
Mas tudo estava agora chegando ao fim, aproximando-se rapidamente de seu término. Lynton Roscoe estava de pé naquele momento, um vulto corpulento, imponente, lábio superior comprido, papada, a cor avermelhada de um apreciador de vinho. Desde as duas horas que ele vinha reinquirindo testemunhas e agora, com um gesto dramático, ele virou-se para o Comissário. Um momento de silêncio.
O Comissário: - Tem algum pedido a fazer, Mr. Roscoe?
Lynton Roscoe: - É a questão de Mr. Richard Barras, senhor. Creio que eu poderia levar as coisas a uma conclusão apropriada se pudesse convocá-lo a depor pela última vez.
O Comissário: - Pode então chamá-lo, Mr. Roscoe.
Richard Barras foi chamado. Levantou-se imediatamente e foi para o recinto de testemunhas, onde ficou de pé, a reserva desaparecida, as faces ligeiramente coradas, a cabeça inclinada para a frente, como se estivesse ansioso em responder a cada pergunta com extrema sinceridade. Arthur, encolhido em seu lugar, mantinha os olhos no chão, protegendo o rosto, deixando-o invisível.
Lynton Roscoe: - Lamento tornar a incomodá-lo, Mr. Richard Barras, mas há certos pontos que desejo ressaltar. Creio que nos disse que é proprietário da Mina Neptune e engenheiro de minas há cerca de 35 anos, não é mesmo?
Barras: - Isso mesmo.
Lynton Roscoe: - Inevitavelmente, acho que se pode dizer que sua experiência em engenharia mineira é bem grande, não é mesmo?
Barras: - Acho que sim.
Lynton Roscoe: - Mais uma vez, Mr. Barras (falando devagar), tinha alguma ideia, quando começou a extrair carvão do Dyke, que estava próximo das galerias inundadas da Old Neptune?
Barras: - Não tinha a menor ideia.
Lynton Roscoe: - Presumo, Mr. Barras, em termos simples, que só há duas maneiras de se conhecer o paradeiro debaixo da terra. A primeira é escavando e a outra recorrendo a velhos registros, a plantas antigas. É isso mesmo?
Barras: - É, sim.
Lynton Roscoe (persuasivamente): - Mas uma escavação, no final das contas, só pode revelar o que há em sua abertura. E pode haver grandes falhas. Em suma, a escavação frequentemente revela muito pouco ou mesmo nada?
Barras: - Não num caso como este.
Lynton Roscoe: - Precisamente. Quanto ao outro método... tinha algum registro ou planta das escavações da Old Neptune?
Barras: - Não.
Lynton Roscoe: - Uma planta assim, se algum dia existiu, deve ter sido extraviada ou perdida, naqueles tempos pioneiros da mineração, quando tais coisas não eram tratadas com o devido respeito. Nunca esteve em seu poder?
Barras: - Nunca.
Lynton Roscoe: - Portanto, não tinha qualquer conhecimento do perigo iminente. (Dramaticamente) E à luz da lógica e da razão, foi uma vítima do desastre tanto quanto os homens que pereceram. (Virando-se para o Comissário) Esse, senhor, é o ponto que eu julgava necessário enfatizar. Não tenho mais o menor desejo de continuar a incomodar Mr. Barras.
O Comissário: - Obrigado, Mr. Barras.
Barras deixou o recinto das testemunhas, de cabeça erguida, como se estivesse desafiando todos os olhos a inspecioná-lo. Seu porte era tão admirável que um murmúrio involuntário de aplauso partiu dos lados do tribunal. Havia uma simpatia genuína por Richard. Seu comportamento durante o inquérito fora comentado nos termos mais favoráveis, coroando os seus esforços durante as operações de resgate. Isso o elevara quase à popularidade.
Enquanto Barras se sentava ao lado de Arthur, Harry Nugent, membro do Parlamento, levantou-se calmamente. Nugent era um homem sereno, com um ar de determinação e estabilidade, um olhar que era luminoso e direto. Era alto, um tanto magro, com um rosto ossudo, cadavérico, os cabelos começando a ficar grisalhos. Pouco atraente à primeira vista, Nugent possuía um fervor e uma sinceridade serena que rapidamente destruíam todos os preconceitos que pudessem ser criados por sua aparência. Há cinco anos que ele representava o distrito de Tyneside de Edgely, sendo reconhecido como uma força em ascensão no Movimento Trabalhista. Alguns dos seus partidários falavam em seu nome como o futuro líder do Partido. Ele virou-se para o Comissário, inclinando-se ligeiramente enquanto falava.
Harry Nugent: - Como meu amigo reconvocou sua principal testemunha, Sr. Presidente, tenho a sua permissão para tornar a chamar David Fenwick?
O Comissário: - Se está convencido de que isso servirá a qualquer propósito útil.
O nome de David Fenwick foi chamado. David levantou-se e avançou rapidamente, a expressão controlada e séria. Há seis dias que ele vinha entrando e saindo a todo momento do recinto das testemunhas, interrogado e reinquirido, ameaçado, lisonjeado, ridicularizado, escarnecido, mas durante todo o tempo insistindo em sua posição. Ele pegou a Bíblia e prestou o juramento.
Harry Nugent: - Mr. Fenwick, vamos falar novamente de seu pai, Robert Fenwick, que perdeu a vida no desastre...
David: - Pois não.
Harry Nugent: - Confirma que, enquanto ele trabalhava em Scupper Flats, manifestou alarme pela possibilidade de uma inundação?
David: - Ele falou a respeito diversas vezes.
Harry Nugent: - A você?
David: - Isso mesmo.
Harry Nugent: - Poderia nos dizer agora, Mr. Fenwick, por favor, se atribuiu alguma importância ao que seu pai falou?
David: - Claro que sim. Fiquei preocupado. Como já disse antes, cheguei a falar pessoalmente com Mr. Barras.
Harry Nugent: - Levou o problema ao conhecimento pessoal de Mr. Barras?
David: - Levei.
Harry Nugent: - E qual foi a atitude dele?
David: - Recusou-se a me escutar.
Lynton Roscoe (levantando-se): - Protesto, senhor. Mr. Nugent tem levado essa questão além dos limites, não apenas com esta testemunha, mas também com outras. Acho um curso totalmente inadmissível.
O Comissário: - Mr. Roscoe, terá a oportunidade de reinquirir a testemunha, se assim o desejar. (Virando-se para Nugent) Mas eu sugiro, Mr. Nugent, que nada mais temos a saber desta testemunha.
Harry Nugent: - Não tenho mais nada a dizer, Sr. Presidente. Eu queria apenas atrair novamente a sua atenção para a possibilidade de que o desastre poderia ser evitado.
Nugent sentou-se. Mas Lynton tornou a se levantar, detendo David que já estava voltando a seu lugar, com um gesto pomposo.
Lynton Roscoe: - Um momento, senhor. Onde ocorreu essa suposta conversa?
David: - No córrego Wansbeck. Estávamos pescando.
Lynton Roscoe (com uma expressão de incredulidade): - Está realmente nos pedindo para acreditar que seu pai, embora dominado por um medo mortal de desastre, foi calmamente divertir-se numa pescaria? (Pausa sardónica) Vamos ser francos, Mr. Fenwick. Seu pai era um homem instruído?
David: - Era um homem inteligente.
Lynton Roscoe: - Limite-se a responder a minhas perguntas, senhor. Ele era instruído?
David: - Não no sentido restrito da palavra.
Lynton Roscoe: - Presumo, senhor, apesar de sua relutância em admitir o fato, que ele não era instruído. Tinha, por exemplo, algum conhecimento da ciência de engenharia mineira? Responda sim ou não.
David: - Não.
Lynton Roscoe: - E o senhor possui tal conhecimento?
David: - Não.
Lynton Roscoe (sarcasticamente): - É verdade que tem a profissão de professor?
David (veementemente): - O que o fato de eu ser professor tem a ver com o desastre da Neptune?
Lynton Roscoe: - É justamente essa a indagação que proponho lhe fazer, senhor. É um professor júnior numa escola do condado e, pelo que sei, nem mesmo possui o diploma de B.A. Já admitiu a sua completa ignorância da engenharia mineira. E, no entanto...
David: - Eu...
Lynton Roscoe: - Um momento, senhor. (Batendo na mesa) Tinha ou não delegação dos homens para agir nessa questão?
David: - Não.
Lynton Roscoe: - Então como esperava que Mr. Barras fizesse outra coisa que não ignorar a sua interferência presunçosa?
David: - Era presunçoso tentar salvar as vidas dessa centena de homens?
Lynton Roscoe: - Não seja insolente, senhor.
David: - A insolência não lhe pertence com exclusividade.
O Comissário (intervindo): - Creio, Mr. Lynton Roscoe, como falei antes, que já esgotamos a utilidade desta testemunha.
Lynton Roscoe (abrindo os braços): - Mas, senhor...
O Comissário: - Creio que podemos encerrar a questão se eu disser, sem qualquer julgamento prévio, que só atribuo a Mr. Richard Barras os motivos mais elevados.
Lynton Roscoe (sorrindo e fazendo uma mesura): - Eu lhe agradeço respeitosamente, senhor.
O Comissário: - Deseja acrescentar mais alguma coisa, Mr. Lynton Roscoe?
Mr. Lynton Roscoe: - Se me permite, senhor, gostaria apenas de reafirmar os fatos rapidamente. Podemos nos dar os parabéns pelo fato de que as questões que derivam do desastre estão perfeitamente definidas. A ausência de qualquer planta, desenho ou registro que indique as escavações da Old Neptune é incontestável. Essas antigas escavações, como já comprovei, foram abandonadas em 1808, muito antes de haver qualquer dispositivo legislativo determinando o arquivamento de plantas ou informações relativas a uma mina abandonada. Como podemos muito bem imaginar, a manutenção de registros e os próprios trabalhos de mineração em geral eram bastante primitivos naquele tempo. Se me permite dizer, senhor, não somos responsáveis por isso. A evidência é de que Mr. Richard Barras foi um patrão interessado pela segurança de seus empregados e controlava as operações em Scupper Flats na melhor e mais nobre tradição na indústria. Não sabia do perigo iminente.
"Não posso acreditar que Mr. Nugent, no curso da sua reinquirição da testemunha Fenwick, possa realmente insinuar que alguns dos homens que perderam a vida no desastre tenham anteriormente manifestado sua apreensão pela possibilidade da água fluir para Scupper Flats.
"Eu lhe peço, senhor, tendo considerado o depoimento de Fenwick sobre o que lhe disse o pai, para declarar que não existe a menor base para uma insinuação tão monstruosa. Na melhor das hipóteses, foi uma conversa casual. Temos os depoimentos de todos os responsáveis pela mina de que nenhum dos trabalhadores ou habitantes locais manifestou qualquer temor ou apreensão.
"A testemunha insistiu, com uma acrimônia que todos deploramos, em sua entrevista com Mr. Richard Barras, na noite de 13 de abril. Mas, senhor, que importância o administrador de qualquer mina pode atribuir a uma declaração tão irrelevante e impertinente quanto a que foi feita por Fenwick, na noite em questão? Se alguma pessoa responsável e competente, como Mr. Armstrong, Mr. Hudspeth ou qualquer outra assim levantasse a questão, o problema seria completamente diferente. Mas alguém de fora, falando em termos tão desinformados e ambíguos sobre perigo, água e umidade no poço? A Neptune, senhor, sempre foi essencialmente uma mina úmida, sem que isso indicasse qualquer possibilidade do que ocorreu.
"Em suma, senhor, já determinamos plenamente que a direção da mina não tinha qualquer conhecimento de que estavam nas proximidades imediatas das antigas escavações inundadas. Não havia qualquer planta, em decorrência de uma falha na legislação anterior de 1872. E isso, senhor, é o ponto essencial da questão. E, portanto, com a sua permissão, deixo o resto entregue ao seu critério.
O Comissário: - Obrigado, Mr. Roscoe, por seu resumo admirável e lúcido do caso. Não tenho certeza, Mr. Nugent, se em vista do exposto também deseja falar-me.
Harry Nugent levantou-se lentamente.
Harry Nugent: - Sr. Presidente, tenho pouco mais a dizer no momento. Tenciono levantar posteriormente toda a questão da legislação sobre as minas úmidas na Câmara dos Comuns. Esta não foi a primeira inundação calamitosa que ocorreu. Já tivemos casos similares, com a mesma falta de oportunidade de consultar plantas antigas e a mesma perda terrível de vidas. Mas devo repisar que a situação é extremamente grave. Se queremos ter segurança nas minas, já está na hora de se tomar alguma providência. Todos conhecemos casos em que proprietários de minas de carvão são negligentes. Eu poderia dizer até mesmo mais do que negligentes, quando estão chegando a um limite, especialmente se há perspectivas de um bom carvão. É uma irregularidade inseparável do sistema de propriedade privada. Mesmo nos bons anos nas minas deste país, temos uma média de quatro homens mortos a cada dia, 365 dias por ano. Pense nisso, senhor, um homem morto a cada seis horas, um homem ferido a cada três minutos. Fomos acusados de acrimônia neste caso. Quero que compreenda que eu me preocupo menos com esta questão local e mais com o problema geral de segurança nas minas. Somos forçados a aproveitar tais acidentes em busca de melhores condições e de uma legislação mais favorável, pois é somente quando tais acidentes ocorrem que obtemos um pouco de simpatia e apoio. O suposto progresso na indústria de carvão não resultou na redução dos índices de morte e acidentes, mas sim em seu aumento. E acreditamos sinceramente que esse desperdício de vida humana continuará, enquanto existir o sistema económico de propriedade privada. Isso, senhor, é tudo o que tenho a dizer, por enquanto.
O Comissário (rapidamente): - Neste caso, tenho agora de declarar encerrado este Inquérito. Gostaria, antes, de expressar meus agradecimentos a todos os que participaram da investigação. Gostaria também de apresentar minhas condolências às famílias enlutadas, especialmente às famílias dos dez homens cujos corpos ainda não foram retirados da mina. Concluindo, quero dar os parabéns a Mr. Richard Barras por seus esforços heróicos para resgatar os homens soterrados e declarar oficialmente que, com base nos depoimentos que me foram apresentados, ele deixa este tribunal sem qualquer mácula em seu caráter.
Um murmúrio, um grande suspiro de tensão relaxada, espalhou-se pelo tribunal. Enquanto o Comissário se levantava, houve um arrastar de cadeiras, um rápido zumbido de conversas. A porta dupla no fundo da sala foi aberta e o tribunal começou a esvaziar-se depressa. Quando Barras e Arthur chegaram aos degraus lá fora, o Coronel Gascoigne e diversos outros homens se adiantaram, a fim de cumprimentá-lo. Houve até uma pequena explosão de aplausos. Mais homens se aproximaram, ansiosos por um aperto de mão. De cabeça descoberta, ligeiramente corado, mantendo-se empertigado, Barras estava parado no último degrau de cima, com Arthur, ainda bastante pálido, logo atrás. Barras não parecia ter a menor pressa em afastar-se do foco da atenção pública. Olhou ao redor, com uma expressão ansiosa e virtuosa, aceitando prontamente qualquer mão que lhe era estendida. Algo de emocional em sua atitude fluiu para os homens que estavam à espera. Outra aclamação se elevou e depois mais outra, sempre mais alta que a anterior. Profundamente satisfeito, Barras começou a descer a escadaria, lentamente, ainda sem chapéu, acompanhado por Gascoigne, Lynton Roscoe, Bannerman, Armstrong, Jennings e, atrás de todos, Arthur. A multidão se entreabria respeitosamente diante daquele grupo impressivo. Barras seguiu na frente pela calçada, cabeça erguida, esquadrinhando ansiosamente os rostos conhecidos, agradecendo aos cumprimentos, largando uma palavra aqui e outra ali, auscultando o sentimento popular a seu respeito, um homem deixando o tribunal sem qualquer mácula em seu caráter, incólume à lama que lhe fora arremessada, as últimas palavras ressoando em seus ouvidos: "Seus esforços heróicos para resgatar os homens soterrados." O avanço do grupo na direção do Law era quase triunfante.
David continuou no tribunal, imóvel em seu lugar, ouvindo as aclamações, o intenso movimento de pés lá fora, olhando para as paredes vazias, as moscas zumbindo nas janelas sujas. Deliberadamente, ele mantinha-se controlado. Não adiantava ceder agora, não teria qualquer utilidade.
Um toque em seu ombro fê-lo virar-se lentamente. Harry Nugent estava parado ao seu lado, na sala deserta. Nugent disse, gentilmente:
- Está tudo acabado.
- Isso mesmo.
Estudando o rosto impassível de David, Nugent sentou-se ao seu lado.
- Não esperava outro resultado, não é mesmo?
- Hum... esperava. - David ficou em silêncio por um momento, pensativo. - Eu esperava justiça. E sei que sou o culpado por isso não ter acontecido. Ele deveria ser punido. Em vez disso, é elogiado, aclamado, deixam-no partir em liberdade.
- Não deveria se angustiar tanto.
- Não estou pensando em mim mesmo. Por que deveria? Afinal, nada me aconteceu. Estou pensando nos outros.
Um débil sorriso insinuou-se nos lábios de Nugent. Era um sorriso amistoso. Durante todo o Inquérito, ele observara David atentamente e sentira-se atraído pelo jovem.
- Não nos saímos tão mal assim - murmurou ele. - Agora, poderemos forçar o Departamento de Minas a tomar providência em relação às minas abandonadas inundadas. Há anos que estávamos aguardando uma oportunidade assim. Essa é a questão principal. Será que não pode perceber o problema por esse ângulo?
David levantou a cabeça, reprimindo obstinadamente o vazio dentro dele, o desespero da derrota.
- Posso, sim.
A expressão nos olhos de David subitamente comoveu Nugent, arrancando-o de sua serenidade. Ele passou o braço pelos ombros de David.
- Sei como se sente, rapaz. Mas não se atormente. Saiu-se muito bem. Seu depoimento ajudou-nos muito mais do que pode imaginar.
- Não fiz nada. Queria fazer, mas não fiz. Por toda a minha vida, sempre falei em fazer alguma coisa...
- E vai fazer. Dê a si mesmo uma oportunidade. vou manter-me em contato com você. Verei o que se pode fazer. Enquanto isso, mantenha o ânimo alto. - Ele levantou-se, olhando para a porta, onde Heddon estava parado, em conversa com Jim Dudgeon, aguardando-o. - Gostaria que aparecesse na estação às seis horas, David. Falaremos então mais um pouco.
Ele acenou com a cabeça encorajadoramente e encaminhou-se para Heddon e Dudgeon. Os três saíram, seguindo para o escritório temporário da associação, na Cowpen Street.
Um momento depois, David levantou-se e pegou o chapéu. Saiu do prédio, desceu pela Freehold Street. Estava completamente extenuado. com uma intensidade típica, concentrara tudo no Inquérito, há seis dias que nem chegava perto da escola. E o resultado fora aquele. Ele empinou os ombros obstinadamente, controlando-se. Aquele não era o momento para se dar ao luxo de desmoronar, para o rancor mesquinho e a histeria.
Foi seguindo pela Freehold Street, entrou na Lamb Street. E ali, em frente ao Scut, um homem chamou-o. Era Ramage. O açougueiro usava um casaco de linho azul um tanto sujo, com um enorme avental azul e branco, amarrado na cintura. Acabara de sair do matadouro e por isso as costas das mãos estavam cobertas de sangue seco. O calor da tarde envolvia-o com uma névoa vermelha.
- Ei, Fenwick, espere um instante!
David parou, mas não disse nada. Ramage ajeitou o colarinho em torno do pescoço grosso, depois enfiou os polegares no cinto de couro, ficou estudando David.
- Então já terminou o seu dia de trabalho no prédio municipal? - disse ele, com intenso sarcasmo. - Não é de admirar que pareça orgulhoso de si mesmo. Deus Todo-Poderoso, você tem sido um grande crédito a Sleescale nesta última semana. Levanta-se para discutir com Lynton, como se fosse um maldito advogado!
O desdém dele era cada vez maior. Estava evidentemente informado sobre os últimos detalhes do Inquérito.
- Mas se eu estivesse em seu lugar, não ficaria tão satisfeito. Talvez acabe descobrindo que essa história toda lhe custou mais do que estaya imaginando.
David continuou a esperar, fitando Ramage. Sabia que alguma coisa estava chegando. Houve uma pausa e depois Ramage abandonou seu sarcasmo, as sobrancelhas se unindo, numa expressão agressiva:
- Que diabo pensa que andou fazendo, afastando-se da escola sem permissão, nos últimos seis dias? Pensa que é o dono do lugar?
- Compareci ao Inquérito porque tinha de fazê-lo.
-Não tinha, não. Só foi por uma questão de rancor, pura e simplesmente. Foi para jogar lama num dos homens mais eminentes da cidade, um homem público como eu, um homem que lhe conseguiu o emprego que nunca mereceu. Você se virou e mordeu a mão que o alimentou. Mas, por Deus, vai se arrepender.
- Sou o melhor juiz para decidir isso - disse David, bruscamente, fazendo menção de afastar-se.
- Espere um instante! - berrou Ramage. - Ainda não acabei de lhe falar. Sempre achei que você era um criador de encrenca, como seu pai também foi. Você não passa de um socialista nojento. Não temos lugar em nossas escolas para gente como você ensinar. Vai ser despedido.
Uma pausa. David examinou Ramage atentamente.
- Você não pode me despedir.
- Não posso, hem? Por que acha que não posso? - Um tom de triunfo se insinuou na voz rosnada de Ramage. - É melhor ficar sabendo que convocamos uma reunião da comissão escolar ontem à noite para discutir o seu comportamento. E concordamos por unanimidade que devemos exigir a sua renúncia.
- O quê?
- É isso mesmo. Receberá o comunicado de Strother pela manhã. Ele quer um homem que tenha um B.A., não um mineiro sem condições como você.
Por um minuto inteiro, Ramage entregou-se à satisfação deliciosa de observar o rosto de David, depois virou-se, com um sorriso sardónico, e voltou ao interior do seu açougue.
David continuou pela Lamb Street, de cabeça baixa, olhos fixados no chão. Entrou em casa, foi para a cozinha, começou a preparar automaticamente um chá. Jenny estava em Tynecastle, na casa da mãe, ele a enviara para lá na semana anterior, a fim de poupar-lhe a preocupação do Inquérito. David sentou-se à mesa, mexendo o chá, interminavelmente, sem nem mesmo prová-lo. Então estavam querendo que ele deixasse a escola. Sabia que Ramage estava falando absolutamente a sério. Podia lutar, é claro, apelar para a Associação dos Professores do Norte. Mas de que adiantaria? O rosto dele assumiu uma expressão de firmeza. Que eles fizessem o que quisessem. Conversaria com Nugent às seis horas, queria sair daquele beco sem saída de ensinar, queria fazer alguma coisa. Oh, Deus, como queria justificar-se, fazer finalmente alguma coisa!
Ele saiu de casa quando faltavam 15 minutos para as seis horas e seguiu para a estação. Mas ainda não percorrera a metade do caminho quando ouviu uma comoção na rua, mais adiante, no alto da rua. Olhando atentamente, viu dois pequenos jornaleiros descendo a ladeira, a apregoarem o jornal. David parou e comprou um jornal, todos os rumores e medos latentes que o Inquérito ofuscara tornando a aflorar à superfície de sua mente. Lá estava, na primeira página, a manchete: Ultimato Britânico Expira à Meia-Noite.
Por volta de uma hora da tarde no segundo sábado de setembro de
1914, Arthur chegou em casa, de volta da Neptune. Condições normais prevaleciam novamente na mina, o trabalho recomeçara, toda a tragédia do desastre parecia enterrada e esquecida. Mas o rosto de Arthur não exprimia qualquer satisfação. Ele subiu pela Avenue como um homem cansado. Ao entrar no Law, constatou que, como já esperava e temia, o novo carro chegara. Bartley, que passara um mês recebendo instruções em Tynecastle, trouxera pessoalmente o carro, que estava agora parado diante da casa, esmaltada em marrom, com latões reluzentes. Barras estava parado ao lado do carro novo e gritou, quando Arthur estava passando:
- Ei, Arthur, finalmente chegou!
Arthur parou. Estava em seu traje de trabalho na mina. Olhou tristemente para o carro e finalmente disse:
- Estou vendo.
- Há muito tempo que eu já devia ter um carro - explicou Barras. Era absolutamente ridículo não ter compreendido isso antes. Bartley me diz que o carro corre muito bem. Vamos a Tynecastle esta noite para experimentá-lo.
Arthur hesitou por um momento, parecendo pensar, antes de responder:
- Lamento... mas não poderei ir. Barras riu. O riso, como o carro, era novo.
- Não diga bobagem. Vamos passar a noite com os Todds. Já providenciei tudo para jantarmos no Central.
Arthur parou de olhar para o carro e fixou-se no pai. O rosto de Barras não estava corado, mas dava a impressão de estar. Os olhos e os lábios pareciam mais cheios do que antes, os olhos pequenos, em particular, por trás das lentes grossas, estavam mais proeminentes. Ele parecia irrequieto e vagamente excitado, talvez por causa da chegada do carro novo.
- Não sabia que tinha o hábito de oferecer jantares no Central - disse Arthur.
- E não tenho - respondeu Barras, com súbita irritação. - Mas esta é uma ocasião especial. Alan vai para ofront com seu batalhão. Todos estamos orgulhosos dele. Além do mais, não me encontro com Todd há algum tempo. Quero vê-lo.
Arthur pensou por um momento e depois perguntou:
- Não se encontra com Todd desde que tivemos o desastre na mina?
- Isso mesmo - confirmou Barras, bruscamente.
Houve uma pausa.
- Sempre achei estranho, pai, que não tivesse pedido a Todd para vir apoiá-lo no Inquérito.
Barras virou-se abruptamente.
- Apoio? O que está querendo dizer com isso? Não acha que as conclusões foram perfeitamente satisfatórias?
- Satisfatórias?
- Foi o que falei! - Barras pegou o lenço e tirou uma pequena mancha de poeira do radiador. - Vai a Tynecastle ou não?
com os olhos fixados no chão, Arthur murmurou:
- vou, sim, pai.
Houve um silêncio e depois o gongo soou. Arthur seguiu o pai para o almoço, Barras andando um pouco mais depressa do que o habitual. Para Arthur, parecia quase como se ele estivesse se apressando; ultimamente, o andar do pai se tornara mais vigoroso, ao ponto de simular pressa.
- Um carro extraordinário - informou Barras à mesa, olhando para Tia Carrie. - Deve dar uma volta um dia desses, Caroline.
Tia Caroline ficou ruborizada de prazer. Mas antes que ela pudesse responder, Barras pegou o jornal, uma edição especial, que Bartley trouxera de Tynecastle. Examinando rapidamente a primeira página, ele disse, com repentina satisfação:
- Ah, aqui estão as notícias! E boas notícias! - As pupilas se dilataram ligeiramente. - Os alemães foram rechaçados no Marne. com pesadas baixas. Foram dizimados por nossas metralhadoras. As baixas são estimadas em quatro mil mortos e feridos.
Arthur estranhou que o pai se interessasse tanto por aquelas baixas, o massacre de quatro mil homens, com uma insólita avidez inconsciente. Um pequeno calafrio percorreu-lhe o corpo.
- Tem razão, pai, as baixas são mesmo enormes - disse ele, num tom que não era normal. - Quatro mil homens... Ou seja, 40 vezes mais do que perdemos na Neptune.
Silêncio opressivo. Barras baixou o jornal. Fixou os olhos em Arthur e disse, em voz alta:
- Você possui um estranho senso de valores, mencionando nosso infortúnio na mina em relação a isto. Se não deixar de remoer o que já passou e está esquecido, vai acabar ficando mórbido. Deve se controlar. Será que não percebe que estamos enfrentando uma emergência nacional?
Ele franziu o rosto e voltou a concentrar-se no jornal. Houve outro momento de silêncio. Arthur engoliu, rapidamente o resto do almoço e depois subiu. Sentou-se na beira de sua cama e ficou olhando sombriamente pela janela. O que estava lhe acontecendo? Não podia haver a menor dúvida de que era verdade o que o pai dissera. Ele estava se tornando mórbido, horrivelmente mórbido. Mas nada podia fazer. Cento e cinco homens haviam morrido na Neptune. Não podia esquecê-los. Eram homens que viviam com ele, comiam com ele, andavam com ele, trabalhavam com ele. Povoavam seus sonhos. Não podia esquecê-los. Toda aquela carnificina, como o pai a chamara, toda aquela horrível carnificina, aquele massacre de milhares de homens, por granadas, bombas e balas, parecia simplesmente intensificar e projetar a sua introspecção mórbida. A guerra não era nada por si mesma. Era o eco, a profunda reverberação do desastre da Neptune. Era ao mesmo tempo um novo horror e o mesmo horror. As vítimas da guerra eram as vítimas da mina. A guerra era o desastre da Neptune ampliado a dimensões gigantescas, uma extensão da primeira inundação, uma projeção do atoleiro em que se afundara o lindo ideal de como a vida humana era preciosa.
Arthur remexeu-se, inquieto. Ultimamente, vinha se sentindo aterrorizado com seus próprios pensamentos. Sentia a mente como um frasco delicado em que pensamentos terríveis eram agitados e convulsionados, como elementos químicos que podiam se fundir e subitamente explodir. Sentia-se incapaz de suportar a ação e reação desses pensamentos quimicamente ativos.
O que mais o aterrorizava era a sua atitude em relação ao pai. Amava o pai, sempre o amara e admirara. E, no entanto, descobria-se agora repetidamente em cima do pai, vigiando, criticando, observando cuidadosamente e acrescentando uma constatação a outra, como um detetive a espionar Deus. com toda a força de sua alma, queria abandonar aquela espionagem profana. Mas não podia fazê-lo. A mudança no pai tornava isso impossível. Sabia que o pai mudara. Tinha certeza. E estava com medo.
Ficou sentado na cama, pensando, por um longo, tempo. Finalmente deitou e fechou os olhos. Sentia-se subitamente exausto, como se precisasse dormir de qualquer maneira. A tarde já ia chegando ao fim quando acordou. Arthur suspirou, levantou-se e começou a vestir-se.
Desceu às seis horas e encontrou o pai à espera no vestíbulo. Quando Arthur se aproximou, Barras olhou para o relógio, significativamente. Ultimamente, ele adquirira um perfeito maneirismo com o relógio, abrindo-o e frangindo o rosto para o mostrador, como um homem pressionado pelo tempo. E, na verdade, o tempo parecia agora ter adquirido um novo significado para Barras, como se cada momento devesse ser utilizado.
- Pensei que fosse se atrasar.
E sem esperar por uma resposta, Barras seguiu na frente para o carro. Ao entrar no carro atrás do pai e partirem para Tynecastle, Arthur sentiu-se menos acabrunhado. Afinal, a excursão seria bastante agradável. Há tempos que não via Hetty, e seu ânimo prontamente melhorou com a perspectiva de reencontrá-la. O carro também se comportava de maneira excepcional e ele não era insensível ao movimento suave e vigoroso. Olhou de lado para o pai. Barras estava empertigado no assento, com uma expressão satisfeita no rosto. uma expressão concentrada, como uma criança com um brinquedo novo-
Entraram em Tynecastle. As ruas estavam apinhadas, refletindo uma certa movimentação e inquietação que pareciam agradar a Barras. No Central Hotel o chefe dos porteiros abriu a porta do carro com um floreio, que costuma reservar aos carros de luxo exclusivamente. Barras acenou com a cabeça para o porteiro, que o saudou solenemente.
Entraram no saguão, que estava apinhado e um tanto buliçoso, como as ruas. Muitos dos homens estavam de uniforme. Barras deixou que seus olhos se fixassem nos homens de uniforme, com evidente aprovação.
No instante seguinte, Hetty fez-lhes sinal, alegremente, de um canto do saguão, um bom canto, junto à lareira. Alan, o irmão dela, levantou-se quando Barras e Arthur se aproximaram. A primeira coisa que Barras disse foi:
- Onde está seu pai?
Alan sorriu. Parecia muito bem em seu uniforme de segundo-tenente e estava efusivo, pois já tomara alguns drinques.
- O pai está com o seu velho problema. Sentia-se mal e não podia sair de casa. Pediu que lhe apresentasse as suas desculpas.
Barras ficou visivelmente consternado.
Houve em silêncio constrangedor. Mas Barras recuperou-se rapidamente- Sorriu vagamente para Hetty. Um momento depois, os quatro seguiram para o restaurante.
Sentaram-se a uma mesa. Barras pegou o guardanapo e correu os olhos pelo restaurante, que estava repleto de pessoas e alegria. A maioria dos mais alegres estava de caqui. Ele comentou:
- Isto é bastante agradável. Enfrentei alguma tensão ultimamente e fico contente Por ter alguma recreação, para variar.
- Está contente por tudo estar resolvido - disse Alan, fitando Barras, com uma expressão insinuante.
Barras respondeu bruscamente:
- Estou, sim.
- Eles não passam de baderneiros e haveriam de querer destruí-lo, se tivessem a oportunidade - acrescentou Alan. - Conheço o tal de Heddon. Não passa de um porco. É pago para ser um porco, mas é também um porco nato!
- Alan! - protestou Hetty, fazendo beicinho.
- Já sei, Hetty, já sei - disse Alan, jovialmente. - Eu tenho de lidar com os homens, enquanto você tem de subjugá-los, para não ser subjugada. É tudo uma questão de autopreservação.
Discretamente, Arthur examinou o pai. Alguma coisa da antiga expressão impassível retornara ao rosto de Barras. Ele parecia estar tentando adaptar-se a uma nova perspectiva. com uma tentativa óbvia de mudar de assunto, ele perguntou:
- Parte na segunda-feira, Alan?
- Isso mesmo.
- E está contente por partir?
- Claro. Vai ser muito divertido.
O garçom dos vinhos aproximou-se. Barras pegou a lista de capa vermelha e ficou meditando. Contudo, não estava debatendo tanto com a lista de vinhos, mas consigo mesmo. Mas finalmente tomou uma decisão.
- Acho que devemos ter uma pequena comemoração. Afinal, trata-se de uma ocasião especial.
Ele pediu champanha. O garçom fez uma mesura e afastou-se. Hetty parecia satisfeita. Sempre se sentira ligeiramente assustada com Barras, o formalismo e dignidade apartada dele sempre a haviam intimidado. Mas naquela noite ele estava surpreendente, com aquela súbita e excitante demonstração de hospitalidade. Ela sorriu-lhe, o seu sorriso mais doce e respeitoso.
- Este lugar é muito agradável - murmurou ela, apalpando as contas do colar com uma das mãos e mexendo na haste do copo de vinho com a outra. Virando-se para Arthur, ela acrescentou: - Não acha que Alan fica muito bem de uniforme?
Arthur forçou um sorriso.
- Alan fica bem em qualquer coisa.
- Estou falando sério, Arthur. Não acha que o uniforme contribui para realçá-lo?
Arthur respondeu com os lábios rígidos:
- Acho.
- É o próprio demónio respondendo a saudações - comentou Alan, complacentemente. - Espere só até entrar para o Corpo Feminino de Emergência, Hetty. Vai saber de tudo então.
Hetty tomou outro gole de champanha. Pensou por um momento, a cabeça bonita inclinada.
- Você também ficaria lindo de uniforme, Arthur. Arthur ficou absolutamente frio por dentro. E disse:
- Não consigo me imaginar de uniforme.
- Você é esguio, Arthur, tem um bom corpo para um uniforme. E a sua cor também é perfeita. Ficaria maravilhoso de caqui.
Todos olharam para Arthur. Alan disse:
- É verdade, Arthur. Você ficaria sensacional. Deveria estar partindo comigo.
Sem qualquer motivo que pudesse determinar, Arthur sentiu-se a tremer. Os nervos estavam tensos demais, encarava agora toda a noite como anormal e abominável. Por que o pai estava ali, sentado naquele hotel apinhado, tomando champanha, sancionando a fanfarronice patriótica de Alan Todd, parecendo tão irrequieto e tão fora do seu normal?
- Está me ouvindo, Arthur? - disse Alan. - Nós dois deveríamos estar juntos no espetáculo.
Arthur obrigou-se a falar. E fez um esforço para falar jovialmente.
- Espero que o espetáculo prossiga sem a minha participação, Alan. Para dizer a verdade, é algo que não me agrada muito.
- Oh, Arthur! - exclamou Hetty, desapontada.
Como ela encarava Arthur como propriedade sua, gostava que ele sempre se mostrasse bem, que brilhasse, como costumava dizer. E aquele último comentário de Arthur não era dos mais favoráveis. Ela contraiu o rostinho animado, numa expressão ao mesmo tempo fascinante e desaprovadora.
- É uma maneira absurda de falar, Arthur. Quem não o conhecesse, poderia imaginar que está com medo.
- Não diga bobagem, Hetty - interveio Barras, em tom indulgente. Arthur simplesmente ainda não teve tempo para pensar a respeito. Um dia desses, vai vê-lo correndo para o posto de recrutamento mais próximo.
- Sei disso! - falou Hetty, baixando afetadamente os olhos, um pouco arrependida de ter falado.
Arthur não disse nada. Os olhos estavam fixados no prato. Recusou o champanha. Recusou a sobremesa. Deixou que os outros conversassem sem a sua participação.
Uma orquestra começou a tocar no outro lado da sala, onde havia um espaço vazio de assoalho encerado, pronto para se dançar. A orquestra tocou God Save the King, muito alto. Todos se levantaram, com um ruidoso arrastar de cadeiras. Houve aplausos altos e prolongados ao final, depois a orquestra começou a tocar música de dança, mais baixo. Sempre havia dança no Central nas noites de sábado.
Hetty sorriu para Arthur. Eram ambos bons dançarinos, adoravam dançar juntos. Hetty ouvira muitas vezes comentar como ela e Arthur formavam um par encantador quando dançavam. Ela ficou esperando que Arthur a convidasse para dançar. Mas ele continuou sentado, os olhos fixados sombriamente no prato, e não convidou Hetty para dançar.
O desalento dele tornou-se finalmente óbvio. Alan, sempre pronto a agradar, inclinou-se para Hetty.
- Não quer dar uma volta com um veterano de muitas campanhas, Hetty?
Hetty sorriu, com algo mais do que a sua animação habitual. Alan era um péssimo dançarino e também não gostava de dançar. Hetty não sentia o menor prazer em dançar com ele. Mas Hetty fingiu estar satisfeita. Levantou-se e foi dançar com Alan.
Enquanto os dois dançavam, Barras comentou:
- Hetty é uma coisinha maravilhosa, muito recatada, mas ao mesmo tempo extremamente animada.
Ele falou jovialmente, um pouco suavemente. Desde o jantar e o champanha que parecia mais quieto. Arthur não respondeu. Pelo canto do olho, observava Hetty e Alan dançarem, empenhando-se em reprimir o seu desalento incompreensível.
Quando Hetty e Alan voltaram, Arthur convidou-a para dançar, por uma questão de polidez. Ele formulou o convite tensamente, ainda enregelado e magoado por dentro. Era maravilhoso dançar com Hetty, muito suave em seus braços, o perfume que era ela própria parecendo fluir para ele a cada movimento do corpo dela. Mas, justamente porque era tão maravilhoso, Arthur jurou que dançaria apenas aquela música e mais nada.
Depois, Hetty ficou sentada, marcando o ritmo com o pé, até que não conseguiu suportar por mais tempo. com a sua expressão cativante de aflição, ela perguntou:
- Ninguém vai dançar esta noite? Arthur disse prontamente:
- Estou cansado.
Houve um silêncio. E, subitamente, Barras disse:
- Se isso lhe agradar, Hetty, estou à sua disposição. Mas, infelizmente, não conheço nenhuma dessas danças modernas.
Ela fitou-o em dúvida, ao invés de aturdida.
- As novas danças são muito fáceis. Basta andar.
Barras exibia o seu novo sorriso, o sorriso vago, um tanto satisfeito.
- Se não está com medo, Hetty, então vamos tentar.
Ele levantou-se e ofereceu o braço. Arthur continuou sentado, inteiramente rígido. Ficou olhando os vultos de Barras e Hetty se deslocarem, nos braços um do outro, na extremidade da sala. O pai sempre tratara Hetty com uma indiferença condescendente, Hetty sempre fora tímida e deferente com seu pai. E agora os dois estavam dançando juntos. Arthur podia ver nitidamente o sorriso de Hetty, um sorriso insinuante, o sorriso de uma mulher que se sente lisonjeada pela atenção que está recebendo.
Depois, ele ouviu Alan falar-lhe, convidando-o a sair. Mecanicamente, Arthur levantou-se e saiu com Alan. Não restava a menor dúvida de que Alan não estava sóbrio. No banheiro, ele virou-se para Arthur, oscilando ligeiramente.
- Seu velho fez uma boa esta noite, Arthur. Eu não teria acreditado se me contassem antes que isso poderia acontecer. Está me oferecendo uma despedida maravilhosa.
Ele abriu as duas torneiras, deixando que a água se despejasse na pia com toda força, depois virou-se novamente para Arthur. E acrescentou, com extrema confiança:
- Sabe, Arthur, meu velho ficou doente com o seu por não o ter chamado para apoiá-lo no Inquérito. Nunca falou nada a respeito, mas tenho certeza de que ele sabe de tudo, Arthur.
Arthur ficou olhando em silêncio para Alan, inquieto.
- Não há necessidade de se preocupar, Arthur. - Alan acenou com a mão, num gesto amistoso e insinuante. - Não há a menor necessidade de se preocupar, Arthur. Está tudo entre amigos... tudo entre velhos e bons amigos.
Arthur continuava a olhar fixamente para Alan. Estava atónito. Sentia-se invadido por uma terrível confusão, de medo, dúvida e incerteza. E finalmente perguntou:
- O que está tentando me dizer?
Subitamente, a pia transbordou, a água caindo no chão, caindo no chão interminavelmente.
Os olhos de Arthur fixaram-se no chão. Ele estava agora completamente atordoado. A água na Neptune fluíra daquele jeito, fluíra através daqueles canais tortuosos e secretos da mina, afogando os homens, no horror e escuridão.
Todo o seu corpo foi abalado por um espasmo. Ele pensou, fervorosamente: tenho de descobrir a verdade. Mesmo que isso me mate, descobrirei a verdade.
No carro, voltando para casa, Arthur esperou até que deixassem para trás o tráfego de Tynecastle. E quando seguiam pela reta da estrada entre Kenton e Sleescale, em meio ao silêncio, ele disse abruptamente:
- Gostaria de lhe perguntar uma coisa, pai.
Barras manteve-se calado por um momento. Estava sentado no canto, recostado no estofamento macio, as feições ocultas pela escuridão no interior do carro.
- O que você quer saber? - disse ele finalmente, contrariado.
O tom de Barras era totalmente desencorajador, mas Arthur chegara a um ponto em que nada poderia fazê-lo desistir.
- É sobre o desastre.
Barras fez um gesto de irritação, quase de repugnância. Arthur sentiu mais do que viu o gesto. Houve um silêncio e depois ele ouviu o pai dizer:
- Por que você tem de insistir nesse assunto? É-me extremamente desagradável. Tive uma noite bastante agradável. Gostei de dançar com Hetty, não imaginava que poderia dominar os novos passos com tanta facilidade. Não quero ser incomodado com uma coisa que está completamente resolvida e esquecida
Arthur respondeu com veemência:
- Eu não esqueci, pai. Não posso esquecer. Barras ficou calado por um momento.
- Arthur, eu gostaria muito que você encerrasse esse episódio definitivamente. - Ele falava com uma certa contenção, como se estivesse refreando uma impaciência crescente; o resultado era uma injeção de suave tristeza em seu tom. - Não pense que eu não estava percebendo o seu estado. Mas agora quero que me escute com atenção e procure ser razoável. Está do meu lado, não é mesmo? Meus interesses são os seus interesses. Está com quase 22 anos agora. Será meu sócio na Neptune muito em breve. Tenciono cuidar disso assim que esta guerra acabar. E quando todo mundo já esqueceu o desastre, não acha que é uma loucura você continuar a remoê-lo?
Arthur sentiu-se desesperado. Ao recordar-lhe os seus interesses na Neptune, era como se o pai estivesse lhe oferecendo um suborno. Sua voz tremia.
- Não considero uma loucura. Quero saber a verdade. Barras perdeu o controle.
- A verdade? Não tivemos um Inquérito? Foram 11 dias, com tudo sendo investigado e esclarecido. Sabe que fui absolvido de toda e qualquer culpa. Essa deve ser a verdade para você. O que mais está querendo?
- O Inquérito foi uma investigação oficial. É muito fácil suprimir os fatos nesse tipo de Inquérito.
- Que fatos? - gritou Barras. - Será que perdeu o juízo?
Arthur olhava fixamente para a frente, através da divisória de vidro, além da qual apareciam as costas de Bartley.
- Não sabia o tempo todo que estava correndo um risco, pai?
- Temos de assumir riscos - respondeu Barras, furioso. - Todos nós. Em mineração, há sempre um risco atrás de outro, todos os dias. Não se pode evitá-los.
Mas Arthur não desistiu.
- Adam Todd não o alertou antes de começar a tirar carvão do Dyke?
- perguntou ele, impassivelmente. - Deve estar lembrado daquele dia em que foi visitá-lo. Ele não lhe disse que havia perigo? E, no entanto, continuou nas escavações, apesar disso.
- Está dizendo bobagem. - Barras estava agora quase berrando. Compete a mim tomar as decisões. A Neptune é minha mina e a administro à minha maneira. Ninguém tem o direito de interferir. Eu a administro da melhor forma que posso.
- A melhor forma para quem?
Barras fez um tremendo esforço para manter o controle.
- Pensa por acaso que a Neptune é uma instituição de caridade? Tenho de obter um lucro, não é mesmo?
- É justamente esse o problema, pai - disse Arthur, a voz sem qualquer inflexão. - Queria ter um lucro, um lucro enorme. Se tivesse bombeado a água das escavações da Old Neptune, antes de começar a extrair o carvão do Dyke, não haveria qualquer perigo. Mas o custo de esvaziar as antigas escavações teria consumido uma boa parte do seu lucro. Esse custo, a ideia de gastar tanto dinheiro em bombear a água, foi demais para você. Assim, decidiu correr o risco... o risco de ignorar a água e todos os homens em perigo.
- Já chega - disse Barras, asperamente. - Não quero que fique me falando desse jeito.
Os faróis de um carro que passava iluminaram momentaneamente o rosto dele, todo contraído, a testa vermelha, os olhos indignados e inflamados. Um instante depois, tudo voltou a ser escuridão no interior do carro. Arthur estava trémulo, os lábios pálidos, todo o seu ser dominado por uma profunda consternação.
Mais uma vez, podia sentir a estranha inquietação por trás das palavras do pai, o senso de urgência, a evasiva; impressionava-o como um ato de fuga. Ele ficou calado pelo resto da viagem. O carro entrou no caminho do Law, foi parar na frente da casa. Ele seguiu para o interior da casa. Pararam no vestíbulo iluminado e se fitaram. Havia uma expressão singular no rosto de Barras, parado ali, com uma das mãos no corrimão da escada, preparando-se para subir.
- Tem falado demais ultimamente. Mas não acha que seria melhor tentar fazer alguma coisa, para variar?
- Não estou compreendendo, pai. Fitando-o atentamente, Barras disse:
- Não lhe ocorreu que poderia estar lutando por seu país?
Ele virou-se e subiu. Arthur ficou parado, observando o pai a se afastar. O rosto pálido estava contraído. Sentia finalmente que seu amor pelo pai estava morto, sentia que em meio às cinzas estava surgindo algo sinistro e terrível.
No início dessa mesma noite de sábado, Sammy desceu a Avenue em companhia de Annie Macer. Todas as noites de sábado, há anos, que Sammy e Annie faziam aquele passeio. Era parte do namoro de Sammy e Annie Macer.
Por volta das sete horas da noite de sábado, Sammy e Annie encontravam-se na esquina da Quay Street. Geralmente Annie era a primeira a chegar, andando de um lado para outro com suas meias grossas de lã e sapatos bem escovados, andando em silêncio de um lado para outro, esperando, esperando por Sammy. Sammy era sempre o atrasado. Aparecia em torno de dez minutos depois das sete horas, em seu terno azul bom, bem barbeado e com a testa lustrosa.
- Estou atrasado, Annie - comentava Sammy, sorrindo.
Ele jamais manifestava o seu pesar por estar atrasado, jamais se lembrava de pedir desculpas. E Annie teria estranhado se Sammy lhe dissesse que estava arrependido de tê-la deixado a esperar.
E partiam para o seu passeio, "pela Avenue acima". Não de braços dados, pois não havia nada disso no namoro de Sam e Annie, não havia apertos de mão, abraços, beijos, nenhuma das manifestações mais exuberantes de afeição. Sam e Annie eram namorados firmes. Sam respeitava Annie. No trecho mais escuro da Avenue, Sam podia discretamente passar o braço pela cintura de Annie, enquanto passeavam. Mas não ia além disso. Sammy e Annie simplesmente passeavam.
Annie sabia que a mãe de Sammy era "contrária" ao namoro. Mas sabia também que Sammy a amava. E isso era o bastante. Depois de subirem a Avenue, eles voltavam ao centro, Sammy cumprimentando os conhecidos: "Como vai, Ned?", "Como estão as coisas, tom?", seguindo pela Lamb Street e entrando na pastelaria da Sra. Chorou, onde a sineta ressoava e o vidro solto na porta chocalhava cada vez que entravam. De pé, na loja escura, cada um comia um pastel quente com milho, dividiam uma garrafa de limonada. Annie preferia ginger ale, mas a bebida predileta de Sammy era. limonada. O que significava, é claro, que Annie sempre pedia limonada. Havia ocasiões em que Sammy comia dois pastéis, se tivera uma boa semana de trabalho, pois os pastéis da Sra. Chorou era o que melhor havia. Mas Annie recusava, Annie conhecia o lugar de uma mulher. Annie jamais comia mais de um pastel. Chupava o molho de seus dedos, enquanto Sammy comia o segundo pastel. Depois, conversavam um pouco, às vezes com a Sra. Chorou, voltavam à esquina da Quay, onde ficavam parados por algum tempo, contemplando o movimento da noite de sábado, antes de se despedirem. E enquanto subia para os Terraços, Sammy pensava que fora uma noite maravilhosa, que Annie era uma moça sensacional, que ele tinha muita sorte por poder passear com ela.
Naquela noite, porém, enquanto Sam e Annie desciam a Avenue, era evidente que havia alguma coisa errada entre os dois. A expressão de Annie era desolada, enquanto Sammy, com uma expressão angustiada, parecia empenhar-se em oferecer uma explicação.
- Sinto muito, Annie - murmurou ele, chutando uma pedra no caminho. - Não podia imaginar que você ficaria tão mortificada.
Em voz baixa, Annie disse:
- Está tudo bem, Sammy. Não estou me importando muito. Está tudo bem.
Qualquer coisa que Sammy fizesse, estava sempre bem para Annie. Mas o rosto dela, muito pálido, destacando-se na escuridão entre as árvores, estava conturbado.
Sammy deu outro chute, em outra pedra.
- Não poderia suportar a mina por mais tempo, Annie. Juro que não poderia. Descer todos os dias, pensando em papai e Hughie soterrados lá embaixo, é mais do que eu posso suportar. A mina nunca mais será a mesma para mim, Annie, nunca mais, enquanto não forem encontrados os corpos de papai e Hughie.
- Eu compreendo, Sammy.
- Não estou exatamente querendo ir, Annie. Não vou muito com esse negócio de cornetas tocando e bandeiras hasteadas. É apenas o pretexto. Tenho de sair daquela mina. Qualquer coisa é melhor do que aquela mina agora. .. absolutamente qualquer coisa...
- Tem toda razão, Sammy. Posso compreender perfeitamente o que está sentindo.
Annie compreendia perfeitamente que Sammy, um bom mineiro, que gostava de seu trabalho e era necessário lá, jamais pensaria em partir para a guerra se não fosse pelo desastre na Neptune. Mas a tristeza na aquiescência de Annie deixou Sammy mais frustrado do que nunca.
- Ah, Annie! - exclamou ele, com uma súbita intensidade. - Eu gostaria que essa coisa nunca tivesse acontecido conosco na Neptune. Ao sair com as minhas ferramentas, ao final do turno do dia, era apenas nisso que eu pensava. E agora tem o problema do nosso Davey. Estou desolado pelo que fizeram com ele. E estou preocupado pela maneira como ele absorveu a coisa.
Sammy fez uma breve pausa, antes de acrescentar, com súbita veemência:
- Não foi justa a maneira como o despediram da escola. Ramage é que fez tudo, sempre teve raiva de gente como nós. Mas, por Deus, foi vergonhoso, Annie.
- Ele arrumará emprego em outro lugar, Sammy. Mas Sammy sacudiu a cabeça.
- Ele não quer mais saber de ser professor, menina. E se juntou a Harry Nugent de alguma forma. Harry interessou-se muito por Davey e tenho certeza de que alguma coisa vai resultar disso. - Sammy suspirou. - Mas alguma coisa mudou em Davey, menina.
Annie não respondeu. Estava pensando na mudança que ocorrera também em Sammy.
Os dois foram seguindo pela Avenue, sem falarem. Estava quase escuro agora. Ao passarem pelo Law, no entanto, a lua saiu de trás das nuvens, lançando uma claridade fria sobre a casa que ali estava, com uma complacência quase maligna. Ao lado do grande portão branco, sob uma das faias altas que o flanqueavam, havia dois vultos juntos... um rapaz de uniforme, uma moça de cabeça descoberta.
Sammy virou-se para Annie, ao chegarem ao final da Avenue, dizendo:
- Viu aquilo? Dan Teasdale e Grace Barras.
- Vi, sim, Sammy.
- Estou pensando que Barras não ficaria nada satisfeito se os visse ali
- Tem razão, Sammy.
- Barras! - Sammy sacudiu a cabeça para o lado e cuspiu. - Ele se saiu muito bem da encrenca. Mas não vou mais trabalhar para ele, nem que viesse nos suplicar.
O silêncio persistiu entre Sammy e Annie, enquanto seguiam para a loja da Sra. Chorou. Annie fazia um esforço para aguentar a situação, mas o pensamento de que Sammy estava de partida para a guerra deixava-a desesperada. Qualquer outra pessoa que não Annie teria se recusado a ir à loja. Contudo, Annie achava que Sammy desejava ir. Assim, tratou de acompanhá-lo, comendo o seu pastel. Naquela noite, Sammy comeu apenas um pastel e deixou a metade de sua limonada.
Ao pararem na esquina da Quay Street, Sammy disse, com um esforço para exibir o seu antigo sorriso:
- Não fique tão angustiada, menina. No final das contas, a mina não fez tanta coisa assim por mim. Talvez a guerra possa fazer muito mais.
- Talvez - murmurou Annie, sentindo um súbito aperto na garganta.
- Eu o verei amanhã, Sammy. Quero tornar a vê-lo, antes de sua partida.
Sammy acenou com a cabeça, ainda mantendo o sorriso. E depois disse:
- Dê-nos um beijo, menina, para mostrar que não está zangada com a gente.
Annie beijou-o e depois virou-se, com medo de que Sammy visse as lágrimas que brilhavam em seus olhos. De cabeça baixa, ela seguiu apressadamente para casa.
Sammy subiu para os Terraços, lentamente. Sabia que era um tolo por deixar Annie e um bom emprego por uma guerra que não o interessava. E, no entanto, não podia evitar. O desastre fizera alguma coisa com ele... como também acontecera com David. Não importava para onde ia; tudo o que importava era que estava saindo da mina.
Ao chegar a Inkerman, ele encontrou a mãe sentada à sua espera, como de hábito, em sua cadeira de espaldar reto, ao lado da janela. No instante em que Sammy entrou, ela levantou-se para servir-lhe chocolate quente.
Martha serviu-lhe o chocolate. Parada ao lado do fogo, onde largara a chaleira fumegante, ela ficou observando-o, as mãos cruzadas por baixo do peito, os cotovelos um tanto esqueléticos e descarnados, olhos sombrios e amorosos.
- Quer um pedaço de bolo, filho?
Sammy sentou-se à mesa, um tanto cansado, o gorro empurrado para trás da cabeça. Levantou os olhos e fitou a mãe.
Ela mudara bastante. Embora não lutasse interiormente contra o desastre, pois recebera-o sombriamente, com a calma fatalidade de uma mulher que sempre conhecera e aceitara o perigo da mina, a calamidade da Neptune também deixara sua marca em Martha. As rugas em seu rosto estavam mais profundas, as bochechas mais caídas, uma mecha branca fazia um estranho contraste nos cabelos pretos penteados para trás, a testa estava vincada. Mas ela ainda se mantinha empertigada, sem qualquer esforço. Sua vitalidade parecia inesgotável.
Sammy detestava ter de contar à mãe, mas não havia outro jeito; e como ele não tinha qualquer sutileza, falou diretamente:
- Mãe, acabei de me alistar.
Ela ficou totalmente pálida. O rosto e os lábios ficaram tão brancos quanto a mecha nos cabelos. A mão subiu instintivamente à garganta, uma expressão desvairada estampou-se nos olhos.
- Não está querendo dizer... - Martha parou de falar por um longo momento, mas finalmente fez um grande esforço e conseguiu arrematar: ... que entrou para o exército?
Sammy assentiu, com uma expressão sombria.
- O Quinto dos Fuzileiros. Trouxe as minhas ferramentas hoje. vou partir para o quartel na segunda-feira.
- Na segunda-feira... - balbuciou Martha, no mesmo tom de consternação incrédula.
Ainda fitando-o, Martha sentou-se também. Sentou-se cuidadosamente, a mão ainda comprimida contra a garganta. Parecia encolhida, esmagada contra a cadeira pelo que Sammy lhe dissera. Mesmo assim, ainda se recusava a acreditar. E disse, em voz baixa:
- Eles, não vão aceitá-lo. Querem os mineiros trabalhando na Inglaterra. Não podem aceitar um mineiro tão bom quanto você.
Sammy evitou os olhos suplicantes da mãe.
- Eles me aceitaram.
Essas palavras liquidaram-na. Houve um silêncio prolongado e depois, quase num sussurro, ela perguntou:
- Por que fez uma coisa dessas? Oh, Sammy, por que fez isso? Ele respondeu, soturnamente:
- Não pude evitar, mãe. Não posso mais aguentar a mina.
Eram mais ou menos cinco horas da tarde da terça-feira seguinte. Embora ainda houvesse claridade, as ruas estavam quietas, enquanto David seguia pela Lamb Lane e entrava em sua casa. Parou no vestíbulo estreito, seu primeiro olhar fixando-se na bandeja pequena em que Jenny, com seu senso de etiqueta que a tudo resistia, sempre colocava a correspondência dele. Havia uma única carta na bandeja. Ele pegou-a e o rosto sombrio iluminou-se.
Foi para a cozinha, sentou-se ao lado do fogo baixo e começou a tirar as botinas, desamarrando-as com uma das mãos, olhando para a carta na outra mão.
Jenny trouxe-lhe as chinelas. Era algo excepcional. Mas também, ultimamente, Jenny vinha se comportando de forma excepcional, preocupada e quase tímida, cuidando dele nas pequenas coisas, como se estivesse subjugada por seu silêncio taciturno.
David agradeceu a Jenny com um olhar. Pôde sentir o odor de porto na respiração dela, mas absteve-se de fazer qualquer comentário. Já falara tantas vezes que estava cansado de palavras. Jenny explicara que bebia muito pouco, apenas um copinho ocasionalmente, quando se sentia muito deprimida. A desgraça - a palavra era dela - de sua dispensa da New Bethell Street naturalmente deixara-a predisposta à depressão.
David "abriu a carta e leu-a, devagar, cuidadosamente. Depois, baixou-a para o joelho e ficou olhando para o fogo. O rosto era sereno e amadurecido. Nos seis meses que haviam transcorrido desde o desastre, ele parecia ter envelhecido pelo menos dez anos.
Jenny movimentava-se pela cozinha, fingindo estar ocupada, mas observando-o furtivamente de vez em quando, curiosa em saber o conteúdo da carta. Sentia que correntezas profundas estavam em ação, secretamente, na mente de David. Não compreendia direito, o que estava acontecendo e uma expressão de quase medo estampava-se em seus olhos.
- É alguma coisa importante? - perguntou ela, finalmente.
Jenny não pôde evitar a pergunta, as palavras escapuliram de seus lábios.
- É de Nugent - respondeu David.
Ela fitou-o impassivelmente, depois suas feições se contraíram numa expressão de raiva. Desconfiava daquela súbita e espontânea amizade com Harry Nugent, que derivara do desastre na Neptune. Parecia-lhe quase como uma aliança. Sentia-se excluída e por isso estava ciumenta.
- Pensei que fosse sobre um emprego. Já estou cansada de vê-lo na ociosidade.
David saiu de seu devaneio e fitou-a.
- De certa forma, Jenny, é sobre um emprego. É a resposta a uma carta que escrevi a Harry Nugent na semana passada. Ele está ingressando no corpo médico, seguindo para a França como padioleiro. E cheguei à conclusão de que a única coisa que tenho a fazer é acompanhá-lo.
Jenny respirou convulsivamente... sua reação inesperadamente intensa. Ela ficou esverdeada, uma cor horrível, todo o seu corpo pareceu murchar. David pensou por um momento que ela ia vomitar. Vinha sofrendo ultimamente de estranhas tonturas e ele se levantou rapidamente, pronto para ampará-la.
- Não precisa ficar preocupada, Jenny. Não há qualquer motivo para se preocupar.
- Mas por que você tem de ir? - balbuciou ela, em sua voz estranha e assustada. - Por que tem de deixar esse Nugent arrastá-lo para a guerra? Não acredita na guerra, não tem a menor necessidade de ir.
David ficou comovido com a preocupação dela. Ultimamente, resignara-se à convicção de que o amor de Jenny por ele já não era mais como antigamente. E não sabia muito bem como responder-lhe. Era verdade que não tinha qualquer patriotismo. A máquina política que fomentara a guerra estava ligada em sua mente à máquina económica que provocara o desastre na Neptune. Por trás de cada uma das manifestações, ele podia ver a sede insaciável de poder, de conquista de riqueza, o egoísmo implacável do homem. Mas embora não tivesse patriotismo, sentia que não podia ficar fora da guerra. Era exatamente assim que Nugent também se sentia. Era terrível estar na guerra, mas era mais terrível ainda não estar na guerra. Ele não precisava ir à guerra para matar. Podia ir para salvar vidas. Ficar de fora, de braços cruzados, enquanto a humanidade se engalfinhava numa luta desesperada, era proclamar-se uma fraude para sempre. Era como ficar parado à beira do poço da Neptune, observando a gaiola descer cheia de homens em cujas testas estava o sinal predestinado do desastre, ficar de lado e dizer: vocês estão na gaiola, meus irmãos, mas não vou acompanhá-los, porque o terror e o perigo que os aguardam nunca deveria existir.
David estendeu a mão e afagou o rosto de Jenny.
- É difícil explicar, Jenny. Sabe o que lhe falei... desde o desastre... desde que fui despedido da escola... deixei de tirar o B.A. para ensinar. .. tudo, enfim. Decidi romper com tudo e ingressar na Federação. Mas como está havendo uma guerra agora, não há muita possibilidade de fazer o que quero aqui. Assim, só me resta esperar. Além do mais, Sammy já foi para a guerra, Harry Nugent está de partida. É a única coisa que posso fazer.
- Oh, não, David! - lamuriou-se ela. - Você não pode ir!
- Nada me acontecerá. Não precisa se preocupar.
- Você não pode ir, não pode me deixar agora, não pode me abandonar num momento como este.
Jenny criava a imagem de si mesma como uma mulher abandonada, não apenas por ele, mas também por todas as pessoas em quem confiara.
- Mas, Jenny...
- Não pode me deixar agora. - Ela estava fora de si e as palavras saíram num jato. - É meu marido, não pode me abandonar. Não está vendo que eu vou ter... que nós vamos ter um filho.
Houve um silêncio completo. A notícia deixou David completamente aturdido, pois ele não desconfiara por um instante sequer. E depois Jenny começou a chorar, baixando a cabeça, enquanto as lágrimas simplesmente escorriam de seus olhos. Estava chorando como sempre chorava quando a ofendia. David não podia suportar vê-la chorar daquele jeito e abraçou-a.
- Não chore, Jenny. Pelo amor de Deus, não chore. Estou contente, imensamente contente. Sabe que sempre desejei que isso acontecesse. Pegoume de surpresa por um momento. Isso foi tudo. Não chore, Jenny. Por favor, não chore assim, como se a culpa fosse sua.
Ela fungou e soluçou no peito dele, aconchegando-se. A cor voltou a seu rosto, ela parecia aliviada, agora que lhe contara.
- Não vai me deixar agora, não é mesmo, David? Não vai me deixar pelo menos até o bebé nascer?
Havia algo quase lastimoso na ansiedade de Jenny em partilhar o bebé com ele. Mas David não percebeu.
- Claro que não, Jenny.
- Promete?
- Prometo.
David sentou-se, puxou-a para os seus joelhos. Ela ainda mantinha a cabeça contra o peito dele, como se tivesse receio de deixá-lo ver seus olhos.
- Mas que ideia ficar chorando desse jeito! - disse David, gentilmente.
- Certamente sabia que eu ficaria satisfeito. Por que não me contou antes?
- Pensei que fosse ficar zangado. Tem muito com que se preocupar e anda diferente ultimamente. Não me importo de dizer que você me tem assustado.
David murmurou:
- Não quero assustá-la, Jenny.
- E não vai fazê-lo, não é mesmo, David? Não vai me deixar enquanto não estiver tudo acabado?
Ele segurou-lhe o queixo gentilmente e levantou o rosto banhado pelas lágrimas. Fitou-a nos olhos ao dizer:
- Não vou mais pensar no exército enquanto você não estiver perfeitamente bem, Jenny.
Ele fez uma pausa, prendendo os olhos dela nos seus. Jenny parecia outra vez vagamente assustada, pronta para se encolher toda, para tremer, para chorar.
- Mas promete que vai deixar de beber esse maldito porto, Jenny? Não houve discussão. Uma onda final de alívio invadiu-a e ela desatou a chorar.
- Oh, David, claro que prometo! Prometo tudo! Juro que serei boazinha! Você é o melhor marido do mundo, enquanto eu não passo de uma mulher estúpida, perversa, tola. Mas, oh, David...
Ele abraçou-a com força, consolando-a, sua ternura reforçada e renovada. Em meio à escuridão conturbada de sua mente, sentia um jato de luz aparecer, carregado de esperanças. Teve a visão de uma vida nova a se elevar da morte, o filho de Jenny e dele. E, em sua cegueira, sentiu-se feliz.
Subitamente, a campainha da porta tocou. Jenny levantou a cabeça, agora afogueada e aliviada, o ânimo mudado com uma facilidade quase infantil.
- Quem pode ser? - indagou ela, interessada.
Não estavam acostumados a visitas que tocassem a campainha da porta da frente àquela hora. Antes que Jenny pudesse oferecer qualquer palpite, a campainha tornou a soar. Ela se levantou prontamente e foi atender, na maior pressa.
Voltou um minuto depois, bastante excitada e impressionada.
- É Mr. Arthur Barras, David. Levei-o para a sala de visitas. Oh, David, pode imaginar uma coisa dessas, o próprio Mr. Arthur Barras vindo nos visitar.? Ele pediu para falar-lhe.
O olhar impassível voltou a fixar-se no rosto de David, as feições se contraíram.
- O que ele quer?
- Não disse. E é claro que eu não perguntei. Mas pense nisso. .. o jovem Mr. Arthur Barras nos fazer uma visita! Oh, Deus, se ao menos eu soubesse antes, poderia acender um bom fogo na sala da frente!
Houve um silêncio. O evento social parecia não impressionar David como tão importante. Ele levantou-se e seguiu lentamente para a porta.
Arthur estava andando de um lado para outro da sala, num estado de intenso nervosismo, tendo um sobressalto visível quando David entrou. Ele ficou olhando para David por um instante, com olhos arregalados, um tanto aturdidos, antes de se adiantar apressadamente.
- Lamento muito se o estou incomodando, mas eu não podia deixar de vir - com um gesto brusco, ele arriou numa cadeira, cobriu os olhos com a mão. - Sei como se sente. Não o culpo absolutamente por isso. Não o culparia se tivesse se recusado a me receber. Mas eu tinha de vir. Estou em tal estado que não poderia deixar de procurá-lo. Sempre gostei de você e o respeitei, David. Acho que é o único que pode me ajudar.
David sentou-se à mesa em silêncio, em frente a Arthur. O contraste entre os dois era singularmente patético: um conturbado por uma agitação angustiada, outro firmemente controlado, com força e indulgência estampadas no rosto.
- O que você deseja? - perguntou David.
Arthur descobriu os olhos abruptamente e fixou-os em David, com uma intensidade desesperada.
- A verdade. .. é isso o que quero. Não consigo descansar, não consigo dormir. Quero saber se meu pai é o culpado pelo desastre. Preciso saber, tenho de saber de qualquer maneira. E você tem de me ajudar.
David evitou o olhar dele, dominado por aquela estranha compaixão que Arthur parecia sempre fadado a despertar-lhe.
- O que posso fazer? - indagou ele, em voz baixa. - Já disse no Inquérito tudo o que tinha a falar. Não quiseram me escutar.
- Eles podem reabrir o Inquérito.
- E de que isso adiantaria?
Uma exclamação irrompeu de Arthur, um som impregnado de amargura, entre uma risada e um soluço.
- Justiça - disse Arthur, veemente. - A decência comum e justiça. Pense naqueles homens mortos, subitamente isolados, sofrendo uma morte horrível. Pense no sofrimento de suas mulheres e filhos. Oh, Deus, não consigo suportar tal pensamento! Se meu pai é o culpado, então é brutal e terrível demais pensar que tudo deva ser arquivado e esquecido.
David levantou-se e foi até a janela. Queria dar a Arthur a oportunidade de recuperar o controle. Dali a pouco, ele disse:
- Eu também me senti exatamente assim, a princípio. Talvez até pior... com ódio... um ódio terrível. Mas tentei superá-lo. Não foi fácil. É da natureza humana ter essas reações violentas. Quando um homem lhe joga uma bomba, sua primeira reação é pegá-la e arremessar de volta. Conversei sobre tudo isso com Nugent, quando ele estava aqui. Gostaria que tivesse conhecido Nugent, Arthur. Ele é o homem mais lúcido que já conheci. O problema todo é que jogar a bomba de volta não vai adiantar coisa alguma. É muito melhor ignorar o homem que jogou a bomba e concentrar-se na organização que a produziu. Não adianta procurar pela punição individual pelo desastre da Neptune, quando todo o sistema económico por trás desse desastre é responsável. Pode entender o que estou querendo dizer, Arthur? Não adianta cortar um galho, quando a doença está nas próprias raízes da árvore.
- Isso significa que você não vai fazer nada? - perguntou Arthur, desesperado. As palavras pareciam pegar em sua garganta. - Nada? Absolutamente nada?
David sacudiu a cabeça, as feições rígidas e tristes.
- vou tentar fazer alguma coisa. Assim que tivermos nos livrado desta guerra. Não posso dizer o quê, não posso explicar. Mas pode estar certo de que vou tentar.
Houve um longo silêncio. Arthur passou a mão pelos olhos, num gesto nervoso e atordoado. O suor porejava em sua testa. Ele levantou-se para ir embora.
- Então não vai me ajudar? David estendeu a mão.
- Procure se controlar, Arthur - disse ele, num tom sincero e afetuoso.
- Não deixe que isso se transforme numa obsessão. Vai acabar magoando a si mesmo, mais do que a qualquer outro. É melhor esquecer.
Arthur corou intensamente, o rosto fino e infantil parecendo assustado.
- Não posso - murmurou ele, no mesmo tom amargurado. - Não posso esquecer.
Ele saiu da sala, passando para o pequeno vestíbulo. David abriu-lhe a porta da frente. Estava chovendo. Sem olhar para David, Arthur murmurou uma despedida e embrenhou-se pela escuridão. David ficou parado por um momento na porta de sua casa, escutando os passos que se afastavam rapidamente. E, um momento depois, tudo o que podia ouvir era o barulho da chuva.
Arthur só chegou ao Law depois das sete horas da noite. No tumulto e desordem de sua mente, queria ficar sozinho e esperava que o jantar já tivesse terminado. Mas o jantar ainda não acabara. Todos estavam sentados à mesa quando ele entrou.
Barras estava exultante. Fora a Tynecastle e trouxera para casa a notícia de outra vitória. Fora a batalha de Loos. As forças britânicas na frente ocidental haviam conquistado uma gloriosa vitória, à custa de apenas 15 mil homens. O Tynecastle Argus computara as perdas inimigas em 19 mil mortos e feridos, sete mil prisioneiros e 125 canhões capturados. O Northern Star fora um pouco mais longe, com 21 mil soldados inimigos mortos e feridos e três mil prisioneiros.
Barras estava radiante com uma satisfação excitada. Enquanto comia as costeletas, ele leu em voz firme e oficial o communiqué publicado pelo Northern Star. Barras nunca tivera antes o hábito de ler um jornal vespertino, sempre se contentando com The Times. Mas agora jamais passava sem as edições vespertinas do Argus ou do Star, às vezes de ambos. com o jornal na mão, ele levantou-se abruptamente e foi para a parede oposta, onde havia um mapa em grande escala pendurado, no qual estavam espetadas as bandeiras dos exércitos aliados. Consultando o jornal, Barras deslocou cuidadosamente meia dúzia de pequenas bandeiras inglesas. Todas para a frente.
Observando o pai disfarçadamente, Arthur foi dominado por um pensamento aterrador. Barras, o homem que deslocava bandeiras, era o impulso genético por trás da guerra. Em seu júbilo pela conquista de algumas centenas de metros de trincheiras bombardeadas, ele era culpado, em essência, pelas mortes daqueles milhares de homens.
Depois de deslocar as bandeiras, Barras examinou o mapa atentamente. Estava agora todo concentrado na guerra, de coração e alma, absorvera-se na guerra, era um patriota, vivia num turbilhão de esquecimento. Já participava de seis comités e fora agora indicado para o Conselho de Refugiados do Norte. O telefone tocava o dia inteiro. O carro percorria a todo momento a estrada para Tynecastle. O carvão saía em grandes quantidades da Five Quarter e da Globe Seams, vendendo muito bem, a 40 shillings por tonelada, na boca do poço.
Barras voltou à mesa. Ao sentar-se, lançou um rápido olhar para Hilda, Grace e Arthur, como se quisesse descobrir se haviam observado a sua habilidade com as bandeiras. Depois, com uma satisfação óbvia, ele voltou a se concentrar no jornal. Sua estranha preocupação e indiferença haviam desaparecido. As artérias das têmporas estavam um pouco saltadas e latejavam. O ar era vagamente irrequieto, quase febril; era como um paciente que insiste em desafiar as ordens do médico, um paciente cujo metabolismo está acentuado e cada função acelerada. Enquanto lia o jornal, ele tamborilava com os dedos sobre a mesa, incessantemente. O ruído não era muito diferente do bater rápido de mineiros soterrados numa mina, indicando sua posição.
Por alguns minutos, tudo foi silêncio, a não ser pelo tamborilar dos dedos de Barras. E de repente aconteceu, a coisa inacreditável. Barras leu uma pequena notícia duas vezes. Depois, levantou a cabeça.
- Lorde Kell generosamente ofereceu a sua residência de Londres como um hospital temporário para os soldados feridos. Os trabalhos de adaptação serão concluídos dentro de um mês. Já estão pedindo enfermeiras voluntárias. Lorde Kell manifestou o desejo de que, se possível, todas as enfermeiras sejam do Norte.
Barras fez uma pausa. Olhou para Hilda e para Grace com uma atenção afável, antes de acrescentar:
- Vocês gostariam de ir?
Arthur ficou paralisado em sua cadeira. O pai, o rochedo da unidade familiar, o rochedo inabalável, sobre o qual todas as súplicas anteriores de Hilda haviam se quebrado em vão! Os olhos dele se fixaram em Hilda, quase com apreensão.
Hilda ficou intensamente vermelha. Parecia incapaz de acreditar em seus ouvidos. E ela disse:
- Está falando sério, pai? Jovialmente, Barras disse:
- Geralmente não falo sério, Hilda?
A onda de rubor desvaneceu-se do rosto de Hilda, tão depressa quanto surgira. Ela olhou para Grace, de olhos arregalados e ansiosa ao seu lado. Sua voz tremia de alegria quando falou:
- Acho que nós duas gostaríamos de ir, pai.
- Ótimo!
Barras voltou à leitura do jornal. Estava tudo acertado. Hilda e Grace trocaram um rápido olhar. E Hilda disse:
- Quando poderemos partir, pai? De trás do jornal:
- Creio que muito em breve. Provavelmente na próxima semana. vou me encontrar amanhã com o Conselheiro Leach, em Tynecastle. Conversarei com ele e tomarei as providências necessárias. - Uma pausa e depois, insinuantemente: - Ficarei feliz em saber que pelo menos vocês duas estarão trabalhando por seu país.
Arthur sentiu o suor aflorar nas palmas das mãos. Queria levantar-se e sair da sala, mas não foi capaz de se erguer. Os olhos continuaram fixados no prato. Estava agora dominado pela sensação de vertigem e enjoo que o nervosismo sempre lhe acarretava.
Hilda e Grace se retiraram, ele pôde ouvi-las subirem correndo para discutir o milagre. Tia Carrie já estava lá em cima, cuidando da mãe dele. Novamente, ele fez um esforço para se levantar. Mas as pernas recusaram-se a qualquer movimento. Continuava paralisado, imobilizado pela corrente de hostilidade que fluía em sua direção, de trás do jornal. Ficou esperando.
Como já previa, o pai finalmente baixou o jornal e disse:
- Estou bastante satisfeito com a ansiedade de suas irmãs em servirem ao país.
Arthur estremeceu. Todo um oceano de emoção turbilhonava dentro dele. Outrora houvera amor. Agora havia medo, desconfiança, ódio. Como a mudança ocorrera? Ele sabia e ao mesmo tempo não sabia, estava cansado da tensão do dia, sentia o cérebro entorpecido, incapaz de pensar direito. E respondeu tensamente:
- Hilda e Grace querem apenas escapar daqui.
Um vermelho irregular espalhou-se pela testa de Barras. E ele disse, em voz um tanto alta:
- É mesmo? E por que elas haveriam de querer escapar desta casa? Arthur respondeu apaticamente: parecia não se importar com o que dissesse agora:
- Elas não podem suportar por mais tempo. Hilda sempre odiou esta casa e agora Grace também odeia. Desde o desastre. Ouvi as duas conversarem outro dia. Comentaram como você havia mudado. Hilda disse que parece estar vivendo num estado febril.
Barras pareceu deixar que as palavras resvalassem, sem atingi-lo. Era uma faculdade que desenvolvera recentemente, a de se esquivar a qualquer questão que pudesse perturbá-lo, a suprema faculdade da inibição criteriosa; para Arthur, parecia como Pilatos a lavar as mãos. Depois de um momento, Barras disse, a voz meticulosamente controlada:
- A sua atitude está me preocupando, Arthur. Está muito diferente.
- Você é que mudou, pai.
- E não sou o único que está preocupado. Encontrei-me com Hetty esta noite, no escritório da Central. Ela está extremamente preocupada e sentindo-se infeliz por sua causa.
- Não posso fazer nada por Hetty - disse Arthur, com a mesma amargura apática.
A dignidade de Barras aumentou.
- Alan tem sido mencionado nos despachos. Eles acabaram de receber as notícias. Hetty contou-me hoje. Alan foi recomendado para uma condecoração.
- Também não posso fazer nada por Alan.
O vermelho na testa de Barras espalhou-se para trás das orelhas, desceu pela pele flácida do pescoço. Os vasos nas têmporas estavam engrossados e latejando intensamente. Ele disse em voz bastante alta:
- Não tem o menor desejo de lutar por seu país?
- Não quero lutar por coisa alguma - respondeu Arthur, o tom abafado. - Não quero matar ninguém. Já houve mortes-demais. Nós próprios começamos, na Neptune. E isso me deixou totalmente contra as-matanças.
A voz de Arthur alteou-se subitamente, estridente, histérica:
- Está entendendo agora? Se aquilo não tivesse acontecido, eu poderia ter saído correndo como todos os outros, empunhando uma arma, parecendo muito bonito num uniforme, procurando um homem para matar. Mas aconteceu. Vi aqueles homens morrerem e isso me deixou angustiado. Tive tempo para pensar, entende? Tive tempo para pensar. Tive tempo para pensar...
Ele parou de falar, a respiração ofegante. Não se atrevia a olhar para o pai, mas sentia que o pai observava-o atentamente. Houve um silêncio prolongado e opressivo. Depois, Barras executou o seu gesto habitual, o movimento preciso da mão esquerda seguindo para o bolsinho do colete, uma inspeção impressiva do relógio. Arthur ouviu o estalido da tampa do relógio ao ser fechada. O significado da ação penetrou nele como patológico e alarmante. O pai tinha um encontro em Tynecastle, outra reunião de comité, o pai que tinha o hábito antes de jamais sair de casa depois do jantar, que gostava de ficar ouvindo Handel no conforto de sua casa, o pai que enviara todos aqueles homens para a morte na Neptune.
- Espero que compreenda que não me é indispensável na Neptune disse Barras, levantando-se. - Pense nisso. Pode ajudá-lo a cumprir o seu dever.
E depois ele saiu, fechando a porta. Dois minutos depois, Arthur ouviu o ronco do carro descendo pelo caminho.
Os lábios de Arthur tremeram, todo o seu corpo tremeu novamente, enquanto um ímpeto de fraqueza obstinada o invadia.
- Ele não vai conseguir! - gritou Arthur subitamente para a sala vazia.
- Não vai!
Ao final de setembro, abruptamente e bem cedo pela manhã, Joe Gowlan deixara Sleescale. Embora não explicasse por que nem para onde, Joe tinha bons motivos para ir embora. Por um percurso discreto, ele voltou a Yarrow e seguiu para a Platt Lane.
Avançando pela rua, naquela manhã úmida de outono, ele percebeu que havia uma atividade intensa na Millington. Por cima da cerca alta, podia avistar um novo galpão comprido em construção. Um caminhão que entrara de marcha à ré estava descarregando equipamento pesado. Cautelosamente, Joe espiou por um buraco na cerca de madeira. Puxa, como a coisa estava movimentada! Dois novos tornos estavam entrando na oficina, assim como uma nova máquina perfuradora, moldes e outros equipamentos, os homens levantando e puxando, o capataz Porterfield gritando como o diabo, Irving saindo do escritório com uma porção de papéis na mão. com uma expressão pensativa, Joe empertigou-se e entrou no escritório.
Teve de esperar interminavelmente na ante-sala antes de ser admitido ao gabinete de Millington. Mas nem a demora nem a inspeção relutante de Fuller, o chefe do escritório, arrefeceram seu ânimo. Ele entrou no gabinete de Millington com uma atitude firme.
- Sou eu, Joe Gowlan, Mr. Stanley. - Ele sorriu... deferente, mas confiante. - Talvez não se lembre de mim. Prometeu que poderia me dar outra oportunidade, quando eu voltasse.
Stanley, sentado em mangas de camisa diante da mesa atulhada, levantou a cabeça e olhou para Joe. Stanley estava mais gordo no rosto e a cintura aumentara. Estava também um pouco mais pálido, os cabelos começando a se afastar da testa, uma expressão fraca e irritada. Franziu o rosto agora. Recordou Joe prontamente, mas estava um tanto perplexo. A recordação associava Joe a um macacão de trabalho e alguma fuligem. E ele disse, aturdido:
- Ora, mas é Gowlan, é claro! Veio procurar um emprego?
- Isso mesmo, senhor. - O sorriso de Joe, embora ainda deferente, era irresistível. Contra a sua vontade, Stanley não pôde deixar de sorrir ligeiramente em resposta. - Eu estava indo muito bem, mas senti vontade de fazer uma mudança. E sempre achei que gostaria de voltar a trabalhar sob as suas ordens.
- Entendo - disse Stanley, secamente. - Infelizmente, não estamos precisando de ninguém para pudlagem neste momento. E o que me diz do exército? Um rapaz forte como você deveria estar nofront.
- Rejeitaram-me duas vezes, senhor. Não adianta. É o meu joelho, uma cartilagem ou qualquer outra coisa assim, devo ter deslocado no tempo em que lutava boxe.
Stanley não tinha motivo para acreditar que Joe mentia. Houve uma pausa e depois ele perguntou:
- O que tem feito desde que saiu daqui?
Sem pestanejar, Joe respondeu, modestamente:
- Estive empenhado em trabalho de construção em Sheffield. Era o capataz. Tinha trinta e tantos homens sob as minhas ordens. Mas nunca me senti muito satisfeito desde que deixei a Millington. E sempre esperei que pudesse me dar uma nova oportunidade aqui, conforme prometeu.
Outra pausa. Millington pegou uma régua e pôs-se a girá-la entre as mãos, impacientemente. Estava numa situação de trabalho difícil, com programações e contratos ameaçando atrasar. Subitamente, ocorreu-lhe uma ideia. Como a maioria dos homens obtusos que ocupam posições de responsabilidade, orgulhava-se do que encarava como a sua capacidade de tomar decisões rápidas. E sentiu que estava agora tomando uma decisão rápida. Levantou os olhos abruptamente, com uma expressão um tanto condescendente, que lhe era típica.
- As coisas estão um tanto mudadas por aqui. Sabia disso?
- Não, Mr. Stanley.
Millington inspecionou a régua com uma espécie de triunfo de superioridade.
- Estamos fabricando munições - anunciou ele, solenemente. - Granadas de mão, balas de canhão.
O fato é que havia bons motivos para a expressão de triunfo de Millington. Durante os últimos anos, os negócios haviam diminuído consideravelmente, os mercados antigos definhando e os novos difíceis de encontrar. Muitos operários haviam sido despedidos e o clube social se tornara um pouco menos social do que antes. Apesar de todos os esforços ingentes de Stanley, parecia que a Millington poderia finalmente fechar.
Mas logo depois do início da guerra, o velho Mr. Clegg fora procurar Stanley, resfolegando. Ele estava agora muito asmático, muito velho, cansado e preocupado. Naquela ocasião, porém, fora divinamente inspirado.
- Estamos liquidados, a não ser por uma coisa - disse Clegg, com uma franqueza brutal. - Temos uma guerra agora e podemos perfeitamente tentar vender nossos tupos e cavilhas à Groenlândia. Mas o que eles vão precisar mesmo é de munições, toneladas e mais toneladas de munições, mais do que todos os arsenais do reino podem oferecer. Temos de correr o risco, Mr. Stanley, fazer uma conversão rápida para a fabricação de munições. Se não o fizermos, fecharemos dentro de seis meses. Pelo amor de Deus, Mr. Stanley, não quer discutir o problema?
E eles discutiram, o velho Clegg chiando e resfolegando, expondo o seu projeto para os ouvidos surpresos de Stanley. A fábrica de que dispunham, com alguns acréscimos, serviria perfeitamente. Tinham a fundição, a oficina, quatro fornos comuns e um forno de cúpula. Evidentemente, nada disso permitia a produção dos grandes artefatos de guerra. Mas podiam concentrar-se no material pequeno, shrapnel, granadas de mão e pequenas bombas. É esse o material, declarou Clegg, com emoção, que vai proporcionar grandes lucros e vencer a guerra.
Esse argumento final, incendiando o patriotismo de Stanley, fez a balança pender. Ele aceitou a ideia de Clegg, reuniu todos os seus recursos e investiu em seis novos cadinhos de crisol e outro forno de cúpula. A Millington começou a fabricar munições e, pela primeira vez em cinco anos, a ganhar dinheiro, como se produzisse soberanos, ao invés de shrapnel. Era incrivelmente fácil, a simplicidade do processo deixando Stanley aturdido. Um departamento do governo reagira à sua proposta com uma aceitação febril, pedindo meio milhão de bombas Mills e oferecendo três mil e 500 libras para cada dez mil. O shrapnel era necessário com extrema urgência, insistentemente, 100, 200 e 300 toneladas por semana. Stanley já dispunha de inúmeros contratos; estava ajustando moldes de granadas grandes e tornos pesados; e as fábricas de remate estavam pedindo material mais depressa do que ele podia entregar. Era essa a situação que fez com que Stanley fixasse seus olhos em Joe com a maior atenção. Ele tomou uma decisão súbita.
- Parece que você apareceu no momento certo, Gowlan. Estou com deficiência de pessoal, especialmente por causa da guerra, pois jamais retenho um homem que quer se alistar. Hughes, o capataz da fundição, acaba de partir para a guerra. Estou precisando de um homem para o lugar dele. Mr. Clegg não pode cuidar do serviço dele pessoalmente, pois anda um tanto indisposto ultimamente. Para dizer a verdade, venho cuidando pessoalmente do trabalho de Mr. Clegg. Mas preciso de um capataz na oficina, pois não posso estar em três lugares ao mesmo tempo. Estou pensando em experimentá-lo nessa função. Seis libras por semana e um mês de experiência. O que me diz?
Os olhos de Joe brilharam, a oferta era muito melhor do que esperara; mal podia disfarçar a sua ansiedade.
- Eu aceito, Mr. Stanley. Basta me dar a oportunidade para mostrar-lhe do que sou capaz.
O entusiasmo por trás das palavras de Joe pareceu deixar Millington satisfeito.
- Pois então vamos indo. - Ele se levantou. - vou entregá-lo a Clegg. Encontraram Clegg no galpão de fundição, supervisionando a instalação
dos novos moldes. Ele parecia um homem doente, apoiado numa bengala, o bigode grisalho impregnado de catarro. Não se lembrava de Joe, mas levou-o à oficina, a pedido de Stanley. Por sua experiência anterior, Joe precisou de um único olhar para ter certeza de sua competência para realizar o trabalho. Havia seis cadinhos no total e o processo era extremamente simples: lingote e chumbo numa mistura de 12 por cento, antimônio para endurecer, fogo por baixo, depois despejar nos moldes. Enquanto o velho Clegg arengava, Joe fingia escutar atentamente. Mas, durante todo o tempo, seus olhos alertas estavam esquadrinhando tudo, observando os quarenta e tantos homens que trabalhavam ao clarão vermelho, alimentando os cadinhos, despejando nos moldes, separando as granadas, que pareciam pequenos abacaxis ainda verdes. Vai ser fácil, pensava Joe, já conheço tudo pelo avesso.
- É tudo uma questão de supervisionar os homens - comentou Mr. Stanley, que os seguira. - Basta manter a produção constante.
com uma tranquila eficiência, Joe disse:
- Pode confiar em mim, Mr. Stanley. vou cuidar de tudo sem o menor problema.
Mr. Stanley acenou com a cabeça e afastou-se, em companhia de Clegg.
E Joe prontamente começou a cuidar de tudo, sem o menor problema, como garantira. Desde o início, ele deixou bem claro que era o chefe. Embora jamais tivesse ocupado antes um posto de comando, sentia-se perfeitamente adaptado ao papel; não tinha hesitação, não tinha escrúpulos, era jovial e expansivo. Empenhou-se no trabalho, estava aqui e ali, por toda parte, supervisionando a mistura, a corrida do metal derretido, os moldes, com uma palavra de elogio fácil e uma variedade saudável de imprecações.
Ao final do primeiro mês, a produção da fundição indicava um aumento acentuado e Millington estava satisfeito. Deu-se os parabéns por sua decisão e convocou Joe para cumprimentá-lo pessoalmente e confirmar a designação. Joe não poupava esforços para mostrar como era útil. Millington quase nunca aparecia na oficina, mas Joe estava sempre abordando-o, mostrando alguma coisa que estava sendo feita, apresentando uma sugestão, oferecendo uma nova ideia, todo animação e eficiência. Como o próprio Joe dizia, estava oferecendo um regalo a Stanley, que por temperamento era propenso a ficar perturbado e confuso com uma súbita pressão de trabalho e começou a pensar que Joe era de fato um camarada decidido e competente.
Joe passava as noites calmamente. Por um momento, acalentara o pensamento de voltar a residir com os Sunleys. Mas apenas por um momento. Havia muitos motivos pelos quais Joe não desejava voltar à Scottswood Road e retornar a ligação com a família. Tinha o pressentimento de que estava finalmente no caminho certo: a Millington fervilhava de atividade, o dinheiro entrava fácil, o clima era de excitamento e mudança. Por recomendação de Sim Porterfield, o capataz da oficina, ele alugou um quarto na Beach Road,
4, Yarrow, com a Sra. Calder, uma mulher decente e idosa, encarquilhada e puritana, que pela idade, respeitabilidade e brilho do linóleo não poderia interferir com a virtude de Joe e assim afetar as suas perspectivas.
À medida que os meses foram passando, Joe concentrou-se cada vez mais em sua oportunidade. E quanto mais se concentrava, mais sua atenção se deslocava para a parte de oficina e para Sim Porterfield. Sim era um homem baixo, de rosto pálido, com uma pequena barba preta, uma mulher devota e rabugenta e uma paixão pelo jogo de argolas. Era taciturno, o que lhe dava a reputação de "um pensador", pertencia à Sociedade Fabiana de Yarrow, relia constantemente as obras de Karl Marx, com uma absoluta ausência de compreensão. Não era popular entre os homens nem com Stanley, que desconfiava que Sim era um "socialista". Contudo, era um homem generoso. Fora ele quem contratara Joe naquela tarde memorável, sete anos antes, dando-lhe a sua primeira oportunidade na Millington.
Assim, era natural que Joe se ligasse a Sim, suportando a sua amizade um tanto enfadonha, renunciando aos prazeres mais amenos das tardes de sábado para acompanhá-lo ao terreno do jogo de argolas. Era ainda mais natural que Joe passasse muito tempo estudando Sim, calculando como poderia liquidá-lo. O problema era a austeridade de Sim. Ele jamais bebia além de uma caneca de cerveja, não tinha tempo para mulher e jamais tirava sequer um parafuso pequeno da oficina. Joe começou a pensar que jamais conseguiria encontrar um erro qualquer em'Sim, até a noite em que, ao deixar a Millington, na escuridão do crepúsculo, um estranho furtivamente meteu alguns panfletos em. sua mão, antes de desaparecer pela Platt Lane. Joe olhou com indiferença para os panfletos, à luz do lampião mais próximo: Camaradas! Trabalhadores do Mundo! Abaixo a Guerra! Não deixem que os provocadores de guerras ponham armas em suas mãos para matarem um trabalhador alemão. Como eles os tratam quando entram em greve por um salário que lhes permita viver? Eles não podem lutar esta guerra sem vocês. Parem com a guerra agora! O trabalhador alemão também não quer lutar. Não deixe que eles os mandem para serem bucha de canhão. Trabalhadores nas fábricas de munições, larguem as ferramentas! Armamentos britânicos estão sendo vendidos à Alemanha pelos capitalistas. Abaixo o Capitalismo! Abaixo a Guerra!...
Joe reconheceu a literatura e já ia jogar na sarjeta quando um pensamento ocorreu-lhe. Dobrou os papéis meticulosamente e guardou no bolso. Sorrindo ligeiramente, encaminhou-se para os seus aposentos.
No dia seguinte, ele mostrou-se extremamente afável, entrando e saindo da oficina a todo instante, almoçando com Sim em mangas de camisa no canto da cantina. Depois, ficando subitamente sério, foi ao escritório e pediu para falar com Millington. Ficou trancado na sala com Stanley por um longo tempo.
Às seis horas da tarde, quando o apito soou e os homens vestiram seus casacos, deixando a oficina, Stanley, Clegg e Joe estavam parados juntos à porta. O rosto de Millington estava dominado pela indignação. Quando Sim ia passando, ele estendeu o braço e deteve-o.
- Porterfield, você andou disseminando a sedição em minha fábrica. - Como? - balbuciou Sim, aturdido.
Todos se viraram para observar a cena.
-Não negue! - A voz de Stanley tremia de ultraje. - Sei de tudo. Você e seu maldito Marx. Eu já deveria ter desconfiado antes.
- Não fiz nada, senhor.
-Você não passa de um mentiroso descarado! - gritou Stanley. Foi visto distribuindo panfletos! E o que é isso no bolso interno do seu casaco?
Ele tirou um maço de papéis do bolso do casaco aberto de Sim.
-Isto é nada! Um veneno sedicioso! E na minha fábrica! Você está despedido. Vá pegar seu dinheiro com Mr. Dobbie e nunca mais mostre a sua cara de pró-alemão perto da Millington.
- Mas, Mr. Millington... - balbuciou Sim, desesperado.
Não adiantava. Stanley já virara as costas, estava se afastando com Joe e Clegg. Sim ficou olhando atordoado para os panfletos no chão, pegou um para ler, como um homem num sonho. Cinco minutos depois, ao sair da fábrica quase cambaleando, um bando de homens estava à sua espera no portão. Houve um clamor furioso e alguém gritou:
-Aqui está o maldito pró-alemão! O desgraçado chegou, pessoal! Vamos lhe dar uma lição!
E os homens fecharam o cerco sobre Sim.
- Eu não fiz nada - disse ele, a barba ridícula se levantando num gesto de desafio.
Como resposta, uma barra de aço acertou-o no ouvido. Estonteado, ele tentou defender-se com os punhos, às cegas. Mas um chute violento acertou-o na virilha. Sim caiu de joelhos, uma névoa vermelha de dor a envolvê-lo.
- Pró-alemão! Porco nojento!
Sim experimentou uma última pontada de dor, quando uma botina de biqueira de ferro acertou-o nas costelas. E depois veio a escuridão.
Três semanas depois, Joe foi visitar Sim, que estava na cama, a perna direita em talas as costelas engessadas, uma expressão atordoada no rosto.
- Cristo Todo-Poderoso, Sim! - Joe balbuciou, quase chorando. - Eu não teria acreditado. Estou arrasado com o que aconteceu. E ainda por cima eles me deram o seu lugar. Oh, Cristo, Sim, por que fez uma coisa dessas?
Antes de ir embora, Joe deixou, cortesmente, um recorte do Yarrow News: Operários Britânicos Dão uma Lição a um Canalha. Ao final da notícia, havia a seguinte informação: "Mr. Joseph Gowlan ocupa agora o cargo acumulado de superintendente da fundição e da oficina da Fábrica de Munições Millington." Sim leu a notícia com uma expressão impassível, através dos óculos estreitos, depois pegou o livro que estava na mesinha-de-cabeceira, sempre impassível. Mas não conseguia realmente entender Marx.
Depois disso, a cotação de Joe junto a Millington era a mais alta possível, seu prestígio na fábrica era imenso. E depois veio a memorável manhã de segunda-feira em que Stanley chegou tarde, um tanto contrariado por um recado telefónico de que Clegg estava de cama e não iria trabalhar. Joe já estava no escritório, ostensivamente para conferir as suas programações de trabalho com Stanley.
Stanley, no entanto, parecia apressado, num dos seus acessos de irritação sob pressão, quando dava a impressão de sustentar empreendimentos enormes exclusivamente em seus ombros. Tirou lentamente o sobretudo e o cachecol. Ao tirar as luvas, pediu a Fuller que chamasse Dobbie, o caixa. Depois, enfiando a mão no bolso do sobretudo, ele fez um gesto de impaciência.
- Mas que diabo! - Ele virou-se para Joe. - Esqueci os talões de cheques.
Stanley fez uma pausa, passando a mão pelos cabelos.
- Pegue o carro, por favor, e vá até Hilltop para buscá-los. Peça a Jaura. .. a Sra. Millington. .. ou peça a uma das criadas o envelope comprido que deixei na sala de jantar... creio que em cima da mesa. Ou então está no vestíbulo. Mas trate de sair depressa, antes que Dodds vá embora.
Joe apressou-se em atender. Saiu do escritório e foi para o pátio, onde estava no carro de Millington, ainda com o motor ligado. Explicou o problema a Dodds e um minuto depois estavam a caminho de Hilltop.
Era uma manhã fria e clara, um clima de exultação pairando no ar. Joe sentou-se ao lado de Dodds, no banco da frente. O vento da passagem do carro deixou o seu rosto corado. Ele experimentava uma sensação intensa de sua própria capacidade, de sua crescente importância no mundo. Quando o carro chegou a Hilltop, a cerca de três quilómetros da fábrica, entrando no caminho semicircular da casa de Millington, uma residência grande e moderna, com uma boa vista do campo de golfe, Joe saltou rapidamente, subiu correndo os degraus e apertou a campainha.
Uma criada impecavelmente arrumada abriu-lhe a porta. Ele sorriu-lhe de uma maneira fraternal... pois Joe jamais negligenciava quem quer que fosse.
- Sou da fábrica e preciso falar com a Sra. Millington.
A criada levou-o à sala de estar, onde ele ficou de pé junto ao fogo de carvão na lareira, esperando, cautelosamente. Embora as poltronas parecessem confortáveis e sedutoras, Joe achou que seria mais seguro permanecer de pé. Gostou da sala, confortável e diferente, com um único quadro numa das paredes e mais nada. Mas era um quadro de grande classe, pensou Joe. E ele tinha conhecimentos suficientes para compreender que os móveis eram genuinamente antigos.
E foi então que Laura entrou na sala. Desceu a escada lentamente, parecendo fria e distante, num vestido cinza, de gola e punhos brancos. com um ar de completa indiferença, ela lançou um olhar rápido e impessoal para Joe, indagando:
- O que deseja?
Apesar de sua segurança, Joe sentiu-se intimidado. E balbuciou:
- Vim buscar alguns documentos. Mr. Millington deixou-os na mesa de jantar.
- Ah, sim. ..
Laura ficou parada, observando-o com alguma curiosidade. Joe corou até as raízes dos cabelos, sem saber o que fazer, consciente de que estava sendo examinado, avaliado e julgado. Embora ele amaldiçoasse o seu constrangimento inesperado, o fato é que lhe foi proveitoso, pois subitamente ela sorriu, o sorriso de uma mulher entediada, reagindo a um capricho momentâneo.
- Já não o vi antes em algum lugar? - perguntou Laura.
- Tive o prazer de tirá-la para dançar uma vez, Sra. Millington - balbuciou Joe. - No Social.
- Ah, sim... - Ela assentiu. - Estou lembrando agora. Joe soltou um riso deferente; estava se recuperando.
- Não me esqueci, Sra. Millington. Foi algo que eu não podia esquecer.
Ela continuou a estudá-lo, com algum interesse. Joe parecia de fato extraordinariamente bonito, parado ali, em seu terno azul impecável, as faces coradas, os dentes brancos e fortes brilhando num sorriso, os cabelos crespos e os olhos castanhos-escuros.
- Stanley falou a seu respeito outro dia - comentou Laura, pensativa.
- Parece que está indo muito bem na fábrica.
Ela fez uma pausa, antes de acrescentar, com um sorriso ligeiramente divertido:
- Foi você que a namorada abandonou. Ou aconteceu justamente o contrário?
Joe baixou os olhos apressadamente, sentindo que ela via através dele e estava se divertindo à sua custa.
- De qualquer forma, é um caso acabado... - murmurou Joe. Laura não disse nada por um minuto.
- bom, vou buscar os documentos. - Ela encaminhou-se para a porta, mas parou no meio do caminho, à sua maneira impessoal. - Não gostaria de tomar um drinque?
- Geralmente não bebo pela manhã. Afinal, tenho de trabalhar pelo resto do dia.
Como se não tivesse ouvido, ela pegou a garrafa de cristal que estava em cima do armário de bebidas de nogueira e serviu um uísque com soda. E depois saiu da sala.
Joe estava tomando o uísque com soda quando ela voltou. Entregando-lhe os documentos, Laura comentou:
- Deseja muito progredir, não é mesmo?
- Claro que sim, Sra. Millington - respondeu Joe, com uma deferência ansiosa.
Houve silêncio, enquanto ela olhava para o fogo, com uma expressão entediada. Joe ficou observando-a, meio aturdido. Ela não era bonita. Tinha um rosto muito pálido, com pequenas manchas azuladas sob os olhos. Os cabelos pretos eram comuns. O corpo nada tinha de excepcional. Era um corpo até que atraente, mas nada tinha de extraordinário. Os tornozelos não eram esguios e os quadris um tanto avantajados. Mas era extremamente elegante, não no sentido comum, mas excepcionalmente elegante, impecavelmente elegante. O vestido era de um bom gosto extraordinário, os cabelos e as mãos perfeitamente cuidados. com uma admiração atordoada, Joe compreendeu que Laura era uma mulher meticulosa e não pôde deixar de pensar como as roupas de baixo dela deviam ser maravilhosas.
Mas ele acabara o uísque e não podia arrumar mais algum pretexto para se retardar. Largou o copo em cima da lareira e disse:
- Preciso voltar à fábrica.
Ela não disse nada. Desviou os olhos do fogo para fitá-lo, outra vez exibindo-lhe o seu sorriso frio, um pouco irónico. Estendeu a mão, fria e firme. Joe apertou-lhe a mão, extremamente deferente e polido... as suas próprias mãos eram também bem cuidadas... e um instante depois ele havia saído da casa.
Joe sentou-se no carro com a cabeça em turbilhão. Não sabia, não podia ter certeza, mas tinha a impressão descabida e impossível de que causara alguma impressão em Laura Millington. A ideia era absurda, provavelmente, mas ele sentia mesmo assim uma tremenda exultação estofar-lhe o peito. Estava perfeitamente consciente de que era muito atraente para as mulheres; não podia andar pelas ruas sem perceber os olhares de admiração que lhe eram lançados. Laura nada dissera, nada fizera, seu comportamento fora completamente reservado e frio; contudo, Joe conhecia as mulheres; e percebera alguma coisa controlada demais, um lampejo sob a indiferença entediada dos olhos de Laura. Joe, que não tinha o menor escrúpulo moral, exultava interiormente. E se fosse verdade? Sempre desejara que uma dama se sentisse atraída por ele. Muitas vezes, na Grainger Street, passeando entre a multidão, ele observava algum carro parar e uma mulher elegantemente vestida e desdenhosa atravessar rapidamente a calçada, entrando em alguma loja de luxo, deixando em sua esteira um perfume peculiar e exasperante e o senso insuportável de que era inacessível. No passado, isso sempre espicaçara Joe, fazendo-o enfiar as mãos no bolso de raiva, sentindo a própria virilidade e jurando a si mesmo que algum dia ainda teria uma mulher assim, uma dama de verdade. Por Deus, teria mesmo! As mulheres ordinárias eram ótimas, mas uma dama era diferente. Ao pensar nisso, ele tornava a avançar com a manada, abrindo caminho com os ombros, os lábios espichados para a frente, talvez parando diante de uma vitrina, em que estava exposta lingeríe de qualidade. Era aquilo que elas usavam, e a imaginação de Joe, rejeitando as coisas grosseiras de algodão que estavam ao seu alcance, alçava voo para um futuro em que poderia realizar todas as sutilezas de seu desejo.
Joe lembrou-se de tudo isso enquanto voltava para a fábrica, mal conseguindo ficar quieto no assento, de tanto excitamento. Não parava de se contemplar e admirar no espelho pequeno do carro, passando a mão pelos cabelos lustrosos e ondulados naturalmente. Chegando ao escritório, ele entregou os documentos a Stanley e depois seguiu para a oficina, inebriado.
Mas à medida que os dias foram passando e nada aconteceu, absolutamente nada, a complacência de Joe foi minguando. Ele esperava por algum sinal, alguma vaga indicação do interesse de Laura. Mas por todo o interesse que Laura demonstrava, era como se ele nunca tivesse existido. Joe começou a pensar que se enganara; depois ficou convencido de que se enganara. Tornou-se soturno e irritado, descarregava seu despeito nos homens na fundição. Acabou passando uma noite desvairada em companhia de uma jovem espalhafatosa e que não conhecia, cujas unhas sujas terminaram por enojá-lo.
Três meses se passaram. E numa tarde gelada, ao final de novembro, quando Joe estava conversando com Stanley sobre alguns moldes defeituosos, Laura apareceu no escritório. Ela viera em seu próprio carro, a fim de buscar Stanley, para irem a Tynecastle. Entrou calmamente na sala, uma pele prateada de raposa ressaltando o oval pálido do rosto. O coração de Joe disparou.
Stanley levantou os olhos dos papéis com alguma irritação. Durante aquele outono, a tendência de Stanley para a irritação aumentara consideravelmente. No escritório enfumaçado, ele parecia pálido, murcho e suado.
- Excesso de trabalho - protestava ele, em tom de lamento. - Afinal, há seis semanas que Clegg não aparece no escritório.
Depois de apresentar a ideia para converter as instalações numa fábrica de munições, o velho Mr. Clegg caíra de cama, como se o esforço fosse demais para a sua constituição debilitada. O médico informara que ele ficaria acamado por muito tempo. Havia até a possibilidade de não tornar a deixar a cama. Isso preocupava Stanley. Ultimamente, Millington vinha perdendo o vigor e se mostrava propenso a lamentos impulsivos sobre sua falta de condições e a impossibilidade de jogar golfe regularmente duas vezes por semana. Seu tom nessas ocasiões era o de um homem que perdera o botão do colarinho e culpa todos na casa por isso.
- Estarei pronto dentro de um minuto, Laura - resmungou ele. - Já conhece Gowlan, não é mesmo? Joe Gowlan. O único homem além de mim que trabalha aqui na fábrica.
Joe mal se atrevia a levantar os olhos. Balbuciou algumas palavras formais e, assim que pôde, reuniu todos os papéis e saiu da sala apressadamente. Stanley bocejou e largou a caneta.
- Estou cansado, Laura, terrivelmente cansado. Gim demais na noite passada e pouco sono. Passei o dia inteiro sem conseguir trabalhar direito. Oh, Deus, quando penso como tinha antigamente as melhores condições físicas! O problema é que estou deixando de jogar meu golfe. Devo recomeçar a tomar meus banhos frios pela manhã. Gostaria de dispor de tempo para recuperar o estado físico. Estou cansado de tanto trabalho. O dinheiro está entrando, é verdade, mas de que isso me serve? Clegg ainda está de cama e acho que não vou conseguir aguentar por muito tempo. Terei de aposentá-lo com uma pensão e contratar um novo homem para ser o gerente da fábrica.
- Claro que deve - concordou ela.
Stanley reprimiu outro bocejo, com uma expressão irritada.
- É muito difícil arrumar um bom homem. Todos já estão bem contratados ou então no front. Mesmo assim, tenho de pôr um anúncio. Farei isso na segunda-feira.
Laura alisou a pele com os dedos brancos e flexíveis, como se estivesse apreciando a sensação da maciez voluptuosa.
- Por que não dá uma oportunidade a esse Gowlan? - disse ela, distraidamente.
Stanley fitou-a com uma expressão aturdida.
- Gowlan? - Ele soltou uma risada brusca. - Joe Gowlan, meu gerente da fábrica? Isso demonstra como você sabe pouco sobre os meus negócios, querida. Gowlan era também um operário, não faz muito tempo. A ideia é completamente absurda.
- Acho que tem razão - comentou Laura, indiferente. - Não compreendo mesmo.
Ela virou-se para a porta. Mas Stanley não a seguiu.
- O trabalho de Clegg é de uma tremenda responsabilidade. Significa tomar conta de tudo quando não estou presente. É uma idiotice pensar que Gowlan poderia assumi-lo. - Ele esfregou o queixo, indeciso. - E, no entanto, é possível... Não se pode negar que ele é um camarada muito capaz. Temme ajudado muito nos últimos três meses. É bastante popular entre os homens e muito esperto, honesto ainda por cima. E foi ele quem me esclareceu sobre aquele porco do Porterfield. Espere um instante, Laura. Não sei ainda com certeza, mas talvez a sua ideia seja muito boa, no final das contas.
Ela olhou para o pequeno relógio de pulso, por fora da luva.
- Não pense mais na ideia, Stanley. Já está na hora de partirmos.
- Espere um instante, Laura. Acredito sinceramente que isso resolve o meu problema. Está havendo uma guerra, e é numa ocasião assim que os homens conseguem suas melhores promoções. Creio que pode haver coisas piores do que experimentar Gowlan no cargo.
- Deve fazer exatamente o que achar melhor.
- Santo Deus, Laura! Do jeito que você fala, parece até que já agi de alguma outra forma. Mas a ideia está me atraindo. O que acha da ideia de convidá-lo para jantar uma noite dessas e ver como ele se comporta?
- Como quiser. Mas temos de partir agora ou chegaremos atrasados.
Stanley ficou imóvel por um momento, a testa franzida, numa atitude pensativa. Depois, subitamente, ele pôs o chapéu-coco e estendeu a mão para o casaco. Seguiu Laura pelo corredor, saindo para o pátio. Passando pela oficina, ele gritou por Joe.
Joe adiantou-se lentamente. Empertigando-se dentro do casaco, Stanley comentou, em tom de indiferença.
- Já ia quase me esquecendo, Joe. Quero que venha jantar conosco uma noite dessas. Que tal amanhã? Já tem algum compromisso marcado?
Joe ficou paralisado, incapaz de falar.
- Não, não tenho nada marcado - balbuciou ele, finalmente.
- Então está combinado - declarou Stanley. - Às sete e meia, caso eu me esqueça.
Joe assentiu. Estava consciente de que os olhos escuros de Laura examinavam-no por cima do ombro de Stanley, com uma expressão neutra. Depois, os dois se viraram e se afastaram.
Ele ficou olhando para os dois, sentindo o coração bater violentamente. Tinha vontade de gritar de alegria. Finalmente! Finalmente! Estava certo, no final das contas. Inebriado pelo triunfo, ele voltou ao trabalho.
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Naquela noite, ao voltar para casa, Joe não conseguiu ficar quieto. Tinha de contar a alguém, era impossível conter dentro de si mesmo a sua deliciosa exultação. Foi dominado por um estranho desejo, uma tentação. E não pôde resistir. Pegou um bonde para atravessar a ponte e ir a Tynecastle, levando a sua exultação para a Scottswood Road.
Entrou na casa dos Sunleys com um ar descontraído, no momento em que eles sentavam para jantar. Alfred, Ada, Clarry e Phyllis - Sally não estava presente, integrando um grupo musical que acabara de partir para a França receberam-no com a maior satisfação, o que fez com que Joe se sentisse ainda melhor.
- É um prazer tornar a vê-lo - repetia Ada a todo instante.
Joe aceitou a sua antiga cadeira ao lado do fogo e deixou que Ada mandasse buscar um pouco de presunto frio e pão. Enquanto comia os sanduíches, Joe comunicou-lhes os seus sucessos na Millington. Pegando a mostarda, ele acrescentou em tom distraído:
- Por falar nisso, vou jantar amanhã de noite em Hilltop com Stanley e a Sra. Millington.
A admiração atónita de todos proporcionou-lhe uma emoção gloriosa. Joe era um homem que se gabava por natureza, particularmente quando a audiência era receptiva. E agora ele gabou-se a contento de seu coração. Discorreu longamente sobre a coisa espetacular que era o convite, sobre a nobreza de sua missão na fábrica. Declarou solenemente, com a boca cheia de presunto, que alguém tinha de fabricar as balas, bombas e granadas para os rapazes no front. E havia muito futuro na fabricação de munições. Ele soubera outro dia que iam erguer novos galpões em Wirtley, no terreno baldio no alto de Yarrow Hill, destinados a encher de pólvora e dar o acabamento nos produtos que saíam da fundição. Mr. Stanley dissera que estariam em breve empregando centenas de moças ali, enchendo as granadas com T.N.T. Mr. Stanley récebera a notícia diretamente de Londres. Joe olhou para Clarry e Phyllis com uma expressão cordial, indagando:
- Por que vocês duas não entram nisso? Vão pagar três vezes mais do que ganham na Slaterry, e o trabalho é uma sopa.
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Ada parecia interessada. E disse:
- É mesmo verdade, Joe? Joe declarou, pomposamente:
- Claro que é verdade. Por quem está me tomando? Sei das coisas, não é mesmo? Podem ter certeza absoluta!
Ada ficou pensando por um momento, na cadeira de balanço. A pintura de casas em Tynecastle, naqueles primeiros dias da guerra, estava quase parada; não havia tanto dinheiro entrando na casa como Ada gostaria, inclusive porque os salários de Clarry e Phyllis eram bem pequenos. Ela disse finalmente :
- Gostaria que me informasse se souber de mais alguma coisa a respeito, Joe.
Ada sempre tivera uma fraqueza por Joe, uma suave ternura maternal. Naquela noite, estava achando-o maravilhosamente bonito... o perfeito cavalheiro, impetuoso e enérgico. Ada suspirou; sempre quisera ter Joe como genro; era lamentável que Jenny tivesse jogado fora a oportunidade, ainda mais agora, quando as coisas corriam tão bem para Joe.
Depois que Clarry e Phyllis 'se retiraram e Alf estava ocupado com os pombos nos fundos, Ada olhou para Joe e balbuciou, num tom triste e confidencial :
- Não tem tido notícias de Jenny? -Não.
Tirando a cigarreira do bolso, Joe concentrou-se em acender um cigarro. Ada suspirou.
- Ela está esperando filho para o próximo mês. Terei de ir até lá e cuidar de tudo pessoalmente.,Deve ser no princípio de dezembro.
A fumaça do cigarro entrou pela garganta de Joe. Ele tossiu e engasgou, ficou com o rosto vermelho. Depois de uma pausa, ele disse:
- Quer dizer que pode haver dificuldades? Ada assentiu, pesarosa.
- A pobre Jenny não está passando nada bem. E ele ainda vai para o exército. Depois disso, só Deus sabe o que poderá acontecer. Ele foi despedido do seu emprego de professor. Pode imaginar uma coisa dessas? Sempre achei que ela desperdiçou a sua oportunidade, Joe. E pensar agora que ela caiu nessa...
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