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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOB A REDOMA - P.2 / Stephen King
SOB A REDOMA - P.2 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

 

 

 

ESTRELAS COR-DE-ROSA CAINDO

Barbie e Rusty saíram e respiraram fundo ao ar livre. Havia um travo de fumaça do incêndio recém-apagado a oeste da cidade, mas o ar parecia bem fresco depois dos vapores de exaustão no depósito. Uma brisinha lânguida tocou de leve o rosto dos dois. Barbie levava o contador Geiger numa sacola de compras marrom que achara no abrigo antirradiação.

— Essa merda não vai aguentar — disse Rusty. O rosto estava fechado e decidido.

— E o que você vai fazer? — perguntou Barbie.

— Agora? Nada. Vou voltar pro hospital e fazer a ronda. Mas hoje à noite pretendo bater na porta do Jim Rennie e pedir uma boa explicação. É melhor que ele possa explicar, e é melhor que esteja com o resto do nosso gás, porque o do hospital vai acabar depois de amanhã, mesmo desligando tudo o que não for essencial.

— A situação pode estar resolvida até depois de amanhã.

— Você acredita nisso?

Em vez de responder, Barbie disse:

— Pressionar o vereador Rennie agora pode ser bem perigoso.

— Só agora? Nada mostra tão bem que você é novo na cidade. Eu ouço isso sobre Big Jim por todos os 10 mil anos, mais ou menos, em que ele vem mandando na cidade. Ou ele manda o povo se catar ou implora paciência. “Pelo bem da cidade”, é o que ele diz. Esse é o número um na parada de sucessos dele. Em março, a assembléia da cidade é uma piada. Uma lei que autorize um novo sistema de esgotos? Sinto muito, a cidade não pode arcar com tanto imposto. Uma lei pra autorizar mais zonas comerciais? Grande ideia, a cidade precisa de mais receita, vamos construir um Walmart na 117. O Estudo Ambiental de Cidades Pequenas da Universidade do Maine diz que tem efluentes demais no lago Chester? Os vereadores recomendam o engavetamento da discussão porque todo mundo sabe que esses estudos científicos são feitos por ateus humanistas radicais de coração mole. Mas o hospital é pro bem da cidade, você não acha?

— É, acho. — Barbie ficou um pouco confuso com essa explosão.

Rusty fitou o chão com as mãos no bolso de trás. Depois, ergueu os olhos.

— Disseram que o presidente te mandou assumir o controle. Acho que está mais do que na hora de você fazer isso.

— É uma ideia. — Barbie sorriu. — Só que... Rennie e Sanders têm a polícia deles; cadê a minha?

Antes que Rusty respondesse, o celular tocou. Ele o abriu e olhou a telinha.

— Linda? O quê?

Ele escutou.

— Tudo bem, entendi. Se você tem certeza de que as duas estão bem agora... E foi mesmo a Judy? Não foi a Janelle?

Escutou um pouco mais e continuou.

— Acho que no fundo a notícia é boa. Eu vi duas outras crianças hoje de manhã, ambas com convulsões transitórias que passaram depressa, bem antes que eu as visse, e ficaram bem depois. Ligaram sobre mais três. Ginny T. cuidou de mais uma. Pode ser um efeito colateral da força que alimenta a Redoma.

Ele escutou.

— Porque eu não tive tempo — disse ele. A voz paciente, sem confronto.

Barbie conseguiu imaginar a pergunta que provocara a resposta: Crianças tiveram convulsões o dia todo e só agora você me conta?

— Vai buscar as meninas? — perguntou Rusty. Escutou. — Certo. Isso é bom. Se pressentir algo errado, me liga logo. Eu vou correndo. E deixe a Audi sempre com elas. Isso. Hã-hã. Amo você também. — Ele pendurou o celular no cinto e passou as duas mãos pelo cabelo com força suficiente para os olhos parecerem chineses por um tempinho. — Meu Jesus Cristinho.

— Quem é a Audi?

— A nossa golden retriever.

— Me fala dessas convulsões.

Rusty explicou, sem omitir o que Jannie dissera sobre o Halloween e o que Judy dissera sobre estrelas cor-de-rosa.

— Isso de Halloween parece o que o menino Dinsmore estava delirando — disse Barbie.

— Parece, não é?

— E as outras crianças? Alguma delas falou de Halloween? Ou estrelas cor-de-rosa?

— Os pais com quem eu conversei hoje disseram que os filhos balbuciavam durante as convulsões, mas ficaram apavorados demais pra prestar atenção.

— As crianças não se lembram?

— Elas nem sabem que tiveram convulsões.

— Isso é normal?

— Não é anormal.

— Alguma possibilidade de a sua caçula estar imitando a mais velha? Talvez.., sei lá... querendo atenção?

Rusty não pensara nisso; na verdade, não tivera tempo. Agora pensou.

— É possível, mas não provável. — Apontou com a cabeça o antiquado contador Geiger amarelo na sacola. — Vai sair procurando com essa coisa?

— Eu, não — disse Barbie. — Essa gracinha é propriedade municipal e as autoridades constituídas não vão muito com a minha cara. Não seria bom se me pegassem com ele. — E estendeu a sacola para Rusty

— Não posso. Estou ocupado demais por enquanto.

— Eu sei — disse Barbie, e explicou a Rusty o que queria que fizesse. Rusty ouviu com atenção, sorrindo um pouco.

— Tudo bem — disse. — Pra mim está bom. O que você vai fazer enquanto eu cumpro a sua missão?

— Preparar o jantar no Rosa Mosqueta. O especial de hoje é frango à Barbara. Quer que eu mande uma quentinha pro hospital?

— Maravilha — respondeu Rusty.

 

No caminho de volta para o Cathy Russell, Rusty parou na redação do Democrata e entregou o contador Geiger a Julia Shumway.

Ela escutou a transmissão das instruções de Barbie, sorrindo de leve.

— Esse aí sabe delegar funções, isso eu tenho que admitir. Cuido disso com prazer.

Rusty pensou em avisá-la para ter cuidado com quem a visse com o contador Geiger da cidade, mas não precisou. A sacola sumiu debaixo da escrivaninha.

A caminho do hospital, telefonou para Ginny Tomlinson e perguntou sobre o caso de convulsão que ela atendera.

— Um garotinho chamado Jimmy Wicker. O avô telefonou. Bill Wicker?

Rusty o conhecia. Bill entregava a correspondência.

— Ficou tomando conta do Jimmy enquanto a mãe do garoto foi abastecer o carro. Aliás, o Posto e Mercearia está quase sem gasolina comum, Johnny Carver teve coragem de subir o preço pra três dólares o litro. Três!

Rusty suportou isso com paciência, pensando que era melhor do que ter essa conversa com Ginny frente a frente. Estava quase chegando ao hospital. Quando ela terminou de reclamar, ele perguntou se o pequeno Jimmy dissera alguma coisa durante a convulsão.

— Disse, sim. Bill contou que ele balbuciou bastante. Acho que era alguma coisa sobre estrelas cor-de-rosa. Ou Halloween. Ou talvez eu esteja confundindo com o que Rory Dinsmore disse depois do tiro. Todo mundo falou disso.

É claro que falaram, pensou Rusty, preocupado. E vão falar disso também se descobrirem. Como provavelmente vai acontecer.

— Tudo bem — disse ele. — Obrigado, Ginny.

— Quando você volta, caubói?

— Já estou quase aí.

— Ótimo. Porque temos uma nova paciente. Sammy Bushey. Foi currada.

Rusty gemeu.

— Tem mais. Piper Libby trouxe ela pra cá. Não consegui tirar da moça o nome dos agressores, mas acho que a Piper conseguiu. Saiu daqui como se o cabelo estivesse pegando fogo e o cu... — Uma pausa. Ginny deu um bocejo tão alto que Rusty ouviu. — ... o cu em chamas.

— Ginny, querida, quando foi que você dormiu pela última vez?

— Estou bem.

— Vai pra casa.

— Está brincando? — Com voz horrorizada.

— Não. Vai pra casa. Dorme. E não liga o despertador. — Então, ele teve uma ideia. —- No caminho, dá uma passadinha no Rosa Mosqueta, que tal? Vão servir frango. Soube de fonte confiável.

— Sammy Bushey...

— Cuido dela em cinco minutos. E você vai dar uma de abelha e sair zumbindo.

Ele desligou o celular antes que ela pudesse protestar outra vez.

 

Big Jim Rennie sentia-se muitíssimo bem para quem cometera um assassinato na noite da véspera. Em parte, era porque não considerava aquilo assassinato, assim como não considerava assassinato a morte da falecida esposa. Fora o câncer que a levara. Inoperável. É verdade que ele talvez tivesse lhe dado analgésicos demais na última semana, e no final ainda teve que ajudá-la com um travesseiro no rosto (mas de leve, bem de leve, retardando a respiração dela, passando-a para os braços de Jesus), mas fizera aquilo por amor e gentileza. O que aconteceu com o reverendo Coggins foi um pouco mais violento — confessadamente — mas, o homem fora muito teimoso. Totalmente incapaz de pôr o bem-estar da cidade à frente do seu.

— Bom, hoje à noite ele vai jantar com Cristo Senhor — disse Big Jim. — Rosbife, purê de batata com molho, torta de maçã de sobremesa. — Ele mesmo comia um grande prato de fettuccine Alfredo, cortesia da empresa Stouffer. Um monte de colesterol, supunha, mas não havia dr. Haskell por ali para importuná-lo.

— Durei mais que você, seu cocô velho — disse Big Jim ao escritório vazio e riu de bom humor. O prato de macarrão e o copo de leite (Big Jim Rennie não bebia álcool) estavam sobre o borrador da escrivaninha. Ele costumava comer no escritório e não achou necessário mudar isso só porque Lester Coggins encontrara ali o seu fim. Além disso, o cômodo estava mais uma vez arrumado e limpíssimo. Ah, ele achava que uma daquelas unidades de investigação que apareciam na TV conseguiria encontrar muitos respingos de sangue com luminol, luzes especiais e coisas assim, mas nenhuma daquelas pessoas estaria ali em um futuro próximo. Quanto a Pete Randolph fazer alguma investigação sobre o assunto... só se fosse piada. Randolph era um idiota.

— Mas — disse Big Jim à sala vazia com voz professoral — ele é o meu idiota.

Big Jim sugou os últimos fios de macarrão, limpou com um guardanapo o considerável queixo e voltou a fazer anotações no bloco de papel amarelo ao lado do borrador. Fizera muitas anotações desde sábado; havia muito a fazer. E se a Redoma continuasse ali, haveria mais ainda.

Big Jim meio que esperava que ficasse no lugar, ao menos por enquanto. A Redoma trouxera desafios que ele tinha certeza de conseguir enfrentar (com a ajuda de Deus, é claro). A primeira providência era consolidar o seu domínio sobre a cidade. Para isso, precisava de mais do que um bode expiatório; precisava de um bicho-papão. A opção óbvia era Barbara, o homem que o comandante em chefe do partido democrata mandara para substituir James Rennie.

A porta do escritório se abriu. Quando Big Jim ergueu os olhos das anotações, o filho estava ali em pé. O rosto estava pálido e sem expressão. Ultimamente, havia algo errado com Junior. Mesmo ocupado como estava com os problemas da cidade (e a outra questão; essa também o mantivera ocupado), Big Jim percebia. Mas ainda assim sentia confiança no rapaz. Mesmo que Junior o abandonasse, Big Jim tinha certeza de que daria um jeito. Passara a vida criando a própria sorte; isso não mudaria agora.

Além do mais, o rapaz removera o corpo. Aquilo o tornava parte disso. O que era bom — na verdade, era a essência da vida nas cidades pequenas. Numa cidade pequena, todos tinham que fazer parte de tudo. Como é que dizia aquela música idiota? E pro time nós torcemos.

— Filho? — perguntou. — Tá tudo bem?

— Tudo — respondeu Junior. Não estava, mas estava melhor, a última dor de cabeça asquerosa finalmente passando. Ficar com as namoradas ajudara, como ele sabia que ajudaria. A despensa dos McCain não cheirava muito bem, mas depois de ficar um pouco ali sentado, segurando as mãos delas, ele se acostumara. Achou que conseguiria até gostar daquele cheiro.

— Encontrou alguma coisa no apartamento dele?

— Encontrei. — Junior lhe disse o que encontrara.

— Excelente, filho. Excelente mesmo. E você pode me contar onde pôs... onde pôs ele?

Devagar, Junior fez que não com a cabeça, mas os olhos permaneceram o tempo todo no mesmo lugar: presos no rosto do pai. Era meio esquisito.

— O senhor não precisa saber. Já disse isso. É um lugar seguro, e isso basta.

— Então agora você vai me dizer o que eu preciso saber. — Mas disse isso sem o ardor de sempre.

— Neste caso, vou.

Big Jim examinou o filho com atenção.

— Tem certeza de que você está bem? Está pálido.

— Estou bem. É só dor de cabeça. Já está passando.

— Por que não come alguma coisa? Ainda tem fettuccine no congelador e o micro-ondas esquenta muito bem. — Ele sorriu. — É bom aproveitar enquanto a gente pode.

Os olhos escuros e pensativos caíram um instante na poça de molho branco no prato de Big Jim e depois subiram de novo até o rosto do pai.

— Não estou com fome. Quando eu devo encontrar os corpos?

— Corpos? — Big Jim o fitou. — O que você quer dizer com corpos?

Junior sorriu, os lábios se erguendo só o bastante para mostrar a ponta dos dentes.

— Nada, nada. Vai ser melhor pra credibilidade se você se surpreender como todo mundo. Digamos assim... quando a gente puxar o gatilho, essa cidade vai ter vontade de enforcar Baaarbie num pé de maçã verde. Quando quer começar? Hoje à noite? Porque vai dar certo.

Big Jim pensou na pergunta. Olhou o bloco amarelo. Estava coalhado de anotações (e respingado de molho alfredo), mas só uma estava sublinhada: piranha do jornal.

— Hoje não. Podemos usá-lo pra mais do que a morte Coggins se jogarmos direito.

— E se a Redoma sumir durante o jogo?

— Sem problemas — disse Big Jim. Pensando, E se o sr. Barbara conseguir escapulir da armação, pouco provável, mas as baratas sempre conseguem achar rachaduras quando a luz se acende, sempre temos você. Você e os seus outros corpos. — Agora vai comer alguma coisa, mesmo que seja só uma salada.

Mas Junior não se mexeu.

— Não espere demais, pai — disse ele.

— Não vou esperar.

Junior examinou o caso, examinou o pai com aqueles olhos escuros que agora pareciam tão estranhos, e depois pareceu perder o interesse. Bocejou.

— Vou subir pro quarto e dormir um pouco. Depois eu como.

— Não deixa de comer. Você está ficando magro demais.

— Ser magro está na moda — respondeu o filho, e deu um sorriso vazio que era ainda mais inquietante do que os olhos. Para Big Jim, parecia o sorriso de uma caveira. Isso o fez pensar no sujeito que agora só se intitulava o Chef, como se a vida anterior como Phil Bushey tivesse sido eliminada. Quando Junior saiu do escritório, Big Jim deu um suspiro de alívio sem nem tomar consciência disso.

Pegou a caneta: tanta coisa a fazer. Ele faria, e faria direito. Não era impossível que, quando aquilo acabasse, a foto dele fosse parar na capa da revista Time.

 

Com o gerador ainda funcionando — embora isso não fosse durar muito tempo, a menos que ela encontrasse mais alguns cilindros de gás —, Brenda Perkins conseguiu ligar a impressora do marido e fazer uma cópia em papel de tudo o que estava na pasta VADER. A lista inacreditável de crimes que Howie compilara — e que, aparentemente, estava prestes a usar na época da sua morte — lhe pareceu mais real em papel que na tela do computador. E quanto mais olhava, mais parecia se encaixar no Jim Rennie que ela conhecia quase a vida toda. Sempre soubera que ele era um monstro; só não sabia que era um monstro tão grande.

Até as coisas sobre a igreja fanática de Coggins se encaixavam... embora, se ela tivesse lido direito, na verdade não era uma igreja, mas uma enorme Brastemp santa que lavava dinheiro em vez de roupa. Dinheiro de uma operação de produção de drogas que, nas palavras do marido, “talvez seja uma das maiores na história dos Estados Unidos”.

Mas havia problemas, como admitiam tanto o chefe de polícia Howie “Duke” Perkins quanto o procurador-geral do estado. Os problemas explicavam por que a fase de coleta de provas da Operação Vader demorara tanto. Jim Rennie não era só um monstro grande; ele era um monstro esperto. Por isso sempre se contentara em ser segundo vereador. Tinha Andy Sanders para lhe abrir caminho.

E para servir de alvo — isso também. Por muito tempo, fora só contra Andy que Howie conseguira provas concretas. Ele era testa de ferro e provavelmente nem sabia, por ser um imbecil tão alegre e efusivo. Andy era o primeiro vereador, o primeiro diácono da Sagrado Redentor, o primeiro no coração dos habitantes da cidade e na frente de um rastro de documentos empresariais que acabavam sumindo nos tortuosos pântanos financeiros de Nassau e da ilha Grand Cayman. Se Howie e o procurador-geral do estado tivessem se mexido cedo demais, ele também teria sido o primeiro a ser fotografado segurando um número. Talvez o único, caso acreditasse nas promessas inevitáveis de Big Jim de que tudo acabaria bem se Andy ficasse calado. E provavelmente ficaria. Quem melhor do que um bobo para fazer de bobo?

No verão anterior, a situação começara a evoluir rumo ao que Howie considerava o fim do jogo. Foi quando o nome de Rennie começou a aparecer em alguns documentos obtidos pelo procurador-geral, principalmente nos de uma empresa de Nevada chamada Town Ventures. O dinheiro da Town Ventures sumira a oeste e não a leste, não nas Antilhas, mas na China continental, país em que os principais ingredientes dos remédios descongestionantes podiam ser comprados no atacado com pouca ou nenhuma pergunta.

Por que Rennie permitira tamanha exposição? Howie Perkins só conseguira pensar numa razão: o dinheiro crescera depressa demais para uma única e santa máquina de lavar. Depois, o nome de Rennie surgiu em documentos relativos a meia dúzia de outras igrejas fundamentalistas do nordeste. A Town Ventures e as outras igrejas (sem mencionar meia dúzia de emissoras de rádio religiosas e rádios AM, nenhuma tão grande quanto a WCIK) foram o primeiro grande erro de Rennie. Deixaram pontas soltas. Essas pontas poderiam ser puxadas e, mais cedo ou mais tarde — geralmente, mais cedo —, tudo se revelaria.

 

Você não conseguiu largar o osso, não é?, pensou Brenda, sentada à escrivaninha do marido, estudando os documentos. Ganhou milhões, talvez dezenas de milhões, e o risco foi ficando absurdo, mas nem assim conseguiu largar. Como o macaco que fica preso porque não consegue largar a comida. Já tinha uma baita fortuna e continuava morando naquela velha casa de três andares e vendendo carros naquela pocilga da 119. Por quê?

Mas ela sabia. Não era o dinheiro; era a cidade. Que ele considerava a cidade dele. Sentado numa praia em algum lugar da Costa Rica ou administrando uma propriedade bem guardada na Namíbia, Big Jim viraria Small Jim. Porque um homem sem uma meta, mesmo se tiver uma conta bancária recheada de dinheiro, é sempre um homem pequeno.

Se ela lhe mostrasse o que tinha, conseguiria um acordo com ele? Obrigá-lo a parar em troca de silêncio? Não tinha certeza. E temia o confronto. Seria feio, talvez perigoso. Gostaria de ter Julia Shumway com ela. E Barbie. Só que agora Dale Barbara já era outro alvo.

A voz de Howie, calma e firme, falou na cabeça dela. Você pode se dar ao luxo de esperar um pouco — eu mesmo esperei pelas últimas provas—, mas não espere demais, querida. Porque quanto mais tempo durar esse cerco, mais perigoso ele ficará.

Ela pensou em Howie dando ré na entrada de automóveis, parando para pôr os lábios nos dela à luz do sol, a boca dele quase tão conhecida dela quanto a própria, e certamente tão amada quanto. Acariciando o lado do seu pescoço ao mesmo tempo. Como se soubesse que o fim estava próximo e que o último toque teria que valer por todos. Uma ideia fácil e romântica, é claro, mas ela quase acreditou, e os olhos se encheram de lágrimas.

De repente, os documentos e todas as tramoias neles contidas ficaram menos importantes. Nem a Redoma parecia muito importante. O que importava era o buraco que se abrira tão de repente na sua vida, sugando a felicidade que ela dera como certa. Ela se perguntou se o pobre idiota do Andy Sanders se sentia do mesmo jeito. Achou que sim.

Vou esperar 24 horas. Se a Redoma ainda estiver lá amanhã à noite, procuro Rennie com isso aqui — com cópias disso aqui — e digo a ele que vai ter que renunciar em favor de Date Barbara. Digo que, se não fizer isso, vai ler nos jornais tudo sobre o seu negócio com drogas.

— Amanhã — murmurou, e fechou os olhos. Dois minutos depois, dormia na cadeira de Howie.

Em Chester’s Mill, chegara a hora do jantar. Algumas refeições (como frango à moda para umas cem pessoas) foram preparadas em fogões elétricos ou a gás, cortesia dos geradores que ainda funcionavam na cidade, mas também houve quem recorresse ao fogão de lenha para poupar o gerador ou porque agora era só lenha que tinham. A fumaça subiu de centenas de chaminés no ar parado.

E se espalhou.

 

Depois de entregar o contador Geiger — o destinatário o aceitou de boa vontade, até com ansiedade, e prometeu começar a usá-lo terça de manhã —Julia foi à Loja de Departamentos Burpee com Horace na coleira. Romeo lhe dissera que tinha em estoque um par de fotocopiadoras Kyocera novas em folha, ambas ainda na embalagem original. Ela poderia usá-las.

— Também tenho um pouco de gás escondido — disse, fazendo um carinho em Horace. — Você vai ter o que precisar, enquanto eu puder cuidar disso, ao menos. Precisamos manter o jornal funcionando, não é? Mais importante do que nunca, não acha?

Era exatamente o que ela achava, e lhe disse isso. Também lhe deu beijo no rosto.

— Fico te devendo uma, Rommie.

— Que tal um bom desconto no meu folheto semanal de propaganda quando tudo acabar? — Depois, cutucou o lado do nariz com o indicador, como se tivessem um grande segredo. Talvez tivessem mesmo.

Quando Julia saiu, o celular tocou. Ela o tirou do bolso da calça.

— Alô, Julia falando.

— Boa noite, sra. Shumway.

— Ah, coronel Cox, que maravilha ouvir a sua voz — disse ela animada. — O senhor não pode imaginar como nós, ratos do campo, ficamos emocionados com ligações de fora da cidade. Como anda a vida fora da Redoma?

— No geral, boa, provavelmente — disse ele. — Aqui onde eu estou, está meio capenga. Sabe dos mísseis?

— Eu vi eles atingirem o alvo. E ricochetearem. Causaram um belo incêndio do seu lado...

— Não é o meu....

— ... e outro bastante bom do nosso.

— Queria falar com o coronel Barbara — disse Cox. — Que deveria estar com a porra do celular dele agora.

— Tá certo, porra! — gritou ela, com a voz mais animada. — E os que estão na porra do inferno deviam ter uma porra de água gelada! — Ela parou diante do Posto & Mercearia, agora bem fechado. O cartaz escrito à mão na vitrine dizia: HR DE AB AMANHÃ 11-14 CHEGUE CEDO!

— Sra. Shumway...

— A gente discute o coronel Barbara num instantinho — disse Julia. — Agora, quero saber duas coisas. Primeiro, quando vão permitir a imprensa na Redoma? Porque o povo dos Estados Unidos merece mais do que a opinião do governo a respeito disso, não acha?

Ela esperava que ele dissesse que não achava, que não haveria New York Times nem CNN na Redoma em futuro próximo, mas Cox a surpreendeu.

— Provavelmente sexta, se nenhum dos outros truques que temos na manga funcionar. Qual a outra coisa que a senhora quer saber? Seja rápida, porque não sou assessor de imprensa. A faixa salarial deles é bem mais alta.

— O senhor me ligou, logo, vai ter que falar comigo. Vai ter que me engolir, coronel.

— Sra. Shumway, com todo o devido respeito, o seu celular não é o único de Chester’s Mill a que eu tenho acesso.

— Disso eu tenho certeza, mas acho que Barbie não vai falar com o senhor se o senhor me dispensar. Ele não está lá muito contente com o novo cargo de potencial comandante da paliçada.

Cox suspirou.

— Qual é a pergunta?

— Quero saber a temperatura ao sul ou a leste da Redoma — a temperatura verdadeira, ou seja, longe do incêndio que vocês provocaram.

— Por que...

— O senhor tem essa informação ou não? Eu acho que tem ou que pode conseguir. Acho que bem agora o senhor está diante de uma tela de computador e tem acesso a tudo, talvez até ao número do manequim da minha lingerie. — Ela fez uma pausa. — E se o senhor disser 44, desligo agora mesmo.

Está exibindo o senso de humor, sra. Shumway, ou a senhora é sempre assim?

— Estou cansada e assustada. Deve ser por isso.

Houve uma pausa no lado de Cox. Ela achou ter escutado o dique das teclas do computador. Então, ele disse:

— Está fazendo 8 graus em Castle Rock. Isso serve?

— Serve. — A disparidade não era tanta quanto ela temia, mas ainda era considerável — Estou vendo o termômetro na vitrine do Posto & Mercearia Mill. Marca 14,5 graus Uma diferença de 6,5 graus entre locais a uns 30 quilômetros de distância. A menos que haja uma baita frente quente passando pelo oeste do Maine hoje à noite, eu diria que há algo errado aqui. Não concorda?

Ele não respondeu à pergunta, mas o que ele disse a fez parar de pensar naquilo.

— Vamos tentar outra coisa. Aí pelas nove da noite de hoje. Era o que eu queria contar ao Barbie.

— Nós esperamos que o Plano B funcione melhor do que o Plano A. Neste instante, acho que o nomeado pelo presidente está alimentando a multidão no Rosa Mosqueta. Dizem que o prato é frango à moda. — Ela conseguia ver as luzes rua abaixo, e a barriga roncou.

— Pode anotar e passar o recado? — E ela ouviu o que ele não acrescentou: sua bruaca briguenta?

— Com prazer — disse ela. Sorrindo. Porque ela era uma bruaca briguenta. Quando tinha que ser.

— Vamos tentar um ácido experimental. Um composto hidrofluorídrico sintético. Nove vezes mais corrosivo do que o normal.

— Viva melhor com a química.

— Dizem que, teoricamente, com ele é possível abrir um buraco em 3 quilômetros de pedra.

— O senhor trabalha pra gente muito divertida, coronel.

— Vamos tentar no lugar onde a estrada de Motton vai pra... — Houve um farfalhar de papel. — Onde vai pra Harlow. Espero estar lá.

— Então direi ao Barbie pra pedir a alguém que lave a louça.

— Também vai nos dar o prazer da sua companhia, sra. Shumway?

Ela abriu a boca para dizer Não perderia isso por nada e foi então que o inferno explodiu na rua.

— O que está acontecendo aí? — perguntou Cox.

Julia não respondeu. Fechou o celular e o enfiou no bolso, já correndo na direção dos gritos. E mais alguma coisa. Algo que soava como um rugido.

O tiro veio quando ela ainda estava a meio quarteirão de distância.

 

Piper voltou para o presbitério e encontrou Carolyn, Thurston e os pequenos Appleton à sua espera. Ficou contente ao vê-los, porque afastaram sua mente de Sammy Bushey. Ao menos temporariamente.

Ela escutou Carolyn descrever a convulsão de Aidan Appleton, mas o menino agora parecia bem — comendo uma pilha enorme de biscoitos tipo goiabinha. Quando Carolyn perguntou se devia levar o menino ao médico, Piper respondeu:

— Se não houver recaída, acho que podemos supor que a causa foi a fome e a empolgação da brincadeira.

Thurston sorriu com melancolia.

— Nós estávamos todos empolgados. Nos divertindo.

Quanto ao possível alojamento, Piper pensou primeiro na casa dos McCain, que ficava perto. Só que ela não sabia onde eles guardavam a cópia da chave.

Alice Appleton estava no chão, dando migalhas de biscoito a Clover. Entre uma oferta e outra, o pastor-alemão fazia a velha cena do — É o melhor cachorro que eu já vi — ela disse a Piper. — Eu queria que nós pudéssemos ter um cachorro.

— Eu tenho um dragão — ofereceu Aidan. Estava sentado confortavelmente no colo de Carolyn.

Alice sorriu com indulgência.

— É o A-M-I-G-U invisível dele.

— Sei — disse Piper. Ela achou que poderiam quebrar uma janela na casa dos McCain; em tempo de guerra, urubu é frango.

Mas, quando se levantou para ver se o café estava pronto, teve uma ideia melhor.

— A casa dos Dumagen. Eu devia ter pensado nisso antes. Foram a uma conferência em Boston. Coralee Dumagen me pediu que regasse as plantas durante a viagem.

— Eu dou aulas em Boston — disse Thurston. — Em Emerson. Editei o número mais recente da Ploughshare. — E suspirou.

— A chave está debaixo de um vaso de flores à esquerda da porta — disse Piper. — Acho que eles não têm gerador, mas na cozinha tem um fogão a lenha. — Ela hesitou, pensando Gente da cidade. — Sabem usar fogão a lenha pra cozinhar sem pôr fogo na casa?

— Fui criado em Vermont — disse Thurston. — A minha tarefa foi cuidar dos fogões, o da casa e o do estábulo, até ir pra faculdade. O mundo dá voltas, não é? — E suspirou de novo.

— Tenho certeza de que tem mantimentos na despensa — disse Piper.

Carolyn concordou.

— Foi o que o zelador da Câmara de Vereadores disse.

— E o Juuuun-ior também — intrometeu-se Alice. — Ele é policial. E é gato.

A boca de Thurston se retorceu.

— O policial gato da Alice me atacou — disse. — Ele ou o outro. Nem sei qual é qual.

As sobrancelhas de Piper se ergueram.

— Deu um soco no estômago de Thurse — disse Carolyn, baixinho. — Chamou a gente de imbecis de Massachusetts, acho que tecnicamente somos mesmo, e riram de nós. Pra mim, foi essa a pior parte, o jeito como riram de nós. Melhoraram depois que encontraram os garotos, mas... — Ela balançou a cabeça. — Estavam descontrolados.

E foi assim que Piper voltou a Sammy. Sentiu uma pulsação começar ao lado do pescoço, muito lenta e forte, mas manteve a voz calma.

— Qual era o nome do outro policial?

— Frankie — respondeu Carolyn. — Junior o chamou de Frankie D. Conhece esses caras? Deve conhecer, não é?

— Conheço — disse Piper.

 

Ela explicou à nova família improvisada onde ficava a casa dos Dumagen — tinha a vantagem de ficar perto do Cathy Russell, caso o menino tivesse outra convulsão — e, depois que se foram, ficou algum tempo sentada à mesa da cozinha, tomando chá. Tomava o chá devagar. Um golinho e descansava a xícara. Outro golinho e descansava a xícara. Clover gemeu. Estava afinado com ela, e ela achou que o cão conseguia sentir a sua raiva.

Talvez mude o meu cheiro. Talvez o deixe mais ácido ou coisa assim.

Uma imagem se formava. Nada bonita. Um monte de policiais novos, muito jovens, contratados há menos de 48 horas e já enlouquecendo. O tipo de liberdade que tinham tomado com Sammy Bushey e Thurston Marshall não contaminaria policiais veteranos como Henry Morrison e Jackie Wettington — ao menos ela achava que não —, mas e Fred Denton? Toby Whelan? Talvez. Provavelmente. Com Duke no comando, esses camaradas tinham se comportado direito. Não eram bons, eram o tipo de policial que te dá bronca sem necessidade depois de um sinal de trânsito, mas tudo bem. Sem dúvida eram os melhores que o orçamento da cidade podia pagar. Mas a mãe dela gostava de dizer: “O barato sai caro.” E com Peter Randolph no comando...

Era preciso fazer alguma coisa.

Só que ela precisava controlar o seu temperamento. Senão ele a controlaria.

Ela pegou a guia no gancho junto à porta. Clover se ergueu de repente, o rabo balançando, as orelhas apontadas, os olhos brilhantes.

— Vamos, seu bobão. Vamos apresentar uma queixa.

O pastor ainda lambia as migalhas de biscoito do focinho quando ela o levou porta afora.

 

Enquanto andava pela praça da cidade com Clover seguindo impecavelmente à sua direita, Piper sentiu que tinha controlado seu temperamento. Sentiu-se assim até ouvir o riso. Veio quando ela e Clover se aproximavam da delegacia. Ela observou os caras exatos cujos nomes arrancara de Sammy Bushey: DeLesseps, Thibodeau, Searles. Georgia Roux também estava presente, Georgia que os incitara, de acordo com Sammy: Fode essa piranha. Freddy Denton também estava lá. Estavam sentados no alto da escada de pedra da delegacia, tomando refrigerante, tagarelando. Duke Perkins jamais permitiria uma coisa daquelas, e Piper refletiu que, se pudesse vê-los de onde estava, se contorceria no túmulo com tanta rapidez que os seus restos mortais pegariam fogo.

Mel Searles disse alguma coisa e todos caíram de novo na gargalhada, rindo e dando tapinhas uns nos outros. Thibodeau estava com o braço em volta da garota Roux, a ponta dos dedos na lateral do seio dela. Ela disse alguma coisa e todos riram ainda mais.

Piper achou que riam do estupro — como fora divertido — e, depois disso, o conselho do pai não teve mais chance. A Piper que cuidava dos pobres e doentes, que celebrava casamentos e presidia funerais, que aos domingos pregava caridade e tolerância, foi empurrada com violência para os fundos da mente, onde só poderia observar como se olhasse por uma vidraça torta e ondulada. Foi a outra Piper que assumiu o controle, aquela que destruíra o quarto aos 15 anos, chorando lágrimas de raiva, não de tristeza.

Havia uma praça calçada de ardósia conhecida como praça Memorial de Guerra entre a Câmara e o prédio de tijolos mais novo da delegacia. No centro havia uma estátua de Lucien Calvert, pai de Ernie Calvert, que recebera postumamente uma Estrela de Prata por heroísmo na guerra da Coreia. O nome de outros habitantes de Chester’s Mill mortos em combate desde a Guerra Civil estava gravado na base da estátua. Também havia dois mastros, a bandeira americana hasteada num deles, a bandeira do estado, com fazendeiro, marinheiro e alce, no outro. Ambas pendiam moles à luz avermelhada do pôr do sol iminente.

Piper Libby passou entre os mastros como uma mulher num sonho, Clover ainda atrás do seu joelho direito, com orelhas erguidas.

Os “policiais” no alto da escada tiveram outro vigoroso ataque de riso, e ela pensou nos gigantes de uma das histórias de fadas que o pai às vezes lhe contava. Gigantes numa caverna, se regozijando com as pilhas de ouro maldosamente obtidas. Então, a viram e silenciaram.

— Boa noite, reverenda — disse Mel Searles, levantando-se e dando ao cinto uma puxadinha de autoimportância. Em pé na presença de uma dama, pensou Piper. Será que a mãe lhe ensinou isso? Provavelmente. A fina arte do estupro provavelmente aprendeu em outro lugar.

Ele ainda sorria quando ela chegou aos degraus mas depois titubeou e ficou cauteloso, pois deve ter visto a expressão dela. Exatamente qual era essa expressão ela não sabia. Por dentro, o rosto parecia paralisado. Imóvel.

Ela viu o maior deles observá-la com atenção. Thibodeau, o rosto tão imóvel quanto o dela parecia estar. Ele é como Clover, pensou. Sente o cheiro. A fúria.

— Reverenda? — perguntou Mel. — Está tudo bem? Houve algum problema?

Ela subiu os degraus nem depressa, nem devagar, Clover ainda seguindo impecavelmente junto ao joelho direito.

— Pode apostar que há um problema — disse ela, erguendo os olhos para ele.

— O que...

— Você — disse ela. — Você é o problema.

Ela o empurrou. Mel não esperava isso. Ainda segurava o copo de refrigerante. Caiu no colo de Georgia Roux, abanando os braços inutilmente para se equilibrar, e por um instante o refrigerante foi uma arraia escura pendendo contra o céu avermelhado. Georgia gritou de surpresa quando Mel caiu sobre ela. Ela recuou, derramando o seu refrigerante. Este foi direto para a laje larga de granito diante das portas duplas. Piper sentiu cheiro de uísque ou bourbon. As Coca-Colas deles tinham sido incrementadas com o que o resto da cidade não podia mais comprar. Não admira que estivessem rindo.

A fissura vermelha dentro da sua cabeça se abriu mais.

— A senhora não pode... — começou Frankie, levantando-se. Ela o empurrou. Numa galáxia muito, muito distante, Clover, em geral o mais doce dos cães, rugia.

Frankie caiu de costas, espantado, olhos arregalados, por um instante parecendo o menino da escola dominical que devia ter sido.

— Estupro é o problema! — berrou Piper. — Estupro!

— Cala a boca — disse Carter. Ainda estava sentado e, embora Georgia se encolhesse contra ele, Carter continuava calmo. Os músculos dos braços se contraíram debaixo da camisa azul de mangas curtas. — Cala a boca e sai daqui agora mesmo, se não quiser passar a noite numa cela lá embai...

— São vocês que vão pra uma cela — disse Piper. — Todos vocês.

— Faz ela calar a boca — disse Georgia. Não choramingava, mas era por pouco. — Faz ela calar a boca, Cart.

— Senhora... — Freddy Denton. A camisa do uniforme para fora das calças e hálito de bourbon. Duke teria dado uma olhada e o posto na rua. Poria todos na rua. Começou a se levantar e dessa vez foi ele quem caiu de costas, um olhar de surpresa no rosto que seria cômico em outras circunstâncias. Era bom que todos estivessem sentados enquanto ela estava em pé. Facilitava. Mas, ah, como as têmporas pulsavam. Voltou a atenção para Thibodeau, o mais perigoso, que ainda a olhava com calma enlouquecedora. Como se ela fosse a monstruosidade que ele pagara 25 cents para ver numa barraca de feira. Mas ele a olhava de baixo, essa era a vantagem dela.

— Mas não vai ser uma cela lá embaixo — disse ela, falando diretamente com Thibodeau. — Vai ser em Shawshank, onde fazem com valentões de playground como você o que você fez com aquela moça.

— Sua piranha estúpida — disse Carter. Falava como se comentasse o clima. — Nós nem chegamos perto da casa dela.

— É isso mesmo disse Georgia, sentando-se reta de novo. Havia Coca-Cola respingada numa das bochechas, onde uma violenta erupção de acne adolescente estava sarando (mas ainda se agarrava aos últimos postos avançados). — Além disso, todo mundo sabe que Sammy Bushey não passa de uma lésbica arrombada e mentirosa.

Os lábios de Piper se abriram num sorriso. Virou-se para Georgia, que se encolhia para longe da mulher louca que surgira de repente na escada enquanto tomavam umas ao pôr do sol.

— Como é que você sabe o nome da lésbica arrombada e mentirosa? Eu não falei.

A boca de Georgia despencou num O de horror. E, pela primeira vez, algo cintilou por trás da calma de Carter Thibodeau. Se medo ou só chateação, Piper não sabia.

Frank DeLesseps levantou-se cautelosamente.

— É melhor a senhora não sair por aí espalhando acusações sem provas, reverenda Libby.

— Nem atacando policiais — disse Freddy Denton. — Posso deixar passar dessa vez; todo mundo está estressado; mas a senhora vai ter que parar e desistir dessas acusações agora mesmo. — Ele fez uma pausa e acrescentou, pouco convincente: — E dos empurrões é claro.

O olhar de Piper continuava fixo em Georgia, a mão direita fechada com tanta força em torno do punho de plástico preto da guia de Clover que pulsava. O cachorro estava com as patas da frente abertas e a cabeça baixa, ainda rugindo. Parecia um poderoso motor externo em marcha lenta. O pelo da nuca se eriçava a ponto de esconder a coleira.

— Como você sabe o nome dela, Georgia?

— Eu... eu... eu só achei...

Carter agarrou o ombro dela e apertou.

— Cala a boca, linda. — Então, para Piper, ainda sem se levantar (porque não quer ser empurrado que covarde), disse: — Não sei que tipo de abelha se enfiou nessa cabeça de Jesus, mas ontem à noite nós estávamos todos na fazenda de Alden Dinsmore. Queríamos ver se conseguíamos tirar alguma informação dos soldadinhos estacionados na 119, mas não conseguimos. A casa dela é do outro lado da cidade.

Ele olhou os amigos.

— Isso — disse Frankie.

— Exatamente — concordou Mel, olhando Piper desconfiado.

— É! — completou Georgia. O braço de Carter estava de novo em torno dela e o momento de dúvida se fora. Desafiadora, ela encarava Piper.

— Georgia aqui supôs que a senhora gritava sobre Sammy — continuou Carter, com a mesma calma enfurecedora.

— Porque ela é a maior picareta mentirosa da cidade. — O riso cantado de Mel Searles.

— Mas vocês não usaram camisinha — disse Piper. Sammy lhe contara isso e, quando ela viu o rosto de Thibodeau se endurecer, soube que era verdade. — Vocês não usaram proteção e eles coletaram amostras. — Ela não sabia se isso era verdade, e não se importou. Pelos olhos que se arregalavam, pôde ver que acreditavam, e a crença deles bastava. — Quando compararem o seu DNA com o que encontraram...

— Chega — disse Carter. — Cala a boca.

Ela virou para ele o seu sorriso furioso.

— Não, sr. Thibodeau. Está só começando, meu filho.

Freddy Denton tentou alcançá-la. Ela o empurrou e sentiu o braço esquerdo ser segurado e torcido. Ela se virou e encarou os olhos de Thibodeau. Agora não havia calma; os olhos brilhavam de raiva.

Olá, irmão, pensou ela, incoerente.

— Foda-se, sua piranha fodida — observou ele, e desta vez ela é que foi empurrada.

Piper caiu de costas pela escada, tentando instintivamente se encolher e rolar, não querendo bater a cabeça nos degraus de pedra, sabendo que poderiam lhe esmagar o crânio. Matá-la ou, pior, deixá-la como um vegetal. Em vez disso, ela bateu o ombro esquerdo, e houve ali um uivo súbito de dor. Dor conhecida. Vinte anos antes, ela deslocara aquele ombro jogando futebol na escola, e com certeza acabara de deslocá-lo de novo.

As pernas voaram por cima da cabeça e ela deu uma cambalhota para trás, torcendo o pescoço, caindo de joelhos e rasgando a pele em ambos. Finalmente, descansou sobre a barriga e o peito. Rolara quase até a base da escada, O rosto sangrava, o nariz sangrava, os lábios sangravam, o pescoço doía, mas, ah meu Deus, o ombro era o pior, amassado e torto de um jeito que ela bem conhecia. A última vez que vira algo parecido fora dentro de uma camiseta de nylon vermelho dos Wildcats. Ainda assim, conseguiu se levantar, agradecendo a Deus por ainda ter controle sobre as pernas; poderia também ter ficado paralisada.

Ela soltara a guia no meio da escada e Clover pulou sobre Thibodeau, os dentes agarrando o peito e a barriga sob a camisa, rasgando a camisa, derrubando Thibodeau para trás, buscando os órgãos vitais do rapaz.

— Tirem ele de cima de mim! — gritou Carter. Agora nada de calma. — Ele vai me matar!

E, sim, Clover estava tentando. As patas da frente estavam plantadas nas coxas de Carter, subindo e descendo enquanto o rapaz se debatia. Parecia um pastor-alemão numa bicicleta. Mudou o ângulo do ataque e mordeu fundo o ombro de Carter, provocando outro grito. Depois, Clover partiu para a garganta. Carter pôs as mãos no peito do cão bem a tempo de salvar a traquéia.

— Façam ele parar!

     Frank tentou pegar a guia solta. Clover se virou e lhe mordeu os dedos. Frank recuou, e Clover voltou a atenção para o homem que empurrara a sua dona escada abaixo. O focinho se abriu, revelando uma linha dupla de dentes brancos e brilhantes, e ele se jogou rumo ao pescoço de Thibodeau. Carter ergueu a mão e guinchou em agonia quando Clover a pegou e começou a sacudi-la como um dos seus queridos brinquedos de pano. Só que os brinquedos de pano não sangravam como a mão de Carter.

Cambaleante, Piper subiu a escada, segurando o braço esquerdo contra o tórax. O rosto era uma máscara de sangue. Um dente pendia no canto da boca como um resto de comida.

— TIRA ELE DE CIMA DE MIM, JESUS, TIRA O SEU MALDITO CACHORRO DE CIMA DE MIM!

Piper abria a boca para dizer a Clover que parasse quando viu Fred Denton puxar a arma.

— Não! — gritou. — Não, eu mando ele parar!

Fred se virou para Mel Searles e apontou o cachorro com a mão livre. Mel se adiantou e chutou os quartos de Clover. Chutou alto e com força, como antes (não há muito tempo) chutara bolas de futebol. Clover foi lançado de lado, soltando a mão dilacerada e ensanguentada de Thibodeau, com dois dedos agora apontando em direções incomuns, como placas tortas.

— NÃO!— gritou Piper de novo, tão alto e com tanta força que o mundo ficou cinzento diante dos seus olhos. — NÃO MACHUCA O MEU CACHORRO!

Fred não lhe deu atenção. Quando Peter Randolph veio correndo pelas portas duplas, as fraldas da camisa de fora, as calças abertas, o exemplar de Outdoors que estava lendo no banheiro ainda numa das mãos, Fred também não prestou atenção. Apontou a automática da policia para o cachorro e disparou.

O som foi ensurdecedor na praça fechada. O alto da cabeça de Clover subiu num jorro de sangue e osso. Ele deu um passo rumo à dona que gritava e sangrava... outro... e depois caiu.

Fred, a arma ainda na mão, avançou e agarrou Piper pelo braço ferido. O calombo no ombro dela rugiu um protesto. E ela manteve os olhos no cadáver do cão, que criara desde filhote.

— Você está presa, sua puta maluca — disse Fred. Ele jogou o rosto, pálido, suado, os olhos parecendo prontos para pular das órbitas, tão perto do dela que ela sentiu as gotas de saliva. — Tudo o que disser pode e será usado contra esse seu cu de maluca.

Do outro lado da rua, os comensais saíam do Rosa Mosqueta, Barbie entre eles, ainda de boné e avental. Julia Shumway chegou primeiro.

Captou a cena, sem ver os detalhes, mais como uma gestalt resumida: cão morto; policiais reunidos; mulher sangrando e gritando com um ombro mais alto do que o outro; policial careca — Freddy Maldito Denton — sacudindo-a pelo braço preso àquele ombro; mais sangue nos degraus, indicando que Piper caíra por eles. Ou fora empurrada.

Julia fez algo que nunca fizera antes: enfiou a mão na bolsa, abriu a carteira e subiu a escada, mostrando-a e berrando “Imprensa! Imprensa! Imprensa!”

Ao menos parou de tremer.

 

Dez minutos depois, na sala que há tão pouco tempo fora de Duke Perkins, Carter Thibodeau, com uma atadura nova no ombro e toalhas de papel em torno da mão, estava sentado no sofá embaixo das fotos e diplomas emoldurados de Duke. Georgia estava sentada ao seu lado. Grandes gotas de suor se destacavam na testa de Thibodeau, mas depois de dizer “Acho que não quebrou nada”, ele ficou calado.

Fred Denton estava sentado numa cadeira no canto. A sua arma estava na mesa do chefe. Ele a entregara de boa vontade e só dissera “Tive que fazer aquilo, é só olhar a mão do Cart”.

Piper estava na cadeira de escritório que agora era de Peter Randolph. Julia limpara quase todo o sangue do rosto de Piper com mais toalhas de papel. A mulher tremia de choque e muita dor, mas estava tão calada quanto Thibodeau. Os olhos estavam secos.

— Clover só atacou ele — ela ergueu o queixo para Carter — depois que ele me empurrou pela escada. O empurrão me fez soltar a guia. O que o meu cachorro fez se justifica. Ele estava me protegendo de um ataque criminoso.

— Ela é que nos atacou! — gritou Georgia. — Essa piranha maluca nos atacou! Subiu a escada cuspindo toda essa merda...

— Cala a boca — disse Barbie. — Todos vocês, calem a boca. — Ele olhou para Piper. — Essa não é a primeira vez que a senhora desloca o ombro, não é?

— Quero o senhor fora daqui, sr. Barbara — disse Randolph... mas sem muita convicção.

— Eu posso cuidar disso — disse Barbie. — E você, pode?

Randolph não respondeu. Mel Searles e Frank DeLesseps estavam em pé do lado de fora da porta. Pareciam preocupados.

Barbie se virou de novo para Piper.

— É uma subluxação, uma separação parcial. Não é grave. Posso pôr de volta no lugar antes que a senhora vá para o hospital...

— Hospital? — guinchou Fred Denton. — Ela está pre...

— Cala a boca, Freddy — disse Randolph. — Ninguém está preso. Ao menos, ainda não.

Barbie fixou os olhos de Piper nos seus.

— Mas tenho que fazer isso agora, antes que o inchaço piore. Se esperar que Everett faça isso no hospital, vão ter que te dar anestesia. — Ele se inclinou para ela e murmurou junto à sua orelha: — E enquanto estiver apagada, eles vão contar a versão deles, e você não vai contar a sua.

— O que você está dizendo? — perguntou Randolph rispidamente.

— Que vai doer — respondeu Barbie. — Não é, reverenda?

Ela fez que sim.

— Vá em frente. A treinadora Gromley fez a mesma coisa ali na lateral do campo, e ela era uma rematada idiota. Mas faça logo. E por favor, não estrague nada.

Barbie disse:

— Julia, pega uma tipoia na caixa de primeiros socorros e depois me ajuda a deitar ela de costas.

Julia, muito pálida e se sentindo enjoada, fez o que lhe foi pedido.

Barbie sentou-se no chão à esquerda de Piper, tirou um sapato e depois, com ambas as mãos, agarrou o antebraço dela, logo acima do pulso.

— Não conheço o método da treinadora Gromley — disse ele —, mas era assim que fazia um paramédico que eu conheci no Iraque. A senhora vai contar até três e gritar “osso da sorte”.

— “Osso da sorte” — repetiu Piper, achando graça apesar da dor. — Tá bem, você é o médico.

Não, pensou Julia; agora, na cidade, o mais próximo de um médico era Rusty Everett. Ela falara com Linda e conseguira o celular dele, mas a ligação caíra imediatamente na caixa postal.

A sala ficou em silêncio. Até Carter Thibodeau observava. Barbie fez um sinal de cabeça para Piper. Surgiram-lhe gotas de suor na testa, mas ela fez uma cara bem séria, e Barbie a respeitou muitíssimo por isso. Ele enfiou o pé calçado de meia na axila esquerda dela, prendendo bem. Então, enquanto puxava o braço devagar mas com firmeza, pressionou com o pé.

— Certo, então vamos nós. Conte agora.

— Um... dois... três... OSSO DA SORTE!

Quando Piper gritou, Barbie puxou. Todos na sala ouviram o barulho alto da articulação voltando para o lugar. O calombo na blusa de Piper sumiu num passe de mágica. Ela berrou, mas não desmaiou. Ele passou a tipoia pelo pescoço dela e imobilizou o braço o máximo possível.

— Melhor? — perguntou.

— Melhor — respondeu ela. — Muito melhor, graças a Deus. Ainda dói, mas bem menos.

— Eu tenho aspirina na bolsa — disse Julia.

— Dá pra ela a aspirina e cai fora — disse Randolph. — Todos vocês, menos Carter, Freddy, a reverenda e eu.

Julia o olhou sem acreditar.

 

— Está brincando? A reverenda vai pro hospital. Consegue andar, Piper?

Trêmula, Piper se levantou.

— Acho que sim. Um pouco.

— Sente-se, reverenda Libby — disse Randolph, mas Barbie sabia que ela estava de saída. Conseguiu perceber na voz de Randolph.

— Por que você não me obriga? — Com cuidado, ela ergueu o braço esquerdo e a tipoia. O braço tremeu, mas estava funcionando. — Tenho certeza de que você pode deslocá-lo de novo com facilidade. Vamos. Mostra a esses... esses garotos... que você é igualzinho a eles.

— E eu publico tudo no jornal! — afirmou Julia, animada. — A circulação vai dobrar!

— Sugiro que o senhor adie esse assunto pra amanhã, chefe — disse Barbie. — É melhor essa senhora receber analgésicos mais fortes do que aspirina e Everett examinar os machucados no joelho. Com a Redoma, vai ser bem difícil ela fugir.

— O cachorro dela tentou me matar — disse Carter. Apesar da dor, parecia calmo de novo.

— Chefe Randolph, DeLesseps, Searles e Thibodeau são culpados de estupro. — Piper cambaleava agora, abraçada por Julia, mas a voz estava clara e firme. — Roux é cúmplice.

— Não sou merda nenhuma! — guinchou Georgia.

— Têm que ser suspensos imediatamente.

— Ela está mentindo — disse Thibodeau.

O chefe Randolph parecia um espectador de partida de tênis. Finalmente, firmou o olhar em Barbie.

— Vai me dizer o que fazer, garoto?

— Não, senhor, só faço sugestões com base na minha experiência de policiamento no Iraque. O senhor que tome as suas decisões.

Randolph relaxou.

— Tudo bem, então. Tudo bem. — Ele olhou para baixo, cenho franzido em pensamentos. Todos o viram notar que o zíper ainda estava aberto e resolver o probleminha. Depois, ergueu os olhos de novo e disse: — Julia, leve a reverenda Piper pro hospital. Quanto ao senhor, sr. Barbara, vá pra onde quiser desde que saia daqui. Vou tomar o depoimento dos meus policiais hoje à noite e o da reverenda Libby amanhã.

— Espera — disse Thibodeau. Estendeu os dedos tortos para Barbie. — Você pode fazer alguma coisa quanto a isso aqui?

— Não sei — disse Barbie, torcendo para que a voz tivesse saído amistosa. A animosidade inicial passara e agora vinha a política do depois, da qual se recordava bem do tempo que lidara com policiais iraquianos que não eram tão diferentes assim do homem no sofá e dos outros que se amontoavam à porta. Em resumo, ser gentil com gente em quem dava vontade de cuspir. — Você consegue dizer osso da sorte?

 

Rusty desligara o celular antes de bater à porta de Big Jim. Agora Big Jim estava sentado atrás da escrivaninha, Rusty na cadeira diante dela — a cadeira dos suplicantes e solicitantes.

O escritório (Rennie provavelmente dizia que sua empresa funcionava ali na declaração de imposto de renda) tinha um cheiro agradável de pinho, como se tivesse passado por faxina recente, mas nem assim Rusty gostava dele. Não era só o quadro com um Jesus agressivamente caucasiano fazendo o Sermão da Montanha ou as placas autoelogiosas ou o piso de madeira de lei que devia estar protegido por tapete; era tudo isso e mais alguma coisa. Rusty Everett dava muito pouco peso ou crédito ao sobrenatural, mas ainda assim aquele cômodo parecia quase mal-assombrado.

É porque ele te assusta um pouco, pensou. É só isso.

Rusty, torcendo para que o que sentia náo aparecesse no rosto nem na voz, contou a Rennie o sumiço dos cilindros de gás do hospital. Que encontrara um deles no depósito atrás da Câmara de Vereadores, alimentando o gerador. E que era o único.

— Portanto, tenho duas perguntas — disse Rusty. — Como um cilindro do hospital foi parar no centro da cidade? E pra onde foram os outros?

Big Jim se recostou na cadeira, pôs as mãos na nuca e olhou o teto, pensativo.

Rusty se viu fitando o troféu com uma bola de beisebol na escrivaninha de Rennie. Diante dele, havia um bilhete de Bill Lee, que já fora dos Boston Red Sox. Dava para ler o bilhete porque estava virado para fora. É claro que estava. Era para os visitantes verem e se maravilharem. Assim como as fotos na parede, a bola de beisebol proclamava que Big Jim Rennie era íntimo de Gente Famosa: Olhai os meus autógrafos, poderosos, e desesperai-vos. Para Rusty, a bola de beisebol e o bilhete virado para fora pareciam resumir a má sensação que a sala lhe provocava. Era uma vitrine, um minúsculo atestado de prestígio e poder numa cidadezinha.

— Não sabia que você tinha permissão de espionar o nosso depósito — observou Big Jim para o teto. Os dedos carnudos ainda estavam cruzados na nuca. — Será que você é autoridade na cidade e eu nem sabia? Se for assim, engano meu; bobeira minha, como diz o Junior. Achei que você era basicamente um enfermeiro com um bloco de receituário.

Rusty via isso como técnica, mais do que tudo: Rennie estava tentando irritá-lo. Desviar a sua atenção.

— Não sou autoridade — respondeu —, mas sou funcionário do hospital. E contribuinte.

— E?

Rusty sentiu o rosto corar.

— E essas coisas fazem com que o depósito também seja meu. — Esperou para ver se Big Jim reagiria a isso, mas o homem atrás da escrivaninha continuou impassível. — Além disso, não estava trancado. E isso nem vem ao caso, não é? Eu vi o que eu vi e gostaria de uma explicação. Como funcionário do hospital.

— E contribuinte. Não se esqueça disso.

Rusty ficou olhando para ele, sem sequer mover a cabeça.

— Eu não tenho nada para lhe dar — disse Rennie.

Rusty ergueu as sobrancelhas.

— É mesmo? Pensei que o senhor tinha os dedos no pulso da cidade. Não foi o que disse da última vez que concorreu a vereador? E agora vai me dizer que não sabe explicar onde foi parar o gás da cidade? Não acredito.

Pela primeira vez, Rennie pareceu se incomodar.

— Não me importa se você acredita ou não. Pra mim, isso é novidade. — Mas os olhos dardejaram ligeiramente para o lado enquanto falava, como se quisessem verificar que a foto autografada de Tiger Woods ainda estava lá; a clássica revelação do mentiroso.

— O hospital está quase sem gás — disse Rusty — Sem ele, para os poucos que ainda estamos de serviço vai ser como trabalhar numa barraca-hospital da Guerra Civil. Os nossos pacientes atuais, como um enfartado e um caso grave de diabete que pode exigir amputação, vão ficar em péssima situação se ficarmos sem energia. O possível amputado é Jimmy Sirois. O carro dele está no estacionamento. O para-choque tem um adesivo dizendo VOTE EM BIG JIM.

— Vou investigar — disse Big Jim. Falava com o ar de quem faz um favor. — O gás da cidade deve estar guardado em algum outro depósito. Quanto ao seu, não faço idéia.

— Que outro depósito? Tem o corpo de bombeiros e a pilha de sacos de areia na estrada do Riacho de Deus, nem uma cabana tem por lá, mas são os únicos que eu conheço.

— Sr. Everett, eu sou um homem ocupado. Agora o senhor vai me dar licença.

Rusty se levantou. As mãos queriam se fechar, mas ele não deixou.

— Vou perguntar mais uma vez — disse. — Bem diretamente. O senhor sabe onde estão os cilindros que sumiram?

— Não. — Dessa vez, foi para Dale Earnhardt que os olhos de Rennie fugiram. — E não vou ler nenhuma insinuação nessa pergunta, meu filho, senão terei que me ofender. Agora, por que não vai embora e dá uma olhada em Jimmy Sirois? Diga a ele que Big Jim deseja melhoras e que vai visitá-lo assim que o festival de implicância diminuir um pouco.

Rusty ainda se segurava para controlar a raiva, mas estava perdendo a batalha.

— Ir embora? Acho que o senhor se esqueceu que é um servidor público e não um ditador particular. Por enquanto, eu sou o médico-chefe desta cidade, e quero uma resp...

     O celular de Big Jim tocou. Ele o pegou. Escutou. As linhas em volta da boca caída para baixo ficaram mais sinistras.

Que meleca! Toda vez que viro as costas... — Escutou um pouco mais e continuou. — Se tem gente com você aí na sala, Pete, feche a arapuca antes que ela abra demais e você caia dentro. Liga pro Andy. Já estou indo e nós três resolvemos isso.

Desligou o telefone e se levantou.

— Tenho que ir à delegacia. Se é emergência ou mais implicância, só vou saber quando chegar lá. E acho que precisam de você no hospital ou no Posto de Saúde. Parece que há um problema com a reverenda Libby.

— Por quê? O que aconteceu?

Nas órbitas duras e pequenas, os olhos frios de Big Jim o examinaram.

— Tenho certeza de que vão lhe contar a história. Não sei até que ponto será verdade, mas tenho certeza de que vão lhe contar. Portanto, faz o seu serviço, meu jovem, que eu vou fazer o meu.

Rusty passou pelo saguão e saiu da casa, as têmporas pulsando. A oeste, o pôr do sol era um espetáculo fúnebre e sangrento. O ar estava quase completamente parado, mas ainda assim fedia a fumaça. No pé da escada, Rusty ergueu o dedo e o apontou para o servidor público que aguardava que saísse da sua propriedade antes que ele, Rennie, também saísse. Rennie fez um muxoxo para o dedo, mas Rusty não o baixou.

— Ninguém precisa me mandar fazer o meu serviço. E parte dele é procurar aquele gás. Se eu o encontrar no lugar errado, outra pessoa vai fazer o seu serviço, vereador Rennie. Isso é uma promessa.

Big Jim lhe deu um aceno desdenhoso.

— Sai daqui, meu filho. Vai trabalhar.

 

Nas 55 primeiras horas de existência da Redoma, mais de duas dúzias de crianças tiveram convulsões. Algumas, como as das meninas Everett, foram notadas. Muitas outras não foram, e nos dias que se seguiram a atividade convulsiva rapidamente cairia a zero. Rusty compararia isso aos pequenos choques que todos sentiam quando se aproximavam demais da Redoma. Da primeira vez, sentia-se aquele frisson quase elétrico que eriçava os pelos da nuca; depois, a maioria não sentia nada. Era como se fossem vacinados.

— Você quer dizer que a Redoma é como catapora? — perguntou Linda depois. — A gente pega uma vez e está protegido pelo resto da vida?

Janelle tivera duas convulsões, assim como um garotinho chamado Norman Sawyer, mas em ambos os casos a segunda convulsão fora mais leve do que a primeira e sem nenhum balbucio para acompanhar. A maioria das crianças que Rusty examinou só teve uma, aparentemente sem efeitos colaterais.

Só dois adultos tiveram convulsões naquelas primeiras 55 horas, ambos por volta do pôr do sol de segunda-feira e ambos com causas fáceis de descobrir.

No caso de Phil Bushey, também chamado de Chef, a causa foi uma dose excessiva do seu próprio produto. Mais ou menos na hora em que Rusty e Big Jim se separaram, Chef Bushey estava sentado ao lado do depósito nos fundos da WCIK, olhando sonhador o pôr do sol (tão perto assim do alvo dos mísseis, o escarlate do céu era ainda mais escurecido pela fuligem da Redoma), o cachimbo de metanfetamina mal preso numa das mãos. Viajava pelo menos até a ionosfera; talvez uns 150km mais além. Nas poucas nuvens baixas que flutuavam naquela luz sangrenta, viu o rosto da mãe, do pai, do avô; viu também Sammy e o Pequeno Walter.

Todos os rostos na nuvem sangravam.

Quando o pé direito começou a se contorcer e depois o esquerdo acompanhou o ritmo, ele nem ligou. As contorções faziam parte da viagem, todo mundo sabia. Mas aí as mãos começaram a tremer e o cachimbo caiu no capim alto (amarelado e murcho em consequência do trabalho fabril ali realizado). Um instante depois, a cabeça começou a se sacudir de um lado para o outro.

É isso, pensou ele com uma calma que, em parte, era alívio. Finalmente exagerei. Estou de saída. Provavelmente desta pra melhor.

Mas ele não saiu para lugar nenhum, nem sequer caiu duro. Deslizou de lado devagar, se contorcendo e observando uma bola de gude preta subir no céu vermelho. Ela se expandiu numa bola de boliche e depois numa bola de praia cheia demais. Continuou crescendo até ocupar o céu vermelho.

O fim do mundo, pensou ele. Provavelmente pra melhor.

Por um instante, acreditou que estava errado, porque as estrelas apareceram. Só que eram da cor errada. Eram cor-de-rosa. Aí, meu Deus, começaram a cair, deixando para trás longos rastros cor-de-rosa.

Depois veio o fogo. Uma fornalha a rugir, como se alguém tivesse aberto um alçapão escondido e transformado Chester’s Mill num inferno.

— É a nossa gostosura — murmurou. O cachimbo estava apertado contra o braço e causou uma queimadura que, mais tarde, ele veria e sentiria. Ficou se contorcendo no capim amarelo com os olhos virados para cima, as córneas a refletir o fúnebre pôr do sol. — A nossa gostosura de Halloween. Primeiro a travessura... depois a gostosura.

O fogo se transformava num rosto, uma versão alaranjada dos outros rostos sangrentos que vira nas nuvens pouco antes da convulsão. Era o rosto de Jesus, que estava zangado com ele.

E falava. Falava com ele. Dizia a ele que trazer o fogo era responsabilidade dele. Dele. O fogo e a... a...

— A pureza — murmurou, caído no capim. — Não... a purificação.

Jesus agora não parecia tão zangado. E estava sumindo. Por quê? Porque o Chef entendera. Primeiro viriam as estrelas cor-de-rosa; depois, o fogo purificador; depois, o sofrimento teria fim.

O Chef se acalmou quando a convulsão se transformou no primeiro sono de verdade das últimas semanas, talvez dos últimos meses. Quando acordou, estava totalmente escuro; todos os vestígios vermelhos sumidos do céu. Ele estava gelado até os ossos, mas nada molhado.

Sob a Redoma, não havia mais orvalho.

 

Enquanto o Chef observava o rosto de Cristo no pôr do sol infeccionado daquela noite, a terceira vereadora Andrea Grinnell estava sentada no sofá, tentando ler. O gerador pifara — será que algum dia funcionara? Não conseguia se lembrar. Mas tinha um aparelhinho chamado Mighty Brite, uma lâmpada automática que Rose, a irmã, pusera na sua meia de Natal do ano anterior. Até agora, não tivera oportunidade de usá-la, mas funcionava bem. Bastava prendê-la no livro e ligar. Facílimo. Logo, luz não era problema. As palavras, infelizmente, eram. Não paravam de se contorcer pela página, às vezes até trocando de lugar umas com as outras, e a prosa de Nora Roberts, geralmente claríssima, não significava absolutamente nada. Mas Andrea continuava tentando, porque não conseguia pensar em mais nada a fazer.

A casa fedia, mesmo com as janelas abertas. Ela estava com diarreia e o vaso sanitário não dava mais descarga. Estava com fome, mas não conseguia comer. Tentara um sanduíche às cinco da tarde — um inofensivo sanduíche de queijo — e vomitara no cesto de lixo da cozinha minutos depois de engolir. Uma vergonha, porque comer aquele sanduíche dera muito trabalho. Suava intensamente — já trocara de roupa uma vez, provavelmente trocaria de novo se conseguisse — e os pés não paravam de tremer e sacolejar.

Não é à toa que falam em chutar o vício, pensou. E não vou conseguir de jeito nenhum ir à reunião de emergência de hoje, se é que Jim ainda pretende fazê-la.

Considerando a última conversa que tivera com Big Jim e Andy Sanders, talvez fosse bom; se aparecesse, eles simplesmente a agrediriam um pouco mais. Iam obrigá-la a fazer o que não queria. Melhor ficar longe até se livrar dessa... dessa...

— Dessa merda — disse ela, e afastou dos olhos o cabelo molhado. — Essa porra dessa merda que está no meu organismo.

Assim que voltasse a ser quem era, enfrentaria Jim Rennie. Devia ter feito isso há muito tempo. Faria isso apesar da dor nas costas, que era horrível sem o seu OxyContin (mas não a agonia candente que esperara; essa fora uma surpresa bem-vinda). Rusty queria que ela tomasse metadona. Metadona, pelo amor de Deus! Heroína com pseudônimo!

Se está pensando em parar a frio, não faz isso, dissera ele. Você pode ter convulsões.

Mas ele dissera que assim poderia levar dez dias, e ela achava que não conseguiria esperar tanto. Não com aquela Redoma horrível sobre a cidade. Melhor se livrar logo. Depois de tirar essa conclusão, jogara todos os comprimidos — não só a metadona, mas os últimos OxyContins que achara no fundo da gaveta da mesinha de cabeceira — no vaso sanitário. Foram só duas descargas e o vaso morreu, e agora ela estava ali sentada, tremendo e tentando se convencer de que fizera a coisa certa.

Era a única coisa, pensou. Isso praticamente acaba com o certo e o errado.

Ela tentou virar a página do livro e a mão estúpida bateu no Mighty Brite. O aparelho caiu no chão. A mancha de brilho que lançava foi até o teto. Andrea a olhou e, de repente, se projetou acima de si. E depressa. Era como subir num elevador veloz e invisível. Só teve um instante para olhar para baixo e ver o seu corpo ainda no sofá, indefeso, se contorcendo. Uma baba espumosa escorria da boca para o queixo. Ela viu a umidade se espalhar no gancho da calça jeans e pensou Droga, vou ter que me trocar de novo, tudo bem. Quer dizer, se eu sobreviver.

Depois atravessou o teto, o quarto de cima, o sótão com as caixas escuras empilhadas e abajures aposentados e daí para a noite. A Via Láctea se espalhava lá em cima, mas estava errada. A Via Láctea ficara cor-de-rosa.

E então começou a cair.

Em algum lugar — longe, bem longe lá embaixo — Andrea ouviu o corpo que deixara para trás. Ele gritava.

    

Barbie achou que Julia e ele discutiriam o que acontecera com Piper Libby na viagem para fora da cidade, mas ficaram quase o tempo todo em silêncio, perdidos em pensamentos. Nenhum disse que se sentira aliviado quando o pôr do sol vermelho e antinatural finalmente começou a se desfazer, mas ambos se sentiram.

Julia tentou ligar o rádio, só encontrou a WCIK berrando All Prayed Up e desligou de novo.

Barbie só falou uma vez, isso pouco depois de saírem da rodovia 119 e começarem a ir para oeste, ao longo do asfalto mais estreito da estrada de Motton, onde as árvores se projetavam dos dois lados.

— Fiz a coisa certa?

Na opinião de Julia, ele fizera muitas coisas certas durante o confronto na sala do chefe de polícia, inclusive o tratamento bem-sucedido de dois pacientes com luxação, mas ela sabia do que ele estava falando.

— Fez. Era a hora mais perfeitamente errada de se impor no comando.

Ele concordou, mas se sentia cansado e desanimado, nem um pouco à altura do serviço que começava a ver diante dele.

— Tenho certeza de que os inimigos de Hitler disseram quase a mesma coisa. Disseram em 1934 e acertaram. Em 1936, e acertaram. Também em 1938.

Diziam que era “a hora errada de questioná-lo”. E quando se deram conta de que a hora certa finalmente havia chegado, estavam protestando em Auschwitz ou Buchenwald.

— Isso aqui não é a mesma coisa — disse ela.

— Você acha que não?

Ela não respondeu, mas entendia o que ele dissera. Diziam que Hitler fora instalador de papel de parede; Jim Rennie era vendedor de carros usados. Seis por meia dúzia.

À frente, dedos de brilho cintilavam entre as árvores. Deixavam um entalhe de sombras no asfalto remendado da estrada de Motton.

Havia vários caminhões militares estacionados do outro lado da Redoma — naquela ponta da cidade era Harlow ali do outro lado — e trinta ou quarenta soldados ocupados iam de lá para cá. Todos tinham máscaras contra gases penduradas no cinto. Um caminhão-tanque prateado com a frase PERIGO EXTREMO MANTENHA DISTÂNCIA dera marcha a ré até quase encostar num contorno de porta pintado com spray na superfície da Redoma. Uma mangueira plástica estava presa a uma válvula na traseira do caminhão-tanque. Dois homens seguravam a mangueira, que terminava numa varinha do tamanho de uma caneta Bic. Esses homens usavam capacete e macacão brilhante. Tinham tanques de ar nas costas.

No lado de Chester’s Mill, havia um único espectador. Lissa Jamieson, bibliotecária da cidade, estava ao lado de uma antiga bicicleta feminina Schwinn com um porta-caixa de leite no bagageiro traseiro. Atrás do porta-leite, havia um adesivo dizendo QUANDO O PODER DO AMOR FOR MAIOR QUE O AMOR AO PODER, O MUNDO TERÁ PAZ — JIMI HENDRJX.

— O que você está fazendo aqui, Lissa? — perguntou Julia, saindo do carro. Ergueu a mão para proteger os olhos da luz forte.

Lissa mexia nervosamente no ankh que usava pendurado no pescoço com uma corrente de prata. Olhou de Julia para Barbie, depois voltou os olhos para Julia.

— Eu saio pra passear de bicicleta quando estou nervosa ou preocupada. As vezes pedalo até meia-noite. Me acalma o pneuma. [Palavra do grego arcaico que significa “respiração”, geralmente usada como sinônimo de “espírito” ou “alma” em contexto religioso] Eu vi as luzes e vim até a luz. Ela disse isso como se fosse um encantamento e soltou o ankh para fazer no ar um tipo de símbolo complicado. — O que vocês estão fazendo aqui?

— Viemos assistir a um experimento — disse Barbie. — Se der certo, você pode ser a primeira a sair de Chester’s Mill.

Lissa sorriu. O sorriso parecia um pouco forçado, mas Barbie gostou dela pelo esforço.

— Se eu sair, perco o especial de terça no Rosa Mosqueta. Não costuma ser bolo de carne?

— O plano é bolo de carne — concordou, sem acrescentar que, se a Redoma continuasse no lugar até a terça-feira seguinte, a specialité de la maison talvez fosse quiche de abobrinha.

— Eles não falam — disse Lissa. — Já tentei.

Um homem baixote como um hidrante saiu de trás do caminhão-tanque e veio para a luz. Vestia calças cáqui, jaqueta de tecido impermeável e um chapéu com o logotipo dos Maine Black Bears. A primeira coisa a espantar Barbie foi que James O. Cox engordara. A segunda foi a jaqueta grossa, fechada até o queixo, que já era quase duplo. Ninguém mais — Barbie, Julia ou Lissa — usava casaco. Não havia necessidade disso no lado deles.

Cox bateu continência. Barbie devolveu o gesto e a verdade é que a sensação foi bem boa.

— Olá, Barbie — disse Cox. — Como vai o Ken?

— O Ken vai bem — disse Barbie. — E eu continuo a ser a puta que fica com toda a merda boa.

— Não dessa vez, coronel — disse Cox. — Dessa vez, parece que você se fodeu no drive-thru.

 

— Quem é ele? — sussurrou Lissa. Ainda dedilhava o ankh. Julia achou que logo a corrente arrebentaria, se ela não parasse. — E o que eles estão fazendo aqui?

— Tentando nos tirar daqui — respondeu Julia. — E depois daquele fracasso dos mais espetaculares hoje de manhã, tenho a dizer que é mais inteligente tentar em silêncio. — Ela se adiantou. — Olá, coronel Cox. Sou a sua editora de jornal predileta. Boa noite.

O sorriso de Cox foi só um pouquinho azedo — e ponto para ele, pensou ela.

— Sra. Shumway. A senhora é ainda mais bonita do que eu pensei.

— Uma coisa eu tenho que dizer, o senhor é hábil na conversa fia... — Barbie a alcançou a 3 metros de onde Cox estava e a segurou.

— O que foi? — perguntou ela.

— A câmera. — Ela quase esquecera que estava pendurada no pescoço até que ele a apontou. — É digital?

— É, é a câmera reserva de Pete Freeman. — Ela começou a perguntar por que e, então, entendeu. — Você acha que a Redoma vai fritá-la.

— No melhor dos casos — disse Barbie. — Lembra do que aconteceu com o marca-passo do chefe Perkins.

— Merda — disse ela. — Merda! Talvez a minha Kodak velha esteja no carro.

Lissa e Cox se entreolhavam com o que, para Barbie, parecia fascinação mútua.

— O que vocês vão fazer? — perguntou ela. — Vai haver outra explosão?

Cox hesitou. Barbie disse:

— Pode ser franco, coronel. Se não contar, eu conto.

Cox suspirou.

— Insiste na transparência total, não é?

— Por que não? Se essa coisa funcionar, o povo de Chester’s Mill vai te endeusar. A única razão pra manter segredo é a força do hábito.

— Não. É ordem dos meus superiores.

— Eles estão em Washington — disse Barbie. — E a imprensa está em Castle Rock, a maioria provavelmente assistindo a filmes de mulher pelada no pay-per-view. Aqui só estamos nós, os pés-rapados.

Cox suspirou e apontou a porta pintada com spray.

— É ali que os homens de roupa protetora vão aplicar o nosso composto experimental Se tivermos sorte, o ácido vai corroer e vamos conseguir abrir aquele pedaço da Redoma do mesmo jeito que um pedaço da vidraça da janela se solta depois de passar o cortador de vidro.

E se não tivermos sorte? — perguntou Barbie. — E se a Redoma se decompuser soltando gases venenosos e matar nós todos? As máscaras contra gás são pra isso?

— Na verdade — disse Cox —, os cientistas acham mais provável que o ácido inicie uma reação química que pode fazer a Redoma pegar fogo. — Ele viu o espanto no rosto de Lissa e acrescentou: — Eles consideram as duas possibilidades muito remotas.

— Eles podem — disse Lissa, regirando o ankh. — Não são eles que vão ser envenenados nem assados.

— Entendo a sua preocupação, senhora... — começou Cox.

— Melissa — corrigiu Barbie. Para ele, de repente, passou a ser importante que Cox entendesse que havia gente debaixo da Redoma, não alguns milhares de contribuintes anônimos. — Melissa Jamieson. Lissa para os amigos. É a bibliotecária da cidade. Também é orientadora educacional do 6º ao 9º ano da escola e acho que dá aulas de ioga.

— Desisti delas — disse Lissa com um sorriso nervoso. — Coisas demais pra fazer.

— Muito prazer em conhecê-la, srta. Jamieson — disse Cox. — Olhe, vale a pena correr o risco.

— Se nós pensarmos diferente, poderíamos impedir o senhor? — perguntou ela.

A isso Cox não respondeu diretamente.

— Não há nenhum sinal de que essa coisa, seja o que for, esteja enfraquecendo ou se biodegradando. A menos que nós consigamos rompê-la, acreditamos que vocês vão ficar aí em longo prazo.

— Tem alguma ideia do que causou isso? Qualquer que seja?

— Nenhuma — disse Cox, mas os seus olhos se mexeram de um jeito que Rusty Everett reconheceria pela conversa com Big Jim.

Barbie pensou: Por que você está mentindo? Aquela reação reflexa de novo? Os civis são como cogumelos é mantê-los no escuro e alimentá-los com merda? Provavelmente era só isso. Mas ele ficou nervoso.

— É forte? — perguntou Lissa. — O seu ácido é forte?

— É o mais corrosivo que existe, pelo que sabemos — respondeu Cox, e Lissa deu dois grandes passos atrás.

Cox virou-se para os homens com a roupa espacial.

— Estão prontos, rapazes?

Eles ergueram os polegares enluvados. Atrás deles, toda a atividade parou. Os soldados ficaram assistindo, com a mão na máscara de gás.

— Aí vamos nós — disse Cox. — Barbie, sugiro que escolte essas duas belas moças até ao menos 50 metros da...

— Olhem as estrelas — disse Julia. A sua voz era suave, espantada. A cabeça estava virada para cima e, no seu rosto maravilhado, Barbie viu a criança que ela tinha sido trinta anos antes.

Olhou para cima e viu o Grande Carro, a Grande Ursa, Órion. Todos no seu lugar... só que tinham saído de foco e ficado cor-de-rosa. A Via Láctea se transformara num derramamento de chiclete pela redoma maior da noite.

— Cox — disse ele. — Está vendo aquilo?

Cox ergueu os olhos.

— Vendo o quê? As estrelas?

— Como elas parecem para vocês?

— Bom... muito brilhantes, é claro... sem muita poluição luminosa nessa região... — Então uma ideia lhe ocorreu e ele estalou os dedos. — O que você está vendo? Elas mudaram de cor?

— São lindas — disse Lissa. Os olhos dela estavam arregalados e brilhantes. — Mas dão medo também.

— Estão cor-de-rosa — disse Julia. — O que está havendo?

— Nada — respondeu Cox, mas soou estranhamente relutante.

— O quê? — perguntou Barbie. — Conta logo. — E acrescentou, sem pensar: — Senhor.

— Recebemos o relatório meteorológico às 19 horas — disse Cox. — Ênfase especial nos ventos. Só por precaução... bom, só por precaução. Fiquemos assim. A corrente de jato atualmente está vindo para oeste, até Nebraska ou Kansas, seguindo para o sul e depois subindo pelo litoral leste. Padrão bem comum no final de outubro.

— O que isso tem a ver com as estrelas?

— Quando vem até o norte, o jato passa sobre muitas cidades fabris. O que ele traz desses locais está se acumulando sobre a Redoma em vez de ser levado pro norte, pro Canadá e o Ártico. Já há o bastante pra criar um tipo de filtro óptico. Tenho certeza de que não é perigoso...

— Ainda não — interrompeu Julia. — E daqui a uma semana, um mês? Vocês vão lavar o nosso espaço aéreo a 9 mil metros quando começar a ficar escuro aqui?

Antes que Cox pudesse responder, Lissa Jamieson gritou e apontou o céu. E então cobriu o rosto.

As estrelas cor-de-rosa estavam caindo, deixando atrás de si rastros brilhantes.

 

— Me dopa mais — disse Piper com voz sonhadora enquanto Rusty lhe ouvia o coração.

Rusty deu uns tapinhas na mão direita de Piper — a esquerda estava muito esfolada.

— Nada disso — retrucou. — A senhora está oficialmente doidona.

— Jesus quer que eu fique mais dopada — disse ela na mesma voz sonhadora. — Quero ficar mais alta que o apanha-mel.

— Acho que é “mais alta que um arranha-céu”, mas vou pensar no caso. Ela se sentou. Rusty tentou fazê-la se deitar de novo, mas só ousava empurrar o ombro direito, e isso não era suficiente.

— Amanhã posso sair daqui? Tenho que falar com o chefe Randolph. Aqueles garotos curraram Sammy Bushey.

— E podiam ter matado a senhora — retrucou ele. — Luxação ou não, a senhora teve uma sorte enorme. Deixe que eu me preocupo com a Sammy.

— Aqueles policiais são perigosos. — Ela pôs a mão direita no pulso dele. — Não podem continuar na polícia. Vão machucar mais alguém. — Lambeu os lábios. — A minha boca está tão seca...

— Isso eu posso resolver, mas a senhora vai ter que se deitar.

— Pegou amostras de esperma da Sammy? Pode comparar com as dos garotos? Se puder, vou perseguir Peter Randolph até ele conseguir as amostras de DNA. Vou persegui-lo dia e noite.

— Não temos equipamento pra comparar DNA — disse Rusty. E também não há amostras de esperma. Porque Gina Buffalino a lavou, a pedido da própria Sammy. — Vou te trazer algo para beber. Todas as geladeiras, menos as do laboratório, estão desligadas para economizar energia, mas temos um isopor na sala das enfermeiras.

— Suco — disse ela, fechando os olhos. — Suco seria bom. Laranja ou maçã. V8, não. Salgado demais.

— Maçã. — disse ele. — Hoje à noite, só líquidos.

— Estou com saudades do meu cachorro — sussurrou Piper, e virou a cabeça. Rusty achou que provavelmente ela já teria dormido quando voltasse com a caixinha de suco.

No meio do corredor, Twitch dobrou a esquina da sala das enfermeiras numa corrida desenfreada. Os olhos estavam enlouquecidos e arregalados.

— Vem cá fora, Rusty.

— Assim que eu der à reverenda Libby o...

— Não, agora. Você tem que ver isso.

Rusty voltou correndo até o quarto 29 e espiou. Piper roncava de um jeito nada adequado a uma dama — o que não surpreendia, devido ao nariz inchado.

Seguiu Twitch pelo corredor, quase correndo para acompanhar os passos largos do outro.

— O que é? — querendo dizer o que foi agora?

— Não sei explicar, e provavelmente você não acreditaria. Tem que ver com os próprios olhos.

Ele escancarou a porta do saguão e saiu.

Em pé na rua, além da marquise protetora por onde chegavam os pacientes, estavam Ginny Tomlinson, Gina Buffalino e Harriet Bigelow, a amiga que Gina recrutara para ajudar no hospital. As três estavam abraçadas como se quisessem se consolar e fitavam o céu.

Este estava cheio de ardentes estrelas cor-de-rosa, e muitas pareciam cair, deixando para trás rastros compridos e quase fluorescentes. Um arrepio subiu pelas costas de Rusty

Judy previu isso, pensou. “As estrelas cor-de-rosa estão caindo em linha.”

E estavam. Estavam.

Era como se o próprio firmamento caísse sobre a cabeça deles.

    

Alice e Aidan Appleton dormiam quando as estrelas cor-de-rosa começaram a cair, mas Thurston Marshall e Carolyn Sturges, não. Os dois foram para o quintal da casa dos Dumagen e assistiram à queda em brilhantes linhas. Algumas linhas se entrecruzavam e, quando isso acontecia, parecia que runas rosadas se destacavam no céu antes de se apagar.

— Será o fim do mundo? — perguntou Carolyn.

— De jeito nenhum — respondeu ele. — É uma chuva de meteoros. São muito comuns no outono aqui na Nova Inglaterra. Acho que é tarde demais para as Perseidas, logo, provavelmente é uma chuva extemporânea, talvez poeira e pedaços de pedra de algum asteroide que explodiu há um trilhão de anos. Pense só nisso, Caro!

Ela não queria.

— As chuvas de meteoros são sempre cor-de-rosa?

— Não — disse ele. — Acho que provavelmente é branca fora da Redoma, mas nós a vemos através de uma camada de poeira e matéria particulada. Poluição, em outras palavras. Isso mudou a cor.

Ela pensou no assunto enquanto observavam o silencioso ataque de raiva rosa no céu.

Thurse, o menininho... Aidan... quando teve aquele ataque ou seja lá o que for, ele disse...

— Eu me lembro do que ele disse. “As estrelas cor-de-rosa estão caindo, elas deixam linhas atrás.”

— Como é que ele sabia?

Thurston só balançou a cabeça.

Carolyn o abraçou com mais força. Em épocas assim (embora nunca tivesse havido uma época exatamente assim na vida dela), ficava contente de Thurston ter idade para ser seu pai. Naquele momento, ela gostaria que ele fosse o seu pai.

— Como é que ele sabia que isso ia acontecer? Como é que ele sabia?

 

Aidan dissera outra coisa durante o seu momento de profecia: Todo mundo está olhando. E às nove e meia daquela noite de segunda-feira, quando a chuva de meteoros atingiu o seu ponto máximo, aquilo era verdade.

A notícia se espalha por celular e e-mail, mas principalmente à moda antiga: boca a boca. Às 22h15, a rua principal está cheia de gente que assiste o silencioso show de fogos de artifício. A maioria igualmente silenciosa. Alguns choram. Leo Lamoine, membro fiel da congregação do Sagrado Redentor do falecido reverendo Coggins, grita que é o Apocalipse, que vê os Quatro Cavaleiros no céu, que o Arrebatamento logo começará, et coetera, et coetera. Sam Relaxado Verdreaux, de volta às ruas desde as três da tarde, sóbrio e mal-humorado, diz a Leo que, se não fechar a boca sobre o Chupocalipso, verá estrelas só suas. Rupe Libby, da polícia de Chester’s Mill, a mão na coronha da arma, diz aos dois para calar a boca e parar de assustar os outros. Como se já não estivessem assustados. Willow e Tommy Anderson estão no estacionamento do Dipper’s, e Willow chora com a cabeça no ombro de Tommy. Rose Twitchell está ao lado de Anson Wheeler na frente do Rosa Mosqueta; ambos ainda estão de avental e também abraçados. Norrie Calvert e Benny Drake estão com os pais, e quando a mão de Norrie segura a de Benny, ele a agarra com um arrepio que as estrelas cadentes cor-de-rosa não conseguem igualar. Jack Cale, atual gerente do Food City; está no estacionamento do supermercado. No fim da tarde, Jack chamou Ernie Calvert, o antigo gerente, e pediu ajuda para fazer um inventário completo dos suprimentos disponíveis. Estavam bem adiantados no serviço, com esperanças de terminar à meia-noite, quando o furor explodiu na rua principal. Agora, estão lado a lado, assistindo à queda das estrelas cor-de-rosa. Stewart e Fernald Bowie estão diante da funerária, olhando para cima. Na calçada em frente à funerária, estão Henry Morrison e Jackie Wettington com Chaz Bender, que dá aulas de História na escola secundária. “É só uma chuva de meteoros vista através de uma névoa de poluição”, diz Chaz a Jackie e Henry... mas mesmo assim parece espantado.

O fato de que o acúmulo de matéria particulada realmente mudou a cor das estrelas faz o povo entender a situação de uma maneira nova, e aos poucos o choro se torna mais generalizado. É um som suave, quase como chuva.

Big Jim está menos interessado num monte de luzes sem sentido no céu do que no modo como as pessoas vão interpretá-las. Esta noite, espera que simplesmente vão para casa. Mas amanhã tudo pode ser diferente. E o medo que vê na maioria das caras talvez não seja tão ruim. Quem sente medo precisa de um líder forte, e se há uma coisa que Big Jim Rennie sabe que pode exercer é uma liderança forte.

Ele está diante da porta da delegacia com o chefe Randolph e Andy Sanders. Logo abaixo deles, amontoados, suas crianças-problema: Thibodeau, Searles, aquela vadiazinha Roux e Frank, amigo de Junior. Big Jim desce os degraus em que Libby caíra mais cedo (ela nos faria um favor se tivesse quebrado o pescoço, pensa ele) e dá um tapinha no ombro de Frankie.

— Que tal o espetáculo, Frankie?

Os grandes olhos assustados do rapaz o deixam com cara de 12 anos, em vez dos 22 ou sabe-se lá quantos ele tenha.

— O que é isso, sr. Rennie? O senhor sabe?

— Chuva de meteoros. É só Deus dando oi pro Seu povo.

Frank DeLesseps relaxa um pouco.

— Vamos entrar — diz Big Jim, sacudindo o polegar para Randolph e Andy, que ainda olham o céu. — Vamos conversar um pouco e depois eu chamo vocês quatro. Quero que todos contem a mesma história melequenta que eu contar. Entenderam?

— Sim, sr. Rennie — responde Frankie.

Mel Searles fita Big Jim, os olhos arregalados como pires e a boca aberta. Big Jim acha que o QI do rapaz deve chegar a setenta. Não que isso seja necessariamente ruim.

— Parece o fim do mundo, sr. Rennie — diz ele.

— Bobagem. Já está Salvo, meu filho?

— Acho que sim — responde Mel.

— Então não precisa se preocupar. — Big Jim os examina um a um, terminando com Carter Thibodeau. — E hoje à noite, rapazes, o caminho da salvação é todos contarem a mesma história.

Nem todos veem as estrelas cor-de-rosa. Como os meninos Appleton, as garotinhas de Rusty Everett estão num sono profundo. Piper também. E Andrea Grinnell. E o Chef, caído de pernas abertas no capim seco ao lado do laboratório que talvez seja a maior fábrica de metanfetamina dos Estados Unidos.

O mesmo com Brenda Perkins, que chorou até dormir no sofá com as páginas de VADER espalhadas na mesinha de centro diante dela.

Os mortos também não veem, a menos que olhem de um lugar mais claro que essa planície escurecida onde exércitos ignorantes se digladiam à noite. Myra Evans, Duke Perkins, Chuck Thompson e Claudette Sanders estão enfiados lá na Funerária Bowie; o dr. Haskell, o sr. Carty e Rory Dinsmore, no necrotério do hospital Catherine Russell; Lester Coggins, Dodee Sanders e Angie McCain ainda estão na despensa dos McCain. Junior também. Está entre Dodee e Angie, segurando as mãos das duas. A cabeça dói, mas só um pouco. Ele acha que talvez passe a noite ali.

Na estrada de Motton, em Eastchester (não muito longe do lugar onde acontece a tentativa de romper a Redoma com um composto ácido experimental sob o estranho céu cor-de-rosa), Jack Evans, marido da falecida Myra, está no quintal com uma garrafa de Jack Daniels numa das mãos e a sua arma predileta de proteção doméstica, uma Ruger SR9, na outra. Ele bebe e assiste à queda das estrelas cor-de-rosa. Sabe o que são e, a cada uma, faz um desejo, e deseja a morte, porque sem Myra ele perdeu o pé na vida. Talvez conseguisse viver sem ela, e talvez conseguisse viver como um rato numa gaiola de vidro, mas não consegue aguentar os dois. Quando a queda de meteoros fica mais intermitente — isso por volta das 22h15, uns 45 minutos após o início da chuva —, ele engole o resto do uísque, joga a garrafa no capim e explode o cérebro. É o primeiro suicídio oficial de Mill.

Não será o último.

 

Barbie, Julia e Lissa Jamieson observaram em silêncio os dois soldados com roupa espacial remover a ponta fina da extremidade da mangueira de plástico. Colocaram-na num saco plástico opaco fechado com zíper e depois puseram o saco num estojo de metal com as palavras MATERIAL PERIGOSO pintadas. Trancaram-no com chaves separadas e depois tiraram o capacete. Pareciam cansados, com calor e desanimados.

Dois homens mais velhos — velhos demais para serem soldados — tiraram um equipamento de aparência complicada do local da experiência com ácido, realizada três vezes. Barbie achou que os camaradas mais velhos, talvez cientistas da Agência de Segurança Nacional, tinham feito algum tipo de análise espectrográfica. Ou tentado fazer. As máscaras contra gases usadas durante o procedimento de teste estavam agora puxadas para o alto da cabeça, como chapéus esquisitos. Barbie teria perguntado a Cox o que os testes deveriam revelar, e Cox talvez até lhe desse uma resposta franca, mas Barbie também estava desanimado.

Lá em cima, os últimos meteoroides cor-de-rosa riscavam o céu.

Lissa apontou para Eastchester.

— Ouvi um barulho que parecia um tiro. Vocês ouviram?

— Talvez o escapamento de algum carro ou um garoto soltando foguetes — disse Julia. Também estava cansada e desanimada. Em certo momento, quando ficou claro que a experiência, o teste com ácido, por assim dizer, não daria certo, Barbie a vira limpar os olhos. Mas isso não a impedira de tirar fotos com a Kodak.

Cox andou na direção deles, a sombra lançada em duas direções pelos refletores que tinham sido acesos. Fez um gesto para o lugar onde a forma da porta fora pintada na Redoma.

— Acho que essa pequena aventura custou aos contribuintes americanos uns 750 mil dólares, isso sem contar as despesas de pesquisa e desenvolvimento da criação do composto ácido. Que comeu a tinta que nós jogamos ali e, fora isso, não fez absolutamente merda nenhuma.

— Olha o palavreado, coronel — disse Julia, com um fantasma do seu antigo sorriso.

— Obrigada, Senhora Editora — disse Cox, azedo.

— Achava mesmo que ia dar certo? — perguntou Barbie.

— Não, mas também não achava que viveria para ver um homem em Marte, e os russos dizem que vão mandar quatro em 2020.

— Ah, entendo — disse Julia. — Os marcianos ficaram sabendo e estão possessos.

— Se assim for, retaliaram contra o país errado — retorquiu Cox... e Barbie viu algo nos olhos dele.

— Quanta certeza você tem, Jim? — perguntou baixinho.

— Como é?

— De que a Redoma foi criada por extraterrestres.

Julia deu dois passos à frente. O rosto estava pálido, os olhos ardentes.

— Conta pra gente o que você sabe, caramba!

Cox ergueu a mão.

— Pare. Não sabemos nada. Mas há uma teoria. Sim. Marty, vem cá.

Um dos cavalheiros mais velhos que fizeram os testes se aproximou da Redoma. Segurava a máscara contra gases pela correia.

— Sua análise? — indagou Cox, ao ver a hesitação do outro — Pode falar abertamente.

— Bom... — Marty deu de ombros. — Vestígios minerais. Solo e poluentes aerotransportados. Fora isso, nada. Segundo a análise espectrográfica, essa coisa não está aí.

— E o HY-908? — E, para Barbie e as mulheres: — O ácido.

— Sumiu — disse Marty — A coisa que não está aí engoliu.

— Pelo que você sabe, isso é possível?

— Não. Mas a Redoma não é possível, pelo que nós sabemos.

— E isso leva você a acreditar que a Redoma pode ser criação de alguma forma de vida com conhecimento mais avançado de física, química, biologia, seja o que for?

Quando Marty hesitou de novo, Cox repetiu o que já dissera.

— Pode falar abertamente.

— É uma possibilidade. Também é possível que algum supervilão terreno a tenha criado. Um Lex Luthor do mundo real. Ou pode ser obra de um país renegado, como a Coreia do Norte.

— Sem assumir o crédito? — perguntou Barbie com ceticismo.

— Eu me inclino para os extraterrestres — disse Marty. Deu uma batidinha na Redoma sem piscar; já levara o seu choquinho. — A maioria dos cientistas que estão trabalhando nisso também, se é que podemos dizer que estamos trabalhando quando, na verdade, não estamos fazendo nada. É a Regra de Sherlock: depois de eliminar o impossível, a resposta, por mais improvável que seja, é o que sobrar.

— Alguém ou alguma coisa pousou num disco voador e exigiu ser levado ao nosso líder? — perguntou Julia.

— Não — respondeu Cox.

— Você saberia se isso acontecesse? — perguntou Barbie, e pensou: Estamos mesmo discutindo isso? Ou eu estou sonhando?

— Não necessariamente — disse Cox, depois de uma breve hesitação.

— Ainda poderia ser meteorológico — disse Marty. — Cacete, até biológico, uma coisa viva. Há uma escola de pensamento que acha que essa coisa na verdade é algum tipo de híbrido de E. coli.

— Coronel Cox — disse Julia baixinho —, nós somos a experiência de alguém? Porque é o que está parecendo.

Enquanto isso, Lissa Jamieson olhava as casas bonitas do bairrinho de Eastchester. A maioria das luzes estava apagada, ou porque quem morava lá não tinha gerador ou porque estavam poupando energia.

— Foi um tiro — disse ela. — Tenho certeza de que foi um tiro.

 

SENTINDO

Além da política municipal, Big Jim Rennie só tinha um vício, e era o basquete feminino estudantil — a equipe do Lady Wildcats, para ser exato. Comprava entradas para toda a temporada desde 1998 e assistia ao menos a uma dúzia de jogos por ano. Em 2004, o ano em que o Lady Wildcats ganhou o campeonato estadual da Classe D, ele foi a todos. E embora, inevitavelmente, os autógrafos que todos notavam quando convidados a entrar no seu escritório doméstico fossem os de Tiger Woods, Dale Earnhardt e Bill “Spaceman” Lee, o de que ele mais se orgulhava — o seu tesouro — era o de Hanna Compton, a pequena armadora caloura que levara o Lady Wildcats àquela única bola de ouro.

Quem compra entradas para toda a temporada passa a conhecer os outros compradores de entradas para toda a temporada e suas razões para serem fãs do jogo. Muitos são parentes das jogadoras (e muitas vezes promotores dos clubes de apoio que vendiam bolos e faziam campanhas de arrecadação para os jogos fora de casa, cada vez mais caros). Outros são puristas do basquete, que dizem, com certa razão, que os jogos femininos estudantis são simplesmente melhores. As jovens jogadoras têm uma ética de equipe raramente igualada pelos rapazes (que adoram correr, enterrar e atirar lá do meio da quadra). O ritmo é mais lento, permitindo ver o jogo por dentro e apreciar cada tabela, cada jogada em dupla. Os fãs do jogo feminino adoram o placar baixíssimo que os fãs do basquete masculino desdenham e afirmam que o jogo feminino valoriza a defesa e as faltas, que são a própria definição da velha escola da bola ao cesto.

Também há os caras que só gostam de ver meninas adolescentes de pernas compridas correndo de calças curtas.

Big Jim tinha todas essas razões para gostar do esporte, mas a paixão brotara de uma fonte totalmente diferente que ele nunca externava ao discutir os jogos com os outros fás. Não seria boa política.

 

As meninas levavam o esporte para o pessoal e isso fazia com que odiassem melhor.

Os meninos queriam vencer, é claro, e às vezes os jogos ficavam violentos se fossem contra rivais tradicionais (no caso dos Mill Wildcats, os desprezados Castle Rock Rockets), mas com os meninos a questão era, acima de tudo, realização individual. Exibir-se, em outras palavras. E quando acabava, acabava.

As meninas, por outro lado, detestavam perder. Levavam a derrota para o vestiário e a alimentavam. O mais importante é que detestavam e odiavam em equipe. Muitas vezes Big Jim via o ódio mostrar a cabeça; por uma briga pela bola solta no meio do segundo tempo com o placar empatado, ele conseguia captar aquela vibração Não vai não, sua piranha, essa bola é MINHA. Ele a captava e se alimentava dela.

Até 2004, as Lady Wildcats só tinham participado do torneio estadual uma vez em vinte anos, num jogo único contra Buckfield. Então surgira Hanna Compton. A maior odiadora de todos os tempos, na opinião de Big Jim.

Como filha de Dale Compton, lenhador magérrimo de Tarker’s Mills que vivia bêbado e adorava discutir, a atitude sai-da-minha-frente de Hanna lhe viera naturalmente. No primeiro ano, jogara na categoria sub-17 quase a temporada inteira; a técnica só a promoveu para a sub-19 nos dois últimos jogos, em que marcou mais pontos do que todo mundo e deixou a adversária dos Richmond Bobcats se contorcendo no piso depois de uma defesa dura mas legal.

Quando aquele jogo acabou, Big Jim chamara a técnica Woodhead num canto.

— Se essa garota não jogar no ano que vem, você é doida — disse ele.

— Eu não sou doida — respondeu a técnica Woodhead.

Hanna começara quente e terminara mais quente ainda, abrindo uma trilha que os fãs das Wildcats ainda comentariam anos depois (média da temporada: 27,6 pontos por jogo). Conseguia avistar e marcar uma cesta de três pontos quando quisesse, mas o que Big Jim mais gostava era vê-la abrir a defesa e partir para a cesta, o rosto de nariz achatado franzido de concentração, os olhos pretos e brilhantes ameaçando quem se metesse no seu caminho, o rabinho de cavalo espetado atrás dela como um dedo médio erguido. O segundo vereador e primeiro vendedor de carros usados de Mill se apaixonara.

No jogo do campeonato de 2004, o Lady Wildcats estava dez pontos à frente do Rock Rockets quando Hanna foi expulsa por faltas. Para sorte do Cats, só faltava um minuto e 16 segundos de jogo. Acabaram vencendo por um ponto. Do total de 86 pontos, Hanna Compton marcara estonteantes 63.

Naquela primavera, seu pai criador de caso se acabou atrás do volante de um Cadillac novinho, vendido a ele por James Rennie pai a preço de custo com 40% de desconto. O negócio de Big Jim não eram os carros novos, mas quando queria um “por baixo do pano”, sempre conseguia.

Sentado na sala de Peter Randolph, com os últimos meteoros cor-de-rosa ainda caindo do lado de fora (e as suas crianças-problema esperando — ansiosamente, torcia Big Jim — para serem chamadas e conhecer o seu destino), Big Jim recordou aquele jogo de basquete fabuloso, mítico até; especificamente os oito primeiros minutos do segundo tempo, que começara com as Lady Wildcats perdendo por nove pontos.

Hanna dominara o jogo com uma brutalidade obstinada digna de Joseph Stalin dominando a Rússia, os olhos negros faiscando (e aparentemente fixos num nirvana do basquete além da visão dos mortais comuns), o rosto travado naquele muxoxo eterno que dizia Eu sou melhor que você, sou a melhor, sai da minha frente senão te fodo. Tudo o que ela lançou naqueles oito minutos entrou, inclusive um lançamento absurdo do meio da quadra feito quando os seus pés se emaranharam e ela se livrou da bola só para não cometer falta andando com ela.

Havia expressões para definir esse tipo de estado, sendo a mais comum “estar inspirado”. Mas aquela de que Big Jim gostava era sentindo, como em “Ela agora está mesmo sentindo”. Como se o jogo tivesse uma textura divina além do alcance dos jogadores comuns (embora às vezes até jogadores comuns sentissem e se transformassem por pouco tempo em deuses e deusas, cada defeito corporal sumido durante a divindade transitória), uma textura que em noites especiais podia ser tocada: um drapejado rico e maravilhoso como o que deve adornar os salões de madeira de lei de Valhalla.

Hanna Compton nunca jogara no último ano do secundário; a final do campeonato fora o seu jogo de despedida. Naquele verão, dirigindo bêbado, o pai se matou e levou consigo a mulher e as três filhas quando voltava para Tarker’s Mills, vindo do Brownie, onde tinham ido tomar milk shakes. O Cadillac com desconto foi o seu caixão.

O acidente com múltiplas vítimas virara manchete no oeste do Maine — naquela semana, o Democrata de Julia Shumway saiu com tarja preta nas bordas —, mas Big Jim não sentira pesar. Suspeitava que Hanna jamais jogaria na faculdade; lá as moças eram maiores e ela ficaria limitada à reserva, para só jogar em situações específicas. Ela nunca suportaria isso. Seu ódio tinha que ser alimentado pela ação constante na quadra. Big Jim entendia totalmente. Tinha total empatia. Era a principal razão pela qual nunca pensara em sair de Mill.

No mundo maior, ganharia mais dinheiro, mas a riqueza era a cerveja da vida. O poder era o champanhe.

Administrar Mill era bom nos dias comuns, mas em tempos de crise era muito melhor. Em épocas assim, dava para voar nas asas puras da intuição, sabendo que não tinha como agir errado, simplesmente não tinha como. Era possível adivinhar a defesa antes mesmo que os defensores se unissem e marcar pontos sempre que se lançava a bola. Ele sentia, e a melhor época para isso acontecer era numa final de campeonato.

Aquela era a sua final de campeonato e tudo lhe facilitava o caminho. Ele tinha a sensação — a crença total — de que nada daria errado durante essa ocasião mágica; até coisas que pareciam erradas virariam oportunidades em vez de obstáculos, como o lançamento desesperado de Hanna que fizera todo o Centro Cívico Derry se levantar, os fãs de Mills gritando, os de Castle Rock rugindo de descrença.

Sentindo. E era por isso que ele não se cansava, embora devesse estar exausto. Era por isso que não se preocupava com Junior, apesar da reticência e da vigilância pálida do filho. Era por isso que não se preocupava com Dale Barbara e o círculo de amigos criadores de caso de Barbara, principalmente a piranha do jornal. Era por isso que, quando Peter Randolph e Andy Sanders o olharam embasbacados, Big um só sorriu. Podia se dar ao luxo de sorrir. Estava sentindo.

— Fechar o supermercado? — perguntou Andy. — Isso não vai deixar um monte de gente nervosa, Big Jim?

— O supermercado e o Posto e Mercearia — corrigiu Big Jim, ainda sorrindo. — Com o Brownie não precisamos nos preocupar, já está fechado. O que é bom; é um lugarzinho sujo. — Que vende revistinhas sujas, ele não acrescentou.

— Jim, tem muitos suprimentos no Food City — disse Randolph. — Conversei com Jack Cale sobre isso essa tarde mesmo. A carne é pouca, mas o resto todo ainda se aguenta.

— Eu sei — disse Big Jim. — Eu sei o que é estoque, e Cale também sabe. Tem que saber, afinal de contas ele é judeu.

— Bom, só quero dizer que até agora está tudo em perfeita ordem, porque o povo mantém a despensa bem abastecida. — Ele se animou. — Agora entenderia mandar o Food City funcionar menos horas. Acho que dá para convencer o Jack. Provavelmente ele já está pensando nisso.

Big Jim fez que não, ainda sorrindo. Ali estava outro exemplo de como as coisas ficam do nosso jeito quando estamos sentindo. Duke Perkins diria que seria um erro impor mais tensão à cidade, ainda mais depois do inquietante evento celestial daquela noite. Mas Duke morrera e isso era mais do que conveniente; era divino.

— Fechados — repetiu. — Os dois. Bem fechadinhos. E quando reabrirem, nós é que vamos controlar os suprimentos. Tudo vai durar mais e a distribuição vai ser mais justa. Vou anunciar o plano de racionamento na assembleia de quinta-feira. — Ele parou. — Se até lá a Redoma não tiver sumido, é claro.

— Não sei se temos autoridade pra fechar lojas, Big Jim — disse Andy, hesitante.

— Numa crise como essa, além da autoridade, temos a responsabilidade. — Ele deu um tapinha amistoso nas costas de Pete Randolph. O novo chefe de polícia de Mill não esperava por isso e soltou um guincho de susto.

— E se houver pânico? — Andy franzia a testa.

— Bom, essa é uma possibilidade — disse Big Jim. — Quando chutamos um ninho de camundongos, é bem capaz que eles saiam correndo. Talvez tenhamos que aumentar mais a nossa força policial se essa crise não terminar logo. É, bem mais.

Randolph se espantou.

— Já temos quase vinte policiais agora. Inclusive... — Ele indicou a porta com a cabeça.

— É — disse Big Jim —, e, por falar nesses caras, é melhor mandar eles entrarem, chefe, pra gente acabar com isso e mandar eles pra casa dormir. Acho que vão ter um dia cheio amanhã.

E se sofrerem um pouco, melhor ainda. Merecem, por não serem capazes de guardar a mangueira dentro das calças.

 

Frank, Carter, Mel e Georgia entraram arrastando os pés como suspeitos numa acareação policial. Estavam de cara amarrada e desafiadora, mas o desafio era frágil; Hanna Compton riria deles. Os olhos baixos estudavam os sapatos. Para Big Jim, era óbvio que esperavam ser demitidos ou coisa pior, e para ele estava tudo bem. O medo era a emoção mais fácil para se trabalhar.

— Ora, ora — disse ele. — Eis aqui os bravos policiais.

Georgia Roux murmurou alguma coisa entredentes.

— Fale mais alto, doçura. — Big Jim pôs na orelha a mão em concha.

— Eu disse que a gente não fez nada de errado — repetiu ela. Ainda naquele murmúrio de a-professora-tá-me-perseguindo.

— Então exatamente o que vocês fizeram? — E, quando Georgia, Frank e Carter começaram todos a falar ao mesmo tempo, ele apontou Frankie. — Você. E fala direito, pelo amor de Deus.

— Nós estivemos lá — disse Frank —, mas ela nos convidou.

— Isso! — gritou Georgia, cruzando os braços debaixo do busto considerável. — Ela...

— Calada. — Big Jim apontou para ela um dedo carnudo. — Um fala por todos. É como funciona quando se forma uma equipe. Vocês são uma equipe?

Carter Thibodeau entendeu até onde iria aquilo.

— Somos, sr. Rennie.

— Fico feliz em saber. — Big Jim fez um sinal de cabeça para Frank continuar.

— Ela disse que tinha umas cervejas — explicou Frank. — Foi a única razão pra irmos até lá. Não se pode comprar cerveja na cidade, o senhor sabe. De qualquer modo, ficamos ali sentados tomando cerveja, só uma latinha cada um, e praticamente não estávamos de serviço...

— Vocês não estavam de serviço de jeito nenhum — interrompeu o chefe. — Não foi isso o que você quis dizer?

Frank concordou com todo o respeito.

— Sim, senhor, foi o que eu quis dizer. Tomamos a cerveja e achamos melhor ir embora, mas ela disse que apreciava o que nós estávamos fazendo, cada um de nós, e queria agradecer. Então ela praticamente abriu as pernas.

— Mostrando a perereca, sabe — esclareceu Mel com um sorriso amplo e vazio.

Big Jim fez uma careta e agradeceu em silêncio por Andrea Grinnell não estar lá. Viciada em drogas ou não, ela talvez ficasse politicamente correta numa situação daquelas.

— Ela nos levou pro quarto, um de cada vez — disse Frankie. — Sei que foi uma péssima decisão, e nós todos sentimos muito, mas foi totalmente voluntário da parte dela.

— Tenho certeza de que sim — disse o chefe Randolph. — Aquela moça tem péssima reputação. O marido também. Vocês não viram nenhuma droga por lá?

— Não, senhor. — Um coro em quatro vozes.

— E vocês não machucaram ela? — perguntou Big Jim. — Dizem que ela afirmou que apanhou e sei lá mais o quê.

— Ninguém machucou ela — disse Carter. — Posso dizer o que eu acho que aconteceu?

Big Jim fez um sinal afirmativo com a mão. Começava a achar que o sr. Thibodeau tinha futuro.

— Provavelmente ela caiu depois que nós fomos embora. Talvez algumas vezes. Estava muito bêbada. O Conselho Tutelar devia tirar dela aquele bebê antes que ela o mate.

Ninguém pegou a deixa. Na atual situação da cidade, a sede do Conselho Tutelar em Castle Rock poderia muito bem ficar na Lua.

— Então basicamente vocês estão limpos — disse Big Jim.

— Limpíssimos — respondeu Frank.

— Bom, acho que estamos satisfeitos. — Big Jim olhou em volta. — Estamos satisfeitos, cavalheiros?

Andy e Randolph fizeram que sim, parecendo aliviados.

— Ótimo — disse Big Jim. — Agora, hoje foi um dia longo, um dia cheio, e tenho certeza de que todos precisamos dormir. Principalmente vocês, jovens policiais, porque vão estar de volta ao serviço às sete da manhã. O supermercado e o Posto e Mercearia vão ficar fechados enquanto durar a crise, e o chefe Randolph achou que seria bom vocês ficarem de guarda no Food City para o caso de surgirem indivíduos que não aceitem de bom grado a nova ordem das coisas. Acha que dá conta, sr. Thibodeau? Com o seu... o seu ferimento de guerra?

Carter dobrou o braço.

— Estou bem. O cachorro dela não atingiu o tendão.

— Posso mandar Fred Denton com eles também — disse o chefe Randolph, entendendo o espírito da coisa. — Wettington e Morrison no Posto e Mercearia vão ser suficientes.

— Jim — disse Andy —, talvez nós devêssemos pôr os policiais mais experientes no Food City e os menos experientes na loja menor...

— Acho que não — disse Big Jim. Sorrindo. Sentindo. — São esses jovens que nós queremos no Food City. Esses mesmos. E outra coisa. Um passarinho me contou que alguns de vocês têm levado armas no carro, um ou dois usado armas até quando patrulham a pé.

Isso foi recebido com silêncio.

— Vocês são policiais em experiência — disse Big Jim. — Se têm armas pessoais, é o seu direito como americanos. Mas se eu souber que algum de vocês estava armado na guarda diante do Food City amanhã, lidando com a gente boa desta cidade, a passagem de vocês pela polícia acaba.

— Certíssimo — disse Randolph.

Big Jim examinou Frank, Carter, Mel e Georgia.

— Tudo bem com isso? Todos vocês?

Eles não pareceram contentes. Big Jim não esperava que ficassem contentes, mas estavam se saindo bem. Thibodeau não parava de flexionar os ombros e os dedos, testando-os.

— E se elas não estiverem carregadas? — perguntou Frank. — E se só estiverem ali, tipo, como aviso?

Big Jim ergueu um dedo professoral.

— Vou lhe dizer o que o meu pai me dizia, Frank: arma descarregada não existe. Somos uma cidade boa. Todos vão se comportar, é nisso que eu aposto. Se eles mudarem, nós mudamos. Entendeu?

— Entendi, sr. Rennie. — Frank náo parecia nada feliz. E Big Jim não via problema nisso.

Ele se levantou. Só que, em vez de os mandar embora, Big Jim estendeu as mãos. Viu a hesitação e fez um sinal positivo com a cabeça, ainda sorrindo.

— Venham cá. Amanhã vai ser um grande dia e não queremos que este aqui se acabe sem uma palavra de oração. Então me deem as mãos.

Eles deram. Big Jim fechou os olhos e baixou a cabeça. “Meu Senhor...”

Isso levou algum tempo.

 

Barbie subiu a escada externa do apartamento faltando poucos minutos para a meia-noite, ombros caídos de cansaço, pensando que só o que queria no mundo eram seis horas fora dele antes de ouvir o despertador e ir para o Rosa Mosqueta preparar o café da manhã.

O cansaço foi embora assim que acendeu a luz — que, por cortesia do gerador de Andy Sanders, ainda funcionava.

Alguém estivera ali.

O sinal era tão sutil que, a princípio, não conseguiu delimitá-lo. Fechou os olhos, abriu e os deixou vaguear ao acaso pela combinação de sala e quitinete, tentando absorver tudo. Os livros que planejara deixar para trás não tinham sido mexidos nas prateleiras; as cadeiras estavam no lugar, uma sob a lâmpada a outra junto à única janela da sala, com a vista para o beco lá de fora; a xícara de café e o prato de torradas ainda rio escorredor de pratos ao lado da pia minúscula.

Então veio o clique, como costuma acontecer quando a gente não se força demais. Era o tapete. Que ele chamava de tapete Não Lindsay.

Com um 1,5 metro de comprimento e 60 centímetros de largura, Não Lindsay tinha um desenho em losangos que se repetia em azul, vermelho, branco e marrom. Ele o comprara em Bagdá, mas um policial iraquiano em quem confiava garantira ser de fabricação curda. “Muito antigo, muito bonito”, dissera o policial. O nome dele era Latif abd al-Khaliq Hassan. Um bom soldado. “Parece turco, mas não não não.” Sorriso amplo. Dentes brancos. Uma semana depois daquele dia na feira, a bala de um franco-atirador explodira o cérebro de Latif abd al-Khaliq Hassan, entrando bem pelo meio da nuca. “Turco não, iraquiano!”

O vendedor de tapetes usava uma camiseta amarela que dizia NÃO ATIREM EM MIM, SOU SÓ O PIANISTA. Latif o escutou, concordando. Riram-se juntos. Depois o mercador fez um gesto de punheta espantosamente americano e eles riram mais ainda.

— O que foi? — perguntara Barbie.

— Ele diz que senador americano comprou cinco desses. Lindsay Graham. Cinco tapete, quinhentos dólar. Quinhentos à vista, para a imprensa. Mais debaixo do pano. Mas todos tapetes do senador falsos. Isso isso isso. Esse aqui não falso, esse aqui verdadeiro. Eu, Latif Hassan, estou dizendo, Barbie. Tapete não Lindsay Graham.

Latif erguera a mão e ele e Barbie bateram as palmas. Fora um bom dia. Quente, mas bom. Comprara o tapete por duzentos dólares americanos e um aparelho de DVD Coby que funcionava em todos os territórios. Não Lindsay era a sua única lembrança do Iraque, e nunca pisava nele. Sempre o contornava. Planejara deixá-lo para trás quando partisse de Mill — achava que, bem no fundo, a ideia era deixar o Iraque para trás quando fosse embora de Mill, mas sem chance. Para onde quer que fosse, lá estava. A grande verdade zen da época.

Ele não pisava no tapete, era supersticioso quanto a isso, sempre o contornava, como se pisar nele fosse ativar algum computador de Washington e ele se visse de volta em Bagdá ou na maldita Fallujah. Mas alguém pisara, porque Não Lindsay estava mexido. Enrugado. E meio torto. Estava perfeitamente reto quando saíra pela manhã, mil anos antes.

Entrou no quarto. A colcha estava esticada como sempre, mas aquela sensação de que alguém estivera ali era igualmente forte. Seria um cheiro de suor que ficara? Alguma vibração psíquica? Barbie não sabia e não se importava. Foi até a cômoda, abriu a gaveta de cima e viu que os jeans superdesbotados que antes estava no alto da pilha agora estava embaixo. E os shorts cáqui, que guardara com o zíper para cima, estavam com o zíper para baixo.

Foi imediatamente para a segunda gaveta, a das meias. Levou menos de cinco segundos para verificar que as placas de identificação tinham sumido, e não ficou surpreso. Não, nem um pouco surpreso.

Pegou o celular descartável que também planejara deixar para trás e voltou para a sala. A lista telefônica conjunta de Tarker e Chester estava em cima da mesinha junto à porta, um catálogo tão fino que era quase um panfleto. Procurou o número que queria, sem esperar que estivesse lá; chefes de polícia não costumam deixar na lista o telefone da residência.

Só que parecia que deixavam, nas cidades pequenas. Ao menos este deixara, embora fosse discreto: H e B Perkins Rua Morin 28. Embora já passasse de meia-noite, Barbie digitou o número sem hesitação. Não podia se dar ao luxo de esperar. Estava achando que o tempo poderia ser curtíssimo.

 

O telefone tocava. Howie, sem dúvida, ligando para dizer que ia demorar, para trancar a casa e ir para a cama...

Então ela se lembrou outra vez, como presentes desagradáveis que chovem de uma pinhata do mal: a percepção de que Howie estava morto. Ela não sabia quem estaria ligando — ela verificou o relógio de pulso — à meia-noite e vinte, mas não era Howie.

Fez uma careta ao sentar-se, esfregando o pescoço, amaldiçoando ter adormecido no sofá, amaldiçoando também quem a acordara numa hora tão imprópria e a fizera recordar a sua nova e estranha solteirice.

Então lhe ocorreu que só poderia haver uma razão para um telefonema tão tardio: a Redoma sumira ou fora aberta. Ela bateu a perna na mesinha de centro com força suficiente para chacoalhar os papéis que lá estavam e depois mancou até o telefone ao lado da cadeira de Howie (como doía olhar aquela cadeira vazia) e o agarrou.

— O quê? O quê?

— É Dale Barbara.

— Barbie! Ela quebrou? A Redoma quebrou?

— Não. Adoraria ser por isso que estou ligando, mas não é.

— Então por quê? É quase meia-noite e meia!

— Você disse que o seu marido estava investigando Jim Rennie.

Brenda parou, começando a entender. Ela pusera a palma da mão no lado do pescoço, no lugar que Howie acariciara pela última vez.

— Estava, mas eu lhe disse, ele não tinha absoluta...

— Eu me lembro do que você disse — interrompeu Barbie. — Você precisa me escutar, Brenda. Consegue fazer isso? Está acordada?

— Agora estou.

— O seu marido fez anotações?

— Fez. No laptop. Eu imprimi. — Ela olhava o dossiê VADER, espalhado na mesinha de centro.

— Ótimo. Amanhã de manhã, quero que ponha as folhas impressas num envelope e leve para Julia Shumway. Diga a ela que guarde em lugar seguro. Num cofre de verdade, se ela tiver. Uma caixa-forte de dinheiro ou um arquivo trancado a chave, se não tiver. Diga a ela que só abra se algo acontecer a você ou a mim ou a nós dois.

— Você está me assustando.

— Caso contrário, ela não deve abrir. Se você disser isso, ela vai obedecer? O meu instinto diz que sim.

— É claro que vai obedecer, mas por que ela não pode olhar?

— Porque se a editora do jornal local vir o que o seu marido tinha contra Big Jim e Big Jim souber que ela viu, a maior parte da vantagem que nós temos sumirá. Isso você entendeu?

— E-entendi...

Ela se viu desejando com desespero que Howie é que estivesse ali, conversando depois da meia-noite.

— Eu disse que podia ser preso hoje se o míssil não desse certo. Lembra que eu disse isso?

— É claro.

— Pois é, não fui. Aquele filho da puta gordo sabe esperar. Mas não vai esperar mais. Tenho quase certeza de que vai acontecer amanhã; quero dizer, hoje, mais tarde. Isto é, se você não conseguir impedir ameaçando divulgar a sujeira que o seu marido desenterrou.

— Você acha que vão te prender pelo quê?

— Não faço ideia, mas não vai ser por furto de loja. E quando eu estiver na cadeia, acho que vou sofrer um acidente. Vi muitos acidentes assim no Iraque.

Isso é loucura. — Mas tinha a plausibilidade horrenda que ela às vezes sentira em pesadelos.

— Pense bem, Brenda. Rennie tem algo a esconder, precisa de um bode expiatório e o novo chefe de polícia come na mão dele, Os astros estão alinhados.

— Eu planejava fazer uma visita a ele, de qualquer modo — disse Brenda. — E ia levar Julia comigo, por segurança.

— Não leva a Julia — disse ele —, mas não vá sozinha.

— Você acha mesmo que ele...

— Não sei o que ele faria, até onde iria. Em quem você confia, além da Julia?

     Ela se lembrou daquela tarde, o fogo quase apagado, parada ao lado da estrada da Bostinha, sentindo-se bem apesar da tristeza por estar cheia de endorfinas. Romeo Burpee a lhe dizer que ela devia ao menos concorrer a chefe dos bombeiros.

— Rommie Burpee — disse ela.

— Ótimo, então é ele.

— Conto a ele o que o Howie tinha no...

— Não — disse Barbie. — Ele é só a sua apólice de seguro. Tem mais uma: tranca o laptop do seu marido.

— Tudo bem.., mas se eu trancar o laptop e deixar as cópias impressas com a Julia, o que eu vou mostrar ao Jim? Acho que eu devia imprimir outra cópia...

— Não. Uma voando por aí já é suficiente. Ao menos por enquanto. Inspirar nele o medo de Deus é uma coisa. Deixar ele apavorado o tornaria imprevisível demais. Brenda, você acredita que ele é um canalha?

Ela não hesitou.

— De todo o coração. — Porque Howie acreditava nisso; pra mim, é o que basta.

— E se lembra do que tem no dossiê?

— Não os números exatos nem o nome de todos os bancos que usavam, mas o suficiente.

— Então ele vai acreditar em você — disse Barbie. — Com ou sem uma segunda cópia da papelada, ele vai acreditar em você.

 

Brenda pôs o dossiê VADER num envelope de papel pardo. Na frente, escreveu o nome de Julia. Colocou o envelope na mesa da cozinha, depois foi até o escritório de Howie e trancou o laptop no cofre. O cofre era pequeno e ela teve que virar o Mac de lado, mas no final coube direitinho. Terminou dando duas voltas em vez de uma no disco do segredo, seguindo as instruções do marido morto.

Quando terminou, a luz apagou. Por um instante, uma parte primitiva dela teve certeza de que as apagara apenas dando aquela volta a mais no disco.

Depois, percebeu que o gerador lá dos fundos parara de funcionar.

    

Quando Junior chegou em casa às 6h15 da manhã de terça-feira, o rosto pálido com barba por fazer, o cabelo eriçado em maços, Big Jim estava sentado à mesa da cozinha, com um roupão de banho branco mais ou menos do tamanho da maior vela de um navio. Tomava uma Coca-Cola.

Junior a indicou com a cabeça.

— Um dia bom começa com um bom café da manhã.

Big Jim ergueu a lata, deu um gole e a pousou.

— Não tem café. Quer dizer, tem, mas não tem luz. Acabou o gás do gerador. Por que você não pega uma latinha também? Ainda estão bem geladas e pelo jeito uma te cairia bem.

Junior abriu a geladeira e espiou o interior escuro.

— É pra eu acreditar que você não pode arranjar mais gás a hora que quiser?

Big Jim se irritou um pouco com isso e depois relaxou. Era uma pergunta sensata e não significava que Junior soubesse alguma coisa. Fogem os ímpios, sem que ninguém os persiga, lembrou Big Jim a si mesmo.

— Digamos que talvez não seja boa política nesse momento.

— A-hã. — Junior fechou a porta da geladeira e sentou-se no outro lado da mesa. Olhou o pai com uma certa sensação vazia de divertimento (que Big Jim confundiu com afeição).

A família que mata unida permanece unida, pensou Junior. Ao menos por enquanto. Enquanto for...

— Político — disse.

Big Jim fez que sim e examinou o filho, que suplementava a bebida matutina com um pedaço de carne-seca Big Jerk.

Não perguntou Onde você esteve? Não perguntou O que há de errado com você?, embora fosse óbvio, à implacável luz da manhã que inundava a cozinha, que havia algo errado. Mas fez uma pergunta.

— Há corpos. Plural. É isso mesmo?

— É. — Junior deu uma grande mordida no bastão de carne-seca e o engoliu com Coca-Cola. A cozinha estava estranhamente silenciosa sem o zumbido da geladeira e o borbulhar da máquina de café.

— E todos esses corpos podem ser jogados na porta do sr. Barbara?

— Podem. Todos.

Outra mordida. Outra engolida. Junior a olhá-lo com firmeza, esfregando a têmpora esquerda ao mesmo tempo.

— Seria plausível você encontrar esses corpos por volta do meio-dia de hoje?

— Sem problema.

— E a prova contra o nosso sr. Barbara, é claro.

— Isso. — Junior sorriu. — A prova é boa.

— Não apareça na delegacia agora de manhã, filho.

— É melhor ir — disse Junior. — Vai ser esquisito se eu não for. Além disso, náo estou cansado. Dormi com... — Ele balançou a cabeça. — Dormi, só.

Big Jim também não perguntou Com quem você dormiu? Tinha outras preocupações além de com quem ficava o filho; estava contente porque o garoto não estivera entre os sujeitos que tinham feito o serviço naquela mulherzinha baixo nível da estrada de Motton. Fazer o serviço naquele tipo de garota era uma boa maneira de pegar alguma coisa e ficar doente.

Ele já está doente, sussurrou uma voz na cabeça de Big Jim. Podia ser a voz sumida da esposa. É só olhar pra ele.

Provavelmente a voz estava certa, mas nessa manhã ele tinha preocupações maiores do que o transtorno alimentar de Junior Rennie, ou o que quer que fosse.

— Eu não disse pra você ir dormir. Quero você na patrulha motorizada quero que faça um serviço pra mim. Basta ficar longe do Food City enquanto Lsso. Acho que vai haver problemas por lá.

Os olhos de Junior se animaram.

— Que tipo de problemas?

Big Jim não respondeu diretamente.

— Você consegue achar Sam Verdreaux?

— Claro. Deve estar naquele barraquinho lá na estrada do Riacho de Deus. Geralmente estaria dormindo, mas hoje é mais provável que esteja acordado, sacudindo com delirium tremens.

Junior deu uma risadinha com a imagem, fez uma careta e voltou a esfregar a têmpora.

— Acha mesmo que eu sou a pessoa certa pra falar com ele? Ele não é o meu maior fã agora. Provavelmente até me deletou da página dele no Facebook.

— Não entendi.

— É uma piada, pai. Esquece.

— Acha que ele te recebe bem se você oferecer 3 litros de uísque? E mais depois, se ele fizer um bom serviço?

— Aquele gambá velho me receberia bem se eu oferecesse meio copo de vinho barato.

— Pega o uísque no Brownie — disse Big Jim. Além de alimentos baratos, cartilhas e tabuadas, o Brownie era uma das três lojas com permissão de vender bebidas alcoólicas em Mill, e a delegacia tinha as chaves das três. Big Jim passou a chave por cima da mesa. — Porta dos fundos. Não deixa ninguém te ver entrar.

— O que o Sam Relaxado tem que fazer em troca da bebida?

Big Jim explicou. Junior escutou impassível... a não ser pelos olhos injetados, que dançaram. Só tinha uma pergunta: daria certo?

Big Jim fez que sim.

— Vai dar. Estou sentindo!

Junior deu outra mordida na tira de carne-seca e outro gole no refrigerante.

— Eu também, pai — disse. — Eu também.

 

Quando Junior saiu, Big Jim foi para o escritório com o roupão adejando grandiosamente atrás dele. Tirou o celular da gaveta central da escrivaninha, onde o deixava o máximo possível. Achava que celulares eram coisas sem Deus que só serviam para encorajar muita conversa fiada e inútil; quantas horas-homem se perderam em blá-blá-blás inúteis naquelas coisas? E que tipo de raios nocivos disparavam na cabeça de quem jogava conversa fora?

Ainda assim, podiam ser úteis. Ele calculava que Sam Verdreaux faria o que Junior lhe dissesse, mas também sabia que seria idiotice não se assegurar.

Escolheu um número na lista “oculta” de telefones do celular, que só podia ser consultada com um código numérico. O telefone tocou meia dúzia de vezes antes de atenderem. “O que foi?”, berrou o progenitor da gigantesca ninhada Killian.

Big Jim fez uma careta e afastou o celular da orelha um segundo. Quando o trouxe de volta, ouviu sons cacarejantes ao fundo.

— Está no galinheiro, Rog?

— Há... sim senhor, Big Jim, tô sim. As galinhas têm que comer, chova ou faça sol. — Uma guinada de 180 graus, da irritação ao respeito. E Roger Killian tinha que ser respeitoso; Big Jim fizera dele um baita milionário. Se ainda desperdiçava a vida que poderia ser boa e sem preocupações financeiras se levantando ao amanhecer para alimentar um monte de galinhas, era a vontade de Deus. Roger era burro demais para parar. Era a natureza que Deus lhe dera, e sem dúvida hoje seria muito útil a Big Jim.

E à cidade, pensou. É pela cidade que eu faço isso. Pelo bem da cidade.

— Roger, tenho um serviço pra você e os seus três filhos mais velhos.

— Só tem dois em casa — disse Roger. Com o seu forte sotaque ianque, isso soou como “sotemdozemcaz”. — Ricky e Randall tão aqui, mas Roland tava em Oxford comprando ração quando o diabo dessa Redoma caiu. — Ele parou e pensou no que acabara de dizer. Ao fundo, as galinhas cacarejavam.

— Desculpe a blasfêmia.

— Tenho certeza de que Deus o perdoará — disse Big Jim. — Então você e os dois mais velhos. Vocês podem estar na cidade às... — Big Jim fez as contas. Não demorou. Quando estamos sentindo, poucas decisões demoram. — Digamos, às nove, 9h15 no máximo?

— Vou ter que acordar os dois, mas tudo bem — disse Roger. — O que nós vamos fazer? Levar um pouco do gás guard... — não — interrompeu Big Jim —, e fica quieto sobre isso, Deus te ama. Escuta só.

Big Jim falou.

Roger Killian, Deus o amava, escutou.

Ao fundo, cerca de oitocentas galinhas cacarejavam enquanto se entupiam de ração cheia de esteróides.

 

— O quê? O quê? Por quê?

Jack Cale estava sentado atrás da escrivaninha no pequeno escritório lotado da gerência do Food City. A mesa estava coberta de listas de estoque que ele e Ernie Calvert tinham finalmente terminado à uma da madrugadas a esperança de terminar mais cedo frustrada pela chuva de meteoros. Agora ele as pegava — escritas à mão em folhas de papel ofício amarelo — e sacudia diante de Peter Randolph, em pé na porta da sala. O novo chefe vestira o uniforme completo para a visita.

— Olha isso, Pete, antes de fazer alguma coisa idiota.

— Sinto muito, Jack. O mercado está fechado. Vai reabrir na quinta-feira como depósito de alimentos. Partes iguais pra todos. Vamos registrar tudo, a Food City Corp, não vai perder um centavo, prometo...

— A questão não é essa. — Jack quase gemia. Tinha uns 30 e poucos anos, rosto de bebê, com um tufo de cabelo ruivo e crespo que, nesse momento, torturava com a mão que não segurava as folhas amarelas... que Peter Randolph não dava sinais de que iria pegar.

— Aqui! Aqui! Em nome do super-hiper Jesus Malasartes, do que você está falando, Peter Randolph?

Ernie Calvert veio rolando do depósito no subsolo. Era barrigudo, de rosto vermelho, o cabelo grisalho aparado no corte militar que usara a vida toda. Vestia um guarda-pó do Food City.

— Ele quer fechar o mercado! — exclamou Jack.

— Pelo amor de Deus, vai fazer isso por que se ainda tem tanta comida? — perguntou Ernie, zangado. — Por que vai assustar o povo assim? Logo eles vão ficar bem assustados, se isso continuar. De quem foi essa idéia idiota?

— Os vereadores aprovaram — disse Randolph. — Se tiver algum problema com o plano, leva à assembléia especial da cidade quinta-feira à noite. Se tudo isso não acabar até lá, é claro.

— Que plano? — berrou Ernie. — Você está me dizendo que Andrea Grinnell foi favorável a isso? Duvido!

— Acho que ela está gripada — disse Randolph. — De cama. E Andy decidiu. Big Jim apoiou a decisão. — Ninguém lhe dissera que explicasse assim; ninguém precisara. Randolph sabia como Big Jim gostava de trabalhar.

— Em algum momento pode ser preciso um racionamento — disse Jack —, mas por que agora? — Ele sacudiu as folhas de papel outra vez, o rosto quase tão rubro quanto o cabelo. — Por que, quando ainda tem tanto?

— É a melhor hora para começar a poupar — disse Randolph.

— Que lindo, vindo de um homem com um barco a motor no lago Sebago e um Vectra Winnebago na frente da porta — contrapôs Jack.

— Sem esquecer o Hummer do Big Jim — acrescentou Ernie.

— Chega — disse Randolph. — Os vereadores decidiram...

— Ora, dois deles decidiram — retorquiu Jack.

— Você quer dizer que um deles decidiu — continuou Ernie. — E nós sabemos qual.

— ... e eu trouxe o recado, e ponto final. Põe um cartaz na vitrine. MERCADO FECHADO ATÉ SEGUNDA ORDEM.

— Pete. Veja. Seja sensato. — Ernie não parecia mais zangado; agora parecia quase implorar. — Isso vai deixar o povo apavorado. Se está decidido, que tal se eu pusesse FECHADO PARA INVENTÁRIO, REABRIMOS EM BREVE? Talvez acrescentar PEDIMOS DESCULPAS PELA INCONVENIÊNCIA TEMPORÁRIA. Com TEMPORÁRIA em vermelho ou coisa assim.

Peter Randolph fez que não com a cabeça, devagar e com gravidade.

— Não posso permitir, Ern. Não poderia permitir nem se você ainda fosse funcionário da empresa, como ele. — Com a cabeça, mostrou Jack Cale, que baixara as folhas do inventário para torturar o cabelo com ambas as mãos. — FECHADO ATÉ SEGUNDA ORDEM. É o que os vereadores disseram, e eu transmito as ordens deles. Além disso, mentira tem sempre perna curta.

— Pois é, tudo bem, Duke Perkins diria a eles que pegassem essa ordem específica e limpassem a bunda com ela — disse Ernie. — Pete, você devia ter vergonha de ser moleque de recados daquele gordo de merda. Ele diz pula você pergunta a altura.

— É bom calar a boca agora mesmo se não quiser saber o que é bom disse — Randolph, apontando-lhe o dedo. O dedo tremia um pouco. — Se não quiser passar o resto do dia na cadeia por desacato à autoridade, é melhor calar a boca e obedecer. Essa é uma situação de crise...

Ernie o olhou sem acreditar.

— Desacato à autoridade? Isso não existe!

— Agora existe. Se não acredita, experimenta.

 

Mais tarde — tarde demais para servir de alguma coisa — Julia Shumway juntaria as peças de como começara o quebra-quebra no Food City, embora não chegasse a ter oportunidade de publicar. Mesmo que tivesse, ela o faria como pura reportagem jornalística: quem, onde, quando, como e por quê. Se tivesse que escrever sobre o âmago emocional do fato, não conseguiria. Como explicar que pessoas que ela conhecia a vida toda, pessoas que respeitava pessoas que amava, se transformassem numa turba? Disse a si mesma: eu entenderia melhor se estivesse lá desde o início e visse como começou, mas era pura racionalização, recusa a encarar a fera sem ordem nem razão que surge quando se provocam pessoas amedrontadas. Já vira feras assim nos noticiários da TV, geralmente em países estrangeiros. Nunca esperara ver uma delas na sua própria cidade.

E não havia necessidade. Era a isso que não parava de voltar. A cidade estava isolada fazia apenas setenta horas, e cheia de todo tipo de mantimento; só o gás estava misteriosamente sumido.

Mais tarde, ela diria: Foi o momento em que a cidade finalmente se deu conta do que estava acontecendo. É provável que tivesse um fundo de verdade, mas essa ideia não a satisfez. Com certeza absoluta, o máximo que podia dizer (e só disse a si mesma) era que vira a cidade enlouquecer e depois daquilo nunca mais seria a mesma pessoa.

 

As duas primeiras pessoas a verem o cartaz são Gina Buffalino e sua amiga Harriet Bigelow. As duas usam o uniforme branco de enfermeira (isso fora ideia de Ginny Tomlinson; ela achou que o branco inspiraria mais confiança entre os pacientes do que os aventais listrados) e estão umas gracinhas neles. Também parecem cansadas, apesar da resistência juvenil. Foram dois dias duros e há outro igual à espera depois de uma noite de pouco sono. Vieram comprar chocolate — querem comprar o suficiente para todos menos o pobre diabético Jimmy Sirois, esse é o plano — e conversam sobre a chuva de meteoros. A conversa para quando veem o cartaz na porta.

— O mercado não pode estar fechado — diz Gina sem acreditar. — Hoje é terça-feira de manhã. — Ela encosta o rosto no vidro com as mãos em concha para se proteger do brilho do sol matutino.

Enquanto ela se ocupa dessa forma, chega Anson Wheeler com Rose Twitchell na carona. Deixaram Barbie no Rosa Mosqueta para terminar o serviço do café da manhã. Rose já desceu da pequena van com o seu nome pintado na lateral antes mesmo que Anson desligue o motor. Tem uma longa lista de mantimentos e quer comprar o máximo possível o mais cedo possível. Então vê FECHADO ATÉ SEGUNDA ORDEM colado na porta.

— Como assim? Falei com Jack Cale ontem à noite e ele não disse nada sobre isso.

Ela fala com Anson, que vem na sua esteira, mas quem responde é Gina Buffalino.

— E ainda tem muita mercadoria. Todas as prateleiras estão cheias.

Outras pessoas vêm chegando. O mercado deve abrir daqui a cinco minuto , e Rose não é a única que planejou começar cedo as compras; gente de toda a cidade acordou, viu que a Redoma ainda estava no lugar e decidiu estocar mantimentos. Mais tarde, ao lhe pedirem que explicasse essa súbita corrida de fregueses, Rose diria: “A mesma coisa acontece todo inverno quando a meteorologia passa o alerta de tempestade para alerta de nevasca. Sanders e Rennie não poderiam ter escolhido um dia pior para implantar essa bobagem.”

Entre os madrugadores estão as unidades Dois e Quatro da polícia de Chester’s Mill. Logo atrás delas chega Frank DeLesseps no seu Nova (ele arrancou o adesivo BUNDA, BAGULHO OU BUFUNFA, achando que dificilmente seria digno de um homem da lei). Carter e Georgia estão no Dois; Mel Searles e Freddy Denton, no Quatro. Estacionaram mais abaixo, na frente da Maison des Fleurs de LeClerc, por ordem do chefe Randolph.

— Não precisam ir até lá cedo demais — Foi a instrução. — Esperem até que haja uns 12 carros no estacionamento. Sabe-se lá, de repente eles só lêem o cartaz e vão pra casa.

É claro que não é o que acontece, como Big Jim Rennie sabia que não aconteceria. E o surgimento dos policiais — principalmente esses, em sua maioria tão jovens e inexperientes — serve de incitação e não de calmante. Rose é a primeira a lhes fazer um discurso. Escolhe Freddy, mostra-lhe a lista comprida de mantimentos, depois aponta a vitrine, onde a maioria das coisas que quer está arrumadinha nas prateleiras.

No começo, Freddy é educado, sabendo que há pessoas olhando (não uma multidão, ainda não), mas é difícil manter a calma com essa zé-mané faladeira na frente. Ela não percebe que ele só está cumprindo ordens?

— Quem você acha que alimenta essa cidade, Fred? — pergunta Rose. Anson põe a mão no ombro dela. Rose sacode o ombro para retirá-la. Ela sabe que Freddy está enxergando raiva em vez da angústia profunda que ela sente, mas não consegue se segurar.

— Acha que um caminhão da Sysco cheio de mantimentos vai cair de paraquedas do céu?

— Senhora...

— Ah, para com isso! Desde quando eu sou senhora pra você? Há vinte anos você come panquecas de amora e aquele bacon horrível e mole que você gosta no meu restaurante quatro ou cinco vezes por semana e sempre me chama de Rosie. Mas não vai comer panquecas amanhã a menos que eu compre farinha, gordura, melado e... — Ela se interrompe. — Finalmente! Bom-senso! Graças a Deus!

     Jack Cale abre uma das portas duplas. Mel e Frank estão parados diante dela e só lhe sobra espaço para se espremer entre eles. Os candidatos a fregueses — já são quase duas dúzias, embora ainda falte um minuto para as nove, hora de abertura oficial do mercado — avançam, mas param quando Jack pega uma chave do molho do cinto e tranca a porta de novo. Há um gemido coletivo.

— Por que diabos você fez isso? — grita Bill Wicker, indignado. — A minha mulher me mandou comprar ovos!

— Reclamem com os vereadores e o chefe Randolph — responde Jack. O cabelo se espalha por todo lado. Ele lança um olhar furioso a Frank DeLesseps e outro mais furioso ainda a Mel Searles, que, sem sucesso, tenta reprimir um sorriso, talvez até o famoso niuc-niuc-niuc. — Só sei que eu vou reclamar. Por enquanto, chega dessa merda. Fui. — Ele passa pela multidão de cabeça baixa, o rosto ainda mais ardido que o cabelo. Lissa Jamieson, que acaba de chegar de bicicleta (tudo na sua lista caberia na caixa de leite empoleirada no bagageiro de trás; suas necessidades são pequenas, quase minúsculas), tem que se desviar para evitá-lo.

Carter, Georgia e Freddy estão enfileirados diante da grande vitrine envidraçada, onde, num dia comum, Jack poria os carrinhos de mão e o adubo. Os dedos de Carter têm band-aids, e uma atadura mais grossa faz volume sob a camisa. Freddy põe a mão na coronha da arma enquanto Rose Twitchell continua a reclamar com ele, e Carter adoraria dar um bofetão nela. Os dedos estão bem, mas o ombro dói pra cacete. O grupinho de candidatos a compradores se tornou uma grande aglomeração, e mais carros entram no estacionamento.

No entanto, antes que o policial Thibodeau consiga realmente estudar a multidão, Alden Dinsmore entra no seu espaço pessoal. Está com cara de cansado e parece ter perdido 10 quilos desde a morte do filho. Usa uma faixa preta de luto no braço esquerdo e anda meio zonzo.

— Preciso entrar, filho. A minha mulher me mandou comprar enlatado. — Alden não diz qual enlatado. Talvez tudo enlatado. Ou talvez só esteja pensando na cama vazia no andar de cima, aquela que nunca mais voltará a ser ocupada, e o pôster do Foo Fighters que nunca mais voltará a ser olhado, e o modelo de avião na escrivaninha que nunca mais será terminado, e tenha esquecido por completo.

— Sinto muito, sr. Dimmesdale — disse Carter. — Não posso permitir.

— É Dinsmore — diz Alden com voz confusa. Começa a caminhar rumo à porta. Está trancada, ele não tem como entrar, mas Carter ainda lhe dá um bom empurrão para trás. Pela primeira vez, Carter sente alguma solidariedade com os professores que costumavam mandá-lo de castigo para a secretaria no colégio; é irritante quando não nos dão atenção.

Além disso, está quente e o ombro dele dói, apesar dos dois Percocets que a mãe lhe deu. Vinte e quatro graus às nove da manhã é raro em outubro, e o azul desbotado do céu diz que ao meio-dia estará mais quente, e mais ainda às três da tarde.

Alden recua e esbarra em Gina Buffalino, e ambos cairiam se não fosse Petra Searles — nada leve, ela — a firmá-los. Alden não parece zangado, só perplexo.

— Minha mulher mandou comprar enlatado — explica ele a Petra.

Um murmúrio vem das pessoas reunidas. Não é um som zangado — ainda não. Vieram buscar mantimentos e os mantimentos estão lá, mas a porta está trancada. Agora um homem foi empurrado por um moleque que largou a escola e que até semana passada era mecânico.

Gina olha Carter, Mel e Frank DeLesseps com olhos arregalados. Aponta.

— São esses os caras que estupraram ela! — diz à amiga Harriet sem baixar a voz. — São os caras que estupraram a Sammy Bushey!

O sorriso some do rosto de Mel; a ânsia de niuc-niuc-niuc sumiu.

— Cala a boca — diz ele.

Atrás da multidão, Ricky e Randall Killian chegam numa picape Chevrolet Canyon. Sam Verdreaux vem não muito atrás, andando, é claro; Sam perdeu para sempre a carteira de motorista em 2007.

Gina dá um passo atrás, fitando Mel com olhos arregalados. Ao seu lado, Alden Dinsmore se projeta como um robô-fazendeiro com a pilha gasta.

— Vocês acham que são da polícia? He-lô-ôu?

— Aquela história de estupro foi mentira da piranha — diz Frank. — E é melhor parar de berrar sobre isso antes que você seja presa por perturbar a ordem.

— É isso aí — diz Georgia. Ela se aproximou um pouco mais de Carter. Ele a ignora. Está examinando a multidão. E agora o nome é esse mesmo. Se é que cinquenta pessoas formam uma multidão. Tem mais chegando também. Carter gostaria de estar armado. Não gosta da hostilidade que vê.

Velma Winter, que gerencia o Brownie (ou gerenciava, antes que fechasse), chega com Tommy e Willow Anderson. Velma é uma mulher grande e robusta com um cabelo à la Bobby Darin e poderia ser a rainha guerreira do País das Sapatas, mas enterrou dois maridos e a história que se conta na mesa do papo furado do Rosa Mosqueta é que trepou com os dois até morrerem e que procura o número três no Dipper’s às quartas-feiras; é a noite do karaokê country, que atrai público mais velho. Agora ela se planta diante de Carter, mãos nos quadris carnudos.

— Fechado, é? — diz, com voz profissional. — Quero ver a papelada.

Carter se confunde e estar confuso o deixa zangado.

— Pra trás, piranha. Não preciso de papelada. O chefe nos mandou aqui. Os vereadores deram a ordem. Vai virar depósito de alimentos.

— Racionamento? É isso que você quer dizer? — Ela dá um muxoxo. — Não na minha cidade. — Ela se enfia entre Mel e Frank e começa a socar a porta. — Abre! Abre isso aí!

— Não tem ninguém aí — diz Frank. — É melhor parar.

Mas Ernie Calvert não tinha saído. Ele vem pelo corredor de macarrão, farinha e açúcar. Velma o vê e começa a bater com mais força.

— Abre, Ernie! Abre!

— Abre! — concordam vozes da multidão.

Frank olha Mel e faz um sinal de cabeça. Juntos, agarram Velma e arrastam os seus 100 quilos para longe da porta. Georgia Roux se virou e está acenando para Ernie voltar. Ernie não volta. A merda do imbecil fica ali parado.

— Abre! — vocifera Velma. — Abre! Abre!

Tommy e Willow se juntam a ela. E também Bill Wicker, o carteiro. E Lissa, o rosto brilhando — a vida toda quis participar de uma manifestação espontânea, e eis a sua chance. Ela ergue o punho fechado e começa a sacudi-lo no tempo — duas sacudidas pequenas em aa- e uma grande em bre. Outros a imitam. Abre vira Aa-bre! Aa-bre! Aa-bre! Agora todos brandem os punhos nesse ritmo de dois mais um — talvez setenta pessoas, talvez oitenta, e não para de chegar gente. A fina linha azul diante do mercado parece mais fina do que nunca. Os quatro policiais mais jovens olham para Freddy Denton pedindo ideias, mas Freddy não tem idéias.

Mas ele tem uma arma. É melhor dar um tiro pro ar bem depressa, careca, pensa Carter, ou essa gente vai nos derrubar.

Mais dois policiais — Rupert Libby e Toby Whelan — descem a rua principal vindo da delegacia (onde estavam tomando café e assistindo à CNN), passando por Julia Shumway, que vem correndo com a câmera pendurada no ombro.

Jackie Wettington e Henry Morrison também partem na direção do supermercado, mas aí o walkie-talkie no cinto de Henry estala. É o chefe Randolph, mandando Henry e Jackie ficarem de guarda no Posto & Mercearia.

— Mas nós ouvimos... — começa Henry.

— As ordens são essas — diz Randolph, sem acrescentar que são ordens que ele apenas transmite —, de um poder mais alto, aliás.

— Aa-bre! Aa-bre! Aa-bre! — A multidão brande saudações de punho fechado no ar quente. Ainda com medo, mas também empolgada. Entrando no clima.

O Chef os olharia e veria um monte de doidões novatos, bastando apenas uma música do Grateful Dead na trilha sonora para completar o quadro.

Os Killian e Sam Verdreaux abrem caminho pela multidão. Repetem a palavra de ordem — não como disfarce protetor, mas porque a vibração da multidão que vira turba é forte demais para resistir —, mas não se dão ao trabalho de brandir o punho; eles têm trabalho a fazer. Ninguém lhes dá muita atenção. Mais tarde, só alguns se lembrarão de ter visto os três.

A enfermeira Ginny Tomlinson também abre caminho pela multidão. Veio dizer às meninas que precisa delas no Cathy Russell; há novos pacientes, um deles em estado grave. Essa seria Wanda Crumley, de Eastchester. Os Crumley moram ao lado dos Evans, perto da fronteira de Motton. Pela manhã, quando Wanda foi ver como Jack estava, encontrou-o morto a menos de 6 metros de onde a Redoma cortara a mão da esposa. Estava caído de costas, com uma garrafa ao lado e o cérebro secando na grama. Wanda correu de volta para casa, gritando o nome do marido, e mal o alcançara quando foi derrubada por um enfarte. Wendell Crumley teve sorte de não bater com o pequeno Subaru a caminho do hospital — fez quase todo o caminho a 130 por hora. Agora Rusty está com Wanda, mas Ginny acha que Wanda — 50 anos, gorda, fumante inveterada — não vai sobreviver.

— Meninas — diz ela. — Precisamos de vocês no hospital.

— Foram eles, sra. Tomlinson! — grita Gina. Ela tem que gritar para ser ouvida acima do canto da multidão. Aponta os policiais e começa a chorar; em parte por medo e cansaço, no mais por revolta. — Foram eles que estupraram ela!

Dessa vez, Ginny olha para além dos uniformes e percebe que Gina está certa. Ginny Tomlinson não sofre do gênio reconhecidamente incontrolável de Piper Libby, mas tem lá o seu gênio, e aqui há um fator agravante: ao contrário de Piper, Ginny viu Sammy sem as calças. A vagina lacerada e inchada. Grandes hematomas nas coxas que só puderam ser vistos depois que o sangue foi lavado. Tanto sangue.

Ginny esquece que precisa das meninas no hospital. Esquece de tirá-las de uma situação instável e perigosa. Esquece até o enfarte de Wanda Crumley. Ela avança, acotovelando alguém no caminho (por acaso é Bruce Yardley, o caixa e empacotador que brande o punho fechado como todo mundo), e se aproxima de Mel e Frank. Ambos estudam a multidão cada vez mais hostil e não a veem chegar.

Ginny ergue as duas mãos, parecendo, por um instante, o bandido que se rende ao xerife num bangue-bangue. Depois, gira as duas mãos e estapeia os dois rapazes ao mesmo tempo.

 

— Seus canalhas! — berra. — Como puderam fazer aquilo? Como puderam ser tão covardes? Tão imundos, cruéis? Vocês vão pra cadeia por isso, todos vo...

Mel não pensa, só reage. Dá um soco no meio do rosto dela, quebrando-lhe os óculos e o nariz. Ela cambaleia para trás, sangrando, aos gritos. O chapeuzinho de enfermeira à moda antiga, que o choque soltou dos grampos que o prendiam, cai da cabeça. Bruce Yardley, o jovem caixa, tenta segurá-la e não consegue. Ginny bate numa fila de carrinhos de compra. Eles vão rolando como um trenzinho. Ela cai de quatro, chorando de dor e choque. Gotas brilhantes de sangue do nariz — não apenas quebrado, esfacelado — começam a cair no grande ST amarelo de NÃO ESTACIONE.

A multidão fica temporariamente em silêncio, chocada, enquanto Gina e Harriet correm até onde Ginny está agachada.

Então a voz de Lissa Jamieson se ergue, um soprano límpido e perfeito:

— SEUS PORCOS CANALHAS!

É quando o bloco de pedra voa. O primeiro a jogar a pedra nunca é identificado. Pode ser o único crime do qual Sam Relaxado Verdreaux saiu impune.

Junior o deixou na parte alta da cidade, e Sam, com visões de uísque dançando na cabeça, saiu à procura da pedra certa na margem leste do riacho Prestile. Tinha que ser grande, mas não grande demais, senão não conseguiria jogá-la com precisão, muito embora antigamente — um século antes, parecia às vezes; outras, parecia bem perto — tivesse sido arremessador titular dos Mills Wildcats no primeiro jogo do torneio estadual do Maine. Finalmente encontrou, não muito longe da Ponte da Paz: meio quilo ou 700 gramas, tão gostosa na mão quanto um ovo de ganso.

Mais uma coisa, dissera Junior ao deixar Sam Relaxado. Essa mais uma coisa não era de Junior, mas isso Junior não disse a Sam, assim como o chefe Randolph não dissera a Wettington e Morrison quem os mandara ficar no posto. Não seria boa política.

Mira na garota. Foi a última palavra de Junior a Sam Relaxado antes de deixá-lo. Ela merece, por isso não erra.

Enquanto Gina e Harriet, de uniforme branco, se ajoelham ao lado da enfermeira que sangra e soluça de quatro (e enquanto a atenção de todos os outros também está presa ali), Sam gira o braço como girou naquele dia longinquo de 1970, solta e faz o seu primeiro tiro certeiro em mais de quarenta anos.

Em mais de um sentido. O pedaço de meio quilo de granito rajado de quartzo atinge Georgia Roux bem na boca, estilhaçando o maxilar em cinco pontos e todos os dentes menos quatro. Girando os braços, ela cai contra a vidraça, a mandíbula pendurada de forma grotesca, quase no peito, a boca escancarada despejando sangue.

Um instante depois, mais duas pedras voam, uma de Ricky, outra de Randall Killian. A de Ricky bate nas costas da cabeça de Bill Allnut e derruba o zelador na calçada, não muito longe de Ginny Tomlinson. Merda! pensa Ricky. Era para eu ter atingido a porra de um policial! Não só a ordem era essa; de certo modo, era o que sempre quisera fazer.

A mira de Randall é melhor. Ele atinge Mel Searles bem no meio da testa. Mel cai como um saco do correio.

Há uma pausa, um momento para inspirar. Pense num carro equilibrado em duas rodas, decidindo se cai ou não. Veja Rose Twitchell olhando em volta, perplexa e assustada, sem saber direito o que está acontecendo, muito menos o que fazer. Veja Anson pôr o braço na cintura dela. Ouça Georgia Roux uivar pela boca pendente, os gritos estranhamente parecidos com o som que o vento faz quando passa pela corda encerada e bem esticada no meio de uma lata. O sangue jorra sobre a língua lacerada enquanto ela berra. Veja os reforços. Toby Whelan e Rupert Libby (ele é primo de Piper, embora ela não se gabe do parentesco) são os primeiros a chegar à cena. Examinam.., e recuam. Depois vem Linda Everett. Está a pé, com Marty Arsenault, outro policial de meio expediente, ofegando atrás. Começa a empurrar a multidão, mas Marty — que nem vestiu a farda hoje de manhã, só rolou da cama e enfiou um jeans — a segura pelo ombro. Linda quase se solta dele, depois pensa nas filhas. Com vergonha da própria covardia, deixa que Marty a leve até onde Rupe e Toby observam os acontecimentos. Dos quatro, só Rupe está armado esta manhã, e ele atiraria? De jeito nenhum; ele vê a própria esposa na multidão, de mãos dadas com a mãe (a sogra, Rupe não se incomodaria de atingir). Veja Julia chegar logo atrás de Linda e Marty, ofegante, mas já agarrando a câmera soltando a tampa da lente na pressa de começar a fotografar. Veja Frank DeLesseps se ajoelhar ao lado de Mel bem na hora de evitar outra pedra, que zune acima da sua cabeça e abre um buraco numa das portas do supermercado.

Então...

Então alguém berra. Quem, jamais se saberá, não haverá sequer concordância sobre o sexo de quem berrou, embora a maioria pense em mulher, e Rose dirá a Anson mais tarde que tem quase certeza de que foi Lissa Jamieson.

— VAMOS PEGAR!

Outra pessoa berra “COMIDA!”, e a multidão avança.

Freddy Denton dá um tiro de pistola para o ar. Depois baixa a arma, em pânico, prestes a esvaziá-la na multidão. Antes que consiga, alguém a arranca à força. Ele cai, gritando de dor. Então a ponta de uma bota grande e velha de fazendeiro — de Alden Dinsmore — faz contato com a sua têmpora. As luzes não se apagam totalmente para o policial Denton, mas se escurecem bastante, e na hora em que voltam a se acender o Grande Saque ao Supermercado já acabou.

O sangue se infiltra pela atadura do ombro de Carter Thibodeau e pequenas rosetas florescem na camisa azul, mas, ao menos por enquanto, ele não percebe a dor. Não tenta correr. Firma os pés e descarrega na primeira pessoa que chega ao seu alcance. Por acaso é Charles “Stubby” Norman, que tem uma loja de antiguidades na ponta da cidade, na 117. Stubby cai, segurando a boca que jorra.

— Pra trás, seus merdas! — ruge Carter. — Pra trás, seus filhos da puta! Nada de saques! Pra trás!

Marta Edmunds, a babá de Rusty, tenta ajudar Stubby e, em troca do esforço, ganha de Frank DeLesseps um soco na maçã do rosto. Ela titubeia, segurando o lado da cara e olhando incrédula o rapaz que acabou de lhe bater... e então, com Stubby embaixo, é jogada no chão pelo avanço da onda de fregueses em potencial.

Carter e Frank começam a distribuir socos, mas só acertam três golpes antes de serem distraídos por um grito estranho e ululante. É a bibliotecária da cidade, o cabelo pendendo em volta do rosto geralmente bondoso. Ela empurra uma fila de carrinhos e pode estar gritando banzai. Frank dá um pulo para sair da frente, mas os carrinhos dão conta de Carter e o fazem voar. Ele agita os braços, tentando ficar em pé, e na verdade quase consegue, a não ser pelos pés de Georgia. Tropeça neles, cai de costas e é pisoteado. Rola de barriga para baixo, cruza as mãos sobre a cabeça e espera que acabe.

Julia Shumway clica, clica, clica. Talvez as fotos revelem o rosto de pessoas que conhece, mas ela só vê estranhos no visor. Uma turba.

Rupe Libby puxa a arma e dispara quatro tiros para o ar. O barulho de tiros rola pela manhã quente, plano e declamatório, uma linha de pontos de exclamações auditivos. Toby Whelan mergulha de volta no carro, batendo a cabeça e derrubando o quepe (com POLICIAL DE CHESTER’S MILL na frente, em amarelo). Cata o megafone no banco de trás, o leva aos lábios e grita: “PAREM O QUE ESTÃO FAZENDO! PRA TRÁS! POLÍCIA! PAREM! ISSO É UMA ORDEM!

Julia o fotografa.

A multidão não dá atenção aos tiros nem ao megafone. Não dá atenção a Ernie Calvert quando ele vem pelo lado do prédio com o guarda-pó verde se agitando em torno do bombear dos joelhos.

— Venham pros fundos! — berra. — Ninguém precisa fazer isso, já abri lá nos fundos!

A multidão está decidida a arrombar e entrar. Todos se lançam contra as portas com os adesivos que dizem ENTRADA, SAÍDA e PREÇO BAIXO TODO DIA. A princípio as portas aguentam, depois a fechadura se quebra sob o peso conjunto da multidão. Os primeiros a chegar são esmagados contra as portas e se machucam: dois com costelas quebradas, uma entorse no pescoço, dois braços quebrados.

Toby Whelan começa a erguer o megafone outra vez, depois o baixa, com cuidado meticuloso, sobre o capô do carro no qual ele e Rupe chegaram. Pega o quepe de POLICIAL, limpa, põe de novo na cabeça. Ele e Rupe andam na direção da loja e param, indefesos. Linda e Marty Arsenault se unem a eles. Linda vê Marta e a leva até o grupinho de policiais.

— O que aconteceu? — pergunta Marta, tonta. — Alguém me bateu? O lado do meu rosto está todo quente. Quem está com Judy e Janelle?

— A sua irmã ficou com elas hoje de manhã — diz Linda, e a abraça. — Não se preocupe.

— Cora?

— Wendy. — Cora, irmã mais velha de Marta, mora há anos em Seattle. Linda desconfia que Marta sofreu uma concussão. Acha que o dr. Haskell deveria examiná-la, depois lembra que Haskell está no necrotério do hospital ou na Funerária Bowie. Rusty agora está sozinho, e hoje vai ficar muito ocupado.

Carter meio que carrega Georgia para a Unidade 2. Ela ainda uiva aqueles gritos estranhos de fio na lata. Mel Searles recuperou algo assemelhado a um enevoado de consciência. Frankie o leva até Linda, Marta, Toby e os outros policiais. Mel tenta erguer a cabeça, depois a deixa cair de volta sobre o peito. A testa ferida derrama sangue; a camisa está ensopada.

Uma torrente de gente entra no mercado. Disparam pelos corredores empurrando carrinhos ou agarrando cestas na pilha ao lado dos sacos de carvão (QUE TAL UM CHURRASCO DE OUTONO?, diz o cartaz). Manuel Ortega, empregado de Alden Dinsmore, e o seu bom amigo Dave Douglas vão direto para o caixa e começam a apertar os botões, agarrando o dinheiro e enfiando-o no bolso, rindo como idiotas o tempo todo.

Agora o supermercado está cheio; é dia de liquidação. Nos congelados duas mulheres brigam pelo último Bolo de Limão Pepperidge Farm. Na delicatessen, um homem golpeia outro com uma linguiça, dizendo-lhe que deixe um pouco da maldita carne para os outros. O comprador de carne se vira e soca o nariz do que brande a linguiça. Logo rolam pelo chão, os punhos voando.

Outras brigas estouram. Rance Conroy, proprietário e único funcionário da Conroy Serviços e Peças Elétricas do Oeste do Maine (“Nossa especialidade é sorrir”), soca Brendan Ellerbee, professor de ciências aposentado da Universidade do Maine, quando este chega antes dele ao último saco grande de açúcar. Ellerbee cai, mas se agarra ao saco de 5 quilos de açúcar Domino’s, e quando Conroy tenta arrancá-lo, Ellerbee resmunga “Pois toma!”, e o joga na cara do outro. O saco de açúcar se rasga, envolvendo Rance Conroy numa nuvem branca. O eletricista cai numa das gôndolas, o rosto branco como o de um mímico, berrando que não enxerga nada, que está cego. Carla Venziano, com o bebê no canguru às costas olhando por sobre o ombro dela, empurra Henrietta Clavard para longe da prateleira de arroz Texmati; o bebê Steven adora arroz, também adora brincar com as embalagens plásticas vazias, e Carla quer garantir que ele tenha bastante. Henrietta, que fez 84 anos em janeiro, cai de pernas abertas sobre o nó esquelético que era a sua bunda. Lissa Jamieson tira do caminho Will Freeman, dono da revendedora Toyota local, para pegar o último frango do balcão-frigorífico. Antes que consiga, uma adolescente com uma camiseta escrita IRA PUNK o agarra, mostra a língua para Libby e sai alegre e apressada.

Há um som de vidro estilhaçado seguido de gritos calorosos compostos principalmente (mas não só) de vozes masculinas. Abriram a geladeira de cerveja. Muitos fregueses, talvez planejando UM CHURRASCO DE OUTONO, correm naquela direção. Em vez de Aa-bre, agora cantam “Cer-ve-ja! Cer-ve-ja Cer-ve-ja!”

Outros seguem para o depósito dos fundos e para o subsolo. Logo, homens e mulheres acumulam vinho aos garrafões e caixotes. Alguns levam caixotes na cabeça, como carregadores nativos num antigo filme de selva.

Julia, os sapatos esmagando cacos de vidro, clica, clica, clica.

Lá fora, o resto dos policiais da cidade vem chegando, inclusive Jackie Wettington e Henry Morrison, que por consentimento mútuo abandonaram o Posto & Mercearia. Juntam-se aos outros policiais num amontoado unido e preocupado que fica de lado e só assiste. Jackie vê o rosto chocado de Linda Everett e a abraça. Ernie Calvert se une a elas, gritando “Tão desnecessário! Tão completamente desnecessário!”, as lágrimas correndo pelas bochechas gorduchas.

— O que fazemos agora? — pergunta Linda, o rosto apertado contra o ombro de Jackie. Marta fica perto dela, olhando boquiaberta o mercado e apertando a palma da mão contra o machucado descolorido que incha depressa no lado do rosto. Além deles, o Food City transborda berros, risos, um grito de dor ocasional. Lançam-se objetos; Linda vê um rolo de papel higiênico se desenrolar como serpentina ao fazer um arco sobre os produtos domésticos.

— Querida — diz Jackie —, eu simplesmente não sei.

 

Anson agarrou a lista de compras de Rose e entrou correndo no mercado com ela antes que a própria Rose conseguisse impedir. Ela hesitou ao lado da van do restaurante, torcendo e destorcendo as mãos, sem saber se ia ou não atrás dele. Acabara de decidir ficar onde estava quando um braço se enfiou em torno dos seus ombros. Ela levou um susto, virou a cabeça e viu Barbie. A profundidade do seu alívio chegou a lhe amolecer os joelhos. Segurou com força o braço dele, em parte como consolo, principalmente para não desmaiar.

Barbie sorria, sem muito humor.

— Divertido, hein, menina?

— Eu não sei o que fazer — disse ela. — Anson está lá... todo mundo está lá... e a polícia só fica ali para da!

— Provavelmente não querem apanhar mais do que já apanharam. E não estão errados. Isso foi bem planejado e executado com primor.

— Do que você está falando?

— Nada, nada. Quer tentar parar com isso antes que piore?

— Como?

Ele mostrou o megafone que pegara no capô do carro onde Toby Whelan o deixara. Quando tentou entregá-lo, Rose se afastou, com as mãos no peito.

— Faz isso você, Barbie.

— Não. É você que alimenta eles há anos, é você que todo mundo conhece, é a você que eles vão dar ouvidos.

Ela pegou o megafone, embora hesitasse.

— Não sei o que dizer. Não consigo pensar em nadica de nada que faça eles pararem. Toby Whelan já tentou. Nem deram atenção a ele.

— Toby tentou dar ordens — disse Barbie. — Dar ordens a uma turba é como dar ordens a um formigueiro.

— Eu ainda não sei o que...

— Vou te explicar. — Barbie falava calmamente, e isso a acalmou. Ele parou o suficiente para chamar Linda Everett. Ela e Jackie vieram juntas, os braços na cintura uma da outra.

— Pode falar com o seu marido? — perguntou Barbie.

— Se o celular dele estiver ligado.

— Diga a ele pra vir pra cá, na ambulância, se possível. Se ele não atender, pega o carro da polícia e vai até o hospital.

— Ele tem pacientes...

— Ele tem pacientes bem aqui. Só que ainda não sabe. — Barbie apontou Ginny Tomlinson, agora sentada e encostada na parede cinzenta do mercado e as mãos segurando o rosto ensanguentado. Gina e Harriet Bigelow se agacharam ao lado dela, mas quando Gina tentou estancar a hemorragia do nariz radicalmente alterado de Ginny com um lenço dobrado, esta gritou de dor e virou a cabeça. — A começar por uma das duas enfermeiras formadas que restam, se não estou enganado.

— O que você vai fazer? — perguntou Linda, tirando o celular do cinto.

— Eu e Rose vamos fazer todo mundo parar. Não é, Rose?

 

Rose parou no lado de dentro da porta, hipnotizada pelo caos à sua frente. Havia um cheiro ardente de vinagre no ar, misturado aos aromas de salmoura e cerveja. Havia mostarda e ketchup respingados como vômito vistoso no linóleo do corredor 3. Uma nuvem de açúcar misturado com farinha se erguia no corredor 5. As pessoas empurravam por ele carrinhos cheios, muitas tossindo e limpando os olhos. Alguns carrinhos derrapavam ao rolar por um aluvião de feijões derramados.

— Fica aqui um segundo — disse Barbie, embora Rose não mostrasse sinais de se mexer; estava hipnotizada com o megafone agarrado entre os seios.

Barbie encontrou Julia tirando fotos nas registradoras saqueadas.

— Para com isso e vem comigo — disse ele.

— Não, eu tenho que fazer isso, não tem mais ninguém. Não sei cadê o Pete Freeman, e o Tony...

— Você não tem que fotografar, você tem que impedir. Antes que aconteça algo muito pior. — Ele apontava Fern Bowie, que passava por eles com um cestinho cheio numa das mãos e uma cerveja na outra. O supercílio estava ferido e o sangue pingava pelo rosto, mas Fern parecia contente com tudo.

— Como?

Ele a leva até Rose.

— Pronta, Rose? Hora do espetáculo.

— Eu... bom...

— Lembre, serena. Não é pra tentar detê-los; só baixar a temperatura.

Rose inspirou fundo e levou o megafone à boca.

— Oi, GENTE, AQUI É ROSE TWITCHELL, DO ROSA MOSQUETA.

Para seu crédito eterno, ela soava mesmo serena. Todos olharam em volta quando ouviram a voz — não porque parecesse urgente, como Barbie sabia, mas porque não parecia. Vira isso em Takrit, Fallujah, Bagdá. Principalmente depois de bombardeios em locais públicos lotados, quando a polícia e os transportes de soldados chegavam.

— POR FAVOR, TERMINEM AS COMPRAS LOGO, COM TODA A CALMA POSSÍVEL.

Algumas pessoas deram uma risadinha ao ouvir isso, depois se entreolharam como se acordassem. No corredor 7, Carla Venziano, envergonhada, ajudou Henrietta Clavard a se levantar. Tem Texmati bastante pra nós duas, pensou Carla. Deus do céu, o que foi que me passou pela cabeça?

Com a cabeça, Barbie sinalizou para Rose continuar, dizendo Café sem falar. A distância, dava para ouvir o doce gorjeio da ambulância se aproximando.

— QUANDO ACABAREM, VENHAM TOMAR UM CAFÉ NO ROSA MOSQUETA. ESTÁ FRESQUINHO E É POR CONTA DA CASA.

Alguns bateram palmas. Alguns pulmões fortes gritaram “E quem quer café? Agente tem CERVEJA!" Risos e gritos saudaram essa tirada.

Julia puxou a manga de Barbie. A testa dela estava franzida numa careta ue Barbie achou muito republicana.

— Eles não estão comprando, estão roubando.

— Você quer editorializar ou tirar eles daqui antes que alguém morra por de um quilo de Café Blue Mountain? — perguntou.

Ela pensou no caso e concordou, a testa franzida cedendo lugar àquele sorriso virado para dentro de que ele começava a gostar muito.

— Faz sentido, coronel — disse ela.

Barbie se virou para Rose, fez um gesto como se virasse uma manivela e ela recomeçou. Ele passou a acompanhar as duas mulheres pelos corredores, começando com a delicatessen e a seção de laticínios, a mais vazia, procurando alguém que estivesse empolgado a ponto de interferir. Não havia ninguém. Rose ganhava confiança e o mercado se aquietava. Havia gente indo embora. Muitos empurravam carrinhos cheios de mercadorias, mas Barbie ainda achava que era bom sinal. Quanto mais cedo saíssem melhor, por mais merda que levassem... e o segredo era serem chamados de fregueses e não de ladrões. Devolva a alguém o respeito próprio e, na maioria dos casos — não em todos, mas na maioria —, também se devolve à pessoa a capacidade de pensar ao menos com um pouco de clareza.

Anson Wheeler se uniu a eles, empurrando um carrinho cheio de mantimentos. Parecia um pouco envergonhado e o braço sangrava.

— Alguém me bateu com um vidro de azeitonas — explicou. — Agora estou cheirando a sanduíche italiano.

Rose entregou o megafone a Julia, que começou a transmitir a mesma mensagem com a mesma voz agradável: terminem as compras e saiam calmamente.

— A gente não pode levar isso — disse Rose, apontando o carrinho de Anson.

— Mas a gente precisa, Rosie — respondeu ele. Soava como quem pede desculpas, mas com firmeza. — Precisa mesmo.

— Então vamos deixar o dinheiro — disse ela. — Quer dizer, se ninguém tiver levado a minha bolsa do carro.

— Hum... acho que não vai dar certo — disse Anson. — Alguns caras roubaram o dinheiro das registradoras. Ele vira quem, mas não queria dizer. Não com a editora do jornal local ali ao lado.

Rose ficou horrorizada.

— O que está acontecendo aqui? Deus do céu, o que está acontecendo?

— Não sei — disse Anson.

Lá fora, a ambulância estacionou, a sirene morrendo num grunhido. Um ou dois minutos depois, enquanto Barbie, Rose e Julia ainda percorriam os corredores com o megafone (agora a multidão diminuía), alguém disse atrás deles:

— Já basta. Me dá isso.

Barbie não ficou surpreso ao ver o chefe interino Randolph, vestido até a goela com o uniforme de gala. Lá estava ele, tarde demais. Bem na hora.

Rose estava com o megafone, exaltando as virtudes do café gratuito no Rosa Mosqueta. Randolph o tirou da mão dela e, na mesma hora, começou a dar ordens e fazer ameaças.

— SAIAM AGORA! AQUI É O CHEFE PETER RANDOLPH E ESTOU MANDANDO SAÍREM AGORA! LARGUEM O QUE ESTIVEREM SEGURANDO E SAIAM AGORA! SE LARGAREM O QUE PEGARAM E SAÍREM AGORA, NÃO SERÃO INDICIADOS!

Rose olhou Barbie, desanimada. Ele deu de ombros. Não importava. O ânimo da turba já se fora, Os policiais ainda capazes de andar — até Carter Thibodeau, cambaleando, mas em pé — começaram a apressar as pessoas. Vários “fregueses” que não largaram as cestas cheias foram derrubados pelos policiais, e Frank DeLesseps virou um carrinho de compras carregado. O seu rosto estava sério, pálido, zangado.

— Não vai mandar esses garotos pararem com isso? — perguntou Julia a Randolph.

— Não, sra. Shumway, não vou — respondeu Randolph. — Essas pessoas são saqueadores e é assim que elas devem ser tratadas.

— A culpa é de quem? Quem fechou o mercado?

— Sai da minha frente — disse Randolph. — Tenho mais o que fazer.

— Uma pena que o senhor não estivesse aqui quando invadiram — observou Barbie.

Randolph o olhou. O olhar era inamistoso, mas satisfeito. Barbie suspirou. Em algum lugar, um relógio fazia tique-taque. Ele sabia, e Randolph também. Logo soaria o alarme. Se não fosse a Redoma, ele poderia fugir. Mas é claro que, se não fosse a Redoma, nada daquilo estaria acontecendo.

Lá na frente, Mel Searles tentou tirar de Al Timmons o cesto de compras lotado. Quando Al não entregou, Mel o arrancou... e aí empurrou o velho. Al gritou de dor, vergonha e revolta. O chefe Randolph riu. Era um som curto, entrecortado, sem alegria — Rá! Rá! Rá! — e nele Barbie achou que escutava no que Chester’s Mill logo se transformaria se a Redoma não sumisse.

— Vamos, senhoras — disse. — Vamos sair daqui.

 

Rusty e Twitch estavam enfileirando os feridos — cerca de uma dúzia no total — junto à parede de cimento do mercado quando Barbie, Julia e Rose saíram. Anson estava em pé junto da van do Rosa Mosqueta com uma toalha de papel apertada no braço que sangrava.

O rosto de Rusty estava sério, mas se animou um pouco quando viu Barbie.

— Ei, parceiro. Hoje você fica comigo. Na verdade, você é o meu novo enfermeiro.

— Você está superestimando demais o meu talento pra triagem — disse Barbie, mas foi na direção de Rusty.

Linda Everett passou correndo por Barbie e se jogou nos braços de Rusty. Ele lhe deu um rápido abraço.

— Posso ajudar, querido? — perguntou. Era Ginny que ela olhava, e com horror. Ginny viu o olhar e, cansada, fechou os olhos.

— Não — disse Rusty. — Faz o que precisa ser feito. Eu estou com Gina e Harriet, e arranjei o enfermeiro Barbara.

— Vou fazer o possível — disse Barbie, e quase acrescentou: Até ser preso, quero dizer.

— Vai dar tudo certo — disse Rusty Em voz baixa, acrescentou: — Gina e Harriet são as ajudantes de maior boa vontade do mundo, mas depois de dar comprimidos e colar band-aids, ficam perdidas.

Linda se curvou para Ginny.

— Sinto muitíssimo — disse.

— Vai dar tudo certo — disse Ginny, mas não abriu os olhos.

Linda deu no marido um beijo e um olhar preocupado, depois voltou para onde Jackie Wettington estava de bloco na mão, tomando o depoimento de Ernie Calvert. Ernie limpou os olhos várias vezes enquanto falava.

Rusty e Barbie trabalharam lado a lado por mais de uma hora, enquanto os policiais passavam a fita amarela da polícia na frente do mercado. Em certo instante, Andy Sanders veio verificar as baixas, fazendo tsc-tsc e balançando a cabeça. Barbie escutou-o perguntar a alguém o que seria do mundo quando os moradores da cidade chegavam a fazer uma coisa daquelas. Também apertou a mão do chefe Randolph e lhe disse que aquele era um trabalho infernal.

Infernal mesmo.

 

Quando estamos sentindo, interrupções detestáveis somem. A briga se torna nossa amiga. O azar vira bilhete premiado. Não aceitamos tais coisas com gratidão (emoção reservada para fresquinhos e fracassados, na opinião de Big Jim Rennie), mas como o que merecemos. Sentir é como andar num balanço mágico, e é preciso (de novo, na opinião de Big Jim) voar com altivez.

Se saísse da grande propriedade dos Rennie na rua Mill um pouco mais cedo ou mais tarde, não teria visto o que viu e teria lidado com Brenda Perkins de um jeito totalmente diferente. Mas saiu exatamente na hora certa. É o que acontece quando se está sentindo; a defesa desmorona e a gente corre pela abertura mágica assim criada, fazendo um lançamento fácil.

Foi o coro de gritos Aa-bre!Aa-bre! que o levou a sair do escritório, onde fazia anotações para o que planejava chamar de Governo de Emergência... do qual o alegre e sorridente Andy Sanders seria o titular e Big Jim, o poder atrás do trono. Se não estiver quebrado, não tente consertar era a Regra Número Um do manual de funcionamento político de Big Jim, e ter Andy à frente sempre funcionara como que por encanto. A maioria dos moradores de Chester’s Mill sabia que ele era um idiota, mas isso não importava. É possível aplicar o mesmo logro no povo várias vezes, porque 98% dele é composto de idiotas ainda maiores. E, embora Big Jim nunca tivesse planejado uma campanha política em escala tão grandiosa — chegava a ser uma ditadura municipal —, não tinha dúvidas de que daria certo.

Não incluíra Brenda Perkins na lista de possíveis fatores complicadores, mas não importava. Quando estamos sentindo, os fatores complicadores têm mania de desaparecer. Isso a gente também aceita como algo que merecemos.

Ele desceu a calçada até a esquina da Mill com a Principal, uma distância de no máximo cem passos, com a barriga balançando placidamente à sua frente. A Praça da Cidade estava bem do outro lado. Um pouco mais morro abaixo, do outro lado da rua, ficavam a Câmara de Vereadores e a delegacia de polícia, com a praça Memorial de Guerra no meio.

Da esquina não conseguia ver o Food City, mas dava para ver toda a parte comercial da rua principal. E ele viu Julia Shumway. Ela saiu correndo da redação do Democrata, a câmera na mão. Correu pela rua na direção do som do coro, tentando pendurar a câmera no ombro enquanto corria. Big Jim a observou. Era mesmo engraçado — a ânsia dela para chegar ao desastre mais recente.

E ficou mais engraçado. Ela parou, se virou, correu de volta, experimentou a porta da redação do jornal, viu que estava aberta e a trancou. Depois saiu correndo outra vez, ansiosa para observar os amigos e vizinhos se comportando mal.

Ela está percebendo pela primeira vez que, depois que a fera sai da jaula, pode morder qualquer um em qualquer lugar, pensou Big Jim. Mas não se preocupe, Julia; vou cuidar de você, como sempre fiz. Talvez tenha que baixar o tom naquele seu panfleto velho, mas esse não é um preço pequeno a pagar pela sua segurança?

É claro que era. E se ela insistisse...

— Às vezes acontecem coisas — disse Big Jim. Estava em pé na esquina com as mãos no bolso, sorrindo. E quando ouviu os primeiros gritos..; o som de vidro quebrado... os tiros... o sorriso se alargou. Acontecem coisas não era exatamente o que Junior diria, mas Big Jim achou que era bastante parecido para o jeito gov...

O sorriso se dobrou numa careta quando avistou Brenda Perkins. A maioria das pessoas da rua principal se dirigia para o Food City para ver o que era toda aquela confusão, mas Brenda subia em vez de descer a rua principal. Talvez fosse para a casa de Rennie... o que não seria bom.

O que ela ia querer comigo agora de manhã? O que seria tão importante a ponto de superar um quebra-quebra no supermercado local?

Era perfeitamente possível que ele fosse a última coisa na cabeça de Brenda, mas o seu radar soava e ele a observou com atenção.

Ela e Julia passaram por lados opostos da rua. Nenhuma viu a outra. Julia tentava correr enquanto ajeitava a câmera. Brenda fitava o volume vermelho e decrépito da Loja de Departamentos Burpee. Tinha uma sacola de compras de lona que balançava junto ao joelho.

Quando chegou ao Burpee, Brenda experimentou a porta sem sucesso. Depois, recuou e olhou em volta, do jeito que todos fazem quando encontram um obstáculo inesperado aos seus planos e tentam decidir o que fazer em seguida. Ainda poderia ter visto Julia se olhasse para trás, mas não olhou. Olhou para a esquerda, para a direita, para o outro lado da rua principal, para a redação do Democrata.

Depois de outra olhada no Burpee, atravessou a rua até o Democrata e experimentou a porta. Também trancada, é claro; Big Jim vira Julia trancá-la. Brenda tentou de novo, sacudindo a porta mais do que o necessário. Bateu. Espiou. Depois recuou, as mãos na cintura, a sacola balançando. Quando voltou a subir a rua principal — com esforço, sem mais olhar para os lados —, Big Jim recuou para a sua casa com passos rápidos. Não sabia por que queria assegurar que Brenda não o visse espiando... mas não precisava saber. Quando estamos sentindo, só é preciso agir com base no instinto. Essa é a beleza da coisa.

O que ele sabia era que, se Brenda batesse à sua porta, ele estaria preparado. Fosse o que fosse que ela queria.

 

Amanhã de manhã quero que você leve as cópias a Julia Shumway, dissera Barbie. Mas a redação do Democrata estava trancada e às escuras. Quase com certeza, Julia estava na confusão que acontecia no mercado. Provavelmente Pete Freeman e Tony Guay também estavam lá.

Então o que ela faria com o dossiê VADER de Howie? Se houvesse uma caixa de correspondência, poderia ter jogado nela o envelope de papel pardo da sacola. Só que não havia caixa de correspondência.

Brenda achou que devia ir atrás de Julia no mercado ou voltar para casa e esperar que tudo se acalmasse e que Julia voltasse para a redação. Por não estar num estado de espírito lá muito lógico, nenhuma das opções a atraiu. Quanto à primeira, parecia haver um quebra-quebra a todo vapor no Food City, e Brenda não queria se envolver. Quanto à outra... Era obviamente a melhor opção. A opção sensata. Quem espera sempre alcança não era dos ditados favoritos de Howie?

Mas esperar nunca fora o forte de Brenda, e a mãe dela também tinha um ditado: Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje. Era o que ela queria fazer agora. Enfrentá-lo, aguardar as suas imprecações, negações, justificativas e depois lhe apresentar as opções: renunciar a favor de Dale Barbara ou ler tudo sobre as suas façanhas sujas no Democrata. Para ela, o confronto era um remédio amargo, e o melhor a fazer com remédios amargos era engolir o mais depressa possível e depois lavar a boca. Ela planejava lavar a dela com uma dose dupla de bourbon, e também não esperaria até o meio-dia para isso.

Só que...

Não vá sozinha. Barbie também dissera isso. E quando perguntara em quem ela confiava, ela respondera Romeo Burpee. Mas a loja de Burpee também estava fechada. O que lhe restava?

A questão era se Big Jim realmente a machucaria ou não, e Brenda achava que a resposta era não. Acreditava que, fisicamente, estava a salvo de Big Jim, mesmo com toda a preocupação de Barbie — preocupação que, sem dúvida, resultava em parte da sua experiência na guerra. Esse foi um erro de cálculo pavoroso da parte dela, mas compreensível; ela não era a única a se agarrar à ideia de que o mundo era como fora antes que a Redoma caísse.

 

O que ainda lhe deixava o problema do dossiê VADER.

Brenda podia ter mais medo da língua de Big Jim do que de agressões físicas, mas sabia que seria louca se fosse até a porta dele com o envelope ainda nas mãos. Ele poderia tirá-lo dela, mesmo que ela dissesse não ser a única cópia. Isso ela achava que ele faria.

A meio caminho do morro da praça da Cidade, ficava a rua Prestile, que passava pela parte superior da praça. A primeira casa era a dos McCain. A outra ao lado era de Andrea Grinnell. E, embora quase sempre Andrea ficasse oculta pelos parceiros vereadores, Brenda sabia que ela era honesta e não tinha amores por Big Jim. O mais estranho é que era Andy Sanders que Andrea tinha mais tendência a adorar, embora Brenda não conseguisse entender como é que alguém conseguia levar Andy a sério.

Talvez ele tenha algum tipo de domínio sobre ela, disse a voz de Howie dentro da sua cabeça.

Brenda quase riu. Isso era ridículo, O importante a respeito de Andrea era que ela fora uma Twitchell antes de se casar com Tommy Grinnell, e os Twitchell eram gente rija, mesmo quando tímidos. Brenda achou que podia deixar com Andrea o envelope que continha o dossiê VADER... desde que a casa dela também não estivesse vazia e trancada. Ela achava que não estaria. Não tinham lhe dito que Andrea estava gripada?

Brenda atravessou a Principal, ensaiando o que diria: Pode guardar isso pra mim? Volto daqui a meia hora. Se eu não voltar pra buscar, dê esse envelope a Julia, no jornal. E conte tudo ao Dale Barbara.

E se ela perguntasse por que tanto mistério? Brenda decidiu que seria franca. A notícia de que pretendia forçar Jim Rennie a renunciar provavelmente faria mais bem a Andrea do que uma dose dupla de Coristina.

Apesar da vontade de terminar logo a missão desagradável, Brenda parou um instante diante da casa dos McCain. Parecia deserta, mas nisso não havia nada de estranho; muitas famílias estavam fora da cidade quando a Redoma caiu. Era outra coisa. Um leve cheiro, em primeiro lugar, como se houvesse comida estragada lá dentro. De repente, o dia ficou mais quente, o ar mais abafado, e o som do que acontecia no Food City pareceu muito distante. Brenda percebeu a que aquilo se resumia: ela se sentia vigiada. Ficou pensando em como aquelas janelas com venezianas pareciam olhos fechados. Mas não completamente fechadas, não. Olhos que espiavam.

Para com isso, mulher. Você tem mais o que fazer.

Ela andou até a casa de Andrea e só parou uma vez para olhar por sobre o ombro. Viu só uma casa com venezianas fechadas, sentada tristonha no leve fedor dos mantimentos apodrecidos. Só carne cheiraria tão mal tão depressa. Henry e LaDonna deviam ter muita carne no congelador, pensou ela.

 

Era Junior que observava Brenda, Junior de joelhos, Junior só de cueca, a cabeça socando e batendo. Observava da sala de estar, espiando pela borda da veneziana fechada. Quando ela se afastou, ele voltou para a despensa. Teria que abandonar logo as namoradas, sabia disso, mas por enquanto as queria. E queria o escuro. Queria até o fedor que se elevava da sua pele cada vez mais enegrecida.

Qualquer coisa, qualquer coisa que aliviasse a cabeça que doía ferozmente.

 

Depois de girar três vezes a antiga campainha de manivela, Brenda se resignou finalmente a voltar para casa. Dava meia-volta quando escutou passos lentos e arrastados se aproximarem da porta. Arrumou no rosto um pequeno sorriso de olá, vizinha. Este se congelou quando viu Andrea — faces pálidas, olheiras escuras, cabelo em desalinho, agarrando o cinto de um roupão junto ao corpo, de pijama por baixo. E a casa fedia também — não a carne podre, mas a vômito.

O sorriso de Andrea estava tão descorado quanto o rosto e a testa.

— Eu sei com que cara estou — disse ela. As palavras saíram num grasnido. — É melhor eu não te convidar a entrar. Estou melhorando, mas ainda pode ser contagioso.

— Você consultou o dr... — Não, é claro que não. O dr. Haskell estava morto. — Falou com Rusty Everett?

— Falei, sim — respondeu Andrea. — Ele me disse que logo eu estarei bem.

— Você está suando.

— Ainda um pouquinho de febre, mas passando. Posso lhe ajudar com algo, Bren?

Ela quase disse que não — não queria sobrecarregar uma mulher que ainda estava visivelmente mal com uma responsabilidade como aquela na sacola —, mas aí Andrea lhe disse algo que a fez mudar de idéia. Os grandes fatos às vezes têm rodinhas pequenas.

— Sinto muito por Howie. Eu adorava aquele homem.

— Obrigada, Andrea. — Não só pela solidariedade, mas por chamá-lo de Howie em vez de Duke.

Para Brenda, ele sempre seria Howie, seu querido Howie, e o dossiê VADER era a sua última obra. Provavelmente a sua maior obra. De repente Brenda decidiu colocá-lo para trabalhar, e sem mais delongas. Enfiou a mão na sacola e tirou o envelope de papel pardo com o nome de Julia escrito na frente.

— Pode guardar isso pra mim, querida? Só por algum tempo? Tenho um serviço a fazer e não queria levar isso comigo.

Brenda responderia a qualquer pergunta que Andrea fizesse, mas aparentemente ela não queria fazer nenhuma. Só pegou o envelope grosso com um tipo de cortesia distraída. E isso era bom. Poupava tempo. Também manteria Andrea fora da história e poderia evitar algum revés político mais adiante.

— Com prazer — disse Andrea. — E agora... Se me dá licença... Acho melhor eu ir me deitar. Mas não vou dormir! — acrescentou, como se Brenda fizesse objeções ao seu plano. — Vou escutar quando você voltar.

— Obrigada — disse Brenda. — Está tomando suco?

— Aos montes. Não se preocupe, querida. Eu vou cuidar do seu envelope.

Brenda ia agradecer de novo, mas a terceira vereadora de Mill já tinha fechado a porta.

 

No final da conversa com Brenda, o estômago de Andrea começou a se agitar. Ela segurou, mas a luta era perdida. Falara alguma coisa sobre suco, dissera a Brenda que não se preocupasse e depois fechara a porta na cara da pobre coitada para correr para o banheiro fedorento, fazendo urc-urcs guturais lá no fundo da garganta.

Havia uma mesa lateral junto ao sofá da sala e, às cegas, foi ali que ela jogou o envelope de papel pardo quando passou correndo. O envelope escorregou pela superfície polida e caiu pelo outro lado, no espaço escuro entre a mesinha e o sofá.

Andrea conseguiu chegar ao banheiro, mas não ao vaso sanitário... o que dava na mesma; este já estava quase cheio com a mistura fedorenta e estagnada que fora a produção do seu corpo por aquela noite interminável. Ela se inclinou sobre a pia, vomitando até lhe parecer que o próprio esôfago se soltaria e cairia na porcelana respingada, ainda quente e pulsante.

Isso não aconteceu, mas o mundo ficou cinzento e, de salto alto, se afastou dela cambaleante, ficando cada vez menor e menos tangível enquanto ela balançava e tentava não desmaiar. Quando se sentiu um pouco melhor, desceu devagar o corredor com as pernas moles, deslizando a mão pela madeira para manter o equilíbrio. Tremia e conseguia escutar o clicar irrequieto dos dentes, um som horrível que parecia captar não com os ouvidos, mas com o fundo dos olhos.

Nem sequer pensou em tentar chegar ao quarto no andar de cima e, em vez disso, foi para a varanda dos fundos, fechada com tela. A varanda estaria fria demais para ser confortável com o mês de outubro tão avançado, mas hoje o ar estava abafado. Ela mais desmoronou do que se deitou no antigo divã, no seu abraço mofado mas um tanto consolador.

Daqui a um minuto eu me levanto, disse a si mesma. Tiro da geladeira a última garrafa de Poland Spring e lavo esse gosto horrível da bo...

Aí os seus pensamentos escapuliram. Ela caiu num sono pesado e profundo, do qual nem mesmo as contorções incansáveis dos pés e mãos a acordaram. Teve muitos sonhos. Um era de um incêndio terrível do qual muita gente fugia, tossindo, com ânsia de vômito, procurando ar que ainda fosse fresco e limpo. Outro era de Brenda Perkins indo até a sua porta e lhe dando um envelope. Quando Andrea o abriu, uma torrente interminável de comprimidos rosados de OxyContin se despejou. Quando ela acordou, já era noite e os sonhos estavam esquecidos.

E a visita de Brenda Perkins também.

 

— Vamos pro escritório — disse Big Jim alegremente. — Ou prefere beber alguma coisa primeiro? Tenho Coca-Cola, mas acho que está quente. O gerador pifou ontem à noite. O gás acabou.

— Mas suponho que você saiba onde pode arranjar mais — disse ela.

Ele ergueu as sobrancelhas, questionador.

— A metanfetamina que você anda fabricando — continuou ela, com paciência. — Pelo que entendo, com base nas anotações de Howie, é isso que você vem cozinhando em grandes fornadas. “Uma quantidade estonteante”, foi como ele explicou. Isso deve gastar muito gás.

Agora que havia entrado a sério no assunto, ela percebeu que o nervosismo se esvaíra. Sentia até um certo prazer frio em observar a cor se acumular no rosto dele e lhe cruzar a testa.

— Não sei do que você está falando. Acho que o seu pesar... — Ele suspirou, abriu as mãos de dedos rombudos. — Entra. Vamos falar sobre isso e eu vou te deixar despreocupada.

Ela sorriu. O fato de que conseguia sorrir foi quase uma revelação, e ajudou ainda mais a imaginar Howie olhando-a — de algum lugar. E também lhe dizendo para tomar cuidado. A este conselho ela planejava obedecer.

No gramado na frente da casa de Rennie, havia duas cadeiras Adirondack em meio às folhas caídas.

— Aqui fora está muito bom pra mim — disse ela.

— Prefiro falar de negócios lá dentro.

— Prefere ver sua foto na primeira página do Democrata? Porque eu posso conseguir isso.

Ele fez uma careta como se ela lhe tivesse batido, e por apenas um instante ela viu ódio naqueles olhinhos fundos e porcinos.

— Duke nunca gostou de mim, e suponho que seja natural que os sentimentos dele tenham sido transmitidos para...

— O nome dele era Howie!

Big Jim jogou as mãos para o alto como se dissesse que não adiantava argumentar com certas mulheres, e a levou para as cadeiras viradas para a rua Mill. Brenda Perkins falou por quase meia hora, ficando mais fria e mais zangada enquanto falava. O laboratório de metanfetamina, com Andy Sanders e, quase com certeza, Lester Coggins como sócios minoritários. O tamanho atordoante da coisa. A provável localização. Os distribuidores intermediários aos quais tinham prometido proteção em troca de informações. O rastro de dinheiro. O modo como a operação ficou tão grande que o farmacêutico local não podia mais fornecer com segurança os ingredientes necessários e fora preciso importar do exterior.

— O material chegava à cidade em caminhões identificados como Sociedade Bíblica Gedeão — disse Brenda. — O comentário de Howie foi “quase esperto demais”.

Big Jim ficou sentado olhando a silenciosa rua residencial. Ela conseguia sentir a raiva e o ódio se irradiando dele. Era como o calor de um prato de forno.

— Você não pode provar nada disso — disse ele, finalmente.

— Isso não vai ter importância se o dossiê de Howie for parar no Democrata. Pode não ser o devido processo legal, mas com certeza, se tem alguém que vá entender que a gente contorne coisinhas assim, é você.

Ele fez um gesto de desdém com a mão.

— Ah, tenho certeza de que há um dossiê — disse ele —, mas o meu nome não está em nada disso.

— Está na papelada da Town Ventures — respondeu ela, e Big Jim se balançou na cadeira como se ela tivesse lançado o punho e o atingido na têmpora. — Town Ventures, com sede em Carson City. E de Nevada o rastro de dinheiro vai pra cidade de Chongqing, capital farmacêutica da República Popular da China. — Ela sorriu. — Achou que era esperto, não achou? Tão esperto.

— Onde está esse dossiê?

— Deixei um exemplar com Julia hoje de manhã. — Envolver Andrea naquilo era a última coisa que faria. E achar que estava nas mãos da editora do jornal o faria ceder bem mais depressa. Talvez achasse que ele ou Andy Sanders conseguiriam pressionar Andrea.

— Há outros exemplares?

— O que você acha?

Ele pensou um instante e depois, disse:

— Eu não envolvi a cidade nisso.

Ela nada disse.

— Foi pelo bem da cidade.

— Você fez muito pelo bem da cidade, Jim. Temos o mesmo sistema de tratamento de esgotos que tínhamos em 1960, o lago Chester está poluído, o distrito comercial moribundo... — Agora ela estava ereta, agarrando os braços da cadeira. — Seu verme hipócrita de merda.

— O que você quer? — Ele fitava a rua vazia bem à frente. Uma veia grande pulsava na têmpora.

— Que você anuncie a sua renúncia. Barbie assume por ordem do presiden...

— Nunca vou renunciar em favor daquele melequento. — Ele se virou para olhá-la. Sorria. Era um sorriso aterrador. — Você não deixou nada com a ulia, porque a Julia está no mercado, assistindo à luta por comida. Você pode ter o dossiê de Duke trancado em algum lugar, mas não deixou um exemplar com ninguém. Você tentou Rommie, depois Julia, depois veio pra cá. Eu vi você subindo o morro da praça da Cidade.

— Eu estava — respondeu ela. — Eu estava com ele. — E se ela dissesse onde o deixara? Azar para Andrea. Ela começou a se levantar. — Você teve a sua chance. Agora eu vou embora.

— O seu outro erro foi achar que estaria em segurança aqui na rua. Uma rua vazia. — A voz dele era quase gentil, e quando ele lhe tocou o braço, ela se virou para olhá-lo. Ele lhe agarrou o rosto. E torceu.

Brenda Perkins escutou um estalo amargo, como um galho com muito gelo que se quebra, e o som foi seguido de grande escuridão, tentando chamar o nome do marido ao partir.

 

Big Jim entrou e, no armário do saguão, pegou um boné de brinde da Carros Usados de Jim Rennie. Também um par de luvas. E uma abóbora na despensa. Brenda ainda estava na sua cadeira Adirondack, com o queixo no peito. Ele olhou em volta. Ninguém. O mundo era dele. Pôs o boné na cabeça dela (baixando a aba), as luvas nas mãos e a abóbora no colo. Serviria perfeitamente bem, pensou, até que Junior voltasse e a levasse para onde ela pudesse fazer parte da conta do açougue Dale Barbara. Até então, seria apenas mais um boneco de Halloween.

Ele verificou a sacola. Continha a carteira, um pente e um romance. Então aí não havia problema. Caberiam bem lá embaixo, atrás da fornalha apagada.

Ele a deixou com o chapéu frouxo na cabeça e a abóbora no colo e entrou para guardar a sacola e esperar o filho.

 

NO XADREZ

O pressuposto do vereador Rennie de que ninguém vira Brenda ir até a sua casa naquela manhã estava correto. Mas ela fora vista nas suas andanças matutinas, não por uma pessoa, mas por três, inclusive uma que também morava na rua Mil!. Se Big Jim soubesse, o conhecimento o teria feito parar para pensar? Difícil; a essa altura, ele já estava comprometido com sua trajetória e era tarde demais para dar meia-volta. Mas talvez o levasse a refletir (pois, a seu modo, ele era um homem reflexivo) sobre a semelhança entre assassinato e Elma Chips: é impossível parar num só.

 

Big Jim não viu os observadores quando desceu até a esquina da Mill com a Principal. Nem Brenda quando subiu o morro da praça da Cidade. Isso porque eles não queriam ser vistos. Estavam abrigados dentro da Ponte da Paz, que por acaso era uma estrutura condenada. Mas isso não era o pior. Se Claire McClatchey visse os cigarros, teria parido um tijolo. Na verdade, teria parido dois. E sem dúvida nunca mais deixaria Joe sair com Norrie Calvert, nem mesmo se o destino da cidade dependesse da associação dos dois, porque foi Norrie quem levou o fumo — Winstons amassados e tortos, que achara numa prateleira da garagem. O pai parara de fumar no ano anterior e o maço estava coberto por uma fina gaze de poeira, mas os cigarros lá dentro pareceram normais para Norrie. Eram só três, mas três era o perfeito: um para cada um. Pensem nisso como um ritual de boa sorte, instruiu ela.

— Vamos fumar feito índios rezando pros deuses pra terem sucesso na caçada. E aí a gente vai trabalhar.

— Parece bom — disse Joe. Sempre sentira curiosidade pelo ato de fumar. Não entendia a graça, mas devia haver, porque muita gente ainda fumava.

— Que deuses? — perguntou Benny Drake.

— Os deuses que você quiser — respondeu Norrie, olhando-o como se ele fosse a criatura mais burra do universo. — Deus Deus, se é dele que você gosta. — De short jeans desbotado e camiseta rosa sem mangas, o cabelo solto, emoldurando o rostinho de raposa em vez de repuxado para trás no costumeiro rabo de cavalo, ela estava ótima aos olhos dos dois meninos. Maravilhosa, na verdade. — Eu rezo pra Mulher Maravilha.

— A Mulher Maravilha não é deusa — disse Joe, pegando um dos Winstons idosos e endireitando-o. — A Mulher Maravilha é super-herói. — Ele pensou. — Talvez super-heroína.

— Pra mim é deusa — respondeu Norrie, com uma sinceridade de olhos sérios que não se podia contrariar, muito menos ridicularizar. Ela endireitava cuidadosamente o seu cigarro. Benny deixou o dele do jeito que estava; achava que cigarros tortos tinham um certo toque cool. — Até os 9 anos eu tinha as Pulseiras do Poder da Mulher Maravilha, mas aí perdi. Acho que aquela piranha da Yvonne Nedeau roubou.

Ela riscou o fósforo e o encostou primeiro no cigarro de Joe Espantalho, depois no de Benny. Quando tentou usá-lo para acender o seu, Benny o apagou com um sopro.

— Pra que você fez isso? — perguntou ela.

— Três no mesmo fósforo. Dá azar.

— Você acredita nisso?

— Não muito — respondeu Benny —, mas hoje nós vamos precisar de toda sorte possível. — Ele deu uma olhada na sacola de compras na cestinha da bicicleta e sugou o cigarro. Tragou um pouco e tossiu para expelir a fumaça, olhos cheios d’água. — Isso tem gosto de cocô de pantera!

— Já fumou muito disso, né? — perguntou Joe. Tragou o seu próprio cigarro. Não queria parecer um fresquinho, mas também não queria começar a tossir nem, quem sabe, a vomitar. A fumaça queimava, mas de um jeito meio bom. Talvez tivesse alguma graça, afinal de contas. Só que já se sentia meio tonto.

Pega leve nas tragadas, pensou. Desmaiar vai ser quase tão caído quanto vomitar. A menos, talvez, que desmaiasse no colo de Norrie Calvert. Isso seria supercool.

Norrie enfiou a mão no bolso do short e tirou uma tampinha de garrafa de suco Verifine.

— A gente pode usar isso como cinzeiro. Quero fazer o ritual índio do fumo, mas não quero pôr fogo na Ponte da Paz. — Ela então fechou os olhos. Os lábios começaram a se mexer. O cigarro estava entre os dedos, criando cinza.

Benny olhou para Joe, deu de ombros e fechou os olhos.

— Poderoso GI Joe, por favor, escute a oração do seu humilde soldado Drake...

Norrie o chutou sem abrir os olhos.

Joe se levantou (meio tonto, mas não muito; arriscou outra tragada quando se levantou) e, passando pelas bicicletas estacionadas, andou até a ponta da ponte coberta que dava para a praça da cidade.

— Aonde você vai? — perguntou Norrie sem abrir os olhos.

— Eu rezo melhor quando olho a natureza — disse Joe, mas na verdade só queria respirar ar fresco. Não era o fumo ardente; ele até que gostara. Eram os outros cheiros dentro da ponte — madeira apodrecida, bebida velha e um aroma químico azedo que parecia vir do Prestile lá embaixo (esse era um cheiro, o Chef poderia lhe ter dito, que a gente passava a amar).

Mesmo o ar lá fora não estava tão maravilhoso assim; tinha um traço levemente usado que fez Joe pensar na viagem a Nova York que fizera com os pais no ano anterior. O metrô tinha um cheiro meio assim, principalmente já à noite, quando ficava lotado de gente voltando para casa.

Bateu as cinzas na mão. Quando as espalhou, avistou Brenda Perkins subindo o morro.

Um instante depois, uma mão lhe tocou o ombro. Leve e delicada demais para ser de Benny.

— Quem é? — perguntou Norrie.

— Conheço de cara, não de nome — respondeu ele.

Benny se juntou a eles.

— É a sra. Perkins. A viúva do xerife.

Norrie lhe deu uma cotovelada.

— Chefe de polícia, seu burro.

Benny deu de ombros.

— Dá na mesma.

Eles a observaram, principalmente porque não havia mais ninguém para observar. O resto da cidade estava no supermercado, aparentemente na maior guerra de comida do mundo. Os três garotos tinham investigado, mas de longe; não precisaram de persuasão para se afastar, dado o equipamento valioso que lhes fora confiado.

Brenda atravessou a Principal, entrou na Prestile, parou diante da casa dos McCain e depois foi até a da sra. Grinnell.

— Vamos embora — disse Benny.

— Não podemos ir embora enquanto ela estiver ali — disse Norrie.

Benny deu de ombros.

— Qual o problema? Se ela nos vir, somos só uns garotos de bobeira na praça da cidade. E quer saber? Provavelmente ela não nos veria nem se olhasse direto pra nós. Adultos nunca veem garotos.

Ele pensou melhor.

— A menos que estejam de skate.

— Ou fumando — acrescentou Norrie. Todos olharam os cigarros.

Joe apontou com o polegar a sacola de compras na cestinha pendurada no guidom da Schwinn High Plains de Benny.

— Eles também têm uma tendência a ver garotos que estejam brincando com propriedade cara da cidade.

Norrie pendurou o cigarro no canto da boca. Isso a deixou maravilhosamente dura, maravilhosamente bonita, maravilhosamente adulta.

Os meninos voltaram a observar. Agora a viúva do chefe de polícia conversava com a sra. Grinnell. Não foi uma conversa demorada. A sra. Perkins tirou da sacola um envelope grande e marrom quando subiu os degraus, e eles a viram entregá-lo à sra. Grinnell. Alguns segundos depois, a sra. Grinnell praticamente bateu a porta na cara da visita.

— Uôu, que grosseria — disse Benny. — Uma semana de castigo.

Joe e Norrie riram.

A sra. Perkins ficou um instante onde estava, como se estivesse perplexa, e depois desceu os degraus. Agora estava virada para a praça e, instintivamente, as três crianças recuaram mais para as sombras da ponte coberta. Isso fez com que a perdessem de vista, mas Joe encontrou uma cômoda rachadura na parede de madeira e espiou por ela.

— Voltando para a Principal — relatou. — Ok, agora está subindo o morro... agora está atravessando a rua outra vez...

Benny segurou um microfone imaginário.

— Veja no noticiário das 11.

Joe o ignorou.

— Agora está entrando na minha rua. — Ele se virou para Benny e Norrie. — Acha que ela vai falar com a minha mãe?

— A rua Mill tem quatro quarteirões, parceiro — disse Benny. — Qual a chance?

Joe se sentiu aliviado, embora não conseguisse pensar numa razão para a visita da sra. Perkins à sua mãe ser uma coisa ruim. Só que a mãe estava preocupadíssima com o pai dele fora da cidade, e Joe detestaria vê-la ainda mais nervosa do que já estava. Ela quase o proibira de participar daquela expedição. Ainda bem que a srta. Shumway fizera ela desistir dessa idéia, principalmente ao lhe dizer que Dale Barbara mencionara Joe especificamente para o serviço (que Joe — Benny e Norrie também — preferiam chamar de “a missão”).

— Sra. McClatchey — dissera Julia —, se tem alguém capaz de usar esse aparelho Barbie acha que provavelmente é o seu filho. Pode ser importantíssimo.

Isso fizera Joe se sentir bem, mas ver a cara da mãe — preocupada, exausta — o fez se sentir mal. Não fazia nem três dias que a Redoma caíra e ela já emagrecera. E o jeito como não largava a foto do pai também o fazia se sentir mal. Era como se eia achasse que ele tinha morrido em vez de só estar preso num motel por aí, provavelmente tomando cerveja e assistindo à HBO.

Mas ela concordara com a srta. Shumway.

— Ele é mesmo esperto com máquinas, é verdade. Sempre foi. — Ela o olhou da cabeça aos pés e suspirou. — Quando você ficou tão alto, meu filho?

— Não sei — respondera ele com veracidade.

— Se eu te deixar fazer isso, você vai tomar cuidado?

— E leva os seus amigos com você — disse Julia.

— Benny e Norrie? Claro.

— Além disso — acrescentara Julia —, seja um pouco discreto. Sabe o que isso significa, Joe?

— Sim, senhora, sei, sim.

Significava não seja pego.

 

Brenda sumiu entre as árvores que ladeavam a rua Mill.

— Ok — disse Benny. — Vamos lá.

Apagou com cuidado o cigarro no cinzeiro improvisado e depois pegou a sacola de compras na cestinha de arame da bicicleta. Dentro da sacola estava o antigo contador Geiger amarelo, que passara de Barbie para Rusty para Julia... e, finalmente, para Joe e o seu grupo.

Joe pegou a tampa de suco e apagou o cigarro, pensando que gostaria de experimentar de novo quando tivesse tempo para se concentrar na experiência.

Por outro lado, talvez fosse melhor não. Era viciado em computadores, em quadrinhos de Brian K. Vaughan e em skate. Talvez já fossem vícios suficientes.

— Vai vir gente — disse a Benny e Norrie. — Talvez muita gente, depois que se cansarem de brincar no supermercado. É bom torcer pra não prestarem atenção em nós.

Na sua cabeça, ouviu a srta. Shumway dizer à mãe dele como aquilo podia ser importante para a cidade. Não precisou dizer a ele, que provavelmente entendia isso melhor que elas.

— Mas se algum policial aparecer... — disse Norrie.

Joe fez que sim.

— De volta à sacola. E pegamos o Frisbee.

— Acha mesmo que tem algum tipo de gerador alienígena enterrado debaixo da praça da cidade? — perguntou Benny.

— Eu disse que pode ter — respondeu Joe, mais rispidamente do que pretendia. — Tudo é possível.

Na verdade, Joe achava mais do que possível; achava provável. Se não tivesse origem sobrenatural, a Redoma era um campo de força. Um campo de força tinha que ser gerado. Para ele, era uma situação CQD, mas não queria dar esperanças demais aos outros. Nem a si, aliás.

— Vamos começar a procurar — disse Norrie. Ela passou por baixo da frouxa fita amarela da polícia. — Espero que vocês tenham rezado bastante.

Joe não acreditava em orações para coisas que podia fazer sozinho, mas fizera uma rápida oração por outra coisa: que, se achassem o gerador, Norrie Calvert lhe desse outro beijo. Bom e demorado.

 

De manhã cedo, durante a reunião pré-exploração na sala dos McClatchey, Joe Espantalho tirara o tênis direito e depois a meia esportiva branca.

— O sapo não lava o pé, não lava porque não quer... — cantarolou Benny alegremente.

— Cala a boca, seu estúpido — respondeu Joe.

— Não chama o seu amigo de estúpido — disse Claire McClatchey, mas lançando a Benny um olhar reprovador.

Norrie não acrescentou nenhuma respostinha sua, só observou com interesse Joe pôr a meia no tapete da sala e alisá-la com a palma da mão.

— Eis Chester’s Mill — disse Joe. — O mesmo formato, certo?

— Certissíssimo — concordou Benny. — O nosso destino é morar numa cidade que se parece com as meias esportivas do Joe McClatchey.

— Ou o sapato da velha — acrescentou Norrie.

— “Era uma vez uma velha que morava num sapato”... — recitou a sra. McClatchey. Ela estava sentada no sofá com o retrato do marido no colo, como no fim da tarde da véspera quando a srta. Shumway chegara com o contador Geiger. — “Tinha tantos filhos que não sabia o que fazer.”

— Boa, mãe — disse Joe, tentando não rir. A versão escolar se transformara em Tinha tantos filhos porque só queria foder.

Ele olhou a meia de novo.

— Então, meias têm centro?

Benny e Norrie pensaram no caso. Joe esperou. O fato de uma pergunta dessas atrair o interesse deles era uma das coisas de que ele gostava nos amigos.

— Não como os centros de círculos e quadrados — disse Norrie, finalmente. — Essas são formas geométricas.

— Acho que tecnicamente as meias também são formas geométricas — disse Benny —, mas eu não sei o nome. Meiágono?

Norrie riu. Até Claire sorriu um pouco.

— No mapa, Mill parece mais um hexágono — disse Joe —, mas não importa. É só usar o bom-senso.

Norrie apontou o lugar da meia onde a parte de baixo em forma de pé se transformava no tubo de cima.

— Aqui. Aqui fica o meio.

Joe marcou o lugar com a ponta da caneta.

— Acho que isso não vai sair, moço — suspirou Claire. — Mas acho que você vai mesmo precisar de meias novas. — E, antes que ele fizesse a próxima pergunta, disse: — No mapa, isso seria mais ou menos onde fica a praça da cidade. É lá que vocês vão procurar?

— É lá onde vamos procurar primeiro — disse Joe, um pouco desanimado por terem lhe roubado o estrondo explicativo.

— Porque se houver um gerador — ponderou a sra. McClatchey —, você acha que ficaria no meio do município. Ou o mais perto possível de lá.

Joe fez que sim.

— Ótimo, sra. McClatchey — disse Benny, e levantou a mão. — Toca aqui, mãe do meu irmão espiritual.

Com um sorriso fraco, ainda segurando o retrato do marido, Claire McClatchey bateu a mão aberta na de Benny. Depois, disse:

— Ao menos a praça da cidade é um lugar seguro. Ela parou para pensar melhor, franzindo a testa de leve. — Assim espero, ao menos, mas quem sabe?

— Não se preocupa — disse Norrie. — Eu tomo conta deles.

— Então me promete que, se acharem mesmo alguma coisa, vocês vão deixar os especialistas cuidarem de tudo — disse Claire.

Mãe, pensou Joe, acho que talvez nós é que sejamos os especialistas. Mas não disse. Sabia que isso a preocuparia ainda mais.

— Falou — disse Benny, e ergueu a mão outra vez. — Toca aqui de novo, mãe do meu...

Dessa vez ela ficou com as duas mãos no retrato.

— Adoro você, Benny, mas às vezes você cansa.

Ele deu um sorriso triste.

— A minha mãe diz exatamente a mesma coisa.

 

Joe e os amigos andaram morro abaixo até o coreto que ficava no meio da praça. Atrás deles, o riacho Prestile murmurava. Agora estava baixo, represado pela Redoma onde entrava em Chester’s Mill, a noroeste. Se a Redoma ainda estivesse no lugar amanhã, Joe achou que ele não passaria de um lamaçal.

— Ok — disse Benny. — Chega de andar à toa. Hora dos jiraias do skate salvarem Chester’s Mill. Vamos ligar o brinquedinho.

Com cuidado (e verdadeira reverência), Joe ergueu o contador Geiger da sacola. A bateria que o alimentava era um soldado morto há muito tempo, e os terminais tinham uma camada grossa de gosma grudenta, mas um pouco de bicarbonato resolvera a corrosão, e Norrie descobrira não uma, mas três baterias de seis volts no armário de ferramentas do pai.

— Ele é meio maníaco nisso de pilhas e baterias — confidenciara a garota — e vai se matar tentando aprender a andar de skate, mas eu adoro ele.

Joe pôs o polegar no interruptor e depois os olhou de cara feia.

— Sabem, essa coisa pode não ler nadica de nada em todos os lugares aonde formos e ainda ser um gerador, só não ser um gerador que emita ondas alfa ou be...

— Liga isso, pelo amor de Deus! — disse Benny. — O suspense está me matando.

— Ele tem razão — disse Norrie. — Liga isso.

Mas havia algo interessante. Tinham testado o contador Geiger várias vezes em volta da casa de Joe e funcionara bem; quando o testaram num relógio velho com mostrador fluorescente, a agulha deu um bom sacolejo. Todos se revezaram. Mas agora que estavam na rua — em campo, por assim dizer —, Joe se sentia paralisado. Havia suor na testa. Dava para sentir as gotas se formarem e se prepararem para escorrer.

Poderia ter ficado ali parado um bom tempo se Norrie não pusesse a mão sobre a dele. Depois, Benny acrescentou a sua. Os três terminaram ligando o interruptor juntos. A agulha do mostrador de CONTAGEM POR SEGUNDO pulou imediatamente para +5, e Norrie apertou o ombro de Joe. Depois, se acomodou em +2 e ela relaxou a mão. Não tinham experiência com contadores de radiação, mas todos adivinharam que só estavam vendo a contagem de fundo.

Lentamente, Joe andou em volta do coreto, estendendo o tubo Geiger-Müller com o seu fio espiralado de telefone. A lâmpada de ligado brilhava alaranjada e a agulha balançava um pouquinho de vez em quando, mas em geral ficava perto do zero do mostrador. Os pulinhos que viam provavelmente eram causados pelos seus próprios movimentos. Joe não se surpreendeu — parte dele sabia que não seria assim tão fácil —, mas, ao mesmo tempo, ficou amargamente desapontado. Era realmente extraordinário como o desapontamento e a falta de surpresa se complementavam tão bem, eram como gêmeos idênticos.

— Deixa comigo — disse Norrie. — Talvez eu tenha mais sorte.

Ele entregou o aparelho sem protestar. Pela hora seguinte, eles percorreram a praça da cidade em todas as direções, se revezando com o contador Geiger. Viram um carro entrar na rua Mill, mas não notaram Junior Rennie, que estava novamente se sentindo melhor, atrás do volante. Nem ele os notou. Uma ambulância desceu correndo o morro da praça da Cidade na direção do Food City, com as luzes piscando e a sirene aos gritos. Isso eles olharam por algum tempo, mas estavam novamente absorvidos quando Junior reapareceu pouco depois, dessa vez atrás do volante do Hummer do pai.

Nunca usaram o Frisbee que tinham levado como camuflagem; estavam preocupados demais. Também não teve importância. Poucos moradores da cidade que iam para casa se deram ao trabalho de olhar a praça. Alguns estavam machucados. A maioria levava alimentos libertados, e alguns empurravam carrinhos de compras cheios. Quase todos pareciam envergonhados.

Ao meio-dia, Joe e os amigos estavam prestes a desistir. Também estavam com fome.

— Vamos lá pra casa — disse Joe. — Mamãe prepara alguma coisa pra gente comer.

— Ótimo — disse Benny. — Tomara que seja chop suey. O chop suey da sua mãe é irado.

— Podemos atravessar a Ponte da Paz e tentar o outro lado primeiro? — perguntou Norrie.

Joe deu de ombros.

— Tudo bem, mas lá só tem árvores. Além disso, vamos nos afastar do centro.

— É, mas... — Ela se calou.

— Mas o quê?

— Nada. Só uma idéia. Provavelmente estúpida.

Joe olhou para Benny. Benny deu de ombros e entregou à amiga o contador Geiger.

Eles voltaram à Ponte da Paz e passaram por baixo da frouxa fita da polícia. A passagem estava escura, mas não escura demais para impedir que Joe olhasse por cima do ombro de Norrie e visse a agulha do contador se agitar quando passaram pelo meio, caminhando em fila indiana para não forçar demais as tábuas apodrecidas sob os pés. Quando saíram do outro lado, uma placa informava VOCÊ ESTÁ SAINDO DA PRAÇA DA CIDADE DE CHESTER’S MILL, CRIADA EM 1808. Um caminho muito usado subia uma elevação cheia de carvalhos, freixos e bétulas. A folhagem de outono pendia mole, parecendo triste e não alegre.

Quando chegaram ao sopé do caminho, a agulha do mostrador CONTAGEM POR SEGUNDO estava entre +5 e +10. Além de +10, a calibragem do medidor subia rapidamente para +500 e depois para +1.000. A parte superior do mostrador estava marcada em vermelho. A agulha estava a quilômetros de lá, mas Joe tinha certeza de que a posição atual indicava mais do que só a contagem de fundo.

Benny olhava a agulha que tremia de leve, mas Joe olhava Norrie.

— No que você está pensando? — perguntou. — Não fica com medo de dizer, porque afinal de contas a ideia não parece nada estúpida.

— Não — concordou Benny. Ele deu um tapinha no mostrador CONTAGEM POR SEGUNDO. A agulha pulou e depois parou em +7 ou +8.

— Fiquei pensando que um gerador e um transmissor são praticamente a mesma coisa — disse Norrie. — E transmissores não precisam ficar no meio, só no alto.

— A torre da CIK não — disse Benny. — Fica numa clareira, transmitindo o Jesus. Já vi.

— É, mas essa coisa é, tipo assim, superpoderosa — respondeu Norrie.

— O meu pai disse que tem 100 mil watts ou coisa assim. Talvez o que a gente esteja procurando tenha um alcance menor. Aí pensei: “Qual é a parte mais alta da cidade?”

— Serra Negra — disse Joe.

— Serra Negra — concordou ela, e ergueu o punho fechado.

Joe bateu no punho dela e apontou.

— Três quilômetros pra lá. Talvez 4. — Ele virou o tubo Geiger-Müller naquela direção e todos observaram, fascinados, a agulha chegar a +10.

— Caralho — disse Benny.

— Não, obrigada — disse Norrie. Dura como sempre... mas corando. Só um pouquinho.

— Tem um velho pomar lá na estrada da Serra Negra — disse Joe. — Dá pra ver Mill inteira de lá — o TR-90 também. Ao menos é o que o meu pai diz. Pode estar lá. Norrie, você é um gênio. — No fim das contas, ele não teve de esperar que ela o beijasse. Ele fez as honras, embora não ousasse mais do que o canto da boca da garota.

Ela pareceu gostar, mas ainda havia uma linha franzida entre os olhos.

— Talvez não seja nada. A agulha não está exatamente enlouquecendo. Podemos ir até lá de bicicleta?

— Claro! — disse Joe.

— Depois do almoço — acrescentou Benny. Ele se considerava o mais prático.

 

Enquanto Joe, Benny e Norrie almoçavam na casa dos McClatchey (era mesmo chop suey) e Rusty Everett, com a ajuda de Barbie e de duas adolescentes, tratava as baixas do saque do supermercado no Cathy Russell, Big Jim Rennie estava sentado no escritório, repassando uma lista e marcando os itens solucionados.

Viu o seu Hummer entrar diante da casa e marcou mais um item: Brenda desovada com os outros. Achou que estava pronto — o mais pronto possível, ao menos. E mesmo que a Redoma sumisse naquela tarde, achou que estava a salvo.

Junior entrou e largou as chaves do Hummer na escrivaninha de Big Jim. Estava pálido e, mais do que nunca, precisava se barbear, mas não parecia mais o cão chupando manga. O olho esquerdo estava vermelho, mas não chamejante.

— Tudo pronto, filho? Junior fez que sim.

— A gente vai pra cadeia? — Ele falava com uma curiosidade quase desinteressada.

— Não — disse Big Jim. A ideia de que poderia ir para a cadeia jamais lhe passara pela cabeça, nem quando a bruxa Perkins aparecera ali e começara a fazer acusações. Sorriu. — Mas o Dale Barbara vai.

— Ninguém vai acreditar que ele matou Brenda Perkins.

Big Jim continuou a sorrir.

— Vão, sim. Estão assustados e vão acreditar. É assim que funciona.

— Como você sabe?

— Porque eu estudo História. Você devia experimentar algum dia.

Estava na ponta da língua perguntar a Junior por que saíra de Bowdoin — largara, fora reprovado ou fora expulso? Mas não era hora nem lugar. Em vez disso, perguntou ao filho se estava disposto a cumprir mais uma missão.

Junior esfregou a têmpora.

— Acho que sim. Perdido por um, perdido por mil.

— Você vai precisar de ajuda. Acho que podia levar Frank, mas prefiro o garoto Thibodeau, se ele hoje já estiver andando. Mas não o Searles. Um bom rapaz, mas estúpido.

Junior nada disse. Big Jim se perguntou de novo o que haveria com o filho. Mas será que queria mesmo saber? Talvez quando a crise passasse. Enquanto isso, havia panelas e frigideiras demais no fogão, e logo o jantar seria servido.

— O que você quer que eu faça?

— Deixa eu verificar uma coisa antes.

Big Jim pegou o celular. Toda vez que fazia isso, esperava achá-lo tão inútil quanto tetas num touro, mas ainda funcionava. Ao menos para ligações dentro da cidade, que para ele era só o que importava. Escolheu a delegacia. Tocou três vezes na sede da polícia até que Stacey Moggin atendeu. A voz dela estava estressada, bem diferente do jeito profissional de sempre. Big Jim não se surpreendeu, dadas as festividades da manhã; dava para ouvir um belo alvoroço ao fundo.

— Polícia — disse ela. — Se não for emergência, por favor tente mais tarde. Estamos muito ocup...

— É Jim Rennie, meu bem. — Ele sabia que Stacey detestava ser chamada de meu bem. E era por isso que ele a chamava assim. — Vai chamar o chefe. Xô-xô.

— Agora ele está tentando separar uma briga na frente da recepção — disse ela. — Talvez o senhor pudesse ligar dep...

— Não, não posso ligar depois — disse Big Jim. — Você acha que eu ligaria se não fosse importante? Vai até lá, meu bem, e joga spray de pimenta no mais agressivo. Depois mande o Pete ao escritório pra...

Ela não o deixou terminar e também não o deixou na espera. O fone bateu na mesa com barulho. Big Jim não se abateu; quando implicava com alguém, gostava de saber que estava conseguindo. A distância, ouviu alguém chamar alguém de ladrão filhodaputa. Isso o fez sorrir.

Um instante depois foi posto na espera, sem que Stacey se desse ao trabalho de informar. Por algum tempo, Big Jim ficou ouvindo conselhos sensatos. Depois, atenderam ao telefone. Era Randolph, parecendo sem fôlego.

— Fala depressa, um, porque isso aqui está um hospício. Os que não foram pro hospital com costelas quebradas parecem uns marimbondos enlouquecidos. Todos jogam a culpa uns nos outros. Estou tentando não encher as celas lá embaixo, mas parece que metade quer ir pra lá.

— Aumentar o tamanho da tropa lhe parece uma ideia melhor hoje, chefe?

— Jesus Cristo, claro. Levamos uma surra. Estou com um policial novo — aquela moça Roux — no hospital com toda a parte de baixo do rosto quebrada. Parece a noiva de Frankenstein.

O sorriso de Big Jim se alargou. Sam Verdreaux conseguira. Mas é claro que era outro aspecto de estar sentindo; quando a gente tinha que passar a bola, naquelas ocasiões pouco frequentes em que não podíamos lançá-la pessoalmente, sempre a passávamos para a pessoa certa.

— Alguém acertou ela com uma pedra. Mel Searles também. Ficou um tempo desmaiado, mas parece que já melhorou. Mas foi feio. Mandei ele pra ser remendado no hospital.

— Bem, isso é lamentável — disse Big Jim.

— Alguém atacou diretamente os meus policiais. Mais de um alguém, acho. Big Jim, será que nós conseguimos mesmo mais voluntários?

— Acho que você vai encontrar muitos recrutas dispostos entre os melhores jovens desta cidade — disse Big Jim. — Na verdade, conheço vários na congregação do Sagrado Redentor. Os filhos dos Killian, por exemplo.

— Jim, os meninos Killian são mais burros do que portas.

— Eu sei disso, mas também são fortes e sabem obedecer. — Ele fez uma pausa. — Também sabem atirar.

— Vamos armar os novos policiais? — Randolph parecia em dúvida e esperançoso ao mesmo tempo.

— Depois do que aconteceu hoje? É claro. Estava pensando em dez ou 12 jovens bons, de confiança, pra começar. Frank e Junior podem ajudar a escolher. E vamos precisar de mais se essa situação não se resolver até semana que vem. Pague com vales. Deixe que eles escolham primeiro os suprimentos, se e quando começar o racionamento. Eles e as famílias.

— Certo. Pode mandar o Junior pra cá? Frank está aqui, Thibodeau também. Ficou um tanto machucado no mercado e teve que trocar a atadura do ombro, mas está quase bom. — Randolph baixou a voz. — Ele disse que o Barbara trocou a atadura. E fez um bom serviço.

— Isso é fantástico, mas o nosso sr. Barbara não vai trocar ataduras por muito tempo. E eu tenho outro serviço pro Junior. Pro policial Thibodeau também. Mande ele pra cá.

— Por quê?

— Se você precisasse saber, eu lhe contaria. Basta mandar que ele venha pra cá. Junior e Frank podem fazer a lista dos possíveis recrutas mais tarde.

— Bom... Se é o que você... — Randolph foi interrompido por um novo alvoroço. Alguma coisa caiu ou foi jogada. Houve um barulhão quando algo se estilhaçou.

— Parem com isso! — berrou Randolph.

Sorrindo, Big Jim afastou o fone da orelha. Conseguia escutar perfeitamente mesmo assim.

— Pega esses dois... esses dois não, seu idiota, os OUTROS dois... NÃO, não é pra prender! Quero todos eles fora daqui! Chuta a bunda deles se não forem embora de outro jeito!

Um momento depois, ele falava de novo com Big Jim.

— Estou começando a esquecer por que eu quis esse emprego.

— Tudo vai se ajeitar — disse Big Jim para acalmá-lo. — Até amanhã você vai ter cinco novos funcionários, garanhões novos e jovens, e mais cinco na quinta-feira. Ao menos mais cinco. Agora manda o jovem Thibodeau pra cá. E vê se aquela cela no fundo do corredor está preparada pra um novo ocupante. O sr. Barbara vai usá-la a partir desta tarde.

— Sob que acusação?

— Que tal quatro assassinatos, mais incitar o saque ao supermercado local? Isso serve? — Ele desligou antes que Randolph respondesse.

— O que você quer que eu faça junto com o Carter? — perguntou Junior.

— Hoje à tarde? Primeiro, um pequeno reconhecimento e planos. Eu ajudo com os planos. Depois você participa da prisão do Barbara. Acho que vai gostar.

— Vou mesmo.

— Depois que o Barbara estiver no xadrez, você e o policial Thibodeau jantem direito, porque o verdadeiro serviço é hoje à noite.

— O quê?

— Pôr fogo na redação do Democrata, que tal?

Os olhos de Junior se arregalaram.

— Por quê?

A pergunta do filho foi uma decepção.

— Porque, para o futuro próximo, ter um jornal não é do interesse da cidade. Alguma objeção?

— Pai, já pensou que você pode estar maluco?

Big Jim fez que sim.

— Como uma raposa — respondeu.

 

— Tantas vezes eu estive nessa sala — disse Ginny Tomlinson com sua nova voz nebulosa — e nenhuma vez me imaginei na mesa.

— Mesmo que tivesse, não imaginaria ser tratada pelo cara que te serve bife com ovos de manhã.

Barbie tentava manter o bom humor, mas vinha remendando e fazendo curativos desde que chegara ao Cathy Russell na primeira corrida da ambulância, e estava cansado. Desconfiava que muito daquilo era estresse: estava apavorado, com medo de fazer alguém piorar em vez de melhorar. Via a mesma preocupação na cara de Gina Buffalino e Harriet Bigelow, e elas não tinham o relógio de Jim Rennie fazendo tique-taque na cabeça para agravar a situação.

— Acho que vai demorar até eu conseguir comer outro bife! — disse Ginny.

Rusty lhe ajeitara o nariz antes de cuidar dos outros pacientes. Barbie ajudara, segurando os lados da cabeça dela com o máximo de gentileza e murmurando palavras de encorajamento. Rusty tapou-lhe as narinas com gaze embebida em cocaína medicinal. Deu ao anestésico dez minutos para fazer efeito (aproveitando o tempo para tratar um pulso torcido e pôr uma atadura elástica no joelho inchado de uma obesa), depois puxou as tiras de gaze com pinças e pegou o bisturi. O auxiliar médico foi admiravelmente rápido. Antes que Barbie mandasse Ginny dizer osso da sorte, Rusty enfiara o cabo do bisturi na narina mais aberta, encostara-o no septo nasal e o usara como alavanca.

Como um homem soltando uma calota, pensou Barbie ao escutar o barulho miúdo mas perfeitamente audível do nariz de Ginny voltando a uma posição próxima do normal. Ela não gritou, mas as unhas abriram buracos no papel que cobria a mesa de exames, e lágrimas escorreram pelo rosto.

Agora estava calma — Rusty lhe dera dois Percocets —, mas ainda vazavam lágrimas do olho menos inchado. As bochechas estavam roxas e inchadas. Barbie achou que ela lembrava um pouco Rocky Balboa depois da luta com Apollo Creed.

— Veja o lado bom — disse ele.

— Existe?

— Com toda certeza. A moça Roux vai passar um mês tomando sopa e milk-shake.

— Georgia? Eu soube que ela foi atingida. Ela está mal?

— Vai sobreviver, mas vai demorar muito pra ficar bonita.

— Essa nunca seria a Miss Flor de Maçã. — E, falando mais baixo: — Era ela gritando?

Barbie fez que sim. Parecia que os uivos de Georgia tinham enchido todo o hospital.

— Rusty deu morfina, mas ela demorou muito tempo pra apagar. Deve ter a constituição de um cavalo.

— E a consciência de um crocodilo — acrescentou Ginny com a sua voz nebulosa. — Não desejo a ninguém o que aconteceu com ela, mas ainda é um argumento danado de bom a favor da compensação cármica. Há quanto tempo eu estou aqui? O meu maldito relógio quebrou.

Barbie olhou o seu.

— 14h30, agora. E acho que isso te deixa com umas cinco horas e meia no caminho da recuperação.

Ele girou os quadris, ouviu as costas estalarem e sentiu que se relaxavam um pouco. Concluiu que a canção de Tom Petty estava certa: a espera era a pior parte. Admitiu que se sentiria mais à vontade depois que estivesse mesmo numa cela. A menos que estivesse morto. A ideia de que talvez fosse conveniente matá-lo por resistir à prisão lhe passou pela cabeça.

— Por que você está sorrindo? — perguntou ela.

— Nada. — Ele ergueu as pinças. — Agora fica quieta e me deixa trabalhar. Quanto mais cedo a gente começa, mais cedo termina.

— Eu preciso me levantar pra ajudar.

— Se tentar, só vai conseguir cair direto no chão.

Ela olhou as pinças.

— Você sabe o que fazer com isso aí?

— Pode apostar. Ganhei medalha de ouro na Olimpíada de Remoção de Caquinhos de Vidro.

— O seu quociente de bobagens consegue ser mais alto que o do meu ex-marido.

Ela sorriu um pouco. Barbie achou que rir doía, mesmo com os analgésicos, e gostou dela por isso.

— Você não vai ser que nem aqueles médicos sacais que viram uns tiranos quando é a vez deles de serem tratados, vai? — perguntou ele.

— O dr. Haskell era assim. Uma vez ele enfiou uma lasca enorme na unha do polegar e, quando o Rusty se ofereceu pra tirar, o Mágico disse que queria um especialista.

Ela riu, fez uma careta e gemeu.

— Talvez você se sinta melhor se souber que o policial que te deu o soco levou uma pedra na cabeça.

— Mais carma. Ele está bem?

— Está.

Mel Searles saíra andando do hospital duas horas antes com uma atadura na cabeça.

Quando Barbie se inclinou na direção dela com as pinças, Ginny virou a cabeça instintivamente. Ele a girou de volta, apertando a mão, com a máxima gentileza, na bochecha menos inchada.

— Eu sei que você precisa fazer isso — disse ela. — É que eu sou que nem criança com os meus olhos.

— Com a força que ele te atingiu, ainda bem que o vidro está em volta e não dentro deles.

— Eu sei disso. Só não me machuca, tá?

— Tudo bem — disse ele. — Logo, logo você vai estar de pé, Ginny. Vou ser rápido.

Ele enxugou as mãos para ter certeza de que estavam secas (não quisera as luvas, não confiava nos dedos com elas) e se curvou. Havia talvez meia dúzia de caquinhos de lente quebrada dos óculos espalhados nas sobrancelhas e em volta dos olhos, mas o que mais o preocupava era uma adaga minúscula logo abaixo do canto do olho esquerdo. Barbie tinha certeza de que Rusty a teria tirado se tivesse visto, mas ele se concentrara no nariz dela.

Seja rápido, pensou. Quem hesita acaba fodido.

Ele puxou à caco com a pinça e o jogou numa vasilha de plástico na bancada. Uma miçanguinha de sangue se formou no local onde estivera. Ele soltou a respiração.

— Tudo certo. O resto não é nada. Mar de almirante.

— Deus te ouça — disse Ginny.

Ele acabara de remover o último caco quando Rusty abriu a porta da sala de exames e disse a Barbie que precisava de uma ajudinha. O auxiliar médico segurava numa das mãos uma latinha de pastilhas para a garganta Sucrets.

— Ajuda com o quê?

— Uma hemorróida que anda feito homem — disse Rusty — Essa ferida anal quer ir embora com o lucro desonesto dele. Em circunstâncias normais, eu adoraria ver aquelas costas miseráveis saírem pela porta, mas agora ele pode nos ser útil.

— Ginny? — perguntou Barbie. — Você está bem?

Ela fez um aceno na direção da porta. Ele chegara até lá, indo atrás de Rusty quando ela chamou:

— Ei, bonitão.

Ele se virou e ela lhe jogou um beijo. Barbie o pegou.

 

Só havia um dentista em Chester’s Mill. O nome dele era Joe Boxer. O consultório ficava no fim da travessa Strout, onde a sala de atendimento tinha uma bela vista do riacho Prestile e da Ponte da Paz. O que era bom se você estivesse sentado. A maioria dos visitantes dessa sala ficava reclinada, só tendo para olhar as várias dúzias de fotos do chihuahua de Joe Boxer coladas no teto.

— Numa delas, parece que a porra do cachorro está soltando um barro — disse Dougie Twitchell a Rusty depois de uma visita. — Talvez seja só o jeito que aquele tipo de cachorro senta, mas eu acho que não. Eu acho que passei meia hora olhando um trapo com olhos cagar enquanto o Box arrancava dois sisos do meu maxilar. Com uma chave de fenda, foi o que pareceu.

A placa pendurada na frente do consultório do dr. Boxer parecia um calção de basquete com tamanho suficiente para caber num gigante de contos de fadas. Era vistosa, pintada de verde e amarelo — as cores dos Mills Wildcats. A placa dizia JOSEPH BOXER, DENTISTA. E embaixo: BOXER É RAPIDO! E ele era bastante rápido, todos concordavam, mas não aceitava plano de saúde, só pagamento em dinheiro. Se um lenhador chegasse com as gengivas supuradas e as bochechas inchadas como as de um esquilo com a boca cheia de nozes e começasse a falar do seu plano odontológico, Boxer lhe diria que fosse buscar o dinheiro com a Anthem ou a Blue Cross ou qualquer que fosse o plano e depois o procurasse.

Uma pequena concorrência na cidade talvez o obrigasse a aliviar essa política draconiana, mas a meia dúzia que tentou se lançar em Mill desde o início dos anos 90 tinha desistido. Especulava-se, sem nenhuma prova, que Jim Rennie, bom amigo de Joe Boxer, talvez tivesse algo a ver com a escassez de concorrência. Enquanto isso, podia-se ver Boxer passeando todo dia no seu Porsche com um adesivo que dizia O MEU OUTRO CARRO TAMBÉM É PORSCHE!

Enquanto Rusty descia o corredor com Barbie atrás, Boxer seguia para a porta principal. Ou tentava; Twitcho segurava pelo braço. Pendurado no outro braço do dr. Boxer havia uma cesta cheia de waffles Eggo. Nada mais; só pacotes e pacotes de Eggo. Barbie se perguntou, não pela primeira vez, se não estaria caído na vala que passava atrás do estacionamento do Dipper’s, surrado até desmaiar e com um terrível pesadelo de cérebro lesado.

— Não vou ficar! — gania Boxer. — Tenho que levar isso aqui pro freezer lá de casa! O que você quer não tem quase nenhuma chance de dar certo, então tira as mãos de mim.

Barbie observou a borboleta de curativo que dividia ao meio uma das sobrancelhas de Boxer e a atadura maior no antebraço direito. Parecia que o dentista travara um bom combate pelos seus waffles congelados.

— Fala pra esse brutamontes tirar as mãos de mim — disse ao ver Rusty — Já fui tratado e agora vou pra casa.

— Ainda não — disse Rusty. — Você foi tratado de graça, e agora eu espero que retribua.

Boxer era um homem miúdo de 1,62m, mas esticou-se ao máximo e encheu o peito.

— Quem espera nunca alcança. Não vejo como trocar cirurgia bucal, que, aliás, o estado do Maine não me credenciou a fazer, por um par de ataduras. Eu trabalho pra viver, Everett, e pretendo ser pago pelo meu trabalho.

— Você será pago no céu — disse Barbie. — Não é o que o seu amigo Rennie diria?

— Ele não tem nada a ver com...

Barbie se aproximou um passo e espiou a cesta de compras de plástico verde de Boxer. As palavras PROPRIEDADE DE FOOD CITY estavam impressas na alça. Boxer tentou, sem muito sucesso, esconder dele a cesta.

— Por falar em pagamento, você pagou por esses waffles?

— Não seja ridículo. Todo mundo estava levando tudo. Tudo o que eu peguei foi isso. — Desafiador, encarou Barbie. — Tenho um freezer muito grande e por acaso adoro waffles.

— “Todo mundo estava levando tudo” não será uma boa defesa se você for acusado de saque — disse Barbie pacificamente.

Para Boxer, era impossível se erguer ainda mais, mas ele conseguiu. O rosto estava tão vermelho que ficara quase roxo.

— Então me leva ao tribunal! Que tribunal? Caso encerrado. Rá!

Começou a dar as costas de novo. Barbie estendeu a mão e o segurou, não pelo braço, mas pela cesta.

— Só vou confiscar isso aqui, então, certo?

— Você não pode fazer isso!

— Não? Então me leva ao tribunal. — Barbie sorriu. — Ah, esqueci... que tribunal?

O dr. Boxer o olhou com raiva, os lábios repuxados para mostrar a ponta dos dentinhos perfeitos.

— Vamos assar esses waffles velhos lá no refeitório — disse Rusty. — Nham! Delícia!

— É, enquanto temos eletricidade pra isso — murmurou Twitch. — Depois podemos espetá-los no garfo e assar no incinerador lá atrás.

— Vocês não podem fazer isso!

— Vou ser perfeitamente claro — disse Barbie. — A menos que você faça o que Rusty quer, eu não tenho a mínima intenção de largar os seus Eggos.

Chaz Bender, que tinha um band-aid na ponte do nariz e outro no lado do pescoço, riu. Sem muita gentileza.

— Paga logo, doutor! — gritou. — Não é isso que o senhor sempre diz?

Boxer pôs os olhos raivosos primeiro em Bender, depois em Rusty.

— O que você quer é quase impossível de dar certo. Isso você devia saber.

Rusty abriu a caixa de Sucrets e a estendeu. Lá dentro, havia seis dentes.

— Torie McDonald catou esses aqui no lado de fora do supermercado. Ela ficou de joelhos e meteu os dedos nas poças de sangue da Georgia Roux pra encontrar. E se quer comer Eggos no café da manhã em um futuro próximo, doutor, é bom colocar eles de volta na cabeça da Georgia.

— E se eu simplesmente for embora?

Chaz Bender, o professor de história, avançou um passo. Os punhos estavam fechados.

— Nesse caso, meu amigo mercenário, vou lhe dar uma bela surra no estacionamento.

 

— Eu ajudo — disse Twitch.

— Eu não ajudo — disse Barbie —, mas assisto.

Houve risos e alguns aplausos. Barbie, ao mesmo tempo, se divertia e se enojava.

Os ombros de Boxer arriaram. De repente, era apenas um homenzinho no meio de uma situação grande demais para ele. Pegou a caixa de Sucrets e olhou para Rusty

— Um cirurgião-dentista trabalhando em condições ótimas talvez conseguisse reimplantar os dentes, e eles podem até se enraizar, embora ele deva tomar cuidado pra não dar garantias ao paciente. Se eu fizer isso, ela vai ter sorte se conseguir um ou dois de volta. O mais provável é que caiam na traquéia e ela sufoque.

Uma mulher robusta com muito cabelo ruivo chamejante empurrou Chaz Bender com os ombros.

— Vou ficar com ela e cuidar pra que isso não aconteça. Eu sou a mãe dela.

O dr. Boxer deu um suspiro.

— Ela está inconsciente?

Antes que ele pudesse continuar, dois carros da polícia de Chester’s Mill, um deles o carro verde do chefe, pararam na entrada. Freddy Denton, Junior Rennie, Frank DeLesseps e Carter Thibodeau saíram do carro da frente. O chefe Randolph e Jackie Wettington saíram do carro do chefe. A mulher de Rusty saiu do banco de trás. Todos estavam armados e, quando se aproximaram da porta principal do hospital, puxaram as armas.

A pequena multidão que assistira ao confronto com Joe Boxer se afastou murmurando, alguns esperando, sem dúvida, serem presos por roubo.

Barbie se virou para Rusty Everett.

— Olha pra mim — disse.

— Como assim...

— Olha pra mim! — Barbie ergueu os braços, girando-os para mostrar os dois lados. Depois, levantou a camiseta, mostrando primeiro a barriga plana, depois virando para exibir as costas. — Está vendo marcas? Hematomas?

— Não...

— Garanta que eles fiquem cientes disso — disse Barbie.

Ele só teve tempo para isso. Randolph comandou os seus policiais porta adentro.

— Dale Barbara? Um passo à frente.

Antes que Randolph erguesse a arma e a apontasse para ele, Barbie obedeceu. Porque acidentes acontecem. Às vezes de propósito.

Barbie viu a perplexidade de Rusty e gostou ainda mais dele pela inocência. Viu Gina Buffalino e Harriet Bigelow de olhos arregalados. Mas sua atenção estava mais voltada para Randolph e seus reforços. Todos os rostos estavam pétreos, mas nos de Thibodeau e DeLesseps ele viu inegável satisfação. Para eles, era a retribuição pela noite no Dipper’s. E a vingança seria maligna.

Rusty ficou na frente de Barbie, como se o protegesse.

— Não faz isso — murmurou Barbie.

— Rusty, não! — gritou Linda.

— Peter? — perguntou Rusty. — O que houve? Barbie está ajudando, e vem fazendo um serviço danado de bom.

Barbie ficou com medo de afastar para o lado o grande auxiliar médico e até de tocá-lo. Em vez disso, ergueu as mãos, bem devagar, com as palmas para fora.

Quando viram os braços dele subirem, Junior e Freddy Denton foram até Barbie, e depressa. No caminho, Junior esbarrou em Randolph, e a Beretta fechada no punho do chefe disparou. O som foi ensurdecedor na área da recepção. A bala entrou no chão a menos de 10 centímetros do sapato direito de Randolph, fazendo um buraco surpreendentemente grande. O cheiro de pólvora foi imediato e espantoso.

Gina e Harriet gritaram e dispararam pelo corredor principal abaixo, pulando agilmente por cima de Joe Boxer, que engatinhava de cabeça baixa, com o cabelo normalmente arrumado caído no rosto. Brendan Ellerbee, que fora tratar o queixo levemente deslocado, chutou o antebraço do dentista quando ele passou veloz. A caixa de Sucrets caiu da mão de Boxer, bateu na mesa da recepção e voou aberta, espalhando os dentes que Torie McDonald catara com tanto cuidado.

Junior e Freddy agarraram Rusty, que não fez esforço para lutar contra eles. Parecia totalmente confuso. Empurraram-no para o lado. Rusty saiu aos trambolhões pelo saguão, tentando se manter de pé. Linda o agarrou e os dois caíram juntos no chão.

— Que merda é essa? — rugia Twitch. — Qual é a merda?

Carter Thibodeau, mancando de leve, se aproximou de Barbie, que viu que ele vinha mas manteve as mãos para cima. Baixá-las poderia fazer com que o matassem. E talvez não só ele. Agora que uma arma disparara, a possibilidade de outras dispararem era muito maior.

— Olá, chefe — disse Carter. — Andou fazendo travessuras, hein? — Deu um soco no estômago de Barbie.

Barbie tensionara os músculos prevendo o golpe, mas ainda assim se dobrou ao meio. O filhodamãe era forte.

— Para com isso! — rugiu Rusty. Ainda parecia perplexo, mas agora também estava zangado. — Para com isso agora mesmo!

Tentou se levantar, mas Linda pôs os dois braços em torno dele e o segurou.

— Não — disse ela. — Não, ele é perigoso.

— O quê? — Rusty virou a cabeça e a fitou com descrença. — Está maluca?

Barbie ainda estava com as mãos para cima, mostrando-as para os policiais. Curvado para a frente como estava, parecia fazer salamaleques.

— Thibodeau — disse Randolph. — Pra trás. Já basta.

— Larga essa arma, seu idiota! — gritou Rusty para Randolph. — Quer matar alguém?

Randolph lhe deu um breve olhar de desdém e se virou para Barbie.

— Endireite-se, filho.

Barbie se endireitou. Doeu, mas conseguiu. Sabia que, se não tivesse se preparado para o soco de Thibodeau na barriga, estaria encolhido no chão, tentando respirar. E será que Randolph teria tentado chutá-lo para ficar de pé? Os outros policiais ajudariam, apesar dos espectadores no saguão, alguns dos quais voltavam para ver melhor? É claro, porque estavam de sangue quente. Era assim que funcionava.

— Você está preso pelos assassinatos de Angela McCain, Doreen Sanders, Lester A. Coggins e Brenda Perkins — disse Randolph.

Todos os nomes atingiram Barbie, mas o último bateu com mais força. O último foi um soco. Aquela mulher tão doce. Ela esquecera de tomar cuidado. Barbie não podia culpá-la — ela ainda estava com profundo pesar pelo marido —, mas podia culpar a si mesmo por deixá-la procurar Rennie. Por encorajá-la.

— O que houve? — perguntou a Randolph. — Pelo amor de Deus, o que vocês fizeram?

— Como se você não soubesse — disse Freddy Denton.

— Que tipo de maluco você é? — perguntou Jackie Wettington. O rosto dela era uma máscara contorcida de ódio, os olhos miúdos de raiva.

Barbie ignorou os dois. Fitava o rosto de Randolph com as mãos ainda erguidas acima da cabeça. Bastava uma desculpa mínima e cairiam sobre ele. Até Jackie, em geral a mais agradável das mulheres, poderia participar, embora com ela fosse ser preciso uma razão em vez de uma mera desculpa. Ou talvez não. Às vezes, até gente boa explode.

— Uma pergunta melhor — disse ele a Randolph — é o que você deixou o Rennie fazer. Porque essa sujeira é dele, e você sabe disso. Dá pra sentir o dedo dele por toda parte.

— Calado. — Randolph virou-se para Junior. — Põe as algemas nele. Junior estendeu as mãos para Barbie, mas, antes que pudesse tocar o punho erguido, Barbie pôs as mãos para trás e se virou. Rusty e Linda Everett ainda estavam no chão, Linda com os braços em volta do peito do marido num restritivo abraço de urso.

— Fique lembrado — disse Barbie a Rusty quando lhe puseram as algemas plásticas... e quando foram apertadas até entrar na pouca carne acima do pulso.

Rusty se levantou. Quando Linda tentou segurá-lo, ele a empurrou e lhe deu um olhar que ela nunca vira. Havia dureza nele, e reprovação, mas também havia pena.

— Peter — disse ele, e quando Randolph começou a se virar para o outro lado, ergueu a voz num grito. — Estou falando com você! Olha pra mim quando eu falar!

Randolph se virou. O rosto dele era de pedra.

— Ele sabia que você estava vindo aqui pra buscá-lo.

— Claro que sabia — disse Junior. — Pode ser maluco, mas não é burro.

Rusty não deu atenção a isso.

— Ele me mostrou os braços, o rosto, levantou a camisa pra mostrar o peito e as costas. Não tem nenhuma marca, a não ser o hematoma onde o Thibodeau deu o soco.

— Três mulheres? — disse Carter. — Três mulheres e um pastor? Ele mereceu.

Rusty não tirou os olhos de Randolph.

— Isso é armação.

— Com todo o respeito, Eric, esse não é o seu departamento — disse Randolph. Pusera a arma no coldre. O que foi um alívio.

— É verdade — disse Rusty. — Eu sou um remendão, não sou policial nem advogado. O que eu estou dizendo é que, se eu o vir de novo enquanto estiver sob a sua custódia e ele estiver com um monte de cortes e hematomas, que Deus te ajude.

— O que você vai fazer, chamar a União da Liberdade Civil? — perguntou Frank DeLesseps. Os lábios estavam brancos de fúria. — O seu amigo aqui surrou quatro pessoas até a morte. O pescoço de Brenda Perkins estava quebrado. Uma das moças era a minha noiva e ela foi sexualmente molestada. Provavelmente depois de morrer, assim como antes, é o que parece.

A maior parte da multidão que fugira com o tiro voltara para assistir, e agora subia dela um gemido suave e horrorizado.

— É esse o cara que você está defendendo? Você também devia ir pra cadeia!

— Frank, cala a boca! — disse Linda.

Rusty olhou Frank DeLesseps, o garoto de quem cuidara quando tivera catapora e sarampo, piolhos que pegara no acampamento de verão, o pulso quebrado quando se jogara na segunda base, e certa vez, quando tinha 12 anos, um caso especialmente grave de contato com hera venenosa. Viu muito pouca semelhança entre aquele menino e este homem.

— E se eu for preso? E daí, Frankie? E se a sua mãe tiver outra crise de vesícula, como no ano passado? Espero a hora da visita na cadeia pra cuidar dela?

Frank avançou, erguendo a mão para um tapa ou um soco. Junior o segurou.

— Ele vai ter o que merece, não se preocupe. Todos do lado de Barbara vão ter. Tudo a seu tempo.

— Lado? — Rusty parecia sinceramente perplexo. — Do que você está falando, lados? Isso aqui não é uma porra de jogo de futebol.

Junior sorriu como se soubesse um segredo.

Rusty se virou para Linda.

— São os seus parceiros que estão falando. Você gosta desse jeito de falar?

Por um momento, ela não conseguiu olhar para ele. Depois, com um esforço, olhou.

— Estão furiosos, é só isso, e eu acho que eles têm razão. Eu também estou. Quatro pessoas, Eric, não ouviu? Ele matou quatro pessoas e é quase certo que estuprou ao menos duas das mulheres. Eu ajudei a tirar elas do carro na funerária Bowie. Vi as manchas.

Rusty balançou a cabeça.

— Eu acabei de passar a manhã com ele e só o vi ajudar os outros sem machucar ninguém.

— Deixa pra lá — disse Barbie. — Calma, grandalhão. Não é ho...

Junior o cutucou na costela. Com força.

— Você tem o direito de permanecer calado, babacão.

— Foi ele — disse Linda. Ela estendeu a mão para Rusty, viu que ele não ia pegá-la e a deixou cair junto ao corpo. — Acharam as placas de identificação dele na mão da Angie McCain.

Rusty ficou sem fala. Só conseguiu observar Barbie ser empurrado até o carro do chefe e trancado no banco de trás, com as mãos ainda algemadas às costas.

Houve um momento em que os olhos de Barbie encontraram os de Rusty Barbie balançou a cabeça. Uma vez só, mas com força e firmeza.

Então foi levado embora.

Houve silêncio no saguão. Junior e Frank tinham ido com Randolph. Carter, Jackie e Freddy Denton seguiram para o outro carro. Linda ficou olhando o marido com súplica e raiva. Então a raiva sumiu. Ela deu um passo na direção dele, erguendo os braços, querendo ser abraçada, mesmo que só por uns segundos.

— Não — disse ele.

Ela parou.

— O que deu em você?

— O que deu em você? Não viu o que acabou de acontecer aqui?

— Rusty, ela estava segurando a identificação dele!

Ele concordou com a cabeça, devagar.

— Conveniente, não acha?

O rosto dela, que estivera ao mesmo tempo ferido e esperançoso, agora ficou paralisado. Ela notou que os braços ainda estavam estendidos para ele e os baixou.

— Quatro pessoas — disse ela —, três surradas a ponto de ficarem desfiguradas. Os lados existem, e você precisa pensar bem de que lado está.

— Você também, querida — disse Rusty.

Lá fora, Jackie chamou:

— Linda, vamos!

De repente, Rusty percebeu que tinha platéia e que muitos ali tinham votado várias vezes em Jim Rennie.

— Pensa bem, Lin. E pensa em pra quem Pete Randolph trabalha.

— Linda! — chamou Jackie.

Linda Everett saiu de cabeça baixa. Não olhou para trás. Rusty ficou bem até ela entrar no carro. Então começou a tremer. Achou que, se não se sentasse logo, cairia.

Uma mão pousou no seu ombro. Era Twitch.

— Tudo bem, chefe?

— Tudo. — Como se dizer isso fizesse ficar bem. Barbie fora levado para a cadeia e ele tivera a primeira verdadeira discussão com a mulher em... quanto tempo? Quatro anos? Mais provavelmente, seis. Não, ele não estava bem.

— Uma pergunta — disse Twitch. — Se essa gente foi assassinada, pra que levaram os corpos até a Funerária Bowie em vez de trazer pra cá e fazer autópsia? De quem foi essa idéia?

Antes que Rusty pudesse responder, as luzes se apagaram. O gerador do hospital ficara finalmente sem combustível.

 

Depois de observá-los limpar até o fim o chop suey (que continha a última carne moída), Claire fez um sinal para que as três crianças ficassem em pé diante dela na cozinha. Ela os olhou solenemente, e eles retornaram o olhar — tão jovens e assustadoramente decididos. Então, com um suspiro, entregou a Joe a mochila. Benny espiou lá dentro e viu três sanduíches de geléia com manteiga de amendoim, três ovos cozidos recheados, três garrafas de chá Snapple com suco de fruta e meia dúzia de biscoitos de aveia e passas. Embora ainda de barriga cheia, ele se alegrou.

— Excelentíssima, sra. McC! A senhora é uma verdadeira...

Ela não ligou; toda a sua atenção estava fixada em Joe.

— Eu entendi que isso pode ser importante, e vou junto. Posso até levar vocês até lá, se...

— Não precisa, mãe — disse Joe. — É um passeio tranquilo.

— Seguro, também — acrescentou Norrie. — Não tem quase ninguém na rua.

Os olhos de Claire estavam fixos nos do filho, com o Olhar Fatal das Mães.

— Quero duas promessas. Primeira, que vocês vão voltar pra casa antes de escurecer... e isso não quer dizer a última luz do crepúsculo, quer dizer com o sol ainda no céu. Segunda, se acharem mesmo alguma coisa, marquem o lugar e deixem tudo absoluta e completamente pra lá. Admito que vocês três possam ser as melhores pessoas pra procurar esse sei-lá-o-quê, mas cuidar disso é trabalho de adulto. Então, vocês me dão a sua palavra? Prometam, senão eu vou ter que ir junto como acompanhante.

Benny ficou em dúvida.

— Nunca desci a estrada da Serra Negra, sra. McC, mas eu já passei por lá. Acho que o seu Civic, tipo assim, não ia dar muita conta do serviço.

— Então prometam, ou vocês não vão sair daqui. Que tal?

Joe prometeu. Os outros dois também. Norrie chegou a fazer o sinal da cruz. Joe começou a pôr a mochila no ombro. Claire enfiou nela o celular.

— Não perde isso, menino.

— Não vou perder, mãe. — Joe estava num pé e noutro, ansioso para ir embora.

— Norrie? Posso confiar que você vai segurar as rédeas se esses dois enlouquecerem?

— Pode, senhora — respondeu Norrie Calvert, como se ela não tivesse se arriscado mil vezes a morrer ou ficar desfigurada com o skate só no ano passado. — Pode sim.

— Assim espero — disse ela. — Assim espero.

Claire esfregou as têmporas como se estivesse ficando com dor de cabeça.

— Almoço maravilhoso, sra. McC — disse Benny, e ergueu a mão. — Toca aqui!

— Meu Deus, o que eu estou fazendo? — perguntou Claire. E bateu na mão de Benny.

 

Atrás do balcão da altura do peito no saguão da delegacia de polícia onde as pessoas iam se queixar de problemas como furto, vandalismo e o cachorro do vizinho que não parava de latir, ficava a sala de controle. Continha escrivaninhas, armários de aço e uma copa onde um cartaz mal-humorado anunciava CAFÉ E ROSQUINHAS NÃO SÃO DE GRAÇA. Também era a área de fichamento. Ali, Barbie foi fotografado por Freddy Denton e teve as impressões digitais tiradas por Henry Morrison, enquanto Peter Randolph e Denton ficavam por perto de arma na mão.

— Mole, deixa mole! — gritou Henry. Esse não era o homem que gostava de conversar com Barbie sobre a rivalidade entre Yankees e Red Sox na hora do almoço no Rosa Mosqueta (sempre um sanduíche de bacon, alface e tomate com um picles de pepino com endro ao lado). Esse era um sujeito que gostaria de dar um soco no nariz de Dale Barbara. Com força. — Não é pra você dobrar, eu é que faço isso, deixa eles moles!

Barbie pensou em dizer a Henry que era difícil relaxar as mãos quando se estava tão perto de homens armados, ainda mais sabendo que os homens não se incomodariam em usar tais armas. Em vez disso manteve a boca fechada e se concentrou em relaxar as mãos para Henry poder colher as impressões. Ele não era mau nisso, não mesmo. Em outras circunstâncias, Barbie podia ter perguntado a Henry por que se davam ao trabalho, mas ficou de boca fechada sobre isso também.

— Ok — disse Henry quando achou que as impressões estavam boas. — Levem ele lá pra baixo. Quero lavar as mãos. Só de tocar nele já me sinto sujo.

Jackie e Linda haviam estado num canto. Agora, quando Randolph e Denton guardaram as armas e agarraram os braços de Barbie, as duas puxaram as delas. Estavam apontadas para baixo, mas prontas.

— Eu vomitaria tudo o que você me preparou se pudesse — disse Henry. — Você me dá nojo.

— Não fui eu — disse Barbie. — Pensa nisso, Henry.

Morrison só olhou para o outro lado. Pensar está em falta aqui hoje, pensou Barbie. E tinha certeza de que era assim que Rennie gostava.

— Linda — disse ele. — Sra. Everett.

— Não fale comigo.

O rosto dela estava pálido como papel, a não ser pelas meias-luas arroxeadas e escuras debaixo dos olhos. Pareciam hematomas.

— Vamos, docinho — disse Freddy, e meteu os dedos fechados na base das costas de Barbie, bem acima do rim. — A sua suíte te aguarda.

 

Joe, Benny e Norrie foram de bicicleta para o norte, pela rodovia 119. A tarde quente parecia de verão, o ar úmido e enevoado. Nem uma brisa soprava. Os grilos cantavam sonolentos no mato alto ao lado da estrada. O céu no horizonte tinha um jeito amarelo que Joe primeiro achou que fossem nuvens. Depois, percebeu que era uma mistura de pólen e poluição na superfície da Redoma. Ali, o riacho Prestile passava ao lado da estrada, e eles deviam tê-lo ouvido rir enquanto corria para sudeste rumo a Castle Rock, ansioso para se juntar ao vigoroso Androscoggin, mas só ouviram os grilos e alguns corvos crocitando preguiçosos nas árvores.

Passaram pela estrada do Corte Fundo e chegaram à estrada da Serra Negra mais ou menos 1,5 quilômetro adiante. Era de terra, com muitos buracos, e indicada por duas placas tortas e marcadas pelo gelo. A da esquerda dizia RECOMENDA-SE TRAÇÃO NAS 4 RODAS. A da direita acrescentava: LIMITE DE PESO NA PONTE 4 TONELADAS — CAMINHÕES DE GRANDE PORTE PROIBIDOS. Ambas as placas estavam crivadas de buracos de bala.

— Eu gosto de cidades onde o pessoal pratica tiro regularmente — disse Benny. — Assim eu me sinto protegido do Alcaide.

— É Al-Qaeda, bobão — disse Joe.

Benny balançou a cabeça, com um sorriso indulgente.

— Estou falando do Alcaide, aquele bandido mexicano terrível que se mudou para o oeste do Maine para evitar...

— Vamos experimentar o contador Geiger — disse Norrie, apeando da bicicleta.

Este voltara ao bagageiro da High Plains Schwinn de Benny. Tinham aninhado o aparelho numas toalhas velhas do cesto de trapos de Claire. Benny o pegou e o entregou a Joe, o estojo amarelo sendo a coisa mais viva naquela paisagem nebulosa, O sorriso de Benny sumira.

— Você faz isso. Eu estou nervoso demais.

Joe examinou o contador Geiger e depois o entregou a Norrie.

— Seus covardes — disse ela, sem grosseria, e o ligou. A agulha pulou imediatamente para +50. Joe a fitou e sentiu o coração pular de repente na garganta em vez de no peito.

— Uau! — disse Benny. — Decolamos!

Norrie passou os olhos da agulha, que estava firme (mas ainda a meio mostrador do vermelho), para Joe.

— Continuamos?

— Caraca, claro — disse ele.

 

Não estava faltando luz na delegacia — ao menos, não ainda. Um corredor de azulejos verdes percorria a extensão do porão sob luzes fluorescentes que lançavam um brilho imutável e deprimente. Aurora ou meia-noite, ali embaixo era sempre meio-dia, O chefe Randolph e Freddy Denton escoltavam Barbie (se é que se podia usar essa palavra, considerando os punhos agarrados ao alto dos braços) pelos degraus. As duas policiais, as armas ainda na mão, seguiam atrás.

À esquerda ficava a sala do arquivo. À direita havia cinco celas, duas de cada lado e uma no final. A última era a menor, com um catre estreito quase pendurado em cima do sanitário de aço sem assento, e foi para lá que o fizeram andar à força.

Por ordem de Pete Randolph — que a recebera de Big Jim — até os piores participantes do saque do supermercado tinham sido libertados depois de assinarem confissões de culpa (para onde poderiam ir?), e todas as celas deveriam estar vazias. Foi uma surpresa, então, quando Melvin Searles saiu correndo da número 4, onde estava escondido. A atadura em volta da cabeça escorregara e ele usava óculos escuros para mascarar os olhos de um roxo extravagante.

Numa das mãos, levava uma meia esportiva com algo pesado dentro: um cassetete improvisado. A primeira impressão indistinta de Barbie foi de que estava prestes a ser atacado pelo Homem Invisível.

— Canalha! — gritou Mel, e girou o porrete. Barbie se abaixou. A arma zumbiu sobre a sua cabeça, atingindo o ombro de Freddy Denton. Freddy urrou e largou Barbie. Atrás deles, as mulheres gritavam.

— Assassino de merda! Quem você pagou pra arrebentar a minha cabeça? Hein?

Mel girou a arma de novo e, dessa vez, atingiu o bíceps do braço esquerdo de Barbie. O braço pareceu cair morto. Não era areia na meia, mas algum tipo de peso de papel. Provavelmente vidro ou metal, mas ao menos era redondo. Se tivesse um ângulo, ele estaria sangrando.

— Seu puto filho duma puta! — rugiu Mel, e girou de novo a meia carregada. O chefe Randolph se jogou para trás, também soltando Barbie. Este agarrou o alto da meia, fazendo uma careta quando o peso que estava dentro girou a parte de baixo em volta do seu pulso. Puxou com força para trás e conseguiu arrancar a arma improvisada de Mel Searles. Ao mesmo tempo, a atadura de Mel caiu sobre os óculos escuros, como uma venda.

— Parado, parado! — gritou Jackie Wettington. — Para com isso, prisioneiro, esse é o seu único aviso!

Barbie sentiu um pequeno círculo frio se formar entre as omoplatas. Não conseguia ver, mas sabia, sem olhar, que Jackie puxara a arma. Se ela atirar em mim, é aí que a bala vai parar. E talvez atire, porque numa cidade pequena onde grandes problemas são quase desconhecidos, até os profissionais são amadores.

Ele largou a meia. O que estava nela fez barulho no linóleo. Depois, levantou as mãos.

— Senhora, já larguei! — gritou. — Senhora, estou desarmado, por favor, baixe a arma!

Mel afastou a atadura caída. Ela se desenrolou às suas costas como a cauda do turbante de um swami. Bateu duas vezes em Barbie, uma no plexo solar e outra na boca do estômago. Dessa vez Barbie não estava preparado, e o ar explodiu dos seus pulmões com um PÁ áspero. Ele se dobrou para a frente, depois caiu de joelhos. Mel deu com o punho na sua nuca — ou talvez fosse Freddy; até onde Barbie sabia, podia até ter sido o próprio Líder Destemido — e ele se espalhou no chão, o mundo ficando tênue e indistinto. A não ser por uma lasca no linóleo. Essa ele conseguia ver muito bem. Com fantástica clareza, na verdade, e por que não? Estava a menos de uma polegada dos seus olhos

— Parem, parem, parem de bater nele! — A voz vinha de grande distância, mas Barbie estava bem certo de que pertencia à mulher de Rusty. — Ele caiu, não estão vendo que ele caiu?

Pés se arrastaram em torno dele numa dança complicada. Alguém pisou no seu traseiro, tropeçou, gritou “Merda!”, e depois chutaram o seu quadril. Tudo acontecia muito longe. Talvez doesse depois, mas agora não era tão mau assim.

Mãos o agarraram e o puseram em pé. Barbie tentou erguer a cabeça, mas no geral era mais fácil apenas deixá-la pender. Foi empurrado pelo corredor rumo à cela dos fundos, o linóleo verde deslizando sob os pés. O que Denton dissera lá em cima? A sua suíte te aguarda.

Mas duvido que haja balas de hortelã no travesseiro e a cama preparada à noite, pensou Barbie. Também não se incomodava. Só queria ficar sozinho para lamber as feridas.

Fora da cela, alguém pôs o sapato na sua bunda para apressá-lo ainda mais. Ele voou à frente, erguendo o braço direito para não cair de cara na parede verde de cimento. Tentou erguer também o braço esquerdo, mas ainda estava dormente do cotovelo para baixo. No entanto, conseguiu proteger a cabeça, e isso era bom. Ricocheteou, cambaleou e caiu de novo de joelhos, dessa vez ao lado do catre, como se prestes a rezar antes de dormir. Atrás dele, a porta da cela estrondou nos trilhos ao fechar.

Barbie apoiou as mãos no catre e se ergueu, o braço esquerdo já funcionando um pouco. Virou-se bem a tempo de ver Randolph indo embora com andar combativo — punhos fechados, cabeça baixa. Atrás dele, Denton desenrolava o que restara da atadura de Searles, enquanto este olhava com fúria (o poder do olhar um tanto enfraquecido pelos óculos escuros, agora tortos sobre o nariz). Além dos policiais homens, no pé da escada, estavam as mulheres. Tinham expressões idênticas de desalento e confusão. O rosto de Linda Everett estava mais pálido do que nunca, e Barbie pensou ver o brilho das lágrimas nas pestanas.

Barbie juntou toda a sua força de vontade e a chamou.

— Policial Everett!

Ela deu um pulinho, espantada. Alguém já a chamara de policial Everett? Talvez alunos da escola, quando ela cuidava do cruzamento, que provavelmente fora a sua responsabilidade mais pesada como policial de meio expediente. Até esta semana.

— Policial Everett! Senhora! Por favor, senhora!

— Calado! — disse Freddy Denton.

Barbie não lhe deu atenção. Achava que ia desmaiar ou quase, mas por enquanto fez uma cara feia e se aguentou.

— Diz pro seu marido examinar os corpos! Principalmente o da sra. Perkins! Senhora, ele tem que examinar os corpos! Eles não vão pro hospital! Rennie não vai permitir que...

Peter Randolph deu um passo à frente. Barbie viu o que ele tirara do cinto de Freddy Denton e tentou erguer os braços sobre o rosto, mas estavam simplesmente pesados demais.

— Já basta, filho — disse Randolph. Ele enfiou o tubo de spray de pimenta entre as grades e apertou o gatilho.

 

No meio da ponte Serra Negra comida de ferrugem, Norrie parou a bicicleta e ficou olhando o outro lado do corte.

— É melhor a gente ir andando — disse Joe. — Usar a luz do dia enquanto podemos.

— Eu sei, mas olha — disse Norrie, apontando.

Do outro lado, no pé da margem íngreme e de pernas abertas na lama seca onde corria o Prestile antes que a Redoma começasse a sufocar o seu fluxo, estavam os corpos de quatro veados: um macho, duas fêmeas e um filhote. Todos de bom tamanho; fora um belo verão em Mill e eles tinham se alimentado bem. Joe viu nuvens de moscas enxameando sobre as carcaças, conseguia até escutar o seu zumbido preguiçoso. Era um som que, em dias comuns, seria coberto pela água corrente.

— O que aconteceu com eles? — perguntou Benny. — Acha que tem algo a ver com o que nós estamos procurando?

— Se você está falando de radiação — disse Joe —, acho que não funciona tão depressa.

— A não ser que seja radiação muito alta — disse Norrie, inquieta.

Joe apontou a agulha do contador Geiger.

— Talvez, mas ainda não está muito alta. Mesmo que estivesse lá no vermelho, acho que não mataria animais do tamanho de um veado em só três dias.

— Aquele veado está com a pata quebrada, dá pra ver daqui — disse Benny.

— Tenho certeza de que uma das fêmeas tem duas — completou Norrie. Ela protegia os olhos do sol. — As da frente. Tá vendo como estão tortas?

Joe achou que parecia que a fêmea morrera enquanto tentava fazer algum número difícil de ginástica.

— Acho que elas pularam — disse Norrie. — Pularam da margem como dizem que aqueles ratinhos fazem.

— Merengues — disse Benny.

— Lemingues, seu cabeça de minhoca — corrigiu Joe.

— Estavam tentando fugir de alguma coisa? perguntou Norrie. — Será que foi isso?

Nenhum dos meninos respondeu. Ambos pareciam mais jovens do que na semana anterior, como crianças obrigadas a escutar em torno da fogueira histórias assustadoras demais. Os três ficaram parados ao lado das bicicletas, olhando os veados mortos e escutando o zumbido sonolento das moscas.

— Vamos? — perguntou Joe.

— Acho que a gente precisa — disse Norrie. Ela passou a perna sobre o quadro da bicicleta e ficou ali montada.

— Certo — disse Joe, e montou na sua bicicleta.

— Olhe — disse Benny —, olha só no que você me meteu.

— Hein?

— Nada, nada — disse Benny. — Pedala, meu irmão espiritual, pedala.

Do outro lado da ponte, puderam ver que todos os veados tinham patas quebradas. Um dos filhotes também estava com o crânio esmagado, provavelmente quando caiu sobre uma pedra grande que, num dia comum, estaria coberta de água.

— Experimenta o contador Geiger outra vez — disse Joe.

Norrie o ligou. Dessa vez, a agulha dançou logo abaixo de +75.

 

Pete Randolph exumou um velho gravador cassete de uma das gavetas da escrivaninha de Duke Perkins, testou-o e descobriu que as pilhas ainda estavam boas. Quando Junior Rennie entrou, Randolph apertou REC e pôs o pequeno Sony no canto da escrivaninha, onde o rapaz pudesse vê-lo.

A mais recente enxaqueca de Junior tinha diminuído para um murmúrio abafado no lado esquerdo da cabeça, e ele se sentia bastante calmo; ele e o pai tinham ensaiado aquilo e Junior sabia o que dizer.

— Vai ser estritamente um jogo fácil — dissera Big Jim. — Uma formalidade.

E assim foi.

— Como você encontrou os corpos, filho? — perguntou Randolph, se reclinando na cadeira giratória atrás da escrivaninha. Removera todos os itens pessoais de Perkins e os guardara num arquivo no outro lado da sala. Agora que Brenda morrera, achou que podia jogar tudo no lixo. Objetos pessoais não serviam para nada quando não havia parentes próximos.

— Bom — disse Junior —, eu estava voltando da patrulha lá na 117... perdi toda a confusão do supermercado...

— Sorte sua — disse Randolph. — Foi de virar o cu do avesso, com o perdão da má palavra. Café?

— Não, obrigado, senhor. Costumo ter enxaqueca, e parece que com café piora.

— É mesmo um mau hábito. Não tão mau quanto os cigarros, mas ruim. Sabia que eu fumava antes de ser Salvo?

— Não, senhor, não sabia. — Junior torcia para que aquele idiota parasse de tagarelar e o deixasse contar a história para que pudesse sair de lá.

— Pois é, por Lester Coggins. — Randolph abriu as mãos sobre o peito.

— Imersão de corpo inteiro no Prestile. Dei o meu coração a Jesus bem ali. Não tenho sido um frequentador muito fiel da igreja, sem dúvida bem menos fiel do que o seu pai, mas o reverendo Coggins era um bom homem. — Randolph balançou a cabeça. — Dale Barbara tem muito peso na consciência. Sempre supondo que ele tenha consciência.

— Sim, senhor.

— Muito a responder, também. Dei-lhe um jato de pimenta, e é só um adiantamento do que ele espera. Pois é. Você voltava da patrulha e...?

— E comecei a pensar que alguém me disse que tinha visto o carro da Angie na garagem. Sabe, a garagem dos McCain.

— Quem disse isso?

— Frank? — Junior esfregou a têmpora. — Acho que pode ter sido o Frank.

— Continua.

— Então, olhei por uma das janelas da garagem, e o carro dela estava lá. Fui até a porta da frente e toquei a campainha, mas ninguém atendeu. Aí dei a volta até os fundos porque fiquei preocupado. Tinha... um cheiro.

Randolph concordou com a cabeça em solidariedade.

— Basicamente, você seguiu o seu nariz. Bom trabalho de polícia, filho.

Junior olhou Randolph intensamente, sem saber se era piada ou uma ofensa disfarçada, mas os olhos do chefe pareciam não conter nada além de sincera admiração. O rapaz percebeu que o pai conseguira achar um auxiliar (na verdade, a primeira palavra que lhe ocorreu foi cúmplice) ainda mais burro do que Andy Sanders. Ele achava que seria impossível.

— Vamos, termina. Sei que é doloroso pra você. É doloroso pra todos nós.

— Sim, senhor. Basicamente, foi como o senhor disse. A porta dos fundos estava destrancada e eu segui o meu nariz até a despensa. Mal pude acreditar no que encontrei ali.

— Viu as plaquinhas de identificação nessa hora?

— Vi. Não. Mais ou menos. Vi que a Angie tinha alguma coisa na mão... numa corrente... mas não saberia dizer o que era e não queria tocar em nada. — Junior baixou os olhos com recato. — Eu sei que sou só um recruta.

— Boa decisão — disse Randolph. — Decisão esperta. Sabe, em circunstâncias normais nós teríamos aqui toda uma equipe de técnicos do escritório do procurador-geral do estado, íamos mesmo fazer picadinho do Barbara, mas essas não são circunstâncias normais. Ainda sim, eu diria que nós temos o bastante. Ele foi um idiota ao esquecer aquelas plaquinhas.

— Peguei o celular e chamei o meu pai. Com base em todas as conversas pelo rádio, eu imaginei que o senhor estaria ocupado por aqui...

— Ocupado? — Randolph ergueu os olhos. — Filho, você não viu nada. Fez o mais certo chamando o seu pai. Ele praticamente faz parte do departamento.

— Papai catou dois policiais, Fred Denton e Jackie Wettington, e eles vieram até a casa dos McCain. Linda Everett chegou enquanto o Freddy fotografava a cena do crime. Depois o Stewart Bowie e o irmão dele apareceram com o carro fúnebre. O meu pai achou que era melhor, com toda aquela confusão no hospital por causa do saque e tudo.

Randolph concordou.

— Exato. Ajudar os vivos, guardar os mortos. Quem achou as placas de identificação?

— Jackie. Ela abriu a mão da Angie com um lápis e elas caíram direto no chão. Freddy tirou fotos de tudo.

— É útil no julgamento — disse Randolph. — Que nós mesmos teremos que fazer, se essa coisa da Redoma não se resolver. Mas nós podemos. E como diz a Bíblia: a fé move montanhas. A que horas você encontrou os corpos, filho?

— Perto do meio-dia. — Depois de levar algum tempo me despedindo das minhas namoradas.

 

— E chamou o seu pai imediatamente?

— Imediatamente, não. — Junior deu um olhar franco a Randolph. — Primeiro tive que ir lá fora vomitar. Estavam tão machucadas. Nunca tinha visto nada parecido na vida. — Ele soltou um longo suspiro, tomando o cuidado de dar uma tremidinha. O gravador provavelmente não captaria a tremidinha, mas Randolph se lembraria dela. — Quando acabei, foi então que eu liguei pro papai.

— Certo, acho que é isso. — Mais nenhuma pergunta sobre os horários nem sobre a “patrulha da manhã”, nem mesmo um pedido para que Junior escrevesse um relatório (o que era bom, já que nesses dias escrever lhe dava inevitavelmente dor de cabeça). Randolph se inclinou à frente para desligar o gravador. — Obrigado, Junior. Por que não tira o resto do dia de folga? Vai pra casa descansar. Você parece exausto.

— Eu gostaria de estar aqui quando o senhor o interrogasse. O Barbara.

— Bom, não precisa se preocupar em perder isso hoje. Vamos dar 24 horas pra que ele cozinhe no próprio suco. Ideia do seu pai, e das boas. Vamos interrogar ele amanhã, à tarde ou à noite, e você vai estar aqui. Dou a minha palavra. Vamos interrogá-lo vigorosamente.

— Sim, senhor. Ótimo.

— Nada daquela história de ter direito de ficar calado.

— Não, senhor.

— E, graças à Redoma, nada de entregá-lo ao xerife do condado também. — Randolph olhou Junior intensamente. — Filho, vai ser mesmo como um daqueles casos: o que acontece em Vegas fica em Vegas.

     Junior não sabia se dizia sim, senhor ou não, senhor, porque não fazia idéia do que o idiota atrás da escrivaninha estava falando.

Randolph o segurou com aquele olhar intenso mais um ou dois instantes, como se quisesse se assegurar de que se entendiam, depois bateu palmas uma vez e se levantou.

— Vai pra casa, Junior. Você deve estar um pouco abalado.

— Sim, senhor, estou. E acho que eu vou. Descansar, quero dizer.

— Eu tinha um maço de cigarros no bolso quando o reverendo Coggins me mergulhou — disse Randolph, num tom de voz de reminiscência saudosa. Pôs o braço em torno dos ombros de Junior enquanto andavam até a porta. Junior manteve a expressão atenta e respeitosa, mas estava com vontade de gritar com o peso daquele braço. Era como usar uma gravata de carne. — É claro que se estragaram. E nunca mais comprei outro maço. Salvo da erva do diabo pelo Filho de Deus. Que tal essa graça?

— Fantástica — Junior conseguiu dizer.

— Brenda e Angie vão receber quase toda a atenção, é claro, e isso é normal: cidadã importante da cidade e moça com toda a vida pela frente... mas o reverendo Coggins também tinha os seus fãs. Sem mencionar uma congregação grande e amorosa.

Com o canto do olho esquerdo, Junior conseguia ver a mão de dedos grossos de Randolph. Imaginou o que Randolph faria se ele virasse a cabeça de repente e a mordesse. Arrancasse um daqueles dedos, talvez, e o cuspisse no chão.

— Não se esqueça da Dodee. — Ele não sabia por que dissera aquilo, mas funcionou. A mão de Randolph caiu do seu ombro. O homem parecia estupefato. Junior percebeu que ele tinha esquecido Dodee.

— Meu Deus — disse Randolph. — Dodee. Alguém ligou para avisar o Andy?

— Não sei, senhor.

— Será que o seu pai ligou?

— Ele anda ocupadíssimo.

Era verdade. Big Jim estava em casa, no escritório, redigindo o discurso que faria na assembléia da cidade na noite de quinta-feira. O que faria pouco antes de a população aprovar o governo de emergência dos vereadores por toda a extensão da crise.

— É melhor ligar pra ele — disse Randolph. — Mas talvez seja melhor rezar antes. Quer se ajoelhar comigo, filho?

Junior preferiria derramar fluido de isqueiro nas calças e pôr fogo no saco, mas não disse nada.

— Fale com Deus sozinho, e ouvirá a resposta d’Ele com mais clareza. É o que o meu pai sempre diz.

— Tudo bem, filho. É um bom conselho.

Antes que Randolph dissesse mais alguma coisa, Junior escapuliu da sala e depois da delegacia. Foi para casa a pé, mergulhado em pensamentos, chorando a perda das namoradas e imaginando se conseguiria outra. Talvez mais de uma.

Sob a Redoma, todo tipo de coisa seria possível.

 

Pete Randolph tentou rezar, mas estava com coisa demais na cabeça. Além disso, o Senhor ajuda a quem se ajuda. Não achava que isso estivesse na Bíblia, mas ainda assim era verdade. Ligou para o celular de Andy Sanders, na lista de números espetada no quadro de avisos da parede. Torceu para que não atendessem, mas o sujeito atendeu ao primeiro toque — não era sempre assim?

— Alô, Andy. Aqui é o chefe Randolph. Tenho uma notícia bem ruim, meu amigo. Talvez seja melhor se sentar.

Foi uma conversa difícil. Penosíssima, na verdade. Quando finalmente acabou, Randolph ficou sentado, batucando na escrivaninha. Pensou — de novo — que, se Duke Perkins é que estivesse sentado atrás daquela escrivaninha, ele não ficaria muito triste. Talvez nada triste. Aquele era um serviço muito mais sujo e difícil do que imaginara. A sala particular não valia o aborrecimento. Nem mesmo o carro verde de chefe; toda vez que entrava atrás do volante e a bunda escorregava para o oco que o traseiro mais carnudo de Duke deixara, a mesma ideia lhe vinha: você não está à altura.

Sanders estava indo para lá. Queria confrontar Barbara. Randolph tentara dissuadi-lo, mas a meio caminho da sugestão de que Andy aproveitaria melhor o tempo de joelhos, rezando pela alma da esposa e da filha — sem mencionar a força para carregar sua cruz —, Andy desligara.

Randolph suspirou e teclou outro número. Depois de dois toques, a voz mal-humorada de Big Jim estava no seu ouvido.

— O quê? O quê?

— Sou eu, Jim. Sei que você está trabalhando e detesto interrompê-lo, mas pode vir até aqui? Preciso de ajuda.

 

As três crianças estavam em pé na luz meio rasa da tarde, sob um céu que agora tinha uma óbvia nuance amarelada, e olhavam o urso morto ao lado do poste telefônico, O poste se inclinava meio torto. A pouco mais de um metro da base, a madeira creosotada estava lascada e respingada de sangue. Outras coisas, também. Coisas brancas que Joe achou que eram fragmentos de osso. E coisas esfarinhadas e cinzentas que tinham de ser do cére...

Ele se virou, tentando controlar a garganta. Quase conseguiu também, mas aí Benny vomitou — um som alto e molhado de iurp — e Norrie a seguir. Joe desistiu e se uniu ao clube.

Quando voltaram a se controlar, Joe soltou a mochila, tirou as garrafas de Snapple e as distribuiu. Usou o primeiro gole para enxaguar a boca e cuspir. Norrie e Benny fizeram o mesmo. Depois beberam. O chá doce estava morno, mas ainda parecia um paraíso na garganta ardida de Joe.

Norrie deu dois passos cautelosos na direção do monte preto que zumbia de moscas junto ao poste.

— Que nem os veados — disse ela. — O coitado não tinha nenhuma margem de rio pra pular e rachou a cabeça no poste do telefone.

— Talvez estivesse com raiva — disse Benny com voz aguda. — Talvez os veados também.

Joe achou que havia uma possibilidade técnica, mas não acreditou.

— Fiquei pensando nessa coisa de suicídio. — Ele detestava o tremor que ouviu na sua voz, mas não conseguia controlá-lo. — Baleias e golfinhos fazem isso, encalham nas praias de propósito, eu vi na TV. E o meu pai disse que os povos também.

— Pol — disse Norrie. — Polvos.

— Não importa. O meu pai disse que, quando o meio ambiente fica poluído, eles comem os próprios tentáculos.

— Cara, quer que eu vomite de novo? — perguntou Benny. Parecia rabugento e cansado.

— É isso que está acontecendo aqui? — perguntou Norrie. — O ambiente poluído?

Joe deu uma olhada no céu amarelado. Depois apontou para sudoeste, onde pendia um resíduo preto do fogo causado pelo choque do míssil a descolorir o ar. A mancha parecia ter entre 60 e 90 metros de altura e 1,5 quilômetro de largura. Talvez mais.

— É — disse ela —, mas isso é diferente. Não é?

Joe deu de ombros.

— Se de repente vamos sentir muita vontade de nos suicidar, talvez voltar seja melhor — disse Benny. — Eu tenho muito a viver. Ainda nem consegui zerar Warhammer!

— Experimenta o contador Geiger no urso — sugeriu Norrie.

Joe segurou o tubo do sensor na direção da carcaça do animal. A agulha não caiu, mas também não subiu.

Norrie apontou para leste. À frente deles, a estrada saía da faixa espessa de carvalhos negros que davam nome à serra. Assim que saíssem das árvores, Joe achou que conseguiriam ver o pomar de macieiras no alto.

— Vamos ao menos continuar até sairmos das árvores — disse ela. — Fazemos a leitura lá e, se ainda estiver subindo, nós voltamos à cidade e contamos ao dr. Everett ou àquele tal de Barbara ou aos dois. Eles que resolvam.

Benny ficou em dúvida.

— Não sei.

— Se sentirmos algo estranho, voltamos na mesma hora — disse Joe.

— Se for pra ajudar, devíamos tentar — disse Norrie. — Quero sair de Mill antes de ficar completamente maluca aqui fechada.

Ela sorriu para mostrar que era piada, mas não parecia piada, e Joe achou que não era. Muita gente brincava dizendo que Mill era uma cidade pequena — provavelmente por isso a canção de James McMurtry se tornara tão popular — e, intelectualmente falando, ele achava que era mesmo. Demograficamente também. Só conseguia se lembrar de uma única asiática — Pamela Chen, que às vezes ajudava Lissa Jamieson na biblioteca — e não havia nenhum negro desde que a família Laverty se mudara para Auburn. Não havia nenhum McDonald’s, muito menos um Starbucks, e o cinema tinha fechado. Mas até então sempre parecera geograficamente grande para ele, com muito espaço para percorrer. Era espantoso como encolhera na sua cabeça assim que percebeu que ele, a mãe e o pai não podiam mais se amontoar no carro da família e ir comer mariscos fritos em Lewiston ou tomar sorvete no Yoder’s. Além disso, a cidade tinha muitos recursos, só que não durariam para sempre.

— Tem razão — concordou. — É importante. Vale a pena o risco. Ao menos, eu penso assim. Pode ficar aqui se quiser, Benny. Essa parte da missão é estritamente voluntária.

— Não, eu vou também — retrucou Benny. — Se eu deixar vocês irem sem mim, vão me classificar abaixo dos cachorros.

— Já é lá que você está! — gritaram Joe e Norrie em uníssono, depois se entreolharam e riram.

 

— Isso mesmo, chora!

A voz vinha de muito longe. Barbie se esforçou naquela direção, mas era difícil abrir os olhos ardentes.

— Você tem muito pra choras.

A pessoa que fazia essas declarações parecia estar, ela própria, chorando. E a voz era conhecida. Barbie tentou ver, mas as pálpebras estavam pesadas e inchadas. Debaixo delas, os olhos pulsavam na batida do seu coração. Os seios da face estavam tão cheios que os ouvidos estalavam quando engolia.

— Por que você matou ela? Por que matou o meu bebê?

Algum filhodaputa me jogou gás de pimenta. Denton? Não, Randolph.

Barbie conseguiu abrir os olhos colocando o punho sobre as sobrancelhas e puxando-as para cima. Viu Andy Sanders do lado de fora da cela, com lágrimas correndo pelo rosto. E o que Sanders via? Um cara numa cela, e um cara numa cela sempre parece culpado.

— Ela era tudo o que eu tinha!— gritou Sanders.

Randolph estava atrás dele, com cara de envergonhado e trocando de pé como um garoto que há vinte minutos espera permissão para ir ao banheiro. Mesmo com os olhos ardendo e os seios da face pulsando, Barbie não ficou surpreso por Randolph ter deixado Sanders descer até ali. Não porque Sanders fosse o primeiro vereador da cidade, mas porque Peter Randolph achava quase impossível dizer não.

— Tá bem, Andy — disse Randolph. — Já basta. Você queria vê-lo e eu deixei, ainda que não seja muito sensato. Ele foi enquadrado direitinho e vai pagar pelo que fez. Agora, vamos subir que eu te sirvo uma xícara de...

Andy agarrou a frente da farda de Randolph. Era 10 centímetros mais baixo, mas mesmo assim Randolph ficou apavorado. Barbie lhe deu razão. Via o mundo por uma película vermelha escura, mas conseguia enxergar com bastante clareza a fúria de Andy Sanders.

— Me dá a sua arma! Um julgamento é bom demais pra ele! Ele pode se safar, de qualquer forma! Tem amigos poderosos, o Jim falou! Eu quero uma reparação! Mereço uma reparação, por isso me dá a sua arma!

Barbie achava que, em Randolph, a vontade de agradar não chegaria a ponto de entregar a arma a Andy para que pudesse matá-lo na cela como um rato num barril, mas não tinha certeza absoluta; poderia haver alguma razão além da necessidade covarde de agradar para Randolph levar Sanders até ali embaixo, e levá-lo sozinho.

Ele lutou para se levantar.

— Sr. Sanders. — Um pouco do gás de pimenta lhe caíra na boca. A língua e a garganta estavam inchadas, a voz um grasnido anasalado e pouco convincente. — Eu não matei a sua filha, senhor. Não matei ninguém. Se pensar bem, o senhor vai ver que o seu amigo Rennie precisa de um bode expiatório e que eu sou o mais conveniente...

Mas Andy não estava em condições de pensar em nada. Deixou as mãos caírem sobre o coldre de Randolph e começou a agarrar o Glock que havia ali. Alarmado, Randolph lutou para segurá-lo onde estava.

Nesse momento, um personagem de barriga grande desceu a escada, movendo-se com graça apesar do volume.

— Andy! — trovejou Big Jim. — Andy, parceiro, vem cá!

Ele abriu os braços. Andy parou de lutar pela arma e correu para ele como uma criança chorosa para os braços do pai. E Big Jim o abraçou.

— Eu quero uma arma! — balbuciou Andy, erguendo para Big Jim o rosto riscado de lágrimas e cremoso de catarro. — Me arranja uma arma, Jim! Agora! Agora mesmo! Quero matar ele pelo que ele fez! É o meu direito de pai! Ele matou a minha menininha!

— Talvez não só ela — disse Big Jim. — Talvez não só Angie, Lester e a pobre Brenda também.

Isso interrompeu a inundação verbal. Andy fitou a laje do rosto de Big Jim. Atônito. Fascinado.

— Talvez a sua mulher também. Duke. Myra Evans. Todos os outros.

— O quê...

— Alguém é responsável pela Redoma, parceiro... não é verdade?

— É... — Andy não era capaz de mais nada, mas Big Jim fez que sim, benevolente.

— E me parece que quem fez isso precisava de ao menos um homem aqui dentro. Alguém pra mexer a panela. E quem mexe melhor a panela que um cozinheiro de lanchonete? — Abraçou os ombros de Andy e o levou até o chefe Randolph. Big Jim deu uma olhada no rosto vermelho e inchado de Barbie como se olhasse algum tipo de inseto. — Nós vamos encontrar provas. Disso eu não tenho dúvidas. Ele já mostrou que não tem inteligência suficiente pra esconder os rastros dele.

Barbie fixou a sua atenção em Randolph.

— Isso é armação — disse ele naquela voz anasalada de buzina. — Pode ter começado porque Rennie precisava de cobertura, mas agora é só um jogo de poder muito óbvio. Talvez o senhor ainda não seja descartável, chefe, mas quando for, vai cair também.

— Calado — disse Randolph.

Rennie acariciava o cabelo de Andy. Barbie lembrou de sua mãe e como ela costumava acariciar Missy, a cocker spaniel da família, quando esta ficou velha, estúpida e incontinente.

— Ele vai pagar, Andy, você tem a minha palavra. Mas antes nós vamos obter todos os detalhes: o que, quando, por que e quem mais esteve envolvido. Porque ele não está nisso sozinho, pode apostar o seu tutu-ru-tu. Ele tem cúmplices. Ele vai pagar, mas primeiro vamos espremê-lo até tirar todas as informações.

— Como? — perguntou Andy. Agora, quase enlevado, olhava Big Jim. — Como ele vai pagar?

— Ora, se ele souber levantar a Redoma, e não acho impossível, acho que vamos ter que nos satisfazer em mandá-lo pra Shawshank. Prisão perpétua sem condicional.

— Não basta — sussurrou Andy.

Rennie ainda acariciava a cabeça de Andy.

— Se a Redoma não sumir? — Ele sorriu. — Nesse caso, nós mesmos teremos que julgá-lo. E quando o considerarmos culpado, vamos executá-lo. Prefere assim?

— Prefiro — sussurrou Andy.

— Eu também, parceiro. — Acariciando. Acariciando. — Eu também.

 

Eles saíram juntos do bosque, um ao lado do outro, e pararam, olhando o pomar.

— Tem alguma coisa lá em cima! — disse Benny. — Estou vendo! — A voz dele soava empolgada, mas para Joe também parecia estranhamente distante.

— Eu também — disse Norrie. — Parece uma... uma... — Torre de rádio eram as palavras que ela queria dizer, mas nunca chegou a proferir. Só conseguiu soltar um som de rrr-rrr-rrr, como uma criança que brinca de caminhão numa caixa de areia. Depois, caiu da bicicleta e ficou na estrada, com os braços e pernas se debatendo.

— Norrie? — Joe a olhou, mais estupefato do que alarmado, e depois olhou Benny. Os olhos dos dois se encontraram só por um momento e, então, Benny também caiu, puxando a bicicleta por cima do corpo.

Começou a se debater, chutando para o lado a High Plains. O contador Geiger voou para a vala, com o mostrador para baixo.

Joe cambaleou na sua direção e estendeu um braço que parecia se esticar feito borracha. Virou para cima a caixa amarela. A agulha pulara para +200, pouco abaixo da zona vermelha de perigo. Ele viu isso e depois caiu num buraco negro cheio de chamas alaranjadas. Achou que vinham de um enorme monte de abóboras — uma pira fúnebre de cabeças de abóbora ardentes. Em algum lugar, vozes chamavam: perdidas e aterrorizadas. Então as trevas o engoliram.

 

Quando Julia entrou na redação do Democrata depois de sair do supermercado, Tony Guay, o ex-repórter de esportes que agora era o departamento de reportagem inteiro, digitava no seu laptop. Ela lhe entregou a câmera e disse:

— Para o que você estiver fazendo e imprime isso aqui.

Ela se sentou ao computador para redigir a reportagem. Guardara a abertura na cabeça enquanto subia a rua principal: Ernie Calvert, ex-gerente do Food City, chamou todos para irem pelos findos. Disse que abriria as portas para eles. Mas era tarde demais. O saque começara. Era um bom lide. O problema era que não conseguia escrever. Não parava de apertar as teclas erradas.

— Vai lá pra cima e se deita — disse Tony.

— Não, eu tenho que escrever...

— Você não vai escrever nada desse jeito. Está tremendo que nem uma vara verde. Isso é choque. Fica deitada por uma hora. Vou baixar as fotos e mandar pro seu computador. Transcrevo as suas anotações também. Sobe.

Ela não gostou do que ele dizia, mas reconheceu a sensatez. Só que acabou sendo mais de uma hora. Ela não dormia bem desde a noite de sexta-feira, que parecia um século antes, e mal pôs a cabeça no travesseiro caiu num sono profundo.

Quando acordou, viu, em pânico, que as sombras no quarto tinham ficado compridas. Era o fim da tarde. E Horace! Mijaria num canto qualquer e lhe mostraria a cara mais envergonhada do mundo, como se a culpa fosse dele e não dela.

Ela calçou o tênis, correu para a cozinha e encontrou o corgi não à porta, chorando para sair, mas tranquilamente adormecido no seu cobertor entre o fogão e a geladeira. Havia um bilhete na mesa da cozinha, preso entre o saleiro e o pimenteiro.

    

3 da tarde

Julia —

Pete F. e eu colaboramos na reportagem do supermercado. Não está uma maravilha, mas vai ficar quando você der uma mexida. As fotos que você tirou também não estão ruins. Rommie Burpee veio dizer que ainda tem muito papel, então nesse setor estamos bem. Ele também disse que você precisa escrever um editorial sobre o que aconteceu. “Totalmente desnecessário”, foi o que ele falou. “E totalmente incompetente. A não ser que quisessem que acontecesse. Não acho que ele não seria capaz, e não é do Randolph que eu estou falando.” Pete e eu concordamos que é preciso um editorial, mas temos que ver onde estamos pisando até conhecermos todos os fatos. Também concordamos que você precisava dormir pra escrever do jeito que tem que ser escrito. As bolsas debaixo dos seus olhos já tinham virado malas, chefa! Vou pra casa ficar um pouco com a minha mulher e as crianças. Pete foi até a delegacia. Dizem que aconteceu “algo grande” e ele quer descobrir o que foi.

Tony G.

PS: Levei Horace pra passear. Ele fiz o serviço completo.

    

Julia, não querendo que Horace esquecesse que ela fazia parte da sua vida, acordou-o tempo suficiente para que ele engolisse metade de um petisco e depois desceu para revisar a reportagem e escrever o editorial que Tony e Pete sugeriam. Assim que começou, o celular tocou.

— Shumway, Democrata.

— Julia! — Era Pete Freeman. — Acho que é melhor você vir aqui. Marty Arsenault está na recepção e não vai me deixar entrar. Mandou que eu esperasse do lado de fora! Ele nem é policial, não passa de um lenhador burro que cata um dinheirinho controlando o tráfego no verão, mas agora está agindo como se fosse o Chefe Fodão da Montanha da Piroca.

— Pete, tenho uma tonelada de coisas pra fazer aqui, então a menos que...

— Brenda Perkins morreu. Angie McCain também, Dodee Sanders...

— O quê? Ela se levantou tão de repente que a cadeira virou.

— ... e Lester Coggins também. Foram mortos. E olha só: Dale Barbara foi preso por assassinato. Está na cela lá embaixo.

— Já estou indo praí.

— Ah, merda — disse Pete. — Aí vem Andy Sanders, e está se debulhando em lágrimas. Devo tentar um comentário ou...

— Não se o homem perdeu a filha três dias depois de perder a mulher. Nós não somos o New York Post. Já estou a caminho.

Ela desligou sem esperar resposta. A princípio, se sentiu bastante calma; se lembrou até de trancar a redação. Mas assim que se viu na calçada, no calor e debaixo do céu manchado de fumo, a calma se desfez e ela começou a correr.

 

Joe, Norrie e Benny ficaram se debatendo na estrada da Serra Negra sob uma luz bolar que era difusa demais. Um calor quente demais caiu sobre eles. Um corvo nada suicida pousou num cabo telefônico e os fitou com olhos brilhantes e inteligentes. Crocitou uma vez e depois saiu batendo as asas pelo estranho ar da tarde.

— Halloween — murmurou Joe.

— Manda eles pararem de gritar — gemeu Benny.

— Sem sol — disse Norrie. As suas mãos tatearam o ar. Ela chorava. — Sem sol, ai, meu Deus, não tem mais sol.

No alto da Serra Negra, no pomar de macieiras que dava para toda a cidade de Chester’s Mill, uma brilhante luz malva relampejou.

A cada 15 segundos, relampejava de novo.

 

Julia subiu correndo as escadas da delegacia, o rosto ainda inchado de sono, o cabelo espetado nas costas. Quando Pete fez menção de entrar junto, ela fez que não.

— Melhor ficar aqui. Posso te chamar quando conseguir a entrevista.

— Adoro pensamento positivo, mas não espere por isso — disse Pete. — Logo depois do Andy, adivinha quem chegou? — Ele apontou o Hummer estacionado na frente de um hidrante. Linda Everett e Jackie Wettington estavam por perto, absortas na conversa. Ambas pareciam estressadíssimas.

Dentro da delegacia, Julia primeiro se espantou com o calor — o ar-condicionado fora desligado, provavelmente para poupar combustível. Depois, com o número de rapazes ali sentados, inclusive dois dos sabe deus quantos irmãos Killian —, não havia como confundir aqueles narizes compridos e cabeças pontudas. Parecia que todos preenchiam formulários.

— E se a gente não tiver nenhum último emprego? — perguntou um a outro.

Havia gritos lacrimosos vindos lá de baixo: Andy Sanders.

Julia seguiu para a sala de controle, onde fora visitante frequente por anos e até contribuíra para o fundo do café com rosquinhas (uma cestinha de vime). Nunca fora impedida, mas dessa vez Marty Arsenault disse:

— Não pode entrar aí, srta. Shumway. Ordens.

Ele falava com uma voz conciliadora, como se pedisse desculpas, que provavelmente não usara com Pete Freeman.

Bem nessa hora Big Jim Rennie e Andy Sanders subiram a escada, vindos do Galinheiro, como diziam os policiais de Mill. Andy chorava. Big Jim o abraçava e dizia palavras de consolo. Peter Randolph vinha atrás. A farda de Randolph resplandecia, mas o rosto acima dela era de um homem que escapara por pouco da explosão de uma bomba.

— Jim! Pete! — chamou Julia. — Quero conversar com vocês, pro Democrata!

Big Jim se virou tempo suficiente para lhe dar um olhar dizendo que quem estava no inferno também queria água gelada. Depois, começou a levar Andy para a sala do chefe. Rennie falava sobre orações.

Julia tentou passar pela recepção. Ainda parecendo pedir desculpas, Marty lhe agarrou o braço.

— Quando você me pediu que tirasse do jornal aquela sua discussãozinha com a sua mulher no ano passado, eu te atendi — disse ela. — Porque senão você perderia o emprego. Portanto, se ainda te resta um pouquinho de gratidão, me solta.

Marty a soltou.

— Eu tentei impedir mas a senhora não atendeu — murmurou ele. — Lembra disso.

Julia atravessou a sala de controle.

— Só um minutinho — disse ela a Big Jim. — Você e o chefe Randolph são as autoridades da cidade e vão falar comigo.

Dessa vez, o olhar que Big Jim lhe deu era zangado, além de desdenhoso.

— Não. Não vamos. Você não tem o que fazer aqui.

— E ele, tem? — perguntou ela, indicando Andy Sanders com a cabeça. — Se o que eu soube sobre Dodee está certo, ele é a última pessoa que devia ter permissão de ir lá embaixo.

— Aquele filhodaputa matou a minha menina querida! — baliu Andy.

Big Jim apontou o dedo para Julia.

— Você vai ter a sua reportagem quando nós estivermos dispostos a contar. Antes, não.

— Quero falar com Barbara.

— Ele está preso por quatro assassinatos. Está maluca?

— Se o pai de uma das supostas vítimas pode descer pra falar com ele, por que não eu?

— Porque você não é vítima nem parente de vítima — disse Big Jim. O lábio superior se ergueu, expondo os dentes.

— Ele tem advogado?

— Não tenho mais nada a dizer, mu...

— Ele não precisa de advogado, ele precisa ir pra forca! ELE MATOU A MINHA MENINA QUERIDA!

— Vamos, parceiro — disse Big Jim. — Entregamos isso ao Senhor em oração.

— Que tipo de provas vocês têm? Ele confessou? Se não confessou, que tipo de álibi ele apresentou? Como se encaixa com a hora das mortes? Vocês sabem a hora das mortes, aliás? Se os corpos acabaram de ser descobertos, como poderiam? Levaram tiros, foram esfaqueados ou...

— Pete, livre-se dessa coisa-que-rima-com-aranha — disse Big Jim, sem se virar. — Se não sair sozinha, põe ela pra fora. E diga a quem estiver na recepção que está demitido.

Marty Arsenault fez uma careta e passou a mão nos olhos. Big Jim escoltou Andy até a sala do chefe e fechou a porta.

— Ele foi formalmente acusado? — perguntou Julia a Randolph. — Você sabe que não se pode fazer a acusação sem advogado. Não é legal.

E, embora ainda não parecesse perigoso, só atordoado, Pete Randolph disse algo que fez o coração de Julia gelar.

— Até que a Redoma suma, Julia, creio que legal é aquilo que a gente decidir que é.

— Quando eles foram mortos? Me diga isso, ao menos.

— Bem, parece que as duas moças foram pri...

A porta da sala se abriu, e ela não teve a mínima dúvida de que Big Jim ficara em pé do outro lado, escutando. Andy estava sentado atrás da escrivaninha que agora era de Randolph, com o rosto nas mãos.

— Manda ela embora! — rugiu Big Jim. — Não quero ter que mandar de novo.

— Você não pode manter o preso incomunicável nem negar informações ao povo dessa cidade! — gritou Julia.

— Você está errada nos dois casos — retrucou Big Jim. — Já ouviu o ditado “quem não faz parte da solução faz parte do problema”? Pois é, você não resolve nada ficando aqui. Você é uma intrometida insuportável. Sempre foi. E se não for embora, será presa. Fique avisada.

— Ótimo! Me prende! Me enfia numa cela lá embaixo! — Ela estendeu as mãos com os pulsos juntos, como se fosse receber algemas.

Por um instante, ela achou que Jim Rennie ia lhe bater. A vontade ficou claríssima no rosto dele. Em vez disso, ele disse a Pete Randolph:

— Pela última vez, tira essa intrometida daqui. Se ela resistir, ponha-a pra fora à força.

E bateu a porta.

Sem olhar nos olhos dela, com as faces cor de tijolo recém-queimado, Randolph lhe segurou o braço. Dessa vez, Julia foi. Quando passou pela recepção, Marty Arsenault disse, com mais desconsolo do que raiva:

— Agora, veja só. Perdi o meu emprego pra um desses brutamontes, que não sabem distinguir o cu do cotovelo.

— Você não perdeu o emprego, Marts — disse Randolph. — Disso eu convenço ele.

Um instante depois, ela estava do lado de fora, piscando à luz do sol.

— E então — perguntou Pete Freeman. — Que tal?

 

Benny foi o primeiro a acordar. E fora o calor — a camisa estava grudada no peito não tão heroico assim —, ele se sentia bem. Rastejou até Norrie e a sacudiu. Ela SAL abriu os olhos e o fitou, tonta. O cabelo estava grudado no rosto suado.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Acho que eu dormi. Tive um sonho, só que não consigo me lembrar do que foi. Mas foi ruim. Disso eu sei.

Joe McClatchey rolou de barriga e se pôs de joelhos.

— Jo-Jo? — perguntou Benny. Não chamava o amigo de Jo-Jo desde o quarto ano. — Você tá bem?

— Estou. As abóboras pegaram fogo.

— Que abóboras?

Joe sacudiu a cabeça. Não conseguia se lembrar. Só sabia que queria ir para a sombra e tomar o resto do Snapple. Então pensou no contador Geiger. Pescou-o da vala e viu, com alívio, que ainda funcionava; parece que as coisas fabricadas no século XX eram resistentes.

Mostrou a Benny a leitura de +200 e tentou mostrar a Norrie, mas ela estava olhando a encosta da Serra Negra até o pomar lá em cima.

— O que é aquilo? — perguntou e apontou.

A princípio, Joe não viu nada. Depois, uma luz roxa e brilhante piscou. Era quase brilhante demais para olhar. Pouco depois, piscou de novo. Ele olhou o relógio, tentando marcar o tempo entre as piscadas, mas o relógio parara às 16h02.

— Acho que é o que nós estávamos procurando — disse ele, se pondo de pé. Esperava que as pernas estivessem moles, mas não estavam. Fora o excesso de calor, ele se sentia bastante bem. — Agora vamos cair fora daqui, antes que fiquemos estéreis ou coisa assim.

— Cara — disse Benny —, quem vai querer filhos? Podem sair iguais a mim. — Mesmo assim, montou na bicicleta.

Voltaram pelo caminho por onde vieram, só parando para descansar e beber quando estavam na ponte, de volta à rodovia 119.

 

SAL

As policiais ao lado do H3 de Big Jim ainda conversavam — Jackie agora dava baforadas nervosas num cigarro —, mas cortaram o papo assim que Julia Shumway passou por elas pisando duro.

— Julia? — chamou Linda hesitante. — O que...

Julia continuou andando. A última coisa que queria enquanto ainda fervia por dentro era conversar com mais representantes da lei e da ordem que agora parecia existir em Chester’s Mill. Ela já andara meio caminho até a redação do Democrata quando percebeu que não era só raiva que sentia. Não era nem a maior parte do que sentia. Ela parou sob a placa da Livros Novos e Usados de Mill (FECHADO ATÉ SEGUNDA ORDEM, dizia o cartaz escrito à mão na vitrine), em parte para esperar que o coração disparado se acalmasse, principalmente para olhar dentro de si. Não demorou muito.

— Eu estou mais é apavorada mesmo — disse, e teve um sobressalto com o som da própria voz. Não tivera a intenção de falar em voz alta.

Pete Freeman a alcançou.

— Você está bem?

— Ótima. — Era mentira, mas saiu bem firme e decidida. É claro que não sabia o que o seu rosto estava dizendo. Esticou o braço e tentou achatar o cabelo da nuca que a cama arrepiara. Ele baixou... e pulou de novo. Como se não bastasse, cabelo rebelde, pensou ela. Que ótimo. O toque final.

— Achei que o Rennie ia mesmo mandar o nosso novo chefe prender você — disse Pete. Estava de olhos arregalados e, naquele momento, parecia muito mais novo do que os seus 30 e poucos anos.

— Eu tinha esperanças. — Julia enquadrou com as mãos uma manchete invisível. — “REPÓRTER DO DEMOCRATA CONSEGUE ENTREVISTA EXCLUSIVA NA CADEIA COM SUSPEITO DE ASSASSINATO”.

— Julia? O que está acontecendo aqui? Quer dizer, além da Redoma? Viu todos aqueles caras preenchendo formulários? Achei bem assustador.

— Vi — respondeu Julia —, e pretendo escrever sobre isso. Pretendo escrever sobre tudo isso. E, na assembléia da cidade quinta-feira à noite, acho que não vou ser a única com boas perguntas pra James Rennie.

Ela pôs a mão no braço de Pete.

— Vou ver o que consigo descobrir sobre esses assassinatos e aí escrevo o que tiver. Além de um editorial o mais forte possível sem calúnias vazias. — Ela deu um risinho sem humor. — No departamento calúnia, Jim Rennie é que tem o mando de campo.

— Não entendi o que você...

— Tudo bem, vamos trabalhar. Só preciso de alguns minutos pra me recompor. Depois talvez consiga descobrir com quem falar primeiro. Porque não temos muito tempo, se queremos imprimir hoje à noite.

— Xerocar — disse ele.

— Hein?

— Xerocar hoje à noite.

Ela lhe deu um sorriso trêmulo e o enxotou para que fosse em frente. Na porta da redação, ele olhou para trás. Ela acenou para mostrar que estava bem e espiou pela vitrine empoeirada da livraria, O cinema do centro da cidade estava fechado havia meia década e o drive-in fora da cidade fechara há muito tempo (o estacionamento secundário de Rennie ficava onde a tela grande se erguia acima da 119), mas sabe-se lá como Ray Towle conseguira manter funcionando o seu sebinho sujo. Parte da vitrine consistia em livros de autoajuda. O restante da vitrine estava atulhado de brochuras com mansões envoltas em neblina, damas angustiadas e galãs musculosos de peito nu, a pé e a cavalo. Vários dos ditos galãs brandiam espadas e pareciam usar apenas roupa de baixo. SEXO E AMOR EM HISTÓRIAS DE TERROR!, dizia o cartaz desse lado.

Histórias de terror mesmo.

Como se a Redoma já não fosse ruim o bastante, estranha o bastante, ainda hão Vereador do Inferno.

Ela percebeu que o que mais a preocupava — o que mais a assustava — era a rapidez com que estava acontecendo. Rennie se acostumara a ser o galo mais forte e malvado do galinheiro, e seria de esperar que tentasse finalmente reforçar o seu domínio sobre a cidade — digamos, depois de uma semana ou um mês de isolamento do mundo exterior. Mas fazia apenas três dias e pouco. Suponhamos que Cox e seus cientistas conseguissem abrir a Redoma naquela noite.

Suponhamos que até sumisse sozinha. Big Jim encolheria imediatamente de volta ao tamanho anterior, só que também levaria ovo na cara.

— Que ovo? — ela se perguntou, ainda olhando as HISTÓRIAS DE TERROR. — Ele só diria que fez o melhor possível em circunstâncias complicadas. E todos acreditariam.

Provavelmente era verdade. Mas isso ainda não explicava por que o homem não esperara para fazer a sua jogada.

Porque algo deu errado e ele foi obrigado. E também...

— E também acho que ele não é totalmente normal — disse ela às brochuras empilhadas. — Acho que nunca foi.

Mesmo que fosse verdade, como explicar pessoas com a despensa ainda cheia saqueando o supermercado local? Não fazia sentido, a menos...

— A menos que ele tenha instigado.

Isso era ridículo, o Especial da Casa no Café Paranoico. Não era? Ela achou que poderia perguntar a alguns participantes do saque do Food City o que tinham visto, mas os assassinatos não seriam mais importantes? Ela era a única repórter de verdade disponível, afinal de contas, e...

— Julia? Srta. Shumway?

Julia estava tão absorta em pensamentos que quase pulou fora dos sapatos. Deu meia-volta e teria caído se Jackie Wettington não a segurasse. Linda Everett estava junto, e fora ela quem falara. Ambas pareciam apavoradas.

— Podemos conversar? — perguntou Jackie.

— É claro. Escutar os outros falarem é o que eu faço. O lado ruim é que eu escrevo o que eles dizem. Vocês duas sabem disso, não sabem?

— Mas você não pode usar o nosso nome — disse Linda. — Se não concordar, pode esquecer tudo.

— No que me diz respeito — disse Julia, sorrindo —, vocês são apenas uma fonte próxima à investigação. Serve assim?

— Se prometer responder às nossas perguntas também — disse Jackie. — Concorda?

— Está bem.

— Você estava no supermercado, não estava? — perguntou Linda.

Muitíssimo estranhíssimo.

— Estava. Vocês duas também. Então vamos conversar. Comparar anotações.

— Aqui, não — disse Linda. — Na rua, não. É público demais. Nem na redação do jornal.

— Calma, Lin — disse Jackie, pondo a mão no ombro dela.

— Calma você — disse Linda. — Não é você que tem um marido que acha que você ajudou a atropelar um inocente.

— Eu não tenho marido — disse Jackie, com bastante sensatez, pensou Julia, e sorte dela; muitas vezes, os maridos eram um fator complicador. — Mas conheço um lugar aonde a gente pode ir. É discreto e fica sempre destrancado. — Ela reconsiderou. — Ao menos, ficava. Depois da Redoma, já não sei.

Julia, que estivera pensando em quem entrevistar primeiro, não tinha a mínima intenção de deixar essas duas escapulirem.

— Vamos — disse ela. — Vamos andando em calçadas opostas até passarmos da delegacia, pode ser?

Com isso, Linda conseguiu sorrir.

— Ótima ideia — disse.

 

Piper Libby se ajoelhou cuidadosamente diante do altar da Primeira Igreja Congregacional, fazendo uma careta, mesmo tendo posto uma almofada no genuflexório para seus joelhos roxos e inchados. Segurou-se com a mão direita, mantendo junto ao corpo o braço esquerdo recentemente luxado. Parecia bem — doía menos do que os joelhos, na verdade —, mas ela não tinha a mínima intenção de forçá-lo sem necessidade. Seria facílimo luxá-lo outra vez; tinha sido informada disso (severamente) após a lesão de futebol no colégio. Cruzou as mãos e fechou os olhos. Sua língua foi imediatamente para o buraco onde até ontem havia um dente. Mas havia um buraco pior na sua vida.

— Olá, Não-Está — disse. — Sou eu de novo, de volta pra mais uma porção do Seu amor e misericórdia. — Uma lágrima escorreu debaixo da pálpebra inchada e desceu pela bochecha também inchada (e colorida também). — Meu cachorro está por aí? Só pergunto porque sinto muita falta dele. Se estiver, espero que o Senhor lhe dê o equivalente espiritual de um bom osso. Ele merece.

Mais lágrimas agora, lentas, quentes, ardentes.

— Provavelmente não está. A maioria das grandes religiões concorda que os cachorros não vão pro céu, embora algumas seitas secundárias — e a Reader Digest, creio — discordem.

É claro que se não houvesse céu, a pergunta era irrelevante. E a ideia dessa existência sem céu, dessa cosmologia sem céu, era onde o que restava da sua fé parecia cada vez mais à vontade. Talvez o esquecimento; talvez algo pior. Digamos, uma imensa planície vazia sob céu branco; um lugar onde a hora era sempre tempo algum, o destino, lugar nenhum, e os companheiros, ninguém. Em outras palavras, só um grande Não-Está: para os maus policiais, as mulheres que pregavam, as crianças que se matavam por acidente e os pastores-alemães idiotas que morriam tentando proteger as donas. Nenhum Ser a separar o joio do trigo. Havia algo histriônico (para não dizer blasfemo) em rezar para um conceito desses, mas às vezes ajudava.

— Mas a questão não é o céu — continuou. — A questão agora é tentar entender quanto do que aconteceu com Clover foi culpa minha. Eu sei que tenho que assumir uma parte dela; meu temperamento me dominou. De novo. O meu estudo religioso afirma que, pra começar, foi Você que pôs em mim esse pavio curto, e que cabe a mim lidar com ele, mas eu detesto essa ideia. Não a rejeito completamente, mas detesto. Parece aquela coisa dos mecânicos, quando a gente leva o carro pra consertar e eles sempre acham um modo de jogar na gente a culpa do problema. Você deixou o motor ligado demais, deixou o motor ligado de menos, esqueceu de soltar o freio de mão, esqueceu de fechar a janela e a chuva caiu na fiação. E sabe o que é pior? Se o Senhor Não-Está, não posso nem jogar um pouco da culpa no Senhor. E o que resta? A merda da genética?

Ela suspirou.

— Desculpe o palavrão; o Senhor pode fingir que Não-Estava? Era o que a minha mãe sempre fazia. Enquanto isso tenho outra pergunta. O que eu faço agora? Essa cidade está numa encrenca terrível, e eu queria fazer algo pra ajudar, só que não consigo decidir o quê. Estou me sentindo tola, fraca, confusa. Acho que se eu fosse um daqueles eremitas do Antigo Testamento diria que preciso de um sinal. Nesse momento, até CEDA A VEZ ou REDUZA A VELOCIDADE EM ÁREA ESCOLAR seria ótimo.

Assim que ela acabou de dizer isso, a porta da rua se abriu e se fechou com um estrondo. Piper olhou por sobre o ombro, meio esperando ver um anjo, com asas, túnica branca brilhante e tudo. Se ele quiser lutar, vai ter que curar o meu braço primeiro, pensou.

Não era um anjo; era Rommie Burpee. Metade da camisa estava para fora das calças, pendendo sobre a perna quase até o meio da coxa, e ele parecia tão abatido quanto ela. Começou a descer pelo corredor central até que a viu e parou, tão surpreso de ver Piper quanto ela de vê-lo.

— Ai, caramba — disse ele, só que com o sotaque afrancesado de Lewiston saiu Ai, carramba. — Sinto muito, não sabia que você estava aí. Volto mais tarde.

— Não — disse ela, e lutou para ficar em pé, usando novamente só o braço direito. — Já acabei mesmo.

— Na verdade sou catolique — disse ele (É mesmo?, pensou Piper) —, mas não há igreja catolique em Mill... e é clarro que você sabe, já que é pastorra... e sabe o que dizem sobre qualquer porto numa tempestade. Pensei em entrrar e rezar um pouco por Brrenda. Sempre gostei daquela mulher. — Ele esfregou a mão no rosto. O atrito da palma na barba malfeita parecia alto demais no silêncio vazio da igreja. O seu topete de Elvis pendia em torno das orelhas. — Amava mesmo. Nunca disse, mas acho que ela sabia.

Piper o fitou com horror crescente. Não saíra do presbitério o dia todo e, embora soubesse o que acontecera no Food City — vários paroquianos tinham telefonado —, não sabia de Brenda Perkins.

— Brenda? O que aconteceu com ela?

— Assassinada. Outros também. Dizem que foi aquele tal de Barbie. Ele foi prreso.

Piper bateu a mão sobre a boca e cambaleou. Rommie correu à frente e pôs o braço firme em torno da cintura dela. E era assim que estavam diante do altar, quase como um homem e uma mulher prestes a se casar, quando a porta do vestíbulo se abriu de novo e Jackie fez Linda e Julia entrarem.

— Talvez não seja um lugar tão bom assim, afinal de contas — disse Jackie.

A igreja era uma caixa de ressonância e, embora ela não tenha falado alto, Piper e Romeo Burpee ouviram-na perfeitamente.

— Não vão embora — disse Piper. — Não se for sobre o que aconteceu. Eu não consigo acreditar que o sr. Barbara... Eu diria que ele seria incapaz. Consertou o meu braço depois da luxação. Foi muito gentil nisso. — Ela parou para pensar melhor. — O mais gentil possível, dadas as circunstâncias. Venham cá pra frente. Por favor, venham cá pra frente.

— Pode-se consertar uma luxação e ainda assim ser capaz de matar — disse Linda, mas mordendo o lábio e torcendo a aliança.

Jackie pôs a mão no pulso dela.

— Vamos manter isso em silêncio, Lin... tá lembrada?

— Tarde demais — disse Linda. — Já nos viram com a Julia. Se ela redigir a reportagem e esses dois disserem que nos viram com ela, vão nos culpar.

Piper não entendeu direito o que Linda falava, mas teve uma ideia geral. Ergueu o braço direito e o girou.

— Sra. Everett, a senhora está na minha igreja, e o que se diz aqui fica aqui.

— Jura? — perguntou Linda.

— Juro. Então por que não conversamos? Eu orava por um sinal e eis vocês todos aqui.

— Não acredito nesse tipo de coisa — retrucou Jackie.

— Nem eu, na verdade — concordou Piper, e riu.

— Não gosto disso — disse Jackie. Era a Julia que se dirigia. — Não importa o que ela diga, aqui tem gente demais. Perder o emprego, como o Marty, é uma coisa. Eu dou um jeito, o salário é uma porcaria mesmo. Mas deixar Jim Rennie danado comigo... — Ela balançou a cabeça. — Não é boa ideia.

— Não tem gente demais — disse Piper. — É o número certinho. Sr. Burpee, sabe guardar segredo?

Rommie Burpee, que fizera vários negócios questionáveis no seu tempo, fez que sim e pôs o dedo sobre os lábios.

— Boca fechada — disse ele. Que soou como bocfechade.

— Vamos para o presbitério — disse Piper. Quando viu que Jackie parecia em dúvida, Piper estendeu para ela a mão esquerda... com todo o cuidado.

— Vem, vamos pensar juntos. Talvez com uma dosezinha de uísque? Com isso, finalmente Jackie se convenceu.

 

31 QUEIMAR LIMPAR QUEIMAR LIMPAR

A BESTA SERÁ LANÇADA NO LAGO DE FOGO ARDENTE (AP 19:20)

“ONDE SERÃO ATORMENTADOS DIA E NOITE P/ SEMPRE” (20:10) QUEIMAR OS MAUS

PURIFICAR OS SANTOS

QUEIMAR LIMPAR QUEIMAR LIMPAR 31

31 JESUS DE FOGO VEM AÍ 31

    

Os três homens amontoados na cabine do barulhento caminhão de Obras Públicas olharam essa mensagem enigmática com algum espanto. Fora pintada no depósito atrás do estúdio da WCIK, em preto sobre vermelho, e com letras tão grandes que cobriam quase toda a superfície.

O homem do meio era Roger Killian, o criador de galinhas com a ninhada de cabeça pontuda. Virou-se para Stewart Bowie, que estava ao volante do caminhão.

— O que isso quer dizer, Stewie?

Foi Fern Bowie que respondeu.

— Quer dizer que o maldito Phil Bushey está mais maluco do que nunca, é isso que quer dizer.

Ele abriu o porta-luvas do caminhão, tirou um par de luvas de trabalho engorduradas e revelou um revólver 38. Verificou se estava carregado, fechou o tambor de volta com um movimento do pulso e enfiou a arma no cinto.

— Sabe, Fernie — disse Stewart —, esse é um jeito ótimo de explodir sua fábrica de bebés.

— Não se preocupa comigo, se preocupa com ele — disse Fern, apontando o estúdio. De lá, o som baixinho da música evangélica vazava até eles. — Tá ficando doidão com o seu próprio produto já há quase um ano, e é tão confiável quanto nitroglicerina.

— Agora Phil quer que chamem ele de Chef— disse Roger Killian.

Tinham parado primeiro na frente do estúdio e Stewart tocara a grande buzina do caminhão, não uma, mas várias vezes. Phil Bushey não saíra. Devia estar lá dentro escondido; podia estar perambulando pelo bosque atrás da emissora; era possível até, pensou Stewart, que estivesse no laboratório. Paranoico. Perigoso, O que ainda não transformava a arma em boa idéia. Ele se inclinou, puxou-a do cinto de Fern e a enfiou embaixo do assento do motorista.

— Ei! — gritou Fern.

— Você não vai atirar lá — disse Stewart. — Pode explodir a gente até a Lua. — Para Roger, disse: — Quando foi a última vez que você viu aquele filho da puta esquelético?

Roger pensou no assunto.

— Faz ao menos quatro semanas, desde o último grande carregamento que saiu da cidade. Quando veio aquele grande helicóptero Chinook. — Ele pronunciou xinuque. Rommie Burpee entenderia.

Stewart ponderou. Nada bom. Se Bushey estava no mato, tudo bem. Se estava escondido no estúdio, paranoico, achando que eram federais, talvez também sem problema... a não ser que resolvesse sair atirando, claro.

Mas, se estivesse no depósito... isso podia ser um problema.

— Tem uns pedações de madeira na carroceria do caminhão — disse Stewart ao irmão. — Pega um. Se o Phil aparecer e der piti, meta-lhe o pau na cachola.

— E se estiver armado? — perguntou Roger, com bastante sensatez.

— Não vai estar — disse Stewart. E, embora na verdade não tivesse certeza disso, recebera as suas ordens: dois cilindros de gás a serem entregues no hospital o mais depressa possível. E vamos remover o resto de lá assim que pudermos, dissera Big Jim. Oficialmente, estamos fora do ramo de metanfetamina.

Foi quase um alívio; quando ficaram presos por aquela tal Redoma, Stewart pretendia sair também do ramo fúnebre. Mudar-se para algum lugar quente, como Jamaica ou Barbados. Nunca mais queria ver um morto. Mas não queria ser ele a dar ao “Chef” Bushey a notícia de que iam fechar, e informara Big Jim disso.

Deixa que eu me preocupo com o Chef dissera Big Jim.

Stewart levou o grande caminhão alaranjado para os fundos do prédio e estacionou junto à porta de trás. Deixou o motor em marcha lenta para usar o guincho e a cremalheira.

— Olha aquilo — maravilhou-se Roger Killian. Fitava o oeste, onde o sol se punha numa mancha vermelha perturbadora. Logo afundaria abaixo da grande mancha preta deixada pelo fogo no mato e se apagaria num eclipse sujo. — Isso aí não é o máximo?

— Para de babar — disse Stewart. — Quero terminar isso e ir embora. Fernie, pega um pau aí. Escolhe um bom.

Fern subiu no guincho e pegou um pedaço de tábua velha mais ou menos do tamanho de um taco de beisebol. Segurou-o com as duas mãos e lhe deu uma girada experimental.

— Esse serve.

— Sorvete Baskin-Robbins — disse Roger com voz sonhadora. Ainda protegia os olhos franzidos, virado para oeste. Franzir os olhos não lhe caía bem; ficava parecendo um gigante malvado de conto de fadas.

Stewart parou enquanto destrancava a porta dos fundos, um processo complicado que envolvia uma senha e dois cadeados.

— Que bobagem é essa aí?

— Trinta e um sabores — disse Roger. Ele sorriu, revelando um conjunto de dentes podres nunca visitado por Joe Boxer nem provavelmente por nenhum dentista.

Stewart não entendeu nada do que Roger dizia, mas o irmão, sim.

— Não tem nada a ver com anúncio de sorvete aí do lado do prédio — disse Fern. — A não ser que haja Baskin-Robbins no Apocalipse.

— Calem a boca, vocês dois — mandou Stewart. — Fernie, prepara esse pau. — Empurrou a porta para abri-la e espiou lá dentro. — Phil?

— Chama ele de Chef — aconselhou Roger. — Como aquele preto cozinheiro de South Park. É assim que ele gosta.

— Chee — gritou Stewart. — Está aí dentro, Chef?

Nenhuma resposta. Stewart entrou com cuidado no escuro, como se esperasse que lhe agarrassem a mão a qualquer momento, e encontrou o interruptor. Ligou-o, revelando um salão que se estendia por uns três quartos do comprimento do depósito. As paredes eram de madeira nua sem acabamento, os espaços entre as ripas tapados com espuma de isolamento cor-de-rosa. O salão estava quase cheio de cilindros e botijões de gás de todos os tamanhos e marcas. Não fazia ideia de quantos havia ali no total, mas, se o obrigassem a adivinhar, diria entre 400 e 600.

Stewart caminhou devagar pelo corredor central, espiando as letras pintadas nos cilindros. Big Jim lhe dissera exatamente quais pegar, dissera que estariam perto dos fundos, e, por Deus, estavam. Parou diante dos cinco cilindros tamanho municipal com CR HOSP escrito do lado. Estavam entre cilindros que haviam sido surrupiados da agência dos Correios e outros com MILL MIDDLE SCHOOL escrito do lado.

— Temos que levar dois — disse a Roger. — Traz a corrente e nós prendemos eles. Fernie, você vai até ali e experimenta aquela porta que dá pro laboratório. Se não estiver trancada, tranque. — Jogou o chaveiro para Fern.

Este preferiria não cumprir a tarefa, mas era um irmão obediente. Desceu pelo corredor entre as pilhas de cilindros de gás. Terminavam a 3 metros da porta — e a porta, ele viu com o coração apertado, estava entreaberta. Atrás dele, ouviu o clangor da corrente e depois o gemido do cabrestante e o barulho grave do primeiro cilindro sendo arrastado até o caminhão. Soava muito longe, ainda mais quando imaginou o Chef agachado do outro lado da porta, maluco, de olhos vermelhos. Todo fumado e segurando uma Intratec 9mm.

— Chef? — perguntou. — Está aí, parceiro?

Nenhuma resposta. E, embora não tivesse que fazer aquilo — provavelmente, ele é que era louco de fazer aquilo —, a curiosidade foi mais forte e ele usou o bastão improvisado para empurrar a porta.

As luzes fluorescentes do laboratório estavam acesas, mas fora isso essa parte do depósito Cristo É Rei parecia vazio, Os vinte e tanto fogões — grandes grelhas elétricas, cada uma ligada ao seu próprio exaustor e cilindro de gás — estavam desligados. As panelas, os vasilhames e os frascos caros estavam rodos nas prateleiras. O lugar fedia (sempre federa, sempre federia, pensou Fern), mas o chão estava varrido e não havia sinal de desordem. Numa das paredes havia um calendário dos Carros Usados de Rennie, ainda na página de agosto. Provavelmente quando o filho da puta perdeu o contato com a realidade, pensou Fern. Só saiu flutuaaaaando. Aventurou-se um pouco mais no laboratório. Fizera de todos eles homens ricos, mas nunca gostara de lá. O cheiro era parecido demais com a sala de preparação do andar de baixo das capelas fúnebres.

Um canto fora separado por um pesado painel de aço. Havia uma porta no meio. Era ali, Fern sabia, que ficava armazenado o produto do Chef, cristal meth para cachimbo longo, guardada não em saquinhos de 4 litros, mas em sacões de lixo. E não era material de segunda, não. Nenhum doido que vasculhasse ruas de Nova York ou Los Angeles atrás de uma dose conseguiria acreditar naquele estoque. Quando cheio, o lugar guardava o suficiente para abastecer todos os Estados Unidos por meses, talvez até um ano.

Por que Big Jim deixou ele fazer tanto?, era o que Fern queria saber. E por que nós fomos junto? O que a gente tinha na cabeça? Não conseguiu encontrar, resposta para essa pergunta a não ser a óbvia: porque podiam. A combinação do gênio de Bushey com todos aqueles ingredientes chineses baratos os deixara inebriados. Ela também financiava a CIK Corporation, que fazia a obra de Deus em toda a Costa Leste. Quando alguém o questionava, Big Jim sempre ressaltava isso. E citava as Escrituras: Pois digno é o trabalhador do seu salário — Evangelho de Lucas — e Não atarás a boca ao boi quando debulha — Primeira Epístola a Timóteo.

Fern nunca conseguira entender direito aquilo sobre bois.

— Chef? — Avançando mais um pouquinho. — Amigo?

Nada. Olhou para cima e viu galerias de madeira nua correndo pelos dois lados do prédio. Eram usadas para armazenamento, e o conteúdo das caixas de papelão ali empilhadas interessaria muito ao FBI, à FDA e à Agência de Álcool, Fumo, Armas de Fogo e Explosivos. Não havia ninguém ali, mas Fern espiou algo que achou que era novo: um cabo branco que corria ao longo do corrimão de ambas as galerias, preso à madeira por grampos grossos. Fio elétrico? Indo para o quê? Aquele maluco teria instalado mais fogões ali? Se assim fosse, Fern não via nenhum. O cabo parecia grosso demais para alimentar apenas um aparelho simples, como uma TV ou um rá...

— Fern! — gritou Stewart, o fazendo pular. — Se ele não está aí, vem nos ajudar! Quero sair daqui! Dizem que vai ter notícias na TV às seis e quero ver se eles descobriram alguma coisa!

Em Chester’s Mill, “eles” passara a significar, cada vez mais, qualquer coisa ou pessoa no mundo além das fronteiras da cidade.

Fern foi, sem olhar por sobre a porta e, portanto, não vendo a que os novos cabos elétricos estavam presos: um tijolão de matéria branca parecida com argila que descansava na sua própria prateleirinha. Era explosivo.

Receita pessoal do Chef.

 

Enquanto voltavam para a cidade, Roger disse:

— Halloween. É 31 também.

— Você é uma reserva regular de informações — disse Stewart.

Roger deu um tapa no lado da cabeça de formato infeliz.

— Guardo tudo — disse ele. — Não faço de propósito. É só um talento.

Stewart pensou: Jamaica. Ou Barbados. Um lugar quente, por certo. Assim que a Redoma sumir. Nunca mais quero ver nenhum Killian. Nem ninguém desta cidade.

— Também tem 31 cartas no baralho — disse Roger.

Fern o fitou.

— Que merda você está...

— Só brincando, só brincando com você — disse Roger, e deu um aterorrizante guincho de riso que fez a cabeça de Stewart doer.

Agora estavam chegando ao hospital. Stewart viu um Ford Taurus cinzento saindo do Catherine Russell.

— Ei, é o dr. Rusty — disse Fern. — Aposto que ele vai ficar contente de receber o material. Buzina pra ele, Stewie.

Stewart buzinou.

 

Quando os Sem Deus se foram, Chef Bushey finalmente largou o controle de porta de garagem que tinha nas mãos. Ficara observando os irmãos Bowie e Roger Killian da janela do banheiro masculino do estúdio. O polegar ficou no botão o tempo todo em que estiveram no depósito, mexendo nas suas coisas. Se saíssem com o produto, ele apertaria o botão e explodiria a fábrica toda pelos ares.

— Está nas Suas mãos, meu Jesus — murmurara. — Quando a gente costumava dizer quando era criança, não quero mas vou.

E Jesus cuidou de tudo. Chef teve a sensação de que Ele cuidaria quando ouvisse George Dow e os Gospel-Tones saírem pela antena, cantando “God, How You Care For Me”, e foi uma sensação verdadeira, um verdadeiro Sinal do Alto. Não tinham ido buscar o cristal, só dois inúteis cilindros de gás.

Observou-os indo embora, depois desceu lentamente pelo caminho entre os fundos do estúdio e as instalações combinadas de laboratório e depósito.

Agora era o seu prédio, o seu cristal, ao menos até que Jesus viesse e levasse tudo para si.

Talvez no Halloween.

Talvez antes.

Era muito em que pensar, e naqueles dias era mais fácil pensar quando estava fumado.

Muito mais fácil.

 

Julia deu um golinho na sua dose de uísque, fazendo-a durar, mas as policiais engoliram as delas como heróis. Não foi suficiente para que ficassem bêbadas, mas lhes soltou a língua.

— O fato é que eu estou horrorizada — disse Jackie Wettington. Ela olhava para baixo, brincando com o copo vazio, mas quando Piper ofereceu outra dose, ela fez que não. — Isso nunca aconteceria se Duke ainda estivesse vivo. É nisso que eu não paro de pensar. Mesmo que ele tivesse razões pra acreditar que Barbara assassinara a mulher dele, teria seguido o devido processo legal. Era assim que ele era. E permitir que o pai de uma vítima desça até o Galinheiro pra agredir o acusado? Nunca! — Linda concordava com a cabeça. — Fico com medo do que pode acontecer com o cara. Além disso...

— Se aconteceu com Barbie, pode acontecer com qualquer um? — perguntou Julia.

Jackie fez que sim. Mordendo os lábios. Brincando com o copo.

— Se alguma coisa acontecer a ele, não quero dizer necessariamente algo super-radical, como um linchamento, só um acidente na cela, acho que nunca mais consigo vestir a farda.

A preocupação básica de Linda era mais simples e direta. O marido acreditava que Barbie era inocente. No calor da fúria (e da repugnância pelo que tinham achado na despensa dos McCain), ela rejeitara aquela idéia — afinal de contas, as plaquinhas de identificação de Barbie estavam na mão cinzenta e enrijecida de Angie McCain. Mas quanto mais pensava no caso, mais se preocupava. Em parte porque respeitava, e sempre respeitara, a capacidade de Rusty de avaliar as coisas, mas também por causa do que Barbie gritara pouco antes de Randolph lhe jogar gás de pimenta. Diz pro seu marido examinar os corpos. Ele tem que examinar os corpos!

— E outra coisa — disse Jackie, ainda regirando o copo. — Não se joga gás de pimenta num prisioneiro só porque ele está berrando. Já tivemos noites de sábado, principalmente depois de jogos importantes, em que aquilo lá parecia o zoológico na hora da comida. A gente só deixa eles gritarem. Acabam se cansando e indo dormir.

Enquanto isso, Julia estudava Linda. Quando Jackie terminou, Julia disse:

— Repete de novo o que o Barbie disse.

— Ele queria que Rusty examinasse os corpos, principalmente o de Brenda Perkins. Disse que não iriam pro hospital. Ele sabia disso. Estão na Funerária Bowie, e isso não está certo.

— É foda mesmo, se forram assassinados — disse Romeo. — Opa, desculpa a má palavra, reverenda.

Piper lhe fez um gesto de tudo bem.

— Se foi ele quem matou, não entendo por que sua preocupação mais urgente seria mandar examinarem os corpos. Por outro lado, se não foi, talvez achasse que a autópsia o inocentaria.

— Brenda foi a vítima mais recente — disse Julia. — É isso mesmo?

— É — disse Jackie. — Já havia rigor mortis, mas ainda não total. Ao menos, foi assim que me pareceu.

— Ainda não era total — disse Linda. — E como o rigor mortis começa umas três horas depois da morte, mais ou menos, provavelmente Brenda morreu entre quatro e oito da manhã. Eu diria mais perto das oito, mas não sou médica. — Ela suspirou e passou as mãos pelo cabelo. — Claro que Rusty também não é, mas ele poderia descobrir a hora da morte com mais exatidão se tivesse sido chamado. Ninguém fez isso. Nem eu. Estava tão assustada... tanta coisa acontecendo...

Jackie afastou o copo.

— Escuta, Julia, você estava com Barbara no supermercado hoje de manhã, não estava?

— Estava.

— Um pouco depois das nove. Foi quando o saque começou.

— É.

— Ele chegou primeiro ou foi você? Porque eu não sei.

Julia não conseguiu se lembrar, mas a sua impressão era de que chegara primeiro, de que Barbie viera depois, logo após Rose Twitchell e Anson Wheeler.

— Nós esfriamos a situação — disse ela —, mas foi ele que nos mostrou o jeito certo. Provavelmente salvou ainda mais gente de ficar gravemente ferida.

Não consigo encaixar isso com o que você achou naquela despensa. Tem alguma idéia de qual foi a ordem das mortes? Além de Brenda ter sido a última?

— Angie e Dodee primeiro — disse Jackie. — A decomposição de Coggins estava menos avançada, logo, ele foi depois.

— Quem os encontrou?

— Junior Rennie. Ficou desconfiado porque viu o carro de Angie na garagem. Mas isso não importa. Barbara é que é importante aqui. Tem certeza de que ele chegou depois de Rose e Anse? Porque isso não soa bem.

— Tenho, porque ele não estava na van da Rose. Só os dois saíram. Então, se supusermos que ele não estava ocupado matando gente, onde estaria...?

Mas isso era óbvio.

— Piper, posso usar o seu celular?

— É claro.

Julia consultou rapidamente o livreto da lista telefônica local e usou o aparelho de Piper para ligar para o restaurante.

Rose foi seca ao atender:

— Estamos fechados até segunda ordem. Um bando de escrotos prendeu o meu cozinheiro.

— Rose? É Julia Shumway.

— Ah, Julia. — Rose soou só um tiquinho menos truculenta. — O que você quer?

— Estou tentando verificar um possível álibi do Barbie. Está interessada em ajudar?

— Porra, se estou. A ideia de que Barbie assassinou aquelas pessoas é ridícula. O que você quer saber?

— Quero saber se ele estava no restaurante quando começou o saque do Food City.

— É claro. — Rose parecia perplexa. — Onde mais ele estaria logo depois do café da manhã? Quando eu e Anson saímos, ele estava limpando as chapas.

    

O sol estava se pondo, e conforme as sombras ficavam mais compridas, Claire McClatchey ficava mais nervosa. Finalmente, foi à cozinha fazer o que vinha adiando: usar o celular do marido (que ele esquecera de levar na manhã de sábado; ele vivia esquecendo o aparelho) e ligar para o dela. Estava morrendo de medo de que tocasse quatro vezes e ela ouvisse a própria voz, alegre e cantarolante, gravada antes que a cidade onde morava se tornasse uma prisão de grades invisíveis. Alô, aqui é a secretária eletrônica da Claire. Deixe a sua mensagem depois do bipe.

E o que ela diria? Joey, liga de volta se você não estiver morto?

Estendeu a mão para os botões e hesitou. Lembre-se, se ele não atender da primeira vez, é porque está de bicicleta e não pode tirar o celular da mochila antes que a secretária eletrônica atenda. Ele vai estar pronto quando você ligar pela segunda vez, porque vai saber que é você.

Mas... e se a secretária atendesse pela segunda vez? E pela terceira? Por que ela o deixara ir, para início de conversa? Devia estar maluca.

Ela fechou os olhos e viu uma imagem com clareza de pesadelo: os postes telefônicos e as vitrines das lojas da rua principal cobertos de fotos de Joe, Benny e Norrie, parecendo aqueles garotos que a gente via nos quadros de aviso das paradas do pedágio, cujas legendas sempre continham as palavras VISTO PELA ÚLTIMA VEZ EM.

Ela abriu os olhos e teclou rapidamente os números antes que perdesse a coragem. Estava preparando o recado — Ligo de novo em dez segundos e dessa vez é melhor atender, mocinho — e se espantou quando o filho atendeu, a voz alta e clara, no meio do primeiro toque.

— Mãe! Oi, mãe! — Vivo e mais do que vivo: fervilhante de empolgação, pela voz.

Cadê você?, ela tentou dizer, mas a princípio não conseguiu. Nenhuma palavra. As pernas pareciam moles e borrachosas; encostou-se na parede para não cair no chão.

— Mãe? Você taí?

Ao fundo, ela ouviu um carro passar, e Benny, de longe mas nítido, cumprimentando alguém: “Dr. Rusty! Fala, cara, e aí?” Finalmente, conseguiu engrenar a voz.

— Estou, sim. Cadê você?

— No alto do morro da praça da Cidade. Ia ligar porque tá escurecendo, pra te dizer pra não se preocupar, e o celular tocou na minha mão. Me deu o maior susto.

Ora, isso dava um freio na velha roda das broncas maternas, não dava? No alto do morro da praça da Cidade. Chegam aqui em dez minutos. Benny provavelmente querendo mais um quilo de comida. Graças a Deus.

Norrie estava falando com Joe. Soava como Conta pra ela, conta pra ela. Em seguida era a voz do filho em seu ouvido de novo, tão alto e exultante que ela teve que segurar o aparelho um pouco mais longe da orelha.

— Mãe, acho que encontramos! Tenho quase certeza! Tá no pomar no alto da Serra Negra!

— Encontraram o que, Joey?

— Não sei com certeza, não quero tirar conclusões apressadas, mas provavelmente a coisa que gera a Redoma. Só pode ser. Nós vimos uma luz piscando, como aquelas que põem nas torres de rádio pra avisar os aviões, só que no chão e roxa em vez de vermelha. A gente não chegou perto o bastante pra ver mais. Desmaiamos, todos nós. Quando acordamos, a gente estava bem, mas aí começou a ficar tar...

— Desmaiaram? — Claire quase gritou. — O que você quer dizer com desmaiaram? Volta pra casa! Volta imediatamente pra casa, tenho que examinar você!

— Tudo bem, mãe — disse Joe para acalmá-la. — Acho que é tipo... Sabe como é quando a pessoa toca na Redoma a primeira vez e leva um choquinho, e depois não leva mais? Acho que é assim. Acho que a gente desmaia a primeira vez e depois fica, assim, vacinado. Inteiraço. É o que a Norrie também acha.

— Não quero nem saber o que ela acha ou deixa de achar, mocinho! Volta pra casa agora mesmo pra eu ver se você tá bem, senão vou vacinar é o seu traseiro!

— Tudo bem, mas a gente precisa falar com aquele tal de Barbara. Ele é que pensou no contador Geiger, e caramba, ele acertou na mosca. Temos que falar com o dr. Rusty também. Ele acabou de passar por nós. Benny tentou chamar, mas ele não parou. Vamos pedir que ele e o sr. Barbara vão até aí em casa, tudo bem? Precisamos ver o que fazer agora.

— Joe... O sr. Barbara está...

Claire parou. Deveria contar ao filho que o sr. Barbara, que alguns tinham começado a chamar de coronel Barbara, fora preso, acusado de vários assassinatos?

— O quê? — perguntou Joe. — O que tem ele?

O triunfo feliz da sua voz dera lugar à ansiedade. Ela achou que ele conseguia interpretar o estado de espírito dela tão bem quanto ela interpretava o dele. E sem dúvida ele depositara muita esperança em Barbara; Benny e Norrie também, provavelmente. Não era uma notícia que pudesse esconder dele (por mais que preferisse), mas não precisava contar pelo telefone.

— Vem pra casa — disse ela. — Conversamos aqui. E, Joe, estou orgulhosíssima de você.

 

Fimmy Sirois morreu no final daquela tarde, enquanto Joe Espantalho e os amigos voavam rumo à cidade nas suas bicicletas.

Rusty ficou sentado no corredor com o braço em torno de Gina Buffalino, deixando-a chorar junto ao seu peito. Houve uma época em que ele se sentiria extremamente desconfortável sentado desse jeito com uma moça que mal tinha 17 anos, mas os tempos tinham mudado. Só era preciso olhar aquele corredor — agora iluminado por sibilantes lampiões Coleman em vez das lâmpadas fluorescentes que brilhavam calmas no teto rebaixado — para saber que os tempos tinham mudado. O seu hospital se tornara uma galeria de sombras.

— Não foi culpa sua — disse. — Nem sua, nem minha, nem dele. Ele não pediu pra ter diabetes

Apesar de que, Deus sabia, havia quem convivesse com isso por anos. Gente que se cuidava. Jimmy, semieremita que morava sozinho na estrada do Riacho de Deus, não era dessas pessoas. Quando finalmente fora ao Posto de Saúde — quinta-feira passada, foi isso —, sequer conseguira sair do carro, só Ficou buzinando até Ginny ver quem era e qual era o problema. Quando Rusty tirou as calças do velho, viu uma perna direita flácida que estava de um azul Frio e morto. Ainda que tudo tivesse dado certo com Jimmy, a lesão dos nervos provavelmente teria sido irreversível.

— Não dói nada, doutor — afirmara Jimmy a Ron Haskell pouco antes de entrar em coma. Ficara perdendo e recuperando a consciência desde então, a perna piorando, Rusty adiando a amputaçáo, muito embora soubesse que teria de ser feita para que Jimmy tivesse alguma chance.

Quando a luz acabou, o soro com antibiótico de Jimmy e dois outros pacientes continuou a pingar, mas os fluxômetros pararam, tornando impossível ajustar a dose com precisão. Pior ainda, o monitor cardíaco e o respirador de Jimmy pararam. Rusty desconectou o respirador, pôs uma máscara valvulada sobre o rosto do velho e deu a Gina um curso rápido de como usar o ventilador portátil. Ela era boa naquilo, e muito confiável, mas por volta das 6h Jimmy acabara morrendo.

Agora ela estava inconsolável.

A mocinha ergueu do peito dele o rosto riscado de lágrimas e disse:

— Será que eu fiz demais? De menos? Será que sufoquei e matei ele?

— Não. Provavelmente, Jimmy ia morrer de qualquer jeito, e assim foi poupado de uma amputação muito desagradável.

— Acho que não consigo mais — disse ela, voltando a chorar. — É assustador demais. Agora é horrível.

Rusty não sabia o que responder, mas nem precisou.

— Você vai ficar bem — disse uma voz rascante de nariz entupido. — Tem que ficar, querida, porque nós precisamos de você.

Era Ginny Tomlinson, subindo devagar o corredor na direção deles.

— Você não devia estar em pé — disse Rusty.

— Talvez não — concordou Ginny, e se sentou do outro lado de Gina com um suspiro de alívio. O nariz coberto e o esparadrapo debaixo dos olhos a deixavam parecida com um goleiro de hóquei depois de um jogo difícil. — Mas mesmo assim estou de volta ao serviço.

— Talvez amanhã... — começou Rusty

— Não, agora. — Ela pegou a mão de Gina. — E você também, querida. Na escola de enfermagem, aquela enfermeira velha e dura sempre dizia: “Você pode ir embora quando o sangue secar e o rodeio acabar.”

— E se eu cometer um erro? — Gina sussurrou.

— Todo mundo comete. O segredo é cometer o mínimo possível. E eu vou te ajudar. Você e a Harriet. Então, o que me diz?

Em dúvida, Gina fitou o rosto inchado de Ginny, a lesão acentuada por um velho par de óculos que Ginny achara em algum lugar.

— Tem certeza de que você está em condições, sra. Tomlinson?

— Você me ajuda, eu te ajudo. Ginny e Gina, as Garotas Guerreiras! — Ela ergueu o punho. Conseguindo dar um sorrisinho, Gina bateu os nós dos dedos contra os de Ginny.

— Tá tudo muito bom, tá tudo muito bem — disse Rusty —, mas se começar a se sentir tonta, cata uma cama e se deita um pouco. Ordens do dr. Rusty.

Ginny fez uma careta, já que o sorriso que os lábios tentaram puxou as asas do nariz.

— Nem preciso de cama, basta me apossar do velho sofá do Ron Haskell no saguão.

O celular de Rusty tocou. Ele acenou para as mulheres. Elas foram conversando, o braço de Gina na cintura de Ginny.

— Alô, Eric falando — disse ele.

— Aqui é a mulher do Eric — disse uma voz fraca. — Ligando pra se desculpar com Eric.

Rusty foi até um consultório vazio e fechou a porta.

— Não precisa se desculpar — disse ele... embora não tivesse certeza de que fosse verdade. — Foi o calor do momento. Soltaram ele? — Parecia-lhe uma pergunta perfeitamente sensata, em se tratando do Barbie que ele começava a conhecer.

— Prefiro não falar sobre isso por telefone. Pode vir até a casa, querido? Por favor. Nós precisamos conversar.

Rusty achou que realmente podia. Tivera um paciente em estado grave que simplificara consideravelmente a sua vida profissional ao morrer. E, embora ficasse aliviado por voltar a falar com a mulher que amava, não gostou da nova cautela que ouviu na voz dela.

— Posso — disse —, mas não por muito tempo. Ginny está em pé outra vez, mas se eu não ficar de olho ela vai exagerar. Jantar?

— É. — Ela parecia aliviada. Rusty ficou contente. — Descongelo um pouco de canja. É melhor comer o máximo possível do que está congelado enquanto ainda temos energia pra guardar sem estragar.

— Mais uma coisa. Você ainda acha que o Barbie é culpado? Não importa o que os outros pensam, você acha?

Uma longa pausa. Então ela disse:

— Conversamos quando você chegar. — E com isso, desligou. Rusty estava com a bunda encostada na mesa de exames. Ficou um instante com o celular na mão, depois apertou a tecla END. Agora não tinha certeza de muitas coisas — sentia-se um homem nadando no mar da perplexidade —, mas de uma coisa não duvidava: a mulher achava que alguém poderia star à escuta. Mas quem? O Exército? A Segurança Nacional?

Big Jim Rennie?

— Ridículo — disse Rusty à sala vazia. Depois foi procurar Twitch para lhe dizer que ia dar uma saída.

 

Twitch concordou em ficar de olho em Ginny e cuidar para que ela não exagerasse, mas pediu algo em troca: antes de sair, Rusty teria de examinar Henrietta Clavard, que se ferira na confusão no supermercado.

— O que houve com ela? — perguntou Rusty, temendo o pior. Para uma velha senhora, Henrietta era forte e estava em forma, mas 84 anos eram 84 anos.

— Ela disse, literalmente: “Uma daquelas ordinárias das irmãs Mercier quebrou a merda da minha bunda.” Ela acha que foi a Carla Mercier. Que agora é Venziano.

— Certo — disse Rusty, e depois murmurou, sem razão específica: — É pequena a cidade, filho, e pro time nós torcemos. Está mesmo?

— Está o que, sensei?

— Quebrada.

— Não sei. Ela não quer me mostrar. Ela disse, literalmente de novo: “Só vou mostrar os meus países baixos pra olhos profissionais.”

Eles caíram na gargalhada, tentando sufocar o som.

Do outro lado da porta fechada, a voz roufenha e dolorosa de uma velha disse:

— É a bunda que está quebrada, não os ouvidos. Eu escutei tudo. Rusty e Twitch riram ainda mais. Twitch chegara a um tom alarmante de vermelho.

Atrás da porta, Henrietta disse:

— Se a bunda fosse sua, parceiros, vocês estariam rindo pelo outro lado da cara.

Rusty entrou, ainda sorrindo.

— Sinto muito, sra. Clavard.

Ela estava em pé e não sentada e, para imenso alívio dele, sorria.

— Não foi nada — respondeu ela. — Alguma coisa nessa barafunda tem que ser engraçada. Que seja eu. — Ela pensou melhor. — Além disso, eu estava lá roubando junto com todo mundo. Devo ter merecido.

 

A bunda de Henrietta estava bem machucada, mas não quebrada. Isso era bom, porque uma fratura de cóccix não é motivo de risadas. Rusty lhe deu um creme para amortecer a dor, confirmou que tinha Advil em casa e a mandou embora, mancando mas satisfeita. Tão satisfeita, ao menos, quanto uma senhora da sua idade e temperamento poderia ficar.

Na segunda tentativa de fuga, cerca de 15 minutos depois do telefonema de Linda, Harriet Bigelow o deteve quase na porta do estacionamento.

— Ginny disse que você devia saber que Sammy Bushey foi embora.

— Embora pra onde? — perguntou Rusty. Isso sob o velho pressuposto da escola primária de que a única pergunta estúpida era a que a gente não fazia.

— Ninguém sabe. Ela simplesmente foi embora.

— Vai ver foi ao Rosa Mosqueta pra ver se estão servindo o jantar. Espero que sim, porque se tentar ir a pé até em casa, vai romper os pontos.

Harriet pareceu alarmada.

— Será que ela pode sangrar até a morte? Sangrar até a morte pela vuvuzela... isso seria horrível!

Rusty já ouvira muitos nomes para a vagina, mas este era novo.

— Talvez não, mas ela acabaria voltando aqui pra uma longa estada. E o bebê?

Harriet ficou chocada. Ela era uma coisinha sincera que tinha um jeito de piscar distraidamente por trás das lentes grossas dos óculos quando estava nervosa; o tipo de garota, pensou Rusty, que podia acabar com um colapso mental uns 15 anos depois de se formar com distinção em faculdades de prestígio como Smith ou Vassar.

— O bebê! Ahmeudeus, Pequeno Walter! — Ela desceu às pressas o corredor antes que Rusty a detivesse e voltou parecendo aliviada. — Ainda está aqui. Não é muito animado, mas parece ser da natureza dele.

— Então ela provavelmente volta. Náo importa quais sejam os outros problemas dela, ela ama o garoto. De um jeito meio desligado.

— Hein? — Mais piscadelas furiosas.

— Nada, nada. Eu volto assim que puder, Hari. Mantenha o plano de vôo.

— Manter que plano de voo? — Agora as pálpebras pareciam a ponto de pegar fogo.

Rusty quase disse Quero dizer, mantenha o mastro em pé, mas também não daria certo. Na terminologia de Harriet, mastro provavelmente combinava com vuvuzela.

— Continue a trabalhar — disse ele.

Harriet ficou aliviada.

— Isso eu posso fazer, dr. Rusty, sem problemas.

Rusty virou-se para ir, mas agora havia um homem ali — magro, não era feio descontando o nariz adunco, um monte de cabelo grisalho amarrado atrás num rabo de cavalo. Parecia um pouco com o falecido Timothy Leary. Rusty começava a duvidar se que conseguiria ir embora.

— Precisa de ajuda, senhor?

— Na verdade, eu estava pensando que talvez eu pudesse ajudá-lo. — Ele estendeu a mão ossuda. — Thurston Marshall. Eu e a minha parceira estávamos passando o fim de semana em Chester Pond e ficamos presos nesse sei lá o quê.

— Sinto muito — disse Rusty.

— O fato é que eu tenho alguma experiência médica. Apresentei objeção de consciência durante a bagunça do Vietnã. Pensei em ir para o Canadá, mas tinha planos... bom, não importa. Registrei a objeção de consciência e servi dois anos como ordenança num hospital de veteranos em Massachusetts.

Isso era interessante.

— O Edith Nourse Rogers?

— Esse mesmo. Talvez os meus conhecimentos estejam um pouco desatualizados, mas...

— Sr. Marshall, a vaga é sua.

 

Quando Rusty entrou na 119, ouviu uma buzina. Olhou o espelho e viu um dos caminhões de Obras Públicas da cidade preparando-se para entrar no Catherine Russell. Era difícil dizer à luz vermelha do sol poente, mas achou que Stewart Bowie estava ao volante. O que viu numa segunda olhada lhe alegrou o coração: parecia haver dois cilindros de gás na carroceria do caminhão. Mais tarde se preocuparia em descobrir de onde tinham vindo, talvez fizesse algumas perguntas, mas por enquanto ficou apenas aliviado ao saber que logo as luzes voltariam, com respiradores e monitores ligados. Talvez não a longo prazo, mas ele ligara o modo um-dia-de-cada-vez.

No alto do morro da praça da Cidade, viu Benny Drake, o seu antigo paciente skatista, e dois amigos. Um era o garoto McClatchey que passara o vídeo ao vivo do choque do míssil. Benny acenou e gritou, querendo obviamente que Rusty parasse para uma prosa. Rusty acenou de volta, mas não desacelerou. Estava ansioso para ver Linda. E também para ouvir o que ela tinha a dizer, é claro, mas principalmente para vê-la, abraçá-la e acabar de fazer as pazes.

 

Barbie precisava mijar, mas segurou. Fizera interrogatórios no Iraque e sabia como a coisa funcionava por lá. Ainda não sabia se ali seria igual, mas talvez fosse. Tudo avançava muito rápido e Big Jim mostrara uma capacidade implacável de acompanhar os tempos. Como a maioria dos demagogos talentosos, nunca subestimava a capacidade do público-alvo de aceitar absurdos.

Barbie também estava com muita sede e não se surpreendeu quando um dos novos policiais apareceu com um copo d’água numa das mãos e, na outra, uma folha de papel com uma caneta presa. É, era assim que funcionava; era assim que funcionava em Fallujah, Takrit, Hilla, Mossul e Bagdá. Parecia que também era como funcionava agora em Chester’s Mill.

O novo policial era Junior Rennie.

— Olha só — disse Junior. — Agora você não parece muito disposto a surrar os outros com os seus maravilhosos truques do Exército. — Ergueu a mão que segurava a folha de papel e esfregou a têmpora esquerda com a ponta dos dedos. O papel farfalhou.

— Você também não parece muito bem.

Junior baixou a mão.

— Estou estalando de folha.

Agora, isso foi esquisito, pensou Barbie; havia quem dissesse estalando de novo, outros diziam novo em folha, mas ninguém, até onde ele sabia, dizia estalando de folha. Provavelmente não era nada, mas...

— Tem certeza? O seu olho está todo vermelho.

— Estou ótimo, maravilhoso. E não estou aqui pra falar de mim.

Barbie, que sabia por que Junior estava ali, disse:

— É água?

Junior olhou o copo como se o tivesse esquecido.

— É. O chefe disse que você poderia estar com sede. Quinta-feira numa terça, sabe. — Ele deu uma gargalhada, como se essa incoerência fosse a coisa mais engraçada que já saíra da sua boca. — Quer?

— Quero, obrigado.

Junior estendeu o copo. Barbie estendeu a mão. Junior puxou o copo de volta. É claro. Era assim que funcionava.

— Por que você matou eles? Estou curioso, Baaarbie. Angie não quis mais dar pra você? Aí você tentou a Dodee e descobriu que ela preferia lamber racha que engolir piroca? Talvez o Coggins tenha visto o que não devia? E a Brenda desconfiou. Por que não? Ela também era policial, né? Por injeção!

Junior cantarolava riso, mas por trás do humor só havia uma sinistra vigilância. E dor. Barbie tinha bastante certeza disso.

— O quê? Não vai dizer nada?

— Já disse. Eu gostaria de um copo d’água. Estou com sede.

— É, aposto que sim. Aquele gás de pimenta é uma merda, não é? Eu soube que você serviu no Iraque. Como era por lá?

— Quente.

Junior cantarolou de novo. Um pouco da água do copo respingou no seu pulso. As mãos estavam tremendo um pouco? E vazavam lágrimas pelo canto do olho inflamado. Junior, que diabos está errado com você? Enxaqueca? Outra coisa?

— Você matou alguém?

— Só com a minha comida.

Junior sorriu, como se dissesse Boa, boa.

— Lá você não era chapeiro, Baaaarbie. Era oficial de ligação. Ao menos na descrição do seu posto. Meu pai procurou você na internet. Não tem muita coisa, mas tem um pouco. Ele acha que você era interrogador. Talvez até agente secreto. Você era tipo Jason Bourne do exército?

Barbie nada disse.

— Vamos lá, matou alguém? Ou eu devia perguntar quantos você matou? Fora os que você apagou aqui, claro.

Barbie nada disse.

— Cara, aposto que essa água tá boa. Veio da geladeira lá em cima. Geladinha!

Barbie nada disse.

— Vocês voltam cheios de problemas. Ao menos, é o que eu aprendo e vejo na TV Certo ou mentira? Verdade ou errado?

Não é enxaqueca que deixa ele assim. Ao menos, nenhuma enxaqueca que eu conheça.

— Junior, a sua cabeça dói muito?

— Não dói nada.

— Há quanto tempo você tem dor de cabeça?

Junior pôs o copo com cuidado no chão. Estava armado esta noite. Puxou a arma e a apontou para Barbie entre as grades. O cano tremia de leve.

— Quer continuar brincando de médico?

Barbie olhou a arma. Aquilo não estava no roteiro, ele tinha quase certeza; Big Jim tinha planos para ele, e provavelmente não eram agradáveis, mas não incluíam um tiro em Dale Barbara dentro de uma cela quando qualquer um lá em cima poderia descer correndo e ver que a porta da cela ainda estava trancada e a vítima, desarmada. Mas não confiava que Junior seguisse o roteiro, porque Junior estava doente.

— Não — disse ele. — Nada de médico. Sinto muito.

— Claro, você sente muito, tá bom. Sente pra baralho. — Mas Junior ficou satisfeito. Pôs a arma no coldre e pegou de novo o copo d’água. — Minha teoria é que vocês voltam todos fudidos por causa do que viram e fizeram por lá.

Você sabe, TEPT, DST, TPM, um desses. A minha teoria é que você simplesmente pirou. É por aí?

Barbie nada disse.

Junior não parecia mesmo muito interessado. Estendeu o copo entre as grades.

— Pega, pega.

Barbie estendeu a mão para o copo, achando que seria novamente tirado, mas não foi. Provou. Nem fria, nem boa de beber.

— Vai — disse Junior. — Só juntei meio saleiro, mas isso você consegue aguentar, não é? Você salga o seu pão, não salga?

Barbie só olhou para Junior.

— Você salga o seu pão? Você salga, seu filho da puta? Hein?

Barbie estendeu o copo para fora, entre as grades.

— Fica com ele, fica — disse Junior, magnânimo. — E pega isso também.

Ele passou o papel e a caneta pelas grades. Barbie os pegou e olhou o papel. Era bem o que esperava. Havia um lugar para que ele assinasse o nome embaixo.

le o estendeu de volta. Junior recuou com um passo quase de dança, sorrindo e fazendo que não com a cabeça.

— Fica com isso também. O meu pai disse que você não assinaria agora, mas pensaria no caso. E pensaria em receber um copo d’água sem sal dentro. E comida. Um grande cheeseburger no paraíso. Talvez uma Coca. Tem algumas geladas lá em cima. Você não gostaria de uma boa de uma Tota-Tola?

Barbie nada disse.

— Você salga o seu pão? Vamos lá, não seja tímido. Você salga, seu cara de bunda?

Barbie nada disse.

— Você vai ceder. Quando tiver fome e sede suficientes, vai ceder. É o que o meu pai disse, e ele costuma acertar nessas coisas. Ta-tá, Baaaarbie!

Começou a descer o corredor e se virou.

— Você nunca devia ter posto as mãos em mim, sabe. Esse foi o seu grande erro.

Enquanto Junior subia as escadas, Barbie observou que o rapaz mancava um pouquinho — ou arrastava a perna. Era isso, arrastava a perna para a esquerda e puxava o corrimão com a mão direita para compensar. Ficou pensando no que Rusty Everett acharia desses sintomas. Ficou pensando se chegaria a Ler a oportunidade de perguntar.

Barbie examinou a confissão não assinada. Gostaria de rasgá-la e espalhar os pedacinhos no chão fora da cela, mas seria uma provocação desnecessária. Agora estava entre as garras do gato, e a melhor coisa a fazer seria ficar quieto. Pôs o papel no catre com a caneta em cima. Depois pegou o copo d’água. Salgada. Cheia de sal. Conseguia sentir o cheiro. O que o levou a pensar em como Chester’s Mill estava agora... só que já não seria assim? Mesmo antes da Redoma? Big Jim e os seus amigos não tinham semeado o chão de sal havia já algum tempo? Barbie achava que sim. Também achava que, se saísse vivo daquela delegacia, seria um milagre.

Mesmo assim, nisso eles eram amadores; tinham se esquecido do sanitário. Talvez nenhum deles jamais tivesse estado num país onde até um pouco d’água de vala pareceria ótima quando se carregava 40kg de equipamento e a temperatura era de 46 graus. Barbie despejou a água salgada no canto da cela. Depois, mijou no copo e o deixou debaixo do catre. Então, ajoelhou-se diante do sanitário como um homem em oração e bebeu até sentir o estômago inchado.

 

Linda estava sentada nos degraus da frente quando Rusty estacionou. Nos fundos, Jackie Wettington empurrava as Jotinhas no balanço e as meninas insistiam para que empurrasse com mais força para balançarem mais alto.

Linda foi até ele com os braços abertos. Ela o beijou na boca, se afastou para olhá-lo e o beijou de novo, com as mãos no rosto dele e a boca aberta. Ele sentiu o toque rápido e úmido da língua dela e, imediatamente, começou a ficar duro. Ela sentiu e pressionou o corpo contra ele.

— Uau — disse ele. — Devíamos brigar mais vezes em público. E se você não parar, vamos fazer outra coisa em público.

— Vamos, mas não em público. Primeiro, preciso dizer de novo que eu sinto muito?

— Não.

Ela pegou a mão dele e o levou até os degraus.

— Ótimo. Porque nós temos muito o que conversar. Coisa séria.

Ele pôs a outra mão em cima da dela.

— Sou todo ouvidos.

Ela lhe contou o que acontecera na delegacia — Julia mandada embora depois que Andy Sanders tivera permissão de descer para ver o prisioneiro.

Contou que fora à igreja para que ela e Jackie pudessem conversar em particular com Julia, e depois a conversa no presbitério, com Piper Libby e Rommie Burpee adicionados à mistura. Quando lhe falou do início do rigor que tinham observado no corpo de Brenda Perkins, os ouvidos de Rusty se aguçaram.

— Jackie! — exclamou. — Tem certeza do rigor?

— Muita! — exclamou ela de volta.

— Ei, papai! — gritou Judy. — Eu e Jannie vamos dar a volta toda!

— Não vão, não — gritou Rusty de volta, e se levantou para mandar beijos com a palma da mão. Cada menina pegou um; na hora de pegar beijos, elas eram craques.

— A que horas você viu os corpos, Lin?

— Acho que era umas dez e meia. A confusão do supermercado já tinha acabado há muito tempo.

— E se Jackie estiver certa sobre o rigor ter só começado... mas não podemos ter certeza absoluta disso, podemos?

— Não, mas escuta. Conversei com Rose Twitchell. Barbara foi para o Rosa Mosqueta às dez para as seis. A partir daí até a descoberta dos corpos, ele tem um álibi. Então quando ele teria que ter matado ela? Às cinco? Cinco e meia? Qual a probabilidade disso, se o rigor mal começava cinco horas depois?

— Improvável, mas não impossível, O rigor mortis é afetado por muitas variáveis. A temperatura do local de armazenamento do corpo, por exemplo. Tava quente na despensa?

— Tava — admitiu ela, depois cruzou os braços sobre os seios e segurou os ombros. — Quente e fedorento.

— Entende o que eu quero dizer? Nessas circunstâncias, ele poderia ter matado Brenda em algum lugar às quatro da manhã e depois levado ela pra lá e deixado na...

— Achei que você estava do lado dele.

— Estou, e realmente não é provável, porque a despensa estaria muito mais fria às quatro da manhã. Além disso, por que ele estaria com Brenda às quatro da manhã? O que os policiais diriam? Que estavam trepando? Mesmo que mulheres mais velhas, muito mais velhas, fossem a preferência dele... três dias depois da morte do marido de um casamento de mais de 30 anos?

— Diriam que não foi consensual — disse ela friamente. — Diriam que foi estupro. O mesmo que já estão dizendo daquelas duas garotas.

— E o Coggins?

— Se querem enquadrar ele, vão pensar em alguma coisa.

— Julia vai publicar tudo isso?

— Ela vai escrever a reportagem e fazer algumas perguntas, mas não vai falar da história do rigor que estava começando. O Randolph pode ser estúpido demais pra adivinhar de onde veio a informação, mas o Rennie saberia.

— Ainda pode ser perigoso — disse Rusty. — Se amordaçarem ela, não vai poder nem ir reclamar com a União Americana de Direitos Civis.

— Acho que ela não se importa. Está danadíssima. Acha até que o saque do supermercado foi armado.

Provavelmente foi, pensou Rusty Mas o que ele disse foi:

— Droga, eu gostaria de ter visto aqueles corpos.

— Talvez ainda possa.

— Eu sei o que você está pensando, querida, mas você e Jackie podem perder o emprego. Ou pior, se for este o jeito de Big Jim se livrar de problemas incômodos.

— Não podemos simplesmente deixar isso...

— Também pode não adiantar nada. Provavelmente não vai adiantar. Se o rigor mortis de Brenda Perkins começou entre as quatro e as oito, já deve ser total agora e eu não vou conseguir descobrir muita coisa no corpo. O médico-legista do condado de Castle talvez conseguisse, mas ele está tão fora de alcance quanto a União de Direitos Civis.

—Talvez haja outra coisa. Algo no cadáver dela ou nos outros. Você sabe aquele cartaz que põem em algumas salas de autópsia? “É aqui que os mortos falam com os vivos”?

— É um tiro no escuro. Sabe o que seria melhor? Que alguém tivesse visto a Brenda viva depois que o Barbie chegou ao trabalho hoje de manhã, às dez pras seis. Isso abriria no fundo do barco deles um buraco grande demais pra taparem.

Judy e Janelle, de pijama, vieram correndo receber abraços. Rusty cumpriu o seu dever nesse aspecto.

Jackie Wettington, atrás delas, ouviu o último comentário de Rusty e disse:

— Vou perguntar por aí.

— Mas discretamente — disse ele.

— Pode apostar. E só pra registrar, eu ainda não tou totalmente convencida. As plaquinhas de identificação dele estavam na mão da Angie.

— E ele nem notou que tinham sumido desde que perdeu até a hora em que os corpos foram encontrados?

— Que corpos, pai? — perguntou Jannie.

Ele suspirou.

— É complicado, querida. Não é coisa pra menininhas.

Os olhos dela disseram que tudo bem. Enquanto isso, a irmã mais nova fora colher algumas flores tardias, mas voltou de mãos abanando.

— Estão morrendo — relatou. — Todas marrons e nojentas nas bordas.

— Provavelmente está quente demais pra elas — disse Linda, e por um instante Rusty achou que ela ia chorar. Ele aproveitou a brecha.

— Meninas, vão escovar os dentes. Peguem água na jarra em cima da pia da cozinha. Jannie, você foi nomeada enchedora de copos. Agora vão. — Ele se virou para as mulheres. Para Linda em particular. — Você tá bem?

— Sim. É só que... isso fica me atingindo de diversas maneiras. Penso: “Essas flores não tinham nada que morrer”, e aí penso “nada disso tinha que acontecer, pra começar”.

Ficaram calados um instante, pensando. Depois, Rusty falou.

— Devíamos esperar pra ver se o Randolph me pede pra examinar os corpos. Se ele pedir, dou a minha olhada sem nenhum risco de escaldar vocês duas. Caso contrário, isso já nos diz alguma coisa.

— Enquanto isso, Barbie está na cadeia — disse Linda. — Podem estar tentando arrancar dele uma confissão bem agora.

— Vamos supor que vocês usem as insígnias e me levem até a funerária? — perguntou Rusty. — Depois, vamos supor que eu ache alguma coisa que inocente o Barbie. Acha que eles vão dizer “Ah, desculpa, foi mal” e soltar ele? E depois deixar que ele assuma o comando? Porque é isso que o governo quer; é o que toda a cidade diz. Acha que o Rennie deixaria... — O celular tocou. — Essas coisas são a pior invenção que existe — disse, mas ao menos não era o hospital.

— Sr. Everett? — Uma mulher. Ele conhecia a voz, mas não conseguia recordar o nome.

— Sim, mas a menos que seja uma emergência, estou meio ocupado ag...

— Não sei se é emergência, mas é muitíssimo importante. E como o sr. Barbara... ou coronel Barbara, acho... foi preso, é com o senhor que eu tenho que falar.

— Sra. McClatchey?

— Isso, mas o senhor tem que falar com Joe. Fala com ele.

— Dr. Rusty? — A voz era insistente, quase sem fôlego.

— Oi, Joe. O que é?

— Acho que nós achamos o gerador. Agora a gente faz o quê?

 

A noite escureceu tão de repente que os três levaram um susto, e Linda agarrou o braço de Rusty. Mas era só a grande mancha de fumaça no lado oeste da Redoma. O sol caíra atrás dela.

— Onde?

— Serra Negra.

— Tinha radiação, filho? — Sabendo que teria de haver; de que outro jeito teriam achado?

— A última leitura foi +200 — disse Joe. — Abaixo da zona de perigo. O que a gente faz?

Rusty passou a mão livre pelo cabelo. Coisa demais acontecendo. Coisa demais, depressa demais. Principalmente para um remendador de cidade pequena que nunca se considerara um tomador de decisões, muito menos um líder.

— Hoje, não. Já está quase escuro. Cuidamos disso amanhã. Enquanto isso, Joe, você tem que me prometer uma coisa. Guarda isso com você. Você sabe, Benny e Norrie sabem e a sua mãe sabe. Que continue assim.

— Certo. — Joe pareceu desapontado. — Temos muito pra te contar, mas acho que dá pra esperar até amanhã. — Ele respirou fundo. — É meio assustador, não é?

— É, sim, filho — concordou Rusty. — É meio assustador.

 

O homem encarregado do destino de Mill estava sentado no escritório comendo um sanduíche de carne enlatada com pão de centeio em grandes mordidas equinas quando Junior entrou. Antes, Big Jim dera um supercochilo de 45 minutos. Agora se sentia renovado e mais uma vez pronto para a ação. A superfície da escrivaninha estava cheia de folhas de papel oficio amarelo, anotações que mais tarde ele queimaria no incinerador lá nos fundos. Melhor prevenir do que remediar.

O escritório estava iluminado com lampiões Coleman que lançavam uma luz branca e brilhante. Deus sabia que ele tinha acesso a muito gás — suficiente para iluminar a casa e fazer funcionar os aparelhos por cinquenta anos — mas, por enquanto, os Coleman eram melhores. Quando passassem na rua, ele queria que todos vissem aquele brilho branco e soubessem que o vereador Rennie não tinha vantagens especiais. Que o vereador Rennie era igualzinho a eles, só que mais confiável.

Junior mancava. O rosto estava exausto.

— Ele não confessou.

Big Jim não esperara que Barbara confessasse tão cedo e ignorou isso.

— O que você tem? Parece pálido demais.

— Outra dor de cabeça, mas agora já está passando. — Era verdade, embora tivesse estado péssima durante a sua conversa com Barbie. Aqueles olhos cinza-azulados viam ou pareciam ver demais.

Eu sei o que você fez com elas na despensa, eles diziam. Eu sei de tudo.

Ele precisara de toda a sua força de vontade para não puxar o gatilho da arma quando a sacou e escurecer para sempre aquele maldito olhar penetrante.

— Você está mancando também.

— É por causa daqueles garotos que nós achamos perto do lago Chester. Levei um deles no colo e acho que estirei um músculo.

— Tem certeza de que é só isso? Você e Thibodeau têm trabalho a fazer — Big Jim olhou o relógio — daqui a umas três horas e meia, e você não pode pôr tudo a perder. Precisa funcionar com perfeição.

— Por que não assim que escurecer?

— Porque a bruxa está preparando o jornal lá com aqueles dois duendezinhos. Freeman e o outro. O repórter esportivo que sempre malha os Wildcats.

—Tony Guay.

— Esse. Não dou a mínima se eles se ferirem, ela principalmente — o lábio superior de Big Jim se ergueu, na imitação canina de sorriso —, mas não deve haver testemunhas. Ao menos, não testemunhas oculares. O que as pessoas escutarem... é coisa bem diferente.

— O que você quer que escutem, pai?

— Tem certeza de que você está em condições? Porque eu posso mandar o Frank no seu lugar com o Carter.

— Não! Eu te ajudei com o Coggins, te ajudei com a velha hoje de manhã e mereço fazer isso!

Big Jim pareceu avaliar o filho. Depois, concordou.

— Tudo bem. Mas não seja pego nem visto.

— Fica tranquilo. O que você quer que... as testemunhas auditivas escutem?

Big Jim lhe contou. Big Jim lhe contou tudo. Era bom, pensou Junior. Ele tinha que admitir: o seu velho e querido pai não errava uma.

 

Quando Junior subiu para “descansar a perna”, Big Jim terminou o sanduíche, limpou a gordura do queixo e ligou para o celular de Stewart Bowie. Começou com a pergunta que todo mundo faz quando liga para um celular.

— Onde você está?

Stewart disse que estavam a caminho da funerária para tomar um drinque. Como sabia o que Big Jim achava de bebidas alcoólicas, disse isso com o jeito desafiador dos trabalhadores: fiz o meu serviço, agora é hora do prazer.

—Tudo bem, mas veja bem, só um. O serviço da noite ainda não acabou pra você. Nem pro Fern e pro Roger.

Stewart protestou incansavelmente.

Depois que ele terminou o que tinha a dizer, Big Jim continuou.

— Quero vocês três na Escola Fundamental às nove e meia. Vai haver alguns policiais novos lá, inclusive os garotos do Roger, aliás, e quero vocês lá também. — Teve uma inspiração. — Na verdade, vou tornar vocês sargentos da Força de Segurança Municipal de Chester’s Mill.

Stewart lembrou a Big Jim que ele e Fern tinham que cuidar de quatro novos cadáveres. Com o forte sotaque ianque, a palavra saiu como cadóvis.

— Esse pessoal da casa dos McCain pode esperar — disse Big Jim. — Estão mortos. Estamos com uma situação de emergência nas mãos por aqui, caso você não tenha percebido. Até terminar, todos temos que nos esforçar. Fazer a nossa parte. Torcer para o time. Nove e meia na Escola Fundamental. Mas tenho outra coisa pra fazerem antes. Não vai demorar. Chama o Fern.

Stewart perguntou por que Big Jim queria falar com Fern, que ele considerava — com certa justiça — o Irmão Burro.

— Não é da sua conta. Passa o telefone pra ele.

Fern disse alô. Big Jim nem retribuiu.

— Você foi dos Voluntários, não foi? Até eles se desmobilizarem?

Fern disse que realmente participara desse grupo adjunto extraoficial do Corpo de Bombeiros de Chester’s Mill, sem acrescentar que saíra um ano antes de os Voluntários se desmobilizarem (depois que os vereadores recomendaram que não lhes fossem encaminhados recursos do orçamento de 2008). Também não acrescentou que as atividades de levantamento de fundos de fim de semana dos Voluntários estavam reduzindo o tempo que ele tinha para beber.

— Quero que você vá à delegacia e pegue a chave do Corpo de Bombeiros — disse Big Jim. — Veja se os extintores costais que o Burpee usou ontem estão na garagem. Disseram que foi onde ele e a mulher de Perkins deixaram, e é bom que seja verdade.

Fern disse que achava que os extintores costais eram da loja de Burpee, o que meio que fazia com que pertencessem a Rommie. Os Voluntários tiveram alguns, mas os venderam no eBay quando o grupo se desmobilizou.

— Talvez tenham sido dele, mas não são mais — disse Big Jim. — Enquanto essa crise durar, são propriedade da cidade. Vamos fazer o mesmo com tudo que for preciso. É pro bem de todos. E se Romeo Burpee acha que vai fundar os Voluntários de novo, está muito enganado.

Fern disse, cautelosamente, que soubera que Rommie fizera um excelente trabalho ao apagar o fogo de contato na Bostinha depois do choque do míssil.

— Aquilo náo foi mais do que guimba de cigarro fumegando no cinzeiro — zombou Big Jim. Uma veia pulsava na sua têmpora e o coração batia forte demais. Sabia que comera muito depressa, de novo, mas simplesmente não conseguia evitar. Quando tinha fome, engolia o que estivesse pela frente até que acabasse. Era a sua natureza. — Qualquer um apagaria. Você apagaria. A questão é, eu sei quem votou em mim da última vez e quem não votou. Os que não votaram não ganham nenhum docinho melequento.

Fern perguntou a Big Jim o que ele, Fern, deveria fazer com os extintores.

— Só confirme se estão na garagem do Corpo de Bombeiros. Depois vai até a Escola Fundamental. Nós vamos estar na quadra.

Fern disse que Roger Killian queria falar com ele.

Big Jim ergueu os olhos, mas esperou.

Roger queria saber qual dos seus filhos iria entrar para a polícia.

Big Jim suspirou, remexeu a confusão de papéis sobre a escrivaninha e encontrou o que tinha a lista de novos agentes. A maioria estava no curso secundário e todos eram rapazes. O mais novo, Mickey Wardlaw, só tinha 15 anos, mas era grande e forte. No time de futebol americano, fora o pilar direito da linha ofensiva até ser expulso por bebedeira.

— Ricky e Randall.

Roger protestou que eram os mais velhos e os únicos em que podia confiar para as tarefas do sítio. Quem, perguntou ele, ia ajudar com as galinhas?

Big Jim fechou os olhos e pediu forças a Deus.

 

Sammy tinha plena consciência da dor baixa e recorrente na barriga — como cólica menstrual — e de pontadas muito mais fortes que vinham lá de baixo. Seria difícil não notar, porque sentia uma nova a cada passo. Ainda assim, continuou se arrastando pela 119 na direção da estrada de Motton. Continuaria, por mais que doesse. Tinha um destino em mente, e também não era o seu trailer. O que ela queria não estava no trailer, mas ela sabia onde poderia achar. Andaria até lá nem que levasse a noite inteira. Se a dor ficasse muito forte, havia cinco comprimidos de Percocet no bolso da calça e ela poderia mastigá-los Funcionavam mais depressa quando a gente mastigava. Phil lhe dissera.

Fode ela.

Vamos voltar e foder de verdade com você.

Fode essa piranha.

Você tem que aprender a ficar de boca fechada a não ser quando estiver de joelhos.

Fode ela, fode essa piranha.

Ninguém vai mesmo acreditar em você.

Mas a reverenda Libby acreditara, e vejam o que aconteceu com ela. Ombro luxado; cachorro morto.

Fode essa piranha.

Sammy achou que escutaria aquela voz de guincho de porco excitado na cabeça até morrer.

Por isso ela andava. Lá em cima, as primeiras estrelas cor-de-rosa faiscavam, as fagulhas vistas por uma vidraça suja.

Surgiram faróis, fazendo a sua sombra pular comprida na estrada à frente. Um velho caminhão chocalhante de fazenda freou e parou. — Ei, você, sobe aqui — disse o homem atrás do volante. Só que soou como Eivcêê, sob’ki, porque era Alden Dinsmore, pai do falecido Rory, que estava bêbado.

Ainda assim, Sammy subiu — se movendo com cuidados de inválido.

Alden nem notou. Havia uma lata de 480ml de Budweiser entre as suas pernas e um engradado meio vazio ao lado dele. Latas vazias rolavam e chocalhavam em volta dos pés de Sammy.

— Tá indo pra onde? — perguntou Alden. — Pra cima? Pra baixo?

Ele riu para mostrar que, bêbado ou não, sabia fazer piada.

— Só até a estrada de Motton, senhor. O senhor vai pra lá?

— Pra onde você quiser — disse Alden. — Tô só dirigindo. Dirigindo e pensando no meu garoto. Morreu sab’do.

— Sinto muito pela sua perda.

Ele fez que sim e bebeu.

— Meu pai morreu nuinvern’passad, sabia? Morreu sufocado, coitado. Enfizema. Passou o último ano de vida no oxigênio. Rory que trocava os cilindros. ‘Dorava aquele veio canalha.

— Sinto muito. — Ela já dissera isso, mas o que mais havia para dizer?

Uma lágrima se esgueirou pela bochecha dele.

— Vou pra onde você quiser, moça. Vou dirigir até a cerveja acabar. Quer c’veja?

— Quero, obrigada.

A cerveja estava quente, mas ela bebeu avidamente. Estava com muita sede. Pescou um dos Percocets do bolso e o engoliu com outro grande gole. Sentiu o barato lhe atingir a cabeça. Era legal. Pescou outro comprimido e o ofereceu a Alden.

— Quer um? Fazem a gente se sentir melhor.

Ele o pegou e o engoliu com cerveja, sem se dar ao trabalho de perguntar o que era. Ali estava a estrada de Motton. Ele viu o cruzamento tarde demais e fez uma curva aberta, derrubando a caixa de correio dos Crumley. Sammy não ligou.

— Pega outra, moça.

— Obrigada, senhor. — Ela pegou outra cerveja e abriu a lata.

— Quervê meu garoto? — Com o brilho das luzes do painel, os olhos de Alden pareciam úmidos e amarelos. Eram os olhos de um cachorro que caíra num buraco e quebrara a perna. — Quervê o meu garoto Rory?

— Quero — respondeu Sammy, — Quero, sim. Eu estava lá, sabe.

— Todo mundo tava. Luguei o pasto. Devo ter aj’dado a matar el’. Num sabia. A gente nunca sabe, né?

— É — disse Sammy.

Alden enfiou a mão no bolso da frente do macacão e tirou uma carteira velha. Tirou as duas mãos do volante para abri-la, franzindo os olhos e virando os bolsinhos de celuloide.

— Meus fil’ me deraessa ca’teira — disse. — Rory e Orrie. Orrie indatá vivo.

— Bela carteira — disse Sammy, se inclinando para segurar o volante. Fizera o mesmo para Phil quando moravam juntos. Muitas vezes. O caminhão do sr. Dinsmore foi de um lado para o outro em arcos lentos e um tanto solenes, quase pegando outra caixa de correio. Mas tudo bem; o pobre coitado estava só a 30, e a estrada de Motton estava deserta. No rádio, a WCIK tocava baixinho Sweet Hope of Heaven, com os Blind Boys of Alabama.

Alden jogou a carteira para ela.

— Taí. Meu garot’. Co’avô.

— Pode dirigir enquanto eu olho? — perguntou Sammy.

— Claro. — Alden pegou o volante de novo. O caminhão começou a andar um pouco mais depressa e um pouco mais reto, embora estivesse mais ou menos montado na linha branca.

Era uma fotografia colorida desbotada de um menino e um velho abraçados. O velho usava um boné dos Red Sox e uma máscara de oxigênio. O menino tinha um grande sorriso no rosto.

— É um menino bonito, senhor — disse Sammy.

— É, m’n’no b’nito. B’nito e espert’. — Alden soltou um zurro de dor sem lágrimas. Parecia um asno. Voou cuspe dos lábios. O caminhão mergulhou e se endireitou.

— Eu também tenho um menino bonito — disse Sammy. Ela começou a chorar. Ela lembrou que antigamente adorava torturar bonecas Bratz. Agora sabia como era estar no micro-ondas. Queimar no micro-ondas. — Vou beijar ele quando o vir. Beijar de novo.

— V’cê beija ele — disse Alden.

— Beijo, sim.

— Beija ele e abraça ele e pega ele no colo.

— Vou sim, senhor.

— Eu beijaria o meu se p’desse. Beijaria a b’chechinha cuticuti.

— Eu sei que sim, senhor.

— Mas a gente ent’rrou ele. Hoje d’m’nhá. Bem no lugar.

— Sinto muito pela sua perda.

— Toma outra cerveja.

— Obrigada. — Ela pegou outra cerveja. Estava ficando bêbada. Que delícia ficar bêbada.

Desse jeito, avançaram até que as estrelas cor-de-rosa ficaram mais brilhantes lá em cima, piscando mas não caindo: nada de chuva de meteoros hoje à noite. Passaram pelo trailer de Sammy, onde ela nunca mais iria, sem desacelerar.

Eram quase 19h45 quando Rose Twitchell bateu na vidraça da porta do Democrata. Julia, Pete e Tony estavam junto a uma mesa comprida, criando cópias do mais recente número de quatro páginas do jornal. Pete e Tony as montavam; Julia as grampeava e colocava na pilha.

Quando viu Rose, Julia acenou energicamente. Rose abriu a porta e titubeou um pouco.

— Caramba, tá quente aqui.

— Desliguei o ar-condicionado pra poupar combustível — disse Pete Freeman —, e a copiadora esquenta quando é muito usada. E hoje foi. — Mas parecia orgulhoso. Rose achou que todos pareciam orgulhosos.

— Achei que você estaria ocupadíssima no restaurante — disse Tony.

— Bem ao contrário. Daria pra matar um veado lá hoje à noite. Acho que muita gente não quer olhar a minha cara porque o meu chapeiro foi preso por assassinato. E acho que muita gente não quer mostrar a cara por causa do que aconteceu no Food City hoje de manhã.

— Vem cá e pega um exemplar — disse Julia. — Você está na capa, Rose.

No alto, em vermelho, estavam as palavras GRÁTIS EDIÇÃO DA CRISE DA REDOMA GRÁTIS. Embaixo, nas letras corpo 16 que Julia nunca usara até as duas últimas edições do Democrata:

 

SAQUE E MORTES: A CRISE SE APROFUNDA

    

A foto era da própria Rose. Estava de perfil. O megafone nos lábios. Havia um cacho de cabelo solto na testa e ela parecia lindíssima. Ao fundo, o corredor de suco e macarrão, com várias garrafas de molho de tomate quebradas no chão. A legenda dizia: Controle do saque: Rose Twitchell, dona do Rosa Mosqueta, acalma o saque ao supermercado com ajuda de Dale Barbara, que foi preso por assassinato (ver reportagem abaixo e Editorial na pág. 4).

— Meu Deus — disse Rose. — Bom, ao menos você pegou o meu melhor lado. Se é que ele existe.

— Rose — disse Tony Guay solenemente —, você está parecendo a Michelle Pfeiffer.

Rose fez um muxoxo e lhe deu uma banana. Já estava se voltando para o editorial.

 

PÂNICO AGORA, VERGONHA DEPOIS

Por Julia Shumway

 

Em Chester’s Mill, nem todos conhecem Dale Barbara — é relativamente recém-chegado à nossa cidade —, mas a maioria já comeu sua comida no Rosa Mosqueta. Quem o conhece diria, até hoje, que ele era um verdadeiro ganho para a comunidade, fazendo a sua parte como árbitro dos jogos de softball em julho e agosto, ajudando a Feira do Livro da Escola Fundamental em setembro e recolhendo lixo no Dia Municipal da Limpeza, há apenas 15 dias.

Eis que, hoje, “Barbie” (como é chamado pelos que o conhecem) foi preso por quatro assassinatos chocantes.

Assassinatos de pessoas bem conhecidas e muito amadas nesta cidade. Pessoas que, ao contrário de Dale Barbara, passaram aqui suas vidas quase inteiras.

Em circunstâncias normais, “Barbie” teria sido levado para a cadeia em Castle County, teria direito a um telefonema e lhe designariam um advogado caso não pudesse pagar. Teria sido formalmente acusado e especialistas que sabem o que fazem teriam começado a investigação.

Nada disso aconteceu, e todos sabemos por quê: por causa da Redoma que agora isolou a nossa cidade do resto do mundo. Mas o devido processo legal e o bom-senso também ficaram de fora? Por mais chocante que seja o crime, acusações sem provas não bastam para justificar o modo como Dale Barbara foi tratado nem para explicar a recusa do novo chefe de polícia a responder perguntas ou a permitir que esta repórter verificasse se Dale Barbara ainda está vivo, embora o primeiro vereador Andrew Sanders, pai de Dorothy Sanders, recebesse permissão não só de visitar esse preso sem acusação formal como de vilipendiá-lo...

    

— Uau — disse Rose, erguendo os olhos. — Vai mesmo imprimir isso?

Com um gesto, Julia indicou os exemplares empilhados.

— Já está impresso. Por quê? Alguma objeção?

— Não, mas... — Rose examinava rapidamente o resto do editorial, que era muito comprido e cada vez mais favorável a Barbie. Terminava com um apelo para que todos que tivessem informações sobre os crimes se apresentassem e a sugestão de que, quando a crise acabasse, como certamente acabaria, o comportamento dos moradores em relação a esses assassinatos seria minuciosamente examinado, não só no Maine e nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro. — Não tem medo de encrenca?

— Liberdade de expressão, Rose — disse Pete, soando bastante inseguro.

— É o que Horace Greeley faria — disse Julia com firmeza, e, ao som do seu nome, o corgi, que estava dormindo na sua cama, no canto, ergueu os olhos. Viu Rose e veio pedir um carinho, que Rose ficou contente em lhe dar.

— Tem mais do que o que está aí? — perguntou Rose, dando um tapinha no editorial.

— Um pouco — respondeu Julia. — Estou segurando. Esperando mais.

— Barbie jamais faria uma coisa dessas. Mas mesmo assim eu temo por ele.

Um dos celulares espalhados na escrivaninha tocou. Tony o pegou.

— Democrata, Guay. — Escutou e depois estendeu o telefone para Julia. — Coronel Cox. Pra você. Não parece muito satisfeito.

Cox. Julia tinha se esquecido completamente dele. Pegou o telefone.

— Srta. Shumway, preciso falar com Barbie e descobrir se houve progresso na tomada do controle administrativo da cidade.

— Acho que isso não vai acontecer tão cedo — disse Julia. — Ele está preso.

— Preso? Acusado de quê?

— Assassinato. Quatro, pra ser exata.

— Você está brincando.

— Parece que eu estou brincando, coronel?

Houve um momento de silêncio. Dava para escutar muitas vozes ao fundo. Quando Cox voltou a falar, a voz estava baixa.

— Explique.

— Não, coronel Cox, acho que não. Fiquei escrevendo sobre isso durante as últimas duas horas e, como minha mãe costumava dizer quando eu era pequena, não mastigo o mesmo repolho duas vezes. O senhor ainda está no Maine?

— Em Castle Rock. A nossa base avançada é aqui.

— Então sugiro que o senhor me encontre onde já nos encontramos. Na estrada de Motton. Não posso lhe dar um exemplar do Democrata de amanhã, embora seja gratuito, mas posso segurar junto à Redoma e o senhor pode ler.

— Me manda por e-mail.

— Não. Acho o e-mail antiético no ramo jornalístico. Nisso sou muito antiquada.

— Minha cara, a senhora é muito irritante.

— Posso ser irritante, mas não sou sua cara.

— Me diga uma coisa: isso é armação? Tem a ver com Sanders e Rennie?

— Coronel, de acordo com a sua experiência, o urso defeca na floresta?

Silêncio. Depois, ele disse:

— Encontro a senhora daqui a uma hora.

— Vou levar mais gente. A patroa de Barbie. Acho que o senhor vai se interessar pelo que ela tem a dizer.

— Ótimo.

Julia desligou.

— Quer dar um passeinho comigo até a Redoma, Rose?

— Se isso pode ajudar Barbie, claro.

— Podemos torcer, mas estou achando que aqui estamos por nossa conta. — Julia voltou a sua atenção para Pete e Tony. — Vocês dois terminam de grampear aqueles? Deixem empilhados junto à porta e tranquem tudo ao sair. Durmam bem, porque amanhã nós todos vamos virar pequenos jornaleiros. Esse jornal vai receber tratamento à moda antiga. Todas as casas da cidade. As fazendas próximas. E Eastchester, é claro. Muita gente nova por lá, teoricamente menos suscetível à magia de Big Jim.

Pete ergueu as sobrancelhas.

— O nosso sr. Rennie é o time da casa — disse Julia. — Vai subir no banquinho na assembléia de emergência quinta-feira à noite e tentar dar corda na cidade como se fosse um relógio. Mas os visitantes dão o pontapé inicial. — Ela apontou os jornais. — Esse é o nosso pontapé inicial. Se bastante gente ler, ele vai ter que responder a algumas perguntas difíceis antes de começar o discurso. Talvez a gente consiga atrapalhar um pouco o ritmo dele.

— Talvez muito, se descobrirmos quem atirou as pedras no Food City — disse Pete. — E sabe o que mais? Acho que a gente descobre. Acho que essa coisa toda foi improvisada. Vai haver um monte de pontas soltas.

— Só espero que Barbie ainda esteja vivo quando nós começarmos a puxá-las — disse Julia. Ela olhou o relógio. — Vamos, Rosie, vamos dar um passeio. Quer vir, Horace?

Horace quis.

 

— Pode me deixar aqui, senhor — disse Sammy. Era uma casa agradável, estilo rancho, em Eastchester. Embora a casa estivesse às escuras, o gramado estava iluminado, porque agora estavam perto da Redoma, onde holofotes tinham sido instalados no limite entre Chester’s Mill e Harlow.

— Quer outra cerveja pra viagem, moça?

— Não, senhor, pra mim é o fim da viagem. — Embora não fosse. Ela ainda teria de voltar à cidade. No brilho amarelo lançado pela luz da Redoma, Alden Dinsmore parecia ter 85 em vez de 45 anos. Ela nunca vira um rosto tão triste.., a não ser talvez o dela, no espelho do quarto do hospital, antes de partir nesta viagem. Ela se inclinou e beijou o rosto dele. A barba por fazer lhe espetou os lábios. Ele pôs a mão no lugar e chegou a sorrir um pouco.

— O senhor agora devia ir pra casa. Tem que pensar na sua esposa. E no seu outro filho pra cuidar.

— Acho qu’ocê tá certa.

— Estou certa.

— Você vai ficar bem?

— Vou, sim, senhor. — Ela desceu e depois se virou de novo para ele. — E o senhor?

— Vou tentar — respondeu ele.

Sammy bateu a porta e ficou na entrada da casa, vendo-o dar meia-volta. Ele caiu na vala, mas estava seca e ele conseguiu sair. Seguiu na direção da 119, meio em zigue-zague. Depois as luzes de ré se endireitaram numa linha mais ou menos reta. Estava de novo no meio da estrada — fodendo a linha branca, como diria Phil —, mas ela achou que daria tudo certo. Já eram quase oito e meia agora, totalmente escuro, e ela não achava que ele encontraria alguém.

Quando as luzes de ré piscaram e sumiram, ela foi até a casa escura. Não era grande coisa se comparada a algumas casas velhas e boas no morro da praça da Cidade, mas era melhor do que tudo o que ela já tivera. Era bonita por dentro, também. Já fora até lá com Phil, na época em que ele só vendia uns baseados e cozinhava um pouco de meth nos fundos do trailer para uso pessoal. Antes que começasse a ter aquelas ideias estranhas sobre Jesus e a frequentar aquele lixo de igreja onde acreditavam que todo mundo ia para o inferno, menos eles. Foi na religião que os problemas de Phil começaram. Ela o levou a Coggins, e Coggins ou alguém o transformou no Chef.

As pessoas que tinham morado ali não eram doidões; doidões não conseguiriam manter uma casa dessas por muito tempo, fumariam as prestações. Mas Jack e Myra Evans gostavam de um bequezinho de vez em quando, e Phil Bushey tinha o máximo prazer em fornecer. Eram boa gente, e Phil os tratara bem. Naquela época, ele ainda era capaz de tratar bem os outros.

Myra lhes serviu refresco de café. Na época, Sammy estava grávida de uns sete meses do Pequeno Walter, o maior barrigão, e Myra lhe perguntou se ela preferia menino ou menina. Sem olhá-la de cima nem um pouquinho. Jack levara Phil até o pequeno escritório-solário para pagá-lo e Phil a chamara.

— Ei, querida, você vai adorar isso!

Tudo parecia ter sido há muito tempo.

Ela experimentou a porta da frente. Estava trancada. Ela pegou uma das pedras decorativas que contornavam o canteiro de flores de Myra e ficou em frente à janela panorâmica, pesando-a na mão. Depois de pensar um pouco, foi até os fundos em vez de quebrá-la. Pular a janela seria difícil no seu estado atual.

E mesmo que fosse capaz (e cuidadosa), poderia se cortar a ponto de interferir com o resto dos seus planos para a noite.

Além disso, era uma casa bonita. Não queria vandalizá-la se não precisasse.

E não precisou. O corpo de Jack fora levado, a cidade ainda funcionava bem o bastante para isso, mas ninguém pensara em trancar a porta dos fundos. Sammy entrou direto. Não havia gerador e estava mais escuro do que no cu do gambá, mas havia uma caixa de fósforos no fogão, e o primeiro que ela acendeu lhe mostrou uma lanterna na mesa da cozinha. Serviu muito bem. A luz iluminou o que parecia uma mancha de sangue no chão. Ela a afastou dali depressa e correu até o solário-escritório de Jack Evans. Ficava ao lado da sala de estar, um cubículo tão pequeno que na verdade só havia espaço para uma escrivaninha e um armário com portas de vidro.

Ela passou o facho da lanterna pela escrivaninha e depois o ergueu para que se refletisse nos olhos vidrados do troféu mais precioso de Jack: a cabeça de um alce que ele matara no TR-90 três anos antes. Fora a cabeça de alce que Phil a chamara para ver.

— Tirei a sorte grande naquele ano — contara Jack. — E derrubei ele com aquilo. — Apontou a espingarda de caça no armário. Era uma coisa com mira, de aparência assustadora.

Myra chegara à porta, gelo chacoalhando no copo de chá gelado, parecendo sofisticada, bonita, divertida — o tipo de mulher que Sammy sabia muito bem que ela jamais seria.

— Custou uma fortuna, mas eu deixei ele comprar depois que prometeu me levar pra passar uma semana nas Bermudas em dezembro que vem.

— Bermudas — disse Sammy agora, olhando a cabeça de alce. — Mas ela nunca chegou a ir. Que coisa mais triste.

Phil, pondo o envelope com o dinheiro no bolso de trás das calças, dissera:

— Uma espingarda fantástica, mas não serve muito pra proteção doméstica.

— Cuidei disso também — respondera Jack, e embora não mostrasse a Phil exatamente como, dera um tapinha significativo no tampo da escrivaninha. — Arranjei umas portáteis ótimas.

Phil concordara com a mesma ênfase. Sammy e Myra trocaram um olhar de meninos, sempre meninos em perfeita harmonia. Ela ainda se lembrava de como aquele olhar a fizera se sentir bem, se sentir incluída, e supôs que era parte da razão de ter ido até ali em vez de outro lugar, outro lugar mais perto da cidade.

Parou para mastigar outro Percocet e depois começou a abrir as gavetas da escrivaninha. Estavam destrancadas, assim como a caixa de madeira na terceira que abriu. Lá dentro estava a arma extra do falecido Jack Evans: uma pistola automática Springfield XD .45. Ela a pegou e, depois de cutucar um pouco, ejetou o pente. Estava cheio, e havia outro de reserva na gaveta. Ela pegou também. Depois, foi até a cozinha procurar uma sacola para levar a arma. E as chaves, é claro. Do que quer que estivesse estacionado na garagem dos falecidos Jack e Myra. Não tinha a intenção de voltar a pé para a cidade.

 

Julia e Rose discutiam o que o futuro poderia reservar para a cidade quando o seu presente quase terminou. Teria terminado se tivessem encontrado o velho caminhão da roça em Esty Bend, a cerca de 2,5 quilômetros do seu destino. Mas Julia chegou à curva a tempo de ver que o caminhão estava na pista dela, e vindo de frente na sua direção.

Sem pensar, virou com força o volante do Prius para a esquerda, indo para a outra pista, e os dois veículos escaparam um do outro por centímetros. Horace, que estava sentado no banco de trás com a costumeira expressão prazerosa de legal-passeio, caiu no chão com um latidinho surpreso. Foi o único som. Nenhuma das mulheres berrou, sequer gritou. Foi rápido demais para isso. A morte ou ferimentos graves passaram por elas num instante e se foram.

Julia voltou para a sua pista, parou no acostamento e desligou o motor do Prius. Olhou para Rose. Esta devolveu o olhar, de olhos arregalados e boca aberta. Atrás, Horace voltou ao banco e deu um único latido, como se perguntasse por que a demora. Com o som, as duas riram e Rose começou a dar tapinhas no peito, acima da prateleira substancial dos peitos.

— Meu coração, meu coração — disse.

— É — respondeu Julia. — O meu também. Viu como foi por pouco?

Rose riu de novo, abalada.

— Tá brincando? Querida, se eu estivesse com o braço pra fora da janela, aquele filhodaputa teria me amputado o cotovelo.

Julia balançou a cabeça.

— Bêbado, provavelmente.

— Bêbado com certeza — disse Rose, e fez um muxoxo.

Está bem pra continuar?

— Você está? — perguntou Rose.

— Estou — respondeu Julia. — E você, Horace?

Horace latiu que já nascera bem.

— Um quase acidente leva embora o azar — disse Rose. — E o que o vovô Twitchell costumava afirmar.

— Espero que ele esteja certo — disse Julia, dando a partida de novo. Observou com atenção se vinham mais faróis, mas a próxima luz que viram foi dos holofotes instalados em Harlow, do lado de fora da Redoma. Não viram Sammy Bushey. Ela as viu; estava na frente da garagem dos Evans, com as chaves do Malibu dos Evans na mão. Depois que as duas passaram, levantou a porta da garagem (teve de fazer isso manualmente, e doeu bastante) e entrou atrás do volante.

Havia um beco entre a Loja de Departamentos Burpee e o Posto & Mercearia Mill que ligava a rua principal à rua Oeste. Era usado principalmente por caminhões de entrega. Às 21h15 daquela noite, Junior Rennie e Carter Thibodeau subiram o beco numa escuridão quase perfeita. Numa das mãos, Carter levava uma lata de 20 litros, vermelha com uma faixa diagonal do lado. GASOLINA, dizia a palavra na faixa. Na outra mão, segurava um megafone a pilha. Esse tinha sido branco, mas Carter enrolara o aparelho com fita isolante preta para que não se destacasse caso alguém olhasse na direção deles antes que conseguissem sumir no beco.

Junior usava mochila. A cabeça não doía mais e a perna praticamente parara de mancar. Tinha certeza de que o corpo estava finalmente vencendo o que quer que o fodera. Talvez um resto de algum tipo de vírus. Dava para pegar todo tipo de merda na faculdade, e ser expulso por surrar aquele moleque provavelmente fora uma bênção disfarçada.

Do fundo do beco, viam bem o Democrata. A luz se derramava pela calçada vazia, e dava para ver Freeman e Guay se movendo lá dentro, carregando pilhas de papel até a porta e deixando-as ali. A velha estrutura de madeira que abrigava o jornal e o apartamento de Julia ficava entre a Drogaria Sanders e a livraria, mas separada das duas — por uma calçada pavimentada no lado da livraria e por um beco como aquele onde ele e Carter agora se escondiam no lado da drogaria. Era uma noite sem vento, e Junior achou que, se o pai mobilizasse os soldados com rapidez suficiente, não haveria efeitos colaterais. Não que ele se importasse. Se todo o lado leste da rua principal pegasse fogo, seria ótimo para ele.

Só mais problemas para Dale Barbara. Ainda sentia aqueles olhos frios e avaliadores sobre ele. Não era direito ser olhado daquela forma, ainda mais quando o homem que olhava estava atrás das grades. Maldito Baaarbie.

— Eu devia ter atirado nele — murmurou Junior.

— Hein? — perguntou Carter.

— Nada. — Ele limpou a testa. — Calor.

— É. Frankie diz que, se isso continuar, nós vamos acabar ressecados como ameixas. Quando é que nós temos que agir?

Junior deu de ombros, mal-humorado. O pai lhe dissera, mas ele não conseguia se lembrar direito. Dez horas, talvez. Mas de que importava? Que aqueles dois lá queimassem. E se a piranha do jornal estivesse lá em cima — talvez relaxando com o seu consolo favorito depois de um dia duro — que queimasse também. Mais problemas para Baaarbie.

— Vamos agora — disse.

— Tem certeza, cara?

— Está vendo alguém na rua?

Carter olhou. A rua principal estava deserta e quase toda escura. Os geradores atrás da redação do jornal e da drogaria eram os únicos que conseguia escutar. Deu de ombros.

— Tudo bem. Por que não?

Junior soltou as fivelas da mochila e abriu a tampa. No alto, havia dois pares de luvas leves. Deu um par a Carter e calçou o outro. Embaixo havia um pacote enrolado numa toalha de banho. Abriu-o e pôs quatro garrafas de vinho vazias no asfalto remendado. No fundo da mochila, havia um funil de lata. Junior o pôs numa das garrafas e estendeu a mão para a gasolina.

— Melhor eu fazer — disse Carter. — As suas mãos estão tremendo.

Junior as olhou com surpresa. Não se sentia trêmulo, mas elas estavam tremendo mesmo.

— Eu não estou com medo, se é o que você está pensando.

— Nunca disse que você estava. Não é coisa da cabeça. Qualquer um consegue ver. Você tem que procurar o Everett, porque está com alguma coisa e agora na cidade ele é o que chega mais perto de um médico.

— Estou b...

— Cala a boca antes que alguém te escute. Pega a merda da toalha enquanto eu faço isso.

Junior tirou a arma do coldre e deu um tiro no olho de Carter. A cabeça dele explodiu, sangue e cérebro por toda parte. E Junior se inclinou sobre ele, atirando de novo, de novo, de n...

— Junes?

Junior sacudiu a cabeça para afastar a visão — tão viva que fora alucinatória — e percebeu que a mão realmente agarrara a coronha da pistola. Talvez aquele vírus ainda não tivesse saído do seu organismo.

E talvez não fosse um vírus, afinal de contas.

Então, o quê? O quê?

O cheiro fragrante de gasolina atingiu a sua narina com força suficiente para fazer os olhos arderem. Carter começara a encher a primeira garrafa. Glug glug glug, lá se foi a lata de gasolina. Junior abriu o zíper do bolso lateral da mochila e tirou as tesouras de costura da mãe. Usou-as para cortar quatro tiras da toalha. Enfiou uma dentro da primeira garrafa, depois a puxou para fora e enfiou lá dentro a outra ponta, deixando pendurado um pedaço de pano encharcado de gasolina. Repetiu o processo com as outras.

Para isso as mãos não tremiam demais.

 

O coronel Cox de Barbie mudara desde a última vez que Julia o vira. Fizera a barba para ir até lá às 21h30 e o cabelo estava penteado, mas a calça cáqui estava amassada e hoje a jaqueta impermeável parecia larga, como se tivesse emagrecido. Estava diante de algumas manchas de tinta spray que restaram da experiência malsucedida com o ácido, e franzia a testa para aquela forma de parêntese como se achasse que conseguiria atravessar caso se concentrasse o suficiente.

Feche os olhos e bata os calcanhares três vezes, pensou Julia. Porque não há lugar tão bom quanto a Redoma.

Ela apresentou Rose a Cox e Cox a Rose. Durante o rápido olá-como-vai dos dois, Julia olhou em volta, não gostando do que via. Os holofotes ainda estavam no lugar, brilhando para o céu como se assinalassem uma faiscante estreia em Hollywood, e havia um gerador ronronante para alimentá-los, mas os caminhões tinham sumido, bem como a grande barraca verde do quartel-general que fora armada uns 40 ou 50 metros estrada abaixo. Um pedaço de capim amassado marcava o lugar onde ficara. Havia dois soldados com Cox, mas tinham o ar de ainda-não-estou-pronto-para-o-horário-nobre que ela associava a assessores e adidos. Provavelmente as sentinelas não tinham ido embora, mas foram afastadas, criando um perímetro além da distância da voz de qualquer pobre coitado do lado de Mill que aparecesse e perguntasse o que estava acontecendo.

Pergunte agora, implore depois, pensou Julia.

— Me explica tudo, srta. Shumway — disse Cox.

— Primeiro, me responde uma pergunta.

Ele ergueu os olhos (ela achou que lhe daria um tapa por isso, se pudesse chegar até ele; os seus nervos ainda estavam abalados depois do quase acidente na viagem até ali). Mas ele lhe disse que perguntasse.

— Nós fomos abandonados?

— Claro que não. — Ele respondeu prontamente, mas não a olhou nos olhos. Ela achou que era um sinal pior do que o jeito estranhamente vazio que via agora no lado de fora da Redoma — como se tivesse havido ali um circo que já tinha ido embora.

— Lê isso — disse ela, e encostou a primeira página do jornal do dia seguinte na superfície invisível da Redoma, como uma mulher colando um cartaz de liquidação na vitrine de uma loja de departamentos. Houve um leve tamborilar fugidio nos seus dedos, como o tipo de choque de estática que levamos ao tocar em metal numa manhã fria de inverno, quando o ar está seco. Depois disso, nada.

Ele leu o jornal todo, dizendo a ela quando virar as páginas. Levou dez minutos. Quando terminou, ela disse:

— Como o senhor provavelmente percebeu, o espaço dos anunciantes se reduziu muito, mas eu me orgulho porque a qualidade do texto aumentou. Sacanagem parece pôr pra fora o que eu tenho de melhor.

— Srta. Shumway...

— Ah, por que não me chama de Julia? Já somos praticamente velhos amigos.

— Tá bem. Você é Julia e eu sou JC.

— Vou tentar não confundir você com aquele que andou sobre as águas.

— Você acredita que esse tal de Rennie está se transformando em ditador? Uma espécie de Manuel Noriega do nordeste?

— É a progressão rumo ao Pol Pot que me preocupa.

— Acha possível?

— Há dois dias eu riria da ideia; ele é um vendedor de carros usados quando não preside reuniões de vereadores. Mas há dois dias nós não havíamos tido um saque de supermercado. Nem sabíamos desses assassinatos.

— Barbie, não — disse Rose, sacudindo a cabeça com cansaço teimoso. — Nunca.

Cox não deu atenção a isso — não porque ignorasse Rose, sentiu Julia, mas porque achava a ideia ridícula demais para valer atenção. Isso melhorou a imagem que ela fazia dele, ao menos um pouco.

— Você acha que o Rennie cometeu os assassinatos, Julia?

— Andei pensando nisso. Tudo o que ele fez desde que a Redoma apareceu — de proibir a venda de bebida alcoólica a nomear chefe de polícia um rematado imbecil — foi político, visando aumentar o poder dele.

— Você está dizendo que assassinato não faz parte do repertório dele?

— Não necessariamente. Quando a mulher dele morreu, houve boatos de que ele havia dado uma ajudinha. Não digo que fossem verdadeiros, mas o fato de surgirem boatos desse tipo diz alguma coisa sobre como o povo vê o homem em questão.

Cox grunhiu em concordância.

— Mas por mais que eu tente não consigo ver o que haveria de político em assassinar e abusar sexualmente de duas adolescentes.

— Barbie nunca faria — disse Rose de novo.

— O mesmo com Coggins, embora aquele ministério dele, ainda mais a estação de rádio, seja meio suspeito, com recursos demais. Mas Brenda Perkins? Essa pode ter sido política.

— E você não pode mandar os fuzileiros navais detê-lo, não é? — perguntou Rose. — Vocês aí só podem observar. Como garotos olhando um aquário onde o peixe maior fica com toda a comida e depois começa a comer os pequenos.

— Eu posso derrubar as ligações de celular — meditou Cox. — A internet também. Isso eu posso fazer.

— A polícia tem walkie-talkies — disse Julia. — Ele vai passar a adotá-los. E na assembléia de quinta-feira à noite, quando o povo se queixar da perda dos vínculos com o mundo exterior, vai pôr a culpa em você.

— Estamos planejando uma entrevista coletiva na sexta-feira. Eu posso cancelar.

Julia gelou com a idéia.

— Nem ouse. Aí ele não teria que se explicar para o mundo exterior.

— Além disso — disse Rose —, se o senhor derrubar os telefones e a internet, ninguém, vai poder dizer ao senhor nem a mais ninguém o que ele está fazendo.

Cox ficou em silêncio um instante, olhando o chão. Depois, ergueu a cabeça.

— E o gerador hipotético que está mantendo a Redoma? Alguma sorte?

Julia não tinha certeza de que queria dizer a Cox que tinham encarregado da procura um garoto de escola. No fim das contas, nem precisou, porque foi então que o apito de incêndio da cidade começou a tocar.

 

Pete Freeman largou a última pilha de papéis junto à porta. Depois se endireitou, pôs as mãos na nuca e alongou a espinha. Tony Guay ouviu o estalo do outro lado da sala.

— Isso aí parece ter doído.

— Nada, é ótimo.

— A minha mulher já está dormindo a essa hora — disse Tony —, e eu tenho uma garrafa escondida na garagem. Quer tomar um trago no caminho de casa?

— Não, acho que eu só vou... — começou Pete, e foi então que a primeira garrafa quebrou a janela. Ele viu o pavio em chamas com o canto do olho e deu um passo atrás. Um só, mas o salvou de ficar gravemente queimado, talvez até de cozinhar vivo.

A janela e a garrafa se estilhaçaram. A gasolina se incendiou e criou uma chama brilhante em formato de arraia. Pete se abaixou e virou o corpo ao mesmo tempo. A arraia de fogo voou por ele, inflamando uma manga da camisa antes de cair no tapete diante da mesa de Julia.

— Que mer.. — começou Tony, e então outra garrafa veio em arco pelo buraco. Esta bateu no tampo da mesa de Julia e rolou por ela, espalhando fogo entre os papéis ali jogados e pingando mais fogo pela frente. O cheiro de gasolina queimada era quente e forte.

Pete correu para o bebedor no canto, batendo contra o corpo a manga da camisa. Meio sem jeito, ergueu o garrafão d’água contra o corpo e segurou a camisa em chamas (o braço por baixo agora ardendo como se queimado de sol) debaixo do gargalo que cuspia.

Outro coquetel molotov veio voando da noite. Errou o alvo, se estilhaçou na calçada e acendeu uma fogueirinha no concreto. Tentáculos de gasolina em chamas correram para a sarjeta e foram embora.

— Joga água no carpete! — berrou Tony. — Joga antes que tudo pegue fogo!

Pete só o olhou, ofegante e estonteado. A água do garrafão do bebedor continuou a se derramar numa parte do carpete que, infelizmente, não precisava se molhar.

Embora as suas reportagens sempre fossem estritamente sobre esporte juvenil estudantil, Tony Guay fora atleta poliesportivo no secundário. Dez anos depois, os reflexos ainda estavam praticamente intatos. Tomou o garrafão de Pete e o segurou primeiro sobre a mesa de Julia e depois sobre o fogo do carpete. O fogo já estava se espalhando, mas talvez... se fosse rápido... e se houvesse mais um ou dois garrafões no corredor que dava para o depósito de material...

— Mais!— gritou para Pete, que olhava boquiaberto os restos fumegantes da manga da camisa. — No corredor dos findos!

Por um instante, Pete não entendeu. Então percebeu e disparou para o corredor. Tony deu a volta na mesa de Julia, deixando os últimos litros d’água caírem nas chamas, tentando abrir um espaço ali.

Nisso o último coquetel molotov veio voando do escuro, e foi ele que realmente causou danos. Caiu diretamente sobre as pilhas de jornais que os homens tinham colocado perto da porta da frente. A gasolina em chamas correu pelas tábuas do assoalho na frente da redação e ardeu. Vista através das labaredas, a rua principal era uma miragem ondulante. Do outro lado da miragem, na calçada oposta, Tony conseguiu ver duas figuras indistintas. O calor crescente fazia parecer que estavam dançando.

— LIBERTEM DALE BARBARA OU ISSO VAI SER SÓ O COMEÇO! — mugiu uma voz amplificada. — SOMOS MUITOS, E VAMOS PÔR FOGO NESSA MALDITA CIDADE INTEIRA! LIBERTEM DALE BARBARA OU PAGUEM O PREÇO!

Tony olhou para baixo e viu um riacho quente de fogo correr entre os seus pés. Não tinha mais água para apagá-lo. Logo acabaria de comer o carpete e provaria a madeira velha e seca por baixo. Enquanto isso, toda a frente da redação estava em chamas.

Tony largou o garrafão vazio e recuou. O calor já era intenso; conseguia sentir que lhe esticava a pele. Se não fossem os malditos jornais, eu poderia...

Mas era tarde demais para poderias. Virou-se e viu Pete junto à porta dos fundos com outro garrafão de Poland Spring nos braços. A maior parte da manga carbonizada da camisa caíra. A pele embaixo estava muito vermelha.

— Tarde demais! — berrou Tony. Ele se pôs a boa distância da mesa de Julia, que agora era um pilar de fogo indo até o teto, e ergueu o braço para proteger o rosto do calor. — Tarde demais, sai pelos fundos!

Pete Freeman não precisou de nova ordem. Jogou o garrafão no fogo cada vez maior e correu.

 

Carrie Carver raramente tinha algo a ver com o Posto & Mercearia Mill; embora a lojinha tivesse permitido a ela e ao marido uma vida bastante boa no decorrer dos anos, ela se considerava Acima Disso Tudo. Mas, quando Johnny sugeriu que fossem até lá na van e levassem os enlatados que restavam para casa — “para guardar em segurança”, foi o jeito delicado como ele explicou —, ela concordou na mesma hora. E, embora em geral não fosse muito trabalhadora (assistir a programas de tribunal era mais adequado à sua velocidade), ela se voluntariou para ajudar. Não estivera no Food City, mas quando foi até lá mais tarde para inspecionar os danos com a amiga Leah Anderson, as vitrines estilhaçadas e o sangue ainda na calçada a deixaram muito assustada. Essas coisas a deixaram com medo do futuro.

Johnny carregou para fora as caixas de latas de sopa, picadinho, feijão e molho; Carrie as colocou na carroceria do Dodge Ram. Estavam na metade do serviço quando o incêndio começou na rua. Ambos ouviram a voz amplificada. Carrie achou ter visto duas ou três pessoas correndo pelo beco ao lado do Burpee, mas não tinha certeza. Mais tarde, ela teria certeza e aumentaria o número de pessoas sombrias para ao menos quatro. Talvez cinco.

— O que isso significa? — perguntou ela. — Querido, o que isso significa?

— Que o maldito canalha assassino não está sozinho — disse Johnny. — Quer dizer que ele tem uma quadrilha.

A mão de Carrie estava no seu braço, e agora ela lhe enfiou as unhas. Johnny soltou o braço e correu para a delegacia, berrando fogo a plenos pulmões. Em vez de ir atrás, Carrie Carver continuou carregando a picape. Estava com mais medo do futuro do que nunca.

    

Além de Roger Killian e dos irmãos Bowie, havia dez novos policiais da nova Força de Segurança Municipal de Chester’s Mill sentados nas arquibancadas da quadra da escola fundamental, e Big Jim mal começara o seu discurso sobre a responsabilidade deles quando o apito de incêndio disparou. O moleque se adiantou, pensou. Não posso confiar nele nem pra salvar a minha alma. Nunca pude, mas agora ele está muito pior.

— Bom, rapazes — disse ele, voltando a atenção especialmente para o jovem Mickey Wardlaw, que brutamontes! — Eu tinha muito mais a dizer, mas parece que nós vamos ter um pouco mais de emoção. Fern Bowie, você sabe se temos extintores costais na garagem do Corpo de Bombeiros?

Fern disse que dera uma olhada lá mais cedo, só para ver de que tipo de equipamento dispunham, e que havia quase uma dúzia de extintores costais. Todos cheios d’água, também, o que era ótimo.

Big Jim, para quem o sarcasmo deveria ser reservado aos que tinham inteligência suficiente para entender, disse que era o bom Deus cuidando deles. Disse também que, se não fosse alarme falso, ele assumiria o comando, com Stewart Bowie como vice.

Pronto, sua bruxa intrometida, pensou enquanto os novos policiais, ansiosos e de olhos brilhantes, se levantavam das arquibancadas. Vamos ver agora se você gosta de se meter no que é meu.

 

— Aonde você vai? — perguntou Carter. Ele levara o carro, com os faróis apagados, até onde a rua Oeste entroncava na rodovia 117. O prédio que havia ali era um posto Texaco que fechara em 2007. Ficava perto da cidade, mas dava boa cobertura, o que o tornava conveniente. No caminho por onde tinham vindo, o apito de incêndio buzinava enlouquecido e as primeiras luzes do fogo, mais rosadas do que alaranjadas subiam no céu.

— Hein? — Junior olhava o brilho cada vez mais forte. Aquilo lhe dava tesão. Dava vontade de ainda ter uma namorada.

— Perguntei aonde você vai. O seu pai disse pra arranjar um álibi.

— Deixei a Unidade 2 atrás do correio — disse Junior, tirando os olhos do fogo com relutância. — Eu e Freddy Denton juntos. E ele vai dizer que estávamos juntos. A noite inteira. Posso ir daqui. Talvez voltar pela rua Oeste. Dar uma olhada pra ver como está indo. — Ele deu uma risadinha aguda, quase uma risadinha de menina, que fez Carter lhe lançar um olhar estranho.

— Não dá uma olhada muito demorada. Vivem prendendo incendiários porque voltam pra olhar o fogo. Vi isso no Mais procurados da América.

— Só que quem vai levar a culpa dessa merda é o Baaarbie — disse Junior. — E você? Pra onde vai?

— Pra casa. A mamãe vai dizer que fiquei lá a noite toda. Ela tem que trocar o curativo do meu ombro; essa maldita mordida dói como o diabo. Tomar uma aspirina. Depois vou ajudar a apagar o incêndio.

— Eles têm coisa mais forte do que aspirina no Posto de Saúde e no hospital. Na drogaria também. Precisamos cuidar dessa merda.

— Sem dúvida — disse Carter.

— Ou... você fuma? Acho que posso arranjar um pouco.

— Meth? Nunca mexi com isso. Mas até que gostaria de um Oxy.

— Oxy! — exclamou Junior. Por que nunca pensara nisso? Provavelmente cuidaria muito melhor da dor de cabeça do que Zomig e Imitrix. — É isso aí, cara! Falou e disse!

Ele ergueu o punho. Carter bateu o seu no dele, mas não tinha a mínima intenção de ficar doidão com Junior. Agora Junior estava esquisito.

— É melhor ir andando, Junes.

— Estou indo. — Junior abriu a porta e saiu andando, ainda mancando um pouco.

Carter se surpreendeu ao ver como ficara aliviado quando Junior foi embora.

 

Barbie acordou com o som do apito de incêndio e viu Melvin Searles em pé na frente da cela. O zíper do rapaz estava aberto e ele segurava na mão o pinto considerável. Quando viu que tinha a atenção de Barbie, começou a mijar. A meta claramente era atingir o catre. Não conseguiu, e se contentou com um S respingado no concreto.

— Vai, Barbie, bebe — disse. — Você deve estar com sede. É meio salgado, mas e daí?

— O que é que está queimando?

— Como se você não soubesse — disse Mel, sorrindo. Ainda estava pálido, devia ter perdido um bom volume de sangue, mas a atadura em volta da cabeça estava firme e sem manchas.

— Finja que eu não sei.

— Os seus amiguinhos queimaram o jornal — disse Mel, e agora o sorriso mostrou os dentes. Barbie percebeu que o garoto estava furioso. Assustado, também. — Tentando nos amedrontar pra soltarmos você. Só que nós não... temos... medo!

— Por que eu queimaria o jornal? Por que não a Câmara de Vereadores? E quem seriam esses amiguinhos meus?

Mel enfiava o pinto de volta nas calças.

— Amanhã você não vai estar com sede, Barbie. Não se preocupa com isso. Temos um balde d’água cheinho preparado pra você, e uma esponja junto.

Barbie ficou calado.

— Viu aquela merda sobre afogamento simulado no Iraque? — Mel fez que sim, como se soubesse que Barbie vira. — Agora você vai experimentar em primeira mão. — Apontou o dedo entre as grades. — Vamos descobrir quem são os seus confederados, seu bosta. E vamos descobrir o que você fez pra isolar essa cidade. Aquela merda de afogamento simulado? Aquilo ninguém aguenta.

Ele começou a ir embora e se virou.

— E nada de água doce, também. Salgada. Sempre. Pensa só.

Mel saiu, descendo o corredor do porão com a cabeça ferida abaixada. Barbie sentou-se no catre, olhou a cobra de urina de Mel que secava no chão e escutou o apito de incêndio. Pensou na garota da picape. A loura que quase lhe deu carona e depois mudou de ideia. Fechou os olhos.

 

CINZAS

Rusty estava parado no retorno diante do hospital, observando as chamas subirem em algum ponto da rua principal, quando o celular preso ao cinto tocou a sua musiquinha. Twitch e Gina estavam com ele, Gina segurando o braço de Twitch como se buscasse proteção. Ginny Tomlinson e Harriet Bigelow estavam ambas dormindo na sala de pessoal. Thurston Marshall, o velho que se voluntariara, fazia a ronda da medicação. Surpreendentemente, ele era ótimo. As luzes e o equipamento tinham voltado a funcionar e, por enquanto, tudo estava tranquilo. Até o apito disparar, Rusty chegara mesmo a ousar se sentir bem.

Viu LINDA na tela e disse:

— Querida? Está tudo bem?

— Aqui, está. As crianças estão dormindo.

— Você sabe o que pegou...

— A redação do jornal. Fica calado e escuta, porque eu vou desligar o meu celular daqui a um minuto e meio pra que ninguém me chame pra ajudar a apagar o incêndio. A Jackie está aqui. Vai olhar as meninas. Você precisa me encontrar na funerária. Stacey Moggin também vai pra lá. Ela passou aqui mais cedo. Está conosco.

O nome, embora conhecido, não evocou imediatamente um rosto na cabeça de Rusty. E o que retumbou foi Está conosco. Estava mesmo começando a haver lados, começando a haver conosco e com eles.

— Lin...

— Me encontra lá. Dez minutos. É seguro enquanto estiverem apagando o incêndio, porque os irmãos Bowie estão no grupo. Foi o que a Stacey disse.

— Como é que eles reuniram um grupo tão dep...

— Não sei e não me interessa. Você vem?

— Vou.

— Ótimo. Não usa o estacionamento ao lado. Dá a volta pelos fundos até o menor.

Então a voz sumiu.

— O que está pegando fogo? — perguntou Gina. — Você sabe?

— Não — disse Rusty. — Porque ninguém ligou. — Ele olhou os dois, com intensidade.

Gina não entendeu, mas Twitch, sim.

— Ninguém mesmo.

— Eu só saí, talvez seja um chamado, mas vocês não sabem pra onde. Eu não disse. Certo?

Gina ainda parecia perplexa, mas fez que sim. Porque agora esse pessoal era o seu pessoal; ela não questionava esse fato. Por que questionaria? Só tinha 17 anos. Nós e eles, pensou Rusty. Péssima receita, em geral. Ainda mais pra quem tem 17 anos.

— Provavelmente foi um chamado — disse ela. — Não sabemos pra onde.

— Não mesmo — concordou Twitch. — Você gafanhoto, nós formiguinhas.

— Não dêem muita importância a isso, vocês dois — disse Rusty Mas era importante, ele já sabia. Era encrenca. Gina não era a única criança no rolo; ele e Linda tinham duas, agora profundamente adormecidas e sem saber que mamãe e papai poderiam estar navegando numa tempestade forte demais para o barquinho deles.

Ainda assim...

— Eu já volto — disse Rusty e torceu para que não fosse só pensamento positivo.

 

Sammy Bushey entrou no estacionamento do Catherine Russell com o Malibu dos Evans pouco depois de Rusty seguir para a Funerária Bowie; os dois se cruzaram em sentidos opostos no morro da praça da Cidade.

Twitch e Gina tinham ido para dentro e o retorno diante da porta principal do hospital estava deserto, mas ela não parou ali; com uma arma no banco ao lado, a gente fica cuidadoso. (Phil diria paranoico.) Foi até os fundos e estacionou numa vaga para funcionários. Agarrou o 45, enfiou-o na cintura do jeans e cobriu-o com a camiseta. Atravessou o terreno e parou na porta da lavanderia, lendo o cartaz que dizia FUMAR AQUI SERÁ PROIBIDO A PARTIR DE 1º DE JANEIRO. Olhou a maçaneta e soube que, se ela não girasse, desistiria. Seria um sinal de Deus. Por outro lado, se a porta estivesse destrancada...

Estava. Ela se esgueirou, um fantasma pálido que mancava.

 

Thurston Marshall estava cansado — exausto seria mais exato —, mas mais feliz do que se sentia há anos. Era perverso, sem dúvida; ele era um catedrático, um poeta publicado, o editor de uma revista literária de prestígio. Tinha uma mulher jovem e linda para dividir a cama, mulher essa que era inteligente e achava ele maravilhoso. Que dar comprimidos, passar pomada e esvaziar comadres (sem falar em limpar a bunda cagada do garoto Bushey uma hora atrás) o deixasse mais feliz do que essas coisas quase tinha que ser perverso, e no entanto era isso mesmo. Os corredores de hospital com cheiro de desinfetante e lustrador de piso o conectavam à sua juventude. As lembranças tinham sido muito nítidas naquela noite, desde o aroma generalizado de óleo de patchuli no apartamento de David Perna até o lenço de cabeça com desenho indiano que Thurse usara à luz de velas na cerimônia fúnebre de Bobby Kennedy. Fez a ronda cantarolando Big Leg Woman bem baixinho entre os dentes.

Deu uma espiada na sala dos médicos e viu a enfermeira de nariz quebrado e a auxiliar de enfermagem bonitinha — Harriet era o nome dela — dormindo nas camas de armar que tinham sido levadas para lá. O sofá estava vazio, e logo ele recuperaria algumas horas de sono ali ou voltaria à casa na avenida Highland que agora era o seu lar. Provavelmente voltaria.

Acontecimentos estranhos.

Mundo estranho.

Mas antes, mais uma olhada naqueles em quem já pensava como seus pacientes. Não demoraria muito naquele hospital minúsculo. A maioria dos quartos estava vazia mesmo. Bill Allnut, que fora obrigado a ficar acordado até as nove por causa do ferimento sofrido na confusão do Food City, agora dormia profundamente e roncava, deitado de lado para tirar a pressão do grande corte atrás da cabeça.

Wanda Crumley estava duas portas mais além. O monitor cardíaco bipava e a pressão estava um pouco melhor, mas ela recebia 5 litros de oxigênio e Thurse temia que fosse um caso perdido. Gordura demais; cigarro demais. O marido e a filha caçula estavam com ela. Thurse fez para Wendell Crumley o V da vitória (que no seu tempo fora o sinal da paz), e Wendell, sorrindo com coragem, fez o mesmo.

Tansy Freeman, da apendicectomia, lia uma revista.

— Por que o apito de incêndio está tocando? — perguntou ela.

— Não sei, querida. Como está a dor?

— Nota três — disse ela, objetivamente. — Talvez dois. Ainda posso ir pra casa amanhã?

— O dr. Rusty é que resolve, mas a minha bola de cristal diz que sim. — E, sem nenhuma razão que conseguisse entender, o jeito como o rosto dela se alegrou com isso lhe deu vontade de chorar.

— A mãe do bebê voltou — disse Tansy. — Eu a vi passar.

— Ótimo — disse Thurse. Embora o bebê não fosse um problema tão grande. Chorara uma ou duas vezes, mas principalmente dormia, comia ou ficava no berço, apático, fitando o teto. O nome dele era Walter (Thurse não sabia que o Pequeno que o precedia no cartão da porta também era nome próprio), mas Thurston Marshall o chamava de Garoto Clorpromazina.

Então abriu a porta do quarto 23, que tinha a plaquinha amarela BEBÊ A BORDO presa com uma ventosa plástica, e viu que a moça — vítima de estupro, Gina lhe cochichara — estava sentada na cadeira ao lado da cama. Estava com o bebê no colo e lhe dava uma mamadeira.

— Está tudo bem... — Thurse deu uma olhada no outro nome no cartão da porta. — ... sra. Bushey?

Ele pronunciou Bouchez, mas Sammy não se deu ao trabalho de corrigir nem de lhe dizer que, na escola, os meninos a chamavam, rimando, de Bushey the Tushie — Bushey, a bunduda.

— Está, sim, doutor — respondeu ela.

Thurse também não se deu ao trabalho de corrigir a imprecisão dela. Aquela alegria indefinida, o tipo que vem com lágrimas escondidas, inchou um pouco mais. Quando pensou em como chegara perto de não se voluntariar... se Caro não o tivesse estimulado.., ele perderia isso.

— O dr. Rusty vai ficar contente com sua volta. E Walter também. Precisa de analgésico?

— Não. — Era verdade. As partes privadas ainda doíam e pulsavam, mas isso estava muito longe. Ela se sentia flutuando acima de si mesma, presa à terra pelo mais fino dos fios.

— Ótimo. Isso significa que você está melhorando.

— Isso — disse Sammy. — Logo eu fico boa.

— Quando terminar de dar a mamadeira pra ele, deite-se, está bem? O dr. Rusty vai vir examiná-la pela manhã.

— Está bem.

— Boa noite, sra. Bouchez.

— Boa noite, doutor.

Thurse fechou a porta com cuidado e prosseguiu pelo corredor. No final, ficava o quarto da moça Roux. Uma olhada ali e ele encerrava o serviço.

Ela estava apática, mas acordada. O rapaz que a visitava, não. Estava sentado no canto, dormindo na única cadeira do quarto com uma revista esportiva no colo e as pernas compridas estendidas à frente.

Georgia chamou Thurse e, quando ele se curvou sobre ela, cochichou alguma coisa. Devido à voz baixa e à boca ferida, quase sem dentes, ele só entendeu uma ou duas palavras. Chegou mais perto.

— Dã acohda el’. — Para Thurse, ela falava como Homer Simpson. — Fô o ú’ico que feio me visitá.

Thurse concordou. O horário de visita já passara há muito tempo, é claro, e dada a camisa azul e a arma, o rapaz provavelmente seria chamado à atenção por não atender ao apito de incêndio, mas mesmo assim, que mal havia? Um bombeiro a mais ou a menos provavelmente não faria a mínima diferença, e se o sujeito estava tão adormecido a ponto de o apito não o acordar, era bem provável que não ajudasse muito mesmo. Thurse pôs o dedo sobre os lábios e soprou um shhhh para mostrar à moça que eram conspiradores. Ela tentou sorrir e fez uma careta.

Apesar disso, não lhe ofereceu analgésicos; de acordo com a ficha no pé da cama, a dose máxima que recebera iria até as duas da manhã. Em vez disso, só saiu, fechou a porta com cuidado e voltou pelo corredor adormecido. Não notou que a porta do quarto BEBÊ A BORDO estava novamente escancarada.

O sofá do saguão o chamou sedutor quando passou, mas Thurston afinal decidira voltar à avenida Highland.

E dar uma olhada nas crianças.

 

Sammy ficou sentada na cama com o Pequeno Walter no colo até o novo médico ir embora. Depois, beijou o filho nas duas bochechas e na boca.

— Você é um bebê bonzinho — disse ela. — Mamãe vai te ver no céu, se deixarem ela entrar. Acho que deixam. Ela já cumpriu a pena dela no inferno.

Ela o deitou no berço e abriu a gaveta da mesinha de cabeceira. Pusera a arma lá dentro para que o Pequeno Walter não mexesse nela quando o pegasse no colo e lhe desse de mamar pela última vez. Agora, tirou-a de lá.

 

A parte baixa da rua Principal estava bloqueada por carros de polícia parados de frente um para o outro, com as luzes do teto piscando. Uma multidão silenciosa e desanimada — quase deprimida — estava atrás deles, observando.

Normalmente, Horace, o corgi, era um cão silencioso, que limitava o seu repertório vocal a uma saraivada de latidos de boas-vindas ou um latidinho ocasional para lembrar a Julia que ainda estava presente e operante. Mas, quando ela estacionou no meio-fio da Maison des Fleurs, ele soltou um rugido baixo no banco de trás. Julia estendeu a mão cegamente para trás para lhe acariciar a cabeça. Consolando-se ao consolar.

— Julia, meu Deus — disse Rose.

Saíram do carro. A intenção original de Julia era deixar Horace lá dentro, mas quando ele deu outro daqueles uivos pequenos e desolados — como se soubesse, como se realmente soubesse —, ela pescou a guia no banco do passageiro, abriu a porta de trás para que ele saísse e prendeu a guia à coleira. Pegou a sua câmera pessoal, uma Casio de bolso, no compartimento da porta antes de fechá-la. Abriram caminho pela multidão de transeuntes na calçada, Horace à frente, puxando a guia.

Rupe, primo de Piper Libby, policial em meio expediente que fora para Mill havia cinco anos, tentou detê-las.

— Ninguém além deste ponto, senhoras.

— É minha casa — disse Julia. — Lá em cima está tudo o que eu tenho no mundo, roupas, livros, objetos pessoais, tudo. Embaixo fica o jornal que o meu bisavô fundou. Só deixou de sair quatro vezes em mais de 120 anos. Agora está virando fumaça. Se você quer me impedir de ver isso acontecer, e ver de perto, vai ter que atirar em mim.

Rupe pareceu hesitar, mas quando ela avançou de novo (Horace agora junto ao joelho dela, erguendo a cabeça desconfiado para o careca), Rupe saiu da frente. Mas só momentaneamente.

— Você, não — disse a Rose.

— Eu sim. A menos que você queira laxante no próximo milk-shake de chocolate que pedir.

— Senhora... Rose... Eu estou cumprindo ordens.

— Que o diabo leve as suas ordens — disse Julia, com mais cansaço do que desafio. Pegou Rose pelo braço e a levou pela calçada, só parando quando sentiu o brilho contra o rosto aumentar de preaquecer para assar.

O Democrata estava um inferno. Os policiais, cerca de uma dúzia, nem tentavam apagar o fogo, mas tinham muitos extintores costais (alguns ainda com adesivos que conseguia ler com facilidade à luz do fogo: MAIS UMA PROMOÇÃO ESPECIAL BURPEE!) e molhavam a drogaria e a livraria.

Dada a falta de vento, Julia achou que poderiam salvar as duas... e portanto o resto dos prédios comerciais no lado leste da rua.

— Maravilhoso terem chegado tão depressa — disse Rose.

Julia nada disse, só observou as chamas rugirem para a escuridão, tapando as estrelas cor-de-rosa. Estava chocada demais para chorar.

Tudo, pensou. Tudo.

Então, se lembrou do fardo de jornais que jogara no carro antes de sair para se encontrar com Cox e corrigiu para Quase tudo.

Pete Freeman passou pelo anel de policiais que banhava a frente e o lado norte da Drogaria Sanders. Os únicos lugares limpos no seu rosto eram onde as lágrimas tinham cortado a fuligem.

— Julia, sinto muito! — Ele quase chorava. — Nós quase conseguimos apagar... íamos apagar... mas aí a última... a última garrafa que os canalhas jogaram caiu nos papéis junto da porta e... — Ele passou no rosto a manga que restava na camisa, espalhando ali a fuligem. — Sinto muito, muito mesmo!

Ela o abraçou como se ele fosse um bebê, embora Pete fosse 15 centímetros mais alto e quase 50 quilos mais pesado do que ela. Ela o abraçou, tentando tomar cuidado com o braço ferido dele, e perguntou:

— O que aconteceu?

— Bombas incendiárias — soluçou ele. — Aquela porra daquele Barbara.

— Ele está na cadeia, Pete.

— Os amigos dele! Os malditos amigos dele! Foram eles que fizeram isso!

— O quê? Você viu eles?

— Ouvi — respondeu o outro, afastando-se para olhá-la. — Teria sido difícil não ouvir. Estavam de megafone. Disseram que, se não libertassem o Dale Barbara, queimariam a cidade inteira. — Ele deu um sorriso amargo. — Libertar? A gente devia é enforcar ele. Se me derem uma corda, eu mesmo faço isso.

Big Jim veio andando devagar. O fogo pintava as suas bochechas de laranja. Os olhos cintilavam. O sorriso era tão aberto que chegava quase ao lóbulo das orelhas.

— O que você pensa do seu amigo Barbie agora, Julia?

Julia deu um passo na direção dele, e devia haver algo no seu rosto, porque Big Jim deu um passo atrás, como se temesse apanhar dela.

— Isso não faz sentido. Nenhum. E você sabe disso.

— Ah, eu acho que faz. Se conseguir se obrigar a pensar na ideia de que foram Dale Barbara e os amigos dele que criaram a Redoma, acho que faz muito sentido. Foi um ato de terrorismo, puro e simples.

— Bobagem. Eu estava do lado dele, o que significa que o jornal estava do lado dele. Ele sabia disso.

— Mas eles disseram... — começou Pete.

— Claro — disse ela, mas não olhou para ele. Os seus olhos ainda estavam fixos no rosto de Rennie, iluminado pelo fogo. — Eles disseram, eles disseram, mas quem diabos são eles? Pergunte a si mesmo, Pete. Pergunte o seguinte a si mesmo: se não foi Barbie, que não tinha motivos, então quem tinha motivos? Quem se beneficia ao fechar a boca encrenqueira de Julia Shumway?

Big Jim virou-se e acenou para dois policiais novos — só identificáveis como policiais pelos lenços azuis amarrados no bíceps. Um era um brutamontes altos cujo rosto indicava que mal passava de uma criança, fosse qual fosse o seu tamanho. O outro só podia ser um Killian; aquela cabeça pontuda era tão identificável quanto um selo comemorativo.

— Mickey. Richie. Tirem essas duas mulheres do local.

Horace estava sentado na ponta da guia, rugindo para Big Jim. Este deu ao cachorrinho um olhar de desprezo.

— E se não forem voluntariamente, têm a minha permissão de pegá-las e jogá-las no capô do carro de polícia mais próximo.

— Isso não vai ficar assim — disse Julia, apontando o dedo para ele. Agora ela começava a chorar, mas as lágrimas eram quentes e dolorosas demais para serem de tristeza. — Isso não vai ficar assim, seu filho da puta.

O sorriso de Big Jim reapareceu. Era tão brilhante quanto o acabamento do seu Hummer. E igualmente negro.

— Vai, sim — disse ele. — Já está.

 

Big Jim começou a andar na direção do fogo — queria observar até que não restasse mais nada do jornal da intrometida, a não ser uma pilha de cinzas — e engoliu uma porção de fumaça. De repente, o coração parou no peito e o mundo pareceu passar flutuando por ele como um tipo de efeito especial. Depois o coração voltou a funcionar, mas numa azáfama de batidas irregulares que o fizeram ofegar. Ele deu um soco no lado esquerdo do peito e tossiu com força, macete para melhorar a arritmia que o dr. Haskell lhe ensinara.

A princípio, o coração continuou com o galope irregular (toque... pausa... toque toque toque... pausa), mas aí se acomodou no ritmo normal. Por um instante apenas, ele o viu encaixado num denso glóbulo de gordura amarela, como uma coisa que tivesse sido enterrada viva e que lutasse para se libertar antes que o ar acabasse. Depois, mandou a imagem embora.

Estou bem. É só excesso de trabalho. Nada que sete horas de sono não curem.

O chefe Randolph se aproximou, um extintor pendurado nas costas largas. O rosto estava coberto de suor.

— Jim? Você está bem?

— Ótimo — disse Big Jim. E estava. Estava. Era o ponto alto da sua vida, a oportunidade de obter a grandeza de que sempre soubera que era capaz. Nenhum coração fracote ia lhe tirar aquilo. — Só cansado. Venho trabalhando praticamente sem parar.

— Vai pra casa — aconselhou Randolph. — Nunca achei que agradeceria a Deus pela Redoma, e não estou agradecendo agora, mas ao menos serve de quebra-vento. Tudo vai dar certo. Tenho homens no telhado da drogaria e da livraria pro caso de cair alguma fagulha. Pode ir e...

— Que homens? — O coração se acalmando, se acalmando. Ótimo.

— Henry Morrison e Toby Whelan na livraria. Georgie Frederick e um dos garotos novos na drogaria. Um dos Killian, acho. Rommie Burpee se apresentou pra subir com eles.

— Você está com o walkie-talkie?

— É claro que estou.

— E Frederick com o dele?

— Todos os regulares estão.

— Diga ao Frederick que fique de olho no Burpee.

— Rommie? Por que, pelo amor de Deus?

— Não confio nele. Pode ser amigo de Barbara. — Embora não fosse com Barbara que Big um se preocupava no caso de Burpee. O sujeito tinha sido amigo de Brenda. E era esperto.

O rosto suado de Randolph se franziu.

— Quantos você acha que são? Quantos do lado do filhodaputa?

Big Jim balançou a cabeça.

— É difícil dizer, Pete, mas a coisa é grande. Deve ter sido planejada por muito tempo. Não se pode só olhar os novatos da cidade e dizer que têm que ser eles. Algumas pessoas nisso podem estar aqui há anos. Décadas, até. É o que chamam de disfarce perfeito.

— Jesus. Mas por que, Jim? Por que, em nome de Deus?

— Não sei. Algum teste, talvez, e nós como cobaias. Ou talvez seja uma luta pelo poder. Pra mim, aquele bandido da Casa Branca seria bem capaz disso. O importante é que vai ser preciso reforçar a segurança e ficar de olho nos mentirosos que tentarem sabotar a nossa tentativa de manter a ordem.

— Você acha que ela... — ele inclinou a cabeça na direção de Julia, que observava a sua empresa subir como fumaça com o cão sentado ao lado, ofegando com o calor.

— Não sei com certeza, mas do jeito que ela estava hoje à tarde? Invadindo a delegacia, berrando que queria falar com ele? O que te parece?

— É — disse Randolph. Olhava Julia Shumway com atenção de olhos vazios. — E pôr fogo na própria casa, quer disfarce melhor?

Big Jim lhe apontou o dedo como se dissesse Pode ter acertado na mosca.

— Tenho que ir dormir. Passe a mensagem ao George Frederick. Diga a ele pra ficar bem de olho naquele canadense de Lewiston.

— Está bem. — Randolph resgatou o walkie-talkie.

Atrás deles, Fernald Bowie berrou:

— O telhado vai cair! Vocês aí na rua, pra trás! Homens em cima dos outros prédios, atenção, atenção!

Big Jim, com uma das mãos na porta do motorista do Hummer, assistiu ao telhado do Democrata afundar, soltando um jorro de fagulhas direto para o céu negro. Os homens postados nos prédios adjacentes verificaram se os extintores costais dos parceiros estavam prontos e ficaram em posição de sentido, aguardando as fagulhas de mangueira na mão.

A expressão no rosto de Julia Shumway quando o telhado do Democrata caiu fez mais bem ao coração de Big Jim do que todos os medicamentos e marca-passos melequentos do mundo. Por anos fora forçado a aguentar a arenga semanal dela e, embora não admitisse que sentira medo dela, com certeza se incomodara.

Mas olha ela agora, pensou. Parece que voltou pra casa e achou a mãe morta no penico.

— Você parece melhor — disse Randolph. — As suas cores estão voltando.

— Estou me sentindo melhor — disse Big Jim. — Mesmo assim, vou pra casa. Tirar uma soneca.

— Boa idéia — disse Randolph. — Precisamos de você, meu amigo. Agora mais do que nunca. E se essa tal Redoma não sumir... — Ele balançou a cabeça, os olhos de bassê nunca saindo do rosto de Big Jim. — Não sei como conseguiríamos sobreviver sem você, por assim dizer. Eu amo Andy Sanders como se fosse meu irmão, mas ele não tem muito miolo. E Andrea Grinnell não tem valido um tostão desde que caiu e machucou as costas. Você é a cola que mantém Chester’s Mill inteira.

Big Jim ficou comovido com isso. Agarrou o braço de Randolph e apertou.

— Eu daria a minha vida por esta cidade. De tanto que eu a amo.

— Sei disso. Eu também. E ninguém vai roubá-la de nós.

— Acertou em cheio — disse Big Jim.

Ele foi embora, subindo na calçada para contornar o bloqueio posto na parte norte do bairro comercial. O coração estava firme no peito outra vez (bem, quase), mas ainda assim ele estava preocupado. Teria de consultar Everett. Não gostava da ideia; Everett era outro intrometido disposto a causar problemas numa hora em que a cidade tinha que se unir. Além disso, nem era médico. Big Jim quase se sentiria melhor se confiasse seus problemas médicos a um veterinário, só que não havia nenhum na cidade. Teria de torcer para que, se precisasse de remédios, algo para regularizar os batimentos cardíacos, Everett soubesse qual o tipo certo.

Bom, pensou, seja o que for que ele me receitar, posso conferir com Andy.

Claro, mas não era isso o que mais o perturbava. Era outra coisa que Pete dissera: Se essa tal Redoma não sumir...

Big Jim não estava preocupado com isso. Bem ao contrário. Se a Redoma sumisse — isto é, cedo demais —, estaria numa boa encrenca, mesmo que o laboratório de metanfetamina não fosse descoberto. Sem dúvida haveria melequentos que questionariam as suas decisões. Uma das regras da vida política que ele aprendera bem cedo era Os que podem, fazem; os que não podem, questionam as decisões dos que podem. Talvez não entendessem que tudo o que fazia ou mandava fazer, até a pedra atirada no mercado naquela manhã, era com a intenção de cuidar da cidade. Os amigos de Barbara no lado de fora teriam uma tendência especial a entender tudo errado, porque não quereriam entender. O fato de que Barbara tinha amigos, amigos poderosos, no lado de fora era algo que Big Jim não questionava desde que vira a carta do presidente. Mas por enquanto eles não podiam fazer nada. E era assim que Big Jim queria que tudo continuasse por ao menos mais 15 dias. Talvez até um ou dois meses.

A verdade era que ele gostava da Redoma.

Não a longo prazo, é claro, mas até que o gás lá na emissora de rádio fosse redistribuído? Até que o laboratório fosse desmontado e o depósito que o abrigava fossem queimados (outro crime a jogar na porta dos amigos conspiradores de Dale Barbara)? Até que Barbara pudesse ser julgado e executado por um pelotão de fuzilamento da polícia? Até que a culpa pelo que fora feito durante a crise pudesse ser repartida pelo máximo possível de pessoas, e o crédito atribuído a uma só, ou seja, ele?

Até então, a Redoma era uma boa.

Big Jim decidiu que se ajoelharia para orar por isso antes de dormir.

 

Sammy mancou pelo corredor do hospital, olhando o nome nas portas e abrindo as que não tinham nomes só para ter certeza. Começava a temer que a piranha não estivesse ali quando chegou àquela última porta e viu o cartão desejando melhoras ali pregado. Mostrava um cachorro de desenho animado dizendo “Soube que você não estava se sentindo muito bem”. Sammy tirou a arma de Jack Evans da cintura da calça (que agora estava um pouco mais frouxa, ela finalmente conseguira emagrecer um pouco, antes tarde do que nunca) e usou o cano da automática para abrir o cartão. Dentro, o cachorro desenhado lambia os testículos e dizia: “Precisa de uma lambidinha?” Estava assinado Mel, Jim Jr., Carter e Frank, e era exatamente o tipo de cartão de mau gosto que Sammy esperaria deles.

Ela empurrou a porta com o cano da arma. Georgia não estava sozinha. Isso não perturbou a profunda calma que Sammy sentia, a sensação de paz quase atingida. Teria perturbado se o homem que dormia no canto fosse um inocente — o pai ou o tio da piranha, digamos —, mas era Frankie, o Agarrador de Tetas. O que a estuprara primeiro, dizendo-lhe que era melhor aprender a guardar a boca para quando estivesse de joelhos. O fato de estar dormindo não mudava nada. Porque caras como ele sempre acordam e recomeçam a foder tudo.

Georgia não estava dormindo; sentia dor demais, e o cabeludo que fora ver como ela estava não lhe oferecera mais sedativos. Viu Sammy, e os seus olhos se arregalaram.

— V’cê— disse ela. — Sai d’qui.

Sammy sorriu.

— Você está falando igual ao Homer Simpson — disse.

Georgia viu a arma e os seus olhos se arregalaram. Abriu a boca agora quase desdentada e gritou.

Sammy continuou a sorrir. O sorriso aumentou, na verdade, O grito era música para os seus ouvidos e bálsamo para as suas feridas.

— Fode aquela piranha — disse. — Certo, Georgia? Não foi o que você disse, sua arrombada sem coração?

Frank acordou e olhou em volta confuso, de olhos arregalados. A bunda escorregara até a borda da cadeira e, quando Georgia guinchou de novo, ele se mexeu e caiu no chão. Agora estava armado — todos estavam — e procurou a arma, dizendo:

— Larga isso, Sammy, larga isso, somos todos amigos aqui, vamos ser amigos aqui.

— Você tem mais é que calar essa boca e só abrir quando estiver ajoelhado chupando o pau do seu amiguinho Junior — disse Sammy. Então, puxou o gatilho da Springfield. A explosão da automática foi ensurdecedora no quarto pequeno. O primeiro tiro passou acima da cabeça de Frankie e estilhaçou a janela. Georgia gritou de novo. Agora tentava sair da cama, o tubo de soro e os fios do monitor soltos. Sammy a empurrou e ela caiu de costas, meio torta.

Frankie ainda não conseguira sacar a arma. Com o medo e a confusão, segurara o coldre em vez da arma, e só conseguira puxar o cinto para a direita. Sammy deu dois passos na direção dele, segurou a pistola com ambas as mãos como vira as pessoas fazerem na TV e atirou de novo. O lado esquerdo da cabeça de Frankie saiu. Uma aba de couro cabeludo bateu na parede e ficou ali grudada. Ele bateu a mão na ferida, O sangue jorrou entre os dedos. Então os dedos sumiram, mergulhando na esponja que escorria de onde ficara o crânio.

— Chega! — gritou. Os olhos dele estavam imensos e mergulhados em lágrimas. — Chega, chega! Não me machuca! — E depois: — Mãe! MAMÃE!

— Não adianta, a sua mãe não criou você direito — disse Sammy, e atirou de novo, desta vez no peito. Ele pulou contra a parede. A mão largou a cabeça destroçada e bateu no chão, respingando na poça de sangue que já se formava ali. Ela deu um terceiro tiro, no lugar que a ferira. Depois, se virou para a que estava na cama.

Georgia se encolhera numa bola. O monitor acima dela bipava feito doido, provavelmente porque ela puxara os fios ligados a ele. O cabelo caía nos olhos. Não parava de gritar.

— Não foi o que você disse? — perguntou Sammy. — Fode essa piranha, não foi?

— Desc’pa!

— Hein?

Georgia tentou de novo.

— Desc’pa! Desc’pa, Hammy! — Então, o supremo absurdo: — Eu retiro t’do!

— Você não pode! — Sammy deu um tiro na cara de Georgia e outro no pescoço. Ela pulou do mesmo jeito que Frankie e depois ficou parada.

Sammy ouviu o barulho de gente correndo e gritos do lado de fora do quarto. Gritos sonolentos de preocupação de alguns quartos também. Sentia muito causar tanta confusão, mas às vezes não havia outro jeito. Às vezes certas coisas tinham de ser feitas. E, depois de feitas, haveria paz.

Ela encostou a arma na têmpora.

— Eu te amo, Pequeno Walter. Mamãe ama o filhinho dela.

E puxou o gatilho.

 

Rusty usou a rua Oeste para contornar o incêndio e depois entrou na parte baixa da rua Principal, no cruzamento com a 117. A funerária estava às escuras, a não ser por pequenas velas elétricas nas janelas da frente. Deu a volta até o estacionamento menor, como a esposa instruíra, e parou o carro ao lado do comprido Cadillac fúnebre cinzento. Em algum lugar ali perto, um gerador estrepitava.

Estendia a mão para a maçaneta da porta quando o celular cantarolou. Desligou-o sem olhar quem estaria ligando e, quando ergueu os olhos de novo, havia um policial em pé ao lado da janela do carro. Um policial de arma na mão.

Era uma mulher. Quando ela se abaixou, Rusty viu uma nuvem de cabelo louro e crespo e, finalmente, teve um rosto para juntar ao nome que a esposa mencionara. A despachante e recepcionista do turno da manhã. Rusty supôs que tinha assumido o horário integral no Dia da Redoma ou logo depois. Também supôs que se autodesignara para aquela missão.

Ela pôs a pistola no coldre.

— Oi, dr. Rusty. Stacey Moggin. O senhor me tratou quando me queimei com sumagre, dois anos atrás. Sabe, na minha... — Ela deu uns tapinhas no traseiro.

— Eu me lembro. É bom ver você com as calças vestidas, srta. Moggin.

Ela riu como falara: baixinho.

— Espero não ter assustado o senhor.

— Um pouco. Estava desligando o celular, e de repente você estava aí.

— Desculpe. Pode entrar. Linda está esperando. Não temos muito tempo. Vou ficar de vigia na frente. Dou dois toques no walkie-talkie de Linda se vier alguém. Se forem os Bowie, vão estacionar na lateral e nós podemos ir embora pela rua Leste sem ninguém ver. — Ela inclinou a cabeça um pouco e sorriu. — Quer dizer... é meio otimista demais, mas ao menos sem sermos identificados. Se tivermos sorte.

Rusty a seguiu, se orientando pelo facho nebuloso do cabelo dela.

— Teve que arrombar, Stacey?

— Claro que não. Tinha uma chave lá na delegacia. A maioria das lojas da rua Principal nos dá as chaves.

— E por que você sabe disso?

— Porque tudo isso é uma bobagem causada pelo medo. Duke Perkins teria acabado com isso há muito tempo. Agora, vamos. E seja rápido.

— Isso eu não posso prometer. Aliás, não posso prometer nada. Não sou legista.

— O mais depressa possível, então.

Rusty entrou atrás dela. Um instante depois, os braços de Linda estavam em torno dele.

 

Harriet Bigelow gritou duas vezes e desmaiou. Gina Buffalino só ficou olhando, vidrada pelo choque.

— Tirem Gina daqui — disse Thurse com rispidez. Chegara ao estacionamento, ouvira os tiros e voltara correndo. Para encontrar isso. Esse massacre.

Ginny pôs o braço nos ombros de Gina e a levou de volta para o corredor, onde os pacientes ambulatórios — como Bill Allnut e Tansy Freeman — estavam em pé, assustados, de olhos arregalados.

— Tira essa aqui do caminho — disse Thurse a Twitch, apontando Harriet. — E baixa a saia dela, dá um pouco de decência à coitada da moça.

Twitch fez o que lhe mandavam. Quando ele e Ginny voltaram ao quarto, Thurse estava ajoelhado ao lado do corpo de Frank DeLesseps, que morrera porque fora representar o namorado de Georgia e ficara até depois da hora. Thurse puxara o lençol sobre Georgia, que já floria papoulas de sangue.

— Há algo que nós possamos fazer, doutor? — perguntou Ginny. Ela sabia que ele não era médico, mas com o choque a palavra saiu automaticamente. Olhava o corpo esparramado de Frank, e a mão cobria a boca.

— Há. — Thurse se levantou e os joelhos ossudos estalaram como tiros de pistola. — Chamar a polícia. Isso é uma cena de crime.

— Todos os que estão de serviço devem estar apagando o incêndio lá embaixo — disse Twitch. — Os que não estão, devem estar a caminho de lá ou dormindo com o telefone desligado.

— Então chama alguém, pelo amor de Jesus, e descubra se temos que fazer alguma coisa antes de limpar a bagunça. Tirar fotos, ou sei lá o quê. Não que haja muita dúvida sobre o que aconteceu. E me dê licença um minuto. Vou vomitar.

Ginny ficou de lado para que Thurston pudesse entrar no minúsculo banheiro anexo ao quarto. Fechou a porta, mas o som do vômito ainda foi alto, o som da partida de um motor com sujeira presa em algum lugar.

Ginny sentiu correr pela cabeça uma onda de desmaio que pareceu erguê-la e deixá-la leve. Ela a combateu. Quando olhou Twitch outra vez, ele acabava de fechar o celular.

— Rusty não atende — disse. — Deixei recado. Mais alguém? Que tal Rennie?

— Não! — Ela quase tremeu. — Ele, não.

— A minha irmã? Quero dizer, Andi?

Ginny só o olhou.

Twitch a fitou um momento e depois baixou os olhos.

— Talvez não — murmurou.

Ginny o tocou acima do pulso. A pele dele estava fria com o choque. Achou que a dela também estaria.

— Se te serve de consolo — disse —, acho que ela está tentando largar. Veio falar com Rusty e tenho quase certeza de que era por isso.

Twitch passou as mãos pelos lados do rosto, transformando-o por um instante numa máscara de tristeza de ópera bufa.

— Isso é um pesadelo.

— É — respondeu Ginny simplesmente. Então, pegou o celular de novo.

— Pra quem você vai ligar? — Twitch conseguiu dar um sorrisinho. — Caça-fantasmas?

— Não. Se Andi e Big Jim estão fora, quem sobrou?

— Sanders, mas ele é mais inútil do que bosta e você sabe disso muito bem. Por que simplesmente não arrumamos a bagunça? Thurston está certo, o que aconteceu aqui é óbvio.

Thurston saiu do banheiro. Limpava a boca com uma tolha de papel.

— Porque há regras, rapaz. E nessas circunstâncias, é mais importante do que nunca segui-las. Ou ao menos fazer aquele velho último esforço.

Twitch ergueu os olhos e viu o cérebro de Sammy Bushey secando no alto de uma parede. O que ela usara para pensar agora parecia uma massa de aveia. Ele caiu em lágrimas.

 

Andy Sanders estava sentado no apartamento de Dale Barbara, ao lado da cama de Dale Barbara. A janela estava cheia com o brilho alaranjado do prédio do Democrata em chamas ao lado. Acima dele, ouvia passos e vozes abafadas — homens no telhado, supunha.

Levara consigo um saco de papel pardo quando subiu da farmácia lá embaixo pela escada interna. Agora tirou o conteúdo: um copo, uma garrafa de água Dasani e um vidro de comprimidos. Os comprimidos eram de OxyContin. O rótulo dizia GUARDAR PARA A. GRINNELL. Eram cor-de-rosa, os vinte. Tirou alguns, contou, tirou mais. Vinte. Quatrocentos miligramas. Talvez não fosse suficiente para matar Andrea, que tivera tempo de desenvolver tolerância, mas ele tinha certeza de que serviriam para ele.

O calor do fogo ao lado vinha assando pela parede. A pele estava molhada de suor. Tinha que haver ao menos cem ali, talvez mais. Limpou o rosto com a colcha.

Essa sensação não vai durar muito tempo. Haverá brisa fresca no paraíso e todos nos sentaremos pra jantar juntos à mesa do Senhor.

Usou o fundo do copo para moer os comprimidos cor-de-rosa até virarem pó, para garantir que o narcótico agisse todo de uma vez. Como um martelo na cabeça de um touro. Basta deitar-se na cama, fechar os olhos e então, boa noite, doce farmacêutico, que os anjos com seu canto ao repouso te acompanhem.

Eu... e Claudie... e Dodee. Juntos pela eternidade.

Acho que não, irmão.

Era a voz de Coggins, Coggins com o seu jeito mais austero e declamatório. Andy parou no ato de esmagar as pílulas.

Suicidas não ceiam com os seus entes queridos, meu amigo; vão para o inferno e jantam carvões em brasa que queimam para sempre na barriga. Consegue me dar um aleluia a isso? Consegue dizer amém?

— Bobajada — sussurrou Andy, e voltou a moer as pílulas. — Você caiu de focinho no cocho como todos nós. Por que eu acreditaria em você?

Porque eu falo a verdade. A sua mulher e a sua filha estão lá em cima olhando você agora, implorando que não faça isso. Não consegue ouvi-las?

— Não — respondeu Andy. — E isso também não é você. É só a parte covarde da minha cabeça. Andou comigo a vida inteira. Foi assim que Big Jim conseguiu me dominar. Foi assim que entrei nessa furada da metanfetamina. Não precisava do dinheiro, sequer entendia todo aquele dinheiro, só não sabia dizer não. Mas dessa vez consigo. Não, senhor. Não tenho mais nenhuma razão pra viver e vou embora. Tem mais alguma coisa a dizer?

Parecia que Lester Coggins não tinha mais nada. Andy terminou de reduzir as pílulas a pó e encheu o copo d’água. Pôs o pó cor-de-rosa no copo usando o lado da mão e depois mexeu com o dedo. Os únicos sons eram o fogo e os gritos indistintos dos homens que o combatiam e, em cima, o tump-tump-tum de outros homens andando no seu telhado.

— Goela abaixo — disse ele... mas não bebeu. A mão estava no copo, mas aquela sua parte covarde, aquela parte que não queria morrer muito embora toda vida que importava tivesse acabado, ficou onde estava.

— Não, você não vai ganhar dessa vez — disse ele, mas largou o copo para que pudesse limpar o rosto suado com a colcha outra vez. — Não sempre e não dessa vez.

Ele levou o copo aos lábios. O doce esquecimento rosado nadava lá dentro. Mas o pôs de novo sobre a mesinha de cabeceira.

A parte covarde ainda dominando. Maldita parte covarde.

— Senhor, me mande um sinal — sussurrou. — Me mande um sinal de que tomar isso está certo. Mesmo que a única razão seja não haver outro jeito de eu sair desta cidade.

Ao lado, o telhado do Democrata caiu com uma algazarra de fagulhas. Acima dele, alguém — parecia Romeo Burpee — berrou: “Prrontos, rapazes, mais prrontos do que nunca!”

Prontos. Era o sinal, com certeza. Andy Sanders ergueu de novo o copo cheio de morte, e dessa vez a parte covarde não lhe baixou o braço. A parte covarde parecia ter desistido.

No bolso, o celular tocou as notas de abertura de You’re Beautiful, um lixo sentimental que fora escolha de Claudie. Por um instante ele quase bebeu assim mesmo, mas aí uma voz sussurrou que este também poderia ser um sinal. Não sabia dizer se era a voz da parte covarde, de Coggins ou do fundo do seu coração. E, como não sabia, atendeu ao telefone.

— Sr. Sanders? — Uma voz de mulher, cansada, infeliz, assustada. Andy sentiu empatia. — Aqui é Virginia Tomlinson, do hospital.

— Ginny, claro! — Parecendo o seu antigo eu alegre e prestativo. Era esquisitíssimo.

— Acho que temos um problema aqui. O senhor pode vir pra cá?

A luz perfurou a escuridão confusa na cabeça de Andy. Encheu-o de espanto e gratidão. Ouvir alguém dizer Pode vir? Será que esquecera como isso era bom? Achava que sim, embora fosse por isso que se candidatara a vereador pela primeira vez. Não para exercer o poder; isso era coisa de Big Jim. Só para estender a mão amiga. Fora assim que começara; talvez fosse como poderia acabar.

— Sr. Sanders? O senhor está ouvindo?

— Estou. Espera aí, Ginny, vou agorinha mesmo. — Ele fez uma pausa. — E nada disso de sr. Sanders. É Andy. Estamos nisso juntos, sabe.

Ele desligou, levou o copo até o banheiro e despejou o conteúdo cor-de-rosa no vaso. A sensação boa — aquela sensação de luz e espanto — durou até que apertou o botão da descarga. Então a depressão caiu sobre ele de novo como um casaco velho e fedorento. Necessário? Isso era bem engraçado. Ele era apenas o velho e estúpido Andy Sanders, o boneco sentado no colo de Big Jim. O megafone. O tagarela. O homem que lia as moções e propostas de Big Jim como se fossem suas. O homem que era útil de dois em dois anos, fazendo campanha e espalhando o encanto velho e batido. Coisas de que Big Jim era incapaz ou náo gostava de fazer.

Havia mais comprimidos no vidro. Havia mais Dasani na geladeira lá embaixo. Mas Andy não pensou a sério nisso; fizera uma promessa a Ginny Tomlinson e era homem de palavra. Mas o suicídio não fora rejeitado, só guardado para mais tarde. Engavetado, como diziam na política das cidades pequenas. E seria bom sair desse quarto, que quase fora sua câmara mortuária.

Estava se enchendo de fumaça.

 

A sala de trabalho mortuário da funerária Bowie ficava no subsolo, e Linda se sentiu segura para acender a luz. Rusty precisaria dela para o exame.

— Olha essa bagunça — disse ele, mostrando com o braço o chão azulejado sujo e com marcas de pés, as latas de cerveja e refrigerante nos balcões, uma lata de lixo aberta num canto com algumas moscas zumbindo em cima. — Se o Conselho Estatal de Serviços Fúnebres visse isso, ou o Departamento de Saúde, isso aqui seria fechado num minuto. Minuto de Nova York, onde tudo é rápido.

— Aqui não é Nova York — lembrou-lhe Linda. Ela olhava a mesa de aço inoxidável no meio da sala. A superfície estava embaçada por substâncias que provavelmente era melhor nem identificar, e havia um papel de chocolate amassado num dos drenos. — Acho que não estamos mais nem no Maine. Depressa, Eric, esse lugar fede.

— De vários jeitos — disse Rusty A bagunça o incomodava; inferno, ela o ofendia. Daria um soco na boca de Stewart Bowie só por causa do papel de chocolate, descartado na mesa onde os mortos da cidade tinham o sangue drenado do corpo.

Do outro lado da sala, havia seis gavetas de aço inoxidável. Vindo de algum lugar atrás deles, Rusty conseguia ouvir o ronco constante do equipamento de refrigeração.

— Aqui não falta gás — murmurou. — Os irmãos Bowie estão vivendo à larga no aconchego.

Não havia nomes no lugar para cartões na frente das gavetas — outro sinal de desleixo — e Rusty abriu todas. As duas primeiras estavam vazias, o que não o surpreendeu. A maioria dos que tinham morrido até agora debaixo da Redoma, como Ron Haskell e os Evans, tinha sido enterrada depressa. Jimmy Sirois, sem parentes próximos, ainda estava no pequeno necrotério do Cathy Russell.

As outras quatro continham os corpos que ele viera examinar. O cheiro de decomposição se espalhou assim que puxou as gavetas rolantes. Cobriu o cheiro desagradável mas menos agressivo dos conservantes e unguentos fúnebres. Linda se afastou mais, com ânsia de vômito.

— Não vomita, Linny — disse Rusty, indo até os armários do outro lado da sala. A primeira gaveta só continha números antigos da revista Field & Stream, e ele soltou uma praga. Mas a de baixo tinha o que ele precisava. Enfiou a mão debaixo de um trocarte que parecia nunca ter sido lavado e puxou um par de máscaras de plástico verde ainda na embalagem. Entregou uma a Linda e vestiu a outra. Olhou a gaveta seguinte e se apropriou de um par de luvas de borracha. Eram de um amarelo vivo, infernalmente vistosas.

— Se você acha que vai vomitar apesar da máscara, sobe e fica com a Stacey.

— Vou ficar bem. Tenho que testemunhar.

— Não sei até que ponto o seu testemunho serviria; afinal de contas, você é minha mulher.

— Eu tenho que testemunhar — repetiu ela. — Só seja o mais rápido possível.

As gavetas estavam imundas. Isso não o surpreendeu depois de ver o resto da área de preparação, mas ainda assim lhe deu nojo. Linda lembrara de trazer um velho gravador cassete que achara na garagem. Rusty apertou RECORD, testou o som e ficou levemente surpreso ao perceber que não era muito ruim. Pôs o pequeno Panasonic numa das gavetas vazias e calçou as luvas. Levou mais tempo do que deveria; as mãos suavam. Provavelmente haveria talco ou polvilho Johnson para bebês em algum lugar, mas ele não pretendia perder tempo procurando. Já se sentia um ladrão. Diabos, ele era um ladrão.

— Certo, lá vamos nós. São 22h45, 24 de outubro. Esse exame está sendo realizado na sala de preparação da Funerária Bowie. Que está imunda, aliás. Uma vergonha. Vejo quatro corpos, três mulheres e um homem. Duas mulheres são jovens, têm por volta de 20 anos. São Angela McCain e Dodee Sanders.

— Dorothy — disse Linda, no outro lado da mesa de preparação. — O nome dela... era... Dorothy.

— Corrigindo. Dorothy Sanders. A terceira mulher está no final da meia-idade. Brenda Perkins. O homem tem uns 40 anos. É o reverendo Lester Coggins. Que fique registrado que posso identificar todos eles.

Ele acenou para a esposa e apontou os corpos. Ela olhou, e os olhos se encheram de lágrimas. Ela ergueu a máscara tempo suficiente para dizer:

— Sou Linda Everett, do Departamento de Polícia de Chester’s Mill. O número do meu emblema é 7-7-5. Também reconheço os quatro corpos. — Ela pôs a máscara de volta no lugar. Mais acima, os olhos imploravam.

Rusty lhe fez um sinal para se afastar. Afinal de contas, era tudo uma farsa. Sabia disso, e apostava que Linda também. Mas não se sentia deprimido. Quisera seguir a carreira médica desde menino, sem dúvida seria médico se não tivesse tido de largar a escola para cuidar dos pais, e o que o impulsionara a dissecar rãs e olhos de vaca quando estava nas aulas de biologia do segundo ano secundário era o que o impulsionava agora: pura curiosidade. A necessidade de saber. E ele saberia. Talvez não tudo, mas ao menos algumas coisas.

É aqui que os mortos ajudam os vivos. Linda não disse isso?

Não importava. Tinha certeza de que ajudariam, se pudessem.

— Não houve maquiagem dos corpos pelo que posso ver, mas os quatro foram embalsamados. Não sei se o processo foi terminado, mas desconfio que não, porque os tampões da artéria femoral ainda estão no lugar.

— Angela e Dodee, desculpe, Dorothy, apanharam muito e estão em estado avançado de decomposição. Coggins também apanhou — muito, ao que parece — e também está em decomposição, mas não tanto; a musculatura do rosto e dos braços mal começou a amolecer. Brenda, Brenda Perkins, quero dizer... — Ele se calou e se curvou sobre ela.

— Rusty? — perguntou Linda, nervosa. — Querido?

Ele esticou a mão enluvada, pensou melhor, descalçou a luva e pôs a mão sobre a garganta dela. Então, ergueu a cabeça de Brenda e tateou o nó grande e grotesco logo abaixo da nuca. Baixou a cabeça e depois virou o corpo sobre o quadril, para olhar as costas e as nádegas.

— Jesus — disse.

— Rusty? O que foi?

Para começar, ela ainda está coberta de merda, pensou... mas isso não ficaria registrado. Nem mesmo se Randolph ou Rennie só ouvissem os primeiros sessenta segundos antes de esmagar a fita sob o calcanhar do sapato e queimassem os restos. Não acrescentaria aquele detalhe à profanação de Brenda.

Mas se lembraria.

— O quê?

Ele umedeceu os lábios e disse:

— Brenda Perkins mostra livor mortis nas nádegas e coxas, indicando que está morta há pelo menos 12 horas, mais provavelmente 14. Há hematomas importantes nas duas faces. São marcas de mão. Disso não tenho dúvida alguma. Alguém lhe segurou o rosto e virou a cabeça com força para a esquerda, fraturando as vértebras atlas e axis, C1 e C2. Provavelmente também fraturou a coluna.

— Ai, Rusty — gemeu Linda.

Rusty ergueu primeiro uma das pálpebras de Brenda, depois a outra. Viu o que temia.

— O hematoma das faces e as petéquias na esclera, ou manchas de sangue no branco dos olhos, indicam que a morte não foi instantânea. Ela não conseguiu respirar e se asfixiou. Pode ou não ter ficado consciente. Esperemos que não. Infelizmente, é só o que posso dizer. As moças, Angela e Dorothy, estão mortas há mais tempo. O estado de decomposição indica que ficaram guardadas em lugar quente.

Ele desligou o gravador.

— Em outras palavras, não vejo nada que inocente totalmente Barbie e nada que já não soubéssemos.

— E se as mãos dele não combinarem com os hematomas no rosto de Brenda?

— As marcas são difusas demais para ter certeza. Lin, eu me sinto o homem mais estúpido da Terra.

Ele empurrou as duas moças — que deveriam estar passeando pelo Auburn Mall, vendo o preço dos brincos, comprando roupas na Deb, comparando namorados — de volta à escuridão. Depois, virou-se para Brenda.

— Me arranja um pano. Vi alguns empilhados ao lado da pia. Até pareciam limpos, o que é quase um milagre nessa pocilga.

— O que você...

— Só me dá um pano. Melhor dois. Molhados.

— Não temos tempo pra...

— Arranjamos tempo. — Linda observou em silêncio o marido limpar cuidadosamente as nádegas e as costas das coxas de Brenda Perkins. Quando terminou, jogou os trapos sujos no canto, achando que, se os irmãos Bowie estivessem ali, enfiaria um na boca de Stewart e o outro na do filho da puta do Fernald.

Beijou a testa fria de Brenda e a empurrou de volta para o refrigerador. Começou a fazer o mesmo com Coggins e parou. O rosto do reverendo recebera só uma limpeza muito superficial; ainda havia sangue nas orelhas, nas narinas e entranhado na testa.

— Linda, molha outro pano.

— Querido, já se passaram quase dez minutos. Amo você por demonstrar respeito aos mortos, mas temos os vivos pra...

— Acho que nós temos algo aqui. Não foi o mesmo tipo de surra. Consigo ver mesmo sem... molha um pano.

Ela não discutiu mais, só molhou outro pano, torceu e o entregou. Então, observou o marido limpar o resto de sangue do rosto do morto, trabalhando com gentileza, mas sem o amor que mostrara por Brenda.

Ela não gostava muito de Lester Coggins (que certa vez afirmara no seu programa de rádio semanal que os garotos que fossem assistir ao show de Miley Cyrus se arriscavam a ir para o inferno), mas ainda assim o que Rusty descobria lhe machucava o coração.

— Meu Deus, ele parece um espantalho depois de usado por um monte de garotos para treinar pontaria com pedras.

— Eu disse. Não é o mesmo tipo de surra. Essa não foi com punhos nem com pés.

Linda apontou.

— O que é aquilo na têmpora?

Rusty não respondeu. Acima da máscara, os olhos brilhavam de espanto. Mais uma coisa, também: compreensão, que começava a nascer.

— O que é, Eric? Parecem... Não sei... uma costura!

— Pode apostar. — A máscara balançou quando a boca por trás dela abriu um sorriso. Não de felicidade; de satisfação. E do tipo mais sinistro. — E na testa também. Tá vendo? E no maxilar. Esse aqui quebrou o maxilar.

— Que tipo de arma deixa marcas assim?

— Uma bola de beisebol — disse Rusty; fechando a gaveta. — Não uma bola comum, mas uma banhada a ouro, sim. Se girada com força suficiente, acho que deixaria. Acho que deixou.

Ele baixou a testa até a dela. As máscaras se chocaram. Ele a olhou nos olhos.

— Jim Rennie tem uma. Vi na escrivaninha dele quando fui reclamar com ele do sumiço do gás. Não sei dos outros, mas acho que sabemos onde Lester Coggins morreu. E quem o matou.

 

Depois que o telhado desmoronou, Julia não aguentou mais olhar.

— Vem pra casa comigo — disse Rose. — O quarto de hóspedes é seu enquanto quiser.

— Obrigada, mas não. Agora preciso ficar sozinha, Rosie. Quer dizer, com Horace, sabe. Preciso pensar.

— Onde você vai ficar? Vai ficar bem?

— Vou. — Sem saber se ficaria ou não. A cabeça parecia bem, processos de pensamento todos em ordem, mas ela se sentia como se alguém desse uma baita injeção de novocaína na sua emoção. — Talvez eu apareça mais tarde.

Quando Rosie foi embora, andando pelo outro lado da rua (e se virando para lhe dar um último aceno preocupado), Julia voltou ao Prius, pôs Horace no banco da frente e sentou-se atrás do volante. Procurou Pete Freeman e Tony Guay e não os viu em lugar algum. Talvez Tony tivesse levado Pete até o hospital para fazer um curativo no braço. Era um milagre que nenhum deles tivesse se ferido gravemente. E se ela não tivesse levado Horace consigo quando foi se encontrar com Cox, o cão teria sido incinerado junto com todo o resto.

Quando essa ideia lhe veio, ela percebeu que as suas emoções não estavam dormentes, afinal de contas, apenas escondidas. Um som, um tipo de lamento, começou a sair dela. Horace espetou as orelhas consideráveis e a olhou ansioso. Ela tentou parar e não conseguiu.

O jornal do seu pai.

O jornal do seu avô.

Do seu bisavô.

Cinzas.

Ela desceu até a rua Oeste e, quando chegou ao estacionamento abandonado ao lado do Globe, entrou. Desligou o motor, puxou Horace para perto dela e chorou por cinco minutos, encostada num ombro peludo e musculoso. É louvável que Horace tenha suportado isso com paciência.

Depois de chorar até acabar, ela se sentiu melhor. Mais calma. Talvez fosse a calma do choque, mas ao menos conseguia pensar de novo. E o que pensou foi no último fardo de jornais que restava no bagageiro. Ela se inclinou por cima de Horace (que lhe deu uma lambida amistosa no pescoço) e abriu o porta-luvas. Estava cheio de tralha, mas ela achou que em algum lugar... quem sabe...

E, como um dom de Deus, lá estava. Uma caixinha de plástico cheia de marcadores de mapas, elásticos, tachinhas e clipes de papel. Os elásticos e clipes não serviriam para o que ela tinha em mente, mas as tachinhas e marcadores de mapas...

— Horace — disse ela —, quer dar um passeio?

Horace latiu que queria mesmo dar um passeio.

— Ótimo — disse. — Eu também.

Ela pegou os jornais e voltou a pé para a rua Principal. Agora o prédio do Democrata era apenas um monte fumegante de escombros, com policiais despejando água (daqueles extintores costais tão convenientes, pensou ela, todos cheios e prontos para usar). Olhar aquilo feria o coração de Julia — claro que sim —, mas não tanto agora que tinha algo a fazer.

Ela desceu a rua com Horace andando ao seu lado com toda a pompa, e em cada poste telefônico prendeu um exemplar do último número do Democrata.

A manchete — SAQUE E MORTES: A CRISE SE APROFUNDA — parecia brilhar à luz do fogo. Agora preferiria ter optado por uma única palavra: CUIDADO.

Continuou até que os jornais acabaram.

 

Do outro lado da rua, o walkie-talkie de Peter Randolph estalou três vezes: breque-breque-breque. Urgente. Temendo o que ouviria, ele apertou o botão de transmitir e disse:

“Chefe Randolph. Câmbio.”

Era Freddy Denton que, como oficial comandante do turno da noite, era agora, na prática, o chefe-assistente.

— Pete, acabei de receber um telefonema do hospital. Duplo assassinato...

— O QUÊ? — gritou Randolph. Mickey Wardlaw, um dos novos policiais, o fitava como um caipira da Mongólia na primeira vez que vai à feira na cidade.

Denton continuou, parecendo calmo ou cheio de si. Se fosse o segundo, Deus o ajudasse.

— ... e um suicídio. Quem atirou foi aquela moça que fez a acusação de estupro. As vítimas são nossas, chefe. Roux e DeLesseps.

— Você... está... de SACANAGEM!

— Mandei Rupe e Mel Searles pra lá — disse Freddy. — O lado bom é que tudo acabou e não vamos ter que enquadrá-la no galinheiro junto com Barb...

— Você mesmo devia ter ido, Fred. Você é o oficial superior.

— E quem iria ficar na mesa então?

Randolph não tinha resposta para essa pergunta — era inteligente ou estúpida demais. Achou melhor ir para o Cathy Russell.

Não quero mais esse emprego. Não. Nem um tiquinho.

Mas era tarde demais. E com Big Jim para ajudá-lo, ele conseguiria. Era nisso que tinha que se concentrar; Big Jim o ajudaria a aguentar.

Marty Arsenault lhe deu um tapinha no ombro. Randolph quase pulou para lhe bater. Arsenault não notou; olhava o outro lado da rua, onde Julia Shumway estava passeando com o cachorro. Passeando com o cachorro e... o quê?

Distribuindo jornais, era isso. Prendendo-os no diabo dos malditos postes telefônicos.

— Aquela puta não para — disse entredentes.

— Quer que eu vá até lá e obrigue ela a parar? — perguntou Arsenault.

Marty parecia ansioso para cumprir a tarefa, e Randolph quase a concedeu. Depois, fez que não.

— Ela só vai começar a fazer um discurso sobre os malditos direitos civis. Como se não notasse que deixar todo mundo apavorado não traz nenhum benefício à cidade. — Ele balançou a cabeça. — Provavelmente não nota. Ela é incrivelmente... — Havia uma palavra para o que ela era, uma palavra esquisita que lera no curso secundário. Não esperava se lembrar, mas conseguiu. — Incrivelmente ingênua.

— Vou dar um jeito nela, chefe, vou, sim, O que ela vai fazer, chamar o advogado?

— Deixa ela se divertir. Ao menos assim ela não pega no nosso pé. É melhor eu ir pro hospital. O Denton disse que aquela tal Bushey assassinou Frank DeLesseps e Georgia Roux. E depois se matou.

— Jesus — sussurrou Marty, o rosto perdendo a cor. — O senhor acha que isso também é coisa do Barbara?

Randolph começou a dizer que não e aí pensou melhor. E pensou na acusação de estupro da moça. O suicídio lhe dava ares de verdade, e os boatos de que policiais de Mill tivessem feito uma coisa daquelas seriam ruins para o moral do departamento e, portanto, para a cidade. Não precisava que Jim Renfie lhe dissesse isso.

— Não sei — respondeu —, mas é possível.

Os olhos de Marty se enchiam d’água, devido à fumaça ou à tristeza. Talvez ambas.

— Temos que deixar o Big Jim a par disso, Pete.

— Eu deixo. Enquanto isso — Randolph mostrou Julia com o queixo — fica de olho nela, e quando ela finalmente se cansar e for embora, arranca tudo aquilo e joga no lugar certo. — Ele indicou a tocha que antes fora um jornal. — Põe o lixo no lixo.

Marty deu uma risadinha.

— Entendido, chefe.

E foi exatamente o que o policial Arsenault fez. Mas não antes que outros moradores da cidade pegassem alguns para examinar sob luz mais forte — meia dúzia, talvez dez. Foram passados de mão em mão nos dois ou três dias seguintes, e lidos até quase literalmente se desfazer.

 

Quando Andy chegou ao hospital, Piper Libby já estava lá. Sentada num banco do saguão, conversando com duas moças que usavam as calças e os blusões de náilon branco das enfermeiras.., embora para Andy parecessem jovens demais para serem enfermeiras de verdade. Ambas tinham chorado e pareciam a ponto de chorar de novo, mas Andy pôde ver que a reverenda Libby tinha sobre elas um efeito calmante. Uma coisa que nunca fora difícil para ele era avaliar as emoções humanas. Às vezes, gostaria de ser melhor na parte do raciocínio.

Ginny Tomlinson estava ali perto, conversando baixinho com um sujeito de aparência mais idosa. Ambos pareciam abalados e estupefatos. Ginny viu Andy e se aproximou dele. O sujeito mais idoso veio atrás. Ela o apresentou como Thurston Marshall e disse que estava ajudando.

Andy deu ao novo conhecido um grande sorriso e um aperto de mão caloroso.

— Prazer em conhecê-lo, Thurston. Sou Andy Sanders. Primeiro vereador.

Piper olhou lá do banco e disse:

— Andy, se você fosse mesmo o primeiro vereador, punha um freio no segundo.

— Entendo que você teve uns dias difíceis — disse Andy, ainda sorrindo. — Todos nós tivemos.

Piper lhe deu um olhar de especial frieza e depois perguntou às mocinhas se não gostariam de ir com ela até o refeitório tomar um chá.

— Uma xícara cairia bem mesmo — disse ela.

— Eu chamei ela depois de te chamar — disse Ginny, como se pedisse desculpas, depois que Piper levou embora as duas auxiliares de enfermagem. — E liguei pra delegacia. Falei com Fred Denton. — Ela franziu o nariz como quem sente um cheiro ruim.

— Ora, Freddy é um bom rapaz — disse Andy, sincero. Seu coração não estava em nada daquilo; seu coração tinha vontade de ainda estar na cama de Dale Barbara, planejando tomar a água cor-de-rosa envenenada, mas ainda assim os velhos hábitos entraram em ação facilmente. Acabava que a ânsia de deixar tudo bem, de acalmar águas revoltas, era como andar de bicicleta. — Me conte o que aconteceu aqui.

Foi o que ela fez. Andy escutou com calma surpreendente, considerando que conhecia a família DeLesseps desde sempre e que, no secundário, saíra uma vez com a mãe de Georgia Roux (Helen beijava com a boca aberta, o que era legal, mas tinha mau hálito, o que não era). Achou que a sua atual planura emocional tinha tudo a ver com a consciência de que, se o telefone não tivesse tocado naquele momento, agora ele estaria inconsciente. Talvez morto. Uma coisa dessas muda o jeito de ver o mundo.

— Dois dos nossos mais novos policiais — disse ele. Soava para si próprio como a gravação que a gente escuta quando liga para o cinema para saber os horários. — Uma já muito ferida quando tentava acalmar aquela confusão no supermercado. Meu Deus, meu Deus.

— Provavelmente não é a melhor hora pra dizer isso, mas não gosto muito do seu departamento de polícia — disse Thurston. — Só que, como agora o policial que realmente me socou está morto, registrar queixa seria irrelevante.

— Qual policial? Frank ou a moça Roux?

— O rapaz. Eu o reconheci apesar do... do desfiguramento fatal.

— Frank DeLesseps socou você? — Andy simplesmente não acreditava nisso. Frankie lhe entregara o jornal Lewiston Sun por quatro anos, sem nunca falhar um dia. Bom, pensando melhor, um ou dois, mas foi por grandes tempestades de neve. E uma vez teve sarampo. Ou foi caxumba?

— Se era esse o nome dele.

— Bom... uau... isso é... — Era o quê? E que importância tinha? O que tinha importância? Mas Andy avançou com heroísmo. — Isso é lamentável, senhor. Em Chester’s Mill, acreditamos em cumprir com as nossas responsabilidades. Em fazer o que é certo. Só que, agora, estamos meio que na mira das armas. Circunstâncias fora do nosso controle, o senhor sabe.

— E como sei! — disse Thurse. — No que me diz respeito, já são águas passadas. Mas, senhor... aqueles policiais eram absurdamente jovens. E muito malcomportados. — Ele fez uma pausa. — A senhorita que me acompanha também foi atacada.

Andy simplesmente não conseguia acreditar que esse sujeito dissesse a verdade. Policiais de Chester’s Mill não machucavam ninguém, a menos que provocados (gravemente provocados); isso era coisa de cidade grande, onde ninguém sabe se relacionar direito. É claro que ele diria que uma moça matar dois policiais e depois tirar a própria vida também era o tipo de coisa que não acontecia em Mill.

Não adianta, pensou Andy. Além de fora da cidade, ele é de fora do estado. É por isso.

— Agora que você está aqui, Andy, não sei direito o que pode fazer — disse Ginny. — Twitch está cuidando dos corpos e...

Antes que ela pudesse continuar, a porta se abriu. Uma moça entrou, trazendo pela mão duas crianças de aparência sonolenta. O sujeito mais velho

— Thurston — abraçou-a enquanto as crianças, uma menina e um menino, olhavam. Ambos estavam descalços e usavam camisetas como camisolas. A do menino, que lhe chegava aos tornozelos, dizia PRISIONEIRO 9091 e PROPRIEDADE DA PENITENCIÁRIA ESTADUAL DE SHAWSHANK. A filha e os netos de Thurston, supôs Andy, e isso o fez sentir de novo saudades de Claudette e Dodee. Afastou a imagem delas. Ginny o chamara para ajudar, e era óbvio que ela precisava de ajuda. Que, sem dúvida, seria escutar enquanto ela contasse toda a história outra vez — não para o bem dele, mas dela. Assim, poderia entender a verdade e começar a aceitá-la em paz. Andy não se incomodava. Sempre fora bom ouvinte, e seria melhor do que olhar três cadáveres, um deles a casca descartada do seu antigo entregador de jornais. Escutar era simples quando a gente se dedicava a isso, até um imbecil saberia escutar, mas Big Jim nunca tivera jeito para a coisa. Big Jim era melhor para falar. E planejar — isso também. Tinham sorte de tê-lo ali numa época daquelas.

Enquanto Ginny desenrolava o segundo recitativo, um pensamento ocorreu a Andy. Um pensamento importante, possivelmente.

— Alguém aqui...

Thurston voltou com os recém-chegados atrás.

— Vereador Sanders... Andy... esta é a minha parceira, Carolyn Sturges. E essas são as crianças de que estamos tomando conta. Alice e Aidan.

— Quero a minha chupeta — queixou-se Aidan.

— Você é velho demais pra usar chupeta — disse Alice, e lhe deu uma cotovelada.

O rosto de Aidan se amassou, mas ele não chegou a chorar.

— Alice — disse Carolyn Sturges —, isso é maldade. E o que nós sabemos sobre gente malvada?

Alice se animou.

— Gente malvada é uma merda! — gritou ela, e caiu na gargalhada. Depois de pensar um instante, Aidan a imitou.

— Sinto muito — disse Carolyn a Andy. — Não tinha ninguém pra cuidar deles, e Thurse parecia tão atormentado quando ligou...

Era difícil acreditar, mas parecia possível que o velho estivesse de amassos com a moça. Para Andy, a ideia tinha interesse apenas passageiro, embora em outras circunstâncias ele pudesse ter ponderado profundamente a respeito, sopesando posições, imaginando se ela lhe dava beijos de língua com aquela boca úmida etc. etc. Agora, entretanto, ele tinha outras coisas a pensar.

— Alguém contou ao marido de Sammy que ela morreu? — perguntou.

— Phil Bushey? — Era Dougie Twitchell, descendo o corredor e chegando à recepção. Os ombros estavam caídos e a pele, acinzentada. — O filhodaputa abandonou ela e saiu da cidade. Meses atrás. — Os seus olhos caíram sobre Alice e Aidan Appleton. — Desculpem, crianças.

— Tudo bem — disse Caro. — Na nossa casa, a linguagem é livre. Assim é muito mais verdadeiro.

— É verdade — Alice elevou a voz. — Podemos dizer merda e mijo quando a gente quiser ao menos até a mamãe voltar.

— Mas piranha não — amplificou Aldan. — Piranha é ex-ista.

Caro não deu atenção ao jogo paralelo.

— Thurse? O que aconteceu?

— Não na frente das crianças — respondeu ele. — Com ou sem liberdade de linguagem.

— Os pais do Frank estão fora da cidade — disse Twitch —, mas entrei em contato com Helen Roux. Ela aceitou a notícia com bastante calma.

— Bêbada? — perguntou Andy.

— Como um gambá. — Andy se afastou um pouco corredor acima. Alguns pacientes, vestidos de pijama e com chinelos do hospital, estavam de costas para ele. Supôs que olhando a cena do massacre. Não tinha vontade de fazer o mesmo e ficou contente por Dougie Twitchell ter cuidado do que precisava ser cuidado. Ele era político e farmacêutico. O seu trabalho era ajudar os vivos, não processar os mortos. E ele sabia algo que aquelas pessoas não sabiam. Não podia lhes contar que Phil Bushey ainda estava na cidade, vivendo como eremita na emissora de rádio, mas podia contar a Phil que a esposa de quem se separara estava morta. Podia e devia. É claro que era impossível prever qual seria a reação de Phil; ele não estava bem esses dias. Poderia explodir. Poderia até matar o portador de más notícias. Mas isso seria tão horrível assim? Os suicidas podiam ir para o inferno e jantar carvões em brasa por toda a eternidade, mas as vítimas de assassinato, Andy tinha bastante certeza, iam para o céu e comiam rosbife e torta de pêssego à mesa do Senhor por toda a eternidade.

Com os seus entes queridos.

 

Apesar do cochilo que dera mais cedo, Julia estava mais cansada do que nunca, ou assim parecia. E, a menos que aceitasse o oferecimento de Rosie, não tinha para onde ir. A não ser o carro, é claro.

Ela voltou a ele, soltou a guia de Horace para que ele pudesse pular no banco do passageiro e depois se sentou atrás do volante, tentando pensar. Gostava bastante de Rose Twitchell, mas Rosie ia querer revisar todo aquele dia longo e angustiante. E ia querer saber, no mínimo, o que fazer com Dale Barbara. Esperaria idéias de Julia, e Julia não tinha nenhuma.

Enquanto isso, Horace a encarava, perguntando, com orelhas inclinadas e olhos brilhantes, o que viria agora. Ele a fez pensar na mulher que perdera o cachorro dela: Piper Libby. Piper a receberia e lhe daria uma cama sem lhe encher os ouvidos. E depois de uma noite de sono, Julia talvez conseguisse pensar de novo. Até planejar um pouco.

Ela ligou o Prius e subiu até a Congregacional. Mas o presbitério estava às escuras, com um bilhete preso na porta. Julia tirou a tachinha, levou o bilhete até o carro e o leu junto à luz da redoma.

Fui até o hospital. Houve um tiroteio por lá.

Julia começou a fazer de novo aquele som de lamento e, quando Horace começou a gemer como se tentasse harmonizar, ela se obrigou a parar. Deu marcha a ré e depois deixou o Prius em ponto morto tempo bastante para devolver o bilhete ao lugar onde o achara, caso outro paroquiano (ou paroquiana) com o peso do mundo nas costas aparecesse à procura do conselheiro espiritual que restava em Mill.

E agora, onde? Rosie, afinal? Mas talvez Rosie já estivesse dormindo. O hospital? Julia se obrigaria a ir para lá, apesar do choque e do cansaço, se tivesse alguma utilidade, mas já não havia mais jornal para noticiar o que ocorrera, e sem isso não havia por que se expor a novos horrores.

Saiu de ré pela entrada de automóveis e entrou na ladeira da praça da Cidade sem ideia de aonde ia até que chegou à rua Prestile. Dali a três minutos, estacionava na entrada da casa de Andrea Grinnell. Mas essa casa também estava às escuras. Ninguém atendeu quando bateu à porta. Sem ter como saber que Andrea estava na cama do andar de cima, profundamente adormecida pela primeira vez desde que largara os comprimidos, Julia supôs que tivesse ido para a casa do irmão Dougie ou que estivesse com algum amigo.

Enquanto isso, Horace, sentado no capacho, a olhava, à espera de que, como sempre, ela assumisse o comando. Mas Julia estava vazia demais para assumir o comando e cansada demais para ir mais longe. Estava mais do que meio convencida de que faria o carro sair da estrada e mataria os dois se tentasse ir a algum lugar.

O que não lhe saía da cabeça não era o prédio em chamas onde armazenara a sua vida, mas o modo como o coronel Cox olhara quando ela lhe perguntou se tinham sido abandonados.

Negativo, dissera ele. Claro que não. Mas não conseguira olhá-la nos olhos ao dizer isso.

Havia um balanço na varanda. Se necessário, ela poderia se deitar ali. Mas talvez...

Ela experimentou a porta e viu que estava destrancada. Hesitou; Horace, não. Firme na crença de que era bem-vindo em toda parte, ele entrou na mesma hora. Julia o seguiu na outra ponta da guia, pensando: Agora o meu cachorro toma as decisões. Esse é o ponto a que cheguei.

— Andrea? — chamou ela, baixinho. — Andi, você está aí? Sou eu, Julia.

Lá em cima, deitada de costas e roncando como um motorista de caminhão depois de uma viagem de quatro dias, só uma parte de Andrea se mexeu: o pé esquerdo, que ainda não abandonara os solavancos e batucadas da crise de abstinência.

Havia penumbra na sala, mas não estava totalmente escuro; Andi deixara na cozinha uma lâmpada a pilha. E havia um cheiro. As janelas estavam abertas, mas sem brisa o cheiro de vômito não saíra completamente. Tinham lhe dito que Andrea estava doente? Gripe, talvez?

Talvez seja gripe, mas também pode ser crise de abstinência se aqueles comprimidos que ela toma acabaram.

Fosse o que fosse, doença era doença, e pessoas doentes não costumam gostar de ficar sozinhas, O que significava que a casa estava vazia. E ela estava tão cansada. Do outro lado da sala havia um belo sofá comprido a chamá-la. Se chegasse no dia seguinte e encontrasse Julia ali, Andi entenderia.

— Ela pode até me preparar uma xícara de chá — disse ela. — E vamos rir disso tudo. — Embora a ideia de algum dia rir de alguma coisa parecesse totalmente inviável para ela agora. — Vem, Horace.

Ela soltou a guia e cruzou a sala. Horace a observou até que ela se deitou e pôs uma almofada do sofá debaixo da cabeça. Então, ele se deitou e pôs o focinho na pata.

— Bom menino — disse ela e fechou os olhos. O que viu nesse momento foram os olhos de Cox sem encontrar os dela. Porque Cox achava que estavam debaixo da Redoma a longo prazo.

Mas o corpo conhece graças das quais o cérebro não tem consciência. Julia adormeceu com a cabeça a menos de um metro do envelope pardo que Brenda tentara lhe entregar naquela manhã. Em algum momento, Horace pulou no sofá e se enrolou entre os joelhos dela. E foi assim que Andrea os encontrou quando desceu na manhã do dia 25 de outubro, sentindo-se como era de verdade, como não se sentia havia anos.

 

Havia quatro pessoas na sala de Rusty: Linda, Jackie, Stacey Moggin e o próprio Rusty. Ele serviu copos de chá gelado e resumiu o que encontrara no porão da Funerária Bowie. A primeira pergunta veio de Stacey, e era puramente prática.

— Vocês se lembraram de trancar tudo?

— Claro — respondeu Linda.

— Então me deem a chave. Tenho que pôr de volta no lugar.

Nós e eles, pensou Rusty de novo. Esse vai ser o tema dessa conversa. Já é o tema dela. Os nossos segredos. O poder deles. Os nossos planos. Os interesses deles.

Linda entregou a chave e perguntou a Jackie se as meninas tinham dado trabalho.

— Nenhuma convulsão, se é isso que te preocupa. Dormiram feito cordeirinhos durante o tempo todo em que vocês estiveram fora.

— O que nós vamos fazer agora? — perguntou Stacey. Era pequenina, mas decidida. — Se quiserem prender Rennie, nós quatro vamos ter que convencer o Randolph a fazer isso. Nós três como policiais, Rusty como legista em exercício.

— Não! — disseram Jackie e Linda juntas, Jackie com determinação, Linda com medo.

— Nós temos uma hipótese, mas nenhuma prova verdadeira — disse Jackie. — Duvido que Pete Randolph acredite em nós, mesmo que tivéssemos fotografias do Big Jim quebrando o pescoço da Brenda. Agora ele e Rennie estão juntos, pro bem e pro mal. E a maioria dos policiais vai ficar do lado do Pete.

— Principalmente os novos — disse Stacey, e ajeitou a nuvem de cabelo louro. — Muitos não são lá muito inteligentes, mas são dedicados. E gostam de andar armados. Além disso — ela se inclinou à frente —, hoje tem mais uns seis ou oito. Tudo garoto de escola. Grandes, estúpidos e entusiasmados. Eles me deixam apavorada. E mais uma coisa. Thibodeau, Searles e Junior Rennie estão pedindo aos novatos que indiquem ainda mais. Daqui a um ou dois dias, não vai ser mais uma força policial, vai ser um exército de adolescentes.

— Nenhum nos daria ouvidos? — perguntou Rusty. Não com descrença, exatamente; simplesmente tentava conferir a situação. — Nenhum mesmo?

— Henry Morrison, talvez — disse Jackie. — Ele já percebeu o que está acontecendo e não gosta. Mas os outros? Eles vão na onda. Em parte por estarem com medo, em parte porque gostam do poder. Caras como Toby Whelan e George Frederick nunca tiveram poder; caras como Freddy Denton são só maus.

— E isso significa o quê? — perguntou Linda.

— Significa que por enquanto guardamos isso em segredo. Se o Rennie matou quatro pessoas, ele é muito, muito perigoso.

— Esperar vai torná-lo mais e não menos perigoso — foi a objeção de Rusty.

— Temos que pensar na Judy e na Janelle, Rusty — disse Linda. Ela roía as unhas, coisa que Rusty não a via fazer havia anos. — Não podemos correr o risco de acontecer alguma coisa a elas. Não quero pensar nisso e não quero que você pense nisso.

— Eu também tenho um filho — disse Stacey. — Calvin. Só tem 5 anos. Tive que juntar toda a minha coragem pra ficar de guarda na funerária agora à noite. A ideia de contar isso àquele idiota do Randolph... — Ela não precisou terminar; a palidez do rosto era eloquente.

— Ninguém está te pedindo isso — disse Jackie.

— Até agora, só posso provar que a bola de beisebol foi usada no Coggins — disse Rusty. — Pode ter sido usada por qualquer um. Droga, até o filho dele poderia usá-la.

— Na verdade isso não seria um choque pra mim — comentou Stacey. — Junior tem andado esquisito ultimamente. Foi expulso da Bowdoin por brigar. Não sei se o pai dele sabe, mas a polícia ligou pro ginásio onde aconteceu e eu vi o relatório dos telefonemas. E as duas moças... se foram crimes sexuais...

— Foram — disse Rusty. — Muito asqueroso. É melhor nem saber.

— Mas Brenda não foi atacada sexualmente — disse Jackie. — Pra mim, isso indica que Coggins e Brenda foram diferentes das moças.

— Talvez o Junior tenha matado as moças e o velho, Brenda e Coggins — disse Rusty, à espera de que alguém risse. Ninguém riu. — Se for isso, por quê?

Todos balançaram a cabeça.

— Tem que haver um motivo — disse Rusty —, mas duvido que tenha sido sexo.

— Você acha que ele tem algo a esconder — palpitou Jackie.

— Acho, sim. E tenho uma ideia de alguém que talvez saiba o que é. Está trancado no subsolo da delegacia de polícia.

— Barbara? — perguntou Jaclcie. — Por que o Barbara saberia?

— Porque andou conversando com a Brenda. Tiveram um pequeno tête-à-têt no quintal dela um dia depois de a Redoma cair.

— Como é que você sabe disso? — perguntou Stacey.

— É que os Buffalino moram ao lado dos Perkins, e a janela do quarto da Gina dá pro quintal do vizinho. Ela viu e me contou. — Ele viu Linda olhá-lo e deu de ombros. — O que você quer que eu diga? É uma cidade pequena. Pro time nós todos torcemos.

— Espero que você tenha dito a ela que ficasse de boca fechada — disse Linda.

— Não disse porque quando ela me contou não havia nenhuma razão pra desconfiar que Big Jim poderia ter matado Brenda. Nem batido na cabeça do Lester com um suvenir em forma de bola de beisebol. Eu nem sabia que eles estavam mortos.

— Ainda não sabemos se o Barbie sabe alguma coisa — retrucou Stacey. — Além da receita de um omelete maravilhoso de queijo com champignon.

— Alguém vai ter que perguntar a ele — disse Jackie. — Eu sou voluntária.

— Mesmo que ele saiba alguma coisa, de que adianta? — perguntou Linda. — Agora isso aqui é quase uma ditadura. Estou me dando conta agora. Acho que isso prova que sou meio lerda.

— Prova mais que você confia nos outros do que é lerda — disse Jackie —, e normalmente confiar é uma coisa boa. Quanto ao coronel Barbara, só vamos saber se vai adiantar depois que nós perguntarmos. — Ela fez uma pausa. — E a questão não é nem essa, sabe. Ele é inocente. Essa é a questão.

— E se matarem ele? — perguntou Rusty sem rodeios. — Um tiro quando tentava fugir.

— Tenho bastante certeza de que isso não vai acontecer — respondeu Jackie. — Big Jim quer fazer um julgamento-espetáculo. É só o que se fala na delegacia. — Stacey concordou. — Querem fazer com que todos acreditem que o Barbara é uma aranha que tece uma imensa teia de conspirações. Aí vão executá-lo. Mas mesmo que avancem à velocidade máxima, isso ainda leva alguns dias. Semanas, se tivermos sorte.

— Não vamos ter essa sorte — afirmou Linda — se o Rennie quiser andar depressa.

— Talvez você tenha razão, mas primeiro o Rennie tem que encarar a assembléia especial da cidade na quinta-feira. E vai querer interrogar o Barbara. Se o Rusty sabe que ele esteve com a Brenda, então o Rennie sabe.

— É claro que sabe — disse Stacey. Com voz impaciente. — Estavam juntos quando o Barbara mostrou ao Jim a carta do presidente.

Todos pensaram nisso por um minuto, em silêncio.

— Se o Rennie está escondendo alguma coisa — ponderou Linda —, vai precisar de tempo pra se livrar dela.

Jackie riu. Naquela sala tensa, o som foi quase um choque.

— Boa sorte com isso. Seja lá o que for, ele não pode pôr nada na carro- cena de um caminhão e sair da cidade.

— Algo a ver com o gás? — perguntou Linda.

— Talvez — disse Rusty. — Jackie, você serviu, não foi?

— No Exército. Dois períodos. Polícia do Exército. Nunca estive em combate, embora tenha visto muitas baixas, principalmente no segundo período. Würzburg, Alemanha, Primeira Divisão de Infantaria. Sabe, a Vermelhona? A maior parte do tempo, interrompi brigas de bar e fiquei de guarda na frente do hospital de lá. Conheci caras como o Barbie, e daria tudo pra que ele estivesse fora daquela cela, aqui do nosso lado. Há razões para o presidente pôr ele no comando. Ou tentar. — Ela fez uma pausa. — Talvez seja possível tirar ele de lá. Vale a pena pensar.

As duas outras mulheres — policiais que por acaso também eram mães — nada disseram, mas Linda mordiscava as unhas de novo e Stacey torturava o cabelo.

— Eu sei — disse Jackie.

Linda fez que não.

— Se você não tem filhos dormindo lá em cima que dependem de você pra fazer o café da manhã, não sabe, não.

— Talvez não, mas perguntem o seguinte a si mesmas: se nós estivermos isolados do mundo exterior, e estamos, e se o homem no comando é um maluco assassino, e talvez seja, a situação vai melhorar se a gente simplesmente ficar aqui sentada sem fazer nada?

— Se tirarem ele de lá — perguntou Rusty —, o que vão fazer com ele? Não podem, digamos, colocá-lo no Programa de Proteção às Testemunhas.

— Não sei — respondeu Jackie com um suspiro. — Só sei que o presidente ordenou que ele assumisse o comando e que Big Jim Bostalhão Rennie prendeu ele por assassinato pra que isso não acontecesse.

— Vocês não vão fazer nada agora — disse Rusty. — Nem mesmo tentar conversar com ele. Há outra coisa em andamento aqui que pode mudar tudo.

Ele lhes falou do contador Geiger — de como chegara às suas mãos, a quem ele o passara e o que Joe McClatchey afirmava ter encontrado com ele.

— Não sei — disse Stacey, em dúvida. — Parece bom demais pra ser verdade. O garoto McClatchey tem... quanto? Catorze anos?

— Treze, acho. Mas é um menino inteligente e, se ele diz que encontraram um pico de radiação na estrada da Serra Negra, eu acredito. Se acharam a coisa que gera a Redoma e se nós conseguirmos desligá-la...

— Então isso acaba! — gritou Linda. Os olhos dela brilhavam. — E Jim Rennie desmorona que nem... um balão de Ação de Graças furado!

     — Não seria bom? — perguntou Jackie Wettington. — Se passasse na TV talvez eu até acreditasse.

 

— Phil? — chamou Andy. — Phil?

Teve de elevar a voz para ser ouvido. Bonnie Nandella e The Redemption levavam My Soul is a Witness a todo volume. Todos aqueles ooo-oohs e oooa-iééés eram meio desnorteantes. Até a luz forte dentro da sala de transmissão da WCIK era desnorteante; antes de ficar embaixo daquelas lâmpadas fluorescentes, Andy não percebera como o resto de Mill estava escuro. E como ele tinha se adaptado.

— Chef?

Nenhuma resposta. Ele deu uma olhada na TV (CNN com o som desligado) e depois espiou dentro do estúdio pela janela comprida. As lâmpadas também estavam acesas ali, e todo o equipamento funcionava (isso lhe dava arrepios, embora Lester Coggins tivesse explicado com grande orgulho como o computador gerenciava tudo), mas não havia sinal de Phil.

De repente, sentiu cheiro de suor, velho e azedo. Virou-se e Phil estava bem atrás dele, como se tivesse surgido do chão. Segurava numa das mãos um objeto que parecia um controle de porta de garagem. Na outra, havia uma pistola. A pistola estava apontada para o peito de Andy. O dedo curvado em torno do gatilho tinha os nós brancos e o cano tremia de leve.

— Oi, Phil — disse Andy. — Chef, quero dizer.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou Chef Bushey. O cheiro do seu suor era fermentado, esmagador. Os jeans e a camiseta da WCIK estavam imundos. Os pés estavam descalços (talvez responsáveis pela chegada em silêncio) e cobertos de terra. O cabelo devia ter sido lavado um ano antes. Ou não. O pior eram os olhos, injetados e aflitos. — É melhor falar depressa, velhote, senão nunca mais fala mais nada.

Andy, que havia pouco tempo brincara com a morte na água rosa, recebeu com equanimidade a ameaça do Chef, para não dizer com alegria.

— Faça o que tiver que fazer, Phil. Chef, quero dizer.

Chef ergueu as sobrancelhas com surpresa. Era turva, mas genuína.

— É?

— É claro.

— Por que você veio aqui?

— Vim trazer más notícias. Sinto muitíssimo.

Chef pensou no caso, depois sorriu, revelando os poucos dentes que restavam.

— Não há más notícias. Cristo está voltando, e essa é a boa notícia que engole todas as más notícias. É a Faixa Bônus das Boas Notícias. Não concorda?

— Concordo e digo aleluia. Infelizmente, ou felizmente, acho; teríamos que dizer felizmente, a sua mulher já está com Ele.

— Como é?

Andy estendeu a mão e empurrou o cano da arma para o chão. Chef não tentou impedi-lo.

— Samantha está morta, Chef. Sinto dizer que ela tirou a própria vida hoje à noite.

— Sammy? Morta? — Chef largou a arma na caixa de saída de uma escrivaninha próxima. Também baixou o controle de porta de garagem, mas não o largou; nos dois últimos dias, não saíra da sua mão, nem durante os períodos de sono cada vez menos frequentes.

— Sinto muito, Phil. Chef.

Andy explicou as circunstâncias da morte de Sammy do modo como as entendia, concluindo com a notícia confortadora de que “a criança” estava bem. (Mesmo no seu desespero, Andy Sanders era do tipo que vê o copo meio cheio.)

Chef fez um gesto com o controle da porta da garagem, espantando para longe o bem-estar do Pequeno Walter.

— Ela detonou dois macacos?

Com isso, Andy se enrijeceu.

— Eram policiais, Phil. Bons seres humanos. Ela estava atormentada, tenho certeza, mas ainda assim foi uma coisa muito ruim. Você precisa retirar isso.

— Como é?

— Não gostei de você chamar os policiais de macacos.

Chef reconsiderou.

— Tá, tá, ok, ok, eu retiro isso.

— Obrigado.

Chef se curvou com a sua altura nada desprezível (era como receber a reverência de um esqueleto) e espiou o rosto de Andy.

— Filho da puta corajoso, você, hein?

— Não — disse Andy, com franqueza. — É só que eu não me importo.

Chef pareceu ver algo que o preocupou. Segurou o ombro de Andy.

— Irmão, você está bem?

Andy caiu em prantos e despencou numa cadeira de escritório debaixo de um cartaz anunciando que CRISTO ASSISTE A TODOS OS CANAIS, CRISTO ESCUTA TODAS AS FREQUÊNCIAS. Descansou a cabeça na parede abaixo desse lema estranhamente sinistro, chorando como uma criança castigada por roubar geleia. Fora o irmão que causara aquilo; aquele irmão totalmente inesperado.

Chef puxou uma cadeira de trás da escrivaninha do gerente da emissora e estudou Andy com a expressão do naturalista que observa algum animal raro no ambiente selvagem. Dali a pouco, disse:

— Sanders! Você veio aqui pra que eu te matasse?

— Não — disse Andy entre soluços. — Talvez. É. Não sei. Mas tudo na minha vida deu errado. A minha mulher e a minha filha estão mortas. Acho que Deus pode estar me punindo por vender essa merda...

Chef concordou.

— Pode ser.

— ... e eu estou procurando respostas. Ou uma conclusão. Ou alguma coisa. Claro que também queria te contar da sua esposa, é importante fazer o que é certo...

Chef lhe deu um tapinha no ombro.

— Você fez, cara. Agradeço. Ela não era grande coisa na cozinha e cuidava da casa como um porco num monte de esterco, mas sabia dar uma trepada sobrenatural quando estava doidona. Qual era o problema dela com aqueles dois meganhas?

Mesmo na sua tristeza, Andy não tinha a intenção de citar a acusação de estupro.

— Acho que estava nervosa com a Redoma. Sabe da Redoma, Phil? Chef?

Chef acenou com a mão de novo, aparentemente na afirmativa.

— O que você diz sobre a meth está certo. Vender é errado. Uma afronta. Mas fazer... é a vontade de Deus.

Andy deixou as mãos caírem e espiou o Chef com os olhos inchados.

— Acha mesmo? Porque não tenho certeza de que isso está certo.

— Já experimentou?

— Não! — gritou Andy. Era como se o Chef lhe perguntasse se já tivera relações sexuais com um cocker spaniel.

— Você tomaria remédios se o médico mandasse?

— Ora... claro, mas...

— Meth é remédio. — Chef o olhou solenemente e bateu com o dedo no peito de Andy para dar ênfase. Ele roera a unha até o sabugo ensanguentado. — Meth é remédio. Repete.

— Meth é remédio — repetiu Andy, com bastante boa vontade.

— Isso mesmo. — Chef se levantou. — É remédio pra melancolia. Quem disse foi Ray Bradbury. Já leu Ray Bradbury?

— Não.

— Era uma puta cabeça. Ele sabia. Descreveu a foda do barato, aleluia. Vem comigo. Vou mudar a sua vida.

 

O primeiro vereador de Chester’s Mill se afeiçoou à metanfetamina como uma rã às moscas.

Havia um sofá velho e puído atrás dos fogões enfileirados, e ali Andy e Chef Bushey se acomodaram sob uma imagem de Cristo de motocicleta (título: Seu parceiro de estrada invisível), passando o cachimbo de lá para cá. Quando queima, a meth tem cheiro de mijo de três dias num penico descoberto, mas depois da primeira baforada hesitante, Andy sentiu com firmeza que o Chef estava certo: vender aquilo poderia ser obra de Satã, mas a coisa em si tinha que ser de Deus. O mundo entrou num foco maravilhoso e delicadamente trêmulo, como nunca vira antes. O coração disparou, os vasos sanguíneos do pescoço incharam como cabos pulsantes, as gengivas comicharam e as bolas se contraíram do jeito mais deliciosamente adolescente. Melhor do que tudo isso, o cansaço que caíra sobre os seus ombros e enlameara o seu pensamento sumiu. Sentiu que conseguiria remover montanhas com um carrinho de mão.

— No Jardim do Éden havia uma Árvore — disse o Chef, passando-lhe o cachimbo. Tentáculos de fumaça verde saíam de ambas as pontas. — A Árvore do Bem e do Mal. Saca essa?

— Claro. Está na Bíblia.

— Pode crer. E naquela Árvore havia uma Maçã.

— Isso, isso. — Andy deu uma baforada tão pequena que na verdade era um golinho. Queria mais, queria tudo, mas temia que, caso se servisse de uma tragada de encher o pulmão, a cabeça explodiria para fora do pescoço e voaria pelo laboratório como um foguete, soltando labaredas de exaustão pelo toco.

— A polpa daquela Maçã é a Verdade, e a casca daquela Maçã é Meth — disse o Chef.

Andy o olhou.

— Isso é fantástico.

O Chef concordou.

— Isso, Sanders. É mesmo. — Pegou o cachimbo de volta. — Essa potra é boa ou o quê?

— É sensacional.

— Cristo vai voltar no Halloween — afirmou o Chef. — Talvez alguns dias antes, não sei direito. Já é a temporada de Halloween, sabe. Temporada da bruxa filha da mãe. — Entregou o cachimbo a Andy e depois apontou com a mão que segurava o controle de porta de garagem. — Está vendo aquilo? No final do corredor. Em cima da porta do depósito.

Andy olhou.

— O quê? Aquela massa branca? Que parece barro?

— Não é barro — explicou o Chef. — Aquilo é o Corpo de Cristo, Sanders.

— E aqueles fios que saem dele?

— Veias com o Sangue de Cristo correndo por elas.

Andy pensou na idéia e a achou brilhante.

— Ótimo. — Pensou mais um pouco. — Amo você, Phil. Chef, quer dizer. Estou contente de ter vindo aqui.

— Eu também — disse o Chef. — Escuta, quer dar um passeio? Tenho um carro em algum lugar, acho, mas estou tremendo um pouco.

— Claro — disse Andy. Ele se levantou, O mundo oscilou um ou dois instantes e se firmou. — Aonde você quer ir?

O Chef lhe disse.

 

Ginny Tomlinson estava adormecida na mesa da recepção, com a cabeça sobre a capa de uma revista People — Brad Pitt e Angelina Jolie pulando na espuma de alguma ilhota sensual onde os garçons traziam drinques com guarda-soizinhos de papel. Quando algo a acordou às 2h15 da madrugada de quarta-feira, havia uma aparição diante dela: um homem alto e esquálido, de olhos fundos e cabelo espetado em todas as direções. Usava uma camiseta da WCIK e jeans que flutuavam baixos nos quadris magros. A princípio ela achou que era um pesadelo com cadáveres ambulantes, mas depois sentiu o cheiro dele. Nenhum sonho poderia feder tanto.

— Sou Phil Bushey — disse a aparição. — Vim buscar o corpo da minha mulher. Vou enterrar ela. Me mostra onde ela está.

Ginny não discutiu. Ela lhe daria todos os corpos só para se livrar dele. Passou com ele por Gina Buffalino, que estava em pé junto a uma maca, observando o Chef com apreensão pálida. Quando se virou para olhá-la, ela se encolheu.

— Já arranjou a fantasia de Halloween, criança? — indagou o Chef.

— Já...

— Quem você vai ser?

— Glinda — disse a moça baixinho. — Mas acho que não vou mesmo à festa. É em Motton.

— Eu vou de Jesus — disse o Chef. Ele seguiu Ginny, um fantasma sujo com All Stars sujos de cano alto. Depois se virou. Sorria. Os olhos estavam vazios. — E estou puto.

 

Dez minutos depois, Chef Bushey saiu do hospital levando nos braços o corpo de Sammy enrolado num lençol. Um pé descalço, com as unhas pintadas de esmalte pink lascado, balançava. Ginny segurou a porta para ele. Não olhou para ver quem estava atrás do volante do carro em marcha lenta no retorno, e por isso Andy ficou vagamente agradecido. Esperou até ela entrar de volta; depois saiu e abriu uma das portas de trás para o Chef, que depositou o seu fardo com facilidade para um homem que agora não parecia mais do que pele enrolada numa estrutura de osso. Talvez, pensou Andy, a meth também dê forças. Se assim fosse, as suas afrouxavam. A depressão vinha voltando. O cansaço também.

— Tudo bem — disse o Chef. — Dirija. Mas primeiro me passa isso aí.

Ele entregara o controle de porta de garagem para Andy guardar. Andy o devolveu.

— Até a funerária?

Chef o olhou como se estivesse maluco.

— De volta pra estação da rádio. É lá que Cristo vai primeiro quando voltar.

— No Halloween.

— Isso mesmo — disse o Chef. — Ou talvez antes. Enquanto isso, você me ajuda a enterrar essa filha de Deus?

— É claro — disse Andy. Depois, timidamente: — Talvez antes a gente pudesse fumar um pouco mais.

Chef riu e deu um tapinha no ombro de Andy.

— Gostou, não foi? Sabia que você ia gostar.

— Remédio para a melancolia — disse Andy.

— Verdade, irmão. Verdade.

 

Barbie ficou deitado no catre, esperando a aurora e o que viesse depois. Na época do Iraque, ele se treinara para não se preocupar com o que viesse depois, e embora na melhor das hipóteses essa habilidade fosse imperfeita, até certo ponto ele conseguia. Afinal, havia apenas duas regras para conviver com o medo (ele passara a acreditar que vencer o medo era mito), e agora as repetia para si enquanto esperava.

Tenho que aceitar as coisas que não controlo.

Tenho que transformar adversidade em vantagem.

A segunda regra envolvia preservar cuidadosamente todos os recursos e planejar sem se esquecer deles.

Ele tinha um recurso enfiado no colchão: o seu canivete suíço do Exército. Era dos pequenos, com apenas duas lâminas, mas até a menor delas era capaz de cortar a garganta de um homem. Era uma sorte incrível estar com ele, e Barbie sabia disso.

Qualquer que fosse, a rotina imposta por Howard Perkins se esfarelara depois da sua morte e da ascensão de Peter Randolph. Barbie achava que os choques sofridos pela cidade nos últimos quatro dias abalariam qualquer departamento de polícia, mas não era só isso. Em resumo, Randolph era estúpido e preguiçoso e, em qualquer burocracia, os subalternos tendiam a seguir o exemplo de quem estivesse por cima.

Tinham tirado fotos suas e tomado as impressões digitais, mas levaram cinco horas até que Henry Morrison, com cara de cansaço e nojo, descesse e parasse a quase 2 metros da cela de Barbie. Bem longe para não ser agarrado.

— Esqueceu alguma coisa, não foi? — perguntou Barbie.

— Esvazia os bolsos e joga tudo no corredor — disse Henry — Depois tira as calças e passa pela grade.

— Se eu obedecer, pode me dar algo pra beber pra eu não ter que tomar água no vaso sanitário?

— Do que você está falando? Junior trouxe água pra você. Eu vi.

— Ele jogou sal dentro.

— Isso. Com certeza. — Mas Henry parecera um pouco inseguro. Talvez ainda houvesse um ser humano pensante em algum lugar lá dentro. — Faz o que eu estou mandando, Barbie. Barbara, quero dizer.

Barbie esvaziou os bolsos: carteira, chaves, moedas, algumas notas, a medalha de São Cristóvão que usava como talismã de boa sorte. Nisso, o canivete suíço já tinha sumido há muito tempo dentro do colchão.

— Pode continuar me chamando de Barbie quando puser a corda no meu pescoço, se quiser. É nisso que o Rennie está pensando? Forca? Ou pelotão de fuzilamento?

— Só cala a boca e joga as calças pela grade. A camisa também.

Henry soava igualzinho a um durão de cidade pequena, mas Barbie achou que parecia mais inseguro do que nunca. Isso era bom. Isso era um começo.

Dois dos novos policiais-garotos tinham descido. Um segurava uma lata de gás de pimenta; o outro, uma arma de eletrochoque.

— Precisa de ajuda, policial Morrison? — perguntou um deles.

— Não, mas vocês podem parar aí no pé da escada e ficar de olho até eu terminar aqui — respondera Henry.

— Não matei ninguém — disse Barbie baixinho, mas com toda a sinceridade genuína que conseguiu arranjar. — E acho que você sabe disso.

— O que eu sei é que é melhor você calar a boca, a menos que queira levar um choque.

Henry vasculhou as roupas, mas não mandou Barbie tirar a cueca nem abrir a boca. Uma revista tardia e malfeita, mas Barbie lhe deu alguns pontos por ter se lembrado — ninguém mais pensara naquilo.

Quando terminou, Henry chutou os jeans, agora de bolsos vazios e sem cinto, de volta por entre as grades.

— Pode me devolver a medalha?

— Não.

— Henry, pensa bem. O que eu faria...

— Cala a boca.

De cabeça baixa, com os pertences pessoais de Barbie nas mãos, Henry passou entre os dois policiais-garotos. Os policiais-garotos foram atrás, um parando tempo suficiente para sorrir para Barbie e passar o dedo no pescoço.

Desde então, ficara sozinho, sem nada para fazer a não ser deitar no catre e olhar a pequena fenda da janela (vidro corrugado opaco reforçado com arame), esperando o nascer do sol e se perguntando se realmente tentariam usar nele o afogamento simulado ou se Searles só estava arrotando vantagens. Se tentassem e fossem tão ruins naquilo quanto em revista de prisioneiros, havia uma boa probabilidade de o afogarem.

Ele também se perguntou se alguém não desceria antes do amanhecer. Alguém com uma chave. Alguém... que poderia ficar um pouco perto demais da porta. Com o canivete, a fuga não era completamente impossível, mas assim que o sol nascesse provavelmente seria. Talvez devesse ter tentado em Junior quando este lhe passara o copo d’água salgada pela grade... só que Junior estava com muita vontade de usar a arma. A probabilidade seria pequena e Barbie não estava tão desesperado assim. Ao menos, ainda não.

Além disso... pra onde eu iria?

Mesmo que fugisse e sumisse, podia estar deixando para os amigos um mundo de dor. Depois de exaustivo “interrogatório” por policiais como Melvin e Junior, talvez eles viessem a considerar a Redoma o menor dos seus problemas. Agora era Big Jim que estava na sela, e gente como ele, quando chegava lá, tendia a esporear com força. Às vezes, até o cavalo cair.

Ele caiu num sono leve e perturbado. Sonhou com a loura na velha picape Ford. Sonhou que ela parava para ele e os dois saíam de Chester’s Mill bem a tempo. Ela desabotoava a blusa para mostrar os bojos de um sutiã violeta rendado quando uma voz disse:

— Ei, você, babacão. Hora de acordar.

 

Jackie Wettington passou a noite na casa dos Everett, e, embora as crianças estivessem tranquilas e a cama do quarto de hóspedes fosse confortável, não conseguiu dormir. Às quatro horas da manhã, decidiu o que precisava fazer. Entendia os riscos; também entendia que não conseguiria descansar com Barbie numa cela do porão da delegacia. Se fosse capaz de se adiantar e organizar algum tipo de resistência — ou apenas uma investigação a sério dos assassinatos —, achava que já teria começado. Mas se conhecia bem demais para sequer pensar no caso.

Fora bastante boa no que fizera em Guam e na Alemanha — quase tudo se resumia a enxotar soldados bêbados dos bares, perseguir desertores e arrumar a bagunça depois de acidentes de carro na base —, mas o que acontecia em Chester’s Mill estava bem além das atribuições de um primeiro-sargento. E da única policial de rua que trabalhava em horário integral com um monte de homens de cidade pequena que a chamavam pelas costas de policial Peitchola. Achavam que ela não sabia, mas sabia, sim. E agora um pouco de sexismo ginasial era a sua menor preocupação. Isso tinha que acabar, e Dale Barbara era o homem que o presidente dos Estados Unidos escolhera para dar fim àquilo. O prazer do comandante em chefe não era sequer o mais importante. A primeira regra era não deixar o seu pessoal para trás. Isso era sagrado, o Famoso Automático.

Tinha que começar fazendo Barbie saber que não estava sozinho. Então ele poderia planejar as suas ações com isso em mente.

Às cinco da manhã, quando Linda desceu de camisola, as primeiras luzes tinham começado a se esgueirar pelas janelas, revelando árvores e arbustos perfeitamente imóveis. Nem um sopro de brisa.

— Preciso de um Tupperware — disse Jackie. — Uma vasilha. Tem que ser pequeno e precisa ser opaco. Você tem algo assim?

— Claro, mas por quê?

— Porque nós vamos levar café da manhã pro Dale Barbara — disse Jackie. — Flocos de cereais. E vamos pôr um bilhete no fundo.

— Do que você está falando? Jackie, não posso fazer isso. Tenho filhos.

— Eu sei. Mas não posso fazer sozinha, porque senão não me deixam descer lá. Talvez se eu fosse homem, mas não equipada com isso. — Ela apontou os seios. — Preciso de você.

— Que tipo de bilhete?

— Eu vou soltá-lo amanhã à noite — disse Jackie, com mais calma do que sentia. — Durante a grande assembleia da cidade. Não vou precisar de você nessa parte...

— Você não vai me envolver nessa parte! — Linda segurava com força o decote da camisola.

— Fala baixo. Estou pensando talvez em Romeo Burpee, supondo que consiga convencê-lo de que o Barbie não matou a Brenda. Vamos usar toucas ninjas ou coisa parecida pra ninguém nos identificar. Ninguém vai ficar surpreso; todo mundo da cidade já acha que ele tem cúmplices.

— Você tá maluca!

— Não. Na delegacia só vai ficar um mínimo de pessoal durante a assembleia; três, quatro pessoas. Talvez só dois. Tenho certeza disso.

— Eu não!

— Mas a noite de amanhã ainda tá longe. Ele vai ter que aguentar ao menos até lá. Agora, me arranja o pote.

— Jackie, não posso fazer isso.

— Pode sim. Era Rusty, parado na porta e parecendo relativamente enorme com os shorts de ginástica e uma camiseta dos New England Patriots. — É hora de começarmos a correr riscos, com ou sem filhos. Estamos por nossa conta aqui, e isso tem que parar.

Linda o olhou um instante, mordendo os lábios. Depois, se abaixou até um dos armários de baixo.

— Os Tupperwares estão aqui.

 

Quando chegaram à delegacia, a recepção estava vazia — Freddy Denton fora para casa dormir —, mas havia meia dúzia de policiais mais jovens por ali, tomando café e conversando, empolgados o suficiente para se levantarem num horário que à maioria deles não experimentava de forma consciente havia muito tempo. Entre eles, Jackie viu dois dos múltiplos irmãos Killian, uma frequentadora do Dipper’s e motoqueira de cidade pequena chamada Lauren Conree e Carter Thibodeau. Os outros não conhecia pelo nome, mas reconheceu dois como gazeteiros crônicos do colégio que já tinham várias pequenas infrações de trânsito e registros de porte de drogas no currículo. Os novos “policiais” — os mais novos dentre os novos — não estavam fardados, mas usavam retalhos de pano azul amarrados no alto do braço.

Todos estavam armados, menos um.

— O que vocês duas estão fazendo aqui tão cedo? — perguntou Thibodeau, vindo na direção delas. — Eu tenho uma desculpa: os analgésicos acabaram.

Os outros gargalharam como ogros.

— Trouxemos o café da manhã do Barbara — disse Jackie. Ela teve medo de olhar para Linda, medo da expressão que veria no rosto de Linda.

Thibodeau espiou dentro do pote.

— Sem leite?

— Ele não precisa de leite — disse Jackie, e cuspiu no pote de flocos de milho. — Eu dou uma molhadinha pra ele.

Os outros deram vivas. Vários bateram palmas.

Jackie e Linda chegaram até a escada e Thibodeau disse:

— Me dá isso.

Por um instante, Jackie ficou paralisada. Ela se viu jogando o pote nele e depois saindo correndo. O que a impediu foi um fato bem simples: não tinham para onde fugir. Mesmo que conseguissem sair da delegacia, seriam agarradas antes de chegar ao Memorial de Guerra.

Linda pegou o Tupperware da mão de Jackie e o estendeu. Thibodeau espiou lá dentro. Depois, em vez de investigar os flocos para ver se havia prêmios escondidos, também cuspiu.

— Minha contribuição — disse ele.

— Espera um instante, espera um instante — disse a garota Conree. Era uma ruiva alta e magra, com corpo de modelo e o rosto furado de acne. A voz estava um pouco fanhosa, porque o dedo estava enfiado no nariz até a segunda falange. — Tenho uma coisa aqui também.

O dedo saiu com uma meleca enorme na ponta. A srta. Conree depositou-a em cima dos flocos, com mais aplausos e o grito de alguém: “Laurie cava ouro verde!”

— Todas as caixas de flocos de milho vêm com um brinquedinho surpresa — disse ela, sorrindo vagamente. Soltou a mão na coronha do 45 que levava. Magra como era, Jackie achou que o recuo provavelmente a jogaria longe se ela tivesse ocasião de atirar.

— Tudo pronto — disse Thibodeau. — Vou com vocês.

— Ótimo — disse Jackie, e quando pensou em como chegara perto de apenas pôr o bilhete no bolso e tentar entregá-lo a Barbie, sentiu um arrepio. De repente, o risco que corriam parecia loucura... mas agora era tarde demais. — Mas fica atrás, na escada. E Linda, fica atrás de mim. Não vamos correr riscos.

Ela achou que talvez ele achasse ruim, mas ele não disse nada.

 

Barbie sentou-se no catre. Do outro lado da grade estava Jackie Wettington com um pote de plástico branco numa das mãos. Atrás dela, Linda Everett segurava com as duas mãos a arma desembainhada e apontada para o chão. Carter Thibodeau era o último da fila, no pé da escada, com o cabelo despenteado e a camisa azul da farda desabotoada para mostrar a atadura que cobria a mordida de cachorro no ombro.

— Olá, policial Wettington — disse Barbie. Uma luz branca e tênue se esgueirava pela fenda da sua janela. Era o tipo de primeira luz que faz a vida parecer a maior das piadas. — Sou inocente de tudo que me acusam. Não posso falar em indiciamento, porque não fui...

— Cala a boca — disse Linda detrás dela. — Não estamos interessados.

— E isso aí, Lourinha — disse Carter. — Manda ver, garota.

Ele bocejou e coçou a atadura.

— Fica aí sentado — disse Jackie. — Não mova um músculo.

Barbie sentou-se. Ela empurrou o pote plástico por entre as grades. Era pequeno e passou.

Ele pegou o pote. Estava cheio de flocos de milho. O cuspe brilhava em cima dos flocos secos. Havia outra coisa também: uma melecona verde, úmida e riscada de sangue. Mesmo assim, a barriga roncou. Estava com muita fome.

Também estava ferido, apesar de tudo. Porque achara que Jackie Wettington, que reconhecera como ex-militar da primeira vez que a viu (em parte era o corte de cabelo, mas principalmente a postura dela), era uma pessoa melhor. Fora fácil lidar com o nojo de Henry Morrison. Aquilo era mais difícil. E a outra policial, casada com Rusty Everett, o olhava como se ele fosse uma espécie rara de inseto perigoso. Ele tivera esperanças de que ao menos alguns policiais regulares do departamento...

— Come — mandou Thibodeau do seu lugar nos degraus. — Preparamos direitinho pra você. Não foi, garotas?

— Foi — concordou Linda. Os cantos da sua boca baixaram. Foi pouco mais do que um tique, mas o coração de Barbie se alegrou. Achou que ela estava fingindo. Talvez fosse excesso de esperança, mas...

Ela se moveu de leve, bloqueando com o corpo a linha de visão entre Thibodeau e Jackie... embora não houvesse necessidade. Thibodeau estava mais ocupado tentando espiar pela borda da atadura.

Jackie deu uma olhada para trás para se assegurar que estava tudo bem, depois apontou o pote, abriu as mãos e ergueu as sobrancelhas. Desculpe. Depois disso, apontou dois dedos para Barbie. Presta atenção.

Ele fez que sim.

— Aproveita, babacão — disse Jackie. — Ao meio-dia, a gente traz coisa melhor. Que tal um cocobúrguer?

Na escada, onde agora puxava as bordas da atadura, Thibodeau deu uma gargalhada.

— Se te sobrarem dentes pra mastigar — disse Linda.

Barbie preferiu que ela tivesse ficado calada. Não soou sádica nem sequer zangada. Só soou assustada, uma mulher que gostaria de estar em qualquer lugar, menos ali. Mas Thibodeau não deu mostras de perceber. Ainda examinava o estado do seu ombro.

— Vamos — disse Jackie. — Não quero ver ele comer.

— Está bem molhadinho? — perguntou Thibodeau. Endireitou-se quando as mulheres desceram o corredor entre as celas até a escada, com Linda recolocando a arma no coldre. — Por que se não estiver... — Ele soltou o pigarro.

— Eu dou um jeito — disse Barbie.

— Claro que dá — disse Thibodeau. — Por enquanto. Depois, eu quero ver.

Eles subiram a escada. Thibodeau foi por último, e deu uma palmada no traseiro de Jackie. Ela riu e lhe deu um tapa. Era boa, muito melhor que a mulher de Everett. Mas ambas tinham demonstrado muita coragem. Coragem assustadora.

Barbie tirou a meleca dos flocos e a jogou no canto onde mijara. Limpou as mãos na camisa. Então começou a remexer os flocos. No fundo, os dedos encontraram uma tirinha de papel.

Tente aguentar até amanhã à noite. Se conseguirmos tirar você daí, pense num lugar seguro. Você sabe o que fazer com isso.

Barbie fez.

 

Uma hora depois de ele comer o bilhete e depois os flocos de milho, passos pesados desceram a escada devagar. Era Big Jim Rennie, já vestido de terno e gravata para outro dia de governo debaixo da Redoma. Atrás dele vinham Carter Thibodeau e outro sujeito — um Killian, a julgar pelo formato da cabeça. Este trazia uma cadeira e tinha dificuldade com ela; era o que os antigos ianques chamariam de “rapaz estouvado”. Entregou a cadeira a Thibodeau, que a colocou diante da cela, no final do corredor. Rennie sentou-se, puxando delicadamente as pernas das calças para conservar o vinco.

— Bom dia, sr. Barbara. — Havia uma leve ênfase satisfeita no título educado.

— Vereador Rennie — disse Barbie. — O que posso fazer pelo senhor além de revelar o meu nome, posto e número de série... que nem sei se eu consigo me lembrar?

— Confessar. Nos poupar de problemas e aliviar a sua alma.

— O sr. Searles mencionou algo ontem à noite sobre afogamento simulado — disse Barbie. — Ele me perguntou se eu já vi no Iraque.

A boca de Rennie estava franzida num leve sorriso que parecia dizer Fala mais, animais falantes são tão interessantes.

— Na verdade, eu vi. Não faço ideia da frequência com que a técnica foi realmente usada em campo, os relatórios variavam; mas eu vi duas vezes. Um dos homens confessou, embora a confissão fosse inútil, O homem que ele citou como fabricante de bombas da Al-Qaeda era um professor de escola que fora embora do Iraque pro Kwait 14 meses antes. O outro teve uma convulsão e sofreu danos cerebrais, então dele não saiu confissão nenhuma. No entanto, se tivesse sido capaz, tenho certeza de que ele confessaria. Todo mundo confessa no afogamento simulado, geralmente em questão de minutos. Tenho certeza de que eu confessaria também.

— Então poupe-se do sofrimento — disse Big Jim.

— O senhor parece cansado. Está tudo bem?

O sorrisinho foi substituído por um minúsculo desdém. Emanava da profunda ruga entre as sobrancelhas de Rennie.

— O meu estado atual não é da sua conta. Uma palavra de conselho, sr. Barbara. Não tente me enrolar que eu não tento enrolar o senhor. O senhor deveria se preocupar com o seu próprio estado. Talvez esteja bem agora, mas isso pode mudar. Em questão de minutos. Veja bem, estou mesmo pensando em experimentar o afogamento simulado. Na verdade, estou considerando isso a sério. Assim, confesse os assassinatos. Poupe-se de muita dor e sofrimento.

— Acho melhor não. E se o senhor usar o afogamento simulado, eu sou capaz de falar todo tipo de coisa. Talvez seja bom ter isso em mente quando o senhor decidir quem quer que esteja na sala quando eu começar a falar.

Rennie pensou melhor. Embora estivesse bem-vestido, ainda mais para de manhã tão cedo, seu rosto estava pálido e os olhos pequenos, contornados por carne roxa como hematomas. Não parecia mesmo bem. Se Big Jim caísse morto, Barbie imaginava dois resultados possíveis. Um deles, que o mau tempo político de Mill se limparia sem gerar mais nenhum tornado. O outro, um caótico banho de sangue no qual a morte do próprio Barbie (provavelmente por linchamento, não por pelotão de fuzilamento) seria seguida pelo expurgo dos suspeitos de serem seus parceiros. Julia talvez fosse a primeira da lista. E Rose poderia ser a segunda; gente assustada acredita fervorosamente em culpa por associação.

Rennie se virou para Thibodeau.

— Afaste-se, Carter. Até a escada, por favor.

— Mas se ele tentar agarrar o senhor...

— Aí você mata ele. E ele sabe disso. Não sabe, sr. Barbara?

Barbie fez que sim.

— Além disso, não vou me aproximar mais do que isso. Essa é a razão de eu querer que você se afaste. Temos aqui uma conversa particular.

Thibodeau recuou.

— Agora, sr. Barbara, de que coisas o senhor falaria?

— Eu sei tudo sobre o laboratório de meth. — Barbie manteve a voz bem baixa. — O chefe Perkins sabia, e estava prestes a prender você. Brenda achou o arquivo no computador. Por isso você a matou.

Rennie sorriu.

— Essa é uma fantasia ambiciosa.

— O procurador-geral do estado não vai pensar assim, dados os seus motivos. Não estamos falando de uma fabriqueta improvisada num trailer; essa é a General Motors da metanfetamina.

— Até o fim do dia — disse Rennie — o computador de Perkins vai ser destruído. O dela também. Suponho que deva haver cópias de certos documentos no cofre da casa de Duke, coisas sem sentido, é claro; lixo cruel com motivação política saído da mente de um homem que sempre me detestou; e, se assim for, o cofre vai ser aberto, e os documentos, queimados. Pelo bem da cidade, não pelo meu. Essa é uma situação de crise. Todos precisamos nos unir.

— Brenda passou adiante uma cópia daquele arquivo antes de morrer.

Big Jim sorriu, revelando uma fila dupla de dentinhos minúsculos.

— Uma confidência merece outra, sr. Barbara. Devo confidenciar?

Barbie abriu as mãos: Fique à vontade.

— Na minha confidência, Brenda vem me visitar e diz a mesma coisa. Diz que entregou a Julia Shumway a cópia de que você fala. Mas eu sei que é mentira. Talvez ela pretendesse, mas não entregou. E mesmo que entregasse... — Ele deu de ombros. — Os seus cúmplices queimaram o jornal da srta. Shumway ontem à noite. Uma péssima decisão da parte deles. Ou a idéia foi sua?

Barbara repetiu:

— Há outra cópia. Eu sei onde está. Se me submeter ao afogamento simulado, eu vou confessar a localização. Em voz alta.

Rennie riu.

— O senhor fala com grande sinceridade, sr. Barbara, mas passei a vida toda negociando e sei reconhecer um blefe. Talvez eu só deva mandar executá-lo sumariamente. A cidade adoraria.

— Mesmo que fizesse isso sem revelar antes quem são os meus cúmplices? Até Peter Randolph questionaria essa decisão, e ele não passa de um puxa-saco burro e assustado.

Big Jim se levantou. As bochechas pendentes estavam cor de tijolo velho.

— Você não sabe com quem está mexendo.

— Claro que sei. Vi gente do seu tipo várias vezes no Iraque. Usavam turbantes em vez de gravata, mas fora isso são iguaizinhos. Até o blá-blá-blá sobre Deus.

— Bom, você me convenceu a desistir do afogamento simulado — disse Big Jim. — É uma vergonha, também, porque eu sempre quis ver como é ao vivo.

— Aposto que sim.

— Por enquanto, vamos apenas mantê-lo nessa cela aconchegante, tudo bem? Acho que você não vai comer muito, porque comer interfere com o raciocínio. Quem sabe? Com pensamento construtivo, talvez arranje razões melhores pra que eu o deixe vivo, O nome dos moradores da cidade que são contra mim, por exemplo. Uma lista completa. Vou lhe dar 48 horas. Então, se não conseguir me convencer, vai ser executado na praça do Memorial de Guerra com a cidade toda assistindo. Vai servir de aula prática.

— O senhor realmente não parece bem, vereador.

Rennie o estudou muito sério.

— O seu tipo é o que causa mais problemas no mundo. Se eu não achasse que a sua execução serviria de princípio unificador desta cidade e de catarse muito necessária, mandaria o sr. Thibodeau te matar agora mesmo.

— Faça isso e tudo vem à tona — disse Barbie. — De uma ponta a outra da cidade, todos vão saber das suas operações. Aí quero ver você obter consenso na sua assembleia de merda, seu tiranozinho de meia-tigela.

As veias se incharam nos lados do pescoço de Big Jim; outra pulsou no meio da testa. Por um instante, ele pareceu estar à beira de explodir. Depois, sorriu.

— Nota 10 pela tentativa, sr. Barbara. Mas o senhor está mentindo.

E foi embora. Todos foram embora. Barbie se sentou no catre, suando. Sabia como estava perto do limite. Rennie tinha razões para mantê-lo vivo, mas não eram razões fortes. E depois havia o bilhete entregue por Jackie Wettington e Linda Everett. A expressão do rosto da sra. Everett indicava que ela sabia o suficiente para estar apavorada, e não só por si. Seria mais seguro que ele tentasse fugir usando o canivete. Dado o nível atual de profissionalismo da polícia de Chester’s Mill, achou que conseguiria. Precisaria de um pouco de sorte, mas conseguiria.

Mas não tinha como dizer a elas que o deixassem tentar sozinho.

Barbie se deitou e pôs as mãos na nuca. Uma questão o incomodava mais do que todas as outras: o que acontecera à cópia do arquivo VADER que deveria ter sido entregue a Julia? Porque não chegara até ela; quanto a isso, ele tinha certeza de que Rennie falava a verdade.

Não havia como saber, e nada a fazer senão esperar.

Deitado de costas, olhando o teto, foi o que Barbie começou a fazer.

 

 

 

 

TOCA A MÚSICA DAQUELA BANDA MORTA

Quando Linda e Jackie voltaram da delegacia, Rusty e as meninas estavam sentados nos degraus da frente à sua espera. As Jotinhas ainda estavam de pijama — os leves, de algodão, não os de flanela que costumavam usar naquela época do ano. Embora ainda nem fosse sete da manhã, o termômetro do lado de fora da janela da cozinha marcava 19 graus.

Normalmente, as duas meninas teriam descido correndo o caminho para abraçar a mãe bem antes de Rusty, mas nessa manhã ele as venceu por vários metros. Agarrou Linda pela cintura e ela jogou os braços no pescoço dele com força quase dolorosa — não um abraço de oi-bonitão, mas...

 

                                                                                CONTINUA  

 

 

                      

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